Inovações da Escola Tuyuka: superando a educação colonialista. In: MILITÃO, Andréia Nunes, SANTANA , Maria Silvia Rosa. Intersecções entre pesquisas/pesquisadores iniciantes e pesquisas/pesquisadores experientes. 2016.

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Descripción

ANDRÉIA NUNES MILITÃO MARIA SILVIA ROSA SANTANA

[organizadoras]

INTERSECÇÕES/ ENTRE

PESQUISAS PESQUISADORES EXPERIENTES E PESQUISAS/PESQUISADORES INICIANTES

NO CAMPO

EDUCACIONAL

INTERSECÇÕES ENTRE PESQUISAS/PESQUISADORES EXPERIENTES E PESQUISAS/PESQUISADORES INICIANTES NO CAMPO EDUCACIONAL

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Andréia Nunes Militão Maria Silvia Rosa Santana (Organizadoras)

INTERSECÇÕES ENTRE PESQUISAS/PESQUISADORES EXPERIENTES E PESQUISAS/PESQUISADORES INICIANTES NO CAMPO EDUCACIONAL

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Copyright © dos autores Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos dos autores.

Andréia Nunes Militão; Maria Silvia Rosa Santana (Orgs.) Intersecções entre pesquisas/pesquisadores experientes e pesquisas/ pesquisadores iniciantes no campo educacional. São Carlos: Pedro & João Editores, 2016. 372p. ISBN: 978-85-7993-366-0 ISBN: 978-85-7993-380-6 (E-book) 1. Educação. 2. Pesquisa e pesquisadores. 3. Formação de professores. 4. Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. I. Título CDD – 370 Capa: Hélio Márcio Pajeú Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito Conselho Científico da Pedro & João Editores: Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Nair F. Gurgel do Amaral (UNIR/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil).

Pedro & João Editores www.pedroejoaoeditores.com.br 13568-878 - São Carlos – SP 2016

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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Andréia Nunes Militão Maria Silvia Rosa Santana

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PARTE I

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EL EJE EPISTEMOLÓGICO EN UN PROYECTO DE INVESTIGACIÓN EN CIENCIAS SOCIALES: EL OBJETO DE ESTUDIO. ENTRE LA PREGUNTA Y LA HIPÓTESIS César Tello

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IMPACTO DE POLÍTICAS TRANSNACIONAIS NA ESCOLA, NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES E NO TRABALHO DOCENTE José Augusto Pacheco Joana Sousa

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FORMAÇÃO DE PROFESSORES: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O CAMPO DE PESQUISA Renata Portela Rinaldi

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CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS PARA O SUBCAMPO DE PESQUISAS SOBRE SABERES DOCENTES NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES Mariana Costa Lopes da Silva Júlio Emílio Diniz-Pereira

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INVESTIGANDO A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES Manuela Esteves

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FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA EDUCAÇÃO INFANTIL: DESAFIOS DA INCLUSÃO ESCOLAR Fernanda Cristina de Souza Raquel da Silva Ribeiro Rosângela Gavioli Prieto

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DIVERSIDADE E INCLUSÃO: O ENSINO DESENVOLVIMENTAL Laura Marisa Carnielo Calejon Guillermo Arias Beatón

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AS INOVAÇÕES DA ESCOLA TUYUKA SUPERANDO A EDUCAÇÃO COLONIALISTA Elie Ghanem

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PARTE II

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O CONCEITO DE “NATURAL” NOS DEBATES SOBRE A HOMOSSEXUALIDADE André Luís Carolli Maria José de Jesus Alves Cordeiro

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CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: DESCAMINHOS PARA A VIOLÊNCIA ESCOLAR Cláudia Gomes de Oliveira Elson Luiz de Araujo

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A REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE SURDA REVELADA NAS RELAÇÕES CULTURAIS: breves apontamentos Danilo Pessopane de Almeida Doracina Aparecida de Castro Araujo

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O PROFESSOR DE ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO E A FORMAÇÃO CONTINUADA Deine Esly Iglesias Junqueira Hernandes Maria Helena Bimbatti Moreira

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A BRINCADEIRA COMO ATIVIDADE PRINCIPAL PARA A ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL: UMA ANÁLISE SOBRE A SUA DEFESA EM TESES E DISSERTAÇÕES Elizangela Ferreira de Andrade Maria Silvia Rosa Santana

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PROGRAMA MAIS EDUCAÇÃO: CURRÍCULO E A FORMAÇÃO DO SUJEITO Laurenice de Fátima Coutinho de Carvalho Maria Silvia Rosa Santana

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ENSINO COLABORATIVO: CONTRIBUIÇÕES AO DEBATE PARA UMA ESCOLA INCLUSIVA Patrícia Bispo De Araújo Maria José de Jesus Alves Cordeiro

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EDUCAÇÃO DE ALUNOS COM SURDEZ: DESAFIOS, POSSIBILIDADES, PRECONCEITOS E VIOLÊNCIA Samara Rodrigues da Cruz Doracina Aparecida de Castro Araujo

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SOBRE AS ORGANIZADORAS

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APRESENTAÇÃO

A arquitetura desta coletânea foi construída no contexto da organização da disciplina Seminários de Pesquisa em Educação, Linguagem e Sociedade inscrita no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). A partir da proposta de elaboração de uma coletânea por cada uma das linhas do PGEDU/UEMS, os professores ministrantes da disciplina Andréia Nunes Militão, Ademilson Batista Paes e Fabrício Antonio Deffacci lançaram aos discentes e docentes a tarefa de contribuírem com a elaboração de um capítulo para compor a obra. Na tentativa de romper com a lógica de produções endógenas, convidamos pesquisadores que aqui estamos caracterizando como “pesquisadores experientes” em razão de suas trajetórias e contribuições para a área educacional. Desta forma, para compor a obra que ora apresentamos intitulada “Intersecções entre pesquisas/pesquisadores experientes e pesquisas/pesquisadores iniciantes no campo educacional”, convidamos os professores: César Tello (Director de la Red Latinoamericana de Estudios Epistemológicos en Política Educativa, ReLePe, Argentina), Elie Ghanem (USP), José Augusto Pacheco e Joana Sousa (Universidade do Minho/Portugal), Mariana Costa Lopes da Silva e Júlio Emílio Diniz-Pereira (UFMG), Manuela Esteves (Instituto de Educação/Universidade de Lisboa), Fernanda Cristina de Souza, Raquel da Silva Ribeiro, Rosângela Gavioli Prieto (USP), Renata Portela Rinaldi (UNESP/Presidente Prudente), Laura Marisa Carnielo Calejon (Universidade Cruzeiro do Sul) e Guillermo Arias Beatón (Cátedra Vygotski/Universidade De Havana) que, ao aceitarem preparar um texto para compor a presente obra,

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propiciam intersecções entre seus trabalhos e aqueles apresentados pelos discentes do PGEDU/UEMS. Pareceu-nos essencial divulgar as produções internas do PGEDU/UEMS, sem descurar do rigor metodológico e da busca de uma aproximação com pesquisadores experientes. Dessa maneira, a Coletânea está organizada em duas partes. Integram o primeiro bloco oito textos produzidos por autores de referência no campo educacional nacional e internacional. A segunda parte é composta por oito capítulos produzidos no âmbito do Programa de PósGraduação em Educação. Na primeira parte da Coletânea temos um primeiro capítulo com enfoque no processo metodológico da pesquisa, centrando-se na discussão das contendas entre “pergunta” e “hipótese” no processo investigativo (TELLO). Segue-se, nesta parte da obra, a discussão em torno da formação docente, reunindo cinco capítulos. Estes têm como eixo central de análise a formação de professores, abordando diferentes facetas deste campo: passando pelos efeitos das políticas transnacionais na formação e trabalho docente (PACHECO e SOUSA), a localização da formação docente como um campo de pesquisa (RINALDI), a discussão em torno do subacampo de pesquisa sobre saberes docentes na formação de professores (SILVA e DINIZ-PEREIRA), a dimensão da formação continuada (ESTEVES) e os desafios da inclusão escolar para a formação docente (SOUZA, RIBEIRO e PRIETO). Ao final desta parte, comparece a discussão em torno da diversidade e inclusão (CALEJON, BEATÓN) e o relato em torno das inovações presentes na Escola indígena Tuyuka, ao tratar de diferentes aspectos da cultura indígena. O primeiro texto intitulado “El eje epistemológico en un proyecto de investigación en ciencias sociales: el objeto de estudio entre la pregunta y la hipótesis” de autoria de César Tello, aborda diferentes aspectos que envolve a escolha por parte do pesquisador da hipótese ou da pergunta como componente central do objeto de estudo, destacando as implicações dessa escolha para o eixo epistemológico em que se embasa a pesquisa. Trata-se de

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importante reflexão que subsidia o investigador na definição acerca da melhor forma de abordar seu objeto de investigação, denominado pelo autor como a “coluna vertebral do projeto de investigação”. O segundo texto, de autoria de José Augusto Pacheco e Joana Sousa, denominado “Impacto de políticas transnacionais na escola, na formação de professores e no trabalho docente” traduz a experiência de pesquisadores europeus na abordagem da temática que, por sua abrangência, tem caráter universal. A atuação das agências internacionais ou organismos multilaterais e as implicações do processo de globalização para as políticas de formação de professores são discutidos no texto. Destaca-se a problematização em torno de ideários abstratos em um plano mais geral e transnacional que, entretanto, se materializada de forma diversa de acordo com lógicas próprias de cada localidade. O texto de Pacheco e Sousa auxília a reflexão em torno da nossa realidade, caracterizada pela presença de relações complexas entre determinações nacionais, convivendo com milhares de sistemas de ensino em diferentes níveis governamentais em realidades díspares e variadas, quando pensamos nos aspectos curriculares e de formação de professores. Em seguida, o texto “Formação de professores: algumas considerações sobre o campo de pesquisa” de Renata Portela Rinaldi apresenta e analisa o campo da formação de professores, conferindo ênfase na constituição e desenvolvimento desse campo de estudo, destaca os desafios e possibilidades proporcionados pela análise dos paradigmas que embasaram a formação de professores e sua investigação. Sob o título “Contribuições teóricas para o subcampo de pesquisas sobre saberes docentes na formação de professores”, Mariana Costa Lopes da Silva e Júlio Emílio Diniz-Pereira aprofundam o debate em torno do subcampo saberes docentes. Inicialmente, os autores, analisam as características dos saberes

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docentes para, em seguida, discutirem como esses saberes podem ser sistematizados em pesquisas do campo educacional. O quinto capítulo denominado “Investigando a formação continuada de professores” de autoria de Manuela Esteves, trata da formação continuada de professores. A autora parte do pressuposto de que não existe formação continuada neutra, pois todas servem a determinado projeto de escola para fazer um mapeamento ou agenda dos problemas relativos à formação continuada dos professores que carecem de mais investigação científica. Ainda que imersa no contexto português e europeu as contribuições do texto são de grande valia para os pesquisadores brasileiros ao propiciar pertinentes reflexões. A partir do mapeamento dos problemas relativos à formação continuada dos professores, Esteves incita que a temática seja mais investigada, especialmente pelos pesquisadores iniciantes “a nível de estudos de graduação e pós-graduação, que frequentemente se debatem com o problema de definir o seu objeto de trabalho e as questões de investigação que lhe querem associar”. O sexto capítulo aborda tema diverso, embora tangencie a questão da formação de professores. Intitulado de “Formação de professores da educação infantil: desafios da inclusão escolar” o texto de Fernanda Cristina de Souza, Raquel da Silva Ribeiro e Rosângela Gavioli Prieto tratam da temática da inclusão no contexto da educação infantil, perpassando por diferentes elementos como a consolidação de direitos, a formação de professores e os desafios que se impõe diante do cenário atual. Em “Diversidade e inclusão: o ensino desenvolvimental”, Laura Marisa Carnielo Calejon e Guillermo Arias Beatón apresentam um aprofundamento do debate sobre a questão da inclusão apresentando reflexões sobre os desafios da educação na contemporaneidade, marcada por transformações rápidas, pelo discurso da educação para todos e, finalmente, pelo reconhecimento de que a educação que é oferecida para todos não

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tem a mesma qualidade e não oferece a todos os sujeitos as mesmas oportunidades de desenvolvimento. Por fim, encerrando essa primeira parte do livro, o capítulo de Elie Ghanem nomeado de “As inovações da escola Tuyuka Superando a Educação Colonialista” que aborda aspectos inovadores de uma escola indígena no Alto Rio Negro. A investigação está dirigida ao problema da orientação seguida pelas escolas indígenas. O que se busca saber é se estas escolas suplantaram o caráter colonialista da escolarização, superando classificações simplistas baseadas nos resultados das avaliações nacionais de aprendizagem, que consideram apenas a proficiência dos alunos em provas de português e matemática. A segunda parte, referente aos produtos parciais da pesquisa dos investigadores iniciantes, é composta por oito capítulos. O primeiro deles, "O conceito de 'natural' nos debates sobre a homossexualidade" de André Luís Carolli e Maria José de Jesus Alves Cordeiro, promove a reflexão acerca da concepção de "natural" no debate sobre a homossexualidade, trazendo para isso elementos de diversos discursos, da esfera religiosa às diferentes áreas do conhecimento científico. Sob à luz das diferentes ciências contemporâneas, os autores evidenciam a necessidade de se cultivar uma cultura de respeito à diversidade da expressão da sexualidade e da identidade de gênero, somente possível a partir do conhecimento e da desnaturalização da natureza da sexualidade humana. Em "Currículo e multiculturalismo: descaminhos para a violência escolar”, Cláudia Gomes de Oliveira e Elson Luiz de Araujo apresentam a pesquisa em desenvolvimento, cujo objetivo é analisar como o analisar como a organização curricular de escola pública compreende o multiculturalismo. Por meio das teorias que analisam o currículo escolar, os autores defendem a ideia de que as subjetividades e identidades sociais precisam ser contempladas no espaço social escolar, para que as condutas de exclusão e violência possam ser minimizadas ou extintas.

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Danilo Pessopane de Almeida e Doracina Aparecida de Castro Araujo trazem o tema da cultura surda para seu capítulo intitulado "A representação da identidade surda revelada nas relacões culturais: breves apontamentos", destacando sua relevância nos estudos sobre a construção da identidade do sujeito surdo e das comunidades surdas em todos os espaços de convívio social: político, religioso, educacional, acadêmico, entre outros. Concluem, ao defender a inclusão da pessoa com surdez nos diversos contextos sociais, afirmando que "[...] é possível destacar que deve haver equiparação entre a diversidade de culturas, sem sobreposição de nenhuma, tendo em vista a igualdade valorativa entre todas". Tal propositura adquire ainda maior destaque quando se trata do contexto escolar. Dando continuidade à seara da educação especial, Deine Esly Iglesias Junqueira Hernandes e Maria Helena Bimbatti Moreira destacam a importância da formação docente, tanto inicial quanto continuada, visando à constituição de uma escola inclusiva, especialmente para "[...] minimizar o processo de exclusão de alunos público-alvo da educação especial em situação escolar". Concluem afirmando que uma escola que favoreça o desenvolvimento de todas as crianças necessita de maior discussão acerca da formação de toda a comunidade escolar. Tendo a brincadeira como tema principal de seu texto, Elizângela Ferreira de Andrade e Maria Silvia Rosa Santana discorrem sobre como esta atividade humana propicia desenvolvimento às crianças a partir do enfoque histórico-cultural, necessitando de maior compreensão visando uma prática intencional por parte dos educadores. Para isso, em "A brincadeira como atividade principal para a abordagem histórico-cultural: uma análise sobre a sua defesa em teses e dissertações", as autoras apresentam um levantamento realizado no banco das Universidades estaduais de São Paulo, junto aos Programas de PósGraduação Strictu Senso em Educação e Psicologia, nos trabalhos acadêmicos defendidos nos últimos cinco anos. O reduzido

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número de trabalhos encontrados denuncia a carência de estudos que se debrucem sobre o tema e se insiram na luta por uma Educação Infantil que respeite o nível de desenvolvimento das crianças e suas atividades, no caso, a brincadeira. Ainda sob os pressupostos teóricos do enfoque históricocultural, no capítulo "Programa Mais Educação: currículo e a formação do sujeito" as autoras Laurenice de Fátima Coutinho de Carvalho e Maria Silvia Rosa Santana discutem o papel do currículo escolar na formação do sujeito, entendendo que este se constitui à medida que se apropria da cultura. Atuando no âmbito da educação integral, o Programa Mais Educação, segundo as autoras, não se configura como avanço nas propostas pedagógicas, uma vez que "[...] o que vemos na maioria de nossas escolas é a manutenção de um ensino fragmentado, formando indivíduos passivos, reproduzindo a incoerência de um discurso muitas vezes dito diferente, cujo principal instrumento usado na sua manutenção é o currículo". Desta forma, a escola permanece como segregadora, com um currículo excludente que não respeita as diferenças e acirra as desigualdades. Retomando a temática da inclusão, especialmente no que tange ao necessário trabalho colaborativo entre os docentes da sala regular e da sala de atendimento especializado (AEE), o capítulo "Ensino Colaborativo: contribuições ao debate para uma escola inclusiva" discute as condições efetivadas pela escola para que esse trabalho ocorra com qualidade. Nele, as autoras Patrícia Bispo de Araújo e Maria José de Jesus Alves Cordeiro defendem a tese de que, tendo em vista o desenvolvimento de uma escola inclusiva, é imprescindível ressignificar o papel dos educadores, a partir de "[...] formação que possibilite a reflexão sobre a história humana, o caminho histórico da educação, com o conhecimento sobre as diferenças, valores e direitos do ser humano, enquanto cidadão e parte da história". O capítulo "Educação de alunos com surdez: desafios, possibilidades, preconceitos e violência", de Samara Rodrigues da Cruz e Doracina Aparecida de Castro Araujo, retoma a educação

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de alunos com surdez a partir de um levantamento bibliográfico das principais teorias e estudos acerca da temática no decorrer dos últimos anos, especialmente no que se refere à educação bilíngue, visando a "[...] promoção da participação, da interação e à construção do conhecimento dos alunos surdos no ensino regular". Nesse sentido, as autoras defendem que, para além da educação bilíngue, também se torna necessária o desenvolvimento de uma cultura bilíngue, que compreenda a forma de conceber o mundo desenvolvida pelos surdos a fim de que sejam superadas condutas preconceituosas e até violentas que ainda podem ser verificadas. Ao realizarmos uma obra que traz em seu bojo trabalhos que discutem a realidade educacional em diferentes contextos e sob perspectivas teóricas, com olhares mais experientes e lapidados somados aos iniciantes e tateantes, que buscam desvelar a realidade percebida por meio da aproximação teórica cada vez mais aprofundada, intentamos propiciar material que promova novas reflexões para um campo tão complexo quanto a educação, por meio da divulgação das pesquisas realizadas. Levarmos adiante este propósito, sempre, em um Programa de Pós-Graduação em Educação, de uma Universidade pública, mais do que parte inerente do processo de formação do docente e do pesquisador, torna-se um compromisso político, no sentido de aproximar as pesquisas acadêmicas da Educação Básica, especialmente quando se trata de um produto vinculado a uma linha de pesquisa que busca integrar "Currículo, Formação Docente e Diversidade" em prol de uma escola mais humanizada e humanizadora, para além da realidade objetiva que se desponta nestes tempos vividos. Paranaíba-MS, agosto de 2016. Andréia Nunes Militão Maria Silvia Rosa Santana

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PARTE I

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EL EJE EPISTEMOLÓGICO EN UN PROYECTO DE INVESTIGACIÓN EN CIENCIAS SOCIALES: EL OBJETO DE ESTUDIO. ENTRE LA PREGUNTA Y LA HIPÓTESIS César Tello1

Introducción Este artículo tiene por objeto presentar y analizar algunas dificultades que se encuentran al momento de optar por el eje epistemológico (EE) de un proyecto de investigación, esto es: decidir si será una pregunta o una hipótesis la que se constituirá en el componente central del objeto de estudio. El investigador, en general, utiliza uno u otro Eje Epistemológico y, en algunos casos ambos, de modo simultáneo, al momento de diseñar su proyecto, sin considerar los diversos caminos que tomará su indagación si opta por la pregunta o la hipótesis. Entendiendo que el objeto de estudio se constituye en la columna vertebral del proyecto de investigación y, esa vertebralidad posee un EE que la define: la pregunta o la hipótesis. Es necesario señalar que el EE del objeto de estudio atravesará todos los componentes del proyecto de investigación. En este sentido no es menor la reflexión del investigador acerca de la decisión sobre la opción entre pregunta o hipótesis. Aquí no hablaremos de “mejores o peores” ejes de un proyecto de investigación, cuestión que es común encontrar en algunas reflexiones epistemológicas, particularmente cuando se refieren a las metodologías cualitativas y cuantitativas, asociando 1

Doctor en Ciencias de la Educación. Director de la Red Latinoamericana de Estudios Epistemológicos en Política Educativa, ReLePe. E-mail: [email protected]

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erróneamente las primeras al Eje Epistemológico de investigación “pregunta” (metodologías cualitativas) y las segundas a la “hipótesis” (metodologías cuantitativas). Siguiendo en esta línea de análisis es que consideramos que no es apropiado denominar a las metodologías cualitativas y cuantitativas como paradigmas. Con esto decimos que los paradigmas, desde las múltiples acepciones con que se la quiera utilizar (Khun, Saussure, Fleck, entre otros) están vinculados a enfoques teóricos que pueden devenir en uno u otro modo de construcción metodológica, como desarrollamos en el primer apartado. Considerando que del enfoque teórico seleccionado por el investigador se desprende de lo que hemos denominado posición epistémica del investigador. Entendiendo así que el paradigma asumido en el proyecto de investigación no se define por las metodologías cualitativas o cuantitativas de investigación. Aquí se da lo que denomino la falacia epistemológica de las metodologías y la posición epistémica. Esta falacia se produce cuando la metodología es tomada como paradigma en tanto se mencionan las estrategias metodológicas como “paradigma cualitativo” o “paradigma cuantitativo” cuando en realidad no lo son. Es decir, la falacia se produce en tanto desde lo metodológico se intenta establecer un paradigma y, el paradigma con que se desarrolla un proyecto de investigación se encuentra en la posición epistémica del investigador, empleando uno u otro modo metodológico. Esto no significa que no exista relación entre metodología y enfoque teórico y posición epistémica del investigador, pero no son inherentes, mecánicas o causales. Con esto quiero decir que una investigación en ciencias sociales puede asumir un paradigma positivista y utilizar algunos componentes de la metodología cualitativa para el despliegue metodológico. El análisis que desarrollamos se extiende en torno al énfasis de un proyecto de investigación, sea en una lógica del descubrimiento o una lógica de la verificación. Es aquí donde observamos una gran dificultad en términos metodológicos de los proyectos de

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investigación que afectan la consistencia y coherencia epistemológica: cuando se confunde opción por un enfoque teórico por parte del investigador asumiendo una posición epistémica con la metodología como paradigma. Esto se puede observar en investigadores jóvenes y en determinada bibliografía que vincula la lógica de la verificación con la metodología cuantitativa y la lógica de descubrimiento con la metodología cualitativa. De este modo presento las categorías claves de este trabajo: a) El objeto de estudio como columna vertebral del proyecto de investigación. b) La pregunta o hipótesis como eje epistemológico del objeto de estudio. c) Las metodologías cualitativas y cuantitativas como estrategias para el abordaje, pero no como paradigmas. d) El enfoque teórico –como paradigma– del investigador y la posición epistémica que se desprende del enfoque. A modo de ejemplo podemos mencionar que el investigador asume el enfoque teórico del neo-marxismo y la posición epistemológica del neomarxismo latinoamericano. Eje inicial, objeto de estudio y etapas del proceso de investigación En primer lugar debemos considerar que uno u otro eje epistemológico inicial son válidos para desarrollar una investigación. Ahora bien, para poder enhebrar una lógica coherente y consistente en el desarrollo de una investigación en ciencias sociales, es necesario considerar en palabras de Andrade que: “la crítica no es al empleo de hipótesis ni mucho menos a la definición de preguntas de investigación en sí mismos, si no a la poca reflexión que un uso mecánico de tales procedimientos da lugar” (2007, p. 265). Una de las grandes dificultades que tiene la enseñanza de la metodología de investigación en ciencias sociales en los espacios

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académicos latinoamericanos tiene que ver con la transmisión técnico-organizativa de lo que es un diseño o proyecto de investigación2, desarrollando a veces, de modo instrumental algunos conceptos y categorías que se constituirán en los componentes de un proyecto de investigación. La enseñanza universitaria en metodología de la investigación en ciencias sociales, tanto en el grado como el posgrado en Latinoamérica es fuertemente prescriptiva (Barriga y Henríquez, 2003). Aquí es interesante pensar que dado el desarrollo y reflexiones de la epistemología en los últimos treinta años que provocó el pasaje de “el método científico” a “los métodos científicos” produjo por efecto sumativo nuevas categorías y componentes en un diseño de investigación generando confusión epistemológica en el uso de pregunta e hipótesis, observando que en algunos casos son utilizados casi como sinonimia y en otros como pasos sucesivos. Esto se puede observar en universidades de Latinoamérica y/o en agencias nacionales de investigación en cuyas planillas de aplicación para la presentación de proyectos de investigación se observan los componentes: “-Pregunta –Hipótesis” continuando así con los otros componentes de las planillas y formularios del proyecto de investigación. Sin dejar al investigador la posibilidad de seleccionar uno u otro Eje Epistemológico. Bolívar (2002) afirma que dentro del denominado giro hermenéutico producido en los años sesenta en las ciencias sociales, se produjo un pasaje importante “de la instancia positivista a una perspectiva interpretativa” (p. 3). En medio de este giro en ciencias sociales muchos investigadores se sintieron más cómodos y les resultaba más apropiado el Eje Epistemológico de la pregunta para definir su objeto de estudio. Pero con el temor de “no perder” la denomina rigurosidad científica y ante el riesgo

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Conociendo las diferencias que diversos autores (Nuñez Flores 2008, Tamayo 1994, Sabino 1996, Hernández Sampieri y otros 2003) han realizado sobre ambos término. Sin embargo a los efectos de este artículo se utilizan como sinónimos.

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que su proyecto corría de no ser tomado dentro de los cánones de la rigurosidad a la que nos referíamos, seguían empleando la hipótesis, más aún: empleaban la hipótesis e introducían la pregunta. Es así como comienza a verse de modo simultáneo en las investigaciones la co-presencia de ejes epistemológicos. Así, de modo cronológico en las décadas de 1960 y 1970 se produce la transmisión conceptual en los espacios de formación académica de este nuevo Eje Epistemológico: la pregunta. Sin considerar el contexto en que fueron generadas y muchas veces tomadas desde el sentido común, extirpando, de algún modo, la perspectiva epistemológica de los ejes, componentes y etapas de una investigación: “la investigación es enseñada como el modo en que se hace investigación, no se revisan sus orígenes, se transmite como un acervo de herramientas y estrategias para hacer” (Andrade 2007, p. 264). En general se puede observar en investigadores sin experiencia cierta confusión inicial en el proceso de construcción del proyecto de investigación, desde nuestra exploración de treinta y ocho proyectos de investigación analizados en Universidades Nacionales de Argentina, Colombia, México, Brasil y Uruguay y el contacto que tenemos con los propios alumnos en Seminarios de Elaboración de Proyectos de Tesis tanto del grado como de posgrado, observamos que luego de haber cursado los seminarios de metodología3 previos al seminario de Taller de Tesis, optan de 3

En nuestro relevamiento hemos visto estructuras curriculares similares en Argentina, Uruguay, Colombia, México y Brasil. Se desarrollan en las carreras de ciencias sociales al menos dos seminarios – cursos – materias de metodología, con diversos nombres. Pero existe un nivel I y un nivel II. En los casos de carrera de grado (pregrado) donde se debe entregar una Tesina para la obtención del título de Licenciado, se desarrolla en general un Taller de Tesina o Taller de elaboración de trabajo final. Y en el caso de las maestrías sucede lo mismo, existe un primer espacio curricular como metodología o epistemología de las ciencias sociales y a posteriori un Taller de preparación-elaboración del Proyecto de Tesis. Por lo tanto podemos afirmar que un alumno posgraduado tuvo cinco materias metodológicas-epistemológicas. Por esta razón consideramos importante la advertencia que hicieran Bourdieu, Chamboredon y Passeron

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modo simultáneo y, sin mucha reflexión, por la pregunta e hipótesis como Ejes Epistemológicos simultáneos para comenzar a construir su objeto de estudio. Pero estas dificultades no son sólo atribuibles a los investigadores que se inician, sino a cierta literatura muy utilizada en los ámbitos de enseñanza de metodología de investigación – como espacio curricular previo a la construcción del proyecto de investigación– que despliegan esta confusión, aquí presentamos algunos autores que explican los pasos de un proceso de investigación para comprender a que nos estamos refiriendo, y tomamos particularmente autores que se encuentran fácilmente en los programas de los seminarios de metodología en países latinoamericanos.

(1994) cuando afirman que: “A la tentativa que siempre surge de transformar los preceptos del método en recetas de cocina científica o en objetos de laboratorio, sólo puede oponérsele un ejercicio constante de vigilancia epistemológica que, subordinando el uso de técnicas y conceptos a un examen sobre las condiciones y los límites de su validez, proscriba la comodidad de una aplicación automática de procedimientos probados y señale que toda operación, no importa cuán rutinaria y repetida sea, debe repensarse a sí misma y en función del caso particular” (p.16).

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Cuadro I - Algunos autores que utilizan de modo simultáneo Pregunta e Hipótesis Salkind (1999)

Bunge (1993)

Sampieri et. al. (2003)

1) Formulación de un Pregunta. 2) Identificar factores importantes. 3) Formulación de hipótesis de investigación. 4) Recopilación de la información. 5) Probar la Hipótesis. 6) Trabajar con la hipótesis. 7) Reconsideración de la teoría. 8) Confirmación o refutación.

1- Definición del Pregunta; 2- Hipótesis; como el modo de pensar o imaginar una respuesta probable al mismo 3- hipótesis (o subhipótesis) empíricas; 4- Diseño de la verificación de las hipótesis o del procedimiento concreto a seguir en su prueba; 5- Puesta a prueba o contraste con la realidad de la hipótesis a través de sus consecuencias o mediante subhipótesis empíricas; 6- Establecimiento de las conclusiones resultado de la investigación; y

1-concebir la idea 1. Definición del tema 2-el planteamiento del investigación Pregunta 2. Planteamiento del 3- la elaboración del Pregunta marco teórico 3. Formulación y 4- el establecimiento de sistematización del la hipótesis Pregunta de 5- la selección del investigación diseño apropiado 4. Objetivos de la 6- la selección de la investigación muestra 5. Justificación 7- la recolección de 6. Marco de referencia datos 7. Hipótesis 8- el análisis de datos 8. Aspectos 9- la presentación de los metodológicos resultados 9. Bibliografía 10. Cronograma.

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Mendez (1994)

Borsotti (2008)

Samaja (2005)

1. La situación problemática 2. La construcción del objeto (conocimiento disponible) 3. Formulación de las preguntas 4. Objetivos de la Investigación 5. Hipótesis 6. Obtención de información 7. Procesamiento y sistematización de la información 8. El cronograma 9. El presupuesto 10. La bibliografía

1. De Planteamientos Preliminares. a) De Preguntas; b) De Hipótesis; c) De fundamentos; d) De Propósitos. 2. De formulaciones de Preguntas; a) De Hipótesis; b) de fundamentos; c) De Propósitos. 3. De Diseño del Objeto de Estudio. a) De unidades de análisis; b) De variables; c) De fuentes; d) De definiciones operacionales. 4. De Diseño de los Procedimientos a) De la Muestra; b) Del Plan de Análisis; c) Del plan en los contextos; d) De los instrumentos. 5. De Recolección y

7- Extensión las conclusiones o generalizar los resultados.

Procesamiento de Datos. a) Pilotajes; b) Recolección; c) Procesamiento de los Datos; d) Presentación. 6. De Tratamiento y Análisis de los Datos Compactación de las matrices; a) Pruebas; b) Interpretación; c) Conclusiones. 7. De Elaboración de Informes a) Balance de actividades; b) ordenamiento de resultados; c) evaluación; d) redacción de informes 8: De Exposición Sistemática a) Destinatarios; b) Estructura retórica; c) Desarrollo de argumentaciones; d) Correcciones finales.

Fonte: Elaboración propia.

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En este cuadro se observa como, por ejemplo, en el caso de Bunge en el punto 2 comienza la dificultad técnico-epistemológica dado que el autor indica “pensar o imaginar una respuesta probable al mismo” (1993, p.35) y como sinónimo afirma “o hipótesis” (1993, p.35) en esta misma línea tomamos otro autor, no incluido en el cuadro, Ander-Egg, autor muy difundido en la investigación en educación afirma que “la hipótesis es una tentativa de explicación mediante una suposición o conjetura verosímil” (1995, p.14). En el caso de Borsotti se puede observar que explica la hipótesis como “una conjetura provisoria” (2008, p.77), utilizando el lenguaje cotidiano, que consideramos es el que más confusión trae al momento de los debates metodológicos sobre estas cuestiones: “a veces se trata de hipótesis de trabajo, que toman la forma de supuestos. Cuando la pregunta es: ¿cuál es la relación entre ‘r’ y ‘z’? el supuesto que se toma como hipótesis es que habría alguna relación entre esos elementos” (Borsotti 2008, p. 77, el subrayado es mío). Para Hernández Sampieri, las hipótesis son las guías de la investigación, entendiendo que “la hipótesis indica lo que estamos buscando, y se define como una explicación tentativa del fenómeno estudiado” (2003, p.140). Esta confusión conceptual siguiendo las definiciones de los autores se resolvería si tomaran la hipótesis como tal y, se referirían a las explicaciones que dan sobre ellas del modo apropiado, por ejemplo: supuestos del investigador, anticipación de sentido (Sirvent, 1999), lo que en la perspectiva anglosajona se puede encontrar como ideas orientadoras que ayudarían a guiar la investigación “sensitizing concepts” que permite según Herbert Blumer “una sensación general de referencia” (1954, p. 7) o el desarrollo realizado por Bowen en Grounded Theory and Sensitizing Concepts (2006), entre otros. El planteamiento latentes o juicios predictivos (Zemelman, 1992), intuición (Orozco, 2005),

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ideas previas del investigador (Sabino, 1996) y presupuesto teórico (Wainerman y Sautu, 2001). En ningún caso negamos los supuestos con los que un investigador comienza a desarrollar su proyecto, de hecho selecciona un tema y no otro, se hace algunas preguntas y no otras, etc., pero esto que le sucede al investigador debe ser llamado de modo apropiado para no generar confusiones terminológicas que pueden dar como resultado una inconsistencia en el proyecto de investigación. Y esto que le sucede al investigador –supuestos– sucede tanto cuando define una hipótesis como una pregunta. El investigador que se plantea una pregunta o una hipótesis “no lo hace en el vacío, como si no tuviese la menor idea del mismo, sino que siempre parte de algunas ideas o informaciones previas, de algunos referentes teóricos y conceptuales, por más que éstos no tengan todavía un carácter preciso y sistemático” (Sabino 1996, p.51). En este sentido Wainerman al referirse a los errores comunes en la investigación social explica que uno muy común es: “la confusión entre hipótesis como conjetura a someter a prueba e hipótesis como presupuesto o punto de partida que orienta la investigación. Es harto común que los estudiantes confundan el concepto de presupuesto teórico con el de hipótesis” (Wainerman y Sautu 2001, p. 29). Daré un ejemplo de una alumna, cuando planteaba: “La presente investigación tiene la siguiente hipótesis: “el apoyo tutorial hace importante contribuciones en los alumnos con problemas de disciplina en la escuela”. Este era el supuesto de la alumna. Que la presencia de determinado actor generaba ciertos beneficios en alumnos con determinadas dificultades. Es decir, allí existía un supuesto. Desde una perspectiva metodológica no estaba construida como pregunta ni como hipótesis. De hecho no se había podido aún construir el Eje Epistemológico del objeto de estudio: pregunta o hipótesis.

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En fin, el problema de la conjunción errónea que se hace de la presentación de hipótesis y pregunta en un proyecto de investigación radica, precisamente, en su formulación y modo de construcción. Una, la lógica de la verificación: la hipótesis, y otra, la lógica del descubrimiento: la pregunta. Esto se puede observar claramente en el esquema de Bunge cuando se refiere a la hipótesis o sub-hipótesis empíricas y así escinde el objeto de estudio que, para el autor sería el esquema teórico de la base empírica. Esta división, como dijimos, responde al modelo de verificación, es decir, esto se da cuando con una teoría se va a verificar la realidad. Desde nuestra perspectiva, el objeto de estudio es en sí mismo una amalgama de teoría y empiria. En este sentido Zemelman explica: el proceso constructor del objeto consiste en reconstruir un campo articulado con base en una pregunta-eje que sirva de punto de partida del conocimiento. Corresponde al esfuerzo de pensar de acuerdo con los requerimientos de un campo de posibilidades, en forma que pueda llegarse a fijar el contenido teórico de una proposición, rompiendo con la fragmentación de la observación sobre la realidad, mediante las articulaciones posibles de la pregunta eje (...) [que] refleja el esfuerzo por penetrar en la realidad por medio de una lógica de inclusividad de niveles que operan mediante instrumentos conceptuales que cumplen la función de reflejar la articulación y su movimiento vertical longitudinal, coyuntural período (1992, p. 196).

No debemos confundir, como se hace regularmente, la dimensión teórica del objeto de estudio con la hipótesis y la dimensión empírica del mismo con la pregunta. Dado que el objeto de estudio posee las dos dimensiones: teoría y empiria, imbricadas entre sí, sea tanto en una hipótesis como en una pregunta. Pero en ocasiones se puede observar que se incluye la hipótesis creyendo que esta se vincula con las cuestiones teóricas y la pregunta considerando que se relaciona con los aspectos empíricos. Escindiendo así nuevamente el objeto de estudio y aunando, como veremos más adelantes, Ejes Epistemológicos distintos. Este es un

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error metodológico que suele cometerse al no conocer el rol de cada uno de los ejes de un proyecto de investigación. El eje de investigación: ¿pregunta o hipótesis? Como hemos indicado, en la construcción del objeto se define el modelo con el que se diseñará el proyecto de la investigación: de verificación o de descubrimiento. Ahora bien, por qué decimos que uno u otro componente (pregunta o hipótesis) pertenecen a distintos modelos, considerando, claro está, que ambos son componentes potentes para la investigación en ciencias sociales. Hacemos esta afirmación por el modo en que se construye cada uno de esos componentes en el diseño de investigación. Construcción de la hipótesis Las hipótesis sostienen afirmaciones que se tratarán de probar. Pueden definirse como explicaciones tentativas del fenómeno que se investiga formuladas a manera de proposiciones. Klimovsky afirma que “quien plantea una hipótesis supone que ella es verdadera” (2001, p. 132). Estas proposiciones se establecen como relaciones entre dos o más variables y se apoyan en conocimientos organizados. No puede existir desconocimiento sobre la hipótesis planteada, porque se puede cometer un error en su construcción. En este sentido podemos encontrar una serie de sugerencias o recomendaciones al momento de construir la hipótesis. Haremos una breve síntesis tomando el desarrollo conceptual de varios autores (McMillan y Schumacher 2005, Kerlinger 1979, Krathwohl 1988, Buendía, Colas y Hernandez 2000, Mejía 2005, Goode y Hatt 1970, Bunge 1993). La Hipótesis: -Debe ser lógica, debe ser coherente en términos de una explicación razonable que resista un análisis crítico; no puede ser descabellada hasta el punto de ser absurda. -Debe poseer nivel de generalidad. La explicación es de carácter general y trasciende a una explicación o conjetura de

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hechos singulares; la hipótesis debe abarcar a una categoría de fenómenos que tengan algún atributo en común. Por otra parte, no debe ser tan general que impida precisar los conceptos y operaciones que de ella se desprendan. -Posee una referencia empírica. Sus afirmaciones guardan relación con el mundo de los fenómenos observables. -Debe ser comprobable y verificable. Si la explicación no permite someterla a prueba mediante los procedimientos metodológicos, no tiene validez. La lógica científica afirma que lo que da valor a cierta hipótesis es permitir ser falseada, es decir que luego de ser puesta a prueba en reiteradas situaciones para rechazarla, logra salir adelante sin objeciones. -Debe tener operacionalidad, es decir, que sus términos sean claros, sin ambigüedades a fin que se puedan establecer las relaciones entre las variables y sus indicadores que permitirán observar su comportamiento. -Debe tener una referencia teórica. Es preciso que se inserte en un cuerpo de teoría en forma explícita, a fin de procurar incrementar el acervo científico. La ciencia es acumulativa y una hipótesis aislada no aporta nada. Luego de construida la hipótesis se continúa con un modelo y lógica implícita e inherente por su propio modo de construcción. Con esto decimos que la investigación cuyo objeto de estudio se plantee en término de hipótesis tendrá las siguientes características, siguiendo el modelo hipotético de Ayala (2001, p.55): -Observar la información empírica sin realizar interpretaciones. -Buscar regularidades y relaciones en la información. -Formular la información general que dé cuenta de las regularidades o relaciones observadas. -Hacer otras observaciones para evaluar si la información se mantiene. La práctica de usar hipótesis se deriva del empleo del “método científico” en la investigación social. Hay ventajas filosóficas en el uso de la contrastación estadística, siempre que los investigadores

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sean cuidadosos y conservadores en la formulación de sus conclusiones (Armstrong, 1974). Según Pajares (2007) las hipótesis pueden ser divididas en cuatro tipos: 1. Nula Literaria. No hay diferencias en término de constructos teóricos. Por ejemplo, “No existe relación entre los servicios de apoyo institucional y la persistencia académica de las mujeres de edad no tradicional que asisten a la facultad”. “No hay diferencia entre el rendimiento académico de los alumnos con autoregulación alta y baja”. 2. Nula Operacional. No hay diferencias en términos de las operaciones necesarias para contrastar las hipótesis. En el ejemplo anterior, “no existe relación entre el número de horas que las mujeres de edad no tradicional utilizan el centro de estudiantes y su permanencia en la facultad después del primer año”. “No hay diferencias entre las medias de calificaciones obtenidas por los estudiantes del primer y el tercer cuartil de la distribución de las puntuaciones del inventario de autoregulación”. 3. Alternativa Literaria. En este caso se presenta la hipótesis que se aceptará en caso de que la hipótesis nula sea rechazada, en términos de constructos teóricos. En otras palabras, es lo que se espera que muestren los resultados. Por ejemplo, “cuando más utilicen los servicios de apoyo las mujeres de edad no tradicional, mayor será su persistencia académica”. “Los alumnos de autorregulación alta tendrán mejor desempeño académico que los alumnos de autorregulación baja”. 4. Alternativa Operacional. Este tipo de hipótesis es semejante al anterior, sólo que especificando las operaciones de medición. Por ejemplo, “cuando más utilicen el centro de estudiantes las mujeres de edad no tradicional, más persistirán académicamente después de su primer año de universidad”. “Los estudiantes pertenecientes al tercer cuartil de la distribución del inventario de autorregulación tendrán notas significativamente mayores que los alumnos del primer cuartil”.

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En general, la hipótesis nula es utilizada si la teoría o la literatura no sugiere una relación hipotética entre las variables investigadas; la alternativa se reserva generalmente para situaciones en las que la teoría o la investigación sugiere relación o interdependencia. Construcción de la Pregunta La pregunta de investigación se caracteriza por contener “todas aquellas cuestiones relacionadas con razones y motivos de los desequilibrios, rupturas, contradicciones, insatisfacciones y conflictos en que se involucra el sujeto cognoscente” (Becerra, 1994, p. 19). Principalmente, y a diferencia de la hipótesis, no se tienen dos posibles respuestas (de afirmación o negación de la hipótesis). El investigador desconoce a priori las múltiples relaciones, conflictos, estados de situación, etc. que arrojará su investigación. Esto es “la pregunta de investigación es el desconocimiento de algún asunto de interés” (Becerra, 1994, p.27). Una pregunta tiene en sí misma el carácter de incertidumbre. Pero la incertidumbre es propia de la pregunta de investigación. Si no hay incertidumbre, no hay pregunta. En este sentido una investigación planteada en términos de pregunta, no requiere mucho trabajo previo, más que el interés del investigador, la definición del objeto en términos de pregunta y el diseño metodológico, a diferencia de la investigación basada en la hipótesis que requiere de mucho estudio previo por parte del investigador (porque necesita conocer la situación que tendrá que refutar o aceptar). En muchas ocasiones el investigador asume que debe construir su objeto de estudio en torno al Eje Epistemológico de la hipótesis, porque siempre se hizo así, sin embargo Andrade advierte a modo de reflexión: “¿por qué debo emplear hipótesis en la investigación?, ¿qué implicaciones trae consigo el empleo de hipótesis en lo que se refiere al recorte del campo de observación?, ¿es posible plantear una investigación de modo distinto a la forma

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tradicional?, ¿cuál y qué características tendría esa forma alternativa?” (2007, p.263). Zemelman denomina la pregunta como problema-eje afirmando que: conocer es especificar y especificar es delimitar las relaciones de articulación que posee el problema respecto de otros fenómenos de la realidad. Este conjunto de relaciones es el contexto especificador dentro del cual el problema-eje adquiere su significado (...) de tal modo que la transformación del problema implica un doble cuestionamiento: de la teoría contenida en la definición del mismo, pues se exige a ésta subordinarse a las exigencias del razonamiento; y de lo empírico-morfológico, ya que al abandonar la fijeza aparente en que se presenta, se exige a éste mostrarse en sus cambios posibles (1987, p.60).

Aquí se puede observar una advertencia: el problema-eje, para Zemelman, posee dos dimensiones (teoría y empiria) que se conjugan para abandonar la supuesta inmovilidad del objeto. Oponiéndose a la idea de objeto de estudio como componente teórico del proyecto de investigación. Así el problema-eje de Zemelman es un razonamiento problematizador de la realidad, y siguiendo con esta argumentación: analizar y estudiar la realidad no consiste “en la recolección de datos empíricos”, sino en la construcción de los datos desde una mirada específica que tiene que ver con lo que he denominado posicionamiento epistémico del investigador, esto es, la mirada y posición teórica, política y ética. También es bien interesante plantear que en algunas ocasiones una pregunta es planteada en términos de hipótesis y no en términos de problema, que es otro error corriente en la construcción de un proyecto de investigación. ¿Cuándo sucede esto? Cuando la pregunta se responde con un “Si”, o con un “No” o porque sí o porque no. Esto significa que se ha incorporado “la respuesta” a la pregunta. Por ejemplo: “¿Por qué los alumnos de autorregulación alta tiene mejor desempeño académico que los alumnos de autorregulación baja?” Claramente se observa la hipótesis mal formulada como pregunta, la hipótesis sería: los

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alumnos de autorregulación alta tiene mejor desempeño académico que los alumnos de autorregulación baja y, si se quiere trasladar esta situación investigativa a una pregunta debería ser:¿qué relación existe entre la autorregulación de los alumnos y el desempeño académico? Contextos/Lógicas de descubrimiento y Verificación/Justificación Debemos considerar que la distinción entre “contexto de descubrimiento y contexto de justificación” fue desarrollada por H. Reinchebach en su obra Experience and Prediction de 1934 para diferenciar las etapas en que se llevan a cabo los descubrimientos en investigación y el modo en que se justifican o aceptan. Es necesario considerar que ambos contextos, en su definición original, se encuentran presentes tanto en el proceso de construcción del proyecto de investigación como de la investigación en sí misma. Ahora bien, en los diversos debates epistemológicos la categoría contexto de descubrimiento y de verificación pasó a desarrollarse o conceptualizarse como sinonimia de “lógica de la investigación”. Y aquí tenemos otro problema de confusión conceptual “contextos” y “lógicas” de descubrimiento y de verificación. Los contextos de descubrimiento y verificación son momentos inevitables de una investigación en tanto etapas desde la concepción de Reichenbach (1934). Considerando que en el contexto de descubrimiento se alude a la forma en que los investigadores generan nuevas ideas, desde una perspectiva psicológica y social. Es decir, en el contexto de descubrimiento se desplegarían cómo surgen determinadas posiciones teóricas. Mientras que el contexto de justificación es la forma en que esas ideas se convierten en conocimiento válido a través de procesos metodológicos. En la historia de la investigación y desde la perspectiva epistemológica se ha argumentado (Reinchebach, Popper, Hempel,

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Carnal, etc.) que sólo el contexto de justificación tiene un sustrato epistemológico lo “suficientemente sólido” para el desarrollo de una investigación. Ahora bien, en la década de 1970 sociólogos de Edimburgo forman una organización llamada “Los amigos del descubrimiento” cuyo principal mentor será Thomas Nickles. Ese hito podría ser considerado como el traspaso del contexto a la lógica. Dado que a partir de este grupo se comienza a cuestionar la posición de la epistemología y de la historia de la ciencia predominante que sólo consideraban como legítima la lógica de justificación o verificación. Y es aquí donde se produce la gran confusión epistemológica entre lógica y contexto. Los Amigos del Descubrimiento toman la categoría de verificación para cuestionarla, pero refiriéndose a ella como lógica. En otras palabras, se reemplazó a-históricamente la categoría de lógica por la categoría histórica de contexto. Entendiendo, en términos de H. Reinchebach, que siempre existirán contextos de descubrimiento y verificación, dado que son etapas por las que atraviesa inevitablemente el investigador (a) cuando se producen los descubrimientos en investigación y, (b) el modo en que se justifican. Esto se da porque en el proceso histórico, particularmente en el pasaje del monismo ontológico “del método científico” al pluralismo de “los métodos científicos” produjo, por acarreo, una confusión que viene particularmente de los “amigos del descubrimiento” y que tiene que ver con confundir los contextos con las lógicas. Como dijimos, los contextos son etapas del proceso personal del investigador, podríamos decir etapas psicológicas y las lógicas tienen que ver con el posicionamiento epistémico del investigador, esto es, en cuál de ellas se situará el énfasis: ¿el descubrimiento o la verificación?. En la decisión epistémica del investigador de optar por una u otra lógica surgirá la decisión de optar por uno u otro Eje Epistemológico o viceversa. En este sentido Nickles plantea que durante ese período se comienza a dudar de “la lógica infalible de la prueba y la

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justificación en el sentido de un simple conjunto de reglas lógicas para la aceptación y rechazo de teorías” (1980, p. 8). Ahora bien, aceptando la presencia de las lógicas de descubrimiento y justificación, debemos considerar que se convierten en opciones en tanto decisiones epistemológicas (no nos referimos aún a la metodología). La cuestión es dónde, en qué LÓGICA el investigador decide instalar el énfasis y allí nos topamos nuevamente con una decisión epistemológica, considerando que estas lógicas pertenecen a caminos diversos para llevar a cabo una investigación. Consideremos el planteo de Samaja referenciado en el Cuadro I en relación a la pregunta y/o hipótesis y su vinculación con las lógicas de descubrimiento y verificación: “Las actividades de todo proceso de investigación pueden agruparse de acuerdo a dos criterios diferentes (1) según que las analicemos desde el punto de vista del descubrimiento (2) o desde el punto de vista de la validación o justificación” (1995, p.23). Y es aquí donde nos queremos detener brevemente. En las lógicas descubrimiento y verificación se ponen en juego los “pares lógicos” o “modos suposicionales” (Goetz y Le Compte, 1988). Los pares lógicos de la lógica de verificación serían: deducción – verificación – explicación. En tanto los pares lógicos de la lógica de descubrimiento serían: inducción – generación de teoría – comprensión. Es en esta decisión epistemológica, esto es, el énfasis en la lógica de justificación y verificación o de descubrimiento, donde se teje el Eje Epistemológico del objeto de estudio. Lógicas de verificación y descubrimiento: pregunta o hipótesis Es así que podemos vincular lógicas de descubrimiento y verificación a los modos suposicionales y consecuentemente a los modos de construcción de una pregunta y una hipótesis como Eje Epistemológico del objeto de estudio. Entendiendo que las dos lógicas son irreductibles entre sí. Los intentos de complementar

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una lógica a otra ignoran los modos posibles de construcción del conocimiento en una investigación, particularmente porque son dos maneras de conocer que tienen principios funcionales y componentes de análisis propios. Veamos algunos componentes de un proyecto según las lógicas. 1. La función de la teoría a) lógica de verificación Está más cerca de ser hipotético deductiva y de buscar explicación, verificación de teoría y generalización estadística. En esta lógica es importante comenzar con un sistema teórico, identificando variables que se definen teórica y operacionalmente. La definición operacional consiste en enunciar los procedimientos (instrumentos) con los cuales obtendrá determinada información empírica (indicadores). Según Goetz y Le Compte, “en cierto sentido, los investigadores deductivos pretenden encontrar datos que corroboren una teoría” (1988, p.30). b) lógica de descubrimiento Está más cerca de enfatizar la inducción analítica y de buscar la generación de teoría y la especificidad. La teoría orienta el trabajo en terreno con el propósito de generar teoría a partir del mundo empírico. Se busca y se trabaja con la teoría para: descubrir categorías (clases), sus propiedades y las relaciones entre clases en la construcción de una trama diferente, que trace a una unidad de sentido diferente. Ir relacionando con las teorías existentes a lo largo del proceso en terreno. Esta lógica se apoya en la “sensibilidad teórica” (Glaser y Strauss, 1967). La sensibilidad teórica es la habilidad de reconocer qué es importante en los datos y darle su significado. Esto permite la pregunta y re-pregunta continua. Según Goetz y Le Compte, “los investigadores inductivos intentan descubrir una teoría que explique sus datos” (1988:30).

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2. La deducción a) lógica de verificación La deducción comienza con un sistema teórico, desarrolla hipótesis y definiciones operacionales de las proposiciones y conceptos de la teoría a través de un proceso de abstracción decreciente y los aplica empíricamente a algún conjunto de datos. En cierto sentido, los investigadores deductivos pretenden encontrar datos que verifiquen su teoría. Según Mardones, la deducción “consiste en deducir enunciados acerca de los fenómenos a partir de las premisas que incluyan o contengan a los principios explicativos” (1991, p.22). b) lógica de descubrimiento La deducción no es propia de la lógica de descubrimiento. Dado que los pasos que se requieren para realizar una investigación desde el razonamiento deductivo son de índole hipotéticos, es decir, se posee conocimiento previo y se infiere una conclusión que necesitará ser verificada. Y en la lógica de descubrimiento – como hemos señalado – no hay, metodológicamente, respuesta previa a ser verificada, es decir: no hay hipótesis. 3. La inducción a) lógica de verificación La inducción no es propia de la lógica de verificación. Considerando que Carnap acuñó el término inducción como sinónimo de inferencia no-deductiva, esto es, una inferencia cuya conclusión no se sigue necesariamente de las premisas, por esta razón la inducción no cumple los requisitos de la lógica de verificación, que, como hemos mencionado, parte de una hipótesis que luego se verificará o no. Para esto se requiere del procedimiento deductivo, donde se parte de una premisa (hipótesis) para llegar a una conclusión, dado que la deducción es un encadenamiento formal, lógico y riguroso de proposiciones. Uno de los pasos claves de ese encadenamiento es la verificación,

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con la cual se obtendrá la conclusión. En este sentido el propio Popper (1965) postuló la imposibilidad de verificar una inducción. b) lógica de descubrimiento La investigación puramente inductiva, por el contrario a la deductiva, se inicia con conceptos generales y proposiciones amplias que orientan la focalización del objeto y de la pregunta. Se sumergen en el trabajo en terreno y se van construyendo en un movimiento en espiral: de lo empírico a la teoría y de la teoría a lo empírico. Se está interesado en desarrollar proposiciones: enunciados de los hechos inductivamente derivados a partir de un riguroso y sistemático análisis de datos. A través del examen de los casos semejantes y diferentes que han sido analizados se busca desarrollar un esquema conceptual, una teoría comprensiva. Como dice Mardones, la inducción “consiste en obtener principios explicativos a partir de los fenómenos que se han de explicar” (1991, p. 22). 4. La verificación y la explicación a) lógica de verificación La búsqueda de la verificación consiste centralmente en comprobar que una hipótesis es válida o aplicable a varios conjuntos. El fin de la investigación verificativa o del énfasis puesto en la verificación, no sólo consiste en determinar si se cumple o no las relaciones entre variables prevista en una hipótesis, sino también el universo donde dicha proposición es aplicable con un mínimo margen de error. Como dicen Goetz y Le Compte, “el fin de la investigación verificativa no sólo consiste en determinar la medida en que se cumple una proposición, sino también el universo de poblaciones al que ésta es aplicable” (1988, p.30). b) lógica de descubrimiento La verificación y explicación no es propia de la lógica de descubrimiento.

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5. comprensión a) lógica de verificación La comprensión no es propia de la lógica de verificación. Y aquí nuevamente una aclaración. No significa que con las hipótesis no se comprenda, pero estamos haciendo referencia a lógicas y categorías epistemológicas. b) lógica de descubrimiento El énfasis en el contexto de descubrimiento se centra en la identificación de categorías y proposiciones a partir de una base de información empírica. La obra clásica de Glaser y Strauss (1967), donde se desarrolla un modo de investigación centrado en la generación de teoría se llama justamente The discovery of grounded theory. Strategies for qualitative research. Como dicen Goetz y Le Compte: “Por su parte, la investigación generativa se centra en el descubrimiento de constructos y proposiciones a partir de una o más bases de datos o fuentes de evidencia” (1988:30). Para comprender los cinco puntos señalados tomaremos el ejemplo anteriormente mencionado y obsérvese la hipótesis y la pregunta para 1) la función de la teoría, 2) la deducción, 3) la inducción, 4) la verificación y la explicación y, finalmente, 5) la comprensión. Lógica de Verificación. Hipótesis Ejemplo: Los alumnos de autorregulación alta tienen mejor desempeño académico que los alumnos de autorregulación baja. Lógica de Descubrimiento. Pregunta. Ejemplo: ¿Qué relación existe entre la autorregulación de los alumnos y el desempeño académico? La pregunta claramente no responde a la lógica de verificación, particularmente por el modo en que se construye. Considerando que la pregunta por definición –a diferencia de la hipótesis– posee un alto grado de incertidumbre sobre lo que se desea conocer, genera la imposibilidad de verificar. Por esta razón es propia de la lógica de descubrimiento, dado que permite establecer cierta

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flexibilidad para explorar el fenómeno. Por otro lado, la hipótesis, respondiendo a la lógica de verificación, supone enunciados de asociación o relación entre variables (independientes, intervinientes, y dependientes). Se plantea la hipótesis en términos de verificación. Ahora bien, debemos considerar que existe cierta ligazón, en lo que denominamos metodologías y lógicas, pero nunca de modo causal o inherente. Aunque no nos detendremos demasiado en esta cuestión, es necesario plantear que no existen metodologías mejores o peores que otras (Bechhofer, 1996) o como afirma Scribano (2000) estas no son más que estrategias instrumentales, considerando que muchas polémicas se resolverían si aceptase que existe mala y buena investigación con ambas estrategias metodológicas. Esto es, la metodología se desprende de determinado modo de construcción del objeto de estudio. Una metodología cuantitativa tendrá mayor relación con el modelo de verificación y un objeto de estudio construido tomando como eje la hipótesis. Ruth Sautu (2001) explica: “La metodología cuantitativa es la adecuada cuando el propósito es describir la distribución de rasgos, opiniones, conductas, etc. o poner a prueba una hipótesis” (p.236). Siguiendo con Sautu, señala que “en la investigación cuantitativa la teoría sustantiva referida al tema de estudio está presente desde el inicio como sistema clasificatorio de conceptos, regularidades empíricas, modelos causales que postulan relaciones entre variables” (p.234). En cambio refiriéndose a la lógica cualitativa de una investigación la autora señala: “que son apropiadas cuando el investigador se propone investigar la construcción social de significados, las perspectivas de los actores sociales, las condiciones de la vida cotidiana o describir la realidad” (p.236). Y así explica que la cualitativa “parte de un conjunto menos específico de conceptos… y los elabora y reelabora en el curso de la investigación” (p.234). Finalmente decimos, siguiendo con el hilo argumental de este artículo y teniendo en cuenta cómo se construye una hipótesis y

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cómo una pregunta como Ejes Epistemológicos de la investigación y como componente del objeto de estudio, y, teniendo en cuenta también ambas lógicas, de verificación y descubrimiento: 1) Una pregunta no se verifica. Se responde. 2) Una hipótesis se contrasta, se afirma o niega. En fin, se verifica o justifica. A tal punto que Popper (1965) denomina este proceso como corroboración1. Esto es clave, y es aquí donde muchos epistemólogos generan confusión temática. Obsérvese esta frase del epistemólogo Gregorio Klimovsky: “La hipótesis al ser formulada se halla en estado de pregunta, y por lo tanto, para dejar de serlo deberá pasar por la verificación o refutación. Por lo tanto, la hipótesis se convierte en el corazón de la metodología de la concepción hipotética de la ciencia; puesto que frente a una pregunta se derivan una o más hipótesis” (2001, p.17). En primer lugar es necesario destacar lo que venimos diciendo, pero en esta ocasión en términos de Klimovsky: la hipótesis se convierte en el corazón de la metodología de la concepción hipotética de la ciencia. En segundo lugar, aquí tenemos otra dificultad, cuando se confunde en términos metodológicos la pregunta con la hipótesis, y aquí es la categoría de pregunta que se utiliza desde el sentido común. La hipótesis no se construye del mismo modo que una pregunta. En este sentido, una pregunta o una hipótesis son el Eje Epistemológico del objeto de investigación, pero es un error metodológico afirmar que de la “pregunta” se desprende la hipótesis. Así podemos continuar con el análisis que desarrolla Samaja cuando explica que “el examen y discusión de las hipótesis que evocan las preguntas examen de las corazonadas” (2005, p.27). Sin duda que “la corazonada” de Samaja no es strictu sensu la hipótesis en el sentido metodológico. 1

La corroboración, en la epistemología de Popper, es el estado de una teoría luego de que se la ha sometido a prueba y no se ha logrado falsarla.

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Conclusiones Hemos tratado de argumentar desde una perspectiva epistemológica la imposibilidad de conjugar en un mismo objeto de investigación dos ejes que pertenecen a lógicas diferentes: la hipótesis y la pregunta. Consideramos que esta situación no ha sido advertida y analizada con detenimiento. En este sentido Pajares afirma: “La decisión acerca del uso de preguntas o hipótesis depende de factores tales como el propósito del estudio, la metodología utilizada y la audiencia a la cual se dirige la propuesta” (2007, p.3). Esta cita muestra en primer término el uso de uno u otro eje. Sin embargo, entre los factores no se menciona la decisión epistemológica del investigador acerca de la decisión de optar por la lógica de verificación o de descubrimiento. Y aquí si es necesario volver a la cuestión de las metodologías cualitativas y cuantitativas, considerando, aunque no de modo excluyente, que un investigador que utilice hipótesis y se sitúe con mayor énfasis en la lógica de verificación, quien se sentirá más cómodo trabajando con la metodología cuantitativa, por las particularidades de la construcción de hipótesis y la lógica de verificación. Y es allí donde la metodología no es solo una metodología, sino epistemetodología (Tello, 2012), dado que la metodología no es un componente aislado de las decisiones epistemológicas, sino que conforma una red de componentes que constituyen el proyecto de investigación. La metodología se convierte en una epistemetodología en la medida que está enhebrada a los otros componentes de la investigación. Por sí sola y, por ejemplo a los efectos de la enseñanza, son sólo técnicas metodológicas. La epistemetodología la defino como la decisión epistemológica en relación al Eje Epistemológico y la lógica de descubrimiento o verificación y la posterior decisión de la inclusión de determinadas metodologías.

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Como hemos dicho, su inclusión no es mecánica ni causal: énfasis en la lógica de verificación = metodología cuantitativa, o énfasis en la lógica de descubrimiento = metodología cualitativa. Pero la metodología forma parte de la posición epistémica del investigador en la medida que se vincula con otros componentes. Es necesario dejar claro que la posición epistemológica (positivista, crítica, post-estructuralista, entre otros) no se cristaliza en la opción por la pregunta o hipótesis como eje de la investigación y parte de la construcción del objeto de investigación. Tal como afirma Reguillo, “en una investigación pueden utilizarse métodos de índole cualitativa y situarse en un enfoque absolutamente positivista” (1999, p.23). Aunque no excluimos el formato de hipótesis como eje de la investigación en ciencias sociales es necesario considerar que en las últimas décadas el objeto de estudio de las ciencias sociales está desplegando un proceso transformación singular. Siguiendo el influjo de Ilya Prigogine, Pablo González-Casanova señala que la “complejidad obliga a cambiar los comportamientos epistemológicos” (2004, p. 124) de la investigación de las ciencias sociales. Ya no se trata de la búsqueda de certidumbres, de leyes determinantes, ahora la ciencia define el proceso de investigación como “una acción en busca de posibilidades” creativas. En otro contexto, Niklas Luhmann a inicios de la década del sesenta ya planteaba una idea similar señalando que el fin del conocimiento social es “hacer comprensible la acción como posibilidad”, y no el establecimiento de la acción según regularidades inalterables y deterministas (1973, p. 40). Varios colegas epistemólogos e investigadores, al momento de intercambiar las ideas que se sostuvieron en este artículo, me plantearon “pero yo no uso hipótesis en ese sentido, no me ubico en la lógica de verificación” a lo que yo respondía “si no utiliza hipótesis en ese sentido, pues utilice pregunta. Llámelo de otro modo”.

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En un momento al comenzar a escribir este artículo había pensado en el siguiente título: “llamando las cosas por sus nombre: acerca de los componentes de un proyecto de investigación” dado que lo interesante de esto es que se encuentran en muchas investigaciones preguntas mal formuladas, es decir, preguntas formuladas como hipótesis. Y es allí donde se comienza a observar la incongruencia metodológica. O en otros casos, el uso de hipótesis pero utilizada con la lógica de la pregunta. Una u otra situación contribuye a la falta de consistencia de un proyecto de investigación.

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IMPACTO DE POLÍTICAS TRANSNACIONAIS NA ESCOLA, NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES E NO TRABALHO DOCENTE José Augusto Pacheco1 Joana Sousa2

Introdução No seguimento de outros escritos (PACHECO, 2014a; 2014b; 2013a; 2013b; 2009; PACHECO, PESTANA, 2014; PACHECO, MARQUES, 2014; MARQUES, PACHECO, 2013), a formação (inicial e contínua) de professores é abordada em contextos de regulação transnacional e nacional, com o propósito de analisar de forma crítica processos e práticas de olhar para o ensino e o professor a partir de reformas educativas e curriculares. Se a globalização impõe padrões de reformas, as mudanças nas políticas e práticas de formação de professores refletem diversas perspetivas, não sendo possível compreender a realidade das escolas somente a partir de formas de governamentalidade curricular, e também didática, que incidem em resultados e standards. Ao longo do texto, são evidenciadas diversas perspetivas que poderão contribuir para possíveis respostas em torno da formação de professores, partindo-se desta constatação de Žižek (2015, p. 18): “O capitalismo não é global no plano do significado. O que se retira como lição da globalização “é precisamente que o

1

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Professor Catedrático, Instituto de Educação da Universidade do Minho, E-mail: [email protected] Doutoranda da Universidade do Minho, com bolsa FCT (SFRH/BD/93389/2013), E-mail: [email protected]

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capitalismo se consegue acomodar a todas as civilizações”, ou seja, a sua dimensão global “só pode ser formulada no plano da verdade-sem-significado”, tal como o mercado global”. Apesar de políticas transnacionais e supranacionais, que regulam o espaço o espaço nacional da educação, a existência de uma similaridade curricular, presente nas governamentalidades centradas em resultados e em standards, coloca aos professores diversos e profundos desafios, sobretudo quando se discute a sua formação, e traduz uma globalização de significados que expressam uma nova racionalidade tyleriana, com evidência no modo como é entendido o desenvolvimento profissional docente, perspetivado, neste texto, a partir de algumas das suas principais agendas. A este respeito, Veiga-Neto (2015, p. 21), num registo crítico sobre o prolongamento da modernidade que fez do currículo uma máquina de formatar indivíduos disciplinares, afirma que “internacionalização e globalização são moedas-fortes nos discursos neoliberais”, embora Moreira e Rosane (2015, p. 26) sustentem que “internacionalização não é um terno intercambiável com globalização”, com sentidos diferentes no campo dos Estudos Curriculares, aliás na esteira de ideias perfilhadas por Pinar (2015). 1. Currículo, Didática e Formação de Professores

Qualquer discussão sobre Currículo e Didática está inscrita numa rede complexa de tradições teóricas (OLIVEIRA, 2014a; 2014b; OLIVEIRA, PACHECO, 2013; LIBÂNEO, ALVES, 2012) que revelam a existência de dois territórios disciplinares contíguos (LÜDKE, 2015). No entanto, é necessário sublinhar que o debate teórico – e histórico – entre Currículo e Didática se integra na formação de professores como parte de um património múltiplo e rico de tradições que os professores, como conhecimento profissional, deverão apropriar e ressignificar no seu tempo e contexto, constituindo-se como produtores das suas próprias tradições teóricas, necessariamente inclusivas de visões não coincidentes” (ROLDÃO, 2015, p. 338).

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Se Currículo é conhecimento e Didática é aprendizagem, e se ambos são ao mesmo tempo conhecimento e aprendizagem, como faces duma moeda, no contexto de uma identidade plural das ciências da educação e das ciências sociais e humanas, o debate teórico - não sendo de esquecer a questão epistemológica em torno da pedagogia -, situa-se muito para lá da sala de aula, da escola e da formação, traduzindo, inquestionável e obrigatoriamente, o impacto das políticas como processo de regulação complexo e profundo, no seguimento do quadro teórico de Ball (1990), e na relação existente entre Currículo, Didática e Formação de Professores (LIBÂNEO, 2014; ROLDÃO, 2014). Defendendo uma perspetiva de aproximação entre os dois territórios disciplinares, Libâneo (2014, pp. 152-153) é perentório: “Da minha parte, tendendo que não cabe desconhecer que o capital de conhecimento acumulado pelo campo do currículo (…). No caso do currículo, o expressivo desenvolvimento teórico da sociologia crítica do currículo acrescido, que o distinguiu de sua tradição anglo-saxónica, levou-o a constituir autonomia epistemológica do campo da Didática (…) penso que não se trata de subsumir um campo no outro ou disputar hegemonia entre si, nem dos seus especialistas renunciarem a um pelo outro”. O autor corrobora esta perspetiva abordando os estudos do currículo no âmbito das formas de distribuição, seleção e organização do conhecimento instituído e das investigações em torno das relações de poder, da cultura, da linguagem e propondo a didática básica como teoria e prática do processo de ensino-aprendizagem e as didáticas específicas (disciplinares), já que “elas abordam o processo de ensino-aprendizagem na sua relação imediata com os conteúdos das disciplinas” (Ibid., p. 153). No contexto de interessantes subsídios teóricos, Oliveira (2014b, p. 30) destaca a centralidade da formação de professores no Currículo e na Didática, revelando uma relação virtuosa entre estes três campos do conhecimento, bem como a perspetiva de que, na docência, “os

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sujeitos dos campos da Didática e do Currículo devem procurar aproximar-se da sala de aula e fortalecer o diálogo entre si”. 2. Globalização e similaridade curricular

Em tempos de uma globalização que se transforma de um modo direto numa panaceia universal para resolver os problemas dos sistemas educativos, mais do que nunca a utilização de certas palavras-chave tornou-se numa retórica do controlo docente, sobretudo quando a escola e os seus resultados das aprendizagens são associados a padrões de desempenho. Deste modo, qualidade, eficiência e prestação de contas são termos que alteram por completo as políticas e práticas de formação de professores, apesar de parecerem ser palavras simples, mas como diz Horkheimer (2014, p. 95), “a preferência por palavras e frases simples, que podem ser agregadas de um só golpe, é uma das tendências antiintelectuais, anti-humanistas, manifestas no desenvolvimento da linguagem moderna, bem como da vida cultural em geral”. Estando numa encruzilhada, em direção única para o topo da hierarquia, por evidente influência do programa norte-americano Race to Top, o ensino e o professor são condicionados pelo movimento de reforma de educação global, ou seja, direcionado para a estandardização, a prestação de contas externa, os testes à larga escala e a competição centrada na lógica de mercado, como reconhecem Hargreaves e Fullan (2012). As mudanças que se observam na teoria curricular “são claramente influenciadas pelas mudanças colossais que estão ocorrendo atualmente na economia global” (GOODSON, 2008, p. 26), com o reposicionamento do papel do professor e o seu questionamento na construção de um presente em que a escola pública é criticada como um legado histórico e um bem social. E este presente, marcado pelas políticas de prestação de contas e responsabilização, que reforçam a

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ideologia neoliberal, associada à ideologia do conservadorismo3, consiste, como argumenta Boff (2013), na passagem de uma economia de mercado para uma sociedade de mercado e só de mercado, com todas as consequências para a educação, em geral, e para o currículo e a didática, em particular. Neste caso, a escola como negócio4 surge na realidade educacional, quase indistintamente em todos os países ligados por uma globalização económica, com a entrega ao setor privado de serviços que são públicos, em nome da eficiência do mercado, tendendo a “ser tutelada de acordo com o modelo da linha de montagem fabril” (PINAR, 2007, p. 53) e originando no professor uma identidade de gestor empresarial, assim definido por Hargreaves e Fullan (2015, p. XIII): “limita o currículo, volta-se para a tecnologia, prescreve e segmenta a instrução, ensina para os testes, reduz a literacia a pequenos trechos de compreensão em vez de envolvimentos mais significativos através de textos absorventes”. Quer dizer, assim, que o professor será alguém mais preocupado com a implementação das políticas governamentais do que com as respostas que se torna necessário dar às necessidades dos alunos, apesar de as políticas nacionais, como é o caso português (SEABRA, 2015, p. 76), imporem a racionalização do currículo, retirando-lhe, entre outras áreas, a educação cívica, e “a criação de agrupamentos escolares, sem por em causa o acesso à educação” como método de reduzir as despesas em educação. Assim, reconhecer-se-á, que “foram objetivamente reduzidas as margens de participação das escolas e dos professores na conceção e na gestão do currículo (ESTEVES, 2015, p. 327).

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Entre tantos autores favoráveis a esta associação ideológica, cf. Roger Scruton, O que é o conservadorismo, publicado em 2015, em São Paulo, pela É Realizações Editora. O negócio na escola consagra a lógica de mercado, declarando a gestão privada como a mais eficiente e eficaz, sendo exemplo disso as vouchers schools, nos Estados Unidos, o cheque-ensino, em muitos países, e os organismos sociais, no Brasil.

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Com efeito, nas políticas nacionais, traçadas por organismos transnacionais e supranacionais, onde são geradas as chamadas políticas de partilha de conhecimento (STEINER-KHAMSI, 2012), instituintes de reformas viajantes, e de um modelo pós-burocrático (MAROY, 2012), são bem visíveis as formas de controlo do currículo - mais diretrizes, mais currículo prescrito, mais instrumentos de avaliação à larga escala e mais procedimentos de monitorização (THIESEN, 2015) -, com tendência para o reforço da gestão do currículo baseada numa cultura de avaliação orientada para a mensuração das aprendizagens. Neste sentido, Santos (2015, p. 237) escreve que “é importante considerar que as matrizes de referência dos testes terminam reduzindo o currículo escolar àquilo que é mensurável, enquanto outros aspetos fundamentais do processo educacional são secundarizados ou até descartados”, sublinhando Esteban (2015, p. 252) que “a mensuração pressupõe processos hegemónicos e uniformidade de conteúdos”, bem como a generalização de padrões de aprendizagem e o estímulo á competição que veicula uma ideologia do mérito, ou seja, uma pedagogia dos resultados e dos testes. Tais efeitos, pela análise de Esteves (2015, p. 324), resultam das “políticas de mundialização que têm incluído, de forma flagrante e crescentemente visível, a educação”, na medida em que se afirma o seu valor enquanto “mercadoria que se vende e compra no mercado global e em que se presume que os seus resultados, os seus produtos, são essenciais para o crescimento da economia, para o triunfo sobre a concorrência e para a competitividade” (Ibid., p. 324). Esta situação está presente na forma de fazer a gestão do currículo em função das políticas educativas transnacionais orientadas para a prestação de contas. Assim, a abordagem centrada nos testes é essencialmente definida pela abordagem centrada em resultados e pela abordagem centrada em standards, ou seja, “duas governamentalidades curriculares expressas nas práticas quotidianas curriculares, cada vez mais inseridas numa lógica empresarial para a educação, em normas concretas para a privatização das escolas, em

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dispositivos de avaliação externa e em práticas de mercadorização curricular” (PACHECO, MARQUES, 2014, p. 108). Tais formas de governação curricular, que destacam, entre outros aspetos, o desempenho ao nível dos resultados, os testes à larga escala, com incidência nos testes transnacionais, de que o PISA é o padrão, o ranking de escolas e a linguagem das competências5, uma outra forma de apresentar objetivos de aprendizagem e metas curriculares, originam não só uma escolarização restrita, que inclui o core curriculum e provoca o mimetismo curricular6, como também a coerção avaliativa, em que a avaliação é marcada pela resultados entendidos como scores numa prática de competição. Deste modo, o perfilhamento destas formas governamentalidade curricular confronta o professor com o que pode ser denominado recontextualização performativa, isto é, uma coerção avaliativa, quer ao nível da produção de discursos, quer no plano das práticas, que sobrepõe as questões técnicas às pedagógicas, nomeadamente, questões sobre a eficiência e eficácia do processo educacional” (BIESTA, 2013a, p. 41). Tal processo de recontextualização inscreve-se, segundo Morgado (2014, p. 87), numa cultura de performatividade, originária de uma nova gramática e semântica que “veicula um profissionalismo controlado e relega os professores para a posição de meros executantes das orientações gerais das políticas educativas”. Como se tratasse de um pêndulo que oscila entre o transnacional e o nacional, a globalização define as políticas educativas através de conceitos-chave e impõe padrões para a sua implementação, não pelos processos, mas pelos resultados. Esta é, de facto, uma mudança substantiva com reflexos no modo de 5

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Sobre os discursos e linguagens de competência, cf. José Augusto Pacheco, 2011. Numa crítica à linguagem das competências, Ilmi Nillbergh, 2015, sustenta que a competência deve ser abandonada como conceito educacional, repondo-se a noção de Bildung. Por mimetismo curricular entende-se a tendência para que as disciplinas nucleares do currículo, por exemplo, Matemática e Português, com formas predominantes de avaliação externa, sirvam de exemplo às restantes disciplinas.

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perspetivar a profissionalidade docente, como analisou Estrela em muitos dos seus escritos (CAETANO, RODRIGUES, ESTEVES, 2015). Neste caso, “o professor ganhou uma autonomia profissional mais ampla, mas agora é responsabilizado pelos resultados, em particular pelo fracasso dos alunos” (CHARLOT, 2013, p. 99), trabalhando numa escola que é produtora de injustiças. Afirmar-seá, assim, que a injustiça é uma característica estrutural da escola, aceitável no plano coletivo (FELOUZIS, MAROY, ZANTEN, 2013), pelo que a tendência é para que se fale mais na linguagem da aprendizagem do que na linguagem da educação (BIESTA, 2013a). De mão dada com a globalização caminha a cultura de prestação de contas, que não para de crescer e que parece não ter fim, situando-se os professores “num movimento de pinça entre os pais e os burocratas” (HARGREAVES, FULLAN, 2012, p. 35), pois as políticas são cada vez mais “iniciativas administrativas fragmentadas, incoerentes e modistas” (Ibid., p. 36). Recorrendo-se aos mesmos autores, o currículo é estandardizado e por vezes é prescrito em detalhes excruciante, as escolas têm menos recursos, há turmas com mais alunos, há falta de tempo para o desenvolvimento profissional docente, exalta-se a importância dos testes, valoriza-se o ranking de escolas e as intervenções da inspeção escolar são mais rápidas e punitivas, para além de cultivar-se uma colaboração formal, burocrática e baseada em procedimentos administrativos. Como refere Arendt (2006, p. 154), “dá-se maior importância ao conhecimento prescrito pelo currículo do que às atividades extracurriculares”. Quer dizer, assim, que o currículo, pela sua intensa estandardização, tende para uma similaridade construída globalmente que configura as políticas nacionais educativas e de formação de professores. 3. Formação de professores: algumas questões

Se são muitas as questões, colocadas a partir das mais diversas perspetivas disciplinares no campo da Educação, do Currículo e da

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Didática, cabe ainda perguntar: De que modo são procuradas alternativas que passam pela formação de professores? Uma primeira resposta é sugerida por Labaree (2012) ao colocar esta interrogação: O que pretendemos realmente a partir das escolas? Mais do que uma resposta social, a escola é uma ação conjunta, com a participação direta de pais, alunos e professores, para além de tantos e tantos intervenientes, com expetativas diferentes sobre o que esperam da escola. Clarificar os propósitos da educação e reconhecer que as políticas administrativamente controladas tornam as reformas inconsequentes é uma alternativa válida, reconhecendo-se que a centralidade dos resultados em detrimento dos processos de aprendizagem é um instrumento de racionalidade técnica e pragmática das funções da escola, no seguimento da racionalidade funcional weberiana7. A excessiva valorização dos resultados tende a secundarizar a educação como um processo de conscientização (FREIRE, 2006), de emancipação (ADORNO, 2011) e de construção cívica, pois “a educação não pode desempenhar nenhum papel na política porque na política se lida sempre com pessoas já instruídas (ARENDT, 2006, p. 187) e os professores têm de ter uma “consciência sociocultural de sujeitos globais” (CHARLOT, 2013, p.180), papel que é atribuído por Giddens (2014, p. 136) ao imperativo cosmopolita: “Com a expressão imperativo cosmopolita estou a referir-me à exigência de aprender a viver num mundo globalizado, onde a interseção de crenças e modos de vida divergentes passa a fazer parte da vida quotidiana”, num quadro de superdiversidade. Moreira e Rosane (2015, p. 31) utilizam o termo cosmopolitismo crítico como “um processo aberto pelo qual o mundo social se torna inteligível: deve ser visto como a expressão de novas ideias, com abertura de espaços de discurso, como identificação de 7

É pertinente a análise de Aaron Stoller, 2015, sobre a relação que existe entre taylorismo, ou gestão científica, e resultados de aprendizagem, sendo que estes são o prolongamento de uma tarefa.

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possibilidades para tradução e construção do mundo social”, exigindo eu o “ensinar sobre as relações culturais e interculturais deve desalinhar-se dos preconceitos nacionais, deve tornar-se cosmopolita, com base na tentativa de desenvolver nos estudantes um conjunto de virtudes epistémicas com as quais se faz possível entender a dinâmica das transformações globais” (Ibid., p. 31). A proposta de um currículo cosmopolita tornar-se-á, assim, numa nova centralidade da formação de professores, pois, e olhando a partir da escola, “a aprendizagem cosmopolita não se preocupa tanto com a transmissão de conhecimentos e o desenvolvimento de atitudes e habilidades para a compreensão de outras culturas em si” (Ibid., p. 32), mas exigindo uma forma de aprendizagem que respeite outras culturas e promova a interculturalidade no contexto de outras dinâmicas (MACEDO, 2015). Uma segunda resposta tem de ser dada pela interrogação acerca do modo como são formados os professores tanto na sua situação de alunos como no decurso dos seus ciclos de vida profissional. Geralmente, a sua formação é um apêndice de reformas educativas e curriculares. Lowes (2014) argumenta que novas orientações são precisas na formação de professores, tornando-se fundamental integrar quer académicos, que abordam as práticas escolares, quer professores, que integram nas suas práticas as abordagens teóricas, ou seja, para Roldão (2015), um saber teorizador de uma prática. Deste modo, justifica-se uma ampla discussão internacional com o mapeamento dos problemas que existem na formação de professores em função das políticas transnacionais e do seu impacto e efeitos na escola e no trabalho docente. Tal discussão sobre a formação de professores torna legítima esta questão, formulada por Esteves (2015): O que pode justificar a busca de uma nova profissionalidade docente? As respostas da autora vão no sentido de os professores tomarem consciência quer das condições em que trabalham, dos constrangimentos e possibilidades que estão presentes na sua ação profissional, quer do imperativo de saberem e quererem agir com

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pertinência pela defesa e afirmação de uma escola pública de qualidade para todos, pois “a formação, não sendo o único, pode e deve ser um esteio fundamental para a construção de uma nova ou de novas possibilidades docentes” (Ibid., p. 323). A este respeito é crucial repensar o conhecimento (MORGAN, 2014; MARSHALL, 2014; YOUNG, 2013), bem como os saberes docentes (HORDEN, 2014), num contexto de regulação transnacional e nacional, pois a educação, e muito menos o ensino, não é uma receita de aplicação universal. Neste caso, “o ensino não tem uma única dimensão. É muito menos simples do que a maioria das pessoas pensa. Além disso, não é só arte, mestria, ciência e vocação, ou mesmo uma combinação de tudo isto. O ensino é também uma profissão e um modo de trabalhar (HARGREAVES, FULLAN, 2012, p. 29). Não existindo um único modo de ensinar, a formação inicial e contínua de professores tem de reconhecer que o ensino ocorre, geralmente, em condições imperfeitas, face a expectativas e demandas conflituantes" (Ibid., p. 31), devendo ser referida a tendência para a mercadorização da educação, já que a lógica neoliberal transforma a educação de um bem público em um item do consumidor privado” (ZEICHNER, 2013, p. 121). E sempre que o conhecimento adquire centralidade no debate sobre a educação e a formação de professores surge a polémica em torno da universalidade e do relativismo. Não retirando a pertinência da argumentação pós-estruturalista e pós-moderna, “a escola é universalista, pelo menos nas sociedades democráticas, e não pode deixar de sê-lo” (CHARLOT, 2013, p. 117), porque está centrada na educabilidade do sujeito e veicula um conhecimento acerca do mundo. Deste modo, “a educação é um triplo processo: um processo de humanização, de socialização, de subjetivação/singularização” (Ibid., p. 167), não existindo “universal fora da diversidade, mas sim através da diversidade” (Ibid., p. 174), pelo que “o universal é definido em relação à condição humana” (Ibid.,p. 175). Sobre o conceito de universalidade, e seguindo as ideias de Hegel e Kant, Žižek (2009) utiliza as noções de universalidade concreta,

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na qual se processa a individualização primária do sujeito, pela pertença à família e à comunidade local, e de universalidade abstrata, na qual ocorre a individualização secundária do sujeito, a partir do momento em que se sai do particular e faz-se parte do que é mais abstrato. Sendo que o universal nega o conteúdo particular, Žižek (Ibid., p. 103) interpreta que “o primeiro passo para a universalidade concreta é negação radical da totalidade do seu conteúdo particular”, a partir de dois argumentos principais. O primeiro corresponde à aceitação da universalidade neutra do cogito cartesiano: “o cogito cartesiano é a substância pensante neutra, comum a todos os seres humanos, indiferente ao género, e, como tal constitui o fundamento filosófico da igualdade política dos sexos” (ibid., p. 111); o segundo, enunciado por Laclau, diz respeito ao universal vazio, contingente e particular: o Universal é vazio (…) e está sempre já preenchido, ou seja, hegemonizado por algum conteúdo contingente e particular, que age como seu substituto- em suma, cada Universal é o campo de batalha onde a multiplicidade dos conteúdos particulares luta pela hegemonia”, pelo que “o Universal afirma-se sempre na forma de um conteúdo particular, que pretende encarná-lo diretamente, excluindo assim qualquer outro conteúdo como meramente particular” (Ibid., pp. 111-112). Tal posição é também proposta por Sartre (2015) através da noção de singularização do universal ou do universal singularizado. Uma terceira resposta – dentro de tantas respostas possíveis – pode ser dada com a noção de capital profissional, proposta por Hargreaves e Fullan (2012, p. XV), inserida nos contextos de formação inicial e contínua de professores e que definem como o “sistemático desenvolvimento e integração de três formas de capital – humano, social e decisional - na profissão docente”, reconhecendo que o seu poder se expressa pela “transformação da escola pública efetivada por todos os professores em cada escola” (Ibid., p. XI), pelo que os professores devem ser tratados com dignidade, como pessoas, que vivem e têm uma carreira, e não como “performers”, a quem se exige a produção de resultados” (Ibid., p. XI).

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Deste modo, e numa síntese do que configura o capital profissional em termos de prática docente, os professores devem ter competência, julgamento, intuição, inspiração e capacidade de improvisação, devem decidir pela assunção de uma responsabilidade coletiva, de abertura ao feedback e demonstrando transparência, devendo, ainda, ser considerados os contextos ou condições de ensino. Porém, o capital profissional pode vir a tornar-se num conceito-chave que facilmente seja associado a perspetivas de racionalidade técnica da educação e formação de professores, acentuando as competências docentes em detrimento da subjetividade8, que é a razão de ser do modo como o professor se autoavalia e se motiva na busca de respostas para os problemas que enfrenta quotidianamente. Convém, por isso, refutar o neoprofissionalismo docente, descrito criticamente por Morgado (2014, p. 85) como estando “ancorado nas ideias de eficácia e eficiência dos professores, da autoformação, de construção da autonomia profissional e de prestação de contas”. E concordando com Esteves (2007), o futuro não se compadecerá com visões estreitas da educação, da escola, da docência nem da ausência da profissionalidade docente. 4. Desenvolvimento profissional docente: que agendas? Em qualquer debate sobre formação de professores é incontornável o tema da profissionalidade ou do desenvolvimento profissional docente (DPD), associado, neste texto, a agendas concretas, nomeadamente a política, a organizacional, a curricular, a tecnológica e a pedagógica. Na agenda política, e porque são diversas, ainda que bastante uniformes, as fontes de produção de normatividade discursiva, seguimos o que é preconizado pela Comissão Europeia (2015, p.7-

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Entre outros, ver o texto inédito, publicado em 2015, de Jean Paul Sartre, O que é a subjetividade?

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8) para a formação de docentes e seu desenvolvimento profissional, apresentado em contornos quase-litúrgicos: 1. As políticas de ensino devem basear-se na compreensão da profissão docente e no desenvolvimento profissional dos docentes como um processo contínuo coerente com várias perspetivas interligadas, que incluem as necessidades de aprendizagem dos docentes, as estruturas de apoio, as estruturas de emprego e carreira, os níveis de competências e a cultura escolar local. 2. As possibilidades aliciantes de desenvolvimento profissional e diversificação das carreiras devem ser elementos importantes nessas abordagens. 3. Os docentes devem ter a capacidade de desenvolver e manter uma mentalidade e uma abordagem prática baseadas na reflexão e na investigação e orientadas para o desenvolvimento profissional contínuo. 4. A formação inicial dos docentes precisa ser encarada como um ponto de partida para este processo contínuo de desenvolvimento profissional, pois estabelece as bases para essa mentalidade e abordagem. 5. Os dirigentes escolares e os fornecedores de desenvolvimento profissional contínuo (incluindo os fornecedores de Formação inicial dos docentes) têm um papel fundamental na criação de oportunidades e ambientes que favoreçam o desenvolvimento profissional orientado para a prática e baseado na investigação, o qual reforçará a aptidão (a capacidade de ação) dos docentes no sentido de um ensino orientado para o aprendente e para a inovação. 6. O profissionalismo dos docentes, formadores de docentes e dirigentes na educação deve incorporar práticas colaborativas e uma cultura colaborativa. Ambas deverão, como tal, promover o conteúdo e o processo da Formação inicial dos docentes. Deve ser dada especial atenção à liderança das práticas colaborativas. 7. A abertura de estabelecimentos de ensino e instituições de formação inicial dos docentes deve ser apoiada para que possam

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beneficiar da participação em redes, em comunidades de aprendizagem profissional e noutras parcerias. As medidas da política devem permitir tais ambientes de aprendizagem colaborativos, com flexibilidade para permitir diferentes contextos. 8. A governação da formação inicial dos docentes deve basearse em abordagens colaborativas que envolvam todas as partes interessadas (incluindo os fornecedores de Formação inicial dos docentes e desenvolvimento profissional contínuo, os organismos e associações profissionais e os parceiros sociais) nos processos de tomada de decisões, orientação e acompanhamento. 9. Os governos e todas as partes interessadas devem assumir a responsabilidade pelo sistema (ou por partes do mesmo) e empenhar-se no diálogo e na cooperação. Isto implica, quando necessário, o desenvolvimento da capacidade das partes interessadas para assumirem responsabilidades dentro do sistema. 10. O ciclo de governação precisa criar um equilíbrio entre os processos de tomada de decisões, orientação e acompanhamento e de se concentrar na coerência interna e em políticas sustentáveis, nomeadamente, utilizando eficazmente os dados de acompanhamento dos processos e os resultados das medidas das políticas. A partir de uma agenda organizacional, o DPD está centrado nas práticas profissionais, concebendo-se a escola como território organizacional da formação e da construção da profissionalidade, “lugar onde nascem os interesses de desenvolvimento dos professores ou onde se manifestam problemas que urge resolver mediante atividades de formação” (RODRIGUES, 2016, p. 64), devidamente contextualizadas pelas culturas de escola (TORRES, 2006) e pela articulação entre formação e trabalho docente, com suas regras, direitos e deveres, não sendo de excluir, em muitas discussões, as questões deontológicas. O DPD é, assim, perspetivado em contextos de trabalho, na defesa de uma formação estritamente ligada às escolas, ainda que seja amplamente criticada a “existência de uma escola subordinada

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a uma lógica de compartimentação”, que deveria “dar lugar a uma escola de equipas” (CANÁRIO, 2016, p. 75). Com efeito, trata-se da construção de uma noção de DPD em torno de uma profissionalidade organizacional, ligada de forma privilegiada à burocracia escolar, com tendência para esta se registar tanto nas regras formais da escola, quanto na organização do processo de ensino/aprendizagem, que se reconhece na exaltação social dos resultados escolares como fim quase único da escola, de acordo com a ênfase administrativa que é dada à função docente, passando este a ser um gestor de resultados de aprendizagem. Aliás, o descentramento que é realizado do ensino para a aprendizagem ou para a competência significa tão-só a busca de uma escola orientada para o sucesso ditado pela lógica de mercado, como se os alunos apenas recebessem formação Em termos de agenda curricular, há duas perspetivas que convém realçar. De um currículo prescrito, oriunda de uma abordagem tradicionalista, agora orientada para o mercado, resulta uma perspetiva baseada em standards e resultados, como analisámos anteriormente. Deste modo, é focado o individualismo dos professores e descredibilizada a sua formação profissional em saberes mais abrangentes (TALBOT, 2016), mantendo-se as organizações centralizadas pelos resultados e as formas estandardizadas de aprendizagem, de acordo com uma cultura de accountability (HARDY, 2015). Por sua vez, da abordagem reconceptualista do currículo resulta a proposta de um DPD baseado numa conversação complexa (PINAR, 2007) que é ao mesmo tempo conversação deliberativa (SAMFORD, 2015; WOZOLEK, 2015; BILEK-GOLIAS, 2015) e “prática de ensino dialogada” (SEDOVA, SEDLACEK, SVARIEK, 2016), com ênfase, numa profissionalidade crítica que lança interrogações sucessivas quer sobre o conhecimento que é construído curricularmente em cada escola, quer acerca do modo como essa construção é realizada na sala de aula.

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A agenda tecnológica questiona o DPD numa perspetiva tanto de redução do conhecimento a informação, o que se torna curricularmente pobre para as crianças de hoje, pois o conhecimento é a base de uma aprendizagem significativa, quanto de instituir uma aprendizagem sem escola. Sendo um cenário possível identificado por vários organismos transnacionais, como a UNESCO, há uma prática antagónica entre o que a escola, dita tradicional, proporciona aos alunos e o que a Internet lhes oferece de modo tão diferente. Citando Lipovestsky (2016, p. 320), que analisa os fundamentos de uma civilização do ligeiro, “os métodos escolares assentam nos valores do esforço e da disciplina, na lentidão e na progressividade controlada, em exercícios repetidos e programas impostos tendo em vista uma aquisição de tipo sistemático”. Tal antagonismo alimenta a ideia revitalizada de uma sociedade sem escola, o que para Lipovetsky (Ibid., p. 321) ganha terreno em autores anteriores, como Ivan Illich, não aceitando o que diz Michel Serres sobre a Internet, que “torna inútil a escola, os professores e as disciplinas, pois todo o saber está acessível a todos, já foi transmitido para sempre e em toda a parte”. Perante a sociedade da informação, Lipovetsky (Ibid., p. 321) discorda que a mesma signifique o fim da escola, sendo certo que o DPD exige um conhecimento das tecnologias e sobretudo do modo como a informação é transformada em conhecimento, pois “quanto mais numerosos são os conteúdos disponíveis, mais crucial é a forma de interpretá-los, escolhê-los, organizá-los e ordená-los: a informação “bruta” não é sinónimo de conhecimento verdadeiro. O universo do digital pode “encher” as cabeças, mas não tem o poder de criar “cabeças bem feitas”: o progresso tecnológico não é o processo cognitivo; estar ligado não é suficiente para pensar”. Apesar de os professores terem a tendência para agir na base do individualismo, reconhecendo-se que o seu trabalho é um trabalho de solidão, sendo na solidão que os professores se confrontam com o espaço da sala de aula e é solidão que lidam com o agir quotidiano (CARVALHO, 2016), a agenda pedagógica do DPD

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tem-se manifestado quer pela abordagem dos problemas de aprendizagem, como se esta fosse uma solução didática, suscetível de uma formação baseada em procedimentos que reforçam o ato de ensinar como um ato técnico, ancorado em princípios de racionalidade tyleriana (PACHECO, 2006; 2011), subordinada a objetivos/metas/competências, conteúdos, atividades e avaliação, quer pela valorização da reflexividade em torno das práticas docente, como se estes existissem fora das suas narrativas sociais. A este respeito, Goodson (2015, p. 21), falando sobre as vidas de aprendizagem, afirma a necessidade de “nos deslocarmos das estórias de vida para as histórias de vida completas”, com recurso ao método histórico e às memórias coletivas, que seriam desse modo a estratégia metodológica para o estudo do profissionalismo dos docentes. No estudo realizado, o autor identifica, junto dos professores, quatro contextos biográficos coletivos - os sofredores, os estratégicos, os adequados e os lutadores – com distinções significativas na conceção do DPD. Consequentemente, o conhecimento autobiográfico torna-se num dos fortes pilares do DPD, mas sem cair na moda de uma reflexividade acrítica e associal que os docentes podem cultivar em relação aos seus contextos de formação, incluindo a escola e a sala de aula, sendo pouco úteis, porque sempre repetitivos e concordantes com a existência de uma lamúria profissional, os estudos sobre satisfação e mal-estar docente. Ao fazer esta última afirmação, Bullough (2015, p. 93), coloca duas questões, uma mais centrada no docente, outra voltada para os alunos: “Que tipo de pessoas pretendemos que ensinem as nossas crianças? Que tipo de pessoas queremos em que as nossas crianças se tornem?” Ou seja, a noção de DPS tem sentido se incorporar, por um lado, a aprendizagem docente como base da sua construção e, por outro, se seguir uma diversidade de práticas, que a Comissão Europeia (2015) associa a um processo contínuo, a uma aprendizagem colaborativa e a uma governação partilhada.

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Sobre o processo contínuo é dito ser “necessário encarar a profissão docente como um processo contínuo integrado, que reúne cinco perspetivas interrelacionadas: abordar as necessidades de aprendizagem dos docentes, os sistemas de apoio, os percursos profissionais, a organização dos níveis de competências e o impacto da cultura escolar (Ibid., p. 7). Quanto à aprendizagem colaborativa, “os decisores políticos, os dirigentes educativos e todas as partes interessadas relevantes, incluindo os parceiros sociais, devem contribuir para as pré-condições necessárias para uma cultura de trabalho colaborativa através da criação e do reforço da confiança mútua. Esta é uma pré-condição para assegurar a eficácia de medidas específicas e, sobretudo, para o planeamento de adaptações ao nível do sistema” (Ibid., p.9). Por último, em relação à governação, a “formação inicial dos docentes é um campo complexo que envolve um número cada vez maior de partes interessadas e, em alguns países, diferentes níveis de governo (…) No entanto, independentemente de um sistema ser mais centralizado ou descentralizado, mais regulamentado ou desregulamentado, pode ainda assim ser colaborativo” (Ibid., p. 11). Concluindo Não há dúvida de que o professor é um profissional que detém um capital profissional, no sentido que desenvolvem Hargreaves e Fullan (2012), que inclui não só o domínio de capacidades, mas também de crenças e atitudes que estão presentes no momento em que tem de decidir. Analisar, por isso, a formação de professores pelo lado da abordagem deliberativa do currículo (BIESTA, 2013b), num constante reconhecimento que o professor decide em contexto, com barreiras que lhe são impostas pelas políticas centralizadas e ancoradas em padrões e em resultados (PACHECO, MARQUES, 2013), é reconhecer uma problemática de conflito, com discussões presentes em muitos países que se tornam num pêndulo que oscila entre o que é considerado o “conhecimento poderoso”,

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tal como é definido por Young (2010), e o que significa a comunidade em que o professor trabalha, numa forte ligação ao que pressupõe a consideração da agência e da subjetividade, como é explorado por Pinar (2015). Assim, a formação (inicial e contínua) de professores é um processo de enorme complexidade que não pode ser dissociado dos mecanismos formais e informais de regulação transnacional e nacional, nem tampouco de reformas educativas e curriculares, cada vez mais circunscritas a conceitos-chave que marcam o ritmo da competição escolar em busca da excelência individual. Além disso, é necessário repensar o papel do professor, sempre confrontado com o tradicional. Se a educação, através da escola, para Arendt (2006), é a porta de entrada da criança no mundo, este mundo é sempre passado e está em permanente conflito com quem aprende, apesar do conflito hierárquico que ainda existe no interior das escolas. Mas a este respeito, Žižek (2015, p. 216) afirma que na “era das ordens hierárquicas dominadas pela figura de um Mestre terminou: estamos a entrar num novo universo de multiplicidade, de ligações dinâmicas laterais, de auto-organizações moleculares que não precisam de ser totalizadas”. Por último, a obsessão em torno dos resultados e consequente valorização dos testes, não se inscreve apenas numa conceção pragmática de olhar para a educação e formação de professores, como igualmente provoca na educação e na formação de professores uma disfuncionalidade curricular, lançando uma neblina sobre as escolas e os professores que torna o presente mais sombrio9, com o reforço de uma perspetiva pragmática, ou seja, utilitária que pretende substituir o aprender pelo fazer e que se torna na fundamentação de uma similaridade curricular, alfa e ómega de uma nova racionalidade tyleriana, já que o pensamento de Tyler (1949) não só está de volta, pelo peso dos quatro 9

Falando assim o poeta cabo-verdiano9: “Entre o que é o passado/e o que ainda não é tempo/nossos momentos júbilos/acaso um persistente inferno”. Arménio Vieira, Sequelas do Brumário, 2014, p. 69.

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princípios curriculares (objetivos, conteúdos, atividades e avaliação), como também se amplia e difunde pelas políticas de prestação de contas e responsabilização, mesmo que se afirme que seja “ilusório acreditar-se na viabilidade das políticas curriculares uniformemente definidas a nível mega e macroestruturas (internacionais ou nacionais) sem ter em consideração os contextos regionais e locais, que se apresentam como garantes da prossecução e realização de políticas, através de dinâmicas de significação, interpretação e recriação, que acabam por influenciar a sua implementação ao nível das instâncias escolares” (VARELA, 2015, p. 46) Mas mais do que respostas, são necessárias perguntas, pois “nós, professores, somos exageradamente professores de respostas e pouco professores de questionamentos” (CHARLOT, 2013, p. 178), tornando-se urgente discutir a Educação, o Currículo, a Didática e a Formação de Professores na interseção da esfera pública com a esfera privada, ou seja, do social com o pessoal, e no reconhecimento de que a escola é formadora de identidades de sujeitos que têm uma consciência de si e se relacionam com os outros (SOUSA, 2015), situando-se num “lugar cultural de proliferação de sentidos” (FAVACHO, 2015, p. 178). E para Goodson (2008, p. 17), “devemos entender o pessoal e o biográfico se quisermos entender o social e o político”, e compreendendo estes significados estaremos a valorizar a ação subjetiva do sujeito na construção do currículo e na formação dos professores que se transformam nos seus agentes principais, não se tornando necessário escrevê-lo com letra maiúscula, como o fez Schwab (1969) quando defendeu que o professor, juntamente com o aluno, o conhecimento e contexto, é um dos elementos principais a ter em conta na construção de um projeto curricular. De acordo com políticas, de natureza transnacional e supranacional, cuja retórica é fortemente apelativa, o DPD tem de estar ligado à aprendizagem dos alunos, exigindo que cada professor siga um percurso profissional, social e pessoal que

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implica um desenvolvimento profissional ao longo da carreira integrado em ambientes de aprendizagem colaborativos (COMISSÃO EUROPEIA, 2015). Este é um grande desafio para os professores, mas também para as escolas e as instituições de formação.

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FORMAÇÃO DE PROFESSORES: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O CAMPO DE PESQUISA1 Renata Portela Rinaldi2

Na literatura sobre formação docente encontra-se como marco inicial, a década de 1950, como período de tempo em que se passa a ter a temática como preocupação de investigação e, especialmente, nos últimos 40 anos têm sido foco de inúmeras pesquisas que buscam compreender este processo. A cada ano se observa uma vasta produção nesse campo de estudo que abordam diferentes temáticas como: “saberes” ou “conhecimento” dos professores, formação e desenvolvimento profissional, aprendizagem da docência, profissionalização, tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC) e formação de professores, inserção profissional, prática pedagógica dos professores, multiculturalismo e interculturalidade na formação docente, entre outros. No Brasil, por exemplo, André et al (1999) ao realizarem um estudo sobre o estado da arte na formação de professores alertam para o fato de haver um excesso de discurso sobre o tema da formação docente e uma escassez de dados empíricos para referenciar práticas e políticas educacionais. Contudo, especificamente como o professor aprende a ensinar tem sido objeto de preocupação de muitos pesquisadores que têm tentado

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Texto baseado parcialmente no documento de tese intitulada Desenvolvimento profissional de formadores em exercício: contribuições de um programa online. São Carlos, 2009. Docente vinculada ao Departamento de Educação e Programa de Pós-graduação em Educação na Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista (FCT/UNESP). E-mail: [email protected]

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compreender esse processo ao longo dos anos. Segundo Fiorentini et al. (1998, p. 314): Os saberes escolares, os saberes docentes tácitos e implícitos e as crenças epistemológicas, seriam muito pouco valorizados e raramente problematizados ou investigados tanto pela pesquisa acadêmica educacional como pelos programas de formação de professores. Embora, neste período, as práticas pedagógicas de sala de aula e os saberes docentes tenham começado a ser investigados, as pesquisas não tinham o intuito de explicitálos e/ou valorizá-los como formas válidas ou legítimas de saber.

Passado uma década, em novo estudo, André (2009) por meio de mapeamento sobre a produção acadêmica na pós-graduação em educação no país, identifica que nos anos 2000 houve significativo avanço no volume de pesquisas sobre o tema, assim como nos objetos de estudos, a saber: (...) nos anos de 1990, a grande maioria das investigações científicas nessa subárea centrava-se nos cursos de formação inicial (75%); nos anos de 2000, o foco dirige-se ao(à) professor(a), aos seus saberes, às suas práticas, às suas opiniões e às suas representações, chegando a 53% do total de estudos (ANDRÉ, 2009, p. 46).

Ainda em 2009, em estudo longitudinal sobre política de formação de professores no Brasil, Gatti e Barreto (2009) apontam que: (...) as propostas inspiradas no conceito de capacitação cedem lugar a um novo paradigma, mais centrado no potencial de autocrescimento do professor, no reconhecimento de uma base de conhecimentos já existente no seu cabedal de recursos profissionais, como suporte sobre o qual trabalhar novos conceitos e opções (GATTI; BARRETO, 2009, p. 202).

Para as autoras, O protagonismo do professor passa a ser valorizado e a ocupar o centro das atenções e intenções nos projetos de formação continuada. Novos modelos procuram superar a lógica de processos formativos que ignoram a trajetória

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percorrida pelo professor em seu exercício profissional (GATTI; BARRETO, 2009, p. 203).

Para Rinaldi (2009) no Brasil, ao analisarmos a trajetória da formação de professores, é possível perceber que a mesma sofreu forte influência do movimento que ocorria no contexto internacional. Se rompeu com uma concepção de regrário da didática e se colocou o processo de ensino e aprendizagem (multifacetado, multidimensional, multicausado, dinâmico) no seio do debate educacional. Para a autora, a evolução no foco de interesse sobre o tema pode ser sistematizado conforme se observa na figura 1. Figura 1: Evolução no foco de interesse sobre a formação de professores no cenário nacional

1980 Foco sobre: - competências dos professores; - histórias de vida (reconhecimento do professor como sujeito de um saber e um fazer); - dicotomia professor versus educador.

Fonte: Rinaldi (2009, p. 119)

1990... “Crise de paradigma”, foco sobre: - formação do professor-pesquisador; - profissional reflexivo (“dar voz ao professor”); - importância de se pensar a formação para além da formação acadêmica; - saber docente; - aprendizagem da docência como continuum; - LDB 9394/96 dispara uma série de reformas: currículo baseado em competências, progressão continuada, avaliações externas, ampliação dos cursos de formação de professores ISEs etc.

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2009 Foco sobre: - saberes necessários para a formação do professor; - ação do professor influencia no desempenho dos alunos; - valorização do desenvolvimento profissional; - profissionalização e identidade profissional; - Paradoxo: os professores compõem o problema da educação, mas também a solução etc.

Ao considerar a literatura internacional3 são inúmeras as produções que buscam, por exemplo, compilar o conhecimento dos professores, sua formação, aprendizagem e desenvolvimento. No que se referem à literatura brasileira, muitos estudos se relacionam às investigações que versam sobre formação inicial, formação continuada, saberes ou conhecimentos dos professores, práticas pedagógicas, identidade e profissionalização docente etc. Essas investigações têm contribuído para a compreensão de como se dão os processos de aprendizagem da docência, principalmente na educação básica e em contextos formais de educação. Abordagens epistemológicas na área da Educação: apontamentos transitórios A problematização clara, a desconstrução de preconceitos, a superação do senso comum, a reflexão e a contribuição para a produção de conhecimento na área da educação nos encaminha, necessariamente, ao reconhecimento da importância da epistemologia na pesquisa. Entre as abordagens epistemológicas4, pode-se observar quatro paradigmas mais conhecidos, quais sejam, as abordagens póspositivistas, fenomenológico-hermenêuticas, crítico-dialética e pósestruturalistas. As abordagens pós-positivistas, alicerçadas principalmente na teoria hipotético-dedutiva de Popper, na sociologia de Dürkhein e

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Wittrok, 1986; Shulman, 1986; 1987; Houston et al, 1990; Martin, 1993; Sycula, 1996; Gauthier et al. 1998; Tardif, Lessard e Gauthier, 1998; Richardson, 2001; Cocrhan-Smith e Zeichner, 2005, entre outros. Para ampliar o conhecimento sobre as abordagens apresentadas, recomenda-se as seguintes leituras: LÖWY, M. Ideologia e Ciências Sociais, 15ª ed. São Paulo: Cortez, 1996. PETERS, M. Pós-estruturalismo e a filosofia da diferença: uma introdução. Tradução de SILVA, T. T. da. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. GRONDIN, J. Introdução à hermenêutica filosófica. São Leopoldo: Editora da Unisinos, 1999. SOKOLOWSKI, R. Introdução à fenomenologia. Tradução de MORAES, A. de O. São Paulo: Loyola, 2004.

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na teoria dos jogos de linguagem de Wittgenstein, dedicam-se a alcançar explicações científicas por meio da tentativa de refutação ou confirmação de hipóteses, apostando na autonomia do jogo de linguagem ou da proposição que define a tarefa do professor em relação ao mundo circundante e/ou às relações com os sujeitos que o produzem. As abordagens fenomenológico-hermenêuticas, por sua vez, são orientadas na linha de Husserl, Heidegger, Gadamer, MerleauPonty, Paul Ricoeur e Sartre. Em linhas gerais, empenham-se em incentivar a busca da compreensão dos fenômenos educativos por meio de narrativas que visam à sua descrição sistemática pelo docente e à interpretação constante. Para Dalbosco (2014, p. 1032) (...) a tradição hermenêutica pode contribuir para a ampliação da noção de experiência, resgatando aquele sentido inerente à condição humana que foi esquecido pela ciência em seu sentido metódico-experimental. Do ponto de vista sistemático, o núcleo de tal contribuição refere-se à ideia da historicidade radicada no caráter de abertura da própria experiência humana que se manifesta na estrutura do diálogo levada a cabo pelo modo inteligente de perguntar.

A abordagem crítico-dialética, derivada desde Marx, Lukács, Gramsci e frankfurtianos, se apega à necessidade de o professor desenvolver novas sínteses no confronto entre seu pensamento e o real vivido no contexto social, num processo crítico e transformador da natureza e da sociedade. A abordagem pós-estruturalistas, baseada em Nietzsche, Foucault, Derrida e Deleuze-Guattari, chamam atenção para a inserção do discurso da docência no universo efêmero e fragmentário do cotidiano pedagógico, atravessado por múltiplas determinações (ou subjetivações) de poder, gênero, classe, etnia, orientação sexual e cultural. Com a finalidade de verticalizar a leitura epistemológica, fundamental na produção do conhecimento científico, são

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apresentadas algumas reflexões oriundas dessa leitura, no campo da formação de professores. Paradigmas identificados no campo da formação de professores Entre as inúmeras definições do conceito de paradigma, recorrese à Romano (1998) quando descreve que: “Paradigma” surge no campo da língua antiga que se liga a deiknumi, cujo sentido é “mostrar”, “demonstrar”, “indicar”. Quando acrescentado da partícula “para”, significa “mostrar, fornecer um modelo” [...]. A raiz deik-, por sua vez, refere-se ao ato de “mostrar mediante a palavra”, mostrar “o que deve ser”, donde a consequência da união com dike a lei, a regra [...]. (ROMANO, 1998, p. 67).

Nesse sentido, mediante a análise da produção no campo de pesquisa de formação de professores, nota-se que até as primeiras décadas do Sec. XX vigora no país o que se pode identificar como paradigma industrial (fordismo) que previa a rígida separação entre a concepção do trabalho e a execução padronizada das tarefas. O paradigma processo-produto, por sua vez, é orientado pela epistemologia positivista e behaviorista. Pautado na tradição comportamentalista, desenvolve seus estudos e investigações com o objetivo de descobrir o método mais eficaz e em determinar os estilos de ensino que produzem melhores resultados nos alunos. Neste paradigma, passa-se a considerar as variáveis do processo de ensino que tem influência sobre a aprendizagem dos alunos, por exemplo, os métodos de ensino e os procedimentos metodológicos adotados. O que significa dizer que a partir da análise dos processos de ensino, buscava-se identificar o impacto da ação do professor sobre o produto, a aprendizagem dos alunos (BORGES, 2001). Nesta época, anos de 1950 a 1970, expandiram-se os estudos que tentavam determinar tipologias e estilos de ensino, como a instrução programada, o ensino individualizado, o ensino baseado

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em programas modulares etc., contudo, nos anos de 1960, surge um movimento significativo centrado na observação do comportamento do professor e a análise da interação em aula, com o principal objetivo de identificar com minúcias as destrezas e habilidades dos professores. A ênfase estava sobre a preparação dos professores para se comportar de determinadas maneiras (por exemplo, pedir determinados tipos de perguntas) que foram assumidas para ser eficaz em aumentar os resultados dos alunos em testes padronizados. O intuito era identificar estilos de ensino (processo) e estabelecer correlações entre eles e a aprendizagem dos alunos (produto). Nesse sentido, a formação dos professores esteve baseada no paradigma da racionalidade técnica, como aplicação de regras advindas da teoria e da técnica para a prática pedagógica (SCHÖN, 1983; 1987; MARCELO, 1999). Nota-se que na investigação do paradigma processo-produto predominam os modelos experimentais, cujas técnicas e instrumentos de coleta de informações estão pautados basicamente em procedimentos de observação sistemática tendo modelos de ação docente como referência. Segundo Zeichner (2008), nesse período não houve investigação e nenhuma discussão real na formação de professores, sobre o pensamento de professores e com a ajuda de professores para entender as lógicas subjacentes à utilização de estratégias de ensino diferentes, ou como os professores aprendem a exercer o seu julgamento em sala de aula para atender às necessidades em constante mudança de aprendizagem de seus alunos. Nota-se que muitas foram (e ainda têm sido) as críticas destinadas a esta abordagem, voltadas mais especificamente na desconsideração do contexto como configurador e mediador na atuação docente e na aquisição de competências para o ensino, na avaliação das aprendizagens individuais em função do rendimento dos alunos e a inconsistência das metodologias e instrumentos de investigação utilizados.

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Pérez Gómez (1989, p. 98), aponta as seguintes limitações do paradigma processo-produto: (1) definição unidirecional do fluxo de influência, pois as influências que se estabelecem na sala de aula vão além dos comportamentos do professor e dos alunos e, ambos influenciam no comportamento desses sujeitos; (2) Descontextualização da ação docente, não é possível compreender a pratica do professor deslocando-a do contexto em que se desenvolve e deixando de analisar as relações que a permeiam; (3) Redução da análise do ensino aos comportamentos observáveis, para entender os processos de ensino-aprendizagem é preciso ir além dos resultados, é necessário considerar as intenções, as atitudes, as expectativas do professor e também dos alunos etc.; (4) Definição restritiva dos resultados do ensino, ou seja, o ensino não se restringe apenas aos resultados acadêmicos, mas de formação mais ampla dos alunos; (5) Rigidez nos instrumentos de observação e pobreza conceitual, o uso de instrumentos de mensuração de “habilidades” elaborados previamente a partir de uma concepção tradicional do ensino: explicações verbais, perguntas, respostas etc., restringe os resultados do ensino e da aprendizagem ao campo da observação; (6) Marginalização das exigências do currículo, ou seja, apenas estabelece relações entre a conduta do professor e as aquisições dos alunos sem considerar o tipo de conteúdo nem mesmo as estratégias metodológicas para o ensino; (7) A escassa consideração do aluno como pessoa ativa e mediadora dos processos de ensino-aprendizagem, oposto ao que hoje se sabe, pois o ensino possibilita o desenvolvimento de conhecimentos, procedimentos, atitudes que permitem ao sujeito inserir-se no meio em que vive.

Conforme Gage (1963, p. 17), nesta perspectiva “as pesquisas buscam desenvolver bases científicas sobre a arte de ensinar” e apesar das críticas que apontavam sua rigidez frente aos diferentes aspectos e variáveis que interferem no ambiente da sala de aula é possível dizer que foi um dos mais consolidados programas de pesquisa desenvolvidos no campo educacional. Contudo, nas “brechas” identificadas no paradigma processo-produto uma nova abordagem de pesquisa, respaldada no desenvolvimento da psicologia cognitiva, ganha ênfase na medida em que oferece

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determinadas precisões sobre os processos cognitivos, esclarece alguns aspectos envolvendo o processo de ensino e aprendizagem, introduz a ideia de metacognição, superando as inconsistências do paradigma anterior. Amparado na abordagem cognitiva, o paradigma cognitivista, desenvolveu-se paralelamente às críticas feitas à abordagem processo-produto lançando questões que tentavam superar as limitações das investigações desta abordagem. O desenvolvimento da psicologia cognitiva, especificamente com as teorias de processamento da informação (SHULMAN, 1987) vai configurando este novo marco de interpretação. Ao considerar os alunos e os professores como sujeitos ativos no processo de ensino-aprendizagem e ao utilizar metodologias qualitativas e fenomenológicas, abrem novos caminhos para a investigação no campo da formação de professores. Estas metodologias, mais flexíveis, se justificam pela necessidade de poder interpretar e dar resposta às mediações difíceis de observar de maneira direta e objetiva. Se a maior preocupação no paradigma processo-produto é a de identificar o método mais eficaz e eficiente, na abordagem cognitivista a preocupação se volta ao estudo dos processos mentais que são subjacentes ao comportamento de alunos e professores, as estratégias do processamento da informação, das influências recíprocas entre alunos e professores e dos processos de construção do próprio conhecimento dessa díade. Ou seja, por meio da análise pormenorizada dos processos cognitivos do professor em relação a suas ações e comportamentos na sala de aula, a tradição cognitivista procura superar a abordagem processo-produto; entender a complexidade dos processos de ensino; identificar como os professores percebem e coordenam suas ações e interações; analisar como eles aprendem, compreendem, fazem uso, reutilizam e transpõem informações (conhecimentos), que são armazenados por meio da memória e que podem ser transferidos de um contexto para o outro (TARDIF, 1992).

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Contudo, esta abordagem também recebeu inúmeras críticas, por exemplo, pelo fato de não levar em consideração o contexto em sala de aula e o caráter de contingente dos processos de ensinoaprendizagem, assim como de anular a personalidade do professor e tomar as situações de ensino como previsíveis. Embora, ente outras, as suas contribuições ofereçam determinadas precisões sobre os processos cognitivos e introduza a ideia de metacognição. Os estudos nesta perspectiva, conforme indica Zeichner (2008), incluíram o início de uma nova corrente, a da investigação sobre o pensamento de professores que, no E.U.A. foi liderada por Lee Shulman e seus colegas da Universidade Estadual de Michigan (SHULMAN, 1992), a crescente influência da ciência cognitiva na educação e a crescente aceitação de forma qualitativa de pesquisa em educação (LAGEMANN, 2000). Há também a crença de alguns que a emergência da prática reflexiva, como uma ênfase na formação de professores, está relacionada com os esforços dos neoliberais e neoconservadores reformistas para exercer de forma mais sutil e maior controle sobre os professores para que o propósito da educação pública pudesse mais facilmente ser reduzida e mais intimamente ligada com a produção de trabalhadores para a economia global (SMYTH, 1992). Ainda, Pérez Gómez (1989) aponta a existência de um paradigma que denomino de “mediacional”. Segundo o autor, nesta abordagem o professor deixa de ser um técnico que executa práticas estereotipadas e adquiridas fora do contexto e se converte num profissional ativo, reflexivo, que emite juízos e toma decisões. Para Clark (1985), o docente passa a ser considerado construtivista que continuamente vai elaborando estratégias de atuação a partir do processo de análise e de reflexão no contexto em que atua. A formação do professor tem como ênfase o desenvolvimento de capacidades para interpretar, refletir e avaliar mais do que habilidades, destrezas e estilos de ensino prefixados de comportamento docente. Marcelo (1986) define o professor como o

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sujeito que toma decisões, considerando esta como a competência mais importante para desenvolver ao longo da formação. Nesta perspectiva, Pérez Gómez (1989) esclarece que há três linhas de investigação que dão lugar a três concepções do paradigma mediacional, são elas: centrado no professor; centrado no aluno, integrador. a) Paradigma mediacional centrado no professor Os pesquisadores que desenvolveram esse paradigma (Clark, 1976; Pérez Gómez,1989; Marcelo, 1987; Zabalza, 1987; entre outros) situado no âmbito do ensino, se orientam para fazer o estudo de processos tais como:  os juízos de valor que os professores realizam em sala de aula, em cada momento do processo de ensino-aprendizagem e as decisões que tomam em função destes.  os processos de reflexão “em” e “sobre” a ação que permitem ao docente melhorar sua prática e seu conhecimento.  as teorias implícitas, valores, crenças e atitudes que o professor mantém sobre o ensino e a aprendizagem em um contexto ecológico e social (CLARK; YNGER, 1979; MARRERO, 1988), como responsáveis do particular e pessoal modo de atuar e tomar decisões de cada professor. De fato, o pensamento dos professores vem condicionado às teorias implícitas de cada um e das crenças pedagógicas.  como se formam essas teorias e crenças pedagógicas responsáveis pelo comportamento docente. O interesse desse paradigma, de acordo com Marcelo (1989) está em conhecer os processos de raciocínio que ocorrem com os professores enquanto estão ensinando. A diferença dos demais enfoques consiste na preocupação por conhecer o processo cognitivo e suas variáveis (atitudes, crenças, valores e teorias implícitas) subjacentes aos processos de ensino e que eram desestimulados no planejamento do paradigma processo-produto. A partir deste paradigma, se tem representado diferentes modelos

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que, por um lado, manifestam os valores que influenciam a tomada de decisões e, por outro lado, as tarefas que o professor como processador e investigador precisa desenvolver em sua atuação docente. Tarefas que se referem basicamente ao planejamento e ao comportamento interativo (CLARK; YNGER, 1979). Segundo Shavelson (1979), os fatores que influenciam as decisões do professor no momento de tomar as decisões para o planejamento estão relacionadas a:  as expectativas sobre os alunos: o professor elabora internamente estas expectativas em função das peculiaridades dos alunos, suas características e seu comportamento no grupo, as crenças e teorias implícitas acerca da educação e do ensino, assim como das exigências curriculares.  as crenças, teorias e atitudes sobre a educação: que influenciam diretamente sobre as decisões que tomam.  a natureza das tarefas de instrução: que tem a ver com as estratégias docentes, dependentes das exigências curriculares.  disponibilidade de materiais e estratégias: tem um papel de estimular o potencial ou limitar a atuação docente. Neste paradigma, os professores constroem seu pensamento pedagógico por meio da reflexão para a ação em situações de ensino, situações complexas e que se convertem ao longo do tempo em pessoais e genuínas. b) Paradigma mediacional centrado no aluno Este paradigma impulsionado pelo desenvolvimento das teorias cognitivistas da aprendizagem e que tem como foco a análise dos processos internos, as estratégias de processamento da informação e nas formas de mediação na aprendizagem do aluno. Neste sentido, são significativos os estudos da escola piagetiana (PIAGET, 1970) e sobre a memória desde o momento do processamento da informação (SIMON; NORMAN; MAYER, apud PÉREZ GÓMEZ, 1989). Neste caso, se aponta uma nova visão do comportamento do aluno como mediador de seu próprio processo

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de aprendizagem, já que os resultados destes são conseqüências de suas elaborações pessoais. Segundo Pérez Gómez (1989, p. 121), (...) o comportamento do professor, os materiais e estratégias de instrução não causam a aprendizagem do aluno, influenciam nos resultados apenas na medida em que ativam respostas do processamento da informação. Antes um mesmo comportamento do professor ou estratégia de instrução, diferentes alunos podem ativar diferentes processos cognitivos ou não ativar nenhum.

O propósito está em confirmar se o comportamento e as ações do professor geram a aprendizagem dos alunos ou se existem outros fatores, próprios do contexto, que determinam e explicam os resultados dos mesmos. c) Paradigma mediacional integrador De acordo com Pérez Gómez (1989), a proposta integradora deste paradigma aproxima as concepções anteriores ao considerar o professor e o aluno como mediadores do processo de ensinoaprendizagem e a influência recíproca entre eles. O autor retoma o modelo elaborado por Winne e Marx (1977), que caracteriza bem esse paradigma e tem como elemento principal a integração e a relação entre dos processos mentais do professor e os processos mentais do aluno, bem como esses processos influenciam os comportamentos de maneira recíproca. Nesta perspectiva, considera-se o aluno e o professor mediadores do processo de ensino-aprendizagem, como sujeitos que ativam processos mentais, emitem juízos e tomam decisões. Para Pérez Gómez (1989, p.123) “o propósito deste modelo conceitual não é o de estudar a eficácia do professor, mas analisar as formas de influência recíproca entre alunos e professores e questionar sobre as atitudes mentais de ambos em aula”. É possível notar um avanço significativo nos processos de investigação sobre a formação do professor com o paradigma mediacional, pois esse avanço pauta-se principalmente no fato deste considerar professores e alunos como sujeitos ativos e

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mediadores de seu próprio processo de ensino e aprendizagem, tomam o professor como uma pessoa que reflete, emite juízos, toma decisões em grande parte influenciadas por suas crenças, teorias implícitas, e a importância dada à relação dos processos mentais e comportamentos que se desenvolvem no processo de ensino e aprendizagem. Contudo, algumas críticas também são observadas a esse paradigma, por desconsiderar aspectos importantes do processo educativo. Por exemplo, por desconsiderar a influência do grupo no desenvolvimento do pensamento de alunos e professores e em suas ações no contexto da sala de aula (CONTRERAS, 1987), apenas considerar a relação direta e causal do pensamento e comportamento como mediadores do processo de ensino e aprendizagem, sem assumir que outras variáveis têm influência no comportamento de alunos e professores, por exemplo, a afetividade (MARCELO, 1987) e por desconsiderar elementos contextuais e os cenários de atuação que incidem diretamente no processo de ensino e aprendizagem (Pérez Gómez, 1989). Um outro paradigma, denominado ecológico, se desenvolve com forte influência nos últimos anos da década de 1970. É uma abordagem conceitual que caracteriza o cotidiano na sala de aula em termos de intercâmbios socioculturais e de significados que se produzem neste contexto (DOYLE, 1985; PÉREZ GÓMEZ, 1989). Tem como objetivo principal explicar coerentemente o funcionamento da classe e compreender a razão da eficácia dos professores refletindo e determinando “como” o “por que” os alunos aprendem. Desta forma, os estudos se focam nos processos de trocas criadas pelos grupos que atuam em um determinado contexto (FERRÁNDEZ, 1996). Segundo o autor, são esses processos de troca e significados que criam novos papéis e padrões de atuação, tanto individuais como coletivos. Percebe-se que esta abordagem busca relacionar o contexto (físico, afetivo e psicossocial) com o comportamento dos professores e dos alunos, buscando oferecer

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respostas cognitivas diferenciadas às contínuas demandas da sala de aula. Por esta razão, assume-se que o ato didático é momentâneo, situacional e irrepetível (FERRÁNDEZ, 1996), pois em cada momento as trocas, papéis, os comportamentos e atitudes são únicos, considerando que cada demanda também é única dentro do contexto da sala de aula. Nesta perspectiva, o professor é considerado como “um investigador, um artista que deve ser capaz de adaptar-se e criar em cada situação específica uma estratégia de inovação a partir do questionamento e da experimentação de sua ação” (STENHOUSE, 1991, p. 34). Por outro lado, Doyle (1985) identifica o professor neste paradigma como aquele profissional que possui uma competência situacional, competência que corresponde à capacidade de adaptar-se a um contexto em mudança, inserto e momentâneo que caracteriza a aula. Além disso, possui uma atitude crítica e transformadora, mas comprometida socialmente. A formação do professor está pautada na investigação do contexto da sala de aula, observando e refletindo criticamente sobre os fenômenos que ocorrem de maneira natural. De modo geral, observa-se nos modelos que caracterizam o paradigma ecológico, que o grupo é uma peça fundamental e que influencia tanto as ações do professor quanto dos alunos. Entre os modelos mais significativos desta abordagem estão os desenvolvidos por Tikunoff (apud PÉREZ GÓMEZ, 1989) e Doyle (1985). O modelo desenvolvido por Tikunoff procura explicitar como o ensino depende de variáveis contextuais que se dão em uma situação e um contexto determinado. Para o autor, há três tipos de variáveis contextuais: situacionais5; experienciais6 e comunicativas7. Doyle (1985), por sua vez, busca determinar os significados das Entre elas estão os objetivos e expectativas de alunos e professores e o contexto de trocas (espaços, atividades, tarefas, papéis, tempos). 6 Referem-se ao conjunto de experiências e significados atribuídos pelo grupo às interações e, são essas variáveis que dão significados ao que ocorre na sala de aula. 7 Dá-se no plano intrapessoal, interpessoal e no coletivo. 5

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tarefas e atividades realizadas no contexto da sala de aula. Para ele, a vida na aula se define como um intercâmbio dentro de um contexto ambíguo e incerto, onde as trocas são concebidas como um processo de negociação implícita ou explicita de aquisição e avaliações, de pactos, de significações definidas pelas tarefas que ajudam a diminui a complexidade das negociações e servem de guia para os alunos. Para ele, tanto professores como alunos devem usar indicadores de situações, esquemas pessoais de interpretação das situações que acontecem na sala de aula e buscar aprender estratégias adequadas para resolver com êxito as tarefas propostas e outras estratégias cognitivas e afetivas que permitam uma melhor adaptação ao clima contextual. Contudo, Shulman (1989) aponta os problemas que envolvem esse paradigma e que estão centrados fundamentalmente nos seguintes aspectos:  a dificuldade de recolher informações para a análise da realidade social, com a complexidade que ela supõe, já que o contexto é constantemente imprevisível, complexo e mutável;  a dificuldade de estabelecer generalizações dos estudos de caso quando se aplicam metodologias do tipo etnográfico e situacional. Nestes casos, as conclusões e propostas estão pensadas para aquele contexto concreto e, geralmente, tem maior validade situacional do que generalizações aplicáveis como princípios teóricos;  os métodos de investigação, frequentemente, estão pouco documentados ou se apresentam de maneira incompleta. Os estudos decorrentes da psicologia cognitiva e fortemente difundidos na pesquisa educacional influenciam o surgimento de outra perspectiva de estudo, a pesquisa sobre o pensamento do professor (teachers’ thinking), que atualmente é uma das abordagens que tem grande influência nas pesquisas sobre formação de professores. Mais recentemente, a partir da segunda década dos anos 2000, começamos a identificar a emergência de um novo paradigma no

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campo de estudos da formação de professores, definido de justiça social. Entre as suas principais características verifica-se a necessidade de incluir a todos no que diz respeito aos bens públicos educacionais e sociais, bem como organizar uma escola que garanta a aprendizagem de todos. Nessa nova abordagem, aos professores cabe uma boa preparação para o exercício de uma prática pedagógica mais contextualizada, estar atentos às especificidades da sociedade contemporânea globalizada, à cultura local etc., e atentos ao perfil dos estudantes, suas trajetórias de vida e expectativas escolares. Para Tedesco (2010, p. 3) “(...) Uma escola justa e, para ter uma escola justa precisamos de professores que assumam esse compromisso.” Considerações finais Pelo exposto, a compreensão da existência de um campo próprio e os elementos diversos que configuram as investigações sobre o seu objeto de estudos, apontam a formação de professores como um eixo complexo, global, mas também fértil para as pesquisas na área da educação. Ser professor, na verdade, trata-se de lidar com a gestão de um currículo, manejo de sala, o tempo de desenvolvimento do professor etc. o que implica em uma multiplicidade de opções e caminhos possíveis para garantir a aprendizagem dos estudantes. Para Silva Júnior (2016, p. 18): Se pretendermos efetivamente avançar no processo de formação de professores e nos estudos a seu respeito, precisamos assumir uma obviedade que, como todas as demais, nem sempre recebe a devida consideração: não se pode debater criticamente a formação de professores sem associar esse debate à análise crítica das suas relações e condições de trabalho atuais.

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CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS PARA O SUBCAMPO DE PESQUISAS SOBRE SABERES DOCENTES NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES Mariana Costa Lopes da Silva1 Júlio Emílio Diniz-Pereira2

Introdução Nos dizeres da Professora Emérita da UFMG, Magda Soares, “novas palavras são criadas, ou a velhas dá-se um novo sentido, quando emergem novos fatos, novas idéias, novas maneiras de compreender os fenômenos” (2004, p.19). A Professora Magda Soares estava se referindo ao termo “letramento”, mas podemos fazer a mesma reflexão em relação aos termos saberes docentes, conhecimentos, competências entre outros. Esses termos não são sinônimos, mas tentam dar sentido a um subcampo de pesquisas surgido há poucas décadas sobre os conhecimentos específicos dos professores que atuam na educação básica. Essas diferentes terminologias nos remetem a estudiosos que pesquisam um mesmo fenômeno por diferentes ângulos e de formas variadas. Tal fato mostra a riqueza desse subcampo de conhecimento, mas pode representar também obstáculos para o pesquisador que se propõe adentrar nessa área. Apresentamos, no presente capítulo, reflexões teóricas acerca dos termos saber e saberes docentes em interlocução com resultados de pesquisas empíricas (nacionais e internacionais)

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Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor em Educação pela Universidade do Estado de Wisconsin, em Madison, Estados Unidos. Professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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e também com dados obtidos por meio da pesquisa qualitativa “Saberes docentes e estratégias de ensino: As trocas entre Professoras do Ensino Fundamental”3 (SILVA, 2009). Saber O que pode ser identificado enquanto um saber? Como diferenciar saberes de crenças, conhecimentos, representações, informações, ideologias, valores...? Segundo Gauthier e colaboradores (2006), saber é um termo polissêmico cujos significados podem ser localizados em três concepções: da subjetividade, do juízo e da argumentação. A concepção marcada pela subjetividade advoga que o saber é fruto de um diálogo interior do homem marcado pela racionalidade. Para Descartes, o saber é fruto de uma constatação e da demonstração lógica; saber é deter uma certeza subjetiva racional. Para a concepção que associa o saber ao juízo, o saber procede de uma atividade intelectual, é um juízo verdadeiro a respeito de fatos. A terceira concepção considera a argumentação como o lugar do saber. Nesta última concepção, o sujeito busca validar uma proposição ou ação por meio da atividade discursiva. O saber é uma construção coletiva de natureza lingüística, oriundo das trocas entre os agentes e é baseado na racionalidade de natureza argumentativa. O saber é ligado às exigências de racionalidade, de discursos e ações cujos sujeitos estão em condições de apresentar uma justificativa racional. A definição de saber nessa concepção engloba os “argumentos, os discursos, as idéias, os juízos e os 3

Trata-se de uma pesquisa realizada na Escola de Educação Básica e Profissional da UFMG – Centro Pedagógico (CP). O objetivo principal da pesquisa foi identificar quais saberes são trocados entre professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental e para isso elaboramos um percurso metodológico em três etapas: a inserção da pesquisadora no locus da pesquisa (estudo exploratório); grupo focal com as oito professoras participantes e, por último, o tratamento e a análise dos dados.

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pensamentos que obedecem a exigências de racionalidade, ou seja, as produções, discursos e as ações cujo agente é capaz de fornecer os motivos que as justificam” (GAUTHIER et al., 2006, p. 336). Gauthier e colaboradores (2006) salientam que nem toda prática social pode ser considerada saber, pois nem sempre é possível oferecer argumentos para justificar as ações. A racionalidade de um discurso ou de uma ação é decidida por meio da comunicação entre agentes e sua capacidade de argumentação depende do contexto de interação e das razões alegadas pelos sujeitos do discurso. Um saber não se reduz à extração de leis contidas em um objeto, ele é fruto de uma interação entre sujeitos, de uma interação lingüística inserida em um contexto. No contexto escolar, Salgueiro (1998) ressalta: El trabajo docente no se desarrolla de forma aislada en el interior de las escuelas, sino que ele el resultado de la interacción con otros docentes, con especialistas, con el alumnado y con sus familias. Se trata, por lo tanto, de un proceso colectivo de elaboración, de reflexión, aunque articulado desde lo individual. A través de esta interacción colectiva, los saberes docentes ganan credibilidad. (1998, p. 38)

O saber remete a algo que é intersubjetivamente aceitável para as partes presentes e terá valor na medida em que permita manter aberto o processo de questionamento, capaz de alimentar a reflexão. “O saber para nós está enraizado numa comunidade de agentes, ele corresponde a diferentes tipos de juízo e seu objetivo é prático” (GAUTHIER et al. 2006, p. 340). A prática de um professor é marcada pela sua capacidade de decidir, de realizar julgamentos, pois é um prático dotado de razão. Essas decisões podem ser criticadas, justificadas, reprovadas ou aprovadas e são baseadas em saberes que não podem ser caracterizados pela arbitrariedade, ilegalidade ou imoralidade. Os “truques pedagógicos” assumem esses últimos atributos, pois, segundo Damasceno (2002), os truques são “maneiras ‘eficientes’ de resolver problemas profissionais que podem, por vezes, concretizar em mecanismos que ferem os princípios éticos e pedagógicos da

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educação, constituindo um caminho fácil para resolver problemas pedagógicos e administrativos” (p. 27). Exemplos de “truques” seriam, por exemplo, como livrar-se das pressões de pais e mães, de alunos e alunas insistentes, como faltar a reuniões burocráticas, a comemorações indesejadas, como elaborar avaliações de fácil correção etc. Pesquisamos, portanto, saberes docentes e pautamonos pela concepção argumentativa de saber. Saberes docentes Knowledge em inglês, savoir ou connaissance em francês, saberes ou conhecimentos em português, a temática dos saberes ou conhecimentos docentes vem ocupando cada vez mais, em diversos países, um lugar importante nas pesquisas sobre o ensino (BORGES, 2004). A discussão acerca dos saberes docentes foi iniciada, no Brasil, por meio da publicação do artigo de Tardif e colaboradores – “Os professores face ao saber. Esboço de uma problemática de um saber docente” – na revista Teoria & Educação, em 1991. Em outra publicação, Tardif (2000) apresentou três características essenciais dos saberes docentes: estes são temporais; plurais e heterogêneos; personalizados e situados. A temporalidade dos saberes docentes Ao contrário de outras profissões, professores têm contato direto e prolongado com sua área de atuação antes mesmo de iniciar sua vida profissional. Parte do que os professores sabem sobre o que é ensinar foi aprendido enquanto ainda eram alunos, ou seja, são saberes provenientes de sua própria história de vida, sobretudo de sua história de vida escolar. Docentes passam aproximadamente dezesseis anos em uma instituição escolar antes de iniciar sua carreira, quando podem assumir estereótipos e imagens da docência difíceis de serem superados. A partir da vida pessoal e da socialização escolar, o futuro professor interioriza

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conhecimentos, crenças e valores que são atualizados e utilizados no cotidiano de sua profissão. De fato, pesquisas salientam que professores recorrem muitas vezes a lembranças de sua experiência escolar para resolver situações conflituosas em sala de aula (TARDIF, 2002). Diniz-Pereira (2008) utiliza a expressão formação ambiental para designar o período no qual o docente teve contato com diferentes professores ao longo da vida, a bagagem da experiência escolar como aluno. Porém, é nos primeiros anos de docência que se inicia a estruturação da prática profissional do docente. Esse período da carreira docente, chamada por Huberman (1992) de “exploração”, é responsável pelo início da edificação do “saber experiencial, que se transforma muito cedo em certezas profissionais, em truques do ofício, em rotinas, em modelos de gestão da classe e de transmissão da matéria” (TARDIF, 2000, p. 14). Os saberes experienciais são aqueles adquiridos e consolidados por meio da prática cotidiana da profissão docente e não provêm dos cursos de formação ou currículos, ou seja, eles provêm da relação dos docentes com o mundo, o mundo de seu trabalho: a escola, a sala de aula, os alunos e outros professores (TARDIF, 2002). A formação desenvolvida no interior das instituições de ensino superior ou, como é chamada por Diniz-Pereira (2008), a formação acadêmico-profissional4, seria encarregada de promover as primeiras eventuais mudanças na maneira do futuro professor transformar e entender suas atitudes, valores e funções relativas à docência (NONO e MIZUKAMI, 2006). No entanto, pesquisas consideraram a formação acadêmico-profissional pouco ajustada à realidade (GONÇALVES, 1992; DINIZ-PEREIRA, 2000). Esse desajuste da realidade, somado à complexidade e imprevisibilidade da prática pedagógica, a tarefa de conciliar a motivação dos alunos ao desenvolvimento do currículo, a 4

O autor prefere o uso desse termo ao invés da expressão “formação inicial”, pois, no Brasil, muitos licenciandos já atuam no magistério antes de iniciar um curso superior de formação docente.

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fragmentação do trabalho, a exigência dos pais e colegas e os diferentes ritmos de aprendizagem em sala colaboram para potencializar o choque que é característico do início da carreira docente. A ansiedade gerada por esses fatores é contrabalançada pelo entusiasmo da descoberta e o orgulho do professor por ser responsável por uma turma de alunos. Essa fase caracteriza-se pelo ajuste entre as altas expectativas e ideais sobre a profissão docente e a realidade do trabalho. É um período caracterizado pela sobrevivência e a descoberta (HUBERMAN, 1992). Como modo de superação desse desajuste, professores do ensino primário entrevistados por Gonçalves (1992) “enfatizaram a necessidade de formação contínua, como meio necessário a um desenvolvimento harmonioso das suas carreiras, privilegiando a aprendizagem com os colegas e as iniciativas de grupos de professores” (p. 167). A formação contínua ao qual Gonçalves se refere é aquela desenvolvida ao longo da carreira docente, podendo ser realizada de diversas maneiras. A necessidade e importância da formação contínua para a profissão docente é um dos aspectos da temporalidade dos saberes docentes, já que, segundo Tardif (2002), estes são desenvolvidos e utilizados ao longo de toda a carreira. Para Bernardo (2004), a formação contínua é necessária para diminuir as lacunas da formação inicial, mas também “por ser a escola um espaço privilegiado de formação e de socialização entre os professores, onde se atualizam e se desenvolvem saberes e conhecimentos docentes e se realizam trocas de experiências entre pares” (2004, p. 2). Durante a coleta de dados da pesquisa “Saberes docentes e estratégias de ensino: As trocas entre Professoras do Ensino Fundamental”, as docentes ressaltaram o que haviam aprendido com outras professoras: Eu acho que é você buscar aquela criança que tem essa habilidade mais desenvolvida com relação aquilo que você está trabalhando, aprendi isso com a Márcia.

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Agora isso é uma coisa que você só vai saber com a experiência, é uma coisa que eu aprendi com o pouco tempo que eu estou aqui no CP, com a Taíssa principalmente, de colocar com franqueza para a criança que elas são diferentes mesmo (Professoras Taíssa e Maria em SILVA, 2009, p. 27).

Nono e Mizukami (2006) constataram que as professoras entrevistadas por elas também reconheciam que a formação docente não se encerrava no curso de formação inicial, mas deveria acontecer de maneira contínua durante a carreira docente na troca de experiências com alunos e professores colegas. Para tanto, as professoras defenderam a criação de espaços coletivos nas escolas para as trocas. Como uma das professoras afirmou: Penso que a escola é o espaço principal para a formação do professor. É nela que as discussões sobre a própria realidade aparecem e são refletidas para que haja mudança de comportamentos e atitudes. Acho importantíssimo ter uma equipe unida onde pode-se trocar idéias e opiniões, aprendendo com quem tem mais experiência. Daí é que se dá a formação contínua do educador (Daniela em NONO e MIZUKAMI, 2006, p. 10).

Existem aquelas iniciativas clássicas de formação contínua, designadas como “reciclagem” (sic): cursos de atualização, capacitação ou treinamento oferecidos por agentes exteriores à escola. Outro tipo de formação contínua é aquela que ocorre no interior da escola de maneira formal ou informal. As iniciativas formais de preparação contínua são aquelas que acontecem no interior das escolas, em momentos pré-estabelecidos para esse objetivo: reuniões, seminários, grupos de estudo. Em uma escola fundamental pública, do município do Rio de Janeiro, pesquisada por Bernardo (2004), sobressaíram os grupos de estudo, denominados “Centros de Estudo” que, na percepção dos professores, constituíram-se como o principal espaço de formação contínua propiciando momentos privilegiados de trocas de experiências. Segundo a pesquisadora, a formação de professores implica na busca pela escola de maneiras institucionais de oferta de espaços e tempos para os docentes dentro da própria

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escola em que fossem incentivadas a reflexão, interação e socialização dos professores, considerando suas necessidades e problemas do cotidiano. Salgueiro (1998, p. 265) afirma que, na escola que pesquisou, los docentes comparten saberes con sus compañeros, intercambian información sobre el alumnado, dividen su saber práctico-teórico. (...) Este estudio apunta, por lo tanto, a la importancia de garantizar un espacio para la reflexión cuando se piensa en proyectos de formación del profesorado. También resalta que este trabajo de reflexión no se da de manera espontánea.

Essa também foi uma das conclusões da pesquisa conhecida como “Profknow” – “Conhecimento Profissional em Educação e Saúde: reestruturando trabalho e vida entre o Estado e os cidadãos da Europa”, realizada por pesquisadores de sete países europeus: Irlanda, Inglaterra, Suécia, Grécia, Finlândia, Espanha e Portugal (MULLER et. al, 2007). O objetivo principal dessa investigação foi conhecer as experiências pessoais e profissionais sobre o trabalho de professores. Para atingir esses objetivos, os pesquisadores, por meio de entrevistas, analisaram as histórias de vida e acompanharam a prática de vinte e dois professores dos anos iniciais do ensino fundamental, em sete países europeus. A maioria dos professores entrevistados na pesquisa Profknow declarou-se insatisfeita com a formação inicial. Os docentes entrevistados afirmaram que aprenderam a ensinar na prática, com os alunos e em cooperação com colegas. Apesar da importância constatada de aprender no trabalho, poucos canais catalisadores e de suporte desse processo foram encontrados. Vários casos demonstraram que trabalhar na escola é um modo privilegiado de aprender para muitos professores. Concluiu-se que é importante fomentar estruturas que permitam que os professores aprendam no trabalho. Um exemplo são as estruturas e espaços formais de cooperação entre os pares existentes na organização escolar da Irlanda. Desse modo, a cooperação entre colegas é assegurada e garante não somente um processo coletivo de aprendizagem, mas

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também a troca de saberes dos professores mais experientes com os iniciantes. As trocas de experiências também foram analisadas por Azevedo (2003) em uma atividade formal de formação de professores organizada pelo Centro de Aperfeiçoamento de Profissionais da Educação (CAPE), da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, denominada “Rede de Trocas”. Analisaram-se os significados atribuídos à atividade “Rede de Trocas” pelos sujeitos que dela participaram e se a atividade era realmente proveitosa como parecia ser. As professoras participantes da “Rede de Trocas” perceberam a atividade como uma ação que as valorizou, dando centralidade às práticas docentes bem-sucedidas e possibilitando o diálogo sobre aspectos como currículo, gestão de tempos e espaços escolares, a reflexão sobre suas práticas e a discussão de problemas comuns. Entretanto, Azevedo alerta que os contatos entre o CAPE e as escolas eram realizados com as diretoras das escolas e eram estas que apresentavam os relatos, situando as professoras como coadjuvantes da apresentação, fato este que “pode ter sugerido que as pessoas que ocupam funções de gestão estão mais aptas a falarem sobre o trabalho desenvolvido nas escolas. Idéia que contraria os objetivos dessa atividade” (2003, p. 211). Esta, entre outras ponderações, foi realizada pela pesquisadora sobre aspectos dificultadores para a obtenção dos objetivos propostos pela atividade. Os momentos informais de formação contínua são aqueles que ocorrem nos “encontros no corredor, no pátio, na cantina; em momentos de intervalo na sala dos professores; antes e após as reuniões, debates, palestras, seminários; durante as festas e comemorações, nas conversas ao telefone, no trajeto das caronas, nas conversas em ‘chats’, listas de discussões e fóruns virtuais” (DAMASCENO, 2002, p. 26). Nunes (2004) verificou que as interações entre as professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental da escola que pesquisou aconteciam de maneira significativa e constante. As professoras trocavam informações

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relacionadas aos conteúdos, metodologias, avaliação etc. Essas interações ocorriam em momentos livres como na hora da entrada, no café ou mesmo durante o horário de aula. Constatou-se que, durante o horário de recreio dos alunos, as trocas entre as professoras se intensificavam: tiravam dúvidas, solicitavam sugestões relacionadas aos conteúdos que desenvolviam ou ainda discutiam questões gerais como problemas com alunos, desânimo com o rendimento da turma ou assuntos relacionados à profissão. Segundo Daniela, professora participante da pesquisa de Nunes (2004), essa busca entre as colegas é recorrente na escola independentemente do tempo ou do espaço: “Aqui a gente sempre procura uma ajuda. Sempre uma está procurando a outra (...) Ou é na hora do recreio, ou é no intervalo, ou liga ou vai na casa da pessoa, e uma está sempre ajudando a outra. Aqui é assim, se tem essa liberdade” (NUNES, 2004, p. 94). Apesar das pesquisas supracitadas afirmarem que a troca de saberes entre docentes é uma importante ferramenta de formação docente, Damasceno (2002), por intermédio da análise do processo de trocas entre professores, em meio a conflitos e situações no cotidiano escolar, identifica “a existência de diversos fatores de natureza pessoal, profissional, cultural e organizacional que inibem a troca de experiências no interior da escola” (2003, p. 8). Para Salgueiro (1998), “sólo a través de una reevaluación crítica de la práctica docente, realizada de forma continua, colectiva y a través del intercambio constante de conocimientos y prácticas el profesorado puede formarse y perfeccionarse en su trabajo” (1998, p. 264). Todavia, infelizmente, a formação contínua que conhecemos configura-se, na maioria das vezes, por ações isoladas, pontuais e de caráter eventual. Trata-se, na verdade, de algo muito mais descontínuo do que contínuo! Em contraposição a essa descontinuidade, discute-se hoje, no Brasil, a ideia do desenvolvimento profissional (termo utilizado em países como a Inglaterra e os Estados Unidos desde os anos 1980) dos educadores como um processo de formação vinculado ao

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trabalho que desenvolvem (DINIZ-PEREIRA, 2010; 2014). Sendo assim, não podemos nos esquecer do princípio da indissociabilidade entre a formação e as condições adequadas para a atuação docente – salários dignos, maior autonomia profissional, dedicação exclusiva a uma escola, pelo menos um terço da jornada reservada ao planejamento, reflexão e sistematização da prática, estudos individuais e coletivos e salas de aula com um número reduzido de alunos. Dessa maneira, por um lado, uma vez garantidas as circunstâncias necessárias para uma boa realização do trabalho, concebe-se a escola como um locus privilegiado para o desenvolvimento profissional dos docentes. Ou seja, ela é um espaço de construção coletiva de saberes e práticas. A participação das pessoas nesse processo é considerada, por si só, algo extremamente formativo. Tem-se, então, a ideia da escola como um projeto permanentemente em construção e os sujeitos que dele participam se formam coletivamente nesse contexto. É importante ressaltar que a pesquisa-ação – caracterizada pela investigação sobre o currículo, a sala de aula, o ensino e a aprendizagem para resolver problemas advindos da prática pedagógica – é uma atividade fulcral nesse modelo (ver, por exemplo, DINIZPEREIRA, 2002; DINIZ-PEREIRA e ZEICHNER, 2002; ZEICHNER e DINIZ-PEREIRA, 2005). Por outro lado, a literatura especializada é insistente em alertar que a ausência de condições adequadas para o magistério impede o fortalecimento da escola como locus privilegiado de desenvolvimento profissional. A precarização do espaço educativo, a intensificação do trabalho e o maior controle sobre os docentes levam à deformação gradativa desses profissionais desde quando eles ingressam nas redes de ensino (ARROYO, 1985). Procuramos evidenciar, então, nesta parte do capítulo, características pertinentes à temporalidade da carreira docente: a formação ambiental, a formação acadêmico-profissional, a fase de

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exploração no início da carreira e, principalmente, desenvolvimento profissional dos professores.

o

A pluralidade e heterogeneidade dos saberes docentes Para Tardif (2000), os saberes docentes são ecléticos e sincréticos. O docente necessita recorrer a diversas teorias, concepções e técnicas ao elaborar e utilizar os seus saberes. Esse aspecto é justificado pelo fato que professores trabalham para atingir diversos objetivos simultaneamente: “objetivos emocionais ligados à motivação dos alunos, objetivos sociais ligados à disciplina e à gestão da turma, objetivos cognitivos ligados à aprendizagem da matéria ensinada, objetivos coletivos ligados ao projeto educacional da escola” (TARDIF, 2000, p. 15). Os saberes docentes tornam-se significativos e úteis na ação e são plurais e heterogêneos, pois são provenientes da formação escolar anterior, da formação profissional para o magistério, dos programas e livros didáticos usados no trabalho e de sua própria experiência na profissão, na sala de aula e na escola (TARDIF, 2002). Shulman (1986) realiza outra classificação para os saberes docentes, importante por seus apontamentos sobre a maneira como estes se manifestam. Seus estudos introduzem no campo de pesquisa educacional o trabalho conhecido como knowledge base; um corpo de compreensões, conhecimentos, habilidades e disposições de que um professor necessita para atuar em uma dada situação de ensino. Graças às suas investigações, a temática dos saberes dos docentes na pesquisa educacional ganhou desataque, potencializada pelo retorno do foco ao professor como sujeito das ações. No artigo “Those who understand: The Knowledge Growth in Teaching”, publicado em 1986, Shulman distingue três categorias de conhecimentos presentes no desenvolvimento cognitivo do professor. São eles: “Subject matter content knowledge” – “conhecimento sobre a matéria a ser ensinada”; “Pedagogical content knowledge” – “conhecimento pedagógico da matéria a ser ensinada”

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e “Curricular Knowledge” – “conhecimento curricular”. Shulman explicitou e detalhou essas três formas de conhecimento, mas reconheceu a existência de outras: Existem outras categorias importantes de conhecimento, como por exemplo: as diferenças individuais entre os alunos, os métodos de organização e gestão da sala de aula, a História e Filosofia da Educação e a administração escolar para citar apenas algumas. Cada uma dessas categorias poderão ser subdivididas e exprimíveis por meio das formas de conhecimento. (SHULMAN, 1986, p. 10) [Tradução nossa].

No ano seguinte à publicação de seu primeiro artigo sobre o tema, Shulman disponibilizou para a comunidade acadêmica um segundo texto – Knowledge and Teaching: Foundations of the New Reform – em que o autor amplia para sete os conhecimentos “de base” necessários para o exercício da docência. São eles: o “conhecimento da matéria a ser ensinada”; o “conhecimento pedagógico”; o “conhecimento pedagógico da matéria a ser ensinada”; o “conhecimento curricular”; o “conhecimento das características, aspectos cognitivos e motivação dos estudantes”; o “conhecimento do contexto educativo”; e o “conhecimento das finalidades educativas, os valores educativos e os objetivos” (SHULMAN, 1987). Essas formas de conhecimento se manifestariam de três maneiras: por meio do conhecimento proposicional, do conhecimento de caso e do conhecimento estratégico. O conhecimento proposicional, de caráter assertivo, se manifesta por intermédio dos princípios, das máximas e normas. Os princípios seriam fatos empiricamente ou filosoficamente discutidos e, em Silva (2009), foram representados pelos resultados de pesquisas empíricas que atuaram como um contraponto aos dados obtidos na pesquisa. As máximas derivam da experiência prática, são “idéias que nunca foram confirmadas por pesquisa e seriam em princípio difíceis de demonstração [...] representam a sabedoria acumulada da prática e em muitos casos são guias tão importantes para a prática como a teoria ou princípios empíricos” (1986, p. 11). As máximas são conselhos, proposições sobre e para a prática

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pedagógica e podem ser identificadas nas falas das professoras participantes da pesquisa (SILVA, 2009). Por fim, Shulman (1986) define a terceira manifestação do conhecimento proposicional, as normas, que são valores, o compromisso dos professores com a justiça, como, por exemplo, a preocupação dos professores em não humilhar um aluno diante dos seus pares. Essa manifestação do conhecimento dos professores também transparece nas falas das professoras em Silva (2009): Quando eu olho para a aquela criança vejo que ela está se sentindo réu em meio àquela discussão... Isso me incomoda porque o coletivo não é para passar uma ideia de julgamento para a criança, mas para fazer ela e todos os outros refletirem sobre aquela situação. Então é o cuidado no tratamento da agressividade. Em certas situações eu prefiro não evidenciar, prefiro chamar a criança, conversar com ela e trabalhar aquele valor em um outro momento (Professora Lúcia em SILVA, 2009, p. 32).

A segunda manifestação dos saberes docentes, segundo Shulman (1986), seria o conhecimento de caso, “conhecimento de eventos específicos, bem-documentados e ricamente descritos” (p. 11), relacionados ao ensino e à aprendizagem, que complementam o conhecimento proposicional. Segundo o pesquisador, o conhecimento proposicional aliado ao estudo de casos contribui para o desenvolvimento e a formação do conhecimento estratégico. O conhecimento estratégico entra em ação quando professores confrontam situações e problemas teóricos, práticos ou de natureza moral. Shulman (1986) associa o conhecimento estratégico à capacidade de julgar dos docentes. Percebemos o conhecimento estratégico em ação nas discussões realizadas pelas professoras do Núcleo Básico do Centro Pedagógico (CP) da UFMG durante as reuniões para coleta de dados para a pesquisa (SILVA, 2009). Os saberes docentes são personalizados e situados Além de serem temporais, plurais e heterogêneos, os saberes docentes são personalizados, ou seja, é difícil dissociar os saberes

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das pessoas e sua experiência. Eles também são situados, construídos e utilizados em função de uma situação de trabalho particular e nela ganham sentido. As situações de trabalho na escola realizam-se entre seres humanos, crianças e adultos que negociam e juntos constroem o significado de seu trabalho. A seguinte fala da professora Laura, em Silva (2009), demonstra a construção de um saber experiencial em uma situação específica de trabalho: a construção de uma rotina de trabalho com seus alunos. Em seu relato, transparecem os diferentes segmentos presentes na construção de seu saber, especialmente as falas das crianças da sala. A prática de construir uma rotina de trabalho com a turma foi apresentada à Laura por uma colega de trabalho e, a partir dessa partilha, ela realiza diversas tentativas com as crianças do primeiro ano do primeiro ciclo. Ao final de um ano de trabalho, a professora iniciante afirma que atingiu uma forma satisfatória de trabalhar essa questão com a turma, conforme constatamos em sua fala: Em relação a essa coisa da rotina, ano passado o problema da rotina era comigo, como professora, eu não sabia... Eu custei a perceber a necessidade da rotina. Eu pensava: “Por que eu estou fazendo isso”? Eu não conseguia controlar a turma. Enquanto eu escrevia a rotina no quadro os meninos estavam bagunçando... Eu comecei a fazer a rotina, de anotar a chegada, a organização da sala, colocar as disciplinas em ordem, Matemática, Português, mas eu ia pedindo as crianças para me ajudarem: “Fulano fala para mim as letras que eu uso para escrever a palavra chegada”. Foi ficando um pouco melhor. Depois as meninas pediram para escrever a rotina e passaram a escrever a rotina, os colegas ajudavam, elas escreviam e depois a gente conferia para ver se estava tudo certo. Mas eu ainda não estava satisfeita com aquela rotina. Eu comecei a fazer o seguinte, eu colocava... “Ah, Português! O que nós vamos fazer agora em Português”? Vamos fazer isso, ótimo. Qual a próxima atividade? Não estava muito legal. Eu fui mexendo na rotina o ano todo. O problema com a rotina não era os meninos, era comigo. Eu não conseguia entender. Eu peguei um texto aqui em algum lugar, levei para mim, mas eu vou devolver, li aquilo lá sobre rotina e tal... E fiquei fazendo várias mudanças. Esse ano eu faço o seguinte: eu coloco lá a data, o dia da semana, chegada, organização da sala, Português. Debaixo de Português, eu coloco tudo que eu pretendo fazer. Aí o José [aluno] deu a idéia de cada coisa que a gente vai conseguindo terminar a gente coloca “ok”

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do lado. “Em Português fizemos tudo?” “Fizemos”. “O que nós não fizemos?” “Vai ficar para a próxima aula” (...) Está funcionando bacana lá na sala. Eu escrevo, mas a sala já não fica desorganizada, porque eles têm interesse em saber o que nós vamos fazer durante a aula. Então a rotina pelo menos para mim, já consegui absorver isso, essa necessidade e a praticidade de você ter a rotina (SILVA, 2009, p. 34).

Ao longo do ano, Laura criou diversas estratégias5 para que, tanto para ela quanto para as crianças, houvesse um sentido naquela organização do tempo escolar: chamou alunos para soletrarem as letras das palavras, convidou alunas a escreverem a rotina no quadro, acolheu a sugestão de outro aluno etc. A professora também relatou que leu um texto que a ajudou a pensar no uso da rotina em sala de aula. Notamos, nesse relato, a reflexão da professora sobre a própria prática, a atenção às falas das crianças, seu movimento de tentativa e erro. Segundo Tardif e colaboradores, É na prática do trabalho que o professor, além de desenvolver certezas “experienciais”, avalia os outros saberes retraduzindo-os e incorporando-os à sua prática, em categorias do seu próprio discurso. A experiência assim “filtra e seleciona os outros saberes; e por isso mesmo ela permite a(ao) s professor(a) s retomar seus saberes retraduzidos e submetidos ao processo de validação constituído pela prática cotidiana (Tardif et al apud NUNES, 2004 p. 51)

De acordo com Gauthier e colaboradores (2006), os saberes docentes dependem das condições históricas e sociais nas quais os professores exercem sua profissão, pois estão ligados às condições concretas que inspiram os professores a produzirem soluções para os problemas que encontram. Com essa constatação, o pesquisador reafirma a realidade complexa da sala de aula, mas ele assevera que 5

O termo “estratégia”, importante para a pesquisa “Saberes docentes e estratégias de ensino: As trocas entre Professoras do Ensino Fundamental”, não será aprofundado neste capítulo. Segundo Morin (2000, p. 87), a estratégia “elabora um cenário de ação que examina as certezas e as incertezas da situação, as probabilidades, as improbabilidades. (...) Para tudo que se efetua em ambiente instável e incerto, impõe-se a estratégia”.

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existe uma estrutura estável que possibilita estudar a sala de aula de maneira rigorosa. Segundo o pesquisador, a sala de aula mantém uma estrutura estável desde o século XVII: um professor encarregado de ensinar certos conteúdos para um número de alunos, em um determinado período de tempo. Consequentemente, o ensino permite que estudos científicos identifiquem regras de funcionamento e, em certa medida, generalizem os resultados sobre os diversos aspectos da sala de aula. Essa possibilidade de generalização é ponderada pelas questões que emergiram da pesquisa Profknow (2007): o desafio de se trabalhar com uma população estudantil cada vez mais heterogênea, a indisciplina dos alunos e, por último, a perda de prestígio e respeito da sociedade pela profissão docente. As duas primeiras questões coincidem com as encontradas em Silva (2009). Os resultados dessas pesquisas oferecem indicações preciosas sobre os diversos aspectos da sala de aula; uma gama de informações úteis sobre a preparação e a apresentação do ensino e a gestão dos comportamentos; o que constitui um excelente instrumento reflexivo para o professor iniciante e experiente. Dado a complexidade da sala de aula e ao mesmo tempo a possibilidade de generalização e sistematização que ela comporta, Gauthier e colaboradores (2006) recomendam prudência nos usos de resultados de pesquisa sobre o ensino; o profissional é aquele que ao estar diante de uma situação complexa, munido de saberes “deve deliberar, julgar e decidir com relação à ação a ser adotada, ao gesto a ser feito ou à palavra a ser pronunciada antes, durante e após o ato pedagógico” (2006, p. 331). A troca de saberes Os professores utilizam os saberes da experiência para responder à complexidade e à singularidade dos desafios que se apresentam durante a prática pedagógica e para os quais não se tem uma resposta única. Esses saberes são elaborados e

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acumulados por meio da prática e pelas trocas de saberes entre os pares (professores em exercício), como afirma Tardif (2002): É através das relações com os pares e, portanto através do confronto entre os saberes produzidos pela experiência coletiva dos professores, que os saberes experienciais adquirem uma certa objetividade: as certezas subjetivas devem ser, então sistematizadas a fim de se transformarem num discurso de experiência capaz de informar ou de formar outros docentes e de fornecer uma resposta a seus problemas (2002, p. 32).

O trabalho de Damasceno (2002) nos ajuda a esclarecer o que estamos chamando de “trocas”, conceito central para a pesquisa empírica aqui mencionada (SILVA, 2009). Segundo a pesquisadora, a troca de saberes da experiência pode ser melhor definida pela palavra “partilha”, pois nem sempre a troca constitui-se como um processo de mão dupla, no qual os sujeitos oferecem e recebem ajuda e conselhos. Uma situação no qual essa partilha ocorreu foi relatada pela professora Maria: “Sara não consigo!” “Sara, os meninos não escutam nada lá no pátio!” E ela falava: “Fala na sala.” Eu falava tudo na sala, colocava as regras e se fizessem muita bagunça voltaríamos para a sala. Este ano eu consegui sair duas vezes com o segundo ano vermelho para fazer atividades do lado de fora. Eles deram conta de sentar, ouvir, jogar, voltar... Aprendi com a Sara (SILVA, 2009, p. 36).

Entender as trocas de saberes enquanto uma partilha nos permite pensar em uma “ação de dividir com o outro aqueles saberes do qual é detentor, mesmo que o outro não tenha nada a oferecer em troca” (Damasceno, 2002, p. 25). Nos relatos das professoras Arlene, Lara, Tatiana e Nahir (NUNES, 2004), não havia constrangimento em buscar ajuda entre si, as professoras assumiam a importância da troca entre as colegas principalmente quando tinham dúvidas ou dificuldades. Arlene ressaltou o quanto se aprende nesse processo de socialização, ou seja, “‘assistindo outros colegas, pegando idéia com outros colegas’ ou até mesmo confirmando uma inovação que queria fazer em sala

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de aula” (NUNES, 2004, p. 92). Nahir também não demonstrou acanhamento para pedir ajuda às colegas. No início da carreira, Nahir assistia, por iniciativa própria, aulas de uma professora que trabalhava com o método de alfabetização a ser utilizado. Nunes (2004) reconhece que é nessa busca de forma tutoral que as professoras encontram maneiras de avançar naquilo que não sabem e construir novos conhecimentos. Tardif et al. (1991) diriam que, nas situações acima descritas, as professoras tomam “consciência de seus próprios saberes experienciais, uma vez que devem transmiti-los, logo objetivá-los em parte, seja para si mesmos, seja para seus colegas.” (p. 230). A pesquisa de Nunes (2004) revela o quanto a socialização entre as professoras era favorecida pelas condições de trabalho da escola em que atuavam, pois esta fornecia apoio ao trabalho que desenvolviam. A pesquisadora verificou que parte da prática desenvolvida pelas professoras em termos de estilos e estratégias em sala de aula era influenciada pelas orientações das colegas. Para Hargreaves (1998), as culturas dos professores, as suas relações com os seus colegas, figuram entre os aspectos mais significativos da sua vida e do seu trabalho. Fornecem um contexto vital para o desenvolvimento do professor e para a forma como este ensina. O que acontece no interior de uma sala de aula não pode ser divorciado das relações que são forjadas no seu exterior (1998, p. 186).

Hargreaves (1998) identifica duas situações bem distintas, levando em conta o tipo de controle e intervenção administrativa exercidas: a cultura de colaboração e a colegialidade artificial. Para esse autor, a cultura de colaboração pode se revelar por meio de “palavras e olhares de passagem, elogios e agradecimentos, ofertas para troca de turmas em ocasiões difíceis, sugestões a respeito de novas idéias, discussões informais sobre novas unidades de trabalho, partilha de problemas ou encontros conjuntos com os pais” (1998, p. 216). Nunes (2004) constatou que havia essa cultura de colaboração no espaço escolar por ela pesquisado.

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Não foi possível constatarmos se há essa cultura de colaboração ou colegialidade artificial no Núcleo Básico do CP, pois não acompanhamos o dia-a-dia das professoras (SILVA, 2009). Pudemos acompanhar a participação das professoras durante as reuniões de pesquisa e constatamos que tanto professoras iniciantes quanto experientes demonstraram interesse nas trocas, por vezes anotando o que uma professora relatava, com exclamações e meneios de cabeça. O fragmento de diálogo a seguir, também coletado em Silva (2009), demonstra que embora exista uma participação acentuada das professoras experientes, não há indícios que existe uma professora referência que subsidia a prática de outros. Ao contrário, o fragmento demonstra a existência de uma rede de trocas e não uma via de mão única: - A Natália relatou que um menino pediu para ir ao banheiro e ela deixou. Logo em seguida o Alex pediu para ir ao banheiro. Ela respondeu que ele não poderia naquele momento, precisaria esperar o colega que estava no banheiro retornar. Ele jogou a tesoura nela. Ela perguntou: “Por que você jogou a tesoura?” Ele respondeu: “Era para te acertar”. A professora sentou, a turma estava em atividade, não tirou a atenção das crianças e conversou com ele separadamente. “Por que você fez aquilo”? E ele voltou a repetir: “Porque você disse que eu não podia ir ao banheiro”. Ela explicou para ele e ele continuou insistindo: “Por que eu não posso ir”? Então o papel de autoridade para esse menino não existe. Ele faz as regras dele. Ela tem tentado... (Ludmila) - Para os meninos, juntamente com ela, existe alguma regra de uso do banheiro explícito? Eles têm isso claro? (Taíssa) - Sim. Ela me disse. Ele sabe disso. Ele sabe a regra. (Ludmila) - Quando você pega uma situação dessa, estou tentando olhar que intervenção a gente pode fazer para esse menino que tem essa dificuldade de ouvir isso, entender que existe um funcionamento. Eu fico pensando em uma coisa que Fabiana trocou comigo que eu achei muito legal, que ainda não consegui efetivar, mas que já conversei com os meninos. O uso do banheiro. Ela estabeleceu dois cones. Um cone para os meninos e outro para as meninas. Quando um menino vai ao banheiro ele leva o cone. Se ele vai ao banheiro ele leva o cone. Se o cone não estiver lá ele não poderá ir porque ele

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tem que esperar o cone estar ali, liberado. Talvez para ajudar essa criança seria interessante buscar regras mais explícitas e concretas para eles poderem se pautar nisso. Talvez o cone, no caso dessa turma, pudesse... Talvez eles estejam precisando dessa coisa explícita. (Taíssa em SILVA, 2009, p. 38)

Algumas inferências são possíveis sobre as trocas entre as docentes a partir desse excerto. O problema relatado não ocorreu na sala da professora que o expôs, isso indica que a professora Natália buscou a ajuda da professora Ludmila que agora o coloca para o grupo, demonstrando o interesse que as professoras têm em discutirem uma questão mesmo quando esta não está diretamente relacionada à sua sala de aula. A sugestão da professora Taíssa é referendada por uma troca ocorrida com outra professora, Fabiana, ocorrido em outro momento, quando esta sugere o uso de cones para gerir o uso do banheiro na sala de aula. Tanto Ludmila, Fabiana e Taíssa são professoras experientes, o que nos permite deduzir que a troca de saberes não termina com a fase de exploração, ela persiste durante toda a carreira docente. Vale ressaltar que Taíssa está em seu vigésimo quarto ano de docência e interessa-se e quer colocar em prática o saber partilhado pela professora Fabiana. Uma possível explicação para esse fato pode ser a afirmação de professoras, nas entrevistas individuais, que a docência nos anos iniciais do ensino fundamental é caracterizada pelos desafios que surgem a cada novo ano, novo grupo de alunos, novos projetos etc. Cada ano para mim é um ano novo. As experiências que eu vivo me possibilitam escolher: “Vou por aqui? Não, vou por aqui”. Mas sempre tem um desafio novo, sempre tem algo que me desestabiliza e me faz buscar novas parcerias. Cada ano é único (...) Cada ano, cada grupo, as relações, a forma como a gente lida com os conflitos... É difícil dar aula. Ser professor é muito mais do que dar o conteúdo. (Professoras Taíssa e Tatiana em SILVA, 2009, p. 39).

Tal fato parece corroborar com a afirmação de Gauthier e colaboradores: “Dia após dia o professor deve se adaptar a uma

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situação sempre nova, negociar com a complexidade do real, encarar novos desafios e situações inéditas” (2006, p. 360), ou ainda, como os dizeres de Tardif e Gauthier (2001): O julgamento do professor não tem a permanência e a estabilidade de julgamentos científicos, pois seus domínios de aplicação modificam-se, os grupos e os alunos variam, etc.; consequentemente, eles têm de se adaptar a situações novas, esclarecer circunstâncias desconhecidas que se apresentam à prática pedagógica, etc. Nesse sentido, o professor não apenas segue regras, mas as cria, modifica-as, adapta-as,etc. (p. 203)

As docentes do Núcleo Básico do CP/UFMG manifestaram a importância de terem momentos na prática cotidiana para essas trocas, atestado nas seguintes falas: - O que eu estou achando bacana, Mariana, é o espaço que a sua pesquisa nos permite de interlocução tão desejada nas questões que a gente acha importante: a questão do conteúdo, da organização, do caderno, da agressividade... São questões que mobilizam a gente e precisamos desse espaço de troca. Eu acho que seu trabalho está possibilitando essa troca. - Continua a pesquisa ad aeternum! (Professoras Fabiana e Ludmila em SILVA, 2009, p. 39).

As trocas entre professores são elementos importantes para o desenvolvimento profissional de docentes. Constatamos que as reuniões de coleta de dados constituíram momentos ricos de trocas entre as professoras do Núcleo Básico, saberes foram objetivados, possibilitando que estes fossem pesquisados (SILVA, 2009). A sistematização dos saberes docentes Após explicitarmos as características dos saberes docentes discutiremos como esses saberes podem ser sistematizados em pesquisas do campo educacional. Algumas conseqüências decorrem de compreendermos o saber docente baseado na racionalidade de natureza argumentativa (GAUTHIER et al., 2006): 1) A racionalidade

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é definida como uma capacidade própria a cada agente, à sua faculdade de fornecer motivos, dar razões ou justificativas para seu discurso ou ação; 2) A capacidade de reflexividade de cada agente depende de sua capacidade de elaborar regras e procedimentos para orientar sua ação, fazer modificações e adaptações de acordo com as contingências da situação e fornecer razões para tanto. Essa capacidade de reflexividade pode ser apreendida, por meio da fala da professora Fabiana: Adorei essa professora aqui, vou usar essa estratégia! “Quem tem seis anos, sabe caminhar educadamente”! Adorei. Vou copiar mesmo! Agora, eu acho que a fala da professora C que afirma que “no primeiro ano é preciso explicitar até mesmo a hora de abrir o caderno, sentar na cadeira”, eu acho que não é só no primeiro ano não (SILVA, 2009, p. 40).

Fabiana mostrou-se animada ao conhecer uma nova proposta para organizar o deslocamento de crianças de um espaço para outro, afirmou que iria colocar essa ideia em prática. Já a segunda afirmação, sobre a necessidade de explicitar direcionamentos para crianças do primeiro ano ela concordou, mas completou: “acho que não é só no primeiro ano não”. Fabiana endossou a intervenção proposta, mas a completou; modificando-a e adequando-a à sua maneira. “Saber algo significa que el sujeto particular se apropia de los contenidos de su medio, incorpora en ellos su propia experiencia, consiguiendo así llevar a cabo los heterogéneos tipos de acciones cotidianas” (SALGUEIRO, 1998, p. 32). Durante as reuniões do grupo focal, as professoras puderam retornar a um problema real da prática pedagógica, o que propiciou uma reflexão acerca da prática. O conceito de “prática reflexiva” é sustentado pelas discussões de Dewey (1959) e Schön (1997). Para Dewey, o pensamento reflexivo origina-se no confronto com situações problemáticas e sua finalidade é prover o professor de meios para enfrentar essas situações. A reflexão oportuniza voltar atrás e rever acontecimentos e práticas e é necessária para criar condições de análise e crítica entre professores

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e possibilitar novos modos de trabalho coletivo dentro das escolas. Schön (1997) argumenta que a conversa reflexiva com outros participantes ou colegas é o centro da reflexão sobre a prática e que essas conversas podem colaborar e contribuir para tomada de decisões, compreensão e troca de conhecimento e experiências. Zeichner (2008) problematiza a inserção da prática reflexiva na formação de professores e, entre outros aspectos, salienta que existe pouca ênfase sobre a reflexão que acontece em comunidades de professores que se apóiam mutuamente e sustentam o crescimento do outro. O pesquisador salienta que ser desafiado e apoiado por meio da interação social é importante para o esclarecimento de crenças e ideais. Para Freire (2002), ensinar exige refletir criticamente sobre a prática; é pensando criticamente sobre a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. A fala da professora Lúcia, ao final de uma das reuniões de coleta de dados da pesquisa, evidencia as constatações de Zeichner e Freire: Na educação essas ferramentas são criadas, são inventadas, às vezes ali na hora da prática. É a razão pela qual eu acho ‘super legal’ esse trabalho, porque você traz à tona ferramentas que a gente cria para lidar com essas situações e que os colegas criam. Acho que nesse ponto tem duas questões fundamentais: a criação e o compartilhar. Nós criamos, mas compartilhamos pouco. Acho que esse momento da pesquisa é isso... compartilhar! (Professora Lúcia em SILVA, 2009, p. 41).

A professora Lúcia destaca a criação e compartilhamento de saberes. Tardif e Gauthier subsidiam o próximo passo: a sistematização dos saberes. Para Tardif (2002), um dos objetivos de sistematizar os saberes da experiência é permitir que estes forneçam respostas ou pistas para as situações do dia-a-dia na escola. Para Gauthier e colaboradores (2006), outro objetivo da sistematização dos saberes da experiência é contribuir para a profissionalização do trabalho docente. “A importância das pesquisas sobre a determinação de um repertório de conhecimentos reside precisamente em revelar outros saberes

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validados pelas pesquisas e essenciais à atividade docente” (GAUTHIER et al. 2006, p. 185). São considerados saberes a serem incluídos no repertório discursos, proposições e ações cujos agentes (pesquisadores e professores) podem apresentar razões que as justifiquem. Para concretizar esse repertório, Gauthier e colaboradores (2006) ressaltam que pesquisadores precisam admitir que professores que atuam na Educação Básica possuem a capacidade de racionalizar sua prática e os professores devem aceitar que seu saber experiencial pode comportar lacunas. Salgueiro corrobora dessa afirmação: El profesorado se apropia de saberes y prácticas históricamente construidos, deriva nuevas prácticas a partir de ciertos saberes o produce nuevos saberes en torno a las prácticas. Estos saberes, que se encuentran implícitos en las prácticas cotidianas de los enseñantes, quedan ignorados e infravalorados. Por eso me parece que hacerlos evidentes, explicitar su proceso de elaboración y, se es posible, sistematizarlos sería una tarea importante en la dirección de una integración entre los cursos de formación y la realidad escolar, entre la teoría y la práctica (1998, p. 19).

Verloop (2001) e Hiebert e colaboradores (2002) também defendem que o conhecimento prático seja público, representado de maneira a ser acumulado, compartilhado com outros membros da profissão e continuamente conferido e melhorado. Verloop (2001) afirma que as “rodas” de ensinar precisam ser reinventadas a cada nova geração, pois o conhecimento dos professores experientes nunca é totalmente comunicado aos professores iniciantes. Segundo esse autor, estabelecer uma base de saberes para o ensino não é somente uma condição para melhorar o status da carreira docente enquanto profissão, mas também é válido para colaborar na formação de novos professores. Gauthier e colaboradores (2006) ressaltam, com pertinência, que os saberes docentes incluídos no repertório expressarão fatos (declarativos, denotativos) ou indicarão ações a serem realizadas (prescritivos, procedimentais), por serem em essência relativos ao

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ensino. A natureza normativa desses saberes gera por si só uma desconfiança, primeiro porque em pesquisa científica descrevemos, analisamos, postulamos, mas raramente recomendamos. O registro e análise desses saberes podem se tornar futuramente “senhas” para o ensino, podendo ser utilizados ou não. Refutamos, no entanto, a ideia de que os saberes poderão tornar-se “leis imutáveis do ensino” (idem, p. 189). Como Salgueiro (1998) entendemos que “hay que tener cuidado para no transformar estas situaciones de enseñanza en modelos que sean adoptados” (1998, p. 261). Outros importantes interlocutores para pesquisas sobre saberes docentes são os resultados de pesquisas empíricas reorganizados no trabalho de Gauthier et al. (2006). Os resultados dos trabalhos de Salgueiro (1998), Vieira (2002), Borges (2004), Nunes (2004) e Zibetti (2005) também participam da construção e elaboração de um repertório de saberes docentes para o ensino. Essas pesquisadoras acompanharam e analisaram a produção de saberes docentes no interior da escola e os resultados dessas pesquisas são importantes interlocutores para pesquisas como a relatada aqui (SILVA, 2009). Salgueiro (1998), por meio da realização de uma pesquisa etnográfica, buscou reconstruir o processo de constituição e apropriação dos saberes gerados na prática e, para tal, acompanhou a sala de aula de uma professora, em uma escola pública espanhola, durante um ano escolar. A pesquisadora conclui que o fazer cotidiano docente pode constituir-se com um suporte significativo para os currículos de formação dos novos professores, pois os saberes docentes são, em geral, ignorados e desvalorizados. Ela sugere torná-los evidentes, explicitar seu processo de elaboração e sistematizá-los. A partir da observação diária e de entrevistas com os professores dos anos inicias do Ensino Fundamental em uma Escola Estadual Pública da cidade de Mariana, Minas Gerais, Nunes (2004) buscou revelar os saberes produzidos e praticados pelas professoras em seu cotidiano. A pesquisadora afirma que é

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na prática cotidiana que o saber da experiência se manifesta. Este saber é influenciado pelo clima institucional favorável e pelas contradições existentes no âmbito escolar. Zibetti (2005), ao utilizar também uma abordagem etnográfica, investigou os saberes presentes na atividade docente durante a fase da alfabetização. A pesquisadora estudou os processos de apropriação/objetivação e criação de saberes na prática pedagógica de uma alfabetizadora. Zibetti (2005) acompanhou a prática pedagógica de uma professora, durante um ano, e utilizou instrumentos de pesquisa como a observação participante, entrevistas, análise documental e fotografias para responder as seguintes perguntas: Que saberes são mobilizados pela professora durante seu trabalho com as crianças? Que elementos contribuem ou influenciam na constituição dos saberes da professora? Como ela lida com situações que a defrontam com o não-saber? Vieira (2002), de uma maneira diferente de Zibetti, analisou professores em escolas para averiguar quais práticas pedagógicas são desencadeadas pelos atos de indisciplina dos alunos. A pesquisadora identificou e analisou a produção de saberes docentes construídos a partir dos desafios enfrentados pelos professores no cotidiano escolar. Borges (2004), por sua vez, interessou-se pela influência das disciplinas escolares na elaboração dos saberes dos professores do segundo segmento do Ensino Fundamental e investigou como os professores de 5ª a 8ª série concebem seus saberes profissionais e o peso, o significado e o lugar dos componentes disciplinares na edificação dos saberes docentes. Por fim, procuramos explorar, neste capítulo, algumas contribuições teóricas para o subcampo de pesquisa sobre saberes docentes dos trabalhos de Shulman (1986), Tardif (1991; 2000 e 2002), Gauthier e colaboradores (2006), em diálogo com resultados e dados de pesquisas empíricas, principalmente, a desenvolvida pelos autores deste texto (SILVA, 2009).

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INVESTIGANDO A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES Manuela Esteves1

Introdução O exame científico da formação continuada de professores não pode fazer-se fora de um quadro de questionamento de todas ou quase todas as dimensões da educação formal que se pretende proporcionar às crianças, aos jovens e aos adultos, através das instituições escolares. Na verdade, a formação continuada não tem um fim em si mesma, nem é neutra – ela orienta-se ou deveria orientar-se pelos valores que a sociedade consagra num determinado momento histórico: que conceção tem do ser humano, da humanidade e, consequentemente, que ideal ou ideais a educação deve prosseguir? O que queremos da escola: que forme cidadãos? Futuros trabalhadores? Pessoas capazes de serem felizes? Ou tudo isso, mas com graus de prioridade diferentes, explícitos ou implícitos? Que imagem da escola deveria prevalecer: a de uma fábrica onde se produzem aprendizagens? A de um clube social onde se está bem? A de um laboratório onde se fazem experiências? Como estão mudando as escolas e as aprendizagens sob o impacte das tecnologias da informação e comunicação? Ainda tem sentido haver escolas enquanto espaços de encontro físico entre pessoas ou é preferível aprender em ambientes virtuais? É em função das respostas (nunca unânimes) a questões como estas que diferentes conceções da profissão docente se manifestam 1

Professora Auxiliar Aposentada do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. E-mail mesteves@ ie.ul.pt.

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e sustentam, subsequentemente, diferentes perspetivas sobre a formação necessária ao desempenho profissional. Doyle (1990), a este propósito, sugere e descreve diversas imagens alternativas do perfil do professor: o bom funcionário, o académico principiante, a pessoa que funciona por inteiro, o inovador e o profissional reflexivo, conforme se preferem, nesse perfil, a obediência aos superiores, o domínio do saber científico, as relações interpessoais, a ousadia ou a autonomia de decisão. É óbvio que todos os empreendimentos formativos dos professores, seja na formação inicial, seja na continuada, contribuem, mais ou menos consciente e deliberadamente, para a afirmação predominante de uma destas imagens, o que se traduz no modo diferenciado como respondem a questões como: que profissionalismo e que profissionalidade devem ser os dos docentes? Que condições têm atualmente os professores para cumprir as missões que lhes estão atribuídas? Podem ou devem os professores discutir os valores veiculados pelas políticas educativas e curriculares, ou devem simplesmente aplica-las? Há ou não espaço para a contextualização dos processos de ensino – aprendizagem? Existe apenas um único perfil de bom professor ou são possíveis vários? E o que é um “bom professor”? De tudo isto, pode deduzir-se que não é fácil delimitar as fronteiras do campo científico da formação de professores. Quando pesquisamos trabalhos realizados nesse campo, encontramos desde trabalhos onde a formação foi, de facto, o objeto central da investigação, até outros onde a referência à formação é claramente marginal e o objeto principal foi outro, ainda que com implicações mais ou menos remotas para a formação, o que os autores às vezes apenas mencionam nas suas conclusões e recomendações. É nossa convicção que é fundamental a afirmação e o fortalecimento científico do campo das pesquisas em, sobre e na formação dos professores, pela identificação dos objetos próprios desse campo, já que os métodos que pode usar são os mesmos que se usam em toda a investigação educacional: a análise documental

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e a observação direta e indireta (entrevistas, questionários, documentos pessoais). Então, definimos para nós como objetivo (ambicioso) do presente capítulo, o de fazer um mapeamento ou agenda dos problemas relativos à formação continuada dos professores que, a nosso ver, carecem de mais investigação científica. Pensámos no possível interesse disso, para os pesquisadores iniciantes, a nível de estudos de graduação e pós-graduação, que frequentemente se debatem com o problema de definir o seu objeto de trabalho e as questões de investigação que lhe querem associar. Fazemos, desde já, duas prevenções: a primeira, a de que não seremos exaustivos nem na proposição dos temas de interesse, nem no levantamento das questões que cada um pode suscitar, nem no desenho do estado da arte relativo a cada problema; a segunda, a de que o nosso olhar não sendo nacionalista, não pode deixar de ser influenciado pelo contexto português e europeu a que pertencemos e onde trabalhamos e investigamos. 1. A formação continuada como sistema A formação continuada dos professores, enquanto sistema, é uma aquisição relativamente recente. Entendemos aqui como “sistema” o facto de se considerar essa formação como um direito e um dever de todos os professores, o que se afasta de todas as situações anteriores em que, de forma mais ou menos esporádica, muitos professores tomaram iniciativas individuais, ao longo dos tempos, para se atualizarem, desempenharem melhor a sua profissão e, com isso, se sentirem mais felizes com esse desempenho. Consagrar a formação como um direito de todos os educadores e professores significa, para as autoridades educativas, criar estruturas que permitam o acesso efetivo de todos eles à formação, e conceber as finalidades, objetivos gerais, estratégias e processos de avaliação que devem nortear essa formação. Significa, ainda, pensar e disponibilizar um conjunto importante de recursos, dada a enorme

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massa de profissionais a envolver: recursos em formadores desejavelmente especializados para a função, e recursos financeiros, à cabeça, mas também recursos em tempos e espaços a atribuir. Um dos trilhos que a investigação científica tem percorrido é o de estudar precisamente o modo como as políticas educativas têm correspondido a todas estas exigências. Que princípios foram consagrados e qual a sua pertinência para os atores? Que estruturas foram pensadas e estão funcionando? Até que ponto elas se subordinam a preceitos gerais ou desenvolvem projetos próprios com autonomia e sensibilidade aos contextos concretos de trabalho dos professores? Se intervêm na formação estruturas de diverso tipo (instituições de ensino superior, centros de formação, associações de escolas, órgãos locais de administração, associações de professores, associações científicas e pedagógicas, etc.), como se faz (se é que se faz) a divisão de responsabilidades entre elas? Quem são os formadores, que especializações detêm e quem e como os formou/forma? Eis uma linha de pesquisa focada na política, administração e gestão da formação continuada que convém manter aberta até porque todas estas realidades são mutáveis, e importa saber se estão mudando para melhor ou, em caso contrário, o que fazer para superar fragilidades e dificuldades encontradas. Por outro lado, consagrar a formação contínua como um dever de todos os professores também tem as suas implicações. Se todos os professores têm agora a obrigação de prosseguir o seu desenvolvimento profissional ao longo da vida, que relação existe entre a formação continuada (um dos suportes desse desenvolvimento) e a carreira? Deve haver um prémio, uma promoção na carreira, para os professores que cumprirem essa obrigação e penalizações para os que o não fizerem? Ou esse dever deve ser visto apenas na ordem moral, sem reflexos materiais? Sendo uma obrigação objetiva, até que ponto isso leva parte dos professores a encarar a formação continuada como um fardo, algo a que pessoalmente não atribuem qualquer sentido, significado ou

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efeito útil? Até que ponto ou em que medida a formação inicial que se oferece estimula os novos professores a prosseguirem o seu desenvolvimento ao longo da carreira ou os deixa convencidos de que não precisam de mais nada? Que condições de proximidade da formação e de tempo são dadas para que o cumprimento deste dever não se torne penoso? Eis outra linha de pesquisas possíveis e necessárias, ainda em torno da formação continuada enquanto sistema. Referimos, em seguida, o modo como se tem desenvolvido a pesquisa neste domínio, em Portugal, assim como alguns dos seus resultados. Uma vez consagrada a formação continuada, em 1992, como sistema, cedo começaram a realizar-se estudos e a publicar-se trabalhos que foram assinalando regularmente insuficiências e debilidades, quando não mesmo perversões, de que tal formação padeceria. As críticas dirigiram-se tanto a aspetos estruturais como a aspetos dinâmicos do edifício formativo. Questionou-se o modo como os centros de formação foram concretizando as expectativas iniciais que sobre eles tinham sido formuladas, de corresponderem à iniciativa dos professores, à ligação com problemas da vida quotidiana da escola, enfim ao contributo para a resolução da “crise da escola” e da “crise da profissão docente” (AMIGUINHO e CANÁRIO, 1994). Constatou-se que, embora nascidos geralmente da iniciativa dos professores e das escolas, os centros de formação, no binómio dependência/autonomia face à tutela política e administrativa, cedo abdicaram de desenvolver políticas e práticas relativamente autónomas e contextualizadas no tecido escolar de que emergiram, para se orientarem pelos ditames das orientações anuais associadas aos programas de financiamento. Por outro lado, a associação da formação contínua à progressão na carreira docente fez com que os centros de formação interpretassem como prioritário satisfazer interesses ou necessidades dos professores individuais, em detrimento de necessidades e projetos das escolas (BARROSO & CANÁRIO, 1999).

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2. A análise de necessidades de formação Ainda é frequente encontrarmos situações em que a oferta de formação continuada aos professores prevalece sobre a procura de formação por estes. Trata-se de todas aquelas situações em que as instituições de formação apresentam a sua proposta de projetos ou ações em função do que já têm “pronto a servir” ou do que supõem que faz falta aos professores. Trata-se, então, da chamada “formação por catálogo”, em que o que se espera de cada professor é que faça as suas escolhas dentro do menu que lhe é apresentado. Contudo, desde os anos 60 do século passado, sucessivos autores (D’Hainaut, 1979; Stufflebeam, 1985; Barbier & Lesne, 1986; McKillip, 1987; Rodrigues e Esteves, 1993; Rodrigues, 2006; Esteves, 2006, entre outros) foram chamando a atenção para o erro de uma tal orientação. De facto, a formação continuada não vale por si mesma. Os interesses e necessidades de formação devem ser explicitados à luz de uma de duas fontes fundamentais ou de uma combinatória de ambas:  O desenvolvimento e a melhoria da instituição onde os professores trabalham – o que implica partir de cada escola, das suas características, dos pontos fortes e fracos que apresenta, dos projetos que tem para o futuro, e responder à questão: que contributos uma formação acrescida dos professores pode dar para que as fragilidades (e quais) sejam superadas e o sucesso educativo e escolar dos alunos melhore?  O desenvolvimento pessoal e profissional do professor individual ou de um grupo de professores – o que implica conhecer os seus interesses, necessidades e expetativas sobre o(s) profissional(ais) que deseja(m) ser. Admitindo-se que a procura da formação expressa por algum destes caminhos, ou por ambos, deve prevalecer sobre a oferta de formação, coloca-se então a questão de investigar as necessidades de formação, antes de elaborar planos e projetos.

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Como essas necessidades são constructos pessoais e sociais, pode-se esperar que as mesmas não sejam coincidentes em função do caminho escolhido para as identificar, e que possam também variar por efeito da metodologia usada. As opções metodológicas possíveis são diversas, em desenhos de investigação que podem recorrer apenas a uma delas ou a combinações de duas ou mais:  A observação direta de situações escolares letivas ou não letivas e a atuação do professor nas mesmas;  A análise de documentos de política de uma escola, nomeadamente o seu projeto político pedagógico;  Entrevistas com informantes-chave (diretores, coordenadores de departamento ou de equipa, alguns professores representativos da diversidade de idades, modelos de formação inicial, anos de experiência na profissão e na escola atual, nível de ensino em que atuam ou tipo de disciplina que lecionam);  Questionários a todos os professores. Seja qual for o desenho metodológico, aquilo que parece fundamental reconhecer é que as necessidades de formação não existem no vazio – elas são sempre expressas em função de um dado contexto, seja a escola concreta, o grupo de professores ou cada professor individual com a sua trajetória profissional e pessoal peculiar. Sobre o caso português, passamos a referir alguns aspetos relacionados com a análise de necessidades de formação, de acordo com o que a investigação tem posto em evidência. Numa apreciação retrospetiva, Lopes et al. (2011) constataram que, embora a revisão do regime jurídico da formação contínua, em 1996, tenha reforçado a importância de esta contribuir para a autonomia das escolas, as ações de formação privilegiadas pelos 33 centros que estudaram não tinham refletido uma preocupação de centrar a formação na escola:

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[...] a ação dos Centros não resultou, na maioria dos casos, de uma política clara que originasse projetos de formação próprios, mas antes se organizou de modo contingente, procurando adequar a oferta e a disponibilidade de formadores às condições externas que resultavam dos normativos do RJFCP, da progressão na carreira, dos professores, e das condições de financiamento definidas pelo programa FOCO” (Lopes et al., 2011:38).

Ressalta, pois, como um dos aspetos críticos, a ponderação das necessidades a que se deveria responder para que a formação se constituísse como um recurso ao serviço do desenvolvimento das escolas, dos seus projetos, da sua maior autonomia, tendo em vista a promoção sustentada do sucesso escolar e educativo dos alunos. Os processos de identificação e análise das necessidades de formação mostraram-se frequentemente superficiais, pouco ou mal sustentados nos planos teórico e técnico, pouco esclarecedores do que se deveria fazer. Recentemente, em 2014 e 2015, o edifício normativo criado em 1992 (DL 249/92, de 9 de Novembro, revisto e modificado em 1994 e 1996) foi substituído por um novo regime jurídico da formação contínua (DL 22/2014 de 11 de Fevereiro) e da organização e administração dos centros de formação (DL 127/2015 de 7 de Julho). Pretende-se estabelecer (e citamos): [...] um novo paradigma para o sistema de formação contínua, orientado para a melhoria da qualidade do desempenho dos professores, com vista a centrar o sistema de formação nas prioridades identificadas nas escolas e no desenvolvimento dos docentes, de modo a que a formação contínua possibilite a melhoria da qualidade do ensino e se articule com os objetivos da política educativa local e nacional (Preâmbulo do DL 22/2014).

Como acima se demonstrou, a orientação aqui estabelecida não é tão nova como o legislador pretende, mas é sintomática da falência relativa desta perspetiva ao longo do período anterior. No plano estratégico, houve a consciência do lugar incontornável que uma análise de necessidades cuidadosa deveria ocupar para uma elaboração de planos de formação que respondessem aos objetivos pretendidos. Citamos novamente do mesmo Preâmbulo:

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Nesta perspetiva, a análise das necessidades de formação, visando a identificação das prioridades de curto prazo, constitui-se como o eixo central da conceção dos planos anuais ou plurianuais de formação e tem por base os resultados da avaliação das escolas e as necessidades de desenvolvimento profissional dos seus docentes.

Estas orientações, a que se somaram cerca de ano e meio mais tarde, novas formas de organização dos Centros de Formação de Associações de Escolas (CFAE), vieram suscitar a emergência de duas dinâmicas relativamente difíceis e complexas face à falta de experiência no passado, a saber:  As escolas ficaram confrontadas com a exigência de elaborar o seu próprio plano de formação docente, como parte do seu projeto educativo e do plano de atividades anuais que dele decorre, plano de formação que deve atender, na maior parte dos casos, já não a uma escola independente mas a um agrupamento de escolas, sem, contudo, contarem com recursos humanos preparados para essa função;  Os CFAE ficaram comprometidos a elaborar os seus próprios planos em função dos planos das escolas associadas, o que presume um trabalho de proximidade, de colaboração e de coordenação de esforços muito mais intenso e profundo que o habitual – em certa medida, a criação de um novo órgão nos CFAE, a Secção de Formação e Monitorização, constituída por dois professores provenientes de cada uma das escolas associadas, parece responder a essa necessidade de aproximação e coordenação, ao mesmo tempo que proporciona suporte a um trabalho menos solitário e tendencialmente individualista do diretor do Centro. A análise de necessidades de formação pode e, em nossa opinião, deve ser um campo de investimento permanente dos investigadores: a educação muda, as escolas mudam, os professores mudam. Aquilo que já foi, num determinado momento, necessário, em termos de formação, pode ter deixado de o ser e novos projetos podem não ser viáveis sem o contributo de

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uma formação continuada assente numa análise de novas necessidades contextualizadas no tempo e nas circunstâncias. A diversificação curricular e a abertura do currículo a novas dimensões (etnicorracial, de género, de educação de jovens adultos e de adultos, de educação especial, no quadro de uma educação para todos, podem não passar de discursos generosos se as escolas e os professores não souberem como atuar no dia a dia para que essas intenções se concretizem. 3. Modelos de formação Entendemos aqui como “modelo” (ou paradigma, ou orientação dominante, como alguns autores preferem dizer) uma matriz de convicções e assunções acerca da natureza e das finalidades da educação escolar, do trabalho do professor, dos professores e da sua formação que molda formas específicas de prática na formação de professores, seguindo de perto nesta definição a proposta de Popkewitz, Tabachnick e Zeichner (1979). Existem diferentes modos de tipificar os modelos, conforme os critérios que se usem para tal. Assim, se o critério forem as finalidades que a formação contínua deve preencher, encontramos nas propostas de Éraut (1985), quatro modelos como possíveis:  Modelo do défice: parte-se do princípio de que os conhecimentos que os professores detêm são insuficientes, têm lacunas ou se tornaram obsoletos com a passagem do tempo e o desenvolvimento do conhecimento científico, humanístico, tecnológico, artístico ou pedagógico. Cabe então à formação continuada a finalidade de atualização ou renovação dos conhecimentos. Tipicamente, a filiação da formação neste modelo leva à organização de situações formativas bastante escolarizadas – cursos, seminários, módulos – através das quais se pretende uma transmissão que pode ser realizada de forma mais tradicional ou recorrendo a tecnologias de comunicação a distância (e-learning ou b-learning).

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 Modelo do crescimento: parte-se do princípio de que a finalidade mais importante é fazer com que o professor se desenvolva como pessoa e como profissional (até onde estes aspetos possam ser separados). Então, os adeptos deste modelo consideram que a formação continuada deve servir não para reparar defeitos mas para promover o crescimento – ela deve desenvolver-se não em torno de deficiências ou falhas mas em torno de interesses dominantes, daquilo em que o professor, sendo já competente, o quer ser mais. A pesquisa dos centros de interesses e dos desejos do professor é, nesta ótica, fundamental.  Modelo da mudança: parte-se do princípio de que as mudanças na sociedade e na educação são cada vez mais numerosas e rápidas e de que os professores são, em geral, resistentes à mudança, não a concretizando como as autoridades educativas preconizam. Então, a finalidade da formação continuada é levar os professores a mudar e a inovar, em situações curriculares ou outras em que, por eles, tudo ficaria na mesma. Trata-se, pois, de induzir mudanças na atuação dos professores não desejadas por estes.  Modelo da resolução de problemas: parte-se do princípio de que a escola é sempre um contexto problemático onde nada à partida está garantido ou pode ser previsto antecipadamente de forma determinista. Então, a finalidade da formação continuada é ajudar a identificar os problemas de uma dada escola, das aprendizagens que aí se realizam, das formas como a relação pedagógica se estabelece, e contribuir, pela formação acrescida que se proporciona aos professores, para que esses problemas possam ser solucionados no todo ou em parte. Uma outra forma de tipificar os modelos é a que usa como critério o lugar ou papel reservado ao formando na situação formativa. Recordamos aqui a proposta de Lesne (1984), que outros autores posteriormente também assumiram:

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 O formando como objeto de formação: neste modo de trabalho pedagógico, ocorre um processo de inculcação a partir do saber e do poder que o formador detém face a um formando tido como ignorante. Fala-se então de um processo transmissivo de orientação normativa.  O formando como sujeito da formação: pressupõe-se que a formação é uma ação do sujeito sobre si próprio – ninguém forma ninguém, cada um forma-se. Então, o que se justifica é um modo de trabalho pedagógico de tipo incitativo e orientação pessoal, motivando e ajudando o formando a realizar uma apropriação pessoal dos saberes que lhe interessam para agir.  O formando como agente de transformação social: trata-se de superar a dicotomia anterior, chamando a primeiro plano a realidade profissional onde o formando atua e ajudando-o a ser um elemento ativo e construtivo ao serviço da transformação dessa realidade para melhor. Fala-se, então, de um modo de trabalho pedagógico de tipo apropriativo, centrado na inserção profissional. Têm sido pouco frequentes os trabalhos de investigação que se tenham ocupado do estudo dos modelos de formação continuada em operacionalização no terreno. E, contudo, importaria perceber que modelo está a ser concretizado em cada situação concreta, porquê e para quê, com que efeitos (para o formando, o grupo em formação, a escola), ou até que ponto existe coerência entre as finalidades pretendidas e o modelo efetivamente posto em prática. Deste último ponto de vista, são frequentes as incoerências entre, por exemplo, uma formação que quer proporcionar a reflexão dos formandos e a prática de um modelo de tipo transmissivo, em que o lugar do formando é o de objeto da formação. A investigação não pode ignorar que, muitas vezes, num mesmo programa ou ação de formação, se verificam importações de mais do que um dos modelos acima aludidos. O que poderá ser útil perceber é qual o modelo predominante, qual o grau de

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consciência com que os promotores da formação casaram inspirações de mais do que um modelo, qual o grau de satisfação obtido com essa conceção. Admitindo-se que todos os modelos podem ser, por igual, relevantes – dependendo das finalidades visadas – também seria interessante saber que modelo de formação está sendo predominante à escala de um país, de uma região, de um município ou de cada centro de formação, e discutir se, à luz do perfil profissional do professor que se pretende promover, essas escolhas são equilibradas ou se algo deveria ser modificado. 4. Estratégias de formação Cada dispositivo formativo caracteriza-se, de forma muito imediata para os participantes, pela estratégia adotada, ou seja, pelo modo como os recursos disponíveis – formandos, formadores, conteúdos, métodos e técnicas de formação – são conjugados na ação, para se atingir determinado fim. Refletindo sobre o nosso conhecimento e experiência, pensamos poder propor a existência de quatro estratégias gerais para a formação continuada dos professores:  Transmissão  Facilitação  Exemplificação  Ação. Se a estratégia geral for uma estratégia de transmissão, importa ter em conta a natureza do conteúdo a veicular (um conhecimento? Uma técnica? Um modo de fazer?), a seleção e a sequenciação dos conteúdos, o processo de transmissão (formação presencial? Ensino a distância? E-learning? B-learning?), com responsabilização exclusiva do formador ou com partilha de responsabilidades entre formador e formandos, assim como os materiais de suporte a usar (textos, vídeos, filmes, etc.).

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Numa estratégia de facilitação, conta-se fortemente com os conhecimentos, as competências e as experiências prévias dos formandos e parte-se destes aspetos para identificar motivações de cada um para empreenderem caminhos formativos que as possam satisfazer. O papel do formador é o de estimular as motivações individuais ou grupais e o de fornecer elementos novos, necessários para que os formandos possam concretizar os seus projetos. Os percursos a fazer não estão previamente fixados – eles definem-se à medida que os projetos se desenvolvem e, eventualmente, ramificam. O papel do formador como facilitador é inegavelmente mais difícil do que na transmissão, a sua insegurança é maior até por não saber se vai estar à altura dos desafios que os formandos lhe vão colocar. Na estratégia de exemplificação, o processo assenta na exibição de boas práticas e nas tentativas dos formandos para as duplicarem até atingirem uma proficiência aceitável. Aprende-se pelo exemplo, pelo que a escolha, pelo formador, das boas práticas a apresentar é crucial. Importaria que essas boas práticas fossem fundamentadas e contextualizadas, para que não se corra o risco de induzir uma formação de tipo artesanal, fundada na imitação de um modelo ou na cópia acrítica de uma moda. Uma estratégia de ação na formação continuada é aquela que incorpora o espaço de trabalho do professor na escola ou na sala de aula, como objeto da formação. O espaço de trabalho é o teatro da formação. Visa-se levar o professor a analisar a sua ação profissional, identificar aspetos que desejaria melhorar e encontrar formas possíveis para o fazer. O papel do formador é o de participar em todo esse percurso, levantando questões, ajudando a encontrar hipóteses alternativas de atuação, apoiando a sua experimentação, partilhando com o formando os potenciais riscos que qualquer inovação em educação sempre comporta, participando na avaliação e na decisão sobre adotar ou abandonar a solução experimentada. Percebe-se que, nesta estratégia, a supervisão pedagógica tem um papel central. Tal supervisão pode

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ser realizada por um só formador, mas também se começa a desenvolver nas escolas portuguesas uma supervisão entre pares que se entreajudam e colaboram mutuamente na análise e transformação das práticas de uns e de outros. Desta forma, as responsabilidades de supervisão são distribuídas horizontalmente entre os formandos, resolvendo-se o problema da dificuldade de um só formador acompanhar personalizadamente cada um dos formandos, ao mesmo tempo que dá a estes mais poder e confiança nas suas possibilidades também como formadores. Muitos métodos e, sobretudo, técnicas de formação, podem ser usados ao serviço de diferentes estratégias, tudo dependendo do enfoque escolhido. Em defesa desta tese, consideremos dois exemplos. Desde finais dos anos 80, generalizou-se o recurso aos portefólios – documentos pessoais construídos pelos formandos que, estruturados de forma original, mostrem o trabalho desenvolvido por cada um deles, as aprendizagens que realizaram e a reflexão que tudo isso lhes possa ter merecido. Podemos facilmente imaginar que tais portefólios podem ter sentido em qualquer dos cenários gerais apontados, variando naturalmente a natureza e o alcance dos materiais neles contidos. Por outro lado, é comum hoje pretender que os formandos desenvolvam a sua reflexividade por meio da formação continuada. Ora, ela pode ser suscitada em todas as estratégias, usando diversos métodos, com a condição de se admitir que a profundidade alcançada em cada um dos cenários não será sempre do mesmo nível. Vejam-se, a este propósito dos níveis de reflexividade, os trabalhos realizados, por exemplo, por Kitchener & King (1985, 1990) e pelas mesmas autoras com De Luca (2005). Relativamente à situação portuguesa, alguns estudos puseram em evidência que, numa primeira fase – anos 90 – prevaleceram as modalidades de formação tendencialmente mais escolarizadas (cursos e módulos de formação), na ordem dos 90%, privilegiandose o paradigma do défice e recorrendo-se a formadores com currículo profissional certamente meritório mas, na sua maioria,

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sem especialização no campo específico formação de professores (Roldão et al., 2000). A administração central foi tomando algumas iniciativas ao longo do tempo, umas com mais êxito que outras, para corrigir os aspetos insatisfatórios. Inscrevemos nesta linha a regulamentação das diversas modalidades de formação (1998); a recomendação feita em 1999 para se aumentar a oferta de modalidades de formação potencialmente mais focadas em problemáticas concretas dos contextos escolares e nas suas dinâmicas (oficinas de formação, círculos de estudo, projetos); a inscrição, a partir de 2006, da formação contínua em programas nacionais de desenvolvimento do ensino – aprendizagem (Plano Nacional de Ensino de Português, Plano de Ação da Matemática, Plano de Ensino Experimental das Ciências, Plano Tecnológico); a renovação da exigência de as escolas terem planos de formação específicos dos seus docentes (2008). 5. Avaliação da e na formação continuada Partimos do pressuposto de que a formação continuada dos professores, à semelhança de qualquer outra forma de educação intencional, não pode dispensar a avaliação. As energias humanas e os meios materiais aplicados na formação legitimam a pergunta “Será que a formação contínua é útil?”, pergunta que foi usada como título de um livro publicado por Cautermann, Demailly, Suffys e Bliez-Sullerot, em 1999. Aqui, haverá a distinguir dois planos que aliás se cruzam: a avaliação do dispositivo de formação pensado e concretizado, e a avaliação dos formandos, das aprendizagens por eles realizadas, das competências que, por via dessa formação, desenvolveram.  Avaliação dos dispositivos de formação Porque existem diversas conceções sobre a avaliação educacional, importa que clarifiquemos que, para nós, avaliar é reunir evidências que permitam emitir um juízo de valor sobre um

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objeto e, seguidamente, tomar decisões sobre o mesmo. Juízo de valor que pode assumir diferentes registos: um registo qualitativo, descritivo e valorativo (geralmente associado à avaliação formativa) ou um registo quantitativo, de medida, que conduz à comparação e à hierarquização de objetos semelhantes (próprio da avaliação sumativa). No caso da formação continuada, pode ser interessante avaliar o plano dessa formação, por si só, ou avaliar conjuntamente o plano e a sua concretização. Quanto aos resultados da formação, pode-se pretender avaliar os efeitos que ela teve, no imediato, para os formandos e/ou, de forma diferida no tempo, o impacte que possa ter tido para o modo como o trabalho dos professores se passou a processar nas escolas onde atuam. Em qualquer uma dessas vertentes, do que se trata é de confrontar os dados da realidade (ou seja, os referidos) com um quadro de referentes, ou seja, um referencial (Figari, 1996) que contempla aquilo que se pretendia atingir (a situação ideal, se assim lhe quisermos chamar). Trata-se, então, para o avaliador ou para o pesquisador, de construir o referencial a que vai sujeitar os dados e de, por outro lado, decidir que dados recolher no terreno de modo a que estes sejam válidos e fiáveis. Falamos propositadamente em “construir” o referencial de avaliação porque este deve ser especificamente pensado para cada situação de formação que se pretende avaliar. Não seria adequado, por exemplo, avaliar uma ação de formação assente numa estratégia transmissiva, segundo as dimensões e os indicadores apropriados a uma outra, assente numa estratégia de ação, ou viceversa. E mesmo que se tratasse de ações realizadas com uma mesma estratégia, podem ter diferido em relação a objetivos, a conteúdos ou à relação entre formador e formandos. Então, em trabalhos de avaliação dos dispositivos de formação que se queiram rigorosos, devemos trabalhar com os respetivos promotores e atores: que atributos eles conferem à partida, à ação

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em causa para a poderem considerar inteiramente satisfatória, seja em termos de processo seja em termos de produto final. As metodologias de recolha e tratamento de dados podem ser todas aquelas que a investigação educacional nos proporciona. Em qualquer caso, o que é fundamental assegurar é que os dados a recolher sejam pertinentes, enquanto indicadores válidos para as dimensões sobre as quais nos pretendemos pronunciar. Igualmente importante é prever que diferentes atores nos fornecerão talvez diferentes versões sobre uma mesma ação, sendo aí recomendável a triangulação dos dados obtidos para perspetivarmos com a objetividade possível o valor dessa ação. Relativamente à situação portuguesa, pensamos que a avaliação dos dispositivos de formação continuada tem ficado aquém do necessário. Ela é feita frequentemente de acordo com um referencial rígido, estereotipado, igual para todas as ações, em cumprimento de determinações burocráticas, mas sem apresentar valor relevante para a posterior tomada de decisões. Assim sendo, fazem-se mudanças na formação continuada, sim, mas pelos motivos menos aceitáveis: para seguir uma moda, para cumprir uma ordem de um qualquer ministro que pensa saber tudo acerca da formação dos professores, etc.  Avaliação individualizada dos formandos Em Portugal, desde que a formação continuada passou a constituir um sistema (1992), os professores participantes nas ações (exceto as de curta duração, que não excedem 6 horas) devem elaborar um trabalho escrito final individual, para avaliação. De início, tal prescrição suscitou alguma controvérsia, mas cremos que hoje isso é pacificamente aceite. A natureza do trabalho em causa pode ser diversa, dependendo do tipo de ação realizada e da negociação que se faça entre formador e formandos. Pode tratar-se de um relatório sobre um projeto, de um ensaio sobre determinada problemática, de um portefólio, de um diário de aulas, etc. Algumas ações como as oficinas de formação (workshops) presumem que, ao longo do

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tempo que a ação dura, o formando vá produzindo materiais e realizando experiências nos períodos intercalares entre as sessões presenciais, cujos registos devem ser considerados para a avaliação final. No plano da investigação, pensamos valer a pena responder a questões como: a produção pedida ao formando é coerente com a natureza da ação? Essa produção tem valor formativo? Porquê? Para concluir A orientação que demos ao presente texto, se por um lado permite mostrar que é necessário um maior investimento da investigação científica sobre a formação continuada dos professores, por outro, fica muito aquém de esgotar os centros de interesse possíveis nessa área. Nenhum dos tópicos apresentados foi objeto da abordagem ampla e aprofundada que cada um deles consente. Sobre cada um deles, sabe-se muito mais do que aquilo que aqui se aflorou – há já uma base de conhecimento científico que, lamentavelmente, é muitas vezes ignorada ou apenas superficialmente mobilizada quando se concebem e concretizam projetos. Como dissemos no início, o campo científico da formação dos professores não é fácil de delimitar. Acresce, ainda, que muitas problemáticas relativas à formação devem ser cruzadas com outras, o que neste texto não se fez. Mas, a título de exemplo, referimos que no programa de doutorado em Educação, na especialidade de Formação de Professores, em que colaboramos na nossa instituição, constam temáticas que remetem para o cruzamento a que nos referimos: relação entre a formação de professores e as conceções (mutáveis) de profissionalização, de profissionalidade e de profissionalismo docentes; pensamento e atuação éticodeontológica dos docentes como dimensão do profissionalismo; análise de projetos e de práticas de formação inicial e contínua de educadores e de professores dos diferentes níveis de ensino, e dos

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seus efeitos; análise de pressupostos conceptuais e de dispositivos de formação pedagógica de formadores; relação entre desenvolvimento pessoal e profissional, necessidades de formação e mudanças educativas. Uma outra limitação do presente texto é a de que ele se reporta quase exclusivamente à formação continuada formal – aquela que tem um tempo e um espaço específicos atribuídos, obedece a um plano prévio e se organiza com uma distinção clara entre formador e formandos. Há, no entanto, uma formação não formal que os professores geralmente valorizam muito quando se referem à “troca de experiências com os colegas” a propósito dos efeitos positivos dos encontros profissionais que tiveram, seja em eventos, em ações de formação ou ainda nas reuniões havidas na sua escola. Quando a formação continuada é planeada, sobretudo a nível de escola, os espaços de trabalho coletivo dos professores deveriam ser encarados como espaços potencialmente formativos, promovendo-se intencionalmente a apresentação de experiências individuais e a sua análise. A nossa experiência mais frequente é a de as reuniões de equipa, de departamento, de disciplina ou outras terem apenas fins de coordenação administrativa e burocrática, em que o respetivo coordenador não se assume como um líder pedagógico, mas apenas como alguém que transporta informação que poderia ser veiculada, com vantagem, por outros meios. Ainda neste âmbito da formação não formal, as tecnologias digitais da informação e da comunicação permitem hoje que os professores se encontrem e dialoguem em redes profissionais de colegas com os mesmos interesses, sem que a distância física a que se encontram constitua obstáculo, para além de ser possível a cada professor criar a sua própria rede pessoal de aprendizagem (personal learning network). Tão pouco abordamos no texto a figura dos formadores de professores com o destaque e o tratamento diferenciado que ela merece. E, contudo, as competências que deles esperamos não se compadecem com o esquecimento acerca do conhecimento

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especializado que devem ter e do estatuto que lhes deve ser reconhecido. Ficará para outra oportunidade.

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FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA EDUCAÇÃO INFANTIL: DESAFIOS DA INCLUSÃO ESCOLAR Fernanda Cristina de Souza1 Raquel da Silva Ribeiro2 Rosângela Gavioli Prieto3

“Criança é para brincar, brilhar, resistir e revolucionar”4

Na seara do contexto atual pelo qual passa a educação infantil no Brasil, iniciamos com um excerto que traduz, em certa medida, nossos anseios sobre os processos de luta que marcam a primeira etapa da educação básica em nosso país. A expressão “Criança é para brincar, brilhar, resistir e revolucionar” esteve na pauta do VII Congresso Paulista de Educação Infantil (Copedi)5 e que mobilizou profissionais, pesquisadores, estudantes e militantes dos movimentos sociais do campo da educação infantil na luta pela defesa dos direitos das crianças, no âmbito nacional e internacional.

Doutoranda no Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp). Contato: [email protected]. 2 Mestranda no Programa de Pós-graduação da Feusp. Contato: [email protected]. 3 Doutora em Educação pela FE/USP, onde atua com professora e pesquisadora, no Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação (EDA). Contato: [email protected]. 4 Título dado à gestão do Fórum Paulista de Educação Infantil (FPEI) – 2016/2018. 5 O Copedi é um encontro internacional (trienal) e organizado pelo FPEI, cujo objetivo é reunir pesquisadores, estudantes, profissionais e militantes dos diversos movimentos sociais que defendem a infância. Em sua sétima versão, foi realizado na Universidade Federal de São Carlos/SP (Ufscar), em novembro de 2015. 1

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A ideia aponta para elementos conquistados no campo da educação infantil e que hoje faz parte dos documentos que orientam práticas pedagógicas destinadas à primeira infância em todo o país. Faremos, nesse sentido, o recorte para a expressão “criança é para brincar”, porque se coloca como contraponto às práticas “escolarizantes” ainda muito presentes na educação infantil, tal como nos mostra Kishimoto (1998), como aquela que antecipa a escolarização obrigatória, em detrimento das brincadeiras, cuja função é de que a criança possa vivenciar diversas experiências nos processos pedagógicos. Essa ideia marca também toda a organização da educação infantil, reconhecida como direito das crianças, desde o nascimento, a partir de 1988, com a aprovação da Constituição Federal (CF/1988) e introduzida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDBEN/1996), que a define em seu art. 29, como primeira etapa da educação básica, cuja função é a de desenvolver integralmente as crianças de 0 a 5 anos de idade, “[...] em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade” (BRASIL, 2013)6, oferecida em creches, para as crianças de 0 a 3 anos e onze meses e em pré-escolas às de 4 e 5 anos. Sem a finalidade de fragmentar os estudos sobre a primeira etapa da educação básica, nos referiremos, no presente texto a todo o público da educação infantil. Com relação à especificidade do trabalho pedagógico das instituições escolares de educação infantil, destacamos a Resolução CNE/CBE nº 5 de 2009, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil - DCNEI/2009 (BRASIL, 2009c), ao determinarem o caráter não doméstico do seu locus de atendimento, podendo ser oferecida em estabelecimentos escolares públicos ou privados, que cuidam e educam as crianças de 0 a 5 anos, devendo esses, ser regulados e supervisionados por órgão competente. 6

Versão dada pela Lei n.º 12.796, de 4 de abril de 2013 (BRASIL, 2013).

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Esse destaque é importante, porque confere um caráter profissional para o trabalho a ser realizado na educação infantil, junto às crianças de 0 a 5 anos de idade e sobre essa profissionalidade é que gostaríamos de contribuir para o debate a respeito dos sujeitos que exercem a docência na primeira etapa da educação infantil. O Parecer CNE/CEB n° 20 de 11 de novembro 2009 (BRASIL, 2009a), ao fazer a revisão das DCNEI/2009 (BRASIL, 2009c), reconhece o caráter educacional das instituições escolares de educação infantil e é claro ao especificar quem são os docentes que atuarão com as crianças de 0 a 5 anos: As creches e pré-escolas, se constituem, portanto, em estabelecimentos educacionais públicos ou privados que educam e cuidam de crianças de zero a cinco anos de idade por meio de profissionais com formação específica legalmente determinada, a habilitação para o magistério superior ou médio, refutando assim funções de caráter meramente assistencialista, embora mantenha a obrigação de assistir às necessidades básicas de todas as crianças (BRASIL, 2009a, p. 4, grifos nossos).

O destaque a respeito da exigência sobre a formação específica para atuar junto às crianças da educação infantil, advém do princípio legal, previsto na LDBEN/1996, ao determinar no art. 61 que os profissionais da educação básica, em efetivo exercício, devem ter formação em cursos reconhecidos, a saber no inciso I: “professores habilitados em nível médio ou superior para a docência em educação infantil e nos ensinos fundamental e médio” (BRASIL, 2013). Apesar da determinação legal a respeito dos profissionais que exercerão a função docente na primeira etapa da educação básica, muitos são os desafios da formação de professores que atuam na educação infantil, que em muitos lugares, conta ainda, com um índice considerável de profissionais não-docentes no exercício, no cuidado e educação de crianças de 0 a 5 anos. Sobretudo, no contexto de implantação, ampliação e consolidação do atendimento educacional especializado para as

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crianças quando apresentam deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação7, o problema torna-se, ainda mais acentuado. Em análise dos dados do censo escolar de 2013, com base também no diagnóstico do Plano Nacional de Educação (PNE) de 2001, o documento “Censo Escolar 2013: resumo técnico” (BRASIL, 2014a) relaciona a qualidade do ensino com valorização dos profissionais do Magistério. Nesse sentido, há no documento a afirmação de que a qualidade “[...] só será alcançada por meio de uma política global capaz de articular a formação inicial, as condições de trabalho, o salário, a carreira e a formação continuada” (BRASIL, 2014a). Ainda, os dados do censo escolar de 2014 revelam que existe no Brasil um percentual significativo de docentes da educação básica que não tem formação em nível superior. Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep)8, o grau de formação em nível superior se eleva, conforme aumentam também as etapas de atuação do docente na educação básica. Ou seja, é na educação infantil onde se encontra o maior percentual de professores com níveis elementares de formação inicial. Considerando a realidade educacional brasileira, os desafios da formação inicial na área de educação infantil e a necessária indissociabilidade entre os aspectos do cuidar e educar, tal como apontado pelas DCNEI/2009 (BRASIL, 2009c), fundamentais nos processos pedagógicos voltados às crianças de 0 a 5 anos de idade,

7

8

Angelluci e Sotilli (2015) apontam preocupações em torno de diagnósticos relacionados ao Transtorno do Espectro Autista, pois, para elas, certas concepções pautam-se numa perspectiva de deficiência, que traduz, de alguma maneira, uma ideia de incapacidade. Na relação com as crianças pequenas tal perspectiva pode ser muito arriscada. Com relação às altas habilidades/superdotação, Guenther (2006), tal como Marques, Costa e Rangni (2015), produziram estudos que problematizam as tensões do diagnóstico dessa categoria na educação infantil. Os dados constam no documento “Censo Escolar 2013: resumo técnico” (BRASIL, 2014a).

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muitas questões se colocam para o debate, dentre elas destacamos a seguinte indagação: Quem é o profissional da educação infantil no Brasil e como tem se dado sua formação inicial? Nesse sentido, o presente trabalho tem como objetivo problematizar os desafios da formação de professores para a educação infantil e sua interface com o atendimento educacional especializado na primeira etapa da educação básica. Professor, profissionalização e educação Dentre os desafios da educação brasileira, a problemática relacionada aos processos da formação de professores mostra-se como assunto de especial relevância, tal como apontado por Kishimoto (2008), Kramer (2008), Saviani (2009), Mendes (2010), Gatti (2014), dentre outros. Ainda, como demonstrado pelos indicadores (BRASIL, 2014a, 2015a), ao revelarem insuficiências de titulação e de aprimoramento a serem enfrentadas, confere à formação inicial e continuada grau de prioridade quando do planejamento, execução e avaliação de políticas públicas com vistas à melhoria da qualidade do ensino. O documento Política Nacional de Educação Infantil de 2006 PNEI/2006 (BRASIL, 2006b), prevê, dentre as ações voltadas aos docentes da educação infantil, a garantia da qualificação dos profissionais que exercem docência nessa etapa da educação básica, considerando as especificidades de seu público, seja na formação inicial ou na continuada, assegurada pelo sistema de ensino, admissão de professores com a formação mínima exigida na lei, bem como plano de cargos e de salários para o conjunto desses profissionais do magistério (BRASIL, 2006b). No âmbito das estratégias, a PNEI/2006 (BRASIL, 2006b, p. 25), em uma perspectiva colaborativa, compromete a esfera federal no apoio técnico aos estados, municípios e Distrito Federal, de modo a promover “[...] a formação inicial dos professores em exercício na

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Educação Infantil que não possuem a formação mínima exigida por lei”. E, ainda, firma compromisso com o objetivo de qualificar os profissionais que atuam nessa etapa por meio da criação do Programa de formação inicial de professores em exercício na educação infantil (Proinfantil)9 e também propõe que as especificidades da educação infantil estejam asseguradas na Rede Nacional de Formação Continuada de Professores da Educação Básica10, sob a coordenação do governo federal. Por fim, compromete-se com a valorização e apoio à formação dos profissionais que atuam na primeira infância, em nível superior, oferecendo oportunidade de cursarem “[...] habilitação em educação infantil” (BRASIL, 2006b, p. 26). O processo de profissionalização docente11 requer uma intensa discussão a respeito da compreensão sobre quem são os sujeitos Segundo dados disponíveis no site do MEC, o Proinfantil, consiste num curso à “[...] distância, de formação para o magistério, em nível médio, oferecido para professores em exercício nos sistemas municipais e estaduais de educação, da rede pública ou privada, que não possuem a formação exigida pela LDBEN/1996”. Disponível em: . Acesso em: 27 jul.2016. 10 A Rede Nacional de Formação Continuada de Professores, foi criada no ano de 2004, com vistas à melhoria da qualidade da educação de professores e alunos, respectivamente. Conforme consta no site do MEC, tem prioridade no programa, professores de educação básica, que atuam nos sistemas públicos. A ação é parte do Plano de Ações Articuladas (PAR), integrada pelas instituições de ensino superior públicas federais e estaduais que assumem a responsabilidade pela elaboração de materiais de orientação para cursos à distância e semipresenciais, de até 120 horas. Disponível em: . Acesso em: 27 jul.2016. 11 Apoiado em Nóvoa (1992), Paula Junior (2012) assevera que o conceito profissionalização aplicado ao magistério liga-se “[...] diretamente às políticas públicas educacionais, ao contexto histórico vigente, e a valorização da profissão docente pelas políticas sociais. Com a profissionalização, os professores melhoram o seu estatuto, aumentam seus rendimentos e reafirmam sua autonomia como intelectuais que ajudam na formação de cidadãos [...]” (p. 4). 9

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que exercem a função docente na educação infantil. Isso exige pensar na maneira com que as políticas públicas de formação de professores foram se configurando historicamente no Brasil e, ainda, nas condições sociais de reconhecimento dessa profissão. Saviani (2009) afirma que a necessidade da formação docente tem sido pensada desde o século VII, por Comenius. No entanto, conforme o autor, após a Revolução Francesa, no século XIX, a questão passou a ser assumida como um problema institucional, exigindo medidas mais sistematizadas. No entanto, relata que a primeira instituição com o nome de Escola Normal foi criada em 1795, em Paris, responsável para formar professores. Nesse contexto, já é introduzida a distinção entre a Escola Normal Superior, aquela responsável pela formação de professores em nível secundário e a Escola Normal ou Escola Normal Primária, a qual assumia a responsabilidade de formar os professores para atuar no ensino primário. Na realidade brasileira, segundo Saviani (2009), o problema relacionado à formação dos professores, emerge após a Proclamação da Independência, “[...] quando se cogita da organização da instrução popular” (p. 143), seguindo uma forma de organização muito semelhante à do modelo europeu supracitado. Como um dos dilemas históricos dos processos de formação de professores no Brasil, esse autor destaca a existência de modelos que priorizavam o ensino de conteúdos de maneira dissociada dos conhecimentos didático-pedagógicos. Saviani (2009) reforça, ainda, que o problema da formação de professores não pode ser discutido sem levar-se em conta as condições de trabalho que envolvem a profissão, necessitando, inclusive, de políticas públicas de financiamento que garantam a qualidade da educação almejada pelas sociedades. Nóvoa (1995), ao resgatar o processo histórico da profissionalização dos professores no contexto europeu, afirma que a crise da profissão docente se arrasta ao longo dos anos e é de longa

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data. O autor reconhece que a intervenção estatal nos processos educativos é que acaba por instituir um corpo profissional à profissão docente. Para ele, em uma das etapas do processo de profissionalização docente é possível, “[...] por um lado, a consolidação do estatuto e da imagem dos professores e, por outro, a organização de um controle estatal mais estrito” (p. 18). Campos (2008), ao discutir o perfil do professor para atuar com as crianças pequenas, apresenta dois recentes desafios na educação e que têm impactado nos modos de configuração dessa profissão: a antecipação da matrícula obrigatória para 6 anos no ensino fundamental, visto que esse fenômeno “[...] representou nova demanda aos sistemas, pois a estrutura da educação infantil foi afetada sem que, previamente, se adaptassem currículos e materiais didáticos, se preparassem professores e se esclarecessem as famílias” (p. 123) e, ainda, a necessidade de ampliação de vagas na educação infantil, particularmente nas creches. Tais desafios da educação infantil e seu reconhecimento na esfera dos direitos das crianças desde muito pequeninas impõe repensar o modelo de formação de professores com vistas a que atendam as especificidades do público da creche e pré-escola. Ao discutir as especificidades da docência na educação infantil, Campos (2008) reconhece a história das creches e sua relação com os serviços situados no âmbito da assistência social até meados da década de 1990, problematizando os processos de configuração da profissão do docente para atuar com crianças de 0 a 3 anos, assim como os dilemas em torno da compreensão de suas funções indissociáveis - educar e cuidar. Para essa autora, o modelo tradicional de escolarização de atuação do professor, construído no ensino fundamental não se ajusta às necessidades da educação infantil, que, por um lado, precisa considerar as especificidades da educação e cuidado das crianças de zero a três anos e, ainda, não reproduzir práticas do ensino fundamental, junto às crianças de 4 e 5 anos da pré-escola.

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Ao chamar a atenção para os encontros e desencontros na formação dos profissionais da educação infantil, Kishimoto (2008, p.107) afirma que: Desde tempos passados, acumulam-se os problemas na formação, em decorrência da pouca clareza do perfil profissional desejado nos cursos de formação propostos. As contradições aparecem nos cursos amorfos que não respeitam a especificidade da educação infantil. Se a afirmação da pedagogia da infância representa um momento de encontro, de acerto, ao exigir um corpo de conhecimentos capaz de perceber especificidades para as crianças de 0 a 6 anos e de 7 a 10 anos, as práticas adotadas, de um curso sem diferenciação para formar profissionais a fim de educar crianças de 0 a 10 anos, representam desencontros de concepções e de ações, conduzindo a educação infantil ao reboque das séries iniciais do ensino fundamental.

O que é corroborado por Gatti (2014), ao discutir os desafios da formação de professores na contemporaneidade, quando problematiza a configuração da Pedagogia, o curso privilegiado para formar professores de educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental no Brasil. Afirma, ainda, que as novas diretrizes12, atribuíram muitas funções ao referido curso e salienta que a primeira etapa da educação básica acaba ficando relegada à segundo plano em tal processo de formação. Concordando com a avaliação dessa autora, observa-se a pouca especificidade pela qual a própria Resolução CNE/CP nº 01/2006 se refere à docência para a educação infantil e verifica-se que a primeira etapa da educação básica é tratada de modo focalizado apenas no inciso II, do art. 5º, ao determinar que o egresso do curso de Pedagogia deverá “[...] compreender, cuidar e educar crianças de zero a cinco anos, de forma a contribuir, para o seu desenvolvimento nas dimensões, entre outras, física, psicológica, intelectual, social.” (BRASIL, 2006a).

12

A autora refere-se à Resolução CNE/CP nº 01, de 15 de maio de 2006 (BRASIL, 2006a).

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Considerando as especificidades da realidade educacional brasileira, vale observar os dados do censo escolar no que tange ao perfil de formação dos docentes que atuam na educação infantil. Os dados registrados nas Tabelas 1 e 2 evidenciam que ano a ano, de 2007 a 2014, vem aumentando gradativamente o número de professores do ensino fundamental e da educação infantil com formação em nível superior, exceto nos anos de 2008 e 2009, que ficaram abaixo de 2007 (atingindo, em 2014, 78,4 e 62,4%, respectivamente) e diminuiu sensivelmente o total de professores que atuavam nessas etapas da educação básica apenas com ensino fundamental (chegando em 2014 a 0,2% e 0,6%, nessa ordem). Contudo, quando se coloca o foco na formação em nível médio, chama a atenção o fato de ocorrer paralelamente, nesse mesmo período, a diminuição de professores formados no curso normal/magistério e o aumento dos com apenas ensino médio, não profissionalizante. Em 2014, por exemplo, no ensino fundamental (Tabela 1) os com a primeira formação totalizavam 11,1% e os com a segunda, 10,4%. Ressalte-se que nesse período houve fechamento de cursos normal/magistério o que explica essa diminuição. Entretanto, o efeito dessa decisão deveria ter reverberado no nível superior e não no ensino médio comum. Ademais, ainda que os escores sejam pouco significativos, havia 2.741 professores do ensino fundamental formados apenas nessa etapa da educação básica; na educação infantil eram 2.846 nessa condição. Esse cenário evidencia que serão necessários muitos esforços de todas as esferas administrativas para atingirmos a Meta 15 do Plano Nacional de Educação 2014-24 (BRASIL, 2014a), a saber: [...] garantir, em regime de colaboração entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no prazo de 1 (um) ano de vigência deste PNE, política nacional de formação dos profissionais da educação de que tratam os incisos I, II e III do caput do art. 61 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, assegurado que todos os professores e as professoras da educação básica possuam formação específica de nível superior, obtida em curso de licenciatura na área de conhecimento em que atuam (BRASIL, 2014a).

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A proporção de docentes que atuam na educação infantil e ensino fundamental e sua relação com os graus de formação, demonstra que houve avanços desde 2007, mas revela a necessidade de estudos que problematizem as desigualdades presentes nos processos de formação dos profissionais. Tabela 1 – Grau de formação dos professores do ensino fundamental – 2007-2014 Ano

Ensino Fundamental

Ensino Médio Normal/Magistério

Ensino Médio Ensino Superior

2007 0,7%

8.867

24,5%

321.084

5%

66.009

69,8%

914.327

2008 0,6%

7.789

24,8%

341.869

5,8%

79.657

68,9%

951.780

2009 0,5%

6.926

23,5%

323.534

6,3%

86.595

69,7%

960.428

2010 0,5%

7.003

21,5%

297.896

7,2%

99.643

70,8%

979.424

2011 0,4%

6.054

17,8%

247.789

8,7%

121.264

73%

1.014.597

2012 0,3%

4.200

14,7%

207.292

9,7%

136.315 75,3% 1.057.745

2013 0,2%

3.136

12,7%

179.171

10,1% 142.407

77%

1.085.277

2014 0,2% 2.741 11,1% 157.235 10,4% 146.155 78,3% 1.105.993 Fonte: MEC/Inep/DEED/Censo Escolar / Preparação: Todos Pela Educação13.

Tabela 2 – Grau de formação dos professores da Ed. infantil – 2007-2014 Ano

Ensino fundamental

Ensino médio Normal/Magistério

Ensino médio

Educação superior

2007

1,9%

6.020

42,9%

138.946

7,2%

23.397

48,1%

155.885

2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

1,5% 1,3% 1,3% 1,2% 0,9% 0,7% 0,6%

5.398 4.968 5.041 4.880 3.832 3.144 2.846

43,5% 41,3% 38,8% 33,4% 28,4% 24,9% 22,3%

153.808 152.567 147.833 136.612 125.860 117.965 111.351

8,5% 9,3% 9,9% 12,6% 13,9% 14,5% 14,7%

29.972 34.435 37.888 51.537 61.780 68.588 73.531

46,4% 48,1% 50% 52,8% 56,8% 60% 62,4%

164.015 177.728 190.709 215.710 251.933 284.894 311.057

Fonte: MEC/Inep/DEED/Censo Escolar / Preparação: Todos Pela Educação (idem).

No caso da educação infantil (Tabela 2), somente pouco mais 60% dos professores, em 2014, possuía educação superior, mas essa 13

Disponível em: . Acesso em: 14 jun. 2016.

161

informação pode ocultar outros problemas relacionados tanto à qualidade duvidosa dessa formação como a descontinuidade do processo de aprimoramento contínuo necessário a todo profissional. Mesmo considerando as disparidades das condições de formação no contexto brasileiro, a possibilidade de admissão de profissionais com formação em nível médio para atuar na docência da educação infantil e primeiros anos do ensino fundamental, conforme preconiza a LDBEN/1996, torna-se uma questão, ainda, contraditória, demonstrando o lugar excludente ocupado pelos primeiros anos da educação básica, visto que nas demais etapas (anos finais do ensino fundamental e ensino médio) há a exigência da formação docente na educação superior, em cursos de licenciaturas, como nos mostra o Gráfico 1. Gráfico 1 – Percentual de docências com professores que possuem formação superior compatível com as disciplinas que lecionam – Brasil – 2013

Fonte: BRASIL, 2015a, p. 266.

Como forma de monitoramento do cumprimento das metas do PNE/2014-24, o documento “Plano Nacional de Educação PNE 2014-2014: linha de base”, publicado pelo Inep no ano de 2015 (BRASIL, 2015a), ao analisar os dados da Meta 15 e, considerando os professores da educação básica com licenciatura nas áreas do

162

conhecimento em que atuam, corrobora a constatação de ser a educação infantil a etapa com menor índice de docentes com formação compatível à área de atuação. As Tabelas 3 e 4, com dados também de 2013, nos ajudam a observar de forma mais atenta as disparidades dos processos de formação dos docentes que atuam na educação infantil. Observa-se que na creche (Tabela 3) há um número superior de profissionais atuando nessa fase da educação infantil tendo como formação apenas o ensino fundamental se comparado com dados da préescola (Tabela 4). Mantendo essa comparação entre as fases da educação infantil, é na primeira, que temos um número menor de profissionais com a mais elevada formação o Normal/Magistério ou somente o ensino médio. Logo, nessa etapa da escolarização atuam mais profissionais sem formação na educação superior (aproximadamente 40%). Na pré-escola, esses índices também se mostram insuficientes, revelando um número considerável de profissionais que atuam na educação infantil com formação elementar ou mesmo abaixo do preconizado pela LDBEN/1996 para o exercício da função. Tabela 3 – Número de professores de creche e proporção por grau de formação – Brasil – 2013 Ensino médio Ensino Total Educação Ensino fundamental Normal/Magistério superior médio 211.694 0,8% 25% 15% 59,2% Fonte: Dados organizados pelas autoras a partir da sinopse estatística do Censo escolar da educação básica de 2013 produzida pelo Inep14.

Os dados indicam que os esforços para garantir formação superior para todos os professores que atuam na educação infantil, exigiram um pouco mais de empenho em relação aos que atuam em creches (Tabela 3) considerando os vinculados à pré-escola 14

Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2015.

163

(Tabela 4). Um desafio a ser colocado nessa discussão refere-se aos modos como resolveremos o problema da formação dos profissionais da educação infantil, considerando a Lei 12.796/2013, assim como a Emenda Constitucional nº 59 de 11 de novembro de 2009, quando institui a obrigatoriedade da escolarização dos 4 aos 17 anos de idade. Tabela 4 – Número de professores de pré-escola por grau de formação – Brasil - 2013 Ensino médio Total Ensino Educação Ensino fundamental Normal/Magistério superior médio 289.507 0,5% 24% 14% 61,5% Fonte: Dados organizados pelas autoras a partir da sinopse estatística do Censo escolar da educação básica de 2013 produzida pelo Inep (idem).

A seguir, faremos uma discussão a respeito dos processos de formação de professores para atuar no atendimento educacional especializado na educação infantil. Educação Especial, Educação Infantil e Atendimento Educacional Especializado Tal como discutido por Bueno (1999), Prieto (2003, 2006), Pagnez, Prieto e Sofiato (2015), a necessidade de se repensar a escola no momento histórico da inclusão escolar provoca alguns desafios para os processos de formação de professores na contemporaneidade. Desse modo, Prieto (2006, p. 57) salienta que: A expansão do acesso de alunos com necessidades educacionais especiais15 às classes comuns, constatável principalmente desde a última década do século XX, demanda investimento de diversas naturezas para também

15

Prieto (2006) informa que essa denominação se refere aos alunos com deficiência, com condutas típicas e com altas habilidades/superdotação, a partir de dados censitários oficiais.

164

assegurar sua permanência, desenvolvimento.

compreendida

como

aprendizagem

e

Considerando os desafios atuais demandados pelo processo de matrícula dos estudantes pertencentes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação nas classes comuns, a autora afirma que os sistemas de ensino necessitam comprometer-se “[...] com a qualidade do ensino que, nessa perspectiva, devem assegurar que sejam aptos a elaborar e implantar novas propostas e práticas de ensino para responder às características de seus alunos [...]” (PRIETO, 2006, p. 57), inclusive para aqueles que apresentam necessidades educacionais especiais. Recorremos novamente, à Resolução CNE/CP nº 01/2006 (BRASIL, 2006a), que institui as Diretrizes nacionais para o curso de Pedagogia, e concordamos com Saviani (2009) quando esse afirma ser secundária a referência que esse documento faz à educação especial, o que se torna um problema, considerando os processos de formação inicial dos professores que atuarão na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental. A menção feita sobre a educação especial no documento aparece no inciso X, do art. 5º, considerando que o egresso do curso de Pedagogia deve “[...] demonstrar consciência da diversidade, respeitando as diferenças de natureza ambiental-ecológica, étnicoracial, de gêneros, faixas geracionais, classes sociais, religiões, necessidades especiais [...]” (BRASIL, 2006a, p. 2), tal como no inciso III, do art. 8º, quando prevê que os projetos pedagógicos das instituições de educação superior devem garantir a integralização de estudos a partir de: [...] atividades complementares envolvendo o planejamento e o desenvolvimento progressivo do Trabalho de Curso, atividades de monitoria, de iniciação científica e de extensão, diretamente orientadas por membro do corpo docente da instituição de educação superior decorrentes ou articuladas às disciplinas, áreas de conhecimentos, seminários, eventos científico-culturais, estudos curriculares, de modo a propiciar vivências em algumas modalidades e experiências, entre outras, e opcionalmente, a educação de pessoas com necessidades especiais, a educação do campo, a

165

educação indígena, a educação em remanescentes de quilombos, em organizações não-governamentais, escolares e não-escolares públicas e privadas (BRASIL, 2006a, p. 4).

Vale ressaltar que na legislação brasileira de educação especial (BRASIL, 2008, 2009b), é compreendida como modalidade de ensino, de caráter transversal, oferecida, preferencialmente, na rede regular de ensino para alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento (TGD) e altas habilidades/superdotação (BRASIL, 2013). A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva de 2008 (BRASIL, 2008) define educação especial como [...] uma modalidade de ensino que perpassa todos os níveis, etapas e modalidades, realiza o atendimento educacional especializado, disponibiliza os recursos e serviços e orienta quanto a sua utilização no processo de ensino e aprendizagem nas turmas comuns do ensino regular (BRASIL, 2008).

Quando organizado tendo como “função complementar ou suplementar a formação do aluno”, o atendimento educacional especializado (AEE) deve configurar-se em “estratégias que eliminem as barreiras para sua plena participação na sociedade e desenvolvimento de sua aprendizagem” (BRASIL, 2009b, art. 2º), ocorrer no “turno inverso da escolarização” [...] “não sendo substitutivo às classes comuns” (BRASIL, 2009b, art. 5º). Compreendendo a educação especial como modalidade transversal a todos os níveis e modalidades de ensino, faz-se necessário considerar os modos como os serviços do atendimento educacional especializado devem ser organizados, considerando as especificidades da educação infantil. Mendes (2010) ao defender os processos de inclusão escolar desde a creche, considerando esse lugar a porta de entrada de muitas crianças na educação básica, problematiza as precárias condições de atendimento oferecidas pela própria educação infantil, enfocando ainda, os processos de formação inicial e

166

continuada dos profissionais que atuam em creches em muitos sistemas de ensino públicos do país. Nesse sentido, outra pergunta nos incita a pensar sobre a relação entre a educação infantil, o atendimento educacional especializado e os processos de formação de professores que atuarão com as crianças de 0 a 5 anos de idade, considerando as especificidades daquelas que apresentam deficiência, TGD e altas habilidades/superdotação: Considerando a articulação da educação infantil com a educação especial, como deve se dar a formação de professores para atuar no atendimento educacional especializado nessa etapa do ensino? Para isso, recorreremos às orientações técnicas propostas pela Nota técnica conjunta16 nº 2, de 4 de agosto de 2015 (NT n° 2/2015) – (BRASIL, 2015c), com “orientações para a organização e oferta do atendimento educacional especializado na educação infantil”, a ser efetivado no contexto de cada instituição educacional, pelos “professores do AEE” com “formação específica para a Educação Especial” (BRASIL, 2009b, art. 13 e 12, respectivamente), que deve atuar nos diferentes contextos e espaços de tais instituições, tais como: parque, berçário, solário, refeitório, dentre outros. Assim, a NT n° 2/2015 orienta que “cabe ao professor do AEE identificar necessidades e habilidade de cada criança por meio de estudo de caso, a partir dos quais são propostas formas de eliminação das barreiras existentes em cada ambiente” (BRASIL, 2015c, p. 4). Fazendo uso dessa estratégia de estudo de caso, o professor do atendimento educacional especializado na educação infantil: [...] elabora o plano de atendimento educacional especializado que define o tipo de atendimento à criança; identifica os recursos de acessibilidade necessários, produz e adequa materiais e brinquedos; seleciona os recursos

16

Assinam a NT n° 2/2015 duas secretarias do Ministério da Educação: a Diretoria de políticas de educação especial da Secretaria educação continuada, alfabetização, diversidade e inclusão e a Diretoria de currículos e educação integral da Secretaria de educação básica.

167

de Tecnologia Assistiva a serem utilizados; acompanha o uso dos recursos no cotidiano da educação infantil, verificando sua funcionalidade e aplicabilidade; analisa o mobiliário; orienta professores e as famílias quanto aos recursos de acessibilidade a serem utilizados e o tipo de atendimento destinado à criança. O professor do AEE, também se articula com as demais áreas das políticas setoriais, visando ao fortalecimento de uma rede intersetorial de apoio ao desenvolvimento integral da criança (BRASIL, 2015c, p. 5).

Observa-se uma demanda significativa de atribuições propostas nas orientações dessa NT e que requer uma identidade profissional específica para o docente que atuará no atendimento educacional especializado na educação infantil, com saberes e habilidades muito específicos que só podem ser adquiridos em um processo de formação bastante minucioso, que leve em conta os conhecimentos do campo da educação infantil, considerando as necessidades das crianças de zero a cinco anos, assim como noções amplas do campo da educação especial. De acordo com dados do Censo escolar, em 2015 havia 930.683 matrículas de alunos com deficiência, TGD e altas habilidades/superdotação, sendo 64.048 vinculadas à educação infantil, o que correspondia a 6,88% desse total. O compromisso com os processos de formação inicial e continuada, que leve em conta os desafios demandados pela política de educação especial na perspectiva da educação inclusiva, também é reconhecido na Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (BRASIL, 2015b), que “institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência)”, ao dedicar nos incisos X e XI, do art. 28, atenção sobre a temática, propondo a: [...] X - adoção de práticas pedagógicas inclusivas pelos programas de formação inicial e continuada de professores e oferta de formação continuada para o atendimento educacional especializado; XI - formação e disponibilização de professores para o atendimento educacional especializado, de tradutores e intérpretes da Libras, de guias intérpretes e de profissionais de apoio [...] (BRASIL, 2015b).

168

Em atenção à formação continuada e tomando como base a PNEI/2006 (BRASIL, 2006b, p. 17), nas quais já se encontravam orientações em âmbito federal de que a “[...] educação das crianças com necessidades educacionais especiais deve ser realizada em conjunto com as demais crianças [...]”, foi efetuado um levantamento de pesquisas, envolvendo as temáticas educação infantil, educação especial e/ou inclusiva e formação docente inicial e continuada17, que resultou na seleção de 10 produções, sendo dois artigos (VICTOR, 2009; VITTA, DE VITTA, MONTEIRO, 2010), duas teses (OLIVEIRA, 2009; CAMARGO-SILVA, 2011) e seis dissertações (AMARAL, 2006; CAMARGO-SILVA, 2006; LORETO, 2009; LOIOLA, 2012; NEÓFITI, 2012; RODRIGUES, 2013). Da análise desse conjunto de produções acadêmicas, de uma maneira geral, quando consideram o processo histórico tanto da educação infantil quanto da educação especial, afirmam que esses estiveram marginalizados pelas políticas públicas de formação, sendo recente a preocupação em implementar ações que integram essas duas áreas. Assim sendo, as conclusões desses estudos indicam que a formação inicial de grande parte dos professores atuantes há mais tempo na educação infantil, não incorporou conhecimentos ligados à área de educação especial na perspectiva da educação inclusiva. Desse modo, alguns autores concluem que a formação continuada se coloca como uma ação que pode suprir tal carência, até porque muitos professores e profissionais das escolas, ainda mantém um discurso que vincula a educação inclusiva à socialização (VITTA, DE VITTA, MOREIRA, 2010) ou à presença de crianças com e sem deficiência em um mesmo espaço educacional (LOIOLA, 2012). Além disso, apontam que, embora o debate tenha se ampliado nos últimos anos, ainda não se configuram como prioridade das

17

Ressalta-se que esse levantamento foi feito a partir do acervo das pesquisadoras e de uma atualização, entre junho e julho de 2016, no Portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) e no Google acadêmico.

169

políticas públicas de educação, sendo que a demanda de crianças público-alvo da educação especial não é atendida e as ações previstas não são suficientemente implementadas (AMARAL, 2009; VICTOR, 2009). Denunciam que não basta boa vontade dos professores, mas sim, ações políticas concretas para a efetivação de uma educação inclusiva com qualidade, e a relacionam às condições estruturais das escolas e à disponibilização de recursos pedagógicos e humanos. No que tange à formação continuada, esse conjunto de produções indica organizações que podem ser classificadas em quatro grupos: 1. Formação continuada como espaço para a superação da resistência à inclusão escolar e posta como incumbência das secretarias municipais de educação com possibilidade de articulação junto às universidades, a partir de propostas colaborativas que conferem um status aos saberes trazidos pelos professores, os quais, quando articulados aos conhecimentos produzidos pela academia e trabalhos científicos, colocam-nos como coparticipantes de seu processo formativo (NEÓFITI, 2009; OLIVEIRA, 2009; VICTOR, 2009); 2. Formação continuada como espaço para a aquisição de um rol de conhecimentos para trabalhar com a diversidade (VITTA; DE VITTA; MOREIRA, 2010); 3. Formação continuada que oportunizam protagonismo do professor de educação infantil diante da inclusão escolar e a inexistente ou insuficiente oferta de formação continuada (AMARAL, 2006; CAMARGO-SILVA, 2006; LOIOLA, 2012; LORETO, 2009; RODRIGUES, 2013); e 4. Ações de formação continuada ainda com foco no ensino fundamental (CAMARGO-SILVA, 2011). Assim, de uma maneira geral, a contribuição dessas produções se dá quando, ao apreenderem a fragilidade dos cursos de formação inicial apontada pelos sujeitos dessas pesquisas, a formação continuada se coloca como um espaço legítimo para a efetivação da política de inclusão escolar desde a educação infantil. Entretanto, deve ser um espaço de diálogo, reflexão e

170

protagonismo repensando sua realidade escolar e ter como referência questões relativas às especificidades do atendimento educacional especializado na educação infantil. Ainda, somada à problemática da proporção significativa de profissionais que não têm a formação mínima para o exercício da docência na primeira etapa da educação básica, há uma questão importante a ser considerada nas políticas públicas de formação de professores que é verificar como se dará a articulação entre a atuação do profissional do atendimento educacional especializado e o professor do ensino comum nas creches e pré-escolas brasileiras. Com relação a esse ponto, Amaral (2006), Loreto (2009) e Victor (2009), indicaram que a ausência ou insuficiência de apoio por parte do professor especializado na sala de aula onde os alunos com deficiência, TGD e altas habilidade/superdotação estão matriculados constitui-se como entrave à consolidação de seu processo de inclusão escolar. Além disso, também sugerem que ações de formação continuada podem auxiliar na definição dos papeis a serem exercidos por professores no processo de inclusão escolar (VITTA; DE VITTA; MONTEIRO, 2010) e quando se tratar da formação de professores especializados em educação especial, há que se ter maior atenção às especificidades da infância, tal como o brincar, compreendido como meio prioritário de aprendizagem na educação infantil (OLIVEIRA, 2007; VICTOR, 2009; LOIOLA, 2012). Considerandos finais Nessa produção buscou-se problematizar os desafios da formação de professores para a educação infantil e sua interface com o atendimento educacional especializado na primeira etapa da educação básica, em um contexto de condições desiguais de formação inicial dos docentes que atuam na primeira etapa da educação básica.

171

Em conformidade com sinopse estatística do Inep, constata-se que, em 2014, apenas pouco mais de 60% dos professores da educação infantil tinham formação em educação superior quando no ensino fundamental esse índice estava próximo de 80%18, embora em ambos os casos estejamos distantes de atingir a totalidade de professores com graduação. Ainda, considerando o reconhecimento do direito à educação, a integração da educação infantil como primeira etapa da educação básica, a escolarização obrigatória a partir dos 4 anos de idade, a compreensão do status educacional das creches, faz-se necessário repensar as especificidades da formação inicial de professores para atuar junto a crianças de 0 a 5 anos de idade. Reconhecendo os impactos dos processos de inclusão escolar do público-alvo da educação especial na escola comum e a necessidade de problematizar os processos pedagógicos na contemporaneidade, faz-se emergente, ainda, o enfrentamento das formas desiguais e excludentes do atendimento das pessoas com deficiência, TGD e altas habilidades/superdotação em todas as etapas, níveis e modalidades da educação escolar, iniciando pela educação infantil. Do profissional que atuará no atendimento educacional especializado na educação infantil são esperados que tenham acesso a conhecimentos cada vez mais aprofundados sobre as crianças de zero a cinco anos, tal como aquisição contínua de domínios pertinentes à área de educação especial. O resgate empreendido das pesquisas que articulam os campos da educação infantil e educação especial apontam para, além do investimento em formação inicial, que sejam revistas, também, as propostas de formação continuada, pois, quando se trata da educação inclusiva, não devem limitar-se à transmissão de conhecimentos da área da educação especial, mas deve assegurar que o professor tenha repertório para planejar pedagogicamente modos de enfrentamento diante das dificuldades encontrados no 18

Conforme dados apresentados nas Tabelas 1 e 2 do presente texto.

172

processo de ensino-aprendizagem das crianças com deficiência, TGD e altas habilidades/superdotação matriculadas na primeira etapa da educação básica. Contudo, tal tipo de formação deve ser empreendida com a mediação da pesquisa, do estudo e da reflexão sistematizada de ambas às áreas onde, tanto o professor do ensino comum, quanto ao do especializado poderão ter asseguradas condições de acesso aos novos conhecimentos produzidos nos diferentes campos, em interface com a educação infantil. Recorrendo a Kramer (2008, p. 128), ressaltamos que a formação além de um dever do Estado é direito de todos os professores e fruto de conquistas em prol de “[...] uma escola pública de qualidade [...]”, condição essencial ao enfrentamento das desigualdades educacionais e que pode ampliar as possibilidades de alcançarmos experiências exitosas de inclusão escolar.

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DIVERSIDADE E INCLUSÃO: O ENSINO DESENVOLVIMENTAL Laura Marisa Carnielo Calejon1 Guillermo Arias Beatón2

O universalismo que queremos hoje é aquele que tenha como ponto em comum a dignidade humana. A partir daí, surgem muitas diferenças que devem ser respeitadas. Temos direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza (Boaventura de Souza Santos).

As reflexões apresentadas neste capítulo foram apresentas em diferentes encontros, reuniões e discussões entre pesquisadores interessados em compreender os desafios da educação na contemporaneidade marcada por transformações rápidas, pelo discurso da educação para todos e finalmente pelo reconhecimento da educação que é oferecida para todos não tem a mesma qualidade e não oferece a todos os sujeitos as mesmas oportunidades de desenvolvimento, assim como não corresponde ao discurso de políticos, educadores e existentes nos documentos. Os movimentos do século XX, em defesa de uma educação para todos, ampliaram a diversidade existente nas salas de aula fortalecida pelo modo de repensar a educação especial no cenário de uma educação considerada inclusiva. O conhecimento é um processo dinâmico de construção e de intercambio que coloca em marcha as ideias, no contexto das relações Dr. Guillermo Arias Beatón, presidente de la Cátedra Vigotski de la Universidad de La Habana, profesor de la misma Universidad - Cuba. 2 Cátedra Vygotski/Universidade de Havana. 1

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interpessoais, oportunizando a produção de novas possibilidades de organizar contextos de ensino e educativos de qualidade que são promotores de desenvolvimento das funções psíquicas superiores no ser humano, um ensino que pode ser considerado como desenvolvimentista ou que ¨arrasta o desenvolvimento¨ como sugere Arias Beatón em seus cursos e conferências e em todo o seu trabalho na direção da Cátedra Vygotski, na Universidade de Havana e no Ministério da Educação em Cuba. Como professora e supervisora, em cursos de graduação em Psicologia e pesquisadora em um Programa de Mestrado e Doutorado, no Ensino de Ciências e Matemática, coordenadora de um curso de especialização em Psicopedagogia, oferecidos pela Universidade Cruzeiro do Sul, e mais recentemente pesquisadora vinculada ao Centro de Pesquisa, Ensino e Extensão em Educação (CEPEED) e ao Grupo de Estudos e Pesquisa da Práxis Educacional (GEPPE) da UEMS, busco compreender a contribuição que a Psicologia pode oferecer para a educação e para a organização de contextos de ensino que promovam efetivamente o desenvolvimento das funções mencionadas. Esta é uma questão central da nossa reflexão, fortalecida pelo diálogo com pesquisadores da Cátedra Vygotski, assim como pelos diálogos realizados há doze anos, principalmente com Guillermo Arias Beatón e Gloria Fariñas3, tendo como foco o papel da educação no desenvolvimento humano, o papel dos professores, das famílias, da avaliação e dos fundamentos teóricos e metodológicos que sustentam estas atividades. A formação inicial e continuada de professores tem sido uma condição relacionada, de modo muito intenso, com a qualidade do processo educativo e com os desafios enfrentados por uma educação que pretende ser inclusiva. A reflexão proposta também se fortalece do diálogo e da produção do Laboratório Interdisciplinar de Psicologia Escolar e Educacional (LIEPPE) da Universidade de São Paulo, principalmente a partir da proposição de uma Psicologia 3

Dra Gloria Fariñas Leon, vice presidente de la Cátedra Vigotski y profesora de la Universidad de La Habana - Cuba.

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Escolar Crítica, sustentada pelas explicações sobre o desenvolvimento das funções psíquicas superiores sistematizadas pelo Enfoque Histórico-Cultural. Shuare (1990) ampliou a compreensão do enfoque mencionado, demonstrando sua emergência no contexto da psicologia soviética. Assim, constitui-se a reflexão proposta neste artigo, tomando como foco a diversidade e a inclusão no contexto de um ensino desenvolvimentista. Os termos exclusão/inclusão, integração aparecem no centro de muitas discussões sobre educação, encontrando-se, muitas vezes, o esforço que nos parece pouco produtivo, para diferenciar estes conceitos. Estes conceitos trazem como condição comum o fato de que a educação que pretende ser de qualidade e para todos, precisa considerar a diversidade existente nas salas de aula, na medida em que a escola abre suas portas para diferentes segmentos da sociedade. Assim, o termo inclusão pode ter muitos significados e definições, sinalizando diferentes contextos de materialização do ensino que ocorre no contexto da diversidade. Tomamos o termo em uma dimensão ampla, buscando ao longo do capítulo demonstrar as relações entre a diversidade e a educação de qualidade, na medida em que consideramos a educação inclusiva como aquela educação de qualidade que pode atender a todos os cidadãos. A aparente simplicidade da definição implica em grandes desafios e dificuldades do processo educativo e da organização dos contextos de ensino. A violência na escola e no contexto social é um dos desafios evidenciados. A violência tem múltiplas expressões, podendo ser mais explícita, como nas agressões físicas e verbais sofridas por estudantes e professores, ou mais sutil e menos evidente como aquela que ocorre com as pessoas que são expulsas da escola ou que não tem a oportunidade de ingresso, negando-se a estas pessoas do direito e da oportunidade de cidadania. A discussão proposta orienta-se inicialmente pela análise das relações entre a diversidade e a educação inclusiva, a partir de explicações sistematizadas pelo Enfoque Histórico-Cultural, pela proposição de um diálogo transformador.

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Analisa, em seguida, a violência e o sofrimento vivido por estudantes e professores, a diversidade e a inclusão social e educacional de jovens e adultos que não puderam, a seu tempo, frequentar a escola, por diferentes razões. 1) Diversidade e inclusão na educação. A diversidade pode ser, como propõe a Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) nas Metas Educacionais 2021, uma riqueza para a educação do século XXI. Focalizam a situação da América Latina em relação a outros países desenvolvidos, propondo educar em uma sociedade educadora, na diversidade, cuidar da infância, melhorar a qualidade e equidade dos processos educativos, como alguns dos desafios enfrentados pelas proposições da OEI para uma educação pretendida na Ibero-América. Pretensões, expectativas e desejos não se materializam apenas por decretos. Para que isto ocorra é necessário tratar a diversidade que implica em diferença, não como desigualdade e injustiça social, o que nos obriga a considerar o movimento da sociedade que institui a escola e que esta, por sua vez, reproduz e faz uma transmissão da desigualdade social existente em um projeto de sociedade de classes, marcada por relações de exploração e de consumo. É necessário reconhecer que nos constituímos como sujeitos a partir do outro e do diverso e que a qualidade do trabalho coletivo e compartilhado pode ser maior do que aquela alcançada pelo trabalho individual e ainda que os desafios que a vida e a educação nos oferece podem encontrar uma solução de maior qualidade no trabalho colaborativo e cooperativo. Estas considerações estão estreitamente relacionadas com as concepções de educação e de desenvolvimento humano assumidas, de modo mais ou menos consciente, pelos educadores, pelos gestores e pelas políticas educativas. Em uma sociedade competitiva, como a sociedade capitalista, a colaboração e cooperação necessárias para manejar a diversidade não é frequente, nem facilmente alcançada. Bion (1961) demonstra como é

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difícil, para o ser humano relacionar-se, de maneira realista, com os demais, na realização de uma tarefa conjunta. Considera o homem como um animal grupal que necessita do outro para progredir, mas que muitas vezes não pode chegar muito longe com este outro. Apesar disto ele precisa manter uma cooperação efetiva, na realização de todas as tarefas da vida. Gergen (1999, p.30) afirma que: "Talvez o principal desafio para o século XXI seja como conseguir viver juntos neste planeta". O conceito de mecanismo de defesa, sistematizado pela Psicanálise, no plano do sujeito, assim como o de mecanismo social de defesa, no plano das relações sociais permite, ainda que parcialmente, compreender estas situações. Menzies Lyth (1990), analisando as instituições sociais, desde uma perspectiva psicanalítica, aponta para a importância das defesas que aparecem na própria estrutura da instituição, permeando todo seu funcionamento, para lidar com conteúdos provocadores de ansiedade e as dificuldades decorrentes para a colaboração na realização de uma tarefa conjunta. O conceito de mecanismo de defesa aparece não só no plano do funcionamento do sujeito, mas também como mecanismo social de defesa, no plano institucional e das relações interpessoais. O inconsciente é um conceito fundamental desta compreensão, razão pela qual consideramos a explicação como parcial. Não cabe, nos limites deste capítulo, ampliar a discussão sobre as diferentes interpretações que o conceito de inconsciente ou de conteúdos não conscientes da vida psíquica do sujeito e das instituições pode ter. As explicações da Psicanálise e de outras correntes teóricas da Psicologia do século XX, ainda que consigam explicar as dificuldades para a cooperação e colaboração não oferecem, muitas vezes, recursos para lidar e compreender os preconceitos, as dificuldades para desenvolver sujeitos cooperativos e colaboradores. Gergen (1999) e Menzies Lyth (1990) analisam a questão desde duas perspectivas: do ponto de vista do funcionamento e dos mecanismos institucionais e a partir da proposição de um recurso proposto pela postura construcionista social, sugerindo um diálogo transformador. A primeira e a segunda

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perspectiva, ainda que propondo caminhos diferentes sustentam-se na noção de conflito e da perspectiva ontogenética baseada na história de cada sujeito, ainda que as relações interpessoais e sociais sejam consideradas. Do ponto de vista construcionista social tanto o racional quanto o real são subprodutos de relações comunitárias. O construcionista consideram os argumentos racionais ou as regras de deliberação racional como histórica e culturalmente situados (GERGEN,1999). Ainda que valorizando a dimensão histórica e cultural estas não são consideradas como constituintes do sujeito. Ultrapassa os objetivos deste artigo discutir os limites destas perspectivas teóricas, ainda que a análise de alguns conceitos propostos por esses autores permita pensar sobre os desafios da educação na contemporaneidade. Entendemos o valor destes argumentos na perspectiva de um desafio que exige uma explicação do desenvolvimento humano que seja capaz de explicar a integralidade deste processo, para organizar uma educação desenvolvimentista e verdadeiramente inclusiva.Uma explicação que seja capaz de compreender os desafios para produzir um vocabulário para um diálogo transformador. Gergen (1999) propõe a criação de um vocabulário para um diálogo transformador, definido como qualquer forma de intercambio que consiga transformar uma relação entre indivíduos comprometidos com realidades separadas em uma relação capaz de construir relações comuns e solidificadoras (Gergen,1999), fazendo as seguintes sugestões: de transitar da culpa à responsabilidade relacional ou corresponsabilidade; a importância da auto-expressão; o papel da auto-reflexão e das múltiplas vozes que podem criar temas compartilhados; o lugar do outro na constituição da nossa subjetividade; a co-criação de novos mundos. Ele assinala que muitas dificuldades para um diálogo transformador estão em nossas tradições assentadas na lógica de uma só verdade, das possibilidades de vencer ou perder, de atribuir somente ao sujeito a responsabilidade de seus erros e de seus acertos. Em um contexto de relações interpessoais organizadas por essa lógica o sujeito culpado converte-

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se em objeto de desprezo e motivo de castigo e de correção. Aquele que acusa, por sua vez, apresenta-se como o integro e correto. A punição do sujeito, por outro lado, produz um certo alivio e o instituído fica mantido. Assim, a proposição do autor é o trânsito de uma culpa individual para una responsabilidade social e compartilhada. Gergen (1999) analisa ainda o papel desempenhado pela autoexpressividade do sujeito para a proposição de um diálogo transformador. Nossa tradição ocidental, marcada pelo individualismo, considera nossos sentimentos e pensamentos internos como aqueles que nos definem em nossa essência, colocando, o sujeito, no diálogo, como aquele que deve ser ouvido. No Projeto de Conversações Públicas, apresentado pelo autor, a auto-expressividade pode ganhar outra dimensão e os participantes são estimulados a falar sobre os fatos e os temas desde seu envolvimento pessoal e não só a partir de argumentos abstratos. Ao ouvirmos histórias, geramos imagens, vivemos o drama, sofremos e vibramos com o falante (GERGEN, 1999). Em uma conversação deste tipo além de ouvir o outro, o sujeito pode ouvir a si mesmo. A valorização do drama vivido pelo sujeito como condição de compreensão do psiquismo e das relações interpessoais,contraposta a argumentos abstratos denuncia um divisor de águas existente na construção do conhecimento psicológico e na produção das teorias que sustentam a organização de contextos educativos.Esta questão não está suficientemente tratada pela própria psicologia no seu processo de construção como ciência, não é discutida pelo autor mencionado e ultrapassa e ultrapassa os objetivos deste artigo. Assim, a compreensão efetiva da proposição de um diálogo transformador obriga a repensar as explicações sobre o desenvolvimento humano elaboradas pela Psicologia no século XX, procurando uma explicação que seja capaz de abarcar a integralidade do processo evolutivo e histórico, assim como as múltiplas condições e circunstancias que interatuam na sua produção. As explicações sobre o desenvolvimento humano, produzidas ao longo do século XX

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enfatizam aspectos parciais do processo, como demonstrado por Vygotski (1996) na análise do significado histórico da crise vivida pela Psicologia desde o início do século passado. A diversidade de correntes teóricos existentes na Psicologia no início do século XXI demonstra que a crise ainda não foi superada. Ampliar esta discussão não se constituí em objetivo deste capítulo, ainda que nos pareça necessário enfatizar que entendemos as explicações sistematizadas pelo Enfoque Histórico-Cultural como as mais adequadas para organizar um processo educativo capaz de promover uma educação de qualidade e para todos, considerando as condições biológicas, sociais e culturais que marcam a constituição do sujeito e devem ser consideradas na organização de cenários de ensino. Shuare (1990) afirma que corresponde a Vigotski o mérito inestimável de ser o primeiro a aplicar criativamente o materialismo histórico e dialético à ciência psicológica e de ter provocado nela uma verdadeira revolução. A autora considera ainda que os psicólogos contemporâneos voltam-se para Vigotski não como se fosse um cientista do passado ou um personagem da história da psicologia, mas como um pensador de hoje e suas obras são estudadas não como se estivessem sido escritas há mais de meio século, mas como se fossem atuais. Para este pensador o tempo como forma de existência da matéria é algo mais do que um postulado filosófico abstrato. O tempo humano, no sentido do materialismo histórico é historia, quer dizer, o processo de desenvolvimento da sociedade e para entender isto é fundamental o conceito de atividade produtiva das pessoas. A característica principal da atividade produtiva das pessoas caracteriza-se pelo fato de que ela é transformadora da natureza e não se limita a usar os recursos desta como fazem os animais. Sendo transformadora da natureza, transforma ao mesmo tempo o sujeito da atividade, sendo mediada pelos instrumentos e signos que se interpõem entre o sujeito e o objeto da atividade. Entre as contribuições de Vigotski para a compreensão do desenvolvimento humano e da educação a autora destaca a agudeza com que ele criticava a defectologia do seu tempo, enfatizando que os defeitos não

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podiam ser tomados como naturais, mas sociais, diferenciando o defeito primário do defeito secundário e o papel que a educação pode ter neste contexto. As contribuições de Vigotski neste campo ainda são pouco consideradas para produzir uma educação desenvolvimentista, principalmente no campo da deficiência intelectual, apesar das diferentes maneiras de organizar a educação especial e das tentativas de reduzir preconceitos e a segregação, colocando alunos considerados com necessidades educativas especiais nas classes regulares. A educação inclusiva abarca mais do que aqueles sujeitos que apresentam limitações biológicas, sejam elas visuais, auditivas, de locomoção ou intelectuais, tradicionalmente identificados como portadores de necessidades educativas especiais, entre outras denominações. Cabe ainda ressaltar que não pretendemos discutir neste artigo as diferentes denominações dadas a estes sujeitos na história das transformações da educação. Os desafios enfrentados pela educação no cenário brasileiro demonstram as dificuldades de uma educação que pretende ser inclusiva, evidenciando que inclusão não se faz por decreto, se almejamos organizar uma educação desenvolvimentista. Encontramos, hoje, nas nossas escolas, crianças e jovens que não apresentam estas condições, mas que não conseguem aprender, chegando ao final do ensino fundamental sem conseguir o domínio adequado da língua materna, dos conceitos básicos da matemática, das ciências em geral, dos conceitos sociais e com um desenvolvimento limitado do pensamento abstrato e generalizador, da função simbólica e do pensamento teórico. No cenário brasileiro, com certa frequência, encontramos o aluno que funciona como um deficiente mental, sendo o resultado de uma educação deficitária e do abandono educativo, mais do que das suas condições biológicas. O homem é um animal grupal por necessidade, na medida em que os desafios para sobrevivência no planeta não podem ser resolvidos individualmente. O homem sozinho e isolado não pode solucionar as tarefas complexas exigidas para sua sobrevivência na terra, principalmente em um mundo tão complexo como o atual que

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resulta de todas as transformações nas relações sociais, conteúdos de cultura produzidos ao longo da história da humanidade. O homem, em sua atividade produtiva, diferente dos animais, transforma a natureza, creia instrumentos e artefatos, símbolos y signos, organizando um universo simbólico, modifica as condições materiais da vida y a natureza das relações interpessoais. Criando a cultura, como afirmava Vigotski, o homem cria a si mesmo. Dessa maneira as dificuldades para fazer da educação uma tarefa colaborativa, para realizar um diálogo transformador, assim como para superar a existência de uma cultura de exclusão que descarta e menospreza alguns resulta de um modo de organizar a vida material, o contexto das relações interpessoais e os contextos culturais e educativos e relaciona-se estreitamente com uma concepção de desenvolvimento humano e do papel que a aprendizagem e a educação desempenham neste processo. Arias Beatón (2012) e Calejon (2012) defendem a explicação sobre o desenvolvimento sistematizada pelo Enfoque Histórico-Cultural, como uma concepção integradora que possibilita a organização uma educação desenvolvimentista que efetivamente pode ser considerada como inclusiva. Arias Beatón (2012) propõe pautas para organizar o contexto educativo desde o enfoque histórico-cultural, destacando-se entre elas: 1) considerar o papel ativo do professor ou educador e o papel ativo do escolar. Esta consideração está relacionada com a unidade dialética entre o natural ou espontâneo e o estimulado, promovido e ensinado, superando a dicotomia presente em muitas pesquisas que procuram explicar a qualidade do processo de ensino a partir das condições professor ou do aluno. 2) considerar as ajudas pedagógicas e psicológicas dadas ao escolar e a independência e autonomia deste que também são uma expressão da unidade do espontâneo e o promovido ou estimulado. 3) o desenvolvimento como um processo interno do escolar e o papel do social e do cultural constituído e contido na tarefa educativa; assim como a necessidade de que o escolar descubra e redescubra o

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conhecimento e as vias ou métodos para obter o mesmo e a necessidade de que este se produza em um tempo relativamente curto, sendo que isto exige a participação dos adultos no processo educativo; 4) a natureza social e cultural e não apenas biológica do desenvolvimento humano e o tempo relativamente curto, no processo ontogenético, para apropriação de conteúdos culturais que na história da humanidade, necessitaram muito tempo para serem produzidos; 5) a necessidade de um desenvolvimento real ou atual que implique em potencialidades e possibilidades que devem ser consideradas na produção de um novo desenvolvimento real ou atual. A explicação do enfoque histórico-cultural sobre o desenvolvimento das relações entre a aprendizagem e o desenvolvimento, das possibilidades de compensação dos defeitos, da natureza cultural do homem, entre outros princípios contidos na mesma, pode oferecer uma base teórica importante para manejar a diversidade em uma educação inclusiva. Em contraposição à ideia do desenvolvimento como um processo linear e paulatino, de evolução progressiva e de acumulação quantitativa apenas, Vigotski o entendeu como um processo cujos pontos nodais, de viragem estão constituídos por crises, momentos em que se produzem saltos qualitativos que modificam a estrutura das funções, suas inter-relações e vínculos (SHUARE,1990). Assim, deve compreender-se o desenvolvimento integral da personalidade, em lugar de compreender o desenvolvimento de processos psicológicos isolados ou independentes como a percepção, o pensamento, a linguagem, mas entendê-los como uma unidade, em suas inter-relações e como um influi sobre o outro e se integram para dar uma estrutura particular do psiquismo em cada etapa do desenvolvimento. (Hurtado, 2001). A concepção que o professor produziu sobre o desenvolvimento humano constitui-se em uma das condições importantes para a organização de uma educação desenvolvimentista e para todos, sendo então inclusiva.

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Entender o processo de desenvolvimento como um processo de socialização ou como um processo de personalização (subjetivação) da cultura faz uma grade diferença para as ciências humanas e para a educação, na medida em que são alternativas que implicam em concepções e modos distintos de atuação, falando desde o ponto de vista dos valores teóricos, tanto epistêmicos quanto éticos. O conceito de socialização justifica a estandardização das influencias educativas e a homogeneização das expectativas sobre os estudantes (FARIÑAS LEON, 2005). Os políticos, assim como educadores e cidadãos, de uma forma consciente ou não, também podem explicar a partir deste conceito, a marginalidade daqueles que não podendo enraizar-se na cultura, por falta de oportunidade a essa, em função de políticas educacionais elitistas, entram no terreno da delinquência (Fariñas León, 2005). A formação dos professores tem sido analisada como uma das condições relevantes na organização de uma educação de qualidade, como estamos propondo. Queremos destacar que apesar da importância desta condição e da necessidade de compreender como ela ocorre, não a consideramos como a única variável responsável por uma educação desenvolvimentista e inclusiva. Rodríguez (2009) analisa a formação de professores de educação especial e a inclusão educativa. Garza (2009) defende o trabalho colegiado, como condição importante para uma inclusão educativa exitosa. Como sinaliza Rodriguez (2009), desde o enfoque inclusivo, considera-se que as dificuldades de aprendizagem ou de participação são de natureza interativa e dada sua natureza dependem tanto dos fatores do indivíduo como dos contextos em que o indivíduo se desenvolve e da natureza das relações interpessoais. Segundo o autor uma educação inclusiva implica em considerar: 1) A diversidade como uma nova realidade, considerando que os estudantes dedicam-se a um conjunto comum de objetivos curriculares, ou normas de aprendizagem, alcançando os mesmos de maneira diferentes e as vezes com diferentes graus de domínio.A educação entretanto não pode deixar de procurar todos os recursos necessários para produzir as melhores aprendizagens para todos os sujeitos.Considerar que os estudantes alcançam

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diferentes graus de domínio no processo de aprendizagem não permite valorizar aqueles que apresentam maiores desenvolvimentos, em detrimento dos demais. 2) O acesso a conhecimentos, destrezas e informação, aumentando as oportunidades para a vida, as opções disponíveis pelo processo educativo e as contribuições valiosas de cada pessoa neste processo. 3) A adaptação da educação às necessidades de cada individuo, considerando o que ele já sabe, e aquilo que o sujeito é capaz de fazer quando recebe ajuda. 4) A colaboração com as famílias, com as agencias que oferecem diversos serviços e apoio aos cidadãos e outros membros da comunidade; 5) Flexibilidade na organização e nos conteúdos escolares; assim como a expectativa de êxito para cada estudante; 6) Aperfeiçoamento contínuo do processo educativo, implicando na formação continuada dos educadores e na disposição para revisão do conhecimento produzido pela humanidade e pelo próprio sujeito; 7) A organização de comunidades Inclusivas (RODRIGUEZ, 2009, p.104).

O enfoque Histórico-Cultural permite organizar contextos educativos que seguem os princípios defendidos por uma educação inclusiva, na medida em que as proposições deste enfoque abarcam não só o sujeito, mas também todos os fatores e atores dos contextos que produzem o próprio sujeito, a escola e a sociedade. Este enfoque permite ainda compreender o papel que a aprendizagem desempenha no desenvolvimento do sujeito, superando uma escola burocrática, regida por teorias de aprendizagem que não se relacionam ou não consideram a relação entre a aprendizagem e o desenvolvimento humano. Entendemos que as explicações parciais das diferentes teorias sobre o desenvolvimento psicológico não são suficientes para organizar uma educação desenvolvimentista e consequentemente inclusiva. Não respeitar as relações entre a aprendizagem e o desenvolvimento humano, expulsar ou não permitir o acesso à escola, negando ao sujeito o direito de apropriar-se das conquistas da humanidade, oferecer ao sujeito uma educação de baixa qualidade constituem-se em diferentes formas sutis de violência.

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Ferreyra4 (2013) apresenta desde o ponto de vista jurídico uma síntese dos sete princípios de uma justiça educativa que são complementares entre si e se relacionam com as ideias até aqui apresentadas. São eles: 1) O princípio universalista da educação como direito humano que rejeita a educação organizada como mercadoria, pelo dom ou somente por méritos. 2) Revisão do princípio da audiência como modelo do sistema educativo, permitindo que os sujeitos das camadas populares façam parte do centro orgânico do sistema em lugar de ser atendidos nas margens do sistema por una política compensatória. Esse princípio atende ao que Freire chamou de educação libertadora contraposta a una educação bancária. 3) O princípio da redistribuição do conhecimento e do direito de cada sujeito e cidadão de acesso ao conhecimento produzido pela humanidade. 4) O princípio da liberdade como meta final do sistema educativo que substitui concepções utilitárias e meritocráticas, ou seja, substituir o princípio da igualdade de oportunidades pelo princípio de igualdade de condições. 5) O princípio de contextualização que não espera por um modelo ideal de justiça, mas busca dar passos concretos nos contextos que são produzidos e devem ser inseridos historicamente. 6) O princípio da conscientização da política educativa que propõe uma prática reflexiva e autocrítica por parte das autoridades educativas sobre os obstáculos à justiça próprios da organização estatal da gestão da educação.

4

Principios apresentados pelo Dr. Horacio A. Ferreyra no marco do Congresso Internacional 2013: La Educación Inclusiva, un horizonte de posibilidades, realizado en Monterrey. Extraidos de Veleda C. Rivas y Mezzadra F. (2012) La construcción de la justicia educativa. Criterios de redistribución y reconocimiento para la educación argentina. CIPPEC- Embajada de Finlandia en Buenos Aires.

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7) O princípio da participação social como parte de uma perspectiva da construção da justiça educativa que se conquista em articulação com diálogos democráticos entre os diversos atores sociais. Estamos em tempo de diálogos, de valorização da tolerância, da solidariedade, de ouvir os jovens e valorizar o conhecimento e a experiência dos idosos, de ouvir os outros, porém ouvir a nos mesmos como um caminho de auto expressividade em um dialogo transformador. Entendemos que o Enfoque Histórico-Cultural, mais do que outras explicações construídas pela Psicologia, permite a explicitação de outras ideias que podem ser convergentes e interagir com os princípios apresentados, colaborando na organização de uma educação inclusiva. Este enfoque defende que o desenvolvimento humano é complexo e integral, produzido por múltiplas condições ou determinantes dadas nas circunstancias em que a aprendizagem e um bom ensino produzem as funções psíquicas superiores, incluindo o pensamento abstrato que algumas teorias psicológicas denominam de inteligência e de criatividade. A aprendizagem começa antes mesmo da criança entrar na escola. A educação é tarefa de equipe e de colaboração que inclui a família, a escola e a sociedade. Uma boa educação pode superar defeitos sociais e compensar defeitos biológicos. A precariedade da ação educativa produz a violência, quando não assegura a aprendizagem e o desenvolvimento do estudante, produzindo o sofrimento de professores e alunos. 2) A violência e o sofrimento de professores e alunos Codo (1999) sistematiza o sofrimento dos professores com a denominação de Síndrome de Bournout, ou seja, a síndrome que se caracteriza pelas respostas possíveis para uma tarefa e um trabalho que produz stress, frustrações e monotonia. O autor diferencia Bournout de alienação, na medida em que na última ocorre uma redução da liberdade, enquanto na síndrome de bournout o sujeito

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tem liberdade para atuar e a sociedade espera dele a realização de uma tarefa que as circunstâncias impedem a realização,sendo que efetivamente não tem uma verdadeira liberdade.Uma perspectiva sócio-histórica permite compreender que quando as condições sociais e culturais não canalizam o interesse para ajudar os demais fica difícil manter o compromisso da pessoa em uma tarefa como a educativa que se caracteriza em trabalhar com o outro. Codo e Gazzotti (1999) analisam o lugar ocupado pelo afeto no trabalho e na atuação do educador. A palavra educação origina-se do latim educatio que, além de instrução significa também a ação de criar e alimentar. Assim, o educador é aquele que pode criar. O trabalho de educar é de una delicadeza e simplicidade muito ampla do ponto de vista psicológico. Ainda que em todos os trabalhos o afeto seja importante, na tarefa do professor o vínculo afetivo é obrigatório para o exercício de sua atividade. É importante lembrar, como demonstra o conceito de vivencia, defendido desde 1933, que a dimensão intelectual ou racional não se separa da dimensão afetiva no funcionamento psíquico e nos processos de aprendizagem e de ensino. Quando a dimensão afetiva é negada por mecanismos como a racionalização, o que ocorre é o sofrimento, a despersonalização e consequentemente a redução da aprendizagem. A investigação de Codo e outros (1999) sobre a síndrome de Bournout assinala que ela ocorre em trabalhadores motivados que reagem ao stress laboral, ampliando seus esforços no trabalho até o esgotamento. Para alguns investigadores o sofrimento resulta da diferença entre o que o trabalhador oferece e o que ele recebe.Poderíamos considerar que o sofrimento resulta das condições do trabalho e da natureza das relações interpessoais que ocorrem nos diferentes contextos de ensino. As investigações mencionadas descrevem fatores relacionados com a natureza do sujeito e outros que são da ordem do ambiente de trabalho. Estabelecem um paralelo entre um ego pouco fortalecido; a ambiguidade e uma definição precária dos papéis profissionais e indivíduos altamente centrado no trabalho. No ambiente de trabalho

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encontram os problemas de disciplina, a violência, a insensibilidade dos gestores para os problemas dos professores, a crítica a estes feita pela sociedade, os salários baixos, o apoio pequeno dado pelas redes sociais, a inexistência de perspectivas de ascensão profissional e uma formação pouco adequada. Uma investigação realizada com 39.000 trabalhadores da educação no contexto brasileiro sinaliza que: 31,9 % dos participantes apresentavam pouco envolvimento emocional com a tarefa; 25% demonstrava esgotamento emocional; 10,7 % demonstrava despersonalização. Outros fatores relacionados com o sofrimento do professor são identificados na investigação: o número de empregos e escolas em que o professor trabalha; a quantidade de estudantes que o professor atende e de ciclos de escolarização em que estes alunos estão; a quantidade de disciplinas que o professor ministra e o número de alunos em cada turma; a natureza e qualidade das relações interpessoais. As investigações apontam ainda uma correlação positiva entre as agressões feitas aos professores e a agressão entre estudantes e a Síndrome de Bournout. No que se refere à gestão da escola Batista e Odelius (1999) demonstram que nas escolas com uma gestão tradicional, quando comparadas com escolas com uma gestão democrática e participativa, existem um número maior problemas na segurança, na infraestrutura do edifico escolar e uma menor produtividade da escola. O vandalismo e a destruição do patrimônio público (quebrar janelas portas, banheiros, etc.) demonstra o significado e o sentido que a escola pública tem, pelo menos, para uma parte da sociedade, o que é, por sua vez, um produto da forma como a própria sociedade trata e organiza a educação e a escola. Em uma educação excludente os alunos também sofrem. A autoestima do sujeito que pode ser mais ou menos realista constitui-se em um contexto de relações interpessoais em que o outro assume a difícil tarefa de ser honesto e contar de modo claro e afetuoso como percebe nossa atuação. Um estudante pode não aprender por dificuldades emocionais, porém também tem problemas emocionais como decorrência de não aprender, convertendo-se em motivo de

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depreciação e agressão dos demais. Os dados apresentados evidenciam, em parte, os grandes desafios enfrentados por uma educação que pretende ser de qualidade e para todos. Alguns dados da Educação de Jovens e Adultos no contexto brasileiro podem demonstrar o sofrimento dos alunos e a dificuldade de tratar a diversidade como riqueza para a educação e para a inclusão. A educação de jovens e adultos (EJA) é uma modalidade de educação básica ofertada a jovens e adultos que, por distintas razões, não conseguiram aceder ou permanecer na escola na idade adequada ou que não aprenderam a ler e escrever de modo adequado por diferentes razões, em seu processo de escolarização. Nessa perspectiva traduzem uma forma de violência e ampliam a diversidade que marca a educação inclusiva. É importante sinalizar a concepção ampliada de educação que sustenta a EJA. Ela não se limita apenas a escolarização, na medida em que reconhece a educação como direito básico para a formação de jovens e adultos autônomos e críticos. A idade mínima para ingresso no segmento da educação fundamental no EJA é de 15 anos e para o ensino médio é de 18 anos. A Secretaria Municipal de São Paulo reorganiza a EJA, em 2008, na modalidade presencial, com duração mínima de quatro anos que estão constituídos por quatro etapas com duração de um ano para cada etapa, segundo a seguinte descrição: I Alfabetização correspondente ao primeiro e segundo termos do ciclo I, com conteúdos do ciclo I do ensino fundamental ; II - Básica com conteúdos correspondentes ao terceiro e quarto ano do ciclo I ; III - Complementar que corresponde ao primeiro e segundo ano do ciclo II do ensino fundamental. IV- Final que corresponde ao terceiro e quarto termos do ciclo II do Ensino Fundamental. Ainda que o propósito da EJA seja desenvolver a autonomia e a criatividade dos jovens e dos adultos, aqueles sujeitos que chegaram aos 15 ou 18 anos sem acesso aos conteúdos da cultura já estão em uma situação social de desenvolvimento menos favorável do que aqueles que tiveram estas oportunidades educacionais,

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configurando-se, para os primeiros, uma situação de exclusão que se evidencia com maior força entre negros, pobres e mulheres, como demonstrado pelos seguintes dados. O trânsito dos estudantes brasileiros pelo sistema público de ensino traz as evidencias de uma trágica historia de reprovações e de insucesso acadêmico. Ainda que o fracasso afete boa parte dos estudantes, ele é mais evidente entre os estudantes negros que sofrem o impacto da exclusão com maior força (QUEIROZ, 2012). O dado evidencia uma vez mais a distancia entre diferença e diversidade, demonstrando os negros como vítimas da exclusão e da desigualdade social. Privilegiar questões étnicas e raciais, de gênero, as diferenças entre gerações, entre outras, ou seja, colocar atenção nas relações de raça, etnia, gênero e cultura constitui-se em um dos pontos relevantes da análise da educação de jovens e adultos, no contexto brasileiro, objetivando a superação de uma leitura desenvolvida nos estudos realizados no campo educacional que se limitam aos aspectos socioeconômicos. Assim, analisar a problemática para além da desigualdade econômica é um caminho para compreender a diversidade, levando a superar a posição de tomar a desigualdade como condição natural. Nesta direção Gentili e outros (2012) indicam que de 1987 até 2003 a proporção de negros expulsados da escola era mais alta que a de brancos, sendo que os primeiros tiveram maior dificuldade de ingressar e de permanecer na escola. A parcela de negros que nunca estiveram na escola era de 3%, enquanto os brancos nesta condição somavam 1%. O mesmo autor apresenta a diferença no analfabetismo de pessoas de 15 anos ou mais velhos, nas diferentes regiões do Brasil, considerando a raça e cor. No Brasil, em 2009, a porcentagem total de analfabetos brancos era de 5,9 %, enquanto os analfabetos negros chegavam a 13,3 % e de pardos a 13,4%. Na região norte do país os analfabetos brancos apresentavam a porcentagem de 7,2%, enquanto os negros chegavam a 14,6 % e os pardos a 11,3%. No nordeste brasileiro os

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analfabetos brancos representam 14,6%, enquanto os analfabetos negros chegam a 19,8% e os pardos a 20,6%. No sudeste e no sul do país as porcentagens são muito semelhantes: brancos (4,0 % e 4,4 %); negros (9,5% e 9,5 %); pardos (7,6 % e 9,5 %). Os dados sinalizam as diferenças entre as regiões do país, com uma situação mais dramática no norte e nordeste do país, e com um analfabetismo, mais evidente entre os negros e os pardos em todas as regiões do país. Dados desta ordem evidenciam uma realidade educacional inaceitável de exclusão e negação de direitos e de cidadania a sujeitos em função da cor da pele e da região em que o sujeito vive, exigindo o esforço para transformar uma educação que precisa ser modificada. Se considerarmos os níveis de escolarização como critério de análise as diferenças aparecem no ensino médio, ou seja, na população com 15 a 17 anos de idade. A diferença de acesso ao ensino médio (Estudantes entre 15 e 17 anos de idade) entre o Sudeste e o Norte do país é considerável. Enquanto 60,5% da população no Sudeste frequenta o ensino médio, apenas 39,1% da população da região norte está neste segmento da escolarização. A diferença relaciona-se, em parte, com uma concentração mais forte da população rural na região nordeste. Na zona urbana metropolitana encontramos 57% de sujeitos na escola, enquanto na zona rural esta porcentagem cai para 35,7%. O acesso ao ensino médio entre brancos e negros também é desigual: na idade analisada, 60,3% dos brancos frequenta a escola, enquanto que apenas 43,5% da população negra tem acesso a escola. (CASTRO, J.A e IPEA apud GENTILE et al, 2012) No Brasil, em 2009, aproximadamente 20% dos afrodescendentes, com idade entre os 18 e 24 anos, estariam no Ensino Fundamental. Os desafios para uma educação inclusiva implica em considerar estas injustiças sociais e trabalhar para eliminá-las por meio de uma educação capaz de corrigir estas limitações, sendo verdadeiramente inclusiva e capaz de elaborar políticas educacionais que consistem em ampliar o acesso a cursos e

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modalidades educacionais de jovens e adultos, tendo como objetivo incrementar os níveis de escolaridade dos sujeitos com mais idade na população brasileira, assegurando uma relação mais adequada entre a idade do aluno e a conclusão do ensino fundamental.Sem dúvida, estas políticas devem ser transitórias dado que uma educação verdadeiramente inclusiva deveria superar estas diversidades. Em resumo, ainda que tenhamos consenso de que na última década ocorreram avanços significativos na situação educacional dos afrodescendentes, os desafios, se tratamos de igualdade e equidade na dimensão sociorracial, ainda são enormes. Os diferentes relatórios elaborados pelo IPEA, IBGE e PNAD sinalizam os múltiplos desafios, ainda que muitas vezes se mostrem limitados à quantificação das condições de escolaridade e sociais, dados que evidenciam a distância entre brancos e negros. Além disto, torna-se necessário ter um olhar para a qualidade da educação, uma vez que a possibilidade de acesso dos negros a um ensino de qualidade é mais limitada. A exclusão social é outro tema importante para a educação de jovens e adultos nos últimos trinta anos, dada a complexidade relacionada com as questões sociais. A não atenção à educação, como um direito social básico, representa una forma de violência e exclusão. Ela se vê precedida pela desvalorização, pela marginalização e vulnerabilidade que estão estreitamente relacionadas com a exclusão. Por isto a inclusão é um processo que envolve a atenção a alguns dos direitos sociais básicos: o trabalho, o saber escolarizado, a saúde e a educação (BONETI, 2001). Considerações Finais A educação inclusiva é exigente e não acontece apenas pelo desejo ou por uma legislação que estabelece que o educador tenha a obrigação de manejar a diversidade. Os movimentos do século XX, defendendo uma educação de qualidade e para todos,

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ampliam a diversidade existente nas salas de aula e desafiam os professores e sua formação. Colocar em uma mesma sala de aula crianças muito diferentes e não dar ao professor as condições que ele necessita para organizar sua ação educativa pode ser a forma mais perversa de exclusão. Por outra parte os sujeitos que chegaram até os 15 anos sem conseguir o domínio da leitura e da escrita, os conceitos da matemática e noções das ciências sociais, ou seja, os conteúdos da educação básica já estão em uma situação crítica e em desvantagem, situação vivida, no nosso contexto de modo mais evidente pelos sujeitos mais pobres e em condição de vulnerabilidade social.

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AS INOVAÇÕES DA ESCOLA TUYUKA - SUPERANDO A EDUCAÇÃO COLONIALISTA Elie Ghanem1

Apresentação Os julgamentos oficialmente instituídos sobre as escolas indígenas se mostram inadequados e nenhum empenho do poder público se observa quanto a considerar o que é esperado pelas próprias comunidades indígenas, embora a Constituição e a legislação ordinária estabeleçam o direito dos povos originários brasileiros a uma educação específica e diferenciada. Este capítulo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa2 que se propôs a verificar aspectos inovadores de uma escola indígena no Alto Rio Negro, extremo Noroeste do estado do Amazonas. Explicita a proposta do povo Tuyuka para a escola de uma de suas comunidades e uma síntese de opiniões que integrantes da comunidade têm a respeito para, em seguida, descrever algumas de suas práticas escolares. A investigação está dirigida ao problema da orientação seguida pelas escolas indígenas e busca saber se estas escolas superaram o caráter colonialista da escolarização. No caso da Escola Tuyuka, esta hipótese se confirmou.

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Professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected] A pesquisa contou com apoio tanto do CNPq-Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico quanto da Fapesp-Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

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Introdução Não é de estranhar que um conjunto de expectativas externas circunde a educação escolar. O fenômeno é vasto e vale para escolas indígenas ou não. Porém, somente algumas dessas expectativas têm prevalecido. Pelos procedimentos e critérios governamentais, a maior parte dos(as) estudantes não mostra o rendimento que o Ministério da Educação e as secretarias estaduais e municipais esperam. Sobretudo se são indígenas. Mas, as formas de interpretar e julgar a atuação das escolas deveriam ser as que vieram a ser adotadas pelas autoridades públicas? No que se refere à educação escolar indígena, por exemplo, reunião do Grupo de Trabalho Educação Indígena do Ministério Público Federal com representantes do MEC sobre os instrumentos de avaliação apontou a inadequação do uso de notas obtidas em matemática e língua portuguesa, já que as escolas indígenas são bilíngues e, para muitas, português é uma segunda língua, o que prejudica essa aferição (LEIVAS, 2013, p. 1). Além de os julgamentos oficialmente instituídos se mostrarem inadequados, nenhum empenho do poder público se observa quanto a considerar o que é esperado pelas próprias comunidades indígenas, embora a Constituição e a legislação ordinária estabeleçam o direito dos povos originários brasileiros a uma educação específica e diferenciada. Este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa que se propôs a verificar aspectos inovadores de uma escola indígena no Alto Rio Negro, extremo Noroeste do estado do Amazonas. Explicita-se, a seguir, a proposta do povo Tuyuka para a escola de uma de suas comunidades e uma síntese de opiniões que integrantes da comunidade têm a respeito para descrever algumas de suas práticas escolares. Os Tuyuka são um dos 22 povos que vivem naquela região, no município de São Gabriel da Cachoeira. A investigação está dirigida ao problema da orientação seguida

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pelas escolas indígenas. O que se busca saber é se estas escolas superaram o caráter colonialista da escolarização. A inovação educacional é tomada aqui na acepção proposta por Ghanem (2012; 2013), ou seja, uma lógica que rege as práticas originadas na base dos sistemas escolares (estabelecimentos escolares individuais) ou em associações comunitárias. Práticas que seguem a lógica da inovação educacional, nesse sentido, são aquelas diferentes do que se costuma fazer em um determinado lugar ou com determinado grupo social: “a inovação não decorre de uma originalidade absoluta, mas está em não seguir o costume” (GHANEM, 2013, p. 1007). Assim sendo, o costumeiro é a escola colonialista, com expressa pretensão civilizatória (FREIRE, 2000; 2002). Ao mesmo tempo, é catequizadora e assume o pressuposto central de que os povos indígenas não têm conhecimentos passíveis de serem objeto de aprendizagem no ambiente escolar. Não obstante a força desse tipo de orientação, persistente desde os primeiros anos de atuação católica no Brasil do século XVI, as hipóteses focalizadas pela pesquisa aqui reportada sustentam que a superação da escolarização colonialista ocorre. Tal afirmação tomou por base os indícios de que os objetivos das escolas são compatíveis com aqueles dos povos que as utilizam, sendo ao menos conhecidos e dialogados com as comunidades. Consideraram-se também relatos assistemáticos de que a avaliação dos alunos, dos processos que as escolas desencadeiam nas comunidades, ou dos professores, é acompanhada e implementada pelas próprias comunidades em conjunto com os poderes públicos. Além disso, admitiram-se indicações de que os professores indígenas têm efetiva participação em todo o processo da educação escolar, em constante diálogo com as comunidades. Finalmente, a superação da educação colonialista foi sugerida pela crença de que o processo de escolha dos saberes que são objeto de ensino leva em conta aspirações de futuro das comunidades em que as escolas atuam.

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Os Tuyuka, a comunidade São Pedro e a escola A comunidade São Pedro se situa no alto rio Tiquié, divisa com o departamento Vaupés, da Colômbia. É um povoado constituído em uma faixa de terra entre dois cursos d’água e dista 600 quilômetros a oeste do núcleo urbano que é sede do município de São Gabriel da Cachoeira, a qual, por sua vez, está a 850 quilômetros de Manaus. De São Pedro, em pouco mais de uma hora descendo o Tiquié, está Pari-Cachoeira, um povoado em que há uma escola de prédio muito grande e imponente, erguida por iniciativa dos salesianos, a Escola Estadual Dom Pedro Massa, que passou a ser administrada por indígenas a partir dos anos 1990. Em Pari-Cachoeira, há também instalações militares do pelotão de fronteira do exército e uma unidade básica de saúde. Há ainda outro grupo Tuyuka no igarapé Inambú, afluente do rio Papuri com o qual o primeiro grupo mantém pouco contato. Segundo Cabalzar (2000), suas relações matrimoniais, rituais e comerciais mais estreitas são com os Tukano, Bará, Makuna e Desana. Esse mesmo autor informa que os Tuyuka são um dos 16 grupos da família linguística Tukano Oriental e compartilham traços com os povos Tukano Orientais: “a mitologia, especialmente a relativa à origem e trajetória comum da Cobra Ancestral, que concebeu todos estes povos; os rituais de oferecimento (dabucuri) e cerimônias com os ‘cantos dos velhos’, cantos que são semelhantes em toda a área do Uaupés; uma perspectiva geográfica baseada nos rios; uma subsistência baseada na pesca e na agricultura da mandioca brava; a maloca como moradia comum e modelo de concepção da vida social e do cosmos; concepções e práticas xamânicas específicas”. Nesta pesquisa, outras integrantes da equipe se concentraram em comunidades do povo Kotiria e do povo Baniwa. Fomos recebidos sempre de modo gentil e acolhedor e isto se deveu em grande medida à colaboração ativa do ISA (Instituto Socioambiental) e da Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro), os quais atuam há anos, muitas vezes em

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conjunto, no apoio ao movimento indígena da região. O professor Abraão França, por sua vez, então presidente da Foirn, sendo também da comunidade Curicuriari, mediou nossa chegada e apresentações com líderes de lá. Na manhã de 4 de julho de 2012, avancei rio Negro acima para seu afluente Uaupés, na direção do rio Tiquié, em um pequeno barco motor 15 hp, acompanhando o professor Geraldino Pena Tenório (coordenador da Escola Tuyuka) e cinco outros integrantes da comunidade São Pedro, que voltavam da sede de São Gabriel da Cachoeira onde fizeram compras e trataram de assuntos na Secretaria Municipal de Educação. Ele fala também português, mas, praticamente não conversamos durante a viagem de três dias e meio, principalmente pela falta de espaço no barco, pelo barulho incessante do motor e por termos praticamente acabado de nos encontrar. Chegamos à comunidade no fim da tarde de 7 de julho. Dirigiram-me a um alojamento, uma sala grande ao lado de uma dispensa da escola onde se guardam alimentos da merenda. A comunidade conta com cerca de 170 integrantes, em 19 casas. Na década de 1990, a população dessa etnia estava estimada em 1.100 indivíduos, pouco mais da metade habitando na Colômbia. Segundo disse Geraldino Tenório, a escola foi a primeira edificação do local. Aos poucos, as famílias foram se mudando para perto, dispondo suas casas em torno de um pátio retangular, de uns 90 m por cerca de 200 m de comprimento. O “pátio” é gramado e, perto do centro, há uma construção de madeira com telhas de plástico, chamada de casa do conhecimento. Inclui uma sala de aula com lousa branca para escrever com caneta, mesa de professor e carteiras, uma sala com dois computadores e muitos livros didáticos fornecidos pelo governo estadual do Amazonas. Outra sala faz às vezes de biblioteca, armazenando materiais produzidos por estudantes, muitos dos quais são artesanais e outros são impressos com ótimo acabamento gráfico.

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A área construída da escola propriamente está composta de três conjuntos, separados entre si por uma distância de cerca de 10 m. Um dos conjuntos é composto de duas salas de aula contíguas e térreas, de aproximadamente 15 m de comprimento por 8 m de largura. As colunas são de alvenaria, o chão é de cimento queimado e as duas paredes compridas são de um gradeado de madeira, com ripas de cerca de 10 cm, que permitem tanto a ventilação quanto ver completamente seu interior por quem está do lado de fora. O teto é de telhas de argila industrializadas. As duas paredes mais curtas são de alvenaria, repletas de cartazes com palavras em tuyuka e ilustrações desenhadas por estudantes, retratando utensílios domésticos, animais e plantas. Ambas as salas contam com lousa verde de giz e o mobiliário são carteiras escolares e uma mesa como a de professor. O segundo conjunto construído também é subdividido em duas partes. Uma tem cerca de 8 m por 5 m, é totalmente de alvenaria e serviu de almoxarifado para a merenda. A peça contígua, com 15 m de comprimento por 8 m de largura, é de alvenaria com as três demais paredes erguidas em tijolos de concreto à altura de 1,5 m do chão, feito de cimento queimado. Conta com uma lousa de giz e uma mesa com 1,5 m por 2,5 m. O terceiro conjunto também é subdividido em duas partes, é construído de tijolos de concreto na base, mas, tem mais um piso para o qual se sobe por uma escada de madeira. A largura e o comprimento são basicamente os mesmos do conjunto anterior. Compõem, assim, quatro cômodos, três dos quais incluem algumas carteiras escolares e lousa de giz. Servem ao mesmo tempo de sala de aula e de alojamento. Além de mapas e cartazes nas paredes, há algumas cordas de nylon nas quais se penduram roupas para secar. Logo acima da porta de entrada desse conjunto, há um sino típico de escolas antigas do Sul do Brasil. De fato, seu uso não é escolar, é empregado por Evaldo Ramos, um jovem tuyuka catequista, para chamar a comunidade a reunir-se na maloca toda manhã.

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Situada diametralmente oposta aos conjuntos que compõem a escola, está a maloca. Recuperada de uma antiga tradição, essa edificação tem cerca de 30 m por 18 m, erguendo-se a uma altura de 7,30 m. Era a moradia original e lugar de rituais. Seu desenho tem significados para cerimônias e está ligado aos mitos de origem. Tais construções foram combatidas sistematicamente pelos missionários e, em decorrência, foram abandonadas (CABALZAR; RICARDO, 1998, p. 38-40). Geraldino Tenório, 34, tuyuka, professor, fez ensino fundamental na escola rural de São Pedro, completado na escola de missão em Pari-Cachoeira. Tentou fazer ensino médio, magistério comum, na cidade de São Gabriel da Cachoeira e, no último mês do 1º ano, desistiu. Em 1996, voltou para São Pedro e ficou como professor voluntário com as crianças, recebendo uma ajuda de R$ 50,00 por mês, decisão comunitária de usar recursos de projeto apoiado pela Reinforest Foundation Norway com participação do ISA, enquanto a Secretaria Municipal não contratava docentes. Fez o curso de magistério indígena oferecido pela prefeitura entre 1998 e 2002. Declarou que a escola tuyuka começou a partir do movimento indígena e que Higino Tenório fazia articulação entre 1990 e 1991. Em 1996, ele trouxe a ideia e a escola começou em 1998, com pedido de autorização de funcionamento do ensino fundamental completo, implantado em 2002. Esta criação visava ao fortalecimento da língua escrita. A escola rural, também missionária, foi antecessora da Escola Tuyuka Utapinopona. Geraldino Tenório informou que o PPP (Projeto Político Pedagógico) desta última foi aprovado pela Semec (Secretaria Municipal de Educação). Perguntei a razão de a Semec ter de autorizar e ele não esclareceu, disse que chegou a questionar esta autorização “porque o plano da escola é para benefício da comunidade”, mas, que estas coisas fazem desanimar e querer retroceder para o convencional. Referiu-se também à merenda, que atrasa e é insuficiente e, devido a isto, Higino Tenório idealizou produzir alimentos na escola. De fato, projetos de piscicultura,

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criação de aves e abelhas foram iniciados com recursos de cooperação internacional. Para Geraldino Tenório, a língua tuyuka estava praticamente dominada pela língua tukana e, com a escola, a língua reviveu: “com 8-10 anos, eu era tukano, somente falava tukano”. Ele assegurou que uma liderança terá necessidade de falar português com autoridades de fora e que um professor talvez tenha esta necessidade. Para isto, há a proposta de que façam viagens de dois ou três meses para praticar a língua portuguesa. “Um pajé, que fica aqui, não tem necessidade”, mas, disse ele, os jovens são teimosos e querem aprender português. A proposta da escola Tuyuka Rezende (2007) já ofereceu uma descrição detalhada e uma interpretação da Escola Indígena Utapinopona que coincidem amplamente com o observado nesta pesquisa. Para dar uma ideia da proposta da escola, expõe-se aqui o teor de três documentos chaves. Um destes trata de currículo e organização e inicia com um trecho de Higino Tenório, líder tuyuka de destacada atuação na criação da escola. Para esse líder, eles têm que dominar a escrita de projetos, considerada uma técnica, sem a qual os brancos não os entendem e não podem apoiá-los. A escrita do projeto é vista como uma exigência legal e se pensa que terão problemas se não a fizerem (ESCOLA INDÍGENA, 2001). Em seguida, o mesmo documento cita a Lei Municipal 087, de 24 de maio de 1999, que reconhece subsistemas de ensino indígenas, assegura a gestão democrática e o seu progressivo grau de autonomia pedagógica, administrativa e de gestão financeira, bem como garante o “respeito às formas de decisões próprias das comunidades no sentido de organizar seus sistemas de ensino próprios, incluindo projetos político-pedagógicos, objetivos do ensino e aprendizado, formas de avaliação”.

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O documento segue informando que a escola é planejada, organizada e composta por sete comunidades: Kairataro, Yoariwa, Mõpea (São Pedro), Pikorõaburo, Wamuñapito, Yaiñiriya e Unekumuña. A escola tinha salas de aula em três comunidades tuyuka e em uma da etnia hupda (Wamuñapito). O ensino de 1ª a 4ª séries já estava implantado “pelo município” nestas comunidades desde os anos 1980. A partir de 2000, solicitaram reconhecimento oficial da iniciativa indígena e previam a implantação da 5ª e 6ª série em agosto de 2001. Segundo o documento, a Escola Indígena Tuyuka veio tomando decisões desde 1999, definindo e redefinindo seu projeto curricular, político e pedagógico de forma periódica e consensual, conforme avançaram as discussões intercomunitárias, as experiências dos professores, as supervisões pedagógicas, as discussões com coordenadores e aliados do trabalho. O documento critica a estrutura e programas prontos trazidos pelos padres salesianos na década de 1940, seus preconceitos e sua imagem de defensores dos indígenas frente à exploração dos patrões, a construção de uma usina hidrelétrica, a oferta de educação infantil e telecurso 2º grau pela prefeitura, que atraiu famílias a Pari-Cachoeira, esvaziando as comunidades. Estas medidas são apontadas como contraditórias com outras iniciativas também governamentais de tratamento específico e diferenciado da educação escolar indígena. Em oposição a uma educação centralizada, com programas de ensino e materiais indiferentes à realidade regional e local, o objetivo explicitado para a Escola Tuyuka é fortalecer as comunidades e populações que permanecem em seus territórios de ocupação tradicional e buscam a melhoria do ensino e a qualidade de vida. Outro objetivo constante do documento é lutar pela autonomia no modo de ser tuyuka e na relação com os outros, levando crianças e jovens a identificar-se com seu povo, valorizando sua cultura e posicionando-se com segurança diante dos demais povos

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e dos brancos, dialogando a partir do respeito e conhecimento das causas e interesses das diferentes sociedades. Além disto, afirma o documento, a Escola se preocupa com os problemas locais, buscando soluções a partir da participação comunitária de lideranças, mais velhos, jovens e crianças, homens e mulheres. A visão dos criadores da Escola é que o caráter multilíngue da região do rio Tiquié e o contexto em que a língua tukano se sobrepõe levam à busca de fortalecer e valorizar a língua tuyuka em ações dentro e fora da escola. Segundo eles, esta busca encontrou oposição interna, que a enxergava como retrocesso. Tal oposição é interpretada como falta de entendimento de que a valorização da língua e da cultura está na base de um conjunto de propostas e ironicamente como “produto justamente da educação escolar trazida de fora, que sempre fez desvalorizar nossa cultura milenar”. Aquele conjunto de propostas inclui: auto-gestão de escolas/currículos e de outros projetos que visem ao sustento das comunidades segundo políticas cultural, linguística e escolar próprias; conquista de novos espaços de autonomia; desenvolvimento de alternativas econômicas; melhor divulgação de “nossas coisas” para que outros povos e os brancos “conheçam nosso modo de vida, o respeitem, aprendam conosco e vice-versa”; estudo de técnicas e saberes de fora que realmente possam “nos ajudar a viver melhor aqui, com a proposta de organizar e traduzir parte destes conhecimentos para nossa própria língua”. O documento assevera que o currículo da Escola é elaborado aos poucos pelas comunidades, coletivamente, e que sempre pode ser modificado. O ensino fundamental é dividido em quatro ciclos de dois anos cada. O currículo adotado é temático em vez de disciplinar, por garantir “melhor percepção política do que se ensina e aprende”: “os ‘temas importantes’ (nirõmakañe) permitem aproximação entre práticas de ensino/aprendizado e objetivos políticos da escola Tuyuka”. Os encontros comunitários de professores, pais e alunos, segundo o documento, discutem os nirõmakañe, que são diretamente associados ao ensino via

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pesquisa (saiña masire). De acordo com o documento, todos os temas trabalhados visam à valorização das próprias coisas (modos de ser, viver, conhecimentos, a própria terra e desenvolvimento) e o diálogo entre diferentes culturas, valorização da cultura e reflexão sobre mudanças culturais. Em 2001, os temas privilegiados foram: nosso jeito de ser e viver; modos de ser e viver dos outros povos; histórias que crianças gostam de ouvir; música e dança; brincadeiras; pintura do corpo e outras superfícies; história do povo tuyuka; projetos comunitários; mitologia e valores para a vida. A língua tuyuka é adotada como “língua de instrução” e o português como segunda língua. Consta do documento a determinação de que as línguas não devem ser misturadas em nenhuma atividade, sendo trabalhadas em dias separados: a segunda língua (no início, apenas oral) deve enfatizar a prática de diálogos, introdução gradual de novos vocabulários, sempre retomar aulas anteriores e a escrita ser introduzida quando a criança já escrever com certa fluência em tuyuka. Uma das sete comunidades que compõem a Escola Tuyuka é hupda. As diretrizes gerais adotadas são as mesmas, mas, “sempre respeitando diferenças socio-culturais, linguísticas e políticohistóricas, muito marcadas entre estas duas etnias”, através de planos de ensino, de capacitação de professores e de mobilização comunitária diferenciados, “sendo que as discussões para a realidade Tuyuka estão bem mais avançadas”. Pelo documento, há também discussões conjuntas sobre os respectivos problemas, “ampliando a consciência e o respeito às diferenças”. São apontados alguns dos problemas das comunidades hupda: ausência de professores hupda habilitados ou cursando o magistério, “havendo forte interferência do município na escolha dos professores, geralmente tukano e, ainda hoje, com intuitos de catequese”; escola que sedentariza uma população de maior mobilidade; forte relação hierárquica entre os povos tukano e hupda, “muitas vezes restringido espaço de autonomia destas

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comunidades na definição de sua política cultural, linguística e escolar”. A comunidade hupda lançou a proposta de preparar para o magistério na própria comunidade. Cada sala de aula em comunidade tuyuka tem um professor tuyuka, morador da comunidade sempre que possível e os alunos destas salas de aula também vivem na comunidade ou em outras próximas, são na maioria tuyuka, havendo também co-residentes bará, hupda e yebamasã que optaram por esta escola. Para o 3º ciclo, que se iniciaria em agosto de 2001, o documento informa que as comunidades indicaram critérios de seleção de professores tuyuka: cursistas do Magistério Indígena, não muito jovens (a turma é “também jovem e precisa haver maior relação de autoridade”); mostrando bastante interesse no ensino através da pesquisa e criatividade. A Escola Tuyuka, ainda segundo o documento, zela por um calendário flexível. O ensino é “modular” para permitir maior e mais frequente participação da criança/jovem nas atividades da comunidade de origem e evitar concentração em grandes comunidades, “pois este é o nosso jeito de ser, mais espalhado”. São módulos de 15 dias de estudo intensivo na escola e 15 dias nas comunidades de origem. Professores acompanham atividades de pesquisa deslocando-se para comunidades de alunos por curtos períodos. O horário, para o 1º e o 2º ciclo, é de aulas pela manhã, cumprindo 20 horas semanais. Para o 3º ciclo, manhã e tarde (exceto sábado à tarde e domingo), 7 horas por dia, 80 horas por módulo (30 práticas e 50 teóricas). O que o documento chama de supervisão ou acompanhamento pedagógico é a discussão das atividades com alunos, dos materiais de apoio criados e sua avaliação, discussão que ocorre “novamente, em reuniões comunitárias maiores (Conselho)”. Determina que atividades de supervisão devem ser feitas pelos próprios tuyuka, os únicos que dominam as orientações específicas estabelecidas para o sub-sistema de ensino tuyuka e a própria língua. Por este

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motivo, demandam a contratação de dois professores e um supervisor para o 3º ciclo. A composição do Conselho é proposta para incluir todos os moradores das seis comunidades tuyuka da Escola, com reuniões ordinárias semestrais e decisões por consenso. Estas reuniões são intercomunitárias e está indicado que vieram ocorrendo com frequência e boa representatividade (adultos, jovens, crianças; alunos, professores, pais). Conforme o documento, os temas das reuniões variaram: grupos de trabalho, pesquisas e registro de etno-conhecimentos; grupos de leitura de materiais em elaboração; oficinas pedagógicas; grupos de discussão de legislação; grupos de redação de jornal ou informativo; reuniões de planejamento de eventos; oficinas de planejamento curricular. A Escola conta com um coordenador, inicialmente escolhido entre lideranças tradicionais do movimento indígena nos últimos vinte anos. O documento informa que o cargo de vice-coordenador foi ocupado por um dos professores com maior experiência e entusiasmo pela mudança. Cada comunidade indicou também uma pessoa como administrador, para o controle e o cuidado com equipamentos, rancho (como se chamam regionalmente os mantimentos) e materiais obtidos por meio de parcerias, especialmente com a Foirn. Para dar suporte (redação de relatórios, atas e circulação pelas comunidades) ao coordenador e ao vicecoordenador, há um secretário, escolhido entre os jovens que manifestam maior interesse pela Escola. Em outro documento (TENÓRIO et al, 2004, p. 2), consta que a Escola Indígena Utapinopona Tuyuka é uma escola diferenciada, “gerenciada pelos próprios Tuyuka, onde os Filhos-da-Cobra-dePedra (uta-pino-pona) estudam”. Para além do documento anteriormente descrito, este outro reconhece que não existe um modelo único de educação escolar indígena, nem algum modelo pronto de gestão indígena de educação. O texto indica que, desde 1999, as comunidades elaboram em conjunto e com autonomia o projeto político pedagógico e o sistema de ensino, sendo sempre

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discutido o tipo de escola que querem, o futuro em relação à cultura e à melhoria da situação intelectual e da vida do povo tuyuka. Com o objetivo de gestão pedagógica, administrativa e financeira, fundaram a Aeitu (Associação Escola Indígena Utapinopona Tuyuka) “com representantes escolhidos pelo povo”, um Conselho formado por todos os moradores das comunidades, cujas assembleias, além das reuniões pedagógicas, discutem estratégias e atividades. As funções da Aeitu são quatro: acompanhar atividades da escola e do corpo docente, de acordo com o plano previamente estabelecido pelo Conselho; fazer articulação política da educação da Escola nas comunidades, onde moram os membros da Associação, convidando-os para reuniões e assembleias; administrar, fazer a gestão ou gerenciamento financeiro do(s) projeto(s), doações e outros tipos de renda da escola; fazer compras conforme as necessidades da escola, troca com alguma coisa para manutenção da escola e dos alunos quando estiverem em período de aula. O mesmo documento afirma não terem creche nem pré-escola porque as crianças menores permanecem com as famílias para ter liberdade de brincar com as crianças de sua idade. Também que cada sala de extensão (Escola Yukuro, na comunidade Cachoeira Comprida; Escola Poani, na comunidade Mõpoea São Pedro; Escola Bua, na comunidade Nossa Senhora de Assunção, no Onça Igarapé) tem professores e calendários próprios. Como condições necessárias à qualidade de ensino, são apontadas a discussão sobre o ensino e o aprendizado e a avaliação de ambos. Assim, o aluno é avaliado pelos professores e estes são avaliados pela comunidade, a qual verifica “se aquilo que foi pensado está surtindo resultado”. A avaliação de cada aluno é feita por parecer descritivo: “se o aluno aprendeu, melhorou na literatura, entrosou com os colegas, sua apresentação de trabalho foi interessante”. A escola incentiva a iniciativa dos alunos, que

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escolhem os temas a serem desenvolvidos nas pesquisas “para que a escola atenda aos interesses deles”. O ensino de 3º e 4º ciclos passou a ser em módulos de vinte dias na escola por quinze de intervalo na família. A duração de um ciclo depende do processo de aprendizado, por isto, pode durar até dois anos ou mais. O local das aulas também segue um rodízio nas comunidades, não onera uma só para manter professores e alunos e favorece a integração. Todos os produtos de pesquisa são recolhidos como subsídios para fins didáticos porque os livros fornecidos pelo MEC “são alienantes e preconceituosos contra as sociedades indígenas”. A Escola contou, nos seus primeiros anos, com parcerias para assessoria pedagógica na capacitação de professores, apoio financeiro (Norad/Rainforest Foundation Norway, por exemplo) e capacitação para gestão dos recursos financeiros e humanos pelo ISA. Não obstante, é expressa a necessidade de formação, de antropólogos indígenas e de pessoas que gerenciem bem: “Nossa idéia é ter bolsas de estudo para ingressar na universidade, para formação pedagógica, como técnicos indígenas para a própria escola; antropologia e administração, para gerenciamento da escola e formulação do ensino médio na Escola Tuyuka. Que o ensino superior indígena seja modular e planejado com nossa participação” (TENÓRIO et al, 2004, p. 12). Um terceiro documento que exprime a proposta da Escola Tuyuka é o projeto político pedagógico para o ensino médio (PROJETO, 2007). O texto do projeto inicia com citações de entrevistas que fazem parte da dissertação de mestrado de Justino Sarmento Rezende (parente dos criadores da Escola), as quais se referem ao maior uso da língua tuyuka mesmo em território tukano, ao estímulo à reflexão, à participação nos trabalhos e festas, ao orgulho dos conhecimentos indígenas. O documento visa a mostrar como o ensino médio segue a proposta praticada desde o ano 2000 com o ensino fundamental, com ensino via pesquisa, valorização da língua e da cultura tuyuka e participação

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comunitária em todos os processos ligados direta ou indiretamente à escola. Uma das principais justificativas da proposta é a permanência dos jovens em suas comunidades, devido à história recente de alto êxodo da população da região para os centros urbanos ou centros missionários maiores. Considerando que “os brancos estão falando” em integração entre educação profissional e ensino médio, o projeto apresenta como isto acontece na escola indígena diferenciada. Pretende reverter a política que não respeita especificidade de cada povo, seguindo o modelo colonial desde o início do século XX, com a centralização na sede missionária de Pari-Cachoeira, na visão de aldeamento, que atrai e confina vários grupos étnicos formando um centro urbano. Somando-se a Rezende (2007), o projeto afirma que os mais fortes valores da educação escolar indígena são a política linguística (importância da língua tuyuka), participação comunitária e ensino e aprendizado com pesquisa. Quanto à participação, o projeto afirma que as decisões tomadas localmente em reuniões e assembleias dão força para o confronto com o sistema público de ensino “que não pensa de forma diferenciada”. Explicitando o tipo de jovens que querem formar, o projeto fala de líderes críticos, políticos, solidários, que defendam direitos individuais e coletivos de seu povo, fortalecidos na sua identidade cultural, que sejam éticos na sociedade indígena e no mundo envolvente e que saibam organizar o trabalho e resolver juntos os problemas das comunidades. Neste ponto, o projeto propõe que o ensino médio forme pessoas que sabem produzir conhecimentos tuyuka (arte, dança, medicina, benzimento, planta medicinais, agricultura e alimentação) e sabem desenvolver as práticas tecnológicas da arte tuyuka, respeitam e cuidam do território que ocupam, sendo preparados para o manejo ambiental e territorial. Pessoas que sabem também transmitir e discutir criticamente conhecimentos e integrar conhecimentos tecnológicos indígenas e

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não-indígenas, usando-os e os adequando às atividades e interesses comunitários. Os alunos da Escola Tuyuka falam pelo menos as línguas tuyuka, tukano e português (apenas quando começam a se interessar por “conversar com brancos”) e são incentivadas também as línguas de alunos não-tuyuka (yebamasã, bará e hupda). No ensino médio, o português se torna língua de instrução apenas em alguns módulos e é oferecido aprofundamento em português ou espanhol a quem se interessa ou se facilitam estágios para esta formação em outra localidade. Sobre o jeito tuyuka de ensinar e aprender, o projeto diz: “As pesquisas realizadas na escola aproximam jovens dos velhos; aproximam escola dos interesses da comunidade; aproximam alunos e professores numa mesma meta de pesquisar juntos os temas em questão. Aproximam a escola de outros parceiros de trabalho” (PROJETO, 2007, p. 15). Segundo o projeto, a escola não quer formar especialistas em uma coisa só e o aluno entra em contato com a pesquisa nos vários temas disponíveis para a sua turma. Mas, pode dedicar-se a apenas um porque todos permitem acesso a conhecimentos gerais e habilidades esperadas para essa etapa, dando “oportunidade de trabalhar os conteúdos básicos relevantes em matemática e línguas.” A profissionalização implica primeiro conhecer bem as técnicas-artes tuyuka – ser bom caçador, bom pescador, bom conhecedor da terra, territórios, vida cerimonial e valorizá-la – e, na passagem para o ensino médio, refletir bem mais sobre as diferentes lógicas de pensamento das várias culturas, indígenas e não-indígenas. Contudo, orientando-se sempre para as formas de melhorar a qualidade de vida das populações indígenas das comunidades e da região de maneira sustentável, não pretendem formar acadêmicos ou cientistas especializados que precisam viver fora para continuar se aprimorando, nem formar jovens em profissões que só podem ser conduzidas nas cidades.

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No projeto, o ensino médio corresponde ao 5º e 6º ciclo, com duração de dois anos cada. No 6º ciclo, intensifica-se a integração das pesquisas com interesses e atividades das comunidades, há maior dedicação à construção de modelos locais de desenvolvimento relacionado à segurança alimentar, gestão territorial, produção alternativa de sustentabilidade, de manejo de recursos naturais e geração de renda: “Nessa etapa a separação escola/comunidade é superada. A separação entre ensino/aprendizado dentro e fora da escola também é superada” (PROJETO, 2007, p. 41). Os 16 módulos presenciais do 5º ciclo têm 20 dias letivos cada, com 5 horas diárias de aulas (total de 1600 horas) e, estre estes módulos, há 15 dias de tempo livre para participar de atividades do calendário de suas comunidades. No 6º ciclo, há 8 módulos presenciais de 15 dias cada, com 5 horas diárias de aula (total de 600 horas), aos quais se somam estágios nas comunidades de 20 dias, com 5 horas diárias (total de 800 horas). A cada 8 módulos, há seminários de pesquisa nos quais os alunos são avaliados pelos pais, lideranças, professores e demais membros da comunidade, que dizem em que ponto podem melhorar ou aprofundar sua pesquisa, se estão indo bem e em integração com a família ou comunidade. Avaliação também ocorre com apresentação de trabalhos em encontros, assembleias e festas, considerando entrosamento, animação e disposição na participação nestes eventos “O professor é responsável por fazer o registro de todo processo de aprendizagem do aluno e apresentá-lo através do Parecer Descritivo” (PROJETO, 2007, p 43). As opiniões sobre a escola Em julho de 2012, eu estive na comunidade São Pedro, na etapa da pesquisa em que se faziam as primeiras estadas e os contatos preliminares. Embora direcionada por nossas hipóteses, a equipe mantinha uma atitude muito aberta para a escuta de nossos interlocutores e as anotações das entrevistas realizadas foram

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condicionadas também pelo que escutamos em inúmeras conversas informais e observações não programadas. Essas atividades se deram ao estilo do que Spink (2008) denomina de pesquisador conversador, reposicionando quem pesquisa como mais uma pessoa entre as outras, que também procuram arguir e agir. No mesmo dia de minha chegada, reuniu-se a maior parte da comunidade na maloca e Geraldino Tenório me apresentou publicamente, disse que eu estava ali para fazer uma pesquisa sobre a escola e pediu que eu falasse a respeito. Outro professor, João Fernandes Prado Barbosa, foi encarregado de ser meu intérprete e me acompanhar a cada uma das casas para que eu fizesse entrevistas. Começamos no dia seguinte. Conforme fazíamos duas a três casas num dia, agendávamos as próximas e, assim, estivemos em todas as 19. Entrevistei diretamente 56 pessoas, das quais 22 eram adultos do sexo masculino e 21 mulheres, bem como 13 crianças e adolescentes (8 meninas e 5 meninos). O irmão de Higino Tenório, um dos principais idealizadores da escola, Guilherme Tenório, 61, é tuyuka e estudou no internato em Pari-Cachoeira até a 5ª série do ensino fundamental. Madalena, sua esposa, 35, yebamasã, também estudou na mesma escola até a 5ª série. O casal tem cinco filhos (três meninos de 5, 13 e 17 anos e duas meninas de 6 e 14 anos). A menina de 14 e os meninos de 13 e 17 anos frequentam a escola local. Guilherme Tenório disse gostar da escola devido a ter os filhos estudando na comunidade. Comparou com a missão em PariCachoeira, que envolvia dificuldades. Quem não falava português ficava de castigo: comer de pé, ficar encostado na parede, ficar uma hora em pé no dormitório. Ali, eram obrigados a falar em tukano e “nossa língua ficou meio esquecida”. Afirmou que aprendem muitas coisas na escola, nomeadamente artesanato em tecelagem e cestaria (balaios, tipitis etc.) e as meninas têm roça, fazem farinha e vendem. De 1ª a 5ª série, aprendem em língua tuyuka e utilizam cantos e livros próprios para isto. No ensino médio, aprendem

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português também. Para aprender a língua tuyuka, fazem pesquisa com os velhos sobre rezas e benzimentos, escrevem – “não sei se guardam os cadernos”, disse ele – e aprendem danças e músicas. O conjunto das pessoas entrevistadas não vê nada de ruim na escola ou aponta um defeito que é externo: não fornecer certificação do nível médio. Algumas crianças e adolescentes indicaram aspectos de que desgostam, mencionados adiante. Perguntei a respeito e Guilherme Tenório disse não haver nada muito ruim: “Primeiro, nós, Tuyuka, vamos fazer escola prá melhorar nossa situação” e afirmou que alguns pais falam que escola indígena não presta porque não dá certificado.3 Madalena, sua esposa, estudou em Pari-Cachoeira quando o internato já havia fechado. Sobre a escola Utapinopona, disse que se sente melhor com a iniciativa de criar o ensino médio porque os alunos estão dando sequência aos estudos. Gostaria que houvesse mais alunos em vista de alguns terem saído para servir o exército sem concluir o ensino médio. Ela também considera bom haver artesanato na escola e que “a parte do ensino de arte” é a melhor porque o jovem volta para casa, faz material de cozinha e vende para brancos ou parentes. O que aponta como ruim é o ensino não passar para a área de língua portuguesa e manter-se na parte indígena. Pensa que o português precisa ser mais aprofundado, sente falta de saber esta língua para diálogo com brancos e quando vão à cidade. Agueda é a filha de 14 anos do casal. Começou na escola Utapinopona em 2002, da qual disse gostar e que é bom ter matemática tuyuka (“diferente”) – aprendeu adição, subtração e cálculos - e leitura em língua tuyuka. Gosta também de medicina tradicional, como remédios para picada de jararaca (embora não tenha testado) e para tuberculose.

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A Escola Estadual Inês Penha, na sede urbana de São Gabriel da Cachoeira, foi encarregada de expedir certificados de conclusão do ensino médio da Escola Utapinopona.

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Luciano Amaral Barbosa, 51, yebamasã, estudou um ano em Pari-Cachoeira e fugiu do internato. Era preciso pagar taxa de matrícula e ele não tinha dinheiro, vinha de férias naquela época e não retornou à escola. Tem quatro irmãos com idade entre 20 e 25 anos. Ele considera a escola boa, preferindo que continuasse o uso de parecer descritivo como meio de avaliação, mas, “o sistema” tem pressionado para transformar no modo tradicional de atribuição de notas. Três de seus filhos estudaram na Utapinopona e dois, em Pari-Cachoeira e na cidade de São Gabriel. Para ele, nada é ruim na escola local e tudo o que é feito lá é bom, mencionando arte, ensino via pesquisa e pesquisa dos conhecimentos dos conhecedores da comunidade. Sua esposa, Deolinda Marques Prado, 55, tuyuka, estudou três anos em PariCahoeira e parou na 2ª série. Ela disse estar contente porque, com a pesquisa, registram conhecimentos (benzimentos) e as crianças saem da escola com outro sentimento, sentem-se desenvolvidas. Segundo ela, “o benzimento é muito importante para nós” porque, com este, podem se proteger em um lugar em que não há hospital ao alcance. Ela gostaria que a escola expedisse certificado, considerado importante porque é necessário aos concluintes do ensino médio para continuarem os estudos em nível superior. Justifica a ideia pela existência de demanda na comunidade por “enfermeiro, doutor, dentista, professor, agrônomo, muitas coisas”. Ela quer que seus filhos continuem os estudos e pensa que, depois de formado, o jovem voltaria à comunidade para trabalhar e os líderes criariam um local para que atuassem na comunidade. De negativo, disse que a estrutura da escola deve ser melhorada fazendo-se mais salas de aula porque não cabem todos nas existentes. Disse também que falta auxílio material à piscicultura. Meu intérprete e filho do casal, João Barbosa, 32, yebamasã, estudou nove anos em Pari-Cachoeira e três anos na sede urbana de São Gabriel da Cachoeira. Tem três filhos, uma menina de 2 anos e dois meninos com 4 e 6 anos. Também apontou como ruim o fato de a escola não expedir certificado, explicando que isto

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“depende do PPP” (Projeto Político Pedagógico). Na mesma linha, disse que o governo não é pontual na entrega de merenda e de material escolar, assim como no pagamento dos professores. Criticou a Semec (Secretaria Estadual de Educação) e Seduc (Secretaria Municipal de Educação) por não fazerem capacitação dos professores. João Barbosa é professor há oito anos, começou a lecionar em 2002 como substituto. Formou-se técnico em agricultura no Ifam (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas) na cidade de São Gabriel. Trabalhou também como técnico de áudio e vídeo para a comunidade, fazendo registro dos conhecimentos tradicionais. Ele destacou que tentaram desenvolver setores de produção a partir da escola local, mas, só conseguiram resultados com a agricultura. A piscicultura falhou pela falta de ração, os gaviões acabaram com a avicultura e a meliponicultura fracassou pelo ataque de abelhas selvagens às domésticas. Como algo bom da escola Utapinopona, ele sublinhou “trabalhar via pesquisa”. Gostaria que tivessem uma gráfica por considerar que há muita coisa interessante para produzir fascículos, especificando: “cada ponto que a gente avança é devido ao conhecimento dos velhos sabedores”. Quanto ao português, ele afirmou que é dito e ensinado, mas, acredita que “o mais interessado só vai continuar a aprender quando for cursar faculdade”. João Barbosa tem dezesseis alunos com idades entre 15 e 27 anos no 5º ciclo (equivale ao 1º ano do ensino médio). Segundo este professor, são os alunos que colocam seu interesse, que ele nomeia como arte e materiais de cozinha: meninas fazem corda para atar rede e meninos fazem maracá para cerimônia, tipiti, cesto para lixo e vassoura. Ele entende que a escola está preparando seus netos com o registro destes conhecimentos, os velhos estão acabando e são só dois conhecedores. Ele também informou que nenhum dos professores da comunidade fez curso superior e somente dois fizeram Proformar (Programa de Formação e

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Valorização de Profissionais de Educação)4 no Ifam, durante as férias. A esposa de João Barbosa, Lucinete, 26, tuyuka, estudou até a 6ª série em Pari-Cachoeira. Terminou o 4º ciclo na escola tuyuka. Nessa escola, ela considera muito bom “estudar nossa língua, falar nossa língua”. Disse ter aprendido muito: “antes, a gente não falava língua tuyuka, só tukano. Hoje, a gente só fala língua tuyuka, não mais tukano. Criança até velhos”. Ela aprendeu português em Manaus, foi passear e morou lá dois anos com a tia. Na escola, Lucinete também disse ser bom o artesanato (confeccionar puçá), aprender a plantar na roça, a adubar e a medir as plantas, o que envolve muitas coisas como a matemática. Aprenderam a fazer barragem para piscicultura, criar aves e fazer ração com cupim. Quer que a escola continue como está e que melhore, que os estudantes se formem e consigam trabalho na comunidade: “os professores também, todo mundo é legal. Os velhos, que falam muitas coisas boas”. Orlando, 28, yebamasã, estudou em Pari-Cachoeira até o 1º ano do ensino médio. Ele disse: “consegui mulher e larguei o estudo”. Não tinha condições para se deslocar para a cidade e o ensino médio é recente na comunidade. Segundo Orlando, a escola atrai a comunidade e vice-versa. Há uma relação de união e, sem a escola, “o pessoal daqui, a comunidade, ficava isolado”. As pessoas saíam em busca de escola. A esposa de Orlando, Edilene, 27, tuyuka, é de Cachoeira Comprida. Estudou até 6ª série em Pari-Cachoeira. Disse sentir que, sem a escola, ela não estaria na comunidade e que, com a escola, a comunidade é organizada e bem animada. Uma das filhas do casal, Luciane, de oito anos, entrou na escola tuyuka em 2010. Para ela, na escola, só há o que ela gosta e o que gosta mais ali é de desenho e aprender a escrever.

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Uma modalidade de ensino a distância do governo do Amazonas que visa a melhorar a qualidade do ensino com a qualificação de professores de educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental da rede pública.

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Alexandre Sarmento Resende, 35, tuyuka, estudou em PariCachoeira até o fim do ensino fundamental. É professor na escola Utapinopona e destacou como uma coisa boa a valorização da língua tuyuka na fala e na escrita, pois incentiva desde pequenos entender que a cultura tuyuka é tão importante quanto a sua língua. Observou que, para outras etnias (Barasana, Yebamasã), não há valorização semelhante: “deveriam estar dentro da escola e serem alfabetizados nessas línguas”, numa alfabetização mútua das línguas. Alexandre Resende afirmou que “mais que profissão, a gente quer que nossos filhos permaneçam na comunidade como liderança forte”. Isto quer dizer que, tendo feito curso superior, voltem à comunidade para lutar pelos direitos desta em vez de sair para trabalhar em outro lugar. Sua esposa, Maria Cleofa Massa Sampaio, 28, tukano, estudou até a 7ª série na cidade de São Gabriel da Cachoeira. Ela tem outra perspectiva, pela qual a criança é deixada para estudar na escola tuyuka e se formar para que consiga pelo menos um trabalho para se sustentar e sustentar a família. Gustavo Amaral Barbosa, 46, yebamasã, estudou um ano em Pari-Cachoeira e terminou o ensino fundamental na escola tuyuka. Faz roça e pesca e entende que “a escola está boa assim”, que é melhor estudar com língua tuyuka. Das muitas coisas que aprendia, salientou as histórias dos velhos. Faziam pesquisa perguntando aos velhos e faziam textos, por exemplo, sobre benzimentos. Aprendeu artesanato (cestaria: peneiras, balaios). Segundo João Barbosa, meu intérprete, Gustavo Barbosa foi também o desenhista da escola e produzia fascículos. Para os filhos, Gustavo Barbosa acha a escola boa também porque o menorzinho “sabe fazer de tudo” (artesanato) e vende. Ele comparou com Pari-Cachoeira, onde não se ensina a trabalhar, somente a escrever. Disse ainda ser bom que, na escola tuyuka, não se usa mais livro feito, “a gente mesmo produz livro”. Contou ainda que, quando falta merenda, os professores mandam pescar no sábado e João Barbosa complementou dizendo que esta

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atividade também faz parte do ensino. Gustavo Barbosa queria que um filho fosse médico e o outro fosse dentista. São três filhos: dois rapazes de 16 e 20 anos e uma mulher de 26 anos. O primeiro estava começando o ensino médio na escola Utapinopona e o segundo terminou o ensino médio lá. A mulher trabalha na cidade como doméstica concluiu o ensino fundamental na escola tuyuka. César, o de 16 anos, disse que o ensino é bom e confirmou que escrever, fazer arte e pesquisar conhecimentos são coisas boas. Além disto, afirmou que o que aprendeu é revelado e sua capacidade é demonstrada na comunidade. Antonio Sarmento Resende, 40, tuyuka, estudou em PariCachoeira onde concluiu o ensino fundamental. Ele pesca, faz roça e caça. Sobre o que há de bom na escola tuyuka, ele disse que falava tukano e não falava tuyuka e aprendeu quando foi para São Pedro: “agradeço muito essa escola minha filha falar tuyuka”. Ele disse ser a escola muito agradável para ele, por meio da qual aprendeu dança tradicional, aprendeu a dançar e a cantar, o que ele considera muito avanço. Disse que seus filhos também estão aprendendo língua e matemática tuyuka na escola. Dois alunos se hospedaram em sua casa, aprenderam a fazer tipiti e deixaram um com ele. A esposa de Antonio Resende, Geraldina Paz Neri, 36, tukana, fez quatro anos de escola em Jabuti-Cachoeira. Eles têm cinco filhas e um filho: Judiclea, três anos; Marinalva, cinco anos; Rosiane, oito anos (aluna da escola tuyuka); Jesumeire, onze anos (está com o avô materno em Pari-Cachoeira, onde estuda), Evoneide, treze anos; Edvaldo 16 anos. Estes dois últimos frequentam a escola Utapinopona. Sobre o que há de bom nesta escola, Edvaldo disse que é escrever em tuyuka e contar na matemática tuyuka porque se dá o fortalecimento da língua. O que gosta mais é matemática, relacionada com a matemática maia, assim como desenhar a partir de um texto. A mais nova, Rosiane, gosta de matemática e cantos de animação na língua tuyuka e em português. Só se referiu a algo

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ruim na escola: colegas que brincam de tirar o lápis dela quando está escrevendo. Para Joaquim Barbosa Prado, 46, tuyuka, a escola tuyuka “está tudo boa” porque estão estudando a língua dele e escrevendo em uma escola diferenciada. Disse que o boletim é um parecer descritivo, sem nota. Segundo ele, o professor do branco dá nota (6, 5, 8...) e, na escola diferenciada, os alunos não tiram nota, apesar de, há três anos, a Semec impor o sistema convencional de notas. A esse respeito, João Barbosa, o intérprete, afirmou que a autonomia que “a escola pensou” estava fracassando e o povo tuyuka estava repensando a respeito, fez um documento à Semec dizendo que esta não poderia impor a exigência da nota. Acrescentou que, na época em que a irmã Edilúcia Freitas era secretária municipal de educação de São Gabriel da Cachoeira, enviavam à Secretaria pareceres descritivos “na língua” com tradução para o português, mas, que o secretário atual, querendo impor outro sistema, destruiu a autonomia da escola. Com Basília Amaral Barbosa, 52, yebamasã, Joaquim Prado tem quatro filhos do sexo masculino e uma menina: Givanildo (nove anos); Adelaide (doze anos), Ermenegildo (quinze anos), Etevaldo (dezoito) e Edilberto (vinte). Perguntei a Ermenegildo o que ele gostava mais na escola e ele respondeu gostar mais da “via pesquisa” por meio dos conhecedores, descobrir o que acontecia antigamente, como rezavam e benziam. Disse gostar também de arte (materiais de cozinha e de pesca), traz tarefas para casa, faz com gosto e leva para a escola. Quando estive em São Pedro em 2012, o capitão da comunidade era Adão Amaral Barbosa, 47, yebamasã. Estudou até a 7ª série na escola de missão em Pari-Cachoeira. Fala bem português e trabalhou em barcos comerciais. Ele disse estarem com anos de escola diferenciada e que andava bem até a primeira turma de ensino médio concluir, desgostou porque “o certificado nunca sai”. Ele quase não deixou os filhos estudarem na escola tuyuka porque iriam ficar como não tendo estudado. Disse que a Semec dá

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materiais às vezes, mas, desanimaram porque “governante não apoia nossa escola”. Pensaram frequência e nota diferente para os alunos: parecer descritivo. Mas, a Semec “queria como escola de branco de novo, deu desânimo para nós”. Mas ele faz uma imagem positiva da escola, disse que aprendem muita coisa, “tanto dos brancos como da nossa cultura”, através de pesquisa: “resgatamos a língua tuyuka”. Disse também que eles, pais, querem que os filhos se tornem professores e que aprender em pesquisa sobre arumã ou benzimentos é importante e tem valor para o futuro. A esposa, Helena Campos Resende, 52, tuyuka, estudou na escola de missão em Pari-Cachoeira, até a 2ª série do ensino fundamental. Desde a criação da escola tuyuka, seus filhos vêm frequentando. Comparou com ela mesma e afirmou que aprenderam e sabem mais do que ela e são capazes de contribuir nos trabalhos comunitários. Declarou que a escola incentiva que os alunos sejam “como líder, crítico, contribuidor”. Para ela, importante para o futuro é aprender manejo de paisagem e cobertura com caranã (palha da palmeira de buriti) porque, através desta pesquisa, vão adaptar e viabilizar o manejo da floresta inteira. Aprendem também “todo tipo de erva e árvore” (o tempo que levam para crescer) e o uso de GPS (Global Positionig System), bússola etc. Disse que o mais velho quer cursar história no Parfor5, que funciona nas férias. Este casal tem quatro filhos e duas filhas, com idades de 11, 13, 14, 16, 18 e 26 anos. Este último estudou na escola Utapinopona, foi professor e está traduzindo tuyuka para a Semec. Os demais ainda frequentam a escola tuyuka. Perguntei a um deles, Juninho, o que há de bom nesta escola e ele respondeu: escrever “na língua”, 5

Plano Nacional de Formação de Professores de Educação Básica, implantado em regime de colaboração entre a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), os estados, municípios o Distrito Federal e as Instituições de Educação Superior. O programa fomenta a oferta de turmas especiais em cursos de licenciatura, segunda licenciatura e formação pedagógica (para não licenciados em exercício da docência). Disponível em: http://www.capes.gov.br/educacao-basica/parfor. Acesso em: 24 dez. 2013.

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desenhar, cantar, matemática (adição). Sua irmã, Zenaide, 14, está na escola tuyuka há nove anos e, de bom, gosta de aprender matemática; quer continuar estudando e fazer enfermagem. Mencionou algo ruim: não gostava de brincar, o professor a obrigava e ela obedecia. Para Quintina, 77, tuyuka, a avó, a escola está ensinando os netos a serem mais capacitados, eles apresentam uma melhoria e ela se sente satisfeita. Abordando o que haveria de ruim na escola tuyuka, Geraldino Tenório afirmou que a falta de diálogo fez desorganizar as atividades, devido ao desentendimento entre professores do ensino fundamental e do médio, o primeiro vinculado à Seduc (Secretaria Municipal de Educação) e o outro à Semec. Em seu entendimento, falta diálogo dos professores com as lideranças e pais. Segundo ele, quem elaborou o projeto foram os pais e não os professores. Além disto, há certo período de aulas do ensino fundamental que é diferente em relação ao ensino médio: um período é na comunidade e outro é em aula. Isto traz uma dificuldade para que professores se encontrem e dialoguem. Mas, pretendem corrigir este aspecto. Outro ponto ressaltado foi professores que saíram para estudar terem voltado querendo ensinar português e matemática convencional, o que gerou desentendimento. Na experiência não convencional com matemática, “primeiro e profundamente, o formador ajudou a comunidade a analisar, organizar e registrar seus conhecimentos próprios e seus procedimentos”, diz Bazin (2012, p. 157). Teresa Azevedo Lima, 48, tukana, estudou até a 7ª série em Pari-Cachoeira. Mencionou um aspecto ruim, que ela chamou de contradição: povos vizinhos ficaram comentando que escola e povo tuyuka estariam “voltando a ser índio de verdade” e não aprendendo português. Ela disse ter desanimado, mas, viu que os filhos estavam aprendendo português e se animou de novo. Disse que, com aquele comentário, o pessoal estava enganado, seus filhos falam português quando vão à cidade e aprendem lá. Teresa Lima é casada com o professor João Bosco e eles têm seis filhos, uma das

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quais é Gislaine, de 11 anos. Ela disse que gosta da dinâmica do professor, brincadeira, canto e jogos. Ela quer ter a profissão de instrutora de informática e de professora. Esaú Villegas Ramos, 20, completou o ensino médio na escola tuyuka. Disse ter gostado da pesquisa dos conhecimentos e “tudo o que a escola ensinava”, gostava de trabalhar e cooperar com os amigos. Pedi que apontasse algo importante que aprendeu na escola. Ele riu um pouco sem graça e disse que pratica, depois da formação na escola, materiais de cozinha: balaio, peneira e cumatá (cesta para espremer massa de mandioca e goma). Pretende continuar, buscar atualizar os muitos conhecimentos que recebeu na escola. Conforme falou, para aprofundar, continuando a faculdade, teria “uma profissão e um pouquinho de salário”. Quer ser um político do movimento indígena e, segundo declarou, é uma pessoa considerada benzedor de futura geração, “meio profissional”. Quer fazer um curso de licenciatura em educação indígena. Rafael Marques Tenório, 24, tuyuka, estudou todo o ensino fundamental em Pari-Cachoeira e terminou o ensino médio na Escola Agrotécnica da cidade de São Gabriel da Cachoeira. Começou a trabalhar como professor na escola tuyuka durante 2009 a 2011. No começo de 2012, tentou o processo seletivo da Seduc e não passou, ficou como administrador da escola. O contrato é de dois anos e é preciso passar por outro processo seletivo para ser recontratado. João Barbosa, meu intérprete, esclareceu que a Seduc seleciona periodicamente professores indígenas entre pessoas que são indicadas pelas comunidades e este processo exige muita documentação e exames de sangue, urina e fezes. E completou: “não sei como eles avaliam lá”. Segundo Rafael Tenório, são oito professores na escola tuyuka e só quatro foram aprovados no processo seletivo e a Seduc também não informou nem justificou a razão de os outros não terem sido aprovados. Geraldino Tenório, coordenador do ensino médio, procurou confirmar o resultado com a gestora da Escola

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Estadual Irmã Inês Penha, que o informou do resultado do processo, constante de uma lista de nomes aprovados no setor de pessoal da Seduc. Para Rafael Tenório, a Seduc entende haver poucos alunos e reduz o número de professores à metade. Anteriormente, eram dois professores para cada uma das duas turmas (dois até o horário da merenda e dois após). Cada turma tem 15 a 16 alunos e um professor tem um auxiliar. Em 2011, a escola Utapinopona funcionou com sete professores, tendo sido reduzido o número para quatro em 2012. João Barbosa, o intérprete, Cláudio e Lenilza não foram aprovados. Sobre o que há de bom na escola tuyuka, Rafael Tenório disse que cada aluno da primeira turma havia escolhido uma linha de pesquisa, trabalharam bem e tiveram sucesso em suas pesquisas. Tinham bolsas de PDPI (Projetos Demonstrativos de Povos Indígenas),6 que foram encerradas. Passaram para a segunda turma com algum desânimo porque sem dinheiro, “iam com preguiça mesmo” e, “em vez de avanço, o trabalho caiu”. Rafael Tenório ficou trabalhando com a terceira turma e, segundo disse, ficam animados para trabalhar. Ressalvou que falta aos alunos planejarem o trabalho por sua própria iniciativa, sendo muito dependentes do professor. Mas, enfatizou que estão sempre presentes nas festas de dabucuri7 e que essa parte da cultura foi fortalecida. Perguntei-lhe se ele vê importância da escola tuyuka para o futuro da comunidade. Ele foi afirmativo. Disse que, se a escola 6

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Programa do Ministério do Meio Ambiente, resultante de acordo realizado em 1991 entre representantes do governo brasileiro, União Europeia, Banco Mundial e G-7 (grupo que reúne os 7 países mais ricos). Voltado para o estímulo e financiamento de iniciativas inovadoras e demonstrativas de comunidades da Amazônia e Mata Atlântica, tendo em vista o desenvolvimento de mecanismos de sobrevivência econômica ambientalmente sustentáveis. Disponível em: http://www.mma.gov.br/apoio-a-projetos/povos-ind%C3%ADgenas. Consulta em: 23 mar. 2016. As práticas de dabucuri são habituais também na comunidade São Pedro e o termo acabou sinteticamente significando o compartilhar, especialmente alimentos. Como me disse Guilherme Tenório: “fazemos dabucuri de tudo”.

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acabar, os alunos que já se formaram têm conhecimento (dos velhos, dos professores e dos pais) e poderiam continuar fazendo seu trabalho e articulando dentro da comunidade “como deveríamos fazer”. São conhecimentos tais como benzer, reprodução de alevinos, criação de abelhas e plantação. Francisco Ramos Rodriguez, 59, nunca frequentou escola. Sua esposa é Maria José Costa Lopez, 60, tuyuka, também não. Estava presente Arsenio Lopez Rodriguez, 25, bará, fez até 6º ano primário na Colômbia, completou o ensino fundamental e o médio na escola tuyuka. É secretário voluntário do ensino médio desde 2011. Seu irmão, Orlando Lopez Rodriguez, 27, bará, fez até 3º ano primário na Colômbia e cuida da mãe. Outro irmão, Hebert Lopez Rodriguez, 15, estuda no 3º ciclo do fundamental na escola tuyuka. A irmã, Monica Lopez Rodriguez, estudou até 3º ano primário na Colômbia e também cuida da mãe. Sobre o que há de bom na escola tuyuka, Arsenio Rodriguez disse que tinha interesse de estudar história, matemática e português e trabalhar com criação de peixes. Ressaltou que é muito importante escrever “a história de nossos avós”. Pretende continuar os estudos em licenciatura e fazer prova porque quer ser professor. Embora Orlando Rodriguez entenda que a escola tuyuka é importante e que não tem nada de ruim, ele não quer seguir estudando, quer ser pajé e caçador. Hebert Rodriguez, ainda frequentando a escola, quer continuar os estudos no nível superior e ser matemático. Monica Rodriguez, por sua vez, disse sentir-se contente porque a escola forma a pessoa com qualidade. Deu o exemplo das festas, nas quais os alunos são muito animados, mostrando que a escola trouxe melhoria. Ela pretende que Herbert faça como o irmão maior, Arsenio, que concluiu o ensino médio e se tornou secretário da escola. Ela não sabe a razão de Herbert estar desanimado de estudar às vezes. Ele diz que é devido à travessia do igarapé, quando o rio está cheio, ele tem que nadar.

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Entrevistei três filhos de João Bosco Azevedo Resende. Alcimar Azevedo Resende, 25, tuyuka, concluiu o ensino médio em 2009, solteiro, ajuda os pais em casa. Ele pretende continuar estudando. Em 2010, entrou no exército e deu baixa em 2011. Espera abrir inscrição para licenciatura indígena da Ufam em Taracuá. Pretende trabalhar na escola tuyuka ou na escola dos Tukano. Sua irmã, Joselene Azevedo Resende, tem 20 anos e faz ensino médio na escola tuyuka, da qual apontou como algo bom, no ensino fundamental, “via pesquisa” do conhecimento dos velhos. Ela veio registrando “na língua” e chegou a fazer fascículos. Somado a isto, ela destacou o desenvolvimento das artes e dos esportes. Para ela, o ensino médio é mais profissionalizante, voltado para arte e materiais de cozinha. Na parte teórica, disse, aprendeu a fazer textos baseados nas artes que fez. Ela mencionou algo de ruim na escola: não gosta de brincadeira dentro da sala de aula. Disse que os colegas brincam com ela e, de vez em quando, ela brinca também. Mas, não gosta. Quer continuar a estudar, os pais incentivam que lide com informática, mas, não gosta disto. Pensa em ser como o pai: professora. Práticas de educação escolar Perguntei se a escola seguia algum horário. Geraldino Tenório disse que não, embora, oficialmente, a escola de Pari-Cachoeira, exigisse diariamente aulas das 8 da manhã ao meio-dia. Expressei minha opinião sobre esse tipo de exigência, falei que se tratava de atos administrativos e que estes são normas criadas pelas autoridades do executivo para realizar a lei, mas, que nosso costume era entender os próprios atos administrativos como lei e esquecer desta. Disse-lhe que a lei maior é a Constituição, que tem uma seção de educação, recitei o artigo 205 e destaquei os dois primeiros princípios que integram o artigo 206: igualdade para frequentar a escola e liberdade para aprender, ensinar e divulgar o conhecimento. Geraldino Tenório pareceu concordar com tudo.

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Depois, mostrou-me, no interior da casa do conhecimento, as produções da escola tuyuka, trabalhos impressos dos alunos. Uma grande quantidade transbordando das estantes, sendo algumas publicações de bom padrão editorial feitas com apoio do ISA. Deixou à minha disposição para consulta. Levantei em torno das 7 horas com o tocar do sino e segui o som. Encontrei Evaldo Ramos, o catequista, e conversamos. Ele valorizou a necessidade de fazer criação de peixes, de abelhas e plantação de pomar. Ele mesmo havia plantado os coqueiros do “pátio” da comunidade. Fez um estágio na estação Caruru, onde aprendeu piscicultura em um projeto em parceria da Atriart (Associação das Tribos Indígenas do Alto Rio Tiquié) com o ISA. Perguntei se ele era seminarista, ele disse que não, mas, eu elogiei o seu desempenho na condução da cerimônia. Em seguida, fomos à maloca para a reza e a quinhapira, prato típico de caldo de peixe, sal e pimenta. Após a dispersão, voltei a observar demoradamente as salas da escola, novamente desertas. Era começo de agosto, as férias haviam terminado e nada parecia indicar que a escola estava funcionando. Fiz fotografias das dependências e das coisas escritas nas paredes ou penduradas em varais. Voltei para casa de apoio onde eu estava hospedado e ali fiquei. Não demorou a aparecer um rapazinho dizendo que Geraldino Tenório estava me chamando. Segui-o atravessando todo o “pátio” e a maloca até chegarmos ao rio, onde Geraldino estava dando partida no motor do barco, com um colaga bará e os alunos. Entraram no barco doze rapazes que podiam ter 15 ou 16 anos. Entrei também. Navegamos uns dez minutos e, logo no início, Geraldino Tenório acendeu um grande cigarro com papel de caderno, que foi tragado por cada passageiro, por mim inclusive. Entendi como uma forma de proteção. Aportamos e os meninos foram saindo do barco e subindo um barranco íngreme e muito escorregadio. Segui-os em meus gestos incertos. Foram entrando na mata e eu seguindo com aquele receio de quem se sente muito vulnerável e desajeitado. Fui atolando minha sandália, soltando e prendendo novamente as tiras, em uma

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picada muito fechada. Tudo muito molhado até que chegamos a um alagado onde havia dois pés de buriti. Umidade total, mata fechada e o sol forte lá fora fazendo o suor escorrer direto. O bará atravessou o alagado enquanto quatro rapazes se preparavam para subir. O restante do grupo seguiu pela mata. De vez em quando, comunicavam-se imitando piados de pássaros. O bará cortou com o terçado um tronco de uns vinte centímetros de diâmetro e uns cinco metros de altura enquanto alguns rapazes cortavam cipó fino. Apoiaram o tronco numa árvore que distava uns três metros, paralela à palmeira de buriti. Usaram o tronco para subir pela árvore, quando em sua copa, puxaram o tronco com o cipó e o puseram como uma ponte entre a árvore e a palmeira, na altura dos cachos de buriti. Todos lá em cima, somente eu e o bará na base. Um dos rapazes passou pela ponte, firmou-se na copa da palmeira e começou a cortar os cachos. Terminada a operação, seguimos todos pela picada atrás do restante do grupo. Passamos por uma vegetação que me pareceu ser a típica caatinga amazônica, mais baixinha, seca, em solo arenoso. Logo entramos na mata densa novamente, em outro alagado, com outros pés de buriti. Agora, seria preciso cortar um tronco de apoio bem mais comprido. E outros para ajudar a erguer o primeiro. Tudo isso levou tempo e o céu foi-se fechando. O sol forte deu lugar a um tempo nublado e logo começou a chover grosso. Eu vinha seguindo tudo com fotos e alguma gravação em vídeo, com minha câmera nova e cara. Desprevenido, não havia levado um saco plástico para protegê-la. Não tardou que um dos rapazes me entregasse um maço de folhas para eu proteger a câmera. Agradeci efusivamente, embrulhei-a e a pus no bolso. Seis deles fazendo força para colocar o tronco de apoio mais próximo da palmeira. Feito isto, dois deles subiram, um conseguiu instalar-se na copa e começou a decepar os cachos. Chuva forte e todos completamente encharcados. Nisso, o coordenador me chamou para voltar seguindo o rapaz que havia me chamado na casa de apoio. Fiz isso, caminhando na chuva de volta ao barco. Na descida do barranco, o que eu temia. Primeiro,

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um escorregão me fez tombar desajeitado. O rapazinho perguntou se eu havia machucado e foi cuidadoso em me oferecer ajuda. Mais uma vez atolei a sandália na lama e a tira soltou. Embarcamos e esperamos por uns vinte minutos a turma toda retornar. Um deles havia ficado ilhado na palmeira de buriti. Tudo o que foi coletado ficou pelo caminho. Mais tarde, eu soube que isso era para que os frutos escurecessem, pois seriam usados para fazer pinturas corporais para a festa, quatro dias depois, no domingo. Aquela coleta de buriti tinha sido uma atividade fascinante. Envolveu orientação clara e concisa de adultos e, da parte dos jovens, observação arguta, persistência, agilidade, capacidade de improvisação e trabalho coletivo coordenado. Sem dúvida, requereu também bom preparo corporal para o esforço físico e coragem: a mata oferece perigos (insetos, animais peçonhentos, plantas com espinhos) e uma palmeira de buriti tem entre quinze e vinte metros de altura. O clima todo foi de cooperação, camaradagem e risos. Que parte dos testes governamentais trata desses aspectos? Quinta-feira é dia da comunidade. Novamente ouvi o sino e fui vagarosamente à maloca. Na véspera, o capitão havia permitido que eu fizesse fotos da reza. O ex-capitão, Adão Barbosa, esteve desta vez. Após a cerimônia litúrgica, em cuja pregação Evaldo Ramos enfatizou a importância da comunidade e do trabalho comunitário, Raimundo Tenório falou longamente em tuyuka e outro homem o secundou. Comemos quinhapira, houve a dispersão e eu voltei para a casa de apoio. Enquanto conversava com Adão Barbosa, ouvimos os ruídos de corte de folhas de palmeira inajá. Eram os jovens alunos que as colhiam para cobrir (reformar) a cumeeira da maloca. Este era o trabalho comunitário previsto. Fui à maloca onde seis homens começavam a trançar (tecer) os ramos das folhas, cada uma com mais de três metros de comprimento. Dia seguinte, encontrei Geraldino Tenório e perguntei o que estava programado para o dia. Ele disse que voltariam para

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apanhar os buritis coletados. Quis perguntar-lhe sobre o programa dos próximos dias, mas, desisti. Pensei que, se ele considerasse importante, diria. Ele me perguntou se eu estava conseguindo conversar com as pessoas e eu confirmei. Voltei à casa de apoio para escrever até o fim da manhã. Já eram oito da noite quando chegou Paulino Ramos, pai do catequista Evaldo e do Aima José Maria. Falou sobre o dabucuri. Perguntei se haveria preparação e ele se referiu a jejuns e vômitos, como ensinaram os velhos. Falou dos benzimentos dos alimentos e que haveria ipadu, caxiri e caapi. No domingo, acordei com a luz do dia. Desta vez, não tocou o sino. Logo chegou José Maria Ramos, dizendo que estavam todos na maloca, convidando-me para ir e pedindo tabaco. Dei a ele quatro pacotinhos. Fomos juntos à maloca e tinha acabado a quinhapira. Teríamos que entrar pela porta posterior, por onde só entram homens, a anterior é só para as mulheres. Esta entrada foi fechada com uma lona plástica para as mulheres não verem. A festa, durante o dia, era apenas de homens. À noite, a entrada frontal seria aberta e as mulheres e crianças viriam. Havia baldes de caxiri, que os homens serviam uns aos outros continuamente. A maioria ficava sentada dentro da maloca fumando e comendo ipadu. Disseram que o ipadu era para não sentir fome. De fato, durante todo o dia, eu não senti fome e ninguém se alimentou até a noite. Mesmo à noite, enquanto estive lá, ninguém comeu nem sequer tocou nos buritis. Um espelho e um potinho plástico com pó de carajuru foram usados por cada um para pintar o rosto. Adão Barbosa pintou meu rosto. Bosco Rezende estava sentado ao lado da entrada da maloca e eu me sentei no banco em frente. Conversamos muitas vezes ao longo do dia. Ele procurava me explicar o sentido da festa e das condutas. Ali próximo, estavam sentados Raimundo Tenório, o ancião Joanico e o benzedor Feliciano Tenório, ao lado de um cesto que porta uma cuia de ipadu. A certa altura, os rapazes do ensino médio vieram trazer os cocos de buriti, colocando-os em bacias de alumínio (haviam colhido 35 aturás de buriti). Seriam uma oferenda de frutas. Eu perguntara se eu poderia fotografar, as flautas sagradas são secretas e há um mito sobre a

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menstruação que envolve o roubo das flautas pelas mulheres sua retomada pelos homens. É proibido que as mulheres as vejam e mesmo falem a respeito, assim como é proibido que façam saber aos homens quando estão menstruadas porque outras ameaças poderiam ficar sabendo e atacar, considerando que esse é um período de vulnerabilidade. As flautas têm cerca de quarenta centímetros e são envoltas por um tubo cônico de cerca de trinta centímetros de base e um metro e meio de comprimento, que serve de caixa de ressonância. Seu som é grave e são tocadas fazendo a contínua marcação de um ritmo. Lembram o ronco da onça. Eram quatro flautas, que começaram vindo de fora, dois pares, entraram na maloca e ficaram dando voltas em seu interior. Um dos primeiros tocadores era Geraldino Tenório. Ao longo de todo o dia, os rapazes se revezaram no tocar das flautas. Eu não poderia fotografar a festa dentro da maloca exatamente porque as flautas não podem ser vistas e eu não poderia publicar. Nessa altura, trouxeram um balde com as folhas que, misturadas à água, produzem o líquido para pintar o corpo, principalmente pernas e braços. Um tuyuka pegou um punhado e fez a pintura de meus pés, pernas, mãos e braços. Os rapazes trouxeram um feixe de pedaços do cipó de caapi. Limparam um tronco cavado usado como pilão, foram batendo com paus o cipó para retirar a casca e fizeram um monte com a casca. Também trouxeram uma fieira com folhas que seriam piladas junto com a casca do cipó para tornar o caapi mais forte. Pilaram tudo e colocaram em uma bacia grande de alumínio. Despejaram uma grande panela de água, misturaram e espremeram o sumo. Depois, ainda passaram esse caldo na peneira e colocaram em um pote de cerâmica de cerca de quarenta centímetros de altura por quarenta de diâmetro. Quando já iam terminando esse preparo, chegou um barco com mais uns quinze rapazes e homens de Cachoeira Comprida, uma comunidade a oeste, mais acima do Tiquié. Chegaram tocando mais quatro flautas sagradas e com muitos cachos de buriti. Todo o buriti foi reunido e colocado em um dos cantos da maloca. Bosco Rezende procurou chamar a minha atenção para o fato de que os Tuyuka vieram perdendo muito do que chamou de sua

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cultura conforme os velhos foram morrendo. Essa cultura tem um eixo central em saberes concentrados em alguns conhecedores, que são de sibs mais elevados. Tais conhecedores ensinariam aqueles saberes em longos processos, são principalmente benzimentos de proteção e requereriam jovens interessados e percebidos como adequados ou aptos para o exercício das funções dos conhecedores, que são especializadas (benzedores, entoadores, dançadores, rezadores). Ele foi crítico em relação à atração de pessoas de seu povo pela “cultura do branco” e à “perda da cultura” tuyuka. A festa do dia era especialmente importante como uma espécie de contra-ofensiva e retomada da cultura considerada original. Enfatizou a ideia de alteridade e a necessidade de “os brancos” reconhecerem a cultura do outro, assim como de seu povo afirmar e orgulhar-se de sua cultura. Já havia anoitecido quando a entrada para mulheres da maloca foi aberta. Vieram as mulheres e as crianças. Os dançadores já haviam retirado os ornamentos de plumas de pássaros das caixas e se paramentado. As flautas sagradas já haviam sido recolhidas para a parte de fora, atrás da maloca. Pegaram os cariços (flauta pã) e os jovens começaram a tocar. Antes, um dos adultos pegou um cariço e todos fizeram fila para dar uma soprada. Alguém me explicou que era para não ter dor de dente. Os cariços foram benzidos. Geraldino Tenório disse que era esta a festa que os brancos chamam de jurupari e que tem muitos nomes indígenas 8. É uma festa de iniciação dos rapazes. Disse-me que foi a primeira vez que conseguiram fazer completamente deste modo e que as outras

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A festa remete ao mito do Jurupari, um espírito da floresta dos povos tupi, representado por grandes flautas, tabu para as mulheres. Saake (1976a) viu que os Baniwa do Içana estavam há tempo sob a influência da civilização ocidental e o ato de, “não obstante, haverem conservado sua alma de índio” ficou especialmente evidenciado quando pesquisou o significado daquele mito. Os Baniwa se concentram na porção Norte de São Gabriel da Cachoeira, mas, muitas características do mito do Jurupari e do dabucuri - “festa da amizade e boa vizinhança, em que reina muita alegria e contentamento, e para a qual se reúnem tribos ou grupos vizinhos” (SAAKE, 1976b, p. 286) – coincidem com o que presenciei entre os Tuyuka de São Pedro.

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manifestações de dabucuri, com mulheres e crianças, são “muito bagunçadas”. Desta vez, a coisa havia sido feita de acordo com o prescrito. E sentenciou: “Nós consideramos isso aula”. Conclusão Tratando da educação na sociedade tupinambá, há cerca de 50 anos, Fernandes (1976) ressaltou, como fontes de saber conspícuo na luta para manter a herança cultural à altura das exigências do momento - tais como ruptura nos laços de solidariedade e nos padrões correspondentes de integração de parentelas - os exemplos dos ancestrais, as emergências mantidas na memória coletiva e os ensinamentos das tradições dotadas de eficácia. Disso, ele extraiu que inovação e tradição se interpenetram, de modo que a inovação lança raízes no passado e se alimenta de potencialidades das tradições. Esse entendimento parece enquadrar adequadamente a Escola Tuyuka. Os resultados da pesquisa que se propôs a verificar aspectos inovadores daquela escola mostraram a lógica de inovação educacional, tanto por se tratar de práticas originadas na base do sistema escolar quanto por serem diferentes do que se costumava fazer como educação escolar entre os povos do Noroeste Amazônico, ou seja, a educação colonialista. A proposta do povo Tuyuka para a sua escola inova frente às arraigadas pretensões civilizatórias, no sentido de integrar um povo à sociedade nacional pelo abandono de sua visão de mundo e de seus modos próprios de viver. Inova justamente ao se sustentar nas tradições que configuram a cultura desse povo. Além disso, embora os Tuyuka de São Pedro tenham assimilado traços do catolicismo e sigam toda manhã liturgias coordenadas por um dos seus na função de catequista, tais práticas manifestam um sincretismo que não atribui à Escola Utapinopona qualquer missão catequizadora. A educação colonialista se desfaz pela alta valorização da cultura tuyuka, especialmente da língua, e dos saberes tradicionais, aos quais

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se confere grande legitimidade, priorizando-os como objeto de aprendizagem na atividade escolar. Soma-se a isso o fato de, tanto na proposta escrita quanto em sua realização, os horários rígidos e a marcada separação entre a circulação pelas instalações escolares e pelo seu entorno imediato darem lugar à participação engajada, à variação dos ritmos individuais e à constituição de um contínuo entre a escola, o local de moradia da comunidade e a floresta. No caso da Escola Tuyuka, confirmou-se a hipótese de que houve superação da escolarização colonialista. Além disso, a orientação adotada e sua concretização contam com elevada aceitação de crianças, jovens, pessoas adultas e anciãs. Aprovação que se conjuga ao exercício regular do controle comunitário da escola, dos aprendizados que esta proporciona e de seus agentes, também designados por determinação da comunidade.

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PARTE II

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O CONCEITO DE “NATURAL” NOS DEBATES SOBRE A HOMOSSEXUALIDADE André Luís Carolli1 Maria José de Jesus Alves Cordeiro2

Introdução O conceito do que é natural está no centro da maioria das discussões sobre as homossexualidades masculina e feminina e sobre a identidade de gênero. Argumenta-se, nos debates públicos, do ponto de vista conservador, com o uso de conceitos originários da influência religiosa cristã, que as variantes de gênero que vão além do identificável pelo sexo biológico, bem como as formas diversas de expressão da sexualidade que não correspondam à heterossexualidade cis3, estariam fora dos limites da natureza André Luís Carolli – Acadêmico do Curso de Mestrado em Educação da Unidade Universitária de Paranaíba – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). Bolsista do CAPES. Membro do Grupo de Pesquisa GEPEGRE e do centro CEPEGRE. Email [email protected] 2 Doutora em Educação-Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC/SP. Docente do Curso de Pedagogia e do Mestrado Profissional Ensino em Saúde na Unidade Universitária de Dourados e do Mestrado em Educação da Unidade Universitária de Paranaíba - Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). Líder do Grupo de Pesquisa em Educação, Gênero, Raça e Etnia – GEPEGRE/Cnpq, e coordenadora do Centro de Estudos, pesquisa e Extensão em Educação, Gênero, Raça e Etnia – CEPEGRE/UEMS. Email [email protected] 3 Cis é um prefixo latino que significa “deste lado”. Cis é usado para designar uma pessoa que se sente pertencente ao gênero correspondente ao seu sexo biológico de nascimento e, ao mesmo tempo, tem práticas sexuais heterossexuais correspondentes ao seu sexo biológico. 1

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humana, configurando uma construção social, considerada por alguns setores sociais como contrária à natureza. A ciência, por sua vez, apresenta evidências opostas. Este capítulo busca fazer uma reflexão sobre alguns aspectos pertinentes a esse debate específico, trazendo elementos apresentados pela ciência contemporânea sobre a natureza da homossexualidade, no intuito de fazer uma crítica a este discurso conservador: Nos debates públicos a respeito das origens das chamadas diferenças sexuais e da natureza das relações entre mulheres e homens – debates esses conduzidos na mídia, nas interações cotidianas e nos discursos acadêmicos – são feitas uma série de afirmativas que empregam a palavra “natural” de maneiras fundamentalmente “enganadoras”. Estas afirmativas são de vários tipos, mas traço em comum de muitas delas é que descrevem as diferenças estabelecidas entre mulheres e homens na vida social como se fossem originárias da biologia. (MOORE, 1997, p. 1).

Em muitos discursos discriminatórios da homossexualidade e da expressão de identidade de gênero não correspondente ao sexo biológico de nascimento, a palavra “natural” opera como um preconceito, pois o que se considera como natural é um conceito simplesmente pré-definido pela tradição da cultura ocidental. É importante observar nesta crítica que: “As palavras têm sempre uma história. E fazem a história também. Pensar o ‘peso das palavras’ é indagar sobre sua relação com a história, tanto com aquela que as fez quanto com aquela para a qual contribuem” (CUCHE, 2002, p. 17). Por isto, o significado que se tem em consideração da palavra natural, nessas discussões, precisa ser mais profundamente compreendido à luz do conhecimento científico atualizado e, quando necessário, revisto. A influência religiosa na cultura O questionamento sobre o que é natural na homossexualidade e na expressão da identidade de gênero ocupa o centro do debate

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de algumas importantes questões religiosas que envolvem a sexualidade, às quais se atribui, ao que foge da “norma” heterossexista, a qualidade de antinatural, significando, nesse contexto, pecado4 ou erro, do ponto de vista da cultura religiosa de base judaico-cristã. No Ocidente, a cultura incorpora de sua origem judaico-cristã muitos conceitos sobre sexualidade que a normatizaram e que ainda influenciam muitas áreas de conhecimento. Essa normatização influi diretamente na luta pelo reconhecimento de indivíduos homossexuais e transgêneros como cidadãos plenos em nossa sociedade. O conceito sobre natural é apresentado nas sagradas escrituras judaico-cristãs, uma das bases da cultura ocidental, como um parâmetro a ser usado para entender a expressão da sexualidade e a identidade de gênero. Este conceito foi cunhado sob o ponto de vista da antiga sociedade judaica e reforçada grandemente pela influência da lei mosaica. Este padrão de normatização, que reconhece como legítimas apenas as relações sexuais heterossexuais e apenas duas identidades de gêneros, associadas diretamente ao sexo biológico, sem variações, disseminou-se pela cultura e passou a valer em todas as sociedades ocidentais. O Ocidente assim naturalizou a heterossexualidade, transformando-a em uma norma: Torna-se importante destacar ainda que, na história de nossas sociedades, entre outras de suas expressões, o preconceito tomou a forma da opinião religiosa, que, misturando às crenças uma visão também naturalista da sexualidade, traduz-se na versão segundo a qual a heterossexualidade sendo a forma sexual herdada da natureza pelo homem e – sendo a natureza uma criação de Deus... Javé, Allah, os termos variam conforme as crenças... – tudo que a essa forma contraria, não apenas contraria a natureza, contraria igualmente a vontade divina. Explica-se por que a homossexualidade é banida nas religiões para o campo dos “pecados”, “atos impuros”, “anomalias”, “vícios”, “depravações” ou, na erudição de seus chefes,

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Pecado tem o significado religioso de “erro”, que seria a desobediência a qualquer norma ou preceito religioso. Pode também ser entendido, do ponto de vista cristão, como a prática de qualquer injustiça.

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representa “quando menos, desordem da identidade de gênero” – os termos são de Joseph Ratzinger, logo após tornar-se Bento XVI (SOUZA FILHO, 2009, p, 9-10).

O cuidado da religião frente ao pecado levou ao desenvolvimento de um discurso de condenação, interdição e vigilância das práticas homossexuais, que permeou as culturas ocidentais e até orientais, como no caso do mundo muçulmano, que também tem uma cultura que sofre forte influência dos conceitos da lei mosaica. Essa formação cultural refletiu até mesmo na ciência, que ainda incipiente no século XIX, influenciada por esse discurso religioso, serviu em muitos casos, para justificar preconceitos. De fato, era uma ciência feita de esquivas, já que, na incapacidade ou recusa em falar do próprio sexo, referia-se sobretudo às suas aberrações, perversões, extravagâncias excepcionais, anulações patológicas, exasperações mórbidas. Era, também, uma ciência essencialmente subordinada aos imperativos de uma moral, cujas classificações reiterou sob a forma de normas médicas. A pretexto de dizer a verdade, em todo lado provocava medos; atribuía às menores oscilações da sexualidade uma dinastia imaginária de males fadados a repercutirem nas gerações; afirmou perigosos à sociedade inteira os hábitos furtivos dos tímidos e as pequenas e mais solitárias manias; no final dos prazeres insólitos colocou nada menos do que a morte: a dos indivíduos, a das gerações, a da espécie. (FOUCAULT, p. 53, 1988).

A visão da sexualidade heterossexual como uma norma, reforçada pela ciência do século XIX, naturalizou as visões leigas errôneas sobre esse tema, tornando-as senso comum, amplamente aceitas. É importante ressaltar que, no longo processo de colonização de imaginário de nossas sociedades, ganhou força uma concepção que corresponderia a uma naturalização da sexualidade humana, cujo efeito mais destacado é ter criado a ideia segundo a qual a heterossexualidade seria inata (a natureza daria os exemplos em todas as espécies), sendo então natural e normal. Indo da opinião popular a pretensas visões científicas, essa ideia da heterossexualidade como inata, constituída na natureza das espécies e, assim, igualmente na natureza animal da espécie humana, tornaria sem

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razão de ser qualquer questão sobre a sua origem. (SOUZA FILHO, 2009, p, 99).

A ciência do século XX foi grandemente influenciada pela parcialidade da ciência do século XIX e pelo senso comum reforçado pela mesma e, por isso, ainda abrigou alguns discursos resultantes desta parcialidade quanto a questões de sexualidade e de identidade de gênero, que começaram a ser revisados durante o século XX em um processo que prossegue até os dias de hoje, no século XXI. Alguns preconceitos ainda permanecem: […] Em geral, curiosas doutrinas (médicas, psicológicas, religiosas) sobre a sexualidade humana são invocadas para “explicar” a homossexualidade em homens e mulheres. Porém, não se tratando mais do que de preconceito em forma de teoria e ciência, as conclusões dessas doutrinas são não apenas arbitrárias: os “dados” sobre os quais se apoiam são questionáveis ou inexistentes (SOUZA FILHO, 2009, p, 98).

A psicologia, apesar de indicativos contrários apresentados por Freud, no início do século XX, ainda carregou por muito tempo preconceitos quanto à homossexualidade: No caso das psicologias, teóricos que, confundindo casos clínicos individuais com supostas leis gerais de “estrutura”, mas arvorando-se à condição de poder teorizar sobre a homossexualidade, praticam generalizações errôneas e profundamente preconceituosas. É recente a crítica teórica e o combate político ao preconceito em torno da homossexualidade. É a partir dos anos 50, e sobretudo depois dos anos 70 do século XX, que se inicia a formulação crítica, apoiada na antropologia e na história, opondo-se ao discurso até então dominante – mesmo no chamado meio científico – que apontava o caráter patológico, marginal e desviante da homossexualidade (SOUZA FILHO, 2009, p, 98-99).

Atualmente, a psicologia abandonou esta visão, com a consequente retirada da homossexualismo das listas de transtornos psicológicos e o abandono de métodos que visavam uma pretensa “cura” do comportamento homossexual.

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A análise revisionista de discursos Para viabilizar uma análise revisionista do que se considera natural, deve-se ter em consideração que um enunciado qualquer, seja científico, educacional ou mesmo religioso, deve sempre ser compreendido levando-se em consideração a época histórica na qual surge, pois o enunciado sempre estará relacionado aos conhecimentos existentes e aos usos das palavras na época em questão. Assim, deve-se ter em mente, ao se analisar um discurso qualquer, que os conhecimentos disponíveis em cada época e cultura permitiram certas visões e conclusões para seus autores, que certamente seriam diferentes se estivessem disponíveis a eles os conhecimentos científicos existentes no século XXI. Deve-se tem em vista nesta análise que a função de um ato de linguagem é “[...] uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço” (FOUCAULT, 1986, p. 99). Esse tipo de análise do discurso, em muitos casos, permite a ressignificação de alguns termos, com a consequente mudança no sentido de todo o enunciado em questão, já que a prática discursiva está relacionada a: […] um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa (FOUCAULT, 1986, p.136).

Além disso, deve levar em conta que existe um padrão binário de raciocínio, comum nas culturas ocidentais, onde as categorias analíticas são, muitas vezes, confrontadas numa divisão que tenta enquadrar as análises como dependentes da existência de dois lados, como nos exemplos de “a presença e a ausência”, “o certo e o errado”, “o normal e o anormal”, “o homem e a mulher”, “o nós e o eles”. Sob a influência deste pensamento binário, que trata as identidades de gênero correspondentes ao sexo biológico de uma

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pessoa e as relações sexuais entre homem e mulher como as únicas formas consideradas “naturais”, contrapondo-as com as relações homossexuais, a lógica simplista e incompleta, influenciada pela leitura literal e parcial de fontes religiosas descontextualizadas, gerou um discurso que leva a crer que as categorias que diferem do padrão heteronormativo não deveriam existir, por contrariar a natureza humana. A homossexualidade passou assim a ser considerada anormal, sobretudo a partir do reforço discursivo da ciência do século XIX, qualificada como doença ou anomalia, e os indivíduos homossexuais passaram a ser vistos como formadores de uma categoria de pessoas à parte na sociedade. Nessa lógica de divisão binária, estabelece-se uma hierarquia, onde um dos lados sempre é tido como superior. O indivíduo heterossexual é assim considerado detentor de uma sexualidade completa, saudável, enquanto o homossexual é visto como portador de uma ausência de completude, portanto, representado como uma pessoa doente ou inferior. O indivíduo heterossexual assume uma posição central na sociedade enquanto o homossexual assume uma posição periférica. A heteronormatividade passou a ser legitimada como natural para a maioria das pessoas, ou seja, ocorreu uma construção sociocultural de uma naturalidade acreditada, mas que não mais se compatibiliza com a realidade discernida pelas ciências atuais, que indicam fortemente a invalidade desse discurso. Por isso, é necessário desnaturalizar essa construção sócio-histórica-cultural que promove um entendimento falso sobre a natureza da sexualidade humana e, consequentemente, também, sobre a identidade de gênero. O filósofo francês Jacques Derrida propôs a respeito da naturalização de normas que geram discriminações, via diversos discursos, desnaturalizar aquilo que não é natural, em um processo de desconstrução dos discursos (DERRIDA, 1973). A desconstrução é uma estratégia que se vale da desmontagem dos enunciados de um discurso em seus termos e do questionamento sobre seus significados, considerando a estrutura da linguagem, que por sua vez é dependente da época e do espaço onde surge o

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enunciado. No caso do entendimento da homossexualidade e da identidade de gênero, significa trazer à luz, via essa análise, o fato de que a heteronormatividade é uma construção social e histórica e o indivíduo central na sociedade é apenas uma construção, apesar dessas coisas serem vistas como simplesmente naturais por nossa cultura, resultado dos discursos transmitidos de geração em geração. Assim, torna-se necessária uma análise dos conceitos que sustentam os discursos discriminatórios da sexualidade para ressignificá-los sobre um novo alicerce de conceitos atualizados, permitindo uma melhor compreensão da realidade pelas pessoas e o consequente abandono de preconceitos e discriminações. Nesse processo de desconstrução de um enunciado, constatações das mais diferentes áreas científicas podem ser usadas como contribuições. Dados atualizados permitem perceber que o significado de termos como “natural” podem ser mais precisamente definidos sob a luz de estudos científicos, sendo ressignificados. Contribuições científicas ao tema A visão conservadora confere à homossexualidade e à expressão da identidade de gênero não correspondente ao sexo biológico a classificação de ocorrências contrárias à natureza, em oposição à sexualidade exclusivamente heterossexual cis, considerada como única natural e aceitável, em função da natureza. Assim, os papéis sexuais são considerados em uma categorização binária, como se fossem restritos somente a relações homem-mulher e as expressões de identidade de gênero consequentemente restritas a homem-cis e mulher-cis. Entretanto, estudos científicos atuais, em várias áreas de conhecimento, demonstram claramente o contrário. Considerando a vertente das ciências sociais, por exemplo, existem vários resultados de estudos, que revelam que existe uma “[...] ampla evidência etnográfica para demonstrar que esse tipo de categorização binária é culturalmente específica e não brota

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automaticamente do reconhecimento das diferenças nos papéis e nas aparências físicas” (MOORE, 1997, p. 7). Está claramente demostrado por estudos etnográficos que o que se considera natural ou antinatural nas expressões de gênero e da sexualidade são apenas funções de questões culturais, ou seja, são um construto social que muda de sociedade em sociedade. Os resultados de pesquisas indicam que não existe um padrão referencial universal para gênero e para sexualidade, a ser considerado como único a ser reconhecido ou legitimado. Surgiu assim, para explicar o papel social dos indivíduos em relação ao seu sexo, o conceito de gênero: O conceito de gênero foi criado para enfatizar o fato de que as identidades masculina e feminina são historicamente e socialmente produzidas. É suficiente observar como sua definição varia ao longo da história e entre as diferentes sociedades para compreender que elas não tem nada de fixo de essencial ou de natural (SILVA, 2002, p. 105-106).

Para entender o conceito de gênero e sua diferença em relação ao conceito de sexo biológico, é necessário observar que os papéis atribuídos ao gênero mudam de sociedade para sociedade, indicando que são artificial e culturalmente construídos. Nada é puramente natural no homem. Mesmo as funções humanas que correspondem a necessidades fisiológicas, como a fome, o sono, o desejo sexual, etc., são informados pela cultura: as sociedades não dão exatamente as mesmas respostas a estas necessidades. A fortiori, nos domínios onde não há constrangimento biológico, os comportamentos são orientados pela cultura. Por isso, a ordem; “Seja natural”, frequentemente feita às crianças, em particular nos meios burgueses, significa, na realidade: “Aja de acordo com o modelo da cultura que lhe foi transmitido” (CUCHE, 2002, p. 11).

Assim, o comportamento que é considerado natural em uma dada cultura é, na verdade, o que essa cultura define como natural, já que o ser humano biológico tem a mesma estrutura genética em todo o planeta.

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Se todas as populações humanas possuem a mesma carga genética, elas se diferenciam por suas escolhas culturais. A noção de cultura é o instrumento adequado para acabar com as explicações naturalizantes dos comportamentos humanos. A própria natureza é interpretada pela cultura (CUCHE, 2002, p. 9).

A cultura interpreta a natureza humana e tende a considerar como natural o que é comumente aprendido por todos nessa mesma interpretação. A norma é assim naturalizada e tida como padrão natural de comportamento pelo senso comum. A natureza, no homem, é inteiramente interpretada pela cultura. As diferenças que poderiam parecer mais ligadas à propriedades biológicas, particulares como, por exemplo, a diferença de sexo, não podem ser jamais observadas “em estado bruto” (natural) pois, por assim dizer, a cultura se apropria delas “imediatamente”: a divisão sexual dos papéis e das tarefas nas sociedades resulta fundamentalmente da cultura e por isso varia de uma sociedade para outra (CUCHE, 2002, p. 11).

As ciências sociais evidenciam o controle que a construção social de costumes exerce sobre a homossexualidade e a expressão da identidade de gênero, quando expõe que em cada sociedade, comportamentos são aceitos ou reprimidos de maneira diferente. Isto permite basear fortes questionamentos sobre a heteronormatividade. O campo da psicanálise traz evidências da naturalidade de práticas homossexuais e de consequentes expressões de identidade de gêneros sem correspondência com o sexo biológico. Freud, já em 1905, traz a percepção de que as atividades sexuais humanas são reguladas pela restrição, ou seja, reguladas pela cultura que as molda, e faz a seguinte assertiva: [...] a Psicanálise considera que a escolha de um objeto, independentemente de seu sexo -que recai igualmente em objetos femininos e masculinos- tal como ocorre na infância, nos estágios primitivos da sociedade e nos primeiros períodos da história, é a base original da qual, como consequência da restrição num ou noutro sentido, se desenvolvem tanto os tipos normais como os invertidos. Assim, do ponto de vista da Psicanálise, o interesse sexual

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exclusivo de homens por mulheres também constitui um problema que precisa ser elucidado [...]. (Freud, 1905, p. 146, nota acrescentada em 1915).

Sobre a classificação dos homossexuais como sendo uma categoria à parte da norma, ou seja, vista como oposição ou diferença, em relação a indivíduos heterossexuais, considerados normais, Freud declara: A pesquisa psicanalítica se opõe com o máximo de decisão que se destaquem os homossexuais, colocando-os em um grupo a parte do resto da humanidade, como possuidores de caraterísticas especiais. Estudando as excitações sexuais, além das que se manifestam abertamente, descobriu que todos os seres humanos são capazes de fazer uma escolha de objeto homossexual e que na realidade o fizeram no seu inconsciente (Freud, 1905, p. 146, adição de 1915).

Freud, assim, toma a sexualidade homossexual como natural quando declara que os homossexuais não devem ser considerados uma categoria à parte, “como possuidores de caraterísticas especiais”. Isso conduz à percepção de que a categoria homossexual também é uma categoria culturalmente construída, na tentativa de classificar as pessoas em função de suas práticas, como se tais práticas configurassem algo fora da naturalidade e, portanto, fora de uma normalidade. Desta forma, a palavra homossexual, criada para classificar pessoas em função de seus tipos de práticas sexuais, tampouco pode configurar-se como a identidade de um indivíduo. As ciências biológicas, por sua vez, também contribuem com evidências irrefutáveis da naturalidade da homossexualidade na natureza, já observadas em centenas de espécies de animais. O biólogo canadense Bruce Bagemihl (1999) discute em sua obra clássica “Biological Exuberance: Animal Homosexuality and Natural Diversity” resultados de mais de duas centenas de pesquisas científicas e cita a ocorrência de relações homossexuais em mais de 300 espécies de mamíferos e aves, demonstrando que na natureza é claramente comum a ocorrência de sexo homossexual. Nesse âmbito animais da Família dos Hominídeos, da Ordem dos Primatas, a qual

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também pertence a espécie humana, são os que trazem exemplos de práticas homossexuais mais próximas das práticas homossexuais observadas em seres humanos. [...] entre primatas, comportamentos homossexuais são particularmente diversos, incluindo práticas como a de um macho ser montado por outro (em Macaca nemestrina, babuínos, orangotangos, chinpanzés e bonobos), monta com penetração anal (em Macaca arctoides, Saimiri sciureus) e monta com penetração anal levando à ejaculação (macacos japoneses, macacos rhesus, gorilas). Masturbação de outros machos também são relatadas, incluindo masturbação mútua (nos Macaca arctoides), podendo chegar à ejaculação (gibões). Foram relatados, ainda, contato genital-genital (nos bonobos) e felação (em Macaca arctoides). Outros comportamentos, talvez relacionados, incluem: cheirar/inspecionar as regiões anal/genital de outros machos (Macaca arctoides), exibir o pênis ereto para outros machos (Cercopithecus aethiops) e a preferência de machos por copular com parceiros do mesmo sexo e não do sexo oposto (rhesus). (FORASTIERI, 2006, p. 51-52 apud WERNER, 1998).

Ainda na Família dos Hominídeos, entre os macacos bonobos, observa-se entre as fêmeas, práticas homossexuais claramente voltadas à busca de prazer: Os Bonobos têm uma sociedade matriarcal, incomum entre os símios, é uma espécie completamente bissexual. Tanto os machos como as fêmeas realizam atos tanto heterossexuais como homossexuais. Aproximadamente 60% da atividade sexual da espécie são entre duas ou mais fêmeas. Esses primatas fazem sexo para resolver conflitos, pedido de desculpas, ou para obtenção de prazer. Passam boa parte do dia se estimulando, e sexo oral é extremamente comum. As fêmeas possuem clitóris bem maior do que a das humanas, atingem o orgasmo com extrema facilidade (FURLANETTO; GROTH; JANZEN; CRETE, p. 3, 2013).

A farta documentação existente em pesquisas científicas de várias áreas da ciência deixa clara a normalidade do fenômeno das relações homossexuais na natureza e indica também que o sexo não tem somente a função de procriação, fato que fica determinado na observação dos Hominídeos. A ocorrência de sexo homossexual cientificamente documentada em centenas de espécies animais demonstra que a

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homossexualidade é uma ocorrência natural e regular. É essa manifestação natural, também identificada no ser humano pela psicanálise, que é interpretada pelas diferentes culturas, dando origem às variações de identidade de gênero, que são construções sociais para a representação de papéis sexuais naturais, portanto consequentes à natureza. O trabalho de revisão de conceitos para a demonstração da naturalidade e normalidade da homossexualidade e da identidade de gênero não-cis é uma tarefa de esclarecimento, que deve ser feita à luz de estudos científicos contemporâneos, que permitirão desenvolver no público outra visão sobre a sexualidade e o gênero adequados à realidade, pois: Independentemente de tratar-se de uma escolha de vida sexual ou de uma questão de característica estrutural do desejo erótico por pessoas do mesmo sexo, a homossexualidade deve ser considerada, de agora em diante, como uma forma de sexualidade tão legítima quanto a heterossexualidade. Na realidade, ela é apenas a simples manifestação do pluralismo sexual, uma variante constante e regular da sexualidade humana (BORRILLO, 2000, p. 14).

Já está assim, determinada, pelo conhecimento científico, a naturalidade da homossexualidade. Considerações Finais Áreas distintas das ciências trazem inúmeras evidências que apontam para a conclusão de que a homossexualidade em seres humanos nada mais é do que uma ocorrência natural e regular. Pela vertente das ciências humanas, a história e a etnografia demonstram que práticas homossexuais ocorrem em sociedades distintas, sendo aceitas ou reprimidas conforme cada cultura e cada época e que o gênero tem papel variável, sendo socialmente construído para interpretar os diferentes papéis sexuais. Resultados de pesquisas indicam que a cultura molda os comportamentos sexuais e os papéis a serem assumidos pelos indivíduos com relação ao sexo biológico ou praticado.

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As ciências biológicas, por sua vez, deixam clara a regularidade da homossexualidade na natureza, porque demonstram que o ser humano, se integra perfeitamente a esse quadro, não fugindo à regra natural da manifestação da homossexualidade. Na psicanálise, a evolução dos estudos no século XX também permitiu abandonar a ideia da existência de um desvio da normalidade sexual, para a adoção da ideia da homossexualidade como uma manifestação normal da sexualidade humana, com o consequente abandono da proposição de terapias para o tratamento da homossexualidade, conforme se deu na segunda metade do século XX. Para as discussões públicas sobre o tema da diversidade da expressão da sexualidade e da identidade de gênero fica então indicada a necessidade urgente de se revisar e esclarecer o conceito do que é realmente natural, sob a luz de diferentes ciências contemporâneas, desmistificando pensamentos que induzem a sérios equívocos e a sérias discriminações de pessoas na sociedade. A desconstrução e análise crítica das concepções erradas acerca da natureza da sexualidade humana são necessárias, porque essas permeiam toda a cultura, interferindo em decisões importantes, que baseadas em conceitos já ultrapassados pelo conhecimento atualizado, podem levar a consequências danosas, não somente para indivíduos homossexuais e transgêneros, que deixam de ser reconhecidos como cidadãos plenos, mas para toda a sociedade, em função dos conflitos e prejuízos que o tratamento inadequado do tema ou sua omissão permitem perpetuar. Por fim, fica evidente, a artificialidade da normatização quando esta se configura como um limitador da expressão da natureza da sexualidade humana, impondo regras e eliminando práticas em uma ou outra sociedade. .

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Referências BAGEMIHL, Bruce. Biological exuberance: Animal homosexuality and natural diversity. New York: St Martin's Press, 1999. BORRILLO, Daniel. Homofobia: História e crítica de um preconceito. 1.ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2010. CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999. DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973. FORASTIERI, Valter. Orientações sexuais, evolução e genética. Candombá – Revista Virtual, v. 2, n. 1, p. 50–60, jan./jun. 2006 – UFBA, 2006. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1986. ______. A história da sexualidade I – A Vontade de Saber. 13 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume VIII. Rio de Janeiro: Imago, 1972. FURLANETTO, A.L.D.M.; GROTH, F.; JANZEN S.J. e CRETE P. Homossexualismo – Opção, Estratégia ou Evolução? Disponível em: http://www.partes.com.br/emquestao/ensaio_homosexualismo.pdf Acesso em 27 jun. 2016. MOORE, Henrieta. Understanding sex and gender. Companion Encyclopedia of Anthropology. Tradução de Júlio Assis Simões. Londres: Routledge, 1997. SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2 ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 1999. SOUZA FILHO, Alípio de. Diniz Rogério (Org.). A colonização do imaginário e a invenção da causa específica da homossexualidade. In: Educação e diversidade sexual: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, 2011 (Coleção Educação para Todos).

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CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: DESCAMINHOS PARA A VIOLÊNCIA ESCOLAR Cláudia Gomes de Oliveira1 Elson Luiz de Araujo2

Introdução Este capítulo busca analisar a maneira como a escola lida com a questão do multiculturalismo em seu espaço de atuação, entendendo que a diversidade social está representada nas instituições escolares. As análises relativas à cultura escolar descrevem-na como instituição em crise no que diz respeito à consecução dos níveis de qualidade de ensino, entendidos como sendo aqueles que possam atender ao que está posto pelos anseios da sociedade, ora dispostos, nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Essas Diretrizes apresentam seu conteúdo a partir do pressuposto de que a educação é o meio pelo qual o cidadão, em seu direito primordial de acesso, garantidos pela legislação vigente, terá a possibilidade de atuar plenamente na sociedade; neste enfoque, entende a educação como “[...] processo e 1

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Esse texto é parte da pesquisa em desenvolvimento como mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Senso em Educação pela Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Linha de Pesquisa: Currículo, Formação Docente e Diversidade. Diretora escolar na rede municipal de ensino de Araçatuba – SP. E-mail: [email protected] Doutor em Educação pela UNICAMP. Docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Unidade Universitária de Paranaíba. Coordenador Institucional do Programa Observatório de Educação (OBEDUC/CAPES) e do Observatório da Violência Escolar. Coordenador do Grupo de Estudos, Pesquisas e Práxis Educacionais (GEPPE). E-mail: [email protected]

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prática que se concretizam nas relações sociais que transcendem o espaço e o tempo escolares [...]” (BRASIL, 2013, p. 16). Ao mesmo tempo, considera a sociedade, bem como as relações entre os indivíduos, como sendo marcados pela complexidade desse processo, em que fatores diversos como a cultura e a diversidade perpassam sua estrutura num contexto em que questões postas pela pós-modernidade apresentam-se como sendo pertinentes ao seu domínio, buscando ainda articular essas à construção de um “[...] projeto de Nação, o da educação nacional e, neste, o da instituição escolar com sua organização, seu projeto e seu processo educativo em suas diferentes etapas e modalidades [...]”. (BRASIL, 2013, p. 16). O mesmo documento salienta que as instituições escolares não tem conseguido realizar um projeto educativo que atenda as peculiaridades dos sujeitos no que diz respeito as suas singularidades: Torna-se inadiável trazer para o debate os princípios e as práticas de um processo de inclusão social, que garanta o acesso e considere a diversidade humana, social, cultural, econômica, dos grupos historicamente excluídos. Trata-se de questões de classe, gênero, raça, etnia, geração, constituídas por categorias que se entrelaçam na vida social – pobres, mulheres, afrodescendentes, indígenas, pessoas com deficiência, as populações do campo, os de diferentes orientações sexuais, os sujeitos albergados, aqueles em situação de rua, em provação de liberdade – todos que compõe a diversidade que é a sociedade brasileira e que começam a ser contemplados pelas políticas públicas (BRASIL, 2013, p. 16).

Dessa forma, explicita-se que o próprio sistema detecta uma distorção entre um modelo educacional articulado aos paradigmas oficiais e ao que acontece no cotidiano das escolas. Em um contexto marcado pelo desenvolvimento de formas de exclusão cada vez mais sutis e humilhantes, a cidadania aparece hoje como uma promessa de sociabilidades, em que a escola precisa ampliar parte de suas funções, solicitando de seus agentes função de mantenedores da paz nas relações sociais, diante de formas cada vez mais amplas e destrutivas de violência. [...] (BRASIL, 2013, p. 19).

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Cabe, nesse contexto, considerar de que forma a cultura desses grupos constitui o currículo escolar, buscando adequar o conjunto de conteúdos selecionados às demandas específicas, no intuito de promover a emancipação dos cidadãos. Analisar como esse currículo vem sendo construído historicamente é uma das premissas a serem consideradas, esclarecendo de que forma ele deixa de cumprir o seu papel. Esta questão, entre outras, constitui uma das vertentes de estudos da pesquisa em desenvolvimento no Mestrado em Educação, da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul. A partir da revisão bibliográfica e documental, dos dados obtidos por meio de entrevista com os professores da rede regular do Ensino Fundamental e Médio, no município de Araçatuba, SP, esperamos analisar como a organização curricular de escola pública compreende o multiculturalismo. Esperamos ainda, articulá-lo aos resultados obtidos parcialmente, que consideram a influência de um ideário pedagógico pautado na concepção de uma cultura comum que deve ser a veiculada por meio do currículo escolar. Desse modo, a exclusão, a segregação e a hierarquização são fatores determinantes que conduzem à atitudes concebidas como sendo violentas no espaço escolar, demandando um novo olhar a respeito das dinâmicas escolares, partindo inclusive da reflexão sobre esse currículo e a quem ele privilegia. Currículo e cultura: poder e hegemonia O currículo escolar segundo Moreira; Silva (2011, p. 34) é concebido como “[...] forma institucionalizada de transmitir a cultura de uma sociedade [...]”, e o mesmo se transforma em espaço de disputa, onde várias formas de poder, dos diversos grupos sociais atuam, buscando superar um modelo consolidado de divisão social. As relações de poder que perpassam a constituição do currículo são direcionadas a atender as necessidades de um grupo

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social que detém privilégios, contemplado com os benefícios de um sistema ideológico de uma aparente neutralidade, que acaba reproduzindo e perpetuando uma cultura hegemônica. Pois, segundo Apple (2011, p. 71), [...] o currículo nunca é apenas um conjunto neutro de conhecimentos, que de algum modo aparece nos textos e nas salas de aula de uma nação. Ele é sempre parte de uma tradição seletiva, resultado da seleção de alguém, da visão de algum grupo acerca do que seja conhecimento legítimo. É produto das tensões, conflitos e concessões que organizam e desorganizam um povo.

Nesse sentido, cabe intensificar os estudos que possibilitem investigar como ocorre a seleção de conteúdos que compõem o currículo da escola, promovendo uma abordagem que identifique quem se beneficia com tal seleção e como a mesma se consolida. As Teorias Críticas do Currículo atuam no sentido de analisar como se configura essa seleção, bem como a valorização de uma identidade ou subjetividade em detrimento de outra, estabelecendo uma conexão entre saber, identidade e poder (SILVA, 2015, p. 16). Evitase assim, uma abordagem focada nas questões relativas à cientificidade e a neutralidade, típicas de teorias não críticas, características de concepções tradicionais. No que diz respeito aos meios de reprodução de uma cultura que não retrate a complexidade de subjetividades existente no espaço escolar e, consequentemente no espaço social, Silva (2015, p. 34-35) apresenta as ideias de Bourdieu e Passeron explicitando como se dá o processo de dupla violência, em que se impõe a cultura da classe dominante, apontada como sendo a cultura ideal, e ao mesmo tempo essa premissa é ocultada. Nesse sentido, [...] a escola não atua pela inculcação da cultura dominante às crianças e jovens das classes dominadas, mas ao contrário, por um mecanismo de exclusão. O currículo da escola está baseado na cultura dominante: ele é transmitido através do código cultural dominante. As crianças das classes dominantes podem facilmente compreender esse código, pois durante toda a sua vida elas estiveram imersas, o tempo todo, nesse código. É o seu ambiente nativo. Em contraste, para as crianças e jovens das classes

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dominadas, esse código é simplesmente indecifrável. Eles não sabem do que se trata (SILVA, 2015, p. 35).

Apesar das críticas a esse pensamento determinista e relacionado à questão econômica, o autor enfatiza que esse ideário ainda apresenta-se como sendo influenciador de críticas curriculares. O que pode ser salientado a partir das ideias de Bourdieu e Passeron, seria a análise do papel desta cultura hegemônica no currículo escolar como sendo privilegiada e, nesse sentido, delimitando o acesso das variadas formas de culturas presentes na sociedade, intensificando processos de desigualdade social. Ao ser reconhecido como um processo que ao mesmo tempo produz como também produz para pessoas, o currículo proporciona a construção de subjetividades por ser concebido, segundo Silva (2013, p. 189-190) como um artefato cultural. [...] o currículo pode ser visto como um discurso que, ao corporificar narrativas particulares sobre o indivíduo e a sociedade, constitui-nos como sujeitos - e sujeitos também muito particulares. Pode-se dizer, assim, que o currículo não está envolvido num processo de transmissão ou de revelação, mas num processo de constituição e de posicionamento: de constituição do indivíduo como um sujeito de um determinado tipo e de seu múltiplo posicionamento no interior das diversas divisões sociais.

Por meio do currículo, existe a possibilidade de que os grupos sociais possam detectar de que forma algumas culturas obtenham status de valor diante das consideradas subalternas. A forma como são consideradas a noção de gênero, raça, classe entre outros, é o que direciona uma análise de como se legitimam determinados discursos que atuam hegemonicamente na sociedade. Multiculturalismo e currículo O termo multiculturalismo remete à convivência entre as diversas formas culturais na sociedade. No contexto curricular, passa a configurar-se como um instrumento de luta política

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(SILVA, 2015, p. 86), em prol de uma maior representatividade no currículo, buscando questionar a noção de cultura comum, facilmente constatada como a cultura dominante, o que suscita questionamentos por parte daqueles que apresentam uma visão diferente a respeito da temática cultural. Fruto de lutas políticas ocorridas nos Estados Unidos, o movimento multiculturalista apresenta-se como um fenômeno suscetível às críticas que refutam suas premissas. Ao denunciar um sistema pautado pelo estabelecimento de privilégios a uma cultura idealizada, como sendo formada por pessoas brancas, heterossexuais, masculinas e de origem europeia, o autor utiliza tanto uma perspectiva materialista (no que diz respeito ao papel dos processos econômicos e estruturais na configuração das diferenças), como uma perspectiva pós-estruturalista (diferenças sendo discursivamente produzidas). As críticas direcionadas aos multiculturalistas enfocaram aspectos relacionados justamente a essa noção de cultura comum: a fragmentação da mesma ocasionaria seu enfraquecimento; especificamente no currículo escolar, a troca de obras de excelência por obras “inferiores”, as da dita cultura popular, tenderia a ocasionar retrocessos. A crítica sobre o suposto relativismo cultural é que este se contrapõe aos preceitos de universalidade e assim, de acordo com Silva (2015, p. 89), apenas denunciam que o poder parte de um centro, no caso, os valores e instituições que se apresentam como sendo universais e, portanto, confirmando posturas consideradas hegemônicas. Reforçamos a contribuição às Teorias Críticas do Currículo no sentido de conceber que o acesso ao currículo hegemônico não garante condições de igualdade dos diversos agentes desse espaço. Faz-se necessária uma nova configuração curricular que trate a diversidade cultural como fator inerente à formação da sociedade. Santomé (2013) aponta que os grupos minoritários não possuem uma representação que possibilite conduzir formas de reação, no intuito de obter o mesmo espaço obtido pela cultura

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dominante. O autor denomina essas culturas como negadas pela sua falta de representatividade. No intuito de inserir a temática da diversidade cultural no currículo escolar, a escola incorre no que o autor denomina como sendo currículo turístico, em que as temáticas são tratadas a partir de unidades fragmentadas, com certo distanciamento por parte do professor. Nesse âmbito, algumas atitudes e ações atuam no sentido de enfatizar a concepção de subordinação, e esse autor cita a questão da estereotipagem, em que uma determinada cultura é apresentada a partir de uma representação elencada como negativa e evidenciada por um representante da mesma, estendendo-a a toda a coletividade. Neste sentido, Santomé (2013, p. 169) exemplifica: “[...] a juventude que manifesta interesse por músicas próprias e mais originais se rotula como perversa e degenerada [...]”. Um dos resultados desse tipo de currículo é a descrença de que a educação formal possibilite a democratização dos saberes como constituidor de identidades no interior de um determinado grupo cultural que teve sua voz silenciada. Portanto, sem uma prática educativa que possibilite refletir sobre formas de discriminação, além da exclusão, incorre-se na ocorrência de formas de alienação e, até mesmo, de formas de violência escolar. Violência escolar, juventude e currículo A questão da violência é considerada por pesquisadores como um desafio devido à complexidade de sua ocorrência e da conceituação do termo. Essa complexidade remete a subjetividades dos que sofrem os efeitos do fenômeno da violência nos diversos âmbitos sociais. No âmbito educacional, a atribuição da culpa à instituição escolar ocorre, uma vez que, historicamente, deveria ser o local em que a socialização permite vislumbrar uma melhoria das relações interpessoais e de qualidade da vida de todos nos variados aspectos da formação do cidadão. Essa situação agrava a desvalorização dos agentes educacionais, considerados como

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aparentemente incapazes de discutir tal questão e a minimização dos efeitos da violência no contexto escolar. Mas, que violência é essa a que nos referimos? Charlot (2002) apresenta a questão da violência escolar como sendo recorrente historicamente, porém assumindo formatos mais brutais que tendem a causar um sentimento de comoção social, visto que este espaço é concebido como local de formação em prol de uma sociedade voltada à consecução de convivência baseadas em valores éticos, de tolerância e de respeito. Em algumas situações, atribui-se à mídia aspectos dessa comoção social, ao veicular fatos relacionados à violência escolar de forma espetacularizada, construindo um imaginário social de que a escola é violenta; muitas vezes articulando esses fatos a uma decadência do sistema educacional, às novas composições familiares ou dos processos migratórios que promoveram tensões xenofóbicas. Entretanto, a escola apresenta fatos violentos isolados, uma vez que, na grande maioria, as ocorrências estão relacionadas às questões de indisciplina. No que diz respeito às atitudes e comportamentos juvenis relacionados à indisciplina ou violência, alguns fatores familiares influenciam na exacerbação do estresse, como separação dos pais, desemprego, morte de um ente querido. São situações que podem aumentar a chance de ocorrência de distúrbios do comportamento. Os fatores de risco elencados configuram-se, de acordo com Debarbieux (2002), elementos a serem considerados em seus aspectos macro e microssociologicamente, pois apresentam situações que influenciam os processos relacionais e pedagógicos na escola, de como cada indivíduo percebe e convive com o problema. Portanto, a escola não é neutra, nem o espaço familiar, nem o espaço social em que cada indivíduo está inserido, em relação às atitudes de indisciplina e violência. Contrapondo-se à ideia de que a escola é neutra em relação a esses espaços, percebe-se que ocorrem situações que contribuem para a minimização e ou exacerbação de fatos indisciplinados e

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violentos. Neste particular, podemos citar os fatores ligados ao sistema organizacional da escola, à estabilidade do corpo docente e de funcionários existentes na escola, pois segundo Debarbieux (2002, p. 74), a cultura escolar pode contribuir positivamente em regiões consideradas suscetíveis à violência. As pesquisas na área demonstram que a violência nas escolas deve ser analisada macro e microssociologicamente, enfatizando que as causas tanto exógenas – relacionadas ao bairro, ao sistema econômico, a falhas familiares ou das políticas públicas – quanto endógenas – associadas a graus de organização ou de desorganização local, nos quais os autores não são agentes impotentes, manipulados por forças políticas externas, nem tampouco populações que, em si mesmas representam perigo (DEBARBIEUX, 20, p. 74).

O autor apresenta dados estatísticos que apontam que o número de ocorrências apresentadas no ambiente escolar, de extrema violência, que podem ser tipificadas na esfera criminal é baixo, e não justifica a tentativa de impetração de leis mais rígidas sobre a maioria dos casos de violência juvenil na escola. Nessa faixa etária da adolescência, boa parte da população está imersa em fatores de risco, porém não podemos atrelar as ocorrências pura e simplesmente a esses fatores e às questões econômicas, de uma camada social de menor poder aquisitivo como propensa ao envolvimento em atos delituosos e à violência. Também não podemos ignorar ou banalizar os atos de indisciplina e de violências de menor gravidade, como ameaças e brigas que ocorrem na escola sem tomar providências, porque levaria ao agravamento do conflito e ao risco de sua naturalização, como se fosse próprio do comportamento dessa fase etária, silenciando vítimas que acabam por ocultar situações vivenciadas. Em pesquisa realizada na França e nos Estados Unidos (DEBARBIEUX, 2002) é demonstrado que, especificamente nos sistemas educacionais, os casos de violência são considerados baixos. Nesta perspectiva, minha experiência como diretora da rede Municipal de Ensino tem vivenciado episódios de indisciplina

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escolar sem, contudo, presenciar episódios de violência extrema, como agressão física e lesão corporal grave, ou ainda casos de morte na escola, o que não condiz com o sentimento de medo e insegurança presente no imaginário social de que a escola é violenta. Entretanto, situações tidas como violentas não são resultados de um processo previsto de construção social; nesse sentido, a prevenção é mais efetiva que a repressão, visto que os comportamentos violentos podem ser resultados de exposição à micro violências recorrentes no cotidiano, tendo as vítimas como consequência, o desencadeamento de processos psicológicos que atrapalham a busca por soluções as situações vivenciadas. Reiterando o caráter pluricausal que condiciona o fenômeno da violência, sociólogos franceses apontam que a exclusão social configura-se como sendo uma das principais motivações a violência escolar. [...] as pesquisas destacam que as crianças de grupos étnicos minoritários apresentam maior tendência a virem a se tornar vítimas e a desenvolver comportamentos reativos, ou comportamentos percebidos como tal pelos professores [...]. (DEBARBIEUX, 2002, p. 84).

Neste caso, detecta-se a ocorrência da violência simbólica. Debarbieux (2002), partindo dos estudos de Bourdieu a respeito do tema, descreve que na adolescência, a mesma apresenta-se como uma reação a pressão social específica das instituições, neste caso a escola: [...] quando os produtos dominados de uma ordem dominada pelas forças da razão (como aqueles que atuam por meio da instituição escolar, ou dos ditames dos especialistas em economia) não podem aquiescer a arbitrariedade da força racionalizada. (BOURDIEU, 1997). A violência adolescente, que poderia ser vista como ruptura da ordem social, principalmente com a escola, na verdade, não passa de reprodução conformista da violência sofrida por eles próprios (DEBARBIEUX, 2002, p. 85).

Debarbieux (2002) acrescenta ainda que este tipo de violência não ultrapassa os limites de seu espaço de atuação social, em que

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as vítimas geralmente são próximas. Conclui, portanto, que os esforços políticos para coibir a violência a partir de iniciativas vinculadas ao aumento dos aparatos de segurança ou intervenções externas à instituição escolar, acabam apenas por corroborar com a manutenção da situação, tornando-se um ciclo de perpetuação das ocorrências tidas como violentas. Especificamente na escola, nos interessa delimitar o fenômeno de modo a contemplar os modos pelos quais a organização curricular pode influenciar na ocorrência de situações tidas como violentas, lembrando que cabe considerar contextualmente de que forma ocorrem, sem imputar um caráter determinante de culpabilidade à escola, no sentido desconsiderar os diversos fatores que corroboram para a existência destas condutas no espaço escolar. Charlot (2002) classifica a violência escolar a partir de três aspectos: violência na escola, quando o ato violento ocorre no espaço escolar sem vínculo aparente com as atividades desenvolvidas, ou seja, esta se configura apenas como lócus de ocorrência; violência à escola, quando dirigidas ao patrimônio ou aos agentes escolares e violência da escola, quando a dinâmica escolar utiliza de meios de controle para punição, seja por meio das notas escolares, formas depreciativas de tratamento, entre outras. Charlot (Apud ABRAMOVAY, 2006, p. 26), classifica-a ainda em três níveis: a. Violência: golpes, ferimentos, violência sexual, roubos, crimes, vandalismos; b. Incivilidades: humilhações, palavras grosseiras, falta de respeito; c. Violência simbólica ou institucional: compreendida como a falta de sentido de permanecer na escola por tantos anos; o ensino como um desprazer, que obriga o jovem a aprender matérias e conteúdos alheios aos seus interesses; as imposições de uma sociedade que não sabe acolher os seus jovens no mercado de trabalho; a violência das relações de poder entre professores e alunos. Também o é a negação da identidade e da satisfação profissional aos professores, a obrigação de suportar o absenteísmo e a indiferença dos alunos.

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Interessa-nos identificar ainda de que forma a negação ou silenciamento de culturas, expressada pelo currículo escolar, conduz à existência ou produção de formas de violência da escola, por meio da violência simbólica. Essa delimitação implica em estabelecer a escola como instituição geradora de violência. Abramovay (2006) retoma a ideia de que historicamente, a instrução formal consolidou-se como meio de ascensão social. Com a massificação no acesso à mesma, desarticulado de uma pretensa educação de qualidade, a instituição escolar não conseguiu promover a emancipação dos sujeitos de modo a garantir sua plena inserção num mundo permeado por dinâmicas cada vez mais complexas. Especificamente, no que diz respeito à diversidade cultural, não foi possível à instituição escolar “[...] atender as demandas da nova clientela, bem como de incorporar valores e culturas diversificadas. [...]” (ABRAMOVAY, 2006, p. 70), sendo considerada como um dos fatores que podem influenciar e intensificar a violência nas escolas. A cultura escolar, muitas vezes, se baseia em uma violência de cunho institucional, a qual se fundamenta na inadequação de diversos aspectos que constituem o cotidiano da escola – como sistema de normas e regras muitas vezes autoritárias; as formas de convivência; o projeto político pedagógico; os recursos didáticos disponíveise a qualidade da educação em relação às características, expectativas e demandas dos alunos, o que gera uma tensão no relacionamento entre os atores sociais que convivem na escola. Nesta perspectiva, a violência escolar é compreendida como resultado das relações tensas e conflituosas estabelecidas entre os membros da comunidade escolar. (ABRAMOVAY, 2006, p. 72).

Abramovay (2006, p. 95-96) deparou-se com dados que reforçam as concepções apresentadas quando descreve de que forma as relações entre professores e alunos configuram-se como sendo fatores a serem considerados. As interações positivas que ocorreram no âmbito escolar entre alunos e professores são aquelas em que os docentes apresentam-se como abertos à inserção de

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temas que estejam relacionados ao cotidiano dos alunos. Também são valorizados pelos alunos os professores que demonstram domínio nos conteúdos abordados, bem como o tratamento respeitoso e amigável para com os mesmos. Foram também apontados como sendo positivos os esforços por parte dos professores em considerar a cultura juvenil e suas especificidades no processo educativo, buscando sua inserção nas temáticas desenvolvidas pela escola. Outros desdobramentos da pesquisa reforçam a importância de se estabelecer uma relação embasada por respeito e o diálogo, contemplando a diversidade cultural presente na escola, não somente aquelas relativas às culturas juvenis, mas também aquelas que compõem a sociedade, implicando no exercício reflexivo no sentido de minimizar a discriminação e outras formas de exclusão. Considerações finais O artigo teve o intuito de apresentar uma análise de aspectos educacionais relativos ao currículo escolar, pensado como meio de proporcionar a emancipação de um sujeito ético, que possa atuar socialmente dentro do preceito de tolerância e respeito à dignidade humana e apto a atuar no mercado de trabalho. Ao conceber sua ineficácia em atingir tais pressupostos, o currículo escolar passa a ser concebido como campo de investigação no intuito de verificar porque ocorre um distanciamento entre o que se espera e o que ocorre na realidade. As Teorias Críticas do Currículo se propõem a investigar o modo como esse currículo opera a partir da veiculação dos conhecimentos voltados a atender uma classe considerada como sendo hegemônica, delegando às demais a condição de dominados, sem a possibilidade de progredir socialmente. A classe dominante possui o status de direcionar as políticas públicas, no caso a educação e a instituição escolar, para atender suas demandas

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específicas, utilizando-se dos privilégios conseguidos através do poder que exerce socialmente. Movimentos como o Multiculturalismo em seu âmbito crítico, apresentam-se como sendo um opositor à permanência desta classe hegemônica no centro do poder, requerendo uma maior representatividade das diversas culturas nos currículos escolares. Essa representatividade perpassa não somente a apresentação das culturas como componentes da sociedade, mas também como construtora de subjetividades e identidades sociais, que devem ter garantidos seus direitos ter atuar no espaço social com a mesma importância das classes dominantes. Em decorrência desta não representatividade, os casos de exclusão e violência em meio escolar tornam-se fatores corriqueiros e inerentes aos sistemas de ensino. A violência na escola, marcada principalmente pela violência simbólica, atua no sentido de considerar a escola como espaço em que as diversas situações de violência também são geradas e, dessa forma, serão minimizadas ou extintas, a partir de uma série de iniciativas. Especificamente à escola, caberá refletir a respeito de como o currículo escolar se organiza com a preocupação de atender a complexidade social, promovendo um espaço que considere o respeito às diferenças como base para uma sociedade igualitária, em permanente mudança.

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A REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE SURDA REVELADA NAS RELACÕES CULTURAIS: BREVES APONTAMENTOS Danilo Pessopane de Almeida1 Doracina Aparecida de Castro Araujo2

[Com a LIBRAS] se faz brotar novas possibilidades de subjetividades, de compartilhar a cultura, de aquisição de conhecimentos, que não são plausíveis por meio da língua oral e da cultura ouvinte (STROBEL, 2008, p. 89).

Introdução O tema Cultura Surda nem sempre apresenta discussões sobre Língua Brasileira de Sinais (Libras); já quando se aborda o assunto Libras, a surdez e a cultura do povo surdo passam a ser inerentes à discussão, pois os temas se justapõem, tendo em vista que a cultura surda acontece a priori, por meio da diversidade comunicativa nas relações sociais.

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Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Unidade Universitária de Paranaíba (UEMS/Paranaíba). Pedagogo pelas Faculdades Integradas de Santa Fé do Sul (FUNEC). Docente da FUNEC e da Rede Pública Municipal de Santa Fé do Sul. Estudante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Práxis Educacional (GEPPE), linha de Pesquisa Educação Especial. Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Estágio pós-doutoral em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP/Araraquara). Docente do Programa de PósGraduação em Educação e dos cursos de Especialização em Educação e Pedagogia da UEMS/Paranaíba. Coordenadora do Centro de Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação (CEPEED) da UEMS/Paranaíba. Líder do GEPPE. E-mail: [email protected]

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No levantamento realizado no Scielo-Brasil com o descritor “Cultura Surda”, refinado em assunto, foram localizados sete artigos, dentre os quais seis foram encontrados em periódicos diferentes. O Periódico Educar em Revista, de Curitiba-PR, publicou dois artigos no número especial - Dossiê - Educação bilíngue para surdos: políticas e práticas (2014). Os outros artigos foram publicados pelas revistas Psicologia: Ciência e Profissão (2004), Educação e Sociedade (2005), Revista Brasileira de Educação Especial (2009), Ciência e Saúde Coletiva (2012) e Educação e Pesquisa (2015). No segundo levantamento buscou-se pesquisar os mesmos dados em uma revista que trata especificamente de Educação Especial e não está no Scielo-Brasil, a Revista de Educação Especial de Santa Maria-RS. Foram localizados oito artigos, de anos variados: 2006, 2007, 2008, 2010, 2013, 2015. Desses artigos, em dois anos houve duas publicações (2007 e 2015). Importante informar que se buscou o descritor “Cultura Surda” no filtro resumo com ampliação dos outros itens de busca, os quais apresentaram poucos resultados. A partir da verificação da baixa produção sobre o tema e da intenção do pesquisador em realizar o estudo, objetivou-se compreender os conceitos de cultura e em especial, as relações linguísticas culturais e comunicativas reveladas por teóricos e estudiosos do tema, na necessidade de buscar dados referentes às lacunas deixadas e na tentativa de responder as seguintes questões: Os surdos têm cultura específica? Quais conceitos são relevantes na discussão sobre cultura? Quais fatores diferenciam a cultura surda em comparação com a cultura ouvinte? Para responder as questões enunciadas buscamos apoio no aporte teórico de Vygotski (1997), Quadros (1997), Reily (2004), Strobel (2008), dentre outros textos, localizados no levantamento do tema. Também traçamos um percurso metodológico, a partir da abordagem Qualitativa, no enfoque Histórico-Cultural. Para tanto, iniciamos o presente artigo com conceituações plausíveis acerca

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das relações de cultura e diferenciação por meio do contraste entre as línguas orais e as línguas de sinais. Nas contribuições da Psicologia Histórico-Cultural, por meio do livro Defectologia (VYGOTSKI, 1997), compreende-se que o campo da Cultura Surda tem muitas lacunas a serem preenchidas, tendo em vista que o Público-Alvo da Educação Especial (PAEE) ainda não conseguiu compartilhar sua cultura, pois ainda não está incluso nos meios onde as relações sociais acontecem, explica Strobel (2008), na epígrafe de abertura da citada obra. Strobel (2008) corrobora o pensamento de Quadros (1997, p. 28), que tem ampliado a discussão: “[...] o acesso rápido e natural da criança surda à comunidade ouvinte é para fazer com que ela se reconheça como parte de uma comunidade surda. Isso somente será possível quando os educadores e surdos trabalharem juntos” (QUADROS, 1997, p. 28). Para tanto, Pensar sobre surdez requer penetrar no “mundo dos surdos” e “ouvir” as mãos que com alguns movimentos nos dizem o que fazer para tornar possível o contato entre os mundos envolvidos. Permita-se “ouvir”, estas mãos, somente assim será possível mostrar aos surdos como eles podem “ouvir” o silêncio da palavra escrita. (QUADROS, 1997, p. 119).

Dessa forma, a Cultura Surda merece ser propagada nos mais variados meios sociais, pelo uso da Libras nos âmbitos educacional e social, por se entender que a comunicação é fator fundamental nas relações sociais, no conhecimento de si e do outro, na troca de experiências e na obtenção de conhecimentos culturais. 1. Cultura surda versus cultura ouvinte Conceituar ou analisar a Cultura Surda e sua história requer uma visão ampla que perpasse as imposições de uma cultura majoritariamente ouvinte, ou das diversas representações sociais internalizadas em que se apresentam as comunidades surdas como seres meramente deficientes. Skliar (2012) compreende que esse

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tipo de identidade surda cria um espaço cultural visual dentro de um espaço cultural diverso. Strobel (2008) considera que reconhecer e identificar a cultura surda é algo complexo, inclusive no ambiente familiar, onde também prevalece o conceito unitário da cultura e, “ao aceitarem a cultura surda, eles têm de mudar as suas visões usuais para reconhecerem a existência de várias culturas, de compreenderem os diferentes espaços culturais obtidos pelos povos diferentes”. (STROBEL, 2008, p. 11). A autora reforça a ideia de que é preciso “[...] perceberem a cultura surda através do reconhecimento de suas diferentes identidades, suas histórias, suas subjetividades, suas línguas, valorização de suas formas de viver e se relacionar” (STROBEL, 2008, p. 11). Com a intenção de ampliar a discussão sobre cultura e de atingir aos objetivos deste estudo e, assim, responder as questões propostas na pesquisa quanto as indagações ou problemáticas relacionadas à Cultura Surda, estudaremos esses conceitos segundo alguns autores diretamente relacionados aos levantamentos realizados. A cultura “[...] é identificada como meio de comunicação em massa ou, então, cultura diz respeito às festas e cerimônias tradicionais, às lendas e crenças de um povo, seu modo de se vestir, sua comida e a sua língua”. (STROBEL, 2008, p. 15). Dessa forma, percebe-se há várias interpretações e variações teóricas para o termo “Cultura”. Para Strobel (2008, p. 16), há quem considere a cultura de forma unitária, ou admita a existência não de uma cultura singular, mas de culturas, no plural. A ideia unitária de cultura na sociedade está relacionada com as ideologias hegemônicas, de padronização, de normalização, em que todos devem se identificar com esta cultura única em um determinado espaço. A partir desses conhecimentos, compreendemos que a Cultura organiza as necessidades de um tipo de sociedade e a torna politicamente estruturada, com elevados princípios, na obtenção de

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normalização de costumes em sua pluralidade. Contudo, os conceitos acerca da singularidade cultural linguística surda nos meios sociais abarcam simploriamente tudo o que deveria, embora a comunidade surda esteja em constante transformação. Como em qualquer grupo de uma determinada cultura, os surdos procuram evoluir e construir-se ao longo dos processos de formação humana, de acordo com seus costumes, vivências e relações interpessoais. Quando entendemos que a língua é a expressão em essência de uma cultura, compreendemos também, que a singularidade linguística em uso da Libras é a própria identidade da cultura surda em uso nos mais variados meios sociais, e por esse motivo, esta língua foi reconhecida na legislação pelo Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que regulamenta a Lei nº 10.436 de 24 de abril de 2002 como segunda língua oficial brasileira e meio legal de comunicação, embora as práticas sociais façam com que ela passe despercebida para muitos, pelo fato de não ser oral como as demais línguas presentes numa sociedade ouvintista. Hall (2006) traz a importância das trocas nas relações de diferentes culturas e línguas para enriquecer o universo humano, por compreender que apenas no processo de conquista, na maioria das vezes violento, é possível a unificação de culturas para fortalecer a comunidade. A separação de grupos e nações só enfraquece o grupo e minora as condições culturais de uma nação. Cada conquista subjugou povos conquistados e suas culturas, costumes, línguas e tradições, e tentou impor uma hegemonia cultural mais unificada [...]. Como observou Ernest Renan, esses começos violentos que se colocam nas origens das nações modernas têm primeiro, que ser “esquecidos”, antes que se comece a forjar a lealdade com uma identidade nacional mais unificada, mais homogênea (HALL, 2006, p. 16).

Os surdos possuem cultura e estão envolvidos em uma forma de comunicação diversificada. Quando inseridos em uma sociedade ouvinte, convivem com outras formas de cultura, já que a língua oral é percebida pela audição, enquanto a Libras, é percebida pela visão, e contempla estrutura própria comunicativa,

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embasada pelos parâmetros das línguas de sinais, de acordo com as leis que a regem. Assim, os surdos possuem cultura própria, evidenciada, construída e evoluída por meio das próprias relações sociais e trocas de saberes e conhecimentos. Com essas considerações sobre a cultura somos instigados a compreender a representatividade da cultura surda, com olhar atento em relação as suas implicações com o meio. 2. A representação da cultura surda e suas implicações com o meio Entender os conceitos da cultura surda requer compreender a formação da identidade de um determinado grupo, numa relação dialética subjetiva com a sociedade. A identidade é formada por meio das relações sociais, que na cultura surda são construídas por trocas comunicativas plausíveis em uma comunicação visual, embora não o sejam na comunicação ouvinte. A identidade é evidentemente um elemento-chave da realidade subjetiva, e tal como toda realidade subjetiva, acha-se em relação dialética com a sociedade. A identidade é formada por processos sociais. Uma vez cristalizada, é mantida, modificada ou mesmo remodelada pelas relações sociais [...]. As estruturas sociais históricas particulares engendram tipos de identidade, que são reconhecíveis em casos individuais (BERGER; LUCKMANN, 1973, p. 228, 229).

Para ampliar o assunto, trazemos Cuche (2002), para o qual a cultura “[...] permite ao homem não somente adaptar-se a seu meio, mas também adaptar este meio ao próprio homem, a suas necessidades e seus projetos. Em suma, a cultura torna possível a transformação da natureza” (CUCHE, 2002, p. 10). A relação do homem com o espaço cultural permite que o mesmo cresça e desenvolva sua identidade coletivamente. A cultura em si não se apresenta pronta, mas se modifica e se atualiza, seja nas relações atuais ou nas relações decorrentes do desenvolvimento cultural adquirido das gerações passadas. Tratar a cultura como aprendizado

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no entender do próprio homem em construção é perceber a importância da coletividade para emersão das diferenças. Para propor reflexões mais abrangentes, é preciso evidenciar a existência dos povos surdos e sua importância na construção e modificação de sua identidade linguística, que se reflete nos meios sociais. Para compreender melhor, foi preciso analisar no dicionário o significado da palavra “povo” na tentativa de estabelecer analogia ao tema em pesquisa. [...] conjunto de pessoas que falam a mesma língua, têm costumes e interesses semelhantes, história e tradições comuns [...] conjunto de indivíduos de uma mesma ou de várias nacionalidades, agrupadas nem mesmo Estado [...] conjunto de pessoas que vivem em comunidade num determinado território, nação, sociedade [...] conjunto de pessoas que não habitam o mesmo país, mas que estão ligadas por uma origem, sua religião ou qualquer outro laço (HOUAISS, 2016).

Quando compreendemos a existência do povo surdo e a presença de sua cultura nos meios sociais, nos referimos também aos próprios sujeitos surdos, que estão conectados por uma determinada origem e também por um código legal de comunicação visual, Libras, e quaisquer outros laços que proporcionam evoluções nas relações linguísticas, na organização da realidade de um grupo com elementos em comum. Tratar o tema Cultura Surda é adentrar a questionamentos e levantamento de possibilidades acerca de sua singularidade, não apenas linguística, mas também cultural. Assim, é importante ressaltar que a pluralidade das comunidades surdas está explícita não somente em sua forma comunicativa peculiar, mas no próprio modo de ser, de visualizar, de compreender e transformar a realidade, pois conhecer o mundo pela visão requer observação das potencialidades no desenvolver de um código visual, como forma de extração de informações entre o sujeito surdo e o meio em que vive. A comunicação visual pelo uso das línguas de sinais propõe substituição total da audição, por se compreender que por meio da Libras é possível se expressar, conhecer o mundo e entrar nos mais

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variados contextos que fazem parte das interações com o meio, sejam políticos, religiosos, acadêmicos ou outros. A Libras é reconhecida legalmente como meio de comunicação e língua oficial, possui embasamento nos parâmetros das línguas de sinais e possui gramática própria. Assim: Art. 1º. É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais – Libras e outros recursos de expressão a ela associados. Parágrafo Único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais Libras – a formação de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, como estrutura gramatical própria, constituem um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil.

Muitos defensores e militantes da causa surda asseguram que pelo uso da Libras o sujeito surdo constrói sua identidade surda, a qual fica, assim, diretamente relacionada a uma proposta do uso da língua. A comunidade surda possui embasamento comunicativo teórico, reconhecido legalmente. Então, evidencia-se a necessidade de se ver enaltecida sua identidade e diminuídas as diferenças de poderes linguísticos, de modo a equiparar a Libras à Língua Portuguesa, entendidas como primeira e segunda línguas oficiais brasileiras. Ao se considerar seu relevante caráter social, entendemos ser necessário, como pesquisa complementar, identificar as revelações que a cultura surda apresenta nas relações estabelecidas socialmente. Essas revelações nos conduzem a entender que o ideal coletivo é a máxima para as conquistas de uma sociedade plural, mesmo que inserida em uma sociedade singular. 3. Revelações da Cultura Surda nas relações sociais A cultura, como uma organização social ou comunitária, provoca uma visão crítica, desde que esteja vinculada também às práticas de trocas experimentais de convivência humana que

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permitam, por meio das relações de uma comunidade majoritariamente ouvinte, um lugar no qual os diferentes e iguais se encontrem, dividam história, compreendam o outro para que as inter-relações comunicativas sejam ferramentas de fortalecimento dos laços identitários, tanto da cultura surda, quanto da ouvinte. [...] coloca estes lugares na categoria de postos onde a pessoa aprende a se tornar uma pessoa surda. [...] é através deste aprendizado que o surdo vai aprender a se locomover com dignidade e efetividade (sem estar sempre se representando como deficiente) no mundo dos ouvintes. É aí que ele pode aprender as regras sociais de inter-relação, através de uma linguagem e de uma comunicação clara para ele. Nestes locais ele pode esquecer completamente a surdez, que é anulada e não pode ser usada como instrumento de discriminação contra ele. Somente nesta situação relaxada, em que o surdo não precisa se esforçar para compreender o que é falado, as regras sociais (tão comandadas pela audição e de difícil compreensão para quem não ouve) apreendidas (e entendidas) sem esforço e principalmente em que ele não precisa se sentir excluído ou diferente, tentando parecer igual a todos e não conseguindo, que ele poderá se sentir realmente humano e completo, não lhe faltando um pedaço que ele busca desesperadamente completar (MOURA, 2000, p. 71).

Essa reflexão possibilita perceber que independente da proibição ou aceitação do povo surdo e suas especificidades na sociedade, os mesmos nunca cessaram de existir, ainda que com a proibição no passado do uso das línguas de sinais e a escassez de profissionais habilitados para trabalhar com essa clientela. A comunhão de objetivos almejados diretamente ligados à diversidade de culturas requer pensamentos relacionados à importância da construção de nossas próprias identidades nos meios sociais e na forma como reagimos a respeito delas. Não raro, nos deixamos influenciar pelo clamor social e reivindicamos uma igualdade normativa que jamais será alcançada, e por isso fazem-se necessárias transformações significativas no indivíduo em relação ao meio em que vive. Para Ciampa (1990, p. 171) “[...] as identidades, no seu conjunto, refletem a estrutura social, ao mesmo tempo em que reagem sobre ela, conservando-a ou transformando-a”. Dessa

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forma a identidade surda é refletida e vivenciada como uma nova proposta de transformação de valor da língua na sociedade e nos próprios vínculos de comunidades surdas como responsáveis por melhorias evolutivas da comunicação e de profundas reflexões. As perspectivas para a evolução educacional e social da pessoa com surdez estão vinculadas ao trabalho dos profissionais, intérpretes e alunos, nos mais variados processos de desenvolvimento humano. Deve-se levar em conta a formação inicial e continuada dos profissionais que atuam na educação escolar e na sociedade em geral, com atenção às singularidades linguísticas, à importância da Libras e por fim, aos objetivos traçados no intuito de alcançar os desenvolvimentos psicológico, educacional e social do aluno com surdez, como forma de reconhecimento de suas potencialidades. Os artigos mapeados abordam amplas questões referentes a diversos apontamentos, dentre eles, destacam-se: o ensino da Libras; a influência da comunicação; formação do professor da língua; a surdez e a sociedade; possibilidades comunicativas; trabalho do intérprete nos meios sociais, história cultural dos surdos; aspectos linguísticos/discursivos; políticas de inclusão de surdos, dentre outros temas. Nos estudos de análise relativa à categoria “Cultura Surda” é possível perceber importantes contribuições nas discussões relacionadas à comunicação direta pela utilização da Libras, a importância do uso das línguas de sinais, identidade surda, compartilhamento da cultura surda, que estão justapostas às modificações educacionais e sociais, sobretudo, aos processos de desenvolvimento e formação humana. Percebem-se avanços nos estudos específicos aos temas diretamente relacionados aos assuntos “Cultura Surda” para a contribuição efetiva ao PAEE; porém, ainda é possível perceber que os surdos não conseguiram compartilhar sua real identidade cultural, por conta de inúmeros entraves sociais, sobretudo na comunicação.

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Considerações Finais Percebe-se o surdo em seu deslocamento da cultura ouvinte ou cultura universal e emergente na problemática da diferença cultural própria (PERLIN, 2004, p. 76).

A epígrafe nos remete à reflexão de que a real inclusão acontece quando somos respeitados em nossas particularidades e diferenciações, mas que não devemos nos submeter a uma única forma de pensar, aprender ou perceber as culturas a partir de concepções daquilo que é comum à maioria. É importante valorizar as peculiaridades de um determinado povo e sua cultura, mas não devemos sobrepor culturas, tendo em vista que essas terão suas vivências vinculadas ao convívio social nas relações humanas, as quais estão vinculadas às singularidades linguísticas. Por não estar em uso pela maioria da sociedade brasileira, a Libras enfrenta o preconceito, principalmente por ser visual, característica que a difere de todas as outras línguas orais. É recorrente em textos sobre Libras a apresentação de uma imagem de duas mãos. Em uma delas aparece um ouvido e em outra, uma boca, e ambos dialogam. Neste artigo, essa figurativização é importante ferramenta de entendimento e reflexão acerca da singularidade linguística presente na Libras. Para os surdos, nossas mãos são instrumentos de apropriação, assim como todo nosso corpo, nas interpretações reais, carregadas de expressões faciais e muitas vezes, corporais. Nossos sinais, configurados nas mãos, são entendidos para os surdos como ferramentas mediadoras de informações e conhecimentos para constituição do ser. Por isso, utilizar a Libras na conversação direta com o surdo é substituir os ouvidos por sinais articulados a uma língua reconhecida, viva e especial. As contribuições de reflexão das seções anteriores, somadas às descobertas pelo mapeamento realizado, promovem a necessidade de novos olhares sobre a Cultura Surda e o uso da Libras em diferentes ambientes sociais. As discussões divididas em subtemas auxiliam na

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compreensão de termos importantes na temática surda cultural, nas conquistas históricas das comunidades surdas, na construção de identidade e nos conflitos sociais, tendo como base os estudos surdos, na busca pela contemplação das indagações apresentadas neste artigo, na busca de uma nova realidade ou sentido cultural. A Cultura Surda ainda é tema bastante pertinente na constituição de sujeitos, evidenciada pela língua de sinais, aqui compreendida como a própria identidade nesse processo, tendo em vista todos os espaços de convívio social: político, religioso, educacional, acadêmico, entre outros. A autora surda Perlin afirma: “Percebe-se que o sujeito surdo está descentrado de uma cultura e possui outra cultura. Percebe-se o surdo em seu deslocamento da cultura ouvinte ou cultura universal e emergente na problemática da diferença cultural própria”. (PERLIN, 2004, p. 76). Faz-se, portanto, a proposta de trocas de experiências valorizadoras da cultura, na qual o indivíduo esteja incluso; assim como a compreensão das problemáticas das vivências surdas, num conjunto de informações e relações sociais majoritariamente ouvintes. Ainda que existam variados grupos, povos e comunidades, percebe-se que esses não são particularizados isoladamente, mas convivem, compartilham cultura e estão sujeitos às problemáticas das relações. Assim, é possível destacar que deve haver equiparação entre a diversidade de culturas, sem sobreposição de nenhuma, tendo em vista a igualdade valorativa entre todas. São muitas as dificuldades encontradas nas tentativas de contemplação da cultura dos surdos em todos os meios sociais. Um exemplo considerável está articulado nas próprias vivências escolares em todos os níveis de formação de conhecimento: Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio, Ensino Técnico e Ensino Superior. Nos âmbitos educacionais, as principais dificuldades na promoção da qualidade dos processos de ensino e aprendizagem estão relacionadas mais uma vez aos entraves das relações

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comunicativas. O mapeamento realizado pelo pesquisador revela que, na maioria dos casos, o profissional da Educação não se sente apto para estabelecer uma comunicação direta e eficaz com o aluno surdo e então tem que recorrer à ajuda de intérpretes, quase sempre raros no ambiente escolar. Ficou evidente também que a falta de ferramentas ou materiais adaptáveis à língua surda pode ser um grande entrave nos processos de formação dos surdos, tal como os conteúdos, os quais deveriam estar voltados à compreensão desses no interesse por sua formação plena em sociedade e preparo para o trabalho assim como contemplar sua própria singularidade linguística pelo uso da gramática das línguas de sinais. Nessa seara, é importante ressaltar que a comunicação entre os discentes surdos e ouvintes, ainda pode ser considerada como uma barreira nas relações, devido à falta de trabalhos pedagógicos que contemplem as múltiplas trocas e vivências com o diferente, em variadas propostas de novas reflexões discursivas. Por fim, este estudo proporcionou profundas reflexões em relação ao tema e ao mapeamento realizado, numa proposta de contemplação da Libras nos mais variados meios sociais, a fim de enaltecer a cultura do povo surdo em igualdade de direitos contidos na singularidade linguística. Nas revelações feitas pelos autores e artigos pesquisados é possível visualizar que as diferenças ganham espaço nos convívios sociais, mas o aluno com surdez ainda luta para ser incluído nos meios sociais e até o momento não conseguiu compartilhar sua cultura, enfrenta muitas dificuldades; entretanto, as perspectivas são positivas, se considerarmos a intensidade dos movimentos do povo surdo no País.

Referências BRASIL. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Disponível em: . Acesso em: 27 jun. 2016.

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BRASIL. Lei nº 10.436, de 24 de Abril de 2002. Disponível em: . Acesso em: 27 de jun. 2016. BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis-RS: Vozes, 1973. CIAMPA. A. C. A estória do Severino e a história da Severina. São Paulo: Brasiliense, 1990. CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 2002. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. HOUAISS. Dicionário da Língua Portuguesa. . Acesso em: 10 mar. 2016.

Disponível

em:

MOURA, M. C. O surdo: caminhos para uma nova identidade. Rio de Janeiro: Revinter, 2000. PERLIN, G. O Lugar da Cultura Surda. In: THOMA, A. S.; LOPES, M. C. (Org.). A invenção da surdez: cultura, alteridade, identidade e diferença no campo da educação. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004. QUADROS, R. M. Educação de surdos: a aquisição da linguagem. Porto Alegre-RS: Artes Médicas, 1997. REILY, L. Escola Inclusiva: linguagem e mediação. 4. ed. Campinas-SP: Papirus, 2004. SKLIAR, C. A Surdez: um olhar sobre as diferenças. 6. ed. Porto AlegreRS: Mediação, 2012. STROBEL, K. As imagens do outro sobre a cultura surda. FlorianópolisSC: Editora da UFSC, 2008. VYGOTSKI, L. S. Fundamentos de defectologia. Obras escogidas V. Madrid-Es.: Aprendizaje Visor, 1997.

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O PROFESSOR DE ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO E A FORMAÇÃO CONTINUADA Deine Esly Iglesias Junqueira Hernandes 1 Maria Helena Bimbatti Moreira2

A história da formação docente relaciona-se às modificações sociais ocorridas em nível mundial, que contribuíram para o aumento da exigência de uma formação educacional mais específica, sobretudo quando consideradas as novas demandas escolares, entre elas: o desenvolvimento do processo educacional inclusivo. O movimento inclusivo, segundo Moreira (2006), teve início na segunda metade da década de 1980, contudo foi a partir da década de 1990 que se fortaleceu em nível mundial, ecoando em vários países signatários da proposta inclusiva, que se concentravam na necessidade de uma reestruturação da sociedade, com o intuito de possibilitar a convivência de todos com as pessoas público-alvo da educação especial, ou seja, pessoas com deficiência, com transtornos globais do desenvolvimento e com altas habilidades ou superdotação3. Mestranda do Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Educação pela Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), bolsista DS-Capes; Especialista em Atendimento Educacional Especializado; Supervisora de ensino vinculada à Secretaria Municipal de Educação de Araçatuba/SME-SP; E-mail: [email protected] 2 Doutora em Educação; Mestre em Educação Escolar; Especialista em Deficiência Intelectual e Pedagoga, pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - FCLAr - UNESP - Araraquara. Pós-Doutoranda, junto à Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, atuando como professora colaboradora, junto à referida instituição. Campus Paranaíba/MS; E-mail: [email protected] 3 Definição conforme Decreto nº 7611 de 17 de novembro de 2011. 1

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Klein e Pátaro (2008) afirmam que o movimento inclusivo, inicialmente de cunho social, atingiu rapidamente o espaço escolar, fazendo emergir novas demandas que passaram a exigir algumas mudanças e alterações no quadro escolar, advindas do processo de democratização do ensino, que se confrontavam com uma estrutura pedagógica tradicional, cristalizada e enraizada numa proposta educacional elitizada. Bridi (2011, p.02) nessa mesma linha de raciocínio ressalta que: [...] as necessárias mudanças e as discussões emergidas no contexto escolar envolveram diretamente a formação de professores, ou a falta de formação, denunciada pelos próprios professores para trabalharem “com este tipo de aluno’”. É neste contexto que emerge o medo, a resistência e as argumentações que questionam o trabalho com estes alunos considerando a inexistência de experiências anteriores e/ou a falta de formação específica para o desenvolvimento do trabalho pedagógico.

Apesar das considerações apresentadas, nota-se que, após mais de uma década, grande parte dos professores ainda quer alunos “semelhantes”, que aprendam ao mesmo tempo, mesmo sabendo que os alunos são diferentes, por serem seres únicos, independentemente de apresentarem deficiência ou não. Ranços da cultura homogênea promovem comportamentos ineficazes, que desencadeiam atitudes antipedagógicas como a rotulação e, consequente exclusão escolar do educando, especialmente daqueles que são público-alvo da educação especial. Essa constatação indica que as práticas escolares convencionais não atendem às necessidades das pessoas público-alvo da educação especial, em todas as suas manifestações. Neste sentido, há de se prever uma revisão dessas práticas para atenderem às demandas específicas, que emergem do atual cenário educacional nacional. (BRASIL, 2007). Frente a este movimento, pode-se observar que algumas produções acadêmicas, tais como as desenvolvidas por Manzini (2006), Bridi (2011), Moreira (2012), Budin (2014), Silva (2015) apontam a formação continuada como um marco na formação

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profissional e uma necessidade emergente da profissão docente, visando à reestruturação da sociedade no tocante à sensibilização da convivência para com as pessoas público-alvo da educação especial. Essas novas exigências tornaram-se ainda mais evidentes, a partir do momento em que a escola percebeu a necessidade de interagir com educandos heterogêneos pertencentes, na maioria das vezes, às classes populares. Somam-se a este fator as mudanças sociais, econômicas e culturais, ocorridas nas últimas décadas, que foram intensificadas a partir da necessidade de inclusão, frente ao conceito de escola para todos, tal como expressa (MANZINI, 2006). Assim, alterar a lógica da escola calcada na padronização, seleção, classificação e marginalização, requer edificar novos pilares, que suportem tais transformações. O desenvolvimento inclusivo da escola assume destacado lugar neste processo de fumegantes modificações. Como uma das características de uma escola inclusiva, a educação especial se redefine, à luz dos fundamentos do direito à diferença. (SANTOS, 2015, p.10)

Seguindo esta mesma linha de raciocínio, localizaram-se, em Kassar (1994), significativas contribuições, especialmente quando afirma que todos os alunos são pessoas iguais nas diferenças e que, portanto, independente de serem ou não diferentes, divergentes ou deficientes, devem receber uma formação escolar adequada. Caso contrário, a escola “não podendo dar conta de sua população, repassa ao aluno a responsabilidade de seu fracasso, sustentandose na ideologia das desigualdades” (KASSAR, 1994, p. 86). A perspectiva inclusiva fomentou a organização de documentos legais, tais como: a Constituição Federal de 1998, o Estatuto da Criança e do Adolescente nº 8069/90, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394/96 (em especial os artigos 58, 59 e 60), e o Plano Nacional de Educação nº 10.172/01, entre outros, que se propuseram a dar um novo olhar acerca do processo educacional inclusivo, à medida que promoveram discussões sobre a necessidade de elaboração de regulamentos institucionais e

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pedagógicos, capazes de efetivarem esta prática no ensino comum. Cabe salientar que a Convenção da Guatemala, de 28 de maio de 1999, internalizou à Constituição Brasileira o Decreto nº 3.956/2001, no artigo 1º, o termo deficiência como “uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social.” (GUATEMALA, 2001, s/n). O reconhecimento e a valorização da diferença é pressuposto político e filosófico para a efetivação do direito de todos à educação. Para tanto, são necessárias mudanças conceituais, político e pedagógicas, capazes de favorecerem novas formas de organização e de pensamento educacionais (SANTOS, 2015, p.9).

Entretanto, apesar de todos esses pressupostos legais, a pessoa público-alvo da educação especial tem sofrido algumas dificuldades para ser incluída na escola comum, tal como pontua Omote (1996), tanto pela complexidade da compreensão de suas peculiaridades, quanto pela falta de entendimento do conceito de deficiência, pelo despreparo do professor, entre outros fatores. Apesar dos avanços inquestionáveis alcançados pelas propostas de atendimento voltadas às demandas das pessoas público-alvo da educação especial4, nota-se a inexistência de uma política clara na área da Educação Especial. Esse fator retarda uma evolução mais rápida nessa esfera e realça a incongruência existente entre o que é afirmado nos documentos oficiais e as iniciativas governamentais de fato instituídas. Frente ao exposto, percebe-se claramente a importância da proposição de novas regras, metas, propostas pedagógicas, instrumentos metodológicos e avaliações, capazes de renovarem antigas práticas docentes, pois essas ações são necessárias para estimular no contexto escolar uma nova implementação 4

Resolução CNE/ CEB nº 04/2009 dispõe sobre o Atendimento Educacional Especializado.

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pedagógica, mais ativa, dialógica, interativa e inclusiva. (BRASIL, 2007). Sob a ótica da educação inclusiva, não é o aluno que se adapta ao ensino, mas a escola que oferecer as ferramentas necessárias para que este aluno chegue ao conhecimento. Diante deste conceito, emprega fortemente a perspectiva da escola para todos, por isso o docente deve adequar meios pedagógicos para ensinar a todos os alunos, independente das suas necessidades intelectuais, físicas, psicológicas e sociais, tal como destaca MANZINI (2006). Historicamente, aos alunos público-alvo da educação especial eram reservadas poucas possibilidades de experiências escolares. Talvez, esse ranço educacional atrapalhe o desenvolvimento da escola educacional inclusiva contemporânea. Estas, quando ocorriam, eram reservadas até o fim do ensino fundamental, quando muito, ao ensino médio. Não havia a possibilidade de se pensar uma pessoa com alguma deficiência ou transtorno global do desenvolvimento na Educação Superior. (SILVA, 2015, p. 696)

Considerando os fatores históricos, percebe-se, mais claramente, a necessidade de reorganização da oferta de um atendimento educacional especializado, assim como de ações referentes à formação continuada de professores e de propostas de acessibilidade nas escolas comuns. No documento referente à Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008), a União promove a articulação entre os entes federados para a definição de financiamento para apoiar o desenvolvimento inclusivo nos sistemas de ensino. O que demonstra um esforço coletivo, em nível federal, para atender às demandas específicas da educação inclusiva, tal como propõe o documento (BRASIL, 2008). Nesta seara, faz-se também presente o Decreto nº 6.571/2008 localizado em (BRASIL, 2008), que instituiu por meio do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB, o duplo

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financiamento para as matrículas dos estudantes público-alvo da educação especial, sendo uma em classe comum do ensino regular e outra no Atendimento Educacional Especializado (AEE), ofertado de forma complementar ou suplementar à escolarização. Essa política inverte a lógica histórica sustentada num modelo de educação especial segregacionista, especialmente quando passa a apoiar o desenvolvimento inclusivo das escolas nas redes públicas de ensino comum. Em síntese, pode-se dizer que os documentos reguladores nacionais são marcos do processo inclusivo, justamente por indicarem à escola uma remodelagem estrutural, especialmente frente aos aspectos físicos, estruturais, humanos e pedagógicos. Contudo, esse processo exige que os docentes se preparem cada vez mais, para receberem e atuarem junto aos alunos públicoalvo da educação especial, ou aqueles que apresentam necessidades educacionais específicas. Dito de outra forma, o conceito de heterogeneidade se cristaliza no cenário educacional nacional com força de lei. Segundo Moreira (2006, 2012), a inclusão de crianças com deficiência, em especial a intelectual, tem afligido o professor, visto que afeta diretamente o processo de ensino-aprendizagem. Essa aflição, quase sempre está relacionada ao seu despreparo profissional, fruto de um processo de formação ineficiente, tanto em nível inicial (graduação), quanto subsequentes, em nível de pós-graduação Lato Sensu. Para Almeida (2000), a má formação docente, obtida nos cursos de formação inicial, acarreta sérios problemas na realização do trabalho pedagógico e, como consequência, na aprendizagem dos alunos. Isto porque as instituições de ensino superior, ao oferecerem a formação inicial, acabam abordando algumas temáticas, superficialmente, tal como ocorre com a grade curricular, voltada à educação inclusiva. Esse aligeiramento dificulta uma atuação significativa por parte dos futuros

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professores junto à realidade escolar e aos alunos público-alvo da educação especial. Um caminho para a superação das dificuldades decorrentes da formação inicial é a formação continuada, que constitui o aprimoramento do conhecimento e das atitudes às quais o professor é submetido, devendo ocorrer ao longo da vida profissional. Por meio dela, o professor repensará os paradigmas e modelos já consolidados em seu local de trabalho, por meio da reflexão, da pesquisa, apresentando atitudes autônomas, fortalecendo assim a reflexão na ação e sobre a ação, articulando teoria e prática. Diante da necessidade de formação permanente, o poder público, desde o nível federal ao municipal, precisa propor processos de formação continuada e em serviço aos professores, tal como explicitam Floride & Steinle (2009, p.03) [...] diante deste contexto, acredita-se que a formação continuada realizada na escola seja uma das alternativas para a melhoria da qualidade do processo de ensino aprendizagem, pois, além de contribuir com a reflexão e a (re) organização da prática pedagógica, ela é feita a partir das necessidades e interesses da comunidade escolar. Sendo assim, atendendo aos interesses e aos problemas comuns a toda comunidade, poderá ser a formação continuada, no cotidiano da escola, um caminho mais seguro na transformação da realidade escolar.

No Plano Nacional de Educação (PNE), elaborado no Brasil no ano de 2001, essa afirmação também está presente, enfatizando a importância atribuída à formação permanente e em serviço dos profissionais da educação: A formação continuada do magistério é parte essencial da estratégia de melhoria permanente da qualidade da educação, e visará à abertura de novos horizontes na atuação profissional. (...) Essa formação terá como finalidade a reflexão sobre a prática educacional e a busca de seu aperfeiçoamento técnico, ético e político. (BRASIL, 2001, n.p.)

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A esse respeito, Libâneo (2001) reitera a importância dos cursos de formação inicial para conhecimento do futuro professor, mas afirma que somente a formação continuada pode consolidar a identidade desse professor, pois tem a oportunidade de desenvolver-se no âmbito do seu próprio trabalho. No que concerne à sua importância, Nóvoa (2001) acrescenta que, por muito tempo, a única modalidade de formação de professores abordada era a formação inicial, porém essa situação é inimaginável no universo contemporâneo, pois considera que a formação de professores é algo que se estabelece num continuum, que começa na formação inicial e permanece ao longo de toda a vida profissional docente, por meio de práticas de formação continuada, tendo a escola como polo de referência. Frente a este cenário, Imbernón (2010) alerta que a formação continuada terá maior probabilidade de se tornar efetiva, quando os professores assumirem o papel de sujeitos ao invés de objetos dessa formação, ou seja, deve-se trabalhar com os professores e não sobre eles. Afirma, ainda, que a formação continuada, além de atualizar os professores, deve potencializar uma formação capaz de proporcionar espaço de reflexão e participação, por meio do qual os professores possam aprender por meio da análise das situações problema, frente às necessidades sentidas e apresentadas pelo coletivo. No entanto, [...] o campo da formação docente tem se apresentado como um grande meio econômico frente à abundância de políticas e programas de formação continuada, tendo em vista as políticas, programas e discursos para sanar as deficiências da formação inicial e/ou capacitar os professores em exercício por meio da formação continuada (BUDIN, 2011, p.23).

Desafortunadamente, a literatura consultada, tais como: Almeida (2000), Freire (2002), Mendes (2006), Manzini (2006), Moreira (2006; 2012), Soares (2009), entre outros, comungam que o docente possui fragilidades pedagógicas, que podem ser associadas

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a uma formação inicial insipiente e/ou uma formação continuada aligeirada. Nessa linha de reflexão, Budin (2011) afirma que os professores são alvo de uma produção mercadológica, designada ao consumo dos produtos ofertados pelos programas e modelos de formação continuada, por meio de cursos (de especialização, aprimoramento, aperfeiçoamento, capacitação, entres outros), palestras, eventos, materiais pedagógicos e outros instrumentos e dispositivos afins, produzidos pelas Universidades públicas e privadas, por editoras, consultorias e sistemas de ensino. Ao mesmo tempo se tornam produtos para os agentes formadores, que “vendem” a necessidade da formação desses professores às Secretarias de Educação, por meio de seus programas de formação continuada (SOUZA e SARTI, 2014 apud BUDIN, 2014, p. 24).

Soares (2009, p.01) destaca no artigo “Formação Docente na Perspectiva da Inclusão” que: [...] a inclusão escolar traz um novo paradigma de educação, é imprescindível que a formação dos professores também seja direcionada nessa perspectiva. Como o professor pode ter uma prática inclusiva, se no seu processo de formação profissional não teve contato e não foi sensibilizado a respeito dessa nova maneira de se pensar as diferenças.

Considerado o posicionamento de Soares (2009), depreende-se que rever a formação dos professores, tanto dos que atuam no ensino comum, como dos que atuam na educação especial, visando minimizar o processo de exclusão de alunos público-alvo da educação especial em situação escolar, tornou-se um elemento imperativo na escola contemporânea, como modo de garantir aos docentes uma atuação eficiente, capaz de atender a todos os alunos dentro de uma perspectiva inclusiva. Para Garcia (2013), a formação continuada assume particular importância, em decorrência do avanço científico e tecnológico e de exigência de um nível de conhecimentos sempre mais amplos e profundos na sociedade moderna. Assim, há uma atenção maior à

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formação permanente, seja continuada seja em serviço, dos profissionais da educação. No entanto, privilegiar capacitação em serviço em detrimento da formação inicial [...] é fragmentar um processo de preparação, de profissionalização e de conceitualização do educador que é uno, indissociável. Com isso os professores vão acumulando profundas defasagens na sua preparação profissional inicial, justificando a precarização da profissão. (PIMENTA, 2007, p. 46).

Diante do exposto, torna-se possível afirmar que o tema formação continuada ainda precisa ser muito estudado, uma vez que carece de debates mais profundos e de investimentos mais significativos, consoantes com a perspectiva inclusiva, na qual toda a comunidade escolar se abre e se prepara para assumir o desenvolvimento do processo inclusivo. Esse posicionamento favorece o processo educacional de todas as crianças, sejam elas público-alvo da educação especial ou não. Para além, a presença, a aceitação e o comprometimento com a diversidade na escola e na sociedade favorecem a composição da humanização.

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A BRINCADEIRA COMO ATIVIDADE PRINCIPAL PARA A ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL: UMA ANÁLISE SOBRE A SUA DEFESA EM TESES E DISSERTAÇÕES Elizângela Ferreira de Andrade1 Maria Silvia Rosa Santana2

Este texto é fruto dos estudos realizados para a composição da dissertação para o mestrado em Educação que estou cursando na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Unidade de Paranaíba, cujo tema é a brincadeira como Atividade Principal para a criança que está vivendo a fase da Educação Infantil. Para tanto, surgiu a necessidade de investigar se o tema é pesquisado, a freqüência com que ele ocorre, como é abordado e o local onde ocorre. O tema brincadeira na Educação Infantil se mostra extremamente pertinente devido ao fato das mudanças no cenário da Educação nos últimos anos, produzidas pela LDB 9.394/96 (art.29/30) que define a educação infantil como a primeira etapa da educação básica e deve propiciar o desenvolvimento integral da criança até os cinco anos de idade nos aspectos físico, psicológico, 1

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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Unidade Universitária de Paranaíba. E-mail: [email protected] Doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP/Marília. Docente do PPGE, dos cursos de Pedagogia e Ciências Sociais, na Unidade Universitária de Parnaíba, da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, UEMS. É coordenadora da Linha de Pesquisa Teorias e Práticas Educacionais, do Grupo de Estudos e Pesquisas em Práxis Educacional (GEPPE/UEMS), e pesquisadora do Grupo Implicações Pedagógicas da Teoria Histórico-Cultural (UNESP/Marília). E-mail: [email protected]

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intelectual e social. Estas mudanças causaram muitas contradições e percalços para a organização deste período escolar, fundamental para a constituição do desenvolvimento da criança que vivencia este momento, pois, até então a função do estado era apenas o de cuidador, e agora se faz necessário buscar meios para organizar este período que marca de forma indelével toda a história do indivíduo. Para tanto se faz necessário que se constitua uma discussão acerca das particularidades e condições em que estão alicerçadas este período importante para o desenvolvimento e a construção da base para os anos escolares que se seguirão. A Educação Infantil é um terreno de controvérsias considerando que ele é muito recente e não possui pilares bem alicerçados, pois considerando que: As últimas três décadas da história da educação brasileira constituem-se em uma etapa importantíssima para a história de educação infantil. O período coincide com as lutas para democratização da escola pública, no Brasil, em suas diversas modalidades: a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio. O acesso e a permanência foram ampliados, bem como a educação passou a ser tratada como um direito. Contudo, sua universalização foi acompanhada pela ampliação dos problemas que revelam um quadro caótico marcado pela baixa qualidade de ensino. Observa-se que a busca pela qualidade do ensino tem sido a tônica das políticas educacionais direcionadas para o Ensino Fundamental e Médio, em que se constata o comprometimento de distintas instâncias governamentais. Entretanto, no caso específico da Educação Infantil, presenciam-se passos mais lentos no atendimento a toda a demanda, embora no âmbito legislativo tenhamos conquistado o reconhecimento da necessidade e especificidade dessa modalidade de ensino. (LUCAS E MACHADO, 2012, p. 3).

De acordo como excerto, é possível perceber que o advento da Educação Infanti, data dos últimos trinta anos, e deu-se devido às lutas pela democratização da escola pública. Estas mudanças acarretaram, porém, problemas emblemáticos para este período escolar, como baixa qualidade de ensino e entendimento confuso em relação ao seu papel e, consequentemente, à melhor forma de organizá-la em termos e currículo e práticas pedagógicas.

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Pensando nisto, surge a importância de que as questões que abarcam esta temática estejam embasadas em uma perspectiva teórica que oportunize meios apropriados e pertinentes para a constituição de uma prática pedagógica que prima pelo máximo desenvolvimento da criança e atenda todas as necessidades para o desenvolvimento de suas potencialidades e de sua humanização. Os pressupostos da Abordagem Histórico-Cultural se apresentam como aporte teórico de suma importância para as discussões das especificidades deste período e dos instrumentos necessários para a sua organização, tornando-a capaz de subsidiar uma prática intencional e organizada, com os meios importantes para uma práxis onde a Educação Infantil se torne espaço propício para o desenvolvimento adequado para que o indivíduo e de suas potencialidades. Este enfoque foi sistematizado a partir dos estudos de Vygostky e colaboradores e um primeiro ponto a ser destacado, de grande relevância, é que para a Psicologia Histórico-Cultural, o homem é um ser de natureza social, ou seja, são as condições sociais que propiciam ao humano os meios para que ele se desenvolva ao se apropriar da cultura produzida e acumulada ao longo da história da humanidade. Para Leontiev (1978) o indivíduo é colocado diante de uma imensidade de riquezas que foram produzidas e acumuladas pela humanidade ao longo dos séculos, e é por meio das relações sociais que o indivíduo se apropria de toda a riqueza que foi produzida pelas gerações anteriores, encontrando condições para transformar, para aperfeiçoar e, com isto, criar condições para o seu desenvolvimento, além de proporcionar os meios para que as gerações que o sucederão também possam realizar esta mesma possibilidade, primordial para o desenvolvimento do indivíduo e da história da humanidade. Importante pontuar que esta condição é propiciada por meio do trabalho, ou seja, este processo de desenvolvimento do indivíduo e da história da humanidade não é algo passivo, onde o

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humano encontra as condições dadas e se apropria desta como uma esponja que absorve aquilo que está ao seu redor ou como os animais, que repetem a condição fixada pela espécie. Porém, para o homem este processo só se realiza pela experiência do trabalho, que dará a ele as condições necessárias para vivenciar as possibilidades acumuladas pelas gerações anteriores e assim aprimorá-las. [...] o homem é profundamente distinto dos seus antepassados animais e [...] a hominização resultou da passagem à vida numa sociedade organizada na base do trabalho; [...] esta passagem modificou a sua natureza e marcou o início de um desenvolvimento que, diferentemente do desenvolvimento dos animais, estava e está submetido não às leis biológicas, mas às leis sóciohistóricas (LEONTIEV, 1978, p. 262).

São as leis sócio-históricas as responsáveis por proporcionar ao humano, meios necessários para que o desenvolvimento ocorra, diferentemente dos animais, que tem sua base biológica e não é capaz de se livrar desta condição, que é social e propícia condições para se desenvolver de forma diferenciada dos seus antepassados e aprimorar as possibilidades históricas, refinando a sua humanidade e dos seus coetâneos. Este processo deve ser ativo para oportunizar ao indivíduo, meios necessários para realizar ações e se apropriar de toda a atividade que foi acumulada nos objetos, compreendendo a essência dos mesmos e então reproduzir esta história com todas as suas especificidades, pois, esta ação proporciona a ele condições para que aprenda a controlar sua conduta e, desta forma, realizar as ações que estão encarnadas no objeto. De acordo com Leontiev (1987) a apropriação da história e da essência que está encarnada no objeto cria os meios necessários para que o indivíduo se desenvolva e possa modificar este objeto, para que a utilização deste supra as suas necessidades. Este processo de utilização e/ou modificação do objeto, que é fundamental para o desenvolvimento do indivíduo, é denominado objetivação, que encontra condições para se realizar por meio da

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mediação, essencial para a realização da objetivação de modo intencional. A instrumentalização possibilita ao indivíduo a capacidade de usar, de forma intencional, dos objetos. O processo de apropriação pela criança de acções especificamente humanas, como o uso da colher, da pá, etc., desenrola-se de maneira idêntica. No princípio, o objecto que a criança agarra entra no seu sistema de movimentos naturais; ele leva uma colher à boca contendo alimento como se se tratasse de um objecto natural “não instrumental” qualquer, isto é, não leva em conta, por exemplo, a necessidade de manter a colher em posição horizontal. Posteriormente, pela intervenção directa do adulto, os movimentos da mão reorganizam-se: começam a obedecer à lógica objectiva da utilização da colher. O carácter geral da aferentação destes movimentos muda; estes últimos atingem um nível superior, nível “objectal”, forma-se na criança um sistema motor funcional, o sistema das acções de tipo instrumental (LEONTIEV, 1978, p.179 e 180).

A mediação, realizada pelo adulto ou por uma criança mais experiente, é responsável por oportunizar ao indivíduo os meios necessários para que ele se aproprie das condições essencialmente humanas. Com base nos pontos elencados, pode-se inferir que a organização da Educação Infantil deve estar alicerçada em bases que possibilitem à criança, condições para que ela vivencie os meios mais ricos oportunizados pela cultura, e a brincadeira, oportunizada de forma intencional, oferece a ela condições para se apropriar da cultura e de todas as especificidades enriquecedoras que ela proporciona. Para isto é importante discorrer sobre o papel da Atividade e da Atividade Principal e dos processos necessários para o desenvolvimento humanizador, condições estas que podem ser oportunizadas pela escola organizada para atingir este objetivo. Para que se compreenda o papel da Atividade e de como ela influi de forma decisiva no desenvolvimento do indivíduo é importante destacar que o homem precisa satisfazer suas necessidades humanizadoras. Para isto, encontra as condições necessárias por meio da Atividade.

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Leontiev (1989, p.68) define a atividade como “[...] os processos psicologicamente caracterizados por aquilo a que o processo como um todo se dirige (seu objeto), coincidindo sempre com o objetivo que estimula o sujeito a executar esta atividade, isto é, o motivo.” É a atividade que torna o processo ativo e que, ao se realizar, atinge o motivo que impulsionou o humano a aquela atividade, tornando-o capaz de modificar o indivíduo e gerar novas necessidades e meios para se efetivar. A atividade promove e impulsiona o desenvolvimento do humano, fazendo com que o sujeito, ao efetivá-la, tenha consciência de todo o processo para que possa atingir seu objetivo. Ao suprir as necessidades que estavam se apresentando naquele momento, novas necessidades surgirão. Esta mudança se dá devido às etapas diferenciadas do progresso do indivíduo, isto é, para cada fase do desenvolvimento necessidades diferentes vão surgindo e se modificando, e isto caracteriza a Atividade Principal. Essas mudanças vão ocorrendo e causando crises, e elas são as responsáveis por causar alterações abruptas na relação do sujeito com seu entorno, “[...] a essência de toda crise reside na reestruturação da vivência anterior, reestruturação que reside na mudança do momento essencial que determina a relação da criança com o meio [...]” (Vygotski, 1996), pois estas alterações são fundamentais para a formação da personalidade do indivíduo, o que, por sua vez, modifica a sua relação com o mundo que o cerca. As crises modificam a necessidade e isto determina qual é a Atividade Principal para as etapas do desenvolvimento que se seguirão. A Atividade Principal é “[...] então a atividade cujo desenvolvimento governa as mudanças mais importantes nos processos psíquicos e nos traços psicológicos da personalidade da criança, em certo estágio de seu desenvolvimento” (LEONTIEV, 2001), é aquela em que o indivíduo apresenta o maior envolvimento e esforços para realizá-la e esta atividade proporciona as maiores possibilidades para o desenvolvimento das

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suas funções psíquicas e a aquisição de ferramentas fundamentais para a sua promoção, e da qual surgirão outras atividades e necessidades que precisarão ser realizadas e supridas para desencadear o processo, que se segue. Para a criança que se encontra inserida na Educação Infantil a Atividade Principal é a Brincadeira, que vai proporcionar todos os meios necessários para que ela se aproprie da cultura acumulada ao longo da história da humanidade de modo a promover as mudanças psíquicas na criança. Como é a Atividade Principal o meio mais importante para que a promoção do indivíduo ocorra, então tal atividade deve gozar do privilégio de ocupar lugar de destaque nesta fase da escolarização e toda a prática pedagógica deve estar voltada para oportunizar os avanços qualitativos para a promoção psíquica da criança, organizando a Brincadeira com diversos recursos, espaços, configurações e diferentes relações sociais entre as crianças. Pensando nestes pressupostos expostos de forma bem sucinta é que surge o objeto deste texto, que é um levantamento e análise acerca dos trabalhos acadêmicos produzidos nos últimos cinco anos em Universidades Paulistas: Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), que são centros universitários considerados pelas avaliações qualitativas como sendo excelentes nos cursos que oferecem, inclusive figurando como referência nas avaliações internacionais. Para levantar as produções apresentadas nos últimos cinco anos nos níveis mestrado e doutorado, cujo objeto de estudos seja a Brincadeira na Educação Infantil e o arcabouço teórico utilizado seja a Abordagem Histórico-Cultural, foram escolhidos os cursos de Pedagogia: UNESP, de Marília, Presidente Prudente, Bauru e Araraquara; USP. Também foram selecionados os cursos de Psicologia destas duas instituições. Esta delimitação se originou devido ao fato de considerar que a Pedagogia e a Psicologia são fundamentais para o estudo da constituição do Indivíduo e a formação dos profissionais

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provenientes destes cursos, quando voltada para esta temática, oferece condições para uma organização de ações de qualidade e intencional para efetivar uma prática capaz de propiciar os meios necessários para implementar uma Educação Infantil capaz de propiciar o desenvolvimento humanizador e as condições para desenvolver todas as suas potencialidades. Este levantamento, feito nas bibliotecas virtuais destas instituições, utilizando como descritores para a pesquisa Educação Infantil, Brincadeira e Teoria Histórico-Cultural, se apresentou da seguinte forma: Quadro 01 - Unesp de Marilia (Mestrado e Doutorado em Educação) ANO AUTOR (A) TITULO NIVEL 2012 Juliana Cristina O papel do brincar na Mestrado Bomfim apropriação da linguagem escrita 2013 Suzana Marcolino A mediação pedagógica na Doutorado Educação Infantil para o desenvolvimento da brincadeira de papeis sociais 2016 Renata Aparecida A situação social de Doutorado Dezo Singulani desenvolvimento das crianças de dois a três anos: um estudo com enfoque nas experiências vivenciadas na escola de Educação Infantil. 2016 Juliana Guimarães Currículo na Educação Mestrado Marcelino Akuri Infantil: implicações da Teoria Histórico-Cultural 2016 Maria Madalena Formação continuada em Doutorado Moraes Sant’Anna serviço para professores da Educação Infantil sobre o brincar FONTE: www.athena.biblioteca.unesp.br

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Quadro 02 - Unesp de Presidente Prudente (Mestrado) ANO AUTOR(A) TITULO 2012 José Ricardo Silva A Brincadeira na Educação Infantil: uma experiência de pesquisa e intervenção 2013 Natálya Camargo de Rotinas e mediações na Souza pré-escola FONTE: www.athena.biblioteca.unesp.br Quadro 03 - USP (Mestrado) ANO AUTOR(A) 2011 Nancy Romanelli

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Valéria de Oliveira Macedo Sitta

TITULO Individuação e escolarização de crianças de 0 a 5 anos: um cenário dinâmico no palco da Abordagem HistóricoCultural O brincar na diversidade das famílias: análise da narrativa de familiares sobre o brincar

NIVEL Mestrado

Mestrado

NIVEL Mestrado

Mestrado

FONTE: http://www.teses.usp.br

Quanto ao campus de Bauru e Araraquara (Unesp) nada foi encontrado nestes níveis e todos os trabalhos foram desenvolvidos pela área de Educação e nada também foi encontrado nas especializações da área de Psicologia. Muitos dos trabalhos produzidos por estes cursos de pósgraduação se embasam na Abordagem Histórico-Cultural e discutem questões importantes para este pressuposto, porém apenas os trabalhos destacados acima discutem especificamente a Brincadeira como meio promotor do desenvolvimento humanizador para a criança da Educação Infantil e a necessidade preeminente de uma organização intencional da escola para proporcionar os instrumentos para que ela se efetive. O texto de Suzana Marcolino, intitulado “A mediação pedagógica na Educação Infantil para o desenvolvimento da

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brincadeira de papéis sociais”, é o resultado de uma pesquisa realizada para investigar o desenvolvimento da brincadeira de papéis sociais e da mediação que alicerça a prática pedagógica de forma intencional a fim de criar condições para propiciá-la e, partindo de uma análise crítica, avança nas discussões para desenvolver a brincadeira e o que ela possibilita. Para isto a autora realizou três estudos, os dois primeiros casos foram acerca do tempo, espaço, objetos, os temas e conteúdos para realizar a brincadeira em duas escolas na cidade de Évora, em Portugal, e o último caso foi um experimento didático-pedagógico para verificar as ações e intervenções que afetam o desenvolvimento da brincadeira de papéis sociais e que elas são fundamentais para o desenvolvimento da atividade guia infantil e por isso deve ser objeto de intervenção do professor. A tese de Renata Aparecida Dezo Singulani, com o título “A situação social de desenvolvimento das crianças de dois a três anos: um estudo com enfoque nas experiências vivenciadas na escola de Educação Infantil”, é um estudo acerca do cotidiano das escolas de Educação Infantil que se apóiam em uma visão biológica sobre o desenvolvimento da criança e não oportunizam os meios para que os alunos possam desenvolver suas potencialidades e sua humanidade, este estudo foi realizado por meio da observação e da filmagem da rotina de uma escola. O foco não é a Brincadeira, mas sim a organização do espaço e da prática para a Educação Infantil, porém, ao longo do texto faz análises de diversas situações de brincadeiras observadas pela autora, como o relacionamento com o outro e o uso dos materiais disponíveis na sala de aula. A dissertação de “Juliana Guimarães Marcelino Akuri” com o título “Currículo na Educação Infantil: implicações da teoria histórico-cultural”, não se utiliza exclusivamente do papel da Brincadeira tendo em vista que ele se propõe ser instrumento de reflexão acerca do currículo da Educação Infantil, para isso realizou-se uma pesquisa qualitativa para responder a

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questão"Quais as implicações pedagógicas das proposições da teoria Histórico-Cultural para pensarmos o currículo na Educação Infantil?" e para isso, a autora utiliza-se de uma parte dele para discutir sobre a Brincadeira como Atividade Principal, portanto primordial para se pensar a concretização do currículo desta etapa escolar, e ainda que o professor deve ter consciência desta particularidade para organizar sua prática para mediar os meios que possibilitem à criança as vivências capazes de contribuir com o máximo desenvolvimento da inteligência e da sua personalidade. O trabalho de José Ricardo Silva, intitulado “A brincadeira na Educação Infantil: uma experiência de pesquisa e intervenção” é o resultado de uma pesquisa realizada pelo junto à uma sala de aula de uma creche em um município do Estado de São Paulo, onde depois de observar e discutir a prática à luz da teoria HistóricoCultural, propõe um projeto de intervenção para modificar a práxis a fim de fazer com que a brincadeira utilizasse seu lugar de destaque e de meio primordial para o desenvolvimento humanizador da criança inserida nesta creche. Já o trabalho de Natálya Camargo de Souza, “Rotinas e mediações na pré-escola”, é o resultado de uma pesquisa realizada para compreender como a mediação influi na rotina da pré-escola, na organização do tempo, do espaço e das atividades na Educação Infantil influencia no desenvolvimento da criança. Destacando que a mediação é uma categoria fundamental para a Abordagem Histórico-Cultural. A pesquisadora analisa documentos que oferecem suporte teórico na cidade de Presidente Prudente e conclui que a rotina é considerada como apenas gerenciadora do tempo e espaço, além disto, a criança não tem espaço para se expressar e expor suas dúvidas, que o processo de mediação ocorre de forma inapropriada e que o sistema apostilado restringe a execução de tarefas de forma decisiva no processo do desenvolvimento da escrita Nancy Romanelli com o seu trabalho “Individuação e escolarização de crianças de 0 a 5 anos: um cenário dinâmico no

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palco da abordagem Histórico-Cultural” faz uma discussão acerca do vínculo entre a individuação e o processo de escolarização da criança, para isso se apóia na teoria Histórico-Cultural e conclui que eles estão intimamente ligados e influem de forma decisiva no desenvolvimento da criança. Afirma ainda que o educador, por meio da oportunização de atividades como as expressões corporais, a brincadeira e outras atividades que desenvolvem a imaginação proporciona à criança, meios ricos para que ela possa desenvolver a individuação e ainda o desenvolvimento do pensamento que é fundamental para as fases seguintes da escolarização. Seguindo com a análise dos trabalhos, dois deles serão utilizados para uma apreciação mais detalhada, a fim de oportunizar meios importantes para esta discussão, que um do nível de mestrado e um no nível de doutorado. O primeiro dele é a dissertação de Juliana Cristina Bomfim, com o título “O papel do brincar na apropriação da linguagem escrita”, que faz uma discussão acerca do papel que a brincadeira exerce para o desenvolvimento da escrita da criança pré-escolar, pois a brincadeira é responsável por desenvolver as formas superiores de conduta, a função simbólica, essencial para o desenvolvimento da escrita, além da brincadeira proporcionar à criança a capacidade de utilizar um objeto dando a ele valor de outro e isto é fundamental para o processo da escrita, produto exclusivamente humano desenvolvido pelos antepassados em um processo longo e complexo de desenvolvimento da cultura. A autora construiu seu texto partindo de uma análise histórica sobre a brincadeira e como as condições sociais foram modificando o papel, as condições para que ela se realize e o espaço que está reservado para ela. Para Bomfim (2012), neste instrumento de pesquisa a Brincadeira “[...] se configura como uma linguagem peculiar da criança nessa etapa do desenvolvimento, pelo qual se desenvolve a imaginação que, a partir da experiência acumulada da criança, gera a produção de novas combinações [...]” que está ressaltada como

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sendo meio fundamentais, para desenvolver as funções psíquicas superiores e da imaginação que se constituiu como base para a realização da atividade criadora, que é uma especificidade puramente humana. A autora continua seu texto defendendo que todas estas condições, dadas pela atividade da Brincadeira, são fundamentais para que a criança vivencie todo o processo do desenvolvimento da escrita e crie formas para efetuar seus registros, que se inicia com os gestos, ainda bebê, e, ao longo do tempo, vai formando os esquemas psíquicos e, paulatinamente, substitui os símbolos por outros mais elaborados, como o gesto dando lugar aos rabiscos, os rabiscos dando lugar ao desenho e o desenho sendo substituído pelo código da escrita, até que encontre todas as condições para se apropriar da escrita e da sua função social. Para finalizar a dissertação, a autora afirma que é essencial para a constituição de uma educação que promova a criança, professores que concebam a Brincadeira como atividade capaz de desenvolver as funções psíquicas superiores, o que oportunizará a ela os meios para a aquisição do processo da escrita. Por isso, é necessário que o professor embase sua prática em atividades que proporcionem um espaço privilegiado para o brincar, proporcionando saltos qualitativos que promovam o desenvolvimento infantil. O último trabalho a ser discutido é uma tese de doutorado composta por Maria Madalena Moraes Sant’Anna, com o título “Formação continuada em serviço para professores da Educação Infantil sobre o brincar”, onde ela relata a experiência realizada com professores que participam de formação continuada, para conceber uma prática pedagógica que privilegie a Brincadeira para o aluno da Educação Infantil. A autora é Terapeuta Ocupacional e procura responder de que forma os professores da Educação Infantil, que atuavam com a Educação Especial, poderia elaborar estratégias para facilitar a participação e a aprendizagem das crianças nas brincadeiras.

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Para isto, ela ofertou um curso de formação continuada, para que os professores conhecessem a teoria e em seguida elaborassem um planejamento voltado para que a brincadeira pudesse ocupar seu lugar de protagonista para o desenvolvimento da criança da Educação Infantil, incluindo as que necessitam de atendimento diferenciado para as suas necessidades especiais. Este trabalho possibilitou aos professores subsídios importantes para o desenvolvimento da prática pedagógica. Além disso, ela afirma que, a Secretária de Educação da cidade estudada conseguiu efetivar mudanças na legislação quanto ao número de professores em sala de aula para atender a demanda exigida pela Educação Especial. Estes instrumentos foram de grande relevância para o objeto deste artigo, considerando que as especificidades destacadas aqui corroboram o papel fundamental da Abordagem HistóricoCultural como sendo uma teoria que oportuniza ao professor condições para que ele possa organizar sua prática buscando propiciar ao seu aluno os meios mais eficazes para a promoção das suas funções psíquicas, seja conhecendo o código da escrita ou suprindo as necessidades especiais dos alunos que apresentam esta condição e necessitam de meios para o seu desenvolvimento e o desenvolvimento de sua autonomia. CONSIDERAÇÕES FINAIS Finalizando este estudo é importante destacar que o contingente abarcado e o número pequeno de trabalhos que se apresentam como constituído para a reflexão acerca da Brincadeira e do seu papel indispensável para a Educação Infantil, com fundamentação teórica na Abordagem Histórico-Cultural, importantíssimo referencial para aqueles que atuam junto às crianças em idade para vivenciar esta etapa da Educação, se apresenta como sendo uma questão de análise importante.

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O número reduzido de trabalhos pode ter as mais variadas razões para ocorrer, porém, este artigo que se compôs aqui não abre espaço para esta análise, pois ela necessita de um espaço maior e de uma análise mais acurada que esta que se apresentou. Portanto, fica apenas destacado aqui o quanto os cursos de Pedagogia e Psicologia e suas pós-graduações possuem terreno fértil e pouco explorado para se debruçar sobre esta temática que necessita de olhares, estudos e vozes necessários para se voltarem para a constituição do indivíduo em condições de desenvolver suas potencialidades e sua humanidade.

REFERÊNCIAS AKURI, Juliana Guimarães Marcelino. Currículo na educação infantil: implicações da Teoria Histórico-Cultural. Dissertação (Mestrado em Educação). Marília, 2016. BARROS, Flávia Cristina Oliveira Murbach de. Práticas pedagógicas na educação infantil: a construção do sentido da escola para as crianças. Marília, 2014. BEZERRA, Janaína Pereira Duarte. Processo de desenvolvimento da imaginação na pré-escola: implicações de um programa de intervenção ludo-pedagógica a partir do gênero musical samba. Presidente Prudente, 2015 BOMFIM, Juliana Cristina. O papel do brincar na apropriação da linguagem escrita. Dissertação (Mestrado em Educação). Marília, 2012 GOBBO, Gislaine Rossler Rodrigues. A inserção da criança pré-escolar no universo da cultura escrita pela mediação do desenho. Marília, 2011. LEONTIEV, A.N. O Desenvolvimento do Psiquismo. 4. ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1978. ______. Uma Contribuição para a Teoria do Desenvolvimento da Psique Infantil. In: Vygotsky, L. S., LURIA A. R., LEONTIEV A., N. Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem. São Paulo: Ícone/Edusp, 1989.

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______ Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In: L. S. Vigotskii, A. R. Luria & A. N. Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem (9ª ed.). São Paulo: Ícone. 2001. LUCAS, Maria Angélica Olivo Francisco. MACHADO, Maria Cristina Gomes. Percalços da Educação Infantil como direito da criança: análise da história e da legislação das décadas de 1980 e 1990 Práxis Educativa. Brasil, 2012, Disponível em MARCOLINO, Suzana. A mediação pedagógica na educação infantil para o desenvolvimento da brincadeira de papéis sociais. Tese (Doutorado em Educação). Marília, 2013. ROMANELLI, Nancy. Individuação e escolarização de crianças de 0 a 5 anos: um cenário dinâmico no palco da Abordagem Histórico-Cultural. Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Educação). Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2011. SANT’ANNA, Maria Madalena Moraes. Formação Continuada em Serviço para professores da Educação Infantil sobre o brincar. Tese (Doutorado em Educação). Marília, 2016 SINGULANI, Renata Aparecida Dezo. A situação social de desenvolvimento das crianças de dois a três anos: um estudo com enfoque nas experiências vivenciadas na escola de educação infantil. Tese (Doutorado em Educação). Marília, 2016. SILVA, José Ricardo. A Brincadeira na Educação Infantil (3 a 5 anos): uma experiência de pesquisa e intervenção. Dissertação (Mestrado em Educação) Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista Presidente Prudente, 2012. SITTA, Valéria de Oliveira Macedo. O brincar na diversidade das famílias: análise da narrativa de familiares sobre o brincar. Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Educação). Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2014. SOUZA, Natálya Camargo de. Rotinas e mediações na pré-escola. Dissertação (Mestrado em Educação) Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista Presidente Prudente, 2013. VYGOTSKY, L. S. Obras escogidas. Madrid: Visor, v.4. 1996.

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PROGRAMA MAIS EDUCAÇÃO: CURRÍCULO E A FORMAÇÃO DO SUJEITO Laurenice de Fátima Coutinho de Carvalho1 Maria Silvia Rosa Santana2

INTRODUÇÃO No Brasil, a história da educação se desenvolve juntamente com a história social e política do país e a discussão sobre os fatos que dizem respeito à institucionalização do currículo na escola como um meio de conceber uma educação que agregue valores aos diferentes grupos sociais, estão sendo estudados por diversas áreas do conhecimento, mas em especial no campo da Educação, setor este que busca compreender de forma dialética a exclusão social produzida, por um currículo homogêneo, cuja finalidade é desconsiderar as individualidades dos sujeitos. Desta maneira, faz com que compreendamos a desclassificação das classes subjulgadas, fenômeno inerente às relações de poder, como os grupos étnicos, de gênero e classe social, privando-os de Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Unidade Universitária de Paranaíba. Vínculo institucional Secretaria Municipal de Educação de Paranaíba/MS. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Práxis Educacional (GEPPE/UEMS), na Linha de Pesquisa Teorias e Práticas Educacionais. E-mail: [email protected] 2Doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP/Marília. Docente do PPGE, dos cursos de Pedagogia e Ciências Sociais, na Unidade Universitária de Parnaíba, da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, UEMS. É coordenadora da Linha de Pesquisa Teorias e Práticas Educacionais, do Grupo de Estudos e Pesquisas em Práxis Educacional (GEPPE/UEMS), e pesquisadora do Grupo Implicações Pedagógicas da Teoria Histórico-Cultural (UNESP/Marília). E-mail: [email protected] 1

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acesso ao capital cultural, conforme Bourdieu (1987 apud SILVA, 1995, p. 28): "O valor relativo das diferentes espécies de capital econômico e cultural ou das várias espécies de capital cultural [...] é continuamente questionada e reavaliada através de lutas para aumentar ou desvalorizar um ou outro tipo de capital." Nessa dinâmica podemos afirmar que as relações de poder que permanecem no decorrer da história das civilizações concretizam as divisões de classes, por meio da exclusão das minorias, mulheres, negros e analfabetos. No entanto, a recontextualização do discurso da reforma curricular identificou campos discursivos de novas relações de poder instituídas para descaracterizar essa regulação que propõe cultivar e manter uma sociedade na qual prevalece o poder hierárquico e hegemônico. Regulação essa sutilmente institucionalizada por uma sociedade patriarcal, branca, divida em classes que formam identidades sem deixar perceber-se, afirma Apple (2006). É sabido que são muitos aqueles que sofrem alguma restrição que os impeça de incluir-se nestes grupos que fomentam o currículo, na intenção de cultivar o poder hegemônico classista arraigado em nossa sociedade, como se todos os sujeitos tivessem direitos iguais, com o pensamento de que somente não conseguem atingir seus objetivos aqueles que não se esforçam. Sacristán (2013, p. 20) considera que, currículo é o conjunto de valores, comportamentos e regras que norteiam a ordem dos interesses de uma sociedade. Para o autor citado, currículo significa um enquadramento dos conhecimentos imposto pela escola aos professores e aos estudantes, e com isso o currículo é uma seleção organizada dos conteúdos. O currículo idealizado, na medida em que o sujeito deixa de participar plenamente de vários segmentos da sociedade, faz com o mesmo seja instrumento de afastamento de direitos adquiridos por manifestações dos diferentes grupos sociais durante a história. Louro (1977, p. 61) defende que

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Por um aprendizado eficaz, continuado e sutil, um ritmo, uma cadência, uma disposição física, uma postura, parecem penetrar nos sujeitos, ao mesmo tempo em que esses reagem e, envolvidos por tais dispositivos e práticas, constituem suas identidades "escolarizadas". Gestos, movimentos, sentidos são produzidos no espaço escolar e incorporados por meninos e meninas, tornam-se parte de seus corpos. Ali se aprende a olhar e a se olhar, se aprende a ouvir, a falar e a calar; se aprende a preferir. Todos os sentidos são treinados, fazendo com que cada um e cada uma conheça os sons, os cheiros e os sabores "bons" e decentes e rejeite os indecentes; aprenda o que, a quem e como tocar (ou, na maior parte das vezes, não tocar); fazendo com que tenha algumas habilidades e não outras... E todas essas lições são atravessadas pelas diferenças, elas confirmam e também produzem diferença. Evidentemente, os sujeitos não são passivos receptores de imposições externas. Ativamente eles se envolvem e são envolvidos nessas aprendizagens — reagem, respondem, recusam ou as assumem inteiramente.

Nesse sentido, o currículo educacional é implementado com o propósito de domesticar ou manter o poder dos grupos, funcionando como forma de operacionalização do controle do comportamento dos indivíduos, ocasionado por métodos educacionais eficientes, e que pouco se faz pela formação educacional nos diferentes níveis de ensino. De acordo com Sacristán (2013, p. 20, grifo meu) Esse poder regulador ocorre – é exercido – sobre uma série de aspectos estruturantes, os quais, juntos com os efeitos que são provocados por outros elementos e agentes, impõem suas determinações sobre os elementos estruturados: elementos ou aspectos que são afetados. Por exemplo, sobre quando se aprende, que conhecimentos são adquiridos, que atividades são possíveis, que processos são desencadeados e que valor eles têm, o ritmo e a sequência da progressão do ensino e da aprendizagem, o modelo de indivíduo normal, etc.

O Programa Mais Educação é uma iniciativa do Governo Federal com o objetivo de propiciar espaços educativos e estruturais na intenção que haja condições necessárias para a implementação da Educação Integral nas escolas brasileiras atendendo assim crianças do Ensino Fundamental I e II e que seus educandos, por meio de um currículo diferenciado, alcancem o

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desenvolvimento pleno e integral durante o período em que ficam a mais na escola praticando atividades diversificadas. O PME defende melhores condições e espaços educativos que venham agregar as diversidades culturais que existem nas instituições escolares e suas relações com o seu entorno. (MEC) Documento do Ministério da Educação (BRASIL, 2012, p. 3.) registra que “Trata-se da construção de uma ação intersetorial entre as políticas públicas educacionais e sociais, contribuindo, desse modo, tanto para a diminuição das desigualdades educacionais, quanto para a valorização da diversidade cultural brasileira”. No entendimento de que o currículo vem se constituindo como um bem necessário e não apenas um manual específico para a formação dos indivíduos, seria importante considerar e aprofundar estudos a respeito dos elementos significativos que compõem a constituição curricular do PME. Elementos esses que trarão conhecimentos sobre como a proposta governamental sobre como o mesmo vai promover o desenvolvimento de habilidades e atitudes indispensáveis à formação educacional e respeito às culturas, que não podem deixar de ser consideradas nas especificidades da população. Apple (2006, p. 68) denuncia que As escolas, portanto, “produzem” ou “processam” tanto o conhecimento quanto as pessoas. Em essência, o conhecimento formal e informal é utilizado como um filtro complexo para “produzir” ou “processar” pessoas, em geral por classes; e ao mesmo tempo, diferentes aptidões e valores são ensinados a diferentes populações, frequentemente também de acordo com a classe (e o sexo, e a raça) na verdade, para essa tradição mais crítica, as escolas recriam de maneira latente disparidades culturais e econômicas, embora isso não seja, certamente, o que a maior parte das escolas pretenda.

Essa organização para a elaboração do currículo da Educação Integral, segundo o MEC (BRASIL, 2009, p. 25), “não replica o mesmo da prática escolar, mas amplia tempos, espaços e conteúdos, buscando constituir uma educação cidadã, com contribuições de outras áreas sociais e organizações da sociedade civil”. Nesse sentido, pode-se afirmar que a proposta de Educação

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Integral deve não só destacar os conteúdos relacionados às disciplinas, como também estabelecer ações com a perspectiva de uma transformação do conhecimento institucionalizado, e que este compreenda a importância de ouvir e perceber os diferentes segmentos sociais. Uma das preocupações ao organizar o currículo é discutir o conhecimento e fazer as relações com o cotidiano dos alunos, considerando que as políticas atuais enfatizam o papel das vivências, como meio de elevar o desenvolvimento dos alunos pela interação e interatividade com os conteúdos e suas implicações sociais. Mello (2009, p. 368) aponta que No processo de apropriação da cultura e de reprodução das qualidades humanas que lhes são externas no nascimento, o indivíduo – por meio de sua atividade que se realiza, inicialmente, como social e coletiva – aprende os modos de uso dos objetos da cultura, e, ao exercitar as faculdades envolvidas no uso social desses objetos, internaliza essas faculdades como qualidades humanas. Na escola, esse processo de apropriação da cultura e de formação e desenvolvimento das qualidades humanas históricas e socialmente criadas e mediatizado direta ou indiretamente pelo professor.

Mas, o que vemos na maioria de nossas escolas é a manutenção de um ensino fragmentado, formando indivíduos passivos, reproduzindo a incoerência de um discurso muitas vezes dito diferente, cujo principal instrumento usado na sua manutenção é o currículo. 1. Currículo e sua função na perspectiva de inclusão social Partindo da premissa de que o currículo é um processo em construção permanente, sendo que o mesmo forma atitudes, comportamentos, valores, orientações, dentre outros aspectos que consentem ao ajustamento dos sujeitos a sociedade, cabe, então, discutirmos sua relação social com os sujeitos em determinado contexto das relações de poder.

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Sendo assim, os critérios de composição do currículo escolar passaram a ser questionados pelas teorias críticas, que conceituam o currículo como uma ação que pensa e reproduz uma sociedade e para tanto deve ter a participação de todos os segmentos sociais. Para melhor entendimento faremos uma análise das teorias não críticas, que consistem em reproduzir o modelo capitalista vigente, por meio do sistema de ensino como violência simbólica, como aparelho ideológico do Estado ou da classe dominante, seguindo um modelo de escola dualista. Saviani (1999, p.37), nesse sentido, confirma que “Enquanto aparelho ideológico, a escola cumpre duas funções básicas: contribui para a formação da força de trabalho e para a inculcação da ideologia burguesa. Cumpre assinalar, porém, que não se trata de duas funções separadas”. A educação que deveria ser o meio de conceber a liberdade no estado democrático de direito, na intenção de formar cidadãos, acaba se tornando um instrumento de manipulação e de homogeneização do pensamento da sociedade, legitimando as diferenças sociais e a ideologia das classes dominantes. Já as Teorias Críticas veem na escola a possibilidade de transformação do sujeito, com base na dialética do pensamento marxista, de que os indivíduos são um produto do sistema da reprodução cultural e social, e que por meio da apropriação desse patrimônio cultural, das relações sociais e pela conscientização, alcançarão a autonomia necessária para fazer as mudanças indispensáveis na sociedade. Saviani (1999, p. 42) coloca que Do ponto de vista prático, trata·se de retomar vigorosarnente a luta contra a seletividade, a discriminação e o rebaixamento do ensino das camadas populares. Lutar contra a marginalidade através da escola significa engajarse no esforço para garantir aos trabalhadores um ensino da melhor qualidade possível nas condições históricas atuais. O papel de uma teoria crítica da educação é dar substância concreta a essa bandeira de luta de modo a evitar que ela seja apropriada e articulada com os interesses dominantes.

Desta maneira, podemos concluir que currículos que desconsideram esses segmentos são produtos de uma escola

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segregadora, enfatizada pelo trabalho pedagógico de alienação dos sujeitos, muitas vezes implícito nas práticas de diversos agentes e instituições sociais. Apple (2000, p. 53, grifos meus) relata que O currículo nunca é simplesmente uma montagem neutra de conhecimentos, que de alguma forma aparece nos livros e nas salas de aula de um país. Sempre parte de uma tradição seletiva, da seleção feita por alguém, da visão que algum grupo tem do que seja o conhecimento legítimo. Ele é produzido pelos conflitos, tensões e compromissos culturais, políticos e econômicos que organizam e desorganizam um povo. […] a decisão de definir o conhecimento detido por alguns grupos como o mais legítimo, como o conhecimento oficial, enquanto o de outros grupos dificilmente chega a ver a luz do dia, revela algo extremamente importante sobre quem tem o poder na sociedade.

O grande desafio quanto a formulação curricular da educação brasileira é desfazer os conceitos estruturais do currículo como mecanismo de seleção de conteúdos baseados em propostas que proporcionem as atividades relacionadas aos acontecimentos dos grupos que se dizem detentor do poder e produtor da cultura que satisfazem a manutenção ideológica do poder da classe dominante na sociedade. Descrito por Sacristán (2013, p. 23/24) que A importância fundamental do currículo para escolaridade reside no fato de que ele é a expressão do projeto educacional que as instituições dizem que irão desenvolver com os alunos (e para eles) aquilo que consideram adequado. Por meio desse projeto institucional, são expressadas forças, interesses, ou valores e preferências da sociedade, de determinados setores sociais, das famílias, dos grupos políticos, etc.

Portanto, o currículo deve ser pensado na intenção de que não seja discutido somente para agregar novas disciplinas, mas sim em momentos diversos que possibilitem análises, na intenção que sejam tomadas decisões sobre quais pressupostos políticos, ideológicos, filosóficos serão selecionados para encaminhar a sua prática educativa, uma vez que por meio deles muitos preconceitos e discriminações podem ser transmitidos.

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O currículo escolar não se restringe apenas ao saber sistematizado de uma cultura dominante, mas incorpora também as culturas dos diferentes grupos de uma sociedade, as quais envolvem toda uma teia de relações sociais, onde estes saberes são construídos. O autor enfatiza o currículo como a base fundamental na construção das identidades culturais e psicológicas. Portanto, o currículo deve lidar com as questões de gênero, raças e idades como uma questão histórica e política, protagonizada como um processo patriarcal. Mello (2010, p.342) reconhece que “A cultura, do ponto de vista histórico-cultural, é a fonte da formação e desenvolvimento das qualidades humanas e, por isso, referência essencial no processo de educação-humanização que se realiza na escola. O currículo pensado atualmente favorece a sociedade capitalista e seu poder atual vigente, sendo que sua proposta educacional não faz referências à diversidade social, das categorias dos grupos que a formam, desvalorizando uma cultura em detrimento a outra, sendo que os conceitos agregados no currículo vigente determinam um valor desejável de sujeito. Esse modelo de educação visa reproduzir a cultura, por isso ela está sendo questionada na intenção de que se construa uma nova escola para uma nova sociedade. Sacristán (1999, p. 172) defende que A modelagem científica da idéia de sujeito da educação e a dos processos educativos esquecem uma conotação ilustrada moderna fundamental, que talvez seja o desafio do programa de progresso que mais precisamos descobrir: que a educação é um instrumento para a liberdade e a autonomia do sujeito, ou seja, para que este possa expressar-se como ator. Somente partindo da necessidade de potencializar o sujeito (com suas circunstâncias particulares), para facilitar sua independência, sua liberdade e seu compromisso com causas sociais, poderemos libertar-nos do dilema que se apresenta entre um indivíduo reduzido à vida privada, em um mundo livre de intercâmbios comerciais ou de informação, e da tentação de cair na identificação com a esfera fechada da cultura do grupo ou da comunidade de referência.

O currículo estruturado, segundo Sacristán (2013), tem a capacidade de organizar a escolarização, com regras, normas, as

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práticas educacionais, o que é sucessivamente alimentado pela objetividade da sociedade, por uma organização social baseada na divisão de classes, ou seja, pela experiência histórica da reprodução e produção de identidades sociais combatidas pelos movimentos das minorias, confirmando que o currículo, na maioria das vezes, se constitui como reacionário a conquistas de direitos dos subjulgados. Portanto, a prática curricular é um processo produtivo complexo e não se restringe à relação ensino e aprendizagem da pedagogia tradicional, nem ao embate de ideologias das teorias críticas. A escola e o currículo praticado deixam de analisar as novas compreensões sobre o papel da cultura popular que estão no centro de nossas vidas cotidianas. A crítica elencada pelo autor sugere ações concretas para que essas relações de poder possam ser condenadas, fazendo com que essas compreensões sejam transformadas em propostas curriculares. 2. O discurso e a construção curricular do Programa Mais Educação O discurso que foi levantado em 2007 sobre a implantação do Programa Mais Educação com a intenção de melhorar a qualidade do ensino e da aprendizagem, teve como proposta curricular abarcar ações que proporcionassem o aprendizado dos educandos de maneira diferenciada e contextualizada com o meio social no qual os alunos estão inseridos, ou seja, e ensino e aprendizagem devem ser efetivados pelas relações dos conteúdos com o universo cultural do seu entorno. Sabendo que o Programa Mais Educação foi implementado como parte estruturante para concretizar a Educação Integral nos sistemas de ensino, por meio de projetos e os diferentes espaços educativos, com a participação dos diferentes universos sociais, o mesmo tem como foco viabilizar espaços e estruturar o ambiente escolar para que futuramente esses sistemas estejam preparados

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para protagonizar a Educação Integral nas escolas brasileiras. MEC (BRASIL, 2012): No entanto, as características elencadas pelas orientações são sucintas de análise, devido ao fato de que as articulações consideradas pelo documento trazem preposições implícitas na organização curricular, a redação deixa claro a ideia de que a Educação é responsabilidade de todos os segmentos da sociedade, cabendo às esferas públicas e privadas sua parcela de “culpabilidade” educativa, por meio das articulações com os profissionais da educação e da comunidade escolar externa, que idealiza que a educação tem que estar vinculada à vida social do educando. Esse discurso se encontra no item VI “fomentar a participação das famílias e comunidades nas atividades desenvolvidas, bem como da sociedade civil, de organizações nãogovernamentais e esfera privada”. Ao considerar que a Educação é um direito de todos e um dever do Estado juntamente com a família e sociedade, garantido tanto na Constituição Federal e na LDBN, os requisitos para adesão comprovam a dicotomia da educação brasileira, com programas políticos de inclusão educacional implementados com critérios de seleção por déficit de aprendizagem. Concernente a isso, o PME/MEC (BRASIL, 2012, p. 7) determina para as unidades escolares que: O Programa Mais Educação estabelece os seguintes critérios para seleção das unidades escolares em 2012: escolas contempladas com PDDE/Integral no ano foram contempladas com o PDE/Escola e que possuam o IDEB abaixo ou igual a 4,2 nas séries iniciai ou superior a 50% de estudantes participantes do Programa Bolsa Família; escolas que participam do Programa Escola Aberta; e escolas do campo.

Tais prerrogativas do PME consistem em basear-se em pressupostos de que somente indivíduos que estão com distorção idade/ano escolar tenham direito a uma educação de qualidade,

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com a intencionalidade dos sujeitos equipararem-se aos demais. No entanto, é preciso reconhecer que as desigualdades, no que diz respeito à educação, vem de um processo histórico que oferece a educação escolarizada de classes. Sendo assim, o MEC/PME (BRASIL, 2012, p.9) registra: Recomenda-se às Unidades Executoras Próprias (UEx) que estabeleçam critérios claros e transparentes para a gradativa implementação da ampliação da jornada escolar na perspectiva da Educação Integral, selecionando, preferencialmente, para a participação no Programa: estudantes que apresentam defasagem idade/ano; estudantes das séries finais da 1ª fase do ensino fundamental (4º e/ou 5º anos), onde existe maior saída espontânea de estudantes na transição para a 2ª fase; estudantes das séries finais da 2ª fase do ensino fundamental (8º e/ou 9º anos), onde existe um alto índice de abandono após a conclusão; estudantes de anos/séries onde são detectados índices de evasão e/ou repetência; estudantes beneficiários do Programa Bolsa Família.

Percebe-se pelo discurso articulador do PME que sua proposta da direito a todos a uma educação de qualidade pautada por organização de um currículo que atenda e transforme os espaços educativos, porém quando verificamos os critérios de adesão podemos notar que estamos voltando à educação compensatória. Nesse sentido, Duarte (1986, p. 175) define: Educação compensatória: Conjunto de medidas políticas e pedagógicas visando compensar as deficiências físicas, afetivas, intelectuais e escolares das crianças das classes cultural, social e economicamente marginalizadas, a fim de que elas se preparem para um trabalho e tenham oportunidade de ascensão social. 1. A educação compensatória é um termo que surgiu durante a Revolução Industrial. 2. Esse termo é usado, em geral, no pré-escolar e nas séries iniciais do 1º grau.

Casos como estes já fizeram com que outras propostas de Educação Integral se perdessem, por se caracterizarem como educação assistencialista. Pensamos que uma educação para todos não viabiliza um processo seletivo de contemplação a indivíduos, processo esse que permite a exclusão de parte dos indivíduos que

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estão fora dos “critérios” exigidos para a adesão e acesso à Educação Integral, na qual, em tese, seus princípios são elaborados para gerar igualdade. Ao considerar que escolas e educandos, para aderirem ao PME, estejam abaixo dos níveis de exigência desejados para os padrões necessários para adaptação à sociedade capitalista, concentrada num sistema econômico e político que divide o processo educacional em vertentes diferenciadas, no que tange à apropriação do ensino e aprendizagem, desconsidera-se que os sujeitos aprendem e se desenvolvem de modos diferentes e em momentos diversos. Sacristán (1999, p. 61) afirma que o currículo é a ligação entre a cultura e a sociedade. É com base nesse caráter contraditório que tecemos nossa análise à implantação de programas como a Educação Integral, das propostas educacionais elencadas no PME, caracterizando sua dualidade e ensino compensatório. Para isso, se faz necessário levantar questionamentos em relação à importância de entendermos quem são os sujeitos que estão envolvidos nesse processo, porque classificá-los e, principalmente, como eles chegaram a estar em situação de defasagem idade/ano, quando sabemos que os sujeitos aprendem por meio das relações sociais que a escola tem propiciam a seus alunos. Podemos notar que, a medida que os sistemas de ensino usam de critérios para a escolha de quem participa ou não do processo educativo, deixa de dar oportunidades aos sujeitos de estarem inseridos na educação de qualidade. A escola como protagonizadora das atividades de ensino e aprendizagem, em seus arranjos sociais, acabam segregando parte de seus educandos sobre o que e para quem ensinar. Apple (2006, p. 83) destaca que [...] É, mais do que isso, uma forma de investigação orientada criticamente, no sentido que escolhe concentrar-se em como esse conhecimento, de acordo com sua distribuição nas escolas, pode contribuir para um desenvolvimento cognitivo e vocacional que fortaleça ou reforce os arranjos educacionais existentes (e em geral problemáticos) na sociedade. Em termos claros, os conhecimentos abertos e ocultos encontrados nos ambientes escolares, e os

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princípios de seleção de organização e avaliação desse conhecimento, são seleções governadas pelo valor e oriundas de um universo muito mais amplo de conhecimento possível e de princípios de seleção. Portanto, não devem ser aceitos como dados, mas devem se problematizados – colocados entre parênteses, se quiserem – de maneira que as ideologias sociais e econômicas e os significados padronizados institucionalmente que estão por detrás deles possam ser examinados com cuidado.

Buscamos aqui promover uma reflexão sobre como são organizadas as atividades que são desenvolvidas pelas escolas durante o período que fazem o atendimento educacional dos educandos, para possibilitar maior clareza do papel da Educação Integral e do Programa Mais Educação como propostas de educação inclusiva e que venha contribuir para a expressão criativa dos participantes, por meio de suas atividades pedagógicas. De acordo com o MEC (BRASIL, 2012, p. 5), as ações serão realizadas por macros campos, como mostra o recorte a seguir: [...] As atividades fomentadas foram organizadas nos respectivos macrocampos: Acompanhamento Pedagógico; Educação Ambiental e Desenvolvimento Sustentável; Esporte e Lazer; Educação em Direitos Humanos; Cultura, Artes e Educação Patrimonial; Cultura Digital; Prevenção e Promoção da Saúde; Comunicação e uso de Mídias; Investigação no Campo das Ciências da Natureza e Educação Econômica/Economia Criativa.

Dentro desses macros campos serão eleitas as atividades a ser desenvolvidas, sendo que no macro campo Acompanhamento Pedagógico é obrigatório a adesão em pelo menos uma das atividades. O Acompanhamento Pedagógico é composto pelas disciplinas de Ciências, História e Geografia, Letramento e Alfabetização, Línguas Estrangeiras, Matemática e Tecnologias Educacionais. Como proposto pelo MEC (BRASIL, 2012, p. 9) o documento direciona que A escola poderá escolher três ou quatro macrocampos, dentro destes, poderá optar por cinco ou seis atividades para serem desenvolvidas com os estudantes. Porém, o macrocampo Acompanhamento Pedagógico” é

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obrigatório para pelo menos uma atividade. É fundamental que a escola estabeleça relações entre as atividades do Programa Mais Educação e as atividades curriculares.

As notas do PME e Educação Integral demonstram que as atividades vêm compartimentadas em uma estrutura fechada em macros campos, dando a entender que a integração das disciplinas ainda é um conceito a ser apreciado. Diante deste discurso podemos notar equívocos em relação a proposta, reverenciada pelo próprio documento: “Trata-se da construção de uma ação intersetorial entre as políticas públicas educacionais e sociais, contribuindo, desse modo, tanto para a diminuição das desigualdades educacionais, quanto para a valorização da diversidade cultural brasileira”. (BASIL, 2012, p.3) Além disso, o discurso sobre o papel qualitativo do outro para o desenvolvimento humano, as mudanças sociais da escola, tornase uma relação dialética entre os sujeitos que a integram. Para Sacristán (2000, p. 15) “O currículo é uma práxis antes que um objeto estático emanado de um modelo coerente de pensar a educação ou as aprendizagens necessárias das crianças e dos jovens, que tampouco se esgota na parte explícita do projeto de socialização cultural nas escolas”. Devemos ter ciência de que a conjectura política educacional do Programa Mais Educação e da Educação Integral, que trata de oferecer educação de qualidade na perspectiva da escola que educa, protege e é um dever de todos, contraditoriamente prevê em suas normas e regras critérios de seleção de adesão ao PME, dessa maneira negligenciando sujeitos que fazem parte do mesmo contexto educacional, assim como normatiza o trabalho pedagógico e forma fragmentada e reprodutora, não permitindo avanços significativos na aprendizagem. Tal premissa nos faz pensar que a Educação institucionalizada está fazendo seu papel, deixando claro que são os indivíduos que são incapazes de aderirem ao processo educacional, reduzindo suas capacidades de aprendizagem a partir do grupo social no qual estão envolvidos.

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3. Considerações finais O currículo institucionalizado comprova que suas inovações, sem um estudo aprofundado, podem afetar de forma contundente essa nova formação da sociedade, então é fundamental promover um currículo sob uma perspectiva mais engajada politicamente, tornando-o mais democrático, estabelecendo-se um diálogo entre os agentes da educação, de modo a garantir uma participação genuína de todos no processo de ensino e aprendizagem. É importante ressaltarmos que a proposta curricular do PME procura estabelecer vínculos sociais ao seu modelo de ensino e aprendizagem, no entanto peca em seus princípios quando limita o acesso de todos, por meio de requisitos seletivos, para que a escola e o educando possam ser incluídos no projeto. Sendo assim, notamos que sua proposta recai numa educação compensatória, baseada no fracasso escolar e buscar terceirizar o quadro educacional como um problema de todos os segmentos da sociedade. As discordâncias que temos apresentado, em relação a determinados aspectos curriculares, torna-se um posicionamento sobre a importância da discussão sobre os critérios de seleção dos sujeitos e a construção do currículo, que acaba por torna-se um processo excludente. Não poderíamos falar de currículo, nos moldes de “educação para todos”, sem apresentar uma avaliação sobre a relevância do mesmo na construção de uma sociedade na qual todos os grupos sejam ouvidos. Até porque, como dissemos, estamos levantando uma crítica na intenção de somar esforços com todos os que buscam contribuir para a continuidade da construção de um currículo que atenda a todos. Isso significa que temos como finalidade a superação da escola dividida por classes, etnias ou gêneros, pautada em um currículo integrado, no qual todos os segmentos da sociedade tenham participação ativa, na intenção que sejam respeitados os sujeitos em seu processo de humanização.

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REFERÊNCIAS APPLE, M. W. Ideologia e currículo. Porto Alegre: Artmed, 2006. ______. Política cultural e educação. São Paulo: Cortez, 2000. BRASIL. Educação Integral: texto referência para o debate nacional. Série Mais Educação. Brasília: Ministério da Educação, Secad, 2009. ______. Programa Mais Educação Passo‐a‐passo. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/passoapasso_maiseducacao.pdf. Acesso em: 20.ago.2012. ______. Manual Operacional de Educação Integral. Brasília/DF. 2012. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman &view=download&alias=15548-d-c-n-educacao-basica-novapdf&Itemid=30192 DUARTE, S. G. Dicionário brasileiro de educação. Rio de Janeiro: Edições Antares: Nobel, 1986. LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pósestruturalista. Petrópolis, Vozes, 1997. MELLO, S. A. Marx, Gramsci e Vigotsk: aproximações. Marília, SP: Cultura Acadêmica, 2009. ______. O ensinar e aprender a linguagem escrita na perspectiva Histórico-Cultural. Psicologia Política, vol. 10, nº 20, pp. 329-343, jul./dez. 2010. SACRISTÁN, J. G. Saberes e incertezas sobre o currículo. Tradução: Alexandre Salvaterra. Porto Alegre: Penso, 2013. _____. Poderes instáveis em educação. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999. _____. O currículo uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre: Artmed, 2000. SAVIANI, D. J. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação e política! Dermeval Saviani.- 32. ed.- Campinas, SP: Autores Associados, 1999. - (Coleção polêmicas do nosso tempo; v.S). SILVA, G. O. do V. Capital Cultural, Classe e Gênero em Bourdieu. INFORMARE - Cad Prog. Pós-Grado Cio Inf., v.l, n.2, p.24-36, jul./dez. 1995 – Disponível em http://ridi.ibict.br/bitstream/123456789/215/1/ OlintoSilvaINFORMAREv1n2.pdf - acesso em 08 de jul. 2016.

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ENSINO COLABORATIVO: CONTRIBUIÇÕES AO DEBATE PARA UMA ESCOLA INCLUSIVA Patrícia Bispo De Araújo1 Maria José de Jesus Alves Cordeiro2

Introdução Na última década, a temática de educação inclusiva tem sido alvo de abordagem e debates nos meios acadêmicos. Devido ao objeto inclusão ser demasiadamente amplo, nesse estudo a concepção de uma escola inclusiva como aquela que inclui a todos os alunos, tornou-se meta. Diante das possibilidades levantadas, o trabalho docente conjunto, articulado entre os/as professores/docentes de educação básica que ministram aulas em salas de ensino comum (de 1º ao 5º ano) e aqueles que realizam o atendimento educacional especializado (AEE) a discentes com deficiência, passou a ser a segunda meta desse estudo.

Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto-Sensu em Educação da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Unidade Universitária de Paranaíba. Membro do CEPEGRE. Supervisora de ensino vinculada a Secretaria Municipal de Educação de Araçatuba/SP. E-mail: [email protected] 2Doutora em Educação - Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC/SP. Docente do Curso de Pedagogia e do Mestrado Profissional Ensino em Saúde na Unidade Universitária de Dourados e do Mestrado em Educação da Unidade Universitária de Paranaíba - Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). Líder do Grupo de Pesquisa em Educação, Gênero, Raça e Etnia – GEPEGRE/CNPQ, e coordenadora do Centro de Estudos, pesquisa e Extensão em Educação, Gênero, Raça e Etnia – CEPEGRE/UEMS. Email: [email protected] 1

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Para o enfrentamento desses aspectos, recorre-se a pesquisa por referenciais teóricos com o fito de apresentar ferramentas que possibilitem a integração e colaboração entre o trabalho docente, a fim de compor concepções existentes para uma base teórica com soluções para a construção de uma escola inclusiva. Diante do cenário atual da educação especial no ensino nacional, torna-se possível demonstrar a relevância do tema proposto nesta pesquisa, no levantamento de aportes teóricos para reflexão sobre o ensino colaborativo entre docentes no processo de ensino-aprendizagem junto aos/as discentes que necessitam de AEE e a possível contribuição para a práxis diária no processo de inclusão de todos. A inclusão no ensino é paradigma enfrentado pelas escolas brasileiras, por diferentes instâncias públicas e privadas, nas esferas Federal, Estadual e Municipal. Políticas públicas nacionais estabelecem o direito das pessoas com deficiências em receber AEE, dispõe sobre o dever da rede regular de ensino em oferecer o atendimento e integração do/a discente com deficiência e o seu direito ao acesso e permanência, conhecimento e prática, direito à cidadania (BRASIL, 1988, 1996, 1999). É pertinente ressaltar, nesse contexto, que qualquer unidade de ensino que almeje tornar-se geradora de inclusão precisa proporcionar os meios necessários para isso acontecer, desde a oferta do AEE à maior interação e conhecimento por parte dos/as docentes de sala comum e de AEE, em colaboração e união em equipe. Quanto a isso, Prieto (2003) defende a necessidade do sistema de ensino, por dever e não obrigatoriedade em garantir a formação continuada do/a docente, bons salário e jornada de trabalho e assim possibilitar aprimoramento profissional e estudo constante. Uma formação continuada em serviço existente para os/as docentes poderá ampliar conhecimentos e ambicionar um melhor ensino aos/as discentes inclusos e demais.

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Diante do exposto, propiciar embasamento teórico sobre possibilidades de melhoria no ensino inclusivo por meio de parceria ou colaboração docente permitirá a reflexão sobre a existência de interação entre os/as docentes durante a formação em serviço e/ou na prática diária nas suas escolas, bem como a possível vinculação ao sucesso da inclusão escolar. Nesse contexto, novos elementos de conhecimento e prática traz possibilidade de reflexão da concepção do trabalho colaborativo entre os/as docentes de uma escola como forma de favorecer a aprendizagem efetiva dos alunos, com deficiência ou não, conforme será discorrido neste estudo. É válido esclarecer que o termo ensino colaborativo, foco desse estudo, poderia ser denominado também de coensino, devido à divisão de responsabilidade dos docentes de sala comum e de AEE nas ações de planejar, instruir e avaliar unicamente com o objetivo de atender as demandas na inclusão de discentes com necessidades educacionais especiais (MENDES, 2006). O desenvolvimento deste estudo deu-se por meio de referenciais teóricos, selecionados em bancos de dados oficiais, tais como: literaturas específicas, teses, bibliotecas universitárias, periódicos e dissertações, pelo objetivo de uma investigação capaz de contemplar aspectos do objeto nos variados discursos e propiciar um diálogo investigativo diante das demandas existentes no cenário educacional nacional. Na primeira parte, procura-se identificar e descrever textos-base relacionados à concepção do ser humano e sua diversidade, perpassando pela história da educação inclusiva, bem como a formação docente contribui para uma escola ser inclusiva. Na segunda parte, investiga-se se o ensino colaborativo, escolhido como conceito dentre outras opções de colaboração entre o trabalho dos docentes de educação básica, poderá ser uma concepção aplicável na escola para a existência de um ensino inclusivo. Com relação ao aproveitamento dos textos localizados e nas produções de interesse para análise, destacaram-se na temática

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deste estudo: Mendes (2006), Beyer (2006), Capellini (2008), Sobrinho (2010), Oliveira (2010), Bianchetti (2013), Denari (2013), Moreira; Araujo; Nozu (2014). Um breve histórico: educação inclusiva e a formação docente Atualmente, a educação inclusiva é discutida amplamente pela classe docente, por demais profissionais e comunidade familiar envolvidos na escola, voluntários e profissionais acadêmicos, que buscam formas de contribuir para a instituição de um ensino de qualidade que contemple as necessidades dos/ as discentes da educação básica. Muitos desses cidadãos, profissionais voluntários ou participantes ativos da sociedade, contribuem de forma efetiva, por meio de publicações e/ou inserção em grupos sociais, que promovem movimentos para instituição de leis, decretos e diretrizes com o fito de assegurar um ensino de melhor qualidade. Uma forma instituída para assegurar a qualidade e inclusão de todos os/as discentes na educação básica, previsto também pelo Decreto nº 7.611 de 17 de novembro de 2011, é o Atendimento Educacional Especializado (AEE) que se tornou parte do processo educacional, indicando como a escola deve, obrigatoriamente , oferecer e garantir vaga aos/as discentes com deficiência, transtornos global do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação nas classes de ensino comum e no AEE. Grupos sociais historicamente excluídos tiveram direito à escolarização a partir do processo de democratização da educação gerado pelas/os participantes dos movimentos fortalecedores do processo de mudança e de implantação textual de documentos normativos e a adoção pela Organização das Nações Unidas (ONU) da Declaração dos Direitos Humanos em 1948 (SANTOS e MOREIRA, 2014). Ainda no processo de efetivação da inclusão na educação brasileira, Santos e Moreira (2014, p. 63) complementam: Tais elementos normativos que evidenciam a inclusão escolar de todas as pessoas nas escolas do ensino comum é uma das principais metas do século

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XXI, partindo-se do pressuposto de que a educação inclusiva se caracteriza como uma ampliação de acesso e permanência à educação dos grupos historicamente excluídos.

Movimentos sociais, agentes da construção dos alicerces da educação, direcionam a formação docente voltada à inclusão do/a discente como fator primordial para a efetivação do ensino inclusivo nas escolas regulares. Promulgam também a necessidade de direcionar uma formação em serviço aos/as docentes que trabalham em sala de recursos multifuncional ministrando o AEE e na sala comum, envolvendo a colaboração entre toda a equipe escolar de forma a tornar possível a inclusão aos/as discentes. Nessa perspectiva, nos termos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), após formulação exercida pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica são em essência o estabelecimento de bases comuns nacionais para a Educação Básica e suas modalidades de ensino, dentre essas a educação especial, como exemplo (2010, p. 25): A educação destina-se a múltiplos sujeitos e tem como objetivo a troca de saberes, a socialização e o confronto do conhecimento, segundo diferentes abordagens, exercidas por pessoas de diferentes condições físicas, sensoriais, intelectuais e emocionais, classes sociais, crenças, etnias, gêneros, origens, contextos socioculturais, e da cidade, do campo e de aldeias. Por isso, é preciso fazer da escola a instituição acolhedora, inclusiva, pois essa é uma opção transgressora, porque rompe com a ilusão da homogeneidade e provoca, quase sempre, uma espécie de crise de identidade institucional.

E ainda, numa perspectiva de ensino em colaboração com o fito de atender as necessidades de alunos com deficiência, as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais (2010, p. 43) asseguram aos sistemas de ensino a observância de três orientações fundamentais, sendo: I – métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos, para atender às suas necessidades;

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II – formação de professores para o atendimento educacional especializado, bem como para o desenvolvimento de práticas educacionais inclusivas nas classes comuns de ensino regular; III – acesso igualitário aos benefícios dos programas sociais suplementares disponíveis para o respectivo nível do ensino regular.

Para Denari (2013, p.19) “[...] a escola deve ter autonomia para propor e viabilizar seus projetos educativos, entre os quais o da inclusão escolar de TODOS os seus alunos. [...]”. E quanto à escola que pretende ser inclusiva para todos, declara ser primordial a existência de uma cultura valorizadora da diversidade e a necessidade de mudanças nos paradigmas e práticas pedagógicas dos/as docentes de forma a abranger e valorizar as diferenças individuais dos/as discentes. Válido esclarecer quanto aos processos de integração e inclusão, na prática junto ao/a discente matriculado (a) na escola de ensino regular e participante do AEE, no perfil de uma escola que deseja ser de ensino inclusivo, Lima, Oliva e Nogueira (2011, p.119) entendem que: [...] é compreensível que na prática os processos de integração e inclusão coexistam por algum tempo, até que a integração seja totalmente substituída pela inclusão, o que passa a ser entendido como um grande desafio. Diante deste contexto pontua-se como um dos desafios da educação inclusiva a superação de práticas tradicionais, removendo as barreiras nos processos de aprendizagem e valorizando a diversidade no contexto pedagógico. Sendo o aluno o centro do processo pedagógico, quanto mais diversas forem suas características e manifestações, maiores serão as possibilidades de estilos e ritmos de aprendizagens, motivações e interesses.

Sobre o conceito de escola inclusiva, discutido na conferência da UNESCO, em Salamanca, 1994, Ferreira (2006, p. 223) reitera que “as escolas e suas comunidades devem mudar e se preparar para entender, celebrar e trabalhar com a diversidade humana existente nas suas classes, a fim de promover a inclusão.”. Fleuri (2009, p. 85), no artigo da UNESCO sobre como tornar a educação inclusiva aponta que “Talvez o desafio fundamental que emerge das propostas de educação inclusiva para a formação de

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educadores seja justamente o de se repensar e ressignificar a própria concepção de educador.” Trata-se primeiro de levar o docente, por meio da formação continuada, a repensar, refletir sobre sua práxis e compreender, portanto, o processo de promoção da educação inclusiva e assim, como promover a escola inclusiva. A educação inclusiva perpassa a necessidade do/a docente primar por uma formação que possibilite a reflexão sobre a história humana, o caminho histórico da educação, com o conhecimento sobre as diferenças, valores e direitos do ser humano, enquanto cidadão e parte da história. Para Bianchetti (2013, p. 3) esse conhecimento possibilita o crescimento do docente enquanto pessoa e profissional: Só entenderemos a história da humanidade se conseguirmos apreender como, nos diferentes momentos históricos, os homens foram atendendo suas necessidades básicas, isto é, como foram construindo sua existência. Esta tese nos coloca diante da essencial diferença entre os homens e os outros animais.

Complementa que uma sociedade que não compreende a individualidade de cada pessoa gerará paradigmas permeados por preconceitos e medos dentro dos grupos sociais, medo irracional pelo diferente, por aquilo que está fora do padrão da ideia dominante e das manobras sócio-históricas verbais que manipulam a realidade (BIANCHETTI, 2013). Sobrinho (2010, p. 1229) destaca que “[...] o conhecimento é indispensável para a realização pessoal, para o exercício profissional, o fortalecimento econômico e o desenvolvimento da nação. [...]”. Destarte, a importância da escola, veículo de conhecimento, em promover um local de inclusão e oferecer elementos para que todos, discentes e docentes, interligados e conjuntamente tenham meios de alcançar seus objetivos. Diante da perspectiva da escola inclusiva ser construída por meio de uma formação docente voltada à inclusão de todos os/as discentes, Denari (2013, p. 21) diz que “[...] o modelo de escola (mais) inclusiva pressupõe alguns requisitos essenciais que passam, invariavelmente, pela formação do professor [...]”.

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Turqueti, Souza e Chinalia (2013, p. 66) colocam que “[...] a necessidade de constante aperfeiçoamento (a formação continuada) é latente, já que o conhecimento profissional do professor deve estar em constante construção e aperfeiçoamento [...]”. E sobre a formação docente com foco na educação inclusiva, complementam: Assim, em meio a um cenário de crises e incertezas, acreditamos que os debates existentes quanto ao processo de formação de professores são fontes não só de sugestões como também de considerações indispensáveis para se fazer emergir uma nova concepção de escola na qual se insere a perspectiva em direção à inclusão escolar de todos os alunos, inclusive aqueles designados como público da educação especial. (TURQUETI; SOUZA; CHINALIA, 2013, p. 67).

Face ao exposto, mostra-se premente a utilização de mecanismos possíveis à modificação da prática de ensino, de forma a beneficiar ao/a discente com necessidades especiais e possibilitar que ele seja incluso. No pressuposto de uma escola com profissionais cientes da reflexão sobre as diferenças inerentes ao ser humano e da necessária construção de habilidades para auxiliar neste processo de inclusão, surgiu a seguinte dúvida: por quais meios poderá se efetivar esta escola inclusiva? Diante dessa, entende-se que além do conhecimento científico e habilidades em práticas de ensino, existe a necessidade do/a docente reconhecer que não atua sozinho e que integrar-se a equipe escolar, que utilizar-se da parceria, da colaboração mútua em estudos e vivências poderá beneficiar o trabalho junto ao/a discente propiciando a escola inclusiva. O ensino colaborativo e a formação docente frente a uma escola inclusiva Para existir um bom trabalho entre os/as docentes, mostra-se imprescindível a articulação do conhecimento e prática entre estes/as, bem como a inserção no currículo escolar das necessidades especiais dos/as discentes com deficiência, transtornos globais do

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desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, baseado num modelo de aprendizagem inclusiva. Para tanto, questiona-se: como tornar possível essa articulação do conhecimento e prática entre os/as docentes? Como tornar possível que a colaboração entre os docentes exista e a parceria possibilite um ensino inclusivo, numa escola inclusiva? Contribuem nestas questões, na sequencia, diálogos de autores que versam sobre as concepções de ensino colaborativo, coensino ou bidocência como formas de contemplar os/as discentes com necessidades educacionais especiais. Mediante ao desenvolvimento de um trabalho colaborativo entre os docentes, Souza (2011) diz que este poderá dar bons resultados à prática diária de ensino-aprendizagem, com benéficos efeitos aos/as discentes. E completa: O trabalho desenvolvido colaborativamente poderá trazer resultados satisfatórios na superação dos problemas enfrentados no processo educacional inclusivo, sejam eles estruturais, físicos, pedagógicos, teóricometodológicos ou formativos. A formação de professores para o atendimento da diversidade não deverá apenas girar em torno dos métodos e técnicas; apenas esses não abrangerão as diversas condições pedagógicas não previstas do cotidiano escolar inclusivo. (SOUZA, 2011, p. 32-33).

Nesse sentido, autores que contemplam o conceito de ensino colaborativo, como Mendes (2006), declaram que os/as docentes de sala comum e de AEE são corresponsáveis no ato de planejar, instruir e avaliar um grupo heterogêneo de alunos. E Capellini (2008), na proposta do ensino colaborativo relaciona a colaboração à contribuição, num processo de interação entre os indivíduos, com ajuda mútua ou unilateral em que o/a docente da sala comum e do AEE planejam juntos suas aulas em benefício da inclusão aos/as discentes. Essa concepção compreende a importância do reconhecimento e aprofundamento teórico nessa abordagem de ensino nos aspectos de colaboração e integração, a qual nos aportes teóricos encontramse denominações desde sistema da bidocência de Beyer (2006), onde descreve suas experiências em escolas alemãs e ações de docentes

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especialistas atuando em colaboração com docentes de salas comuns para apoiar processos de inclusão, até o ensino colaborativo utilizado também por Moreira, Araujo e Nozu (2014) como estratégia de articulação entre o trabalho pedagógico dos docentes de AEE e de sala comum que se utilizam desta parceria com o objetivo de ampliar as possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento dos/as discentes matriculados nas escolas comuns do ensino regular e que necessitam de atendimento especializado. Desse modo, é válido ressaltar que para alguns autores, o sistema da bidocência tornou-se o atual ensino colaborativo. Neste sentido, pretende-se, com este texto, enfatizar o ensino colaborativo com o intuito de promulgar e fortalecer a inclusão de todos/as discentes na escola e por meio de reflexão e possibilidade de mudança de paradigma levar os/as docentes ao caminho de uma escola verdadeiramente inclusiva. Moreira, Araujo e Nozu (2014) declaram que no ensino colaborativo os/as docentes precisam aprender a compartilhar responsabilidades, administrar a sala de aula de forma colaborativa, dividindo problemas e resoluções. Para eles, esse movimento possibilitará uma oportunidade de ampliação do conhecimento de todos os envolvidos no processo. Ou seja, os/as docentes de sala comum e os/as de AEE complementam-se, valorizam o trabalho coletivo e articulado, no objetivo da inclusão de todos os alunos, ao mesmo tempo acompanhados/as da equipe escolar pela promoção dos objetivos da educação inclusiva. E Vianna et. al. (2015, p.54) entendem que: Esse aspecto da divisão de responsabilidade em relação ao planejamento e ao manejo da turma, como um todo, é um ideal a ser alcançado, pois a implantação do trabalho envolve novas relações profissionais, outras dinâmicas em sala de aula, diferentes modos de intervenção pedagógica, a serem constituídos no fazer cotidiano, pela ação e reflexão.

Oliveira (2010) diz que o trabalho dos/as docentes de sala comum e do AEE devem se complementar e, numa escola

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democrática, que contempla a todos, tanto o/a docente como qualquer outro/a profissional devem ter e ser de formação inclusiva. Isso possibilita a valorização da formação docente na concepção da educação inclusiva e ao promover espaços de reflexão e união, a colaboração entre profissionais acontecerá cotidianamente, desenvolvendo um caminho de ensino inclusivo a todos. Apesar da implantação de ações e novos objetivos não serem facilmente aceitos por grupos de docentes, as tentativas de levar o conceito de ensino colaborativo aos/as docentes por meio de estudos e formação demonstram ser válidas, pois quando profissionais da educação conseguem trabalhar de forma colaborativa, em dupla ou grupo, as metas da educação inclusiva poderão ser atingidas. Sobre isso, Marin e Maretti (2014, p. 7) dizem: É possível afirmar que o ensino colaborativo é uma estratégia que viabiliza a aprendizagem de alunos com necessidades educacionais específicas em processos de inclusão, através de propostas de atendimento que consideram a diversidade e o direito à escolarização para todos. Pois, quando os professores compartilham o mesmo espaço de ensino e de aprendizagem em que o aluno com necessidades específicas está inserido – a sala de aula – ambos observam, de forma contextualizada, as mediações que cada um oferece ao aluno, podendo assim, compartilhar questionamentos e conhecimentos e melhor organizar seu saber docente.

A formação docente é campo fértil de discussões e o objetivo maior é a contribuição para a práxis do/a docente no pressuposto de ensino de qualidade para todos, incluindo o/a discente com deficiência. Para Beyer (2006) o/a docente que compreende que os/as discentes são todos especiais e diferentes, poderá criar condição para instituir uma educação inclusiva e a inclusão de todos na escola e que possibilitar o atendimento pedagógico diferenciado e individualizado quando necessário, por meio da adoção de sistemas de bidocência, destarte, docentes especialistas

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de AEE e de sala comum atuando em colaboração mútua, com o único objetivo de incluir e propiciar o ensino inclusivo. Nesse panorama, evidencia-se que a utilização de momentos de formação docente como ferramenta essencial para levar à reflexão sobre a prática conjunta, demonstra o conceito de ensino colaborativo viável à idealização da escola inclusiva. Para tanto, faz se necessário primar pela compreensão e aceitação da diversidade presente no/a outro/a, visto que essa práxis levará o/a docente à possibilidade de interagir com os/as discentes, na forma de articulação, colaboração ou simplesmente de união pelo objetivo em comum: a educação inclusiva para todos. Considerações finais O respeito às diferenças é fator primordial ao/a docente que deseja galgar passos firmes e verdadeiros no autodesenvolvimento e no ato de melhor ensinar, criar um caminho seguro e fundamentado para que o/a discente construa sua aprendizagem e sua cidadania. Elemento importante nessa criação é a formação continuada, que sob o exercício da ação e reflexão, propicia a articulação e colaboração entre os/as docentes como instrumento mediador na construção do ensino. Mediante exposto neste texto, constata-se na educação inclusiva ainda a premência da concretização no que tange a inclusão de todos/as na escola. Existe a efetivação na política pública nacional, como oferta de vagas para matrícula e inserção nas escolas regulares, oferecimento do AEE, obrigatoriedade em documentos governamentais da necessidade de propiciar aos/as docentes uma formação continuada concentrada na educação inclusiva. Entretanto, os textos identificados sobre o trabalho colaborativo entre docentes de sala comum e de AEE mostram que apesar da efetividade demonstrada em que o trabalho docente colaborativo pode auxiliar no processo de inclusão do/a discente com necessidades pedagógicas especiais, em nível de país, poucos

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autores estudam essa concepção e menos profissionais ainda aplicam-na em escolas. Verifica-se que a maioria dos textos-base encontrados e mencionados neste estudo versa sobre a concepção do ser humano e suas diversidades, sobre formação continuada realizada em serviço ou não de docentes de AEE e de sala comum, e sobre colaboração, integração entre as categorias de docentes, entretanto isoladamente. Com relação ao tema deste estudo surgiram algumas dúvidas: sobre: como tornar possível a articulação do conhecimento e prática entre os/as docentes? Como tornar possível a colaboração entre os docentes existir e essa parceria possibilitar um ensino inclusivo, numa escola inclusiva? As mesmas foram parcialmente elucidadas na perspectiva da articulação do conhecimento e prática entre os/as docentes ser concebível mediante a concepção do ensino colaborativo, o qual demonstrou se crível nos aportes teóricos. Para tanto, é necessário que o ensino colaborativo docente dê oportunidade a escola inclusiva tornar-se fato concreto, é premente que a formação aos/as docentes seja direcionada pelo conceito de ensino colaborativo, com embasamento teórico, prática da reflexão, envolvimento ao currículo escolar e planejamento em conjunto. Dessa maneira, o/a docente que aceitar trabalhar em colaboração, apesar dos atritos naturais iniciais da mudança e do ato primordial do trabalho docente tornar se coletivo, criará maneiras de auxiliar na construção de uma escola inclusiva. Moreira, Araujo e Nozu (2014, p. 23) ainda complementam: Diante desse cenário, os docentes vão precisar aprender a compartilhar metas, decisões, instruções em sala de aula, responsabilidades, avaliação da aprendizagem, resolução dos problemas. Dito de outro modo, os professores vão precisar administrar a sala de aula de forma colaborativa, dividindo as responsabilidades, os problemas e as soluções.

Importante salientar que este estudo trouxe contribuições para a construção de uma escola inclusiva, como a necessidade de investimento via políticas públicas em uma formação docente em

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serviço na perspectiva inclusiva e de um trabalho conjunto e articulado entre os/as docentes, com o fito de melhorar o ensinoaprendizagem e propiciar a real inclusão da pessoa com deficiência na sala comum com suas diferenças valorizadas e respeitadas.

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e

Documentação



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EDUCAÇÃO DE ALUNOS COM SURDEZ: DESAFIOS, POSSIBILIDADES, PRECONCEITOS E VIOLÊNCIA Samara Rodrigues da Cruz1 Doracina Aparecida de Castro Araujo2

Introdução Os surdos sofrem discriminações ao longo da história e sempre foram considerados incapazes de viver no meio social pelo fato de a língua de sinais ser considerada inferior à língua oral. Essa trajetória foi triste, silenciosa e dolorosa, assim como também era, e em alguns casos, ainda é, marcada por piedade, compaixão e ignorância. Se fizermos uma observação retroativa do percurso histórico dos surdos fica claro o processo de contínua exclusão social pelo qual sempre passaram. Por considerarmos os problemas enfrentados pela comunidade surda é que realizamos a pesquisa geradora deste texto, no fito de contribuir com os debates sobre a proposta de educação de surdos 1

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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Unidade Universitária de Paranaíba. Especialista em Educação Básica do Campo pela Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS/EAD), Campus Campo Grande (UFMS/Campo Grande). Pedagoga pela UEMS/Paranaíba. Bolsista do Observatório da Educação (OBEDUC-CAPES). E-mail: [email protected]. Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Estágio pós-doutoral em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP/Araraquara). Docente do Programa de PósGraduação em Educação e dos cursos de Especialização em Educação e Pedagogia da UEMS/Paranaíba. Coordenadora do Centro de Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação (CEPEED) da UEMS/Paranaíba. E-mail: [email protected]

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bilíngues em todos os contextos, sobretudo no escolar, em ambientes de aprendizagem favoráveis, de respeito e consideração pela sua língua, suas necessidades e diferenças, no intuito de cooperar com o desenvolvimento de uma prática pedagógica capaz de propiciar o desenvolvimento dos alunos com surdez. Desse modo, é importante destacar que teóricos e estudiosos do assunto desenvolveram abordagens educacionais no intuito de contribuir com a educação escolar dos surdos e melhorá-la consideravelmente por meio da criação de algumas propostas que não favoreceram seu processo de ensino e de aprendizagem, como por exemplo, o Oralismo e a Comunicação Total. Verificamos nos últimos tempos uma nova abordagem educacional para os surdos por meio do bilinguismo, que segundo alguns estudiosos, melhor atende as suas necessidades e lhes proporciona liberdade de escolha para fazerem uso de duas línguas no ambiente escolar e meio social: a Língua de Sinais e a Língua Portuguesa. A partir dessas considerações buscamos compreender a educação de alunos com surdez e com ela contribuir, por meio de um levantamento bibliográfico das principais teorias e estudos acerca da temática no decorrer dos últimos anos. Contribuições teóricas sobre a surdez no século XXI A voz dos surdos são as mãos e os corpos que pensam, sonham e expressam. [...]. Pensar sobre surdez requer penetrar no “mundo dos surdos” e “ouvir” as mãos que com alguns movimentos nos dizem o que fazer para tornar possível o contato entre os mundos envolvidos. Permita-se “ouvir”, estas mãos, somente assim será possível mostrar aos surdos como eles podem “ouvir” o silêncio da palavra escrita. (QUADROS, 1997).

A trajetória das pessoas com surdez permite verificar o sofrimento em relação à obrigatoriedade de utilizar uma forma de comunicação por elas considerada difícil; em algumas situações lhes impingiam castigos e, na maioria das situações, a aprendizagem era mínima. Dorziat (2015) assegura que a superação dessas situações foi conquistada de forma gradual, até

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poderem utilizar “livremente” a língua de sinais, contudo ainda é possível verificar a luta pelo direito de viverem como cidadãos na sociedade e fazerem uso da linguagem mais conveniente. É importante esclarecer nesse momento que a educação de surdos tem ganhado espaços, mas ainda não suficientes, principalmente nos níveis escolares mais avançados da educação formal. Por conta das dificuldades enfrentadas, em diversas situações, os alunos com surdez se afastam das escolas e se conformam em deixar os estudos nos anos iniciais do Ensino Fundamental (LIMA; VIEIRA, 2006). Segundo Gesser (2012), depois de reivindicações, mobilizações e conflitos, a primeira grande vitória dos surdos foi a oficialização da Língua de Sinais, por meio da Lei de nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que legitimou a LIBRAS em todo território brasileiro e lhes ofereceu um meio de comunicação que reconhece suas necessidades e lhes favorece em seu processo de ensino e de aprendizagem. Muitos estudiosos defendem metodologias e práticas pedagógicas numa perspectiva de melhoria da educação escolar a partir de uma visão inclusiva das pessoas com surdez. No entanto, criaram propostas que não contribuíram muito com essas pessoas, tais como o Oralismo e a Comunicação Total. Alvez, Ferreira e Damázio (2010, p. 7) afirmam que esses enfoques não favoreceram o desenvolvimento pleno do surdo “[...] por focalizar o domínio das modalidades orais, negando a língua natural desses alunos e provocando perdas consideráveis nos aspectos cognitivos, sócio afetivos, linguísticos, políticos, culturais e na aprendizagem”. No entanto, em relação à educação inclusiva de surdos tem se instaurado uma nova proposta que visa habilitar a pessoa surda para o uso de duas línguas no ambiente escolar e na vida social: a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e a Língua Portuguesa. Estudos confirmam que essa abordagem por meio do bilinguismo corresponde melhor às necessidades do aluno surdo, pelo fato de respeitar a língua natural e também construir com um ambiente

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adequado para a aprendizagem escolar (ALVEZ; FERREIRA; DAMÁZIO, 2010). Alguns autores, tais como Gesser (2012), Quadros (1997), Rabelo e Amaral (2003), Alvez, Ferreira e Damázio (2010) acreditam na importância de adequação das instituições sociais ao novo panorama em relação às pessoas com surdez. Nesse sentido, deve haver uma reformulação em todos os contextos, no que se refere às instituições como hospitais, bibliotecas e bancos, de forma a assegurar a acessibilidade aos surdos por meio da contratação de intérpretes, além da habilitação dos funcionários, no que diz respeito aos âmbitos familiar e escolar. Vale ressaltar a necessidade da inserção da Libras como primeira língua aos alunos com surdez, apesar de o ensino das várias outras disciplinas acontecer com a língua de instrução (LIBRAS); além de serem fundamentais as informações e orientações aos pais de alunos surdos com o intuito de transformar discursos hegemônicos sobre surdez e Libras (MCCLEARY, 2009 apud GESSER, 2012). Quadros (1997) ressalta que as pessoas com surdez perceberam seu prejuízo com as propostas desenvolvidas no passado. Por outro lado, compreendem a importância da LIBRAS em suas vidas, e consideram que o aprendizado da Língua de Sinais lhes garante autonomia. A proposta de educação bilíngue desponta no processo de ensino e aprendizagem e desperta estudiosos da temática para a obtenção de informações resultantes de pesquisas sobre a educação de surdos por meio da Libras, “[...] possibilitando assim uma retomada dos conceitos estruturados de surdez e língua de sinais. Assim, a educação de surdos no Brasil está entrando em uma terceira fase, que caracteriza um período de transição” (QUADROS, 1997, p.26). De acordo com Reily (2004), nessa perspectiva, a educação em relação ao aluno com surdez exige mudança no ambiente escolar e nas práticas sociais e visa à promoção da participação, da interação e à construção do conhecimento dos alunos surdos no ensino regular.

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Atualmente, tanto no meio social quanto no âmbito escolar, os termos surdo-mudo, mudinho, surdinho, ainda são utilizados de forma recorrente, e é provável que isso não ocorra por falta de esclarecimentos, mas pela existência de preconceito em relação às pessoas com surdez. O termo surdo-mudo não é mais utilizado, pelo fato de os surdos não falarem porque não ouvem; portanto, não aprenderam a falar. Só pode ser considerado mudo o indivíduo incapaz de emitir algum tipo de som; por conseguinte, eles não são mudos. Os surdos podem se comunicar de diferentes maneiras, uma delas é por meio da LIBRAS. (MACHADO, 2008). Compreendemos que alguns termos utilizados em relação aos alunos com surdez se associam ao preconceito, que é difícil de ser rompido, mas que sem dúvida, é essencial para “[...] subir a mirantes mais privilegiados. E deles, pode-se romper com outros preconceitos, [...] infelizmente, a maior parte das pessoas ainda está presa a grilhões dos preconceitos mais elementares, mais frágeis” (COLLARES; MOYSÉS, 1996, p. 190). Quanto ao preconceito, também podemos compreendê-lo como um mecanismo de defesa desenvolvido pelas pessoas, no entanto, isso pode ser considerado “[...] um falseamento da realidade, a qual o indivíduo foi impedido de enxergar e que contém elementos que ele gostaria de ter para si, mas se vê obrigado a não poder tê-los; [...]”. (CROCHIK, 1997, p. 18-19). Esses elementos podem estar pautados na possibilidade do intérprete, ou seja, um profissional dedicado a uma única pessoa, no caso o aluno com surdez, entre outros elementos que possam ser considerados. No entanto, é importante compreender que as pessoas com surdez precisam participar ativamente de todas as atividades realizadas no espaço escolar. Segundo Alvez, Ferreira e Damázio (2010), as pessoas com surdez não podem ser desconsideradas no ambiente escolar e nem no meio social. Muitos duvidam de suas capacidades e potencialidades e reduzem-nas ao chamado mundo surdo, com identidade e cultura surda. Todos são diferentes em relação à

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maneira de ser, de se comportar, à capacidade de trabalho e em seu sistema cognitivo, então faz-se necessário que todos sejam respeitados, independente de suas diferenças. É importante afirmar que os alunos surdos têm potencialidades e habilidades; e para tanto, em determinadas situações precisam de adaptação, compensação, pois para Vygotski (1997, p.12): “[...] a criança, cujo desenvolvimento encontra dificuldade devido à sua deficiência, não é simplesmente uma criança menos desenvolvida que as outras, mas sim que se desenvolveu de outra maneira”. Esse desenvolvimento de outra maneira se dá pela mediação com a utilização de instrumentos por pessoas com mais experiência, no caso do aluno surdo, dos professores, intérpretes e colegas de sala, com o apoio da comunidade surda e ouvinte. Nos estudos sobre a defectologia realizados por Vygotski, ele defende a tese de que: “Todo defeito cria estímulos para elaborar uma compensação” (VYGOTSKI, 1997, p. 14). Ou seja, a pessoa com surdez quando não aprende não é porque não ouve, mas sim, porque não lhe são oportunizadas compensações, principalmente pelo estímulo à cultura. Compreendemos que a comunidade ouvinte tem sua própria cultura, ao mesmo tempo a comunidade surda também apresenta sua cultura e identidade próprias, que devem ser cultivadas e respeitadas. Dessa forma, não basta uma proposta somente bilíngue, tem que ser também bicultural, pois ela concede “[...] o acesso rápido e natural da criança surda à comunidade ouvinte e para fazer com que ela se reconheça como parte de uma comunidade surda. Isso somente será possível quando os educadores e surdos trabalharem juntos” (QUADROS, 1997, p. 28). Entendemos que em uma proposta de inclusão escolar, alguns dificultadores em relação à inclusão escolar de alunos com surdez no ensino comum devem ser considerados, dentre eles o preconceito e a violência, pois ambos acontecem em sala de aula, quase sempre por desconhecimento da linguagem surda e/ou por

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ignorarem o direito que todos têm de estarem na escola comum e de receberem uma educação de qualidade. A ignorância em relação aos direitos dos alunos com surdez à educação de qualidade muitas vezes se dá porque eles são vistos como incapazes e sem utilidade para qualquer atividade nas salas de aula. Importante considerar que a prática pedagógica do professor é imprescindível para propiciar o desenvolvimento desses educandos. Caso o docente não reconheça seu importante papel nesse processo, ele acaba por contribuir para a exclusão dessa clientela do meio escolar. Para Strobel (2008), isso acontece porque a comunidade surda não tem sido considerada; apenas os ouvintes discutem seus rumos. É importante ressaltar que o aprendizado por meio da Libras assegura autonomia, principalmente resguarda uma comunicação eficiente entre eles. Quando os surdos se encontram e fazem uso da mesma linguagem (LIBRAS) para se comunicarem, “[...] se faz brotar novas possibilidades de subjetividades, de compartilhar a cultura, de aquisição de conhecimentos, que não são plausíveis por meio da língua oral e da cultura ouvinte” (STROBEL, 2008, p. 89). Na discussão pela valorização da comunidade surda, entendemos ser necessária uma atuação compromissada e competente dos professores, pois não basta identificar o que os alunos surdos não conseguem fazer. Eles precisam de apoio na realização de todas as atividades; sobretudo que sejam criados ambientes favoráveis ao aprendizado; que os intérpretes participem efetivamente da escolha sobre a melhor maneira de ensinar e realizar a interação de modo produtivo e eficiente, assim como também avaliar continuamente o processo de ensino e aprendizagem de todos, independente de serem surdos (DORZIAT, 2015). É relevante que os profissionais da educação construam práticas pedagógicas que assumam a abordagem bilíngue, com vistas ao desenvolvimento das potencialidades, capacidades,

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habilidades e ao respeito às diferenças nos diversos contextos de vida; proporcionar a liberdade de expressão, de participação no ambiente escolar, de interagir com o meio em que vivem. No tocante ao respeito às diferenças, uma das propostas do bilinguismo, Quadros (1997, p. 27) aborda esse tema com a seguinte afirmação: “[...] se a língua de sinais é uma língua natural adquirida de forma espontânea pela pessoa surda em contato com pessoas que usam essa língua e se a língua oral é adquirida de forma sistematizada, então as pessoas surdas têm o direito de ser ensinadas na língua de sinais”. Para tanto, a proposta de educação por meio da abordagem bilíngue considera ponto crucial a organização da prática pedagógica nas escolas comuns, na sala de aula comum e no Atendimento Educacional Especializado (AEE), o qual, a partir de uma visão inclusiva, propõe como ponto de partida a compreensão, o reconhecimento do potencial, das capacidades e a construção da aprendizagem do aluno com surdez. Esse atendimento é reconhecido e assegurado por lei, e determina o direito a uma educação bilíngue em todo o processo educacional (ALVEZ; FERREIRA; DAMÁZIO, 2010). Isso não significa dizer que toda aquela questão sobre normalizar e equiparar as pessoas com surdez aos demais da sociedade tenha desaparecido com a chegada da educação por meio do bilinguismo. Há propostas bilíngues que mantêm a visão conservadora do oralismo. Na maioria dos casos buscam desconsiderar a Língua de Sinais, procuram incentivar e fazer uso de tal prática para a obtenção da língua oral. Mas isso acontece apenas por parte de profissionais que não têm compromisso com uma educação de qualidade em relação a todos, pois o mito da normalização do aluno, acreditamos, foi quase erradicado no final do século XX, junto com a quase superação do Paradigma da Integração3. 3

Segundo Bernardes (2010), o Paradigma da Integração é o processo cujo objetivo era integrar o aluno à escola, a qual aceitava receber os alunos Público Alvo da

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A abordagem por meio do bilinguismo, além de considerar os surdos, os reconhece como parte de uma comunidade que possui sua própria cultura e língua, assim “[...] a noção de que o surdo deve, a todo custo, tentar aprender a modalidade oral da língua para poder se aproximar o máximo possível do padrão de normalidade é rejeitada por esta filosofia” (GOLGFELD, 1997, p. 39 apud MACHADO, 2008, p. 65). Com o objetivo de transformar a educação de pessoas com surdez no mundo e facilitar sua comunicação é necessário abandonar a definição de surdez gerada no método oralista (para desenvolver a fala nos surdos) e passar a encará-la a partir da proposta bilíngue. A inclusão escolar é uma oportunidade para mudar a concepção instituída no âmbito escolar sobre deficiências e habilidades, pois os professores avaliam os erros dos alunos e se esquecem de observar e valorizar seu aprendizado, seu desempenho em sala de aula. É necessário considerar também o método de ensino; lembrar ainda que o processo ensinoaprendizagem é unitário, e um deve ocorrer simultâneo ao êxito do outro. Segundo Mantoan (2006, p. 21), “[...] a escola brasileira é marcada pelo fracasso e pela evasão escolar de uma parte significativa de seus alunos” e muitas vezes, não se buscam as razões desse fracasso. Esses educandos se tornam conhecidos por conta das sucessivas repetências, são suspensos, fogem da escola e acabam sendo rotulados como malcriados e marginais. Entretanto, de modo geral, a equipe escolar não busca se conscientizar em relação a essas situações, não procura conhecer as causas geradoras desse fracasso escolar, o qual é atribuído somente aos alunos, sem considerar e assumir que todos os envolvidos no processo de ensino e aprendizagem têm sua parcela de responsabilidade.

Educação Especial (PAEE), desde que tivessem a capacidade de se adequar aos serviços que a mesma oferecia. Ou seja, nesse modelo, o aluno deve adaptar-se à instituição, e não o contrário.

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Cada dia mais centrado em discussões e pesquisas, o fracasso escolar, atualmente, nos remete a um dos principais problemas do sistema educacional. Diniz (2012, p. 37) corrobora a fala de Mantoan quando afirma: “[...] o que ocorre muitas vezes é a busca pelos culpados de tal fracasso e, a partir daí, percebe-se um jogo em que se culpa ora a criança, ora a família, ora uma classe social, ora todo um sistema econômico, político e social”. O fracasso e a evasão escolar não são diferentes na educação especial de alunos com surdez no ensino comum. Os estudantes precisam de um Atendimento Educacional Especializado (AEE) por meio da Libras; ambientes de aprendizagem favoráveis a todos, indistintamente; de motivação para potencializar sua capacidade de pensar e questionar e assim construírem seu conhecimento. “Esse atendimento contribui para que o aluno com surdez participe das aulas, compreendendo o que é tratado pelo professor e interagindo com seus colegas” (ALVEZ; FERREIRA; DAMÁZIO, 2010, p.12). Embora o acesso à educação seja um direito de todos, assegurado por Lei, os alunos com surdez sofrem discriminação, preconceito e exclusão. A sociedade não é formada por pessoas iguais; todos são diferentes em seu sistema cognitivo, força de vontade e capacidade de trabalho. A partir disso compreendemos que “Um processo inclusivo requer uma nova visão das pessoas, uma mudança de mentalidade, de forma que todos sejam respeitados independentemente de suas diferenças” (RABELO; AMARAL, 2003, p. 209). Dessa forma, abordamos tal tema com o fito de contribuir para o aprimoramento de ações voltadas para a construção da inclusão de pessoas com surdez em escolas e na sociedade, pois “[...] defender uma proposta para pessoas com deficiência está além das ações realizadas que ora se apresentam, com embates infrutíferos, sem avanços que possam contribuir com o desenvolvimento dessas pessoas”. (ARAUJO; SANTANA; NOZU, 2011, p. 98). Muitas vezes os professores consideram que a aprendizagem do aluno surdo é responsabilidade somente do intérprete, e se esquecem de que essa

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tarefa cabe também àquele que tem um aluno com surdez na sua sala de aula; portanto, não devem deixá-lo abandonado, e, consequentemente triste e desmotivado para as atividades, pois caso isso ocorra, fica iminente em algumas situações, a evasão escolar. O tradutor e intérprete da língua de sinais é um profissional bilíngue, que efetua e facilita a comunicação entre surdos e ouvintes por meio da Libras para a Língua Oral. De acordo com alguns autores de textos organizados pelo Ministério da Educação (ALVEZ; FERREIRA; DAMÁZIO, 2010), o professor da sala de aula comum deverá buscar recursos e materiais diversificados para preparar um ambiente bilíngue que favoreça a aprendizagem dos alunos, procurar se aperfeiçoar profissionalmente, pois o regente da sala pode exercer as duas funções, ensinar e interpretar; assim não haverá necessidade de intérprete na sala de aula. Normalmente o intérprete capacitado resolve muitas questões urgentes no momento de interpretação, mas quando é convidado a assumir papéis pedagógicos na sala de aula se sente inseguro, solitário e desesperado. Já o professor regente da sala de aula sentese inabilitado e constrangido com a situação, sem saber o que fazer; há casos em que o professor regente chega a rejeitar o aluno na sala de aula; dessa forma, o aluno surdo fica abandonado à própria sorte, e muitas vezes seus familiares desconhecem o que está acontecendo, ou o que fazer. A LIBRAS não é universal, por isso cada país possui sua própria língua de sinais e assim há variações de região para região. As equipes escolares têm que se aperfeiçoar de acordo com as necessidades dos alunos, capacitando profissionais para esse tipo de trabalho. Essa capacitação para o ensino da LIBRAS pode ser obtida por meio do Exame Nacional de Proficiência em Língua Brasileira de Sinais (Prólibras) promovido pelo MEC/INEP, ou ainda por meio do curso de licenciatura Letras/Libras. (ALVEZ; FERREIRA; DAMÁZIO, 2010). Alvez, Ferreira e Damázio (2010) asseguram que a formação de professores que reconhecem as necessidades dos surdos é

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fundamental para efetivar um ensino de qualidade, por isso a disciplina de LIBRAS passou a fazer parte do currículo dos cursos de formação de professores por meio do Decreto 5.626 de dezembro de 2005, o qual oportuniza o acesso à Língua de Sinais e ao aperfeiçoamento da Língua Portuguesa, pois “[...] preferencialmente na modalidade escrita, constituem línguas de instrução, e que o acesso às duas línguas ocorra de forma simultânea no ambiente escolar, colaborando para o desenvolvimento de todo o processo educativo” (ALVEZ; FERREIRA; DAMÁZIO, 2010, p. 9). Profissionais recém-formados não buscam uma formação contínua. Muitos se enganam ao acreditar que a formação acadêmica é suficiente, todavia, a partir do momento em que têm contato com os alunos, com realidades diferentes como a de um aluno com surdez, não sabem como enfrentar os desafios em sala de aula, como se comunicar, como se comportar perante um surdo e alfabetizá-lo. É interessante considerar que isso ocorre não por falta de conhecimento, pois atualmente a LIBRAS está inserida em todos os espaços escolares, e todos os estabelecimentos têm necessidade de ter um tradutor e intérprete da Língua de Sinais, e no meio escolar não é diferente, pois os surdos estão procurando estudar, ter uma formação acadêmica, ter uma profissão e nisso, faz-se mister profissionais capacitados para auxiliá-los. É possível afirmar que muitos professores cometem certas negligências em sala de aula e até mesmo preconceito, pois não se preparam profissional e teoricamente para atuar nesse espaço. Fica bastante explícita a responsabilidade das instituições de ensino, em todos os níveis educacionais em garantirem o acesso à comunicação, informação e educação das pessoas com surdez. Construindo ambientes educacionais favoráveis a todos os alunos, potencializando-lhes a capacidade de pensar, refletir e questionar de cada um, para que possa formá-los como sujeitos pensantes e críticos. “Assim, um dos desafios das políticas públicas inclusivas

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para as escolas brasileiras é a construção de ambientes educacionais para o ensino da LIBRAS, por meio de métodos adequados” (ALVEZ; FERREIRA; DAMÁZIO, 2010, p. 15). Machado (2008) confirma isso ressaltando ser necessária uma nova concepção com relação ao aluno surdo, pois “[...] é essencial para que aquele, agindo e interagindo, possa receber toda a herança cultural das gerações anteriores e produzir, em conjunto com a sociedade, conhecimentos que influenciarão as próximas gerações” (MACHADO, 2008, p. 166). Entendemos que a oficialização da Língua de Sinais e o reconhecimento junto ao órgão público legitimando a LIBRAS, são as armas que puderam consentir e conceber as grandes mudanças e transformações na vida das pessoas com surdez. Mas será que todas as adversidades e dificuldades que os surdos enfrentaram tiveram fim? Podemos perceber que o reconhecimento da língua de sinais e a oficialização da LIBRAS foram grandes conquistas, entretanto, a comunidade surda não pode se acomodar nesse momento. Sendo assim, é imprescindível mais reivindicações e movimentos para assegurar uma educação de qualidade para os surdos, passando por um processo educativo que valorize sua identidade, cultura, língua, que contribua com seu desenvolvimento, conquiste espaço e maiores possibilidades de participação na sociedade, sem desconsiderar suas diferenças, e formar, a partir dessa visão, cidadãos críticos e reflexivos. Os educadores devem mudar a prática educacional que não considera as diferenças, ter um olhar atencioso para todos os alunos surdos como cidadãos críticos e pensantes. É importante desenvolver trabalhos que o aluno com surdez consiga realizar, pense sobre o que está fazendo, busque respostas, e seja consciente do que está aprendendo, partindo de sua potencialidade. É fundamental que as crianças, não somente as surdas, recebam estímulos que desenvolvam seus sentidos e posteriormente sua autonomia e intelectualidade. Adorno (1995) confirma isso ao enfatizar a importância de os educadores desenvolverem uma

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educação como prática da liberdade, com desenvolvimento da autonomia dos seus alunos.

vistas

ao

Considerações finais A educação de surdos tem sido um assunto muito discutido nas últimas décadas, marcado por embates e conflitos em torno de uma melhor forma de comunicação. Podemos assegurar que, historicamente, a humanidade foi testemunha de como os surdos sofreram e foram excluídos da sociedade por não fazerem uso da linguagem oral. O sofrimento e a exclusão social dos alunos surdos vieram junto com preconceito e violência simbólica, representados pela proibição de se comunicarem na forma que lhes fosse mais conveniente. Ora, seria impossível estabelecer a comunicação oral se a surdez os impedia. Assim, forçá-los a usar outro meio é uma forma de violência. Vale ressaltar, entretanto, que embora alguns estudiosos tenham desenvolvido abordagens que não favoreceram os surdos em seu processo de ensino e aprendizagem, eles têm conquistado seus direitos, por meio de uma nova proposta de ensino, o bilinguismo, que de fato reconheceu e considerou as necessidades das pessoas com surdez em todos os contextos. Para ampliar o ensino bilíngue aos surdos, os professores precisam planejar atividades pedagógicas para a aprendizagem e o desenvolvimento das suas potencialidades e habilidades, considerando a inclusão como uma possibilidade. Faz-se mister investimentos em trabalhos coletivos, com envolvimento da família e da equipe escolar, e com o apoio da sociedade. A comunidade surda não pode se acomodar agora, depois de tantas conquistas, pois são necessárias mais reivindicações que garantam e possibilitem o acesso e a permanência no ensino regular, e educação de qualidade por meio do bilinguismo, com ambientes de aprendizagem favoráveis aos surdos e aos demais alunos,

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considerando e valorizando a cultura, a língua e principalmente as especificidades e diferenças de cada um. Retornamos à epígrafe de Quadros (1997) sobre ouvir as mãos dos surdos, que com alguns movimentos podem mostrar capacidade de ouvir a voz silenciosa da palavra escrita e permitir que todos ouçam essas mãos que falam. Ao contribuir com a linguagem bilíngue de pessoas com surdez a educação oportunizará a igualdade, pois aos surdos a LIBRAS é a primeira língua; portanto, com ela devem se comunicar livremente. Ressalte-se ainda a necessidade de haver a presença de um intérprete em cada sala de aula. Dessa forma será possível contribuir para a construção de uma sociedade inclusiva, voltada para a emancipação de todos.

REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. ALVEZ, Carla Barbosa; FERREIRA, Josimário de Paula; DAMÁZIO, Mirlene Macedo. A educação especial na perspectiva da inclusão escolar: abordagem bilíngue na escolarização de pessoas com surdez. Brasília-DF: MEC, 2010. ARAUJO, Doracina Aparecida de Castro; SANTANA, Maria Silvia Rosa; NOZU, Washington César Shoiti. Para além da inclusão escolar: a práxis em uma abordagem histórico-cultural. In: PRADO, Alessandro Martins; BATISTA, Claudia Karina Ladeia; ARAUJO, Doracina Aparecida de Castro; SOUZA, José Antônio. Práxis educacional, direitos fundamentais e política: perspectivas para o século XXI. Curitiba-PR: CRV, 2011. p. 91103. BERNARDES, Adriana Oliveira. Da Integração à Inclusão, novo paradigma. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, ed. 9, Mar. 2010. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2016.

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COLLARES, Cecília; MOYSÉS, Maria Aparecida . Preconceitos no cotidiano escolar: ensino e medicalização. São Paulo: Cortez, 1996. CROCHÍK, José Leon. Preconceito, indivíduo e cultura. São Paulo: Robel, 1997. DINIZ, Margareth. Inclusão de pessoas com deficiência e/ou necessidades específicas: avanços e desafios. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. DORZIAT, Ana. Educação de surdos em tempos de inclusão. Revista Educação Especial. Santa Maria, n. 52, v. 28, p. 351-364, 2015. Disponível em: . Acesso em: 16 jul. 2015. GESSER, Audrei. O ouvinte e a surdez: sobre ensinar e aprender a libras. São Paulo: Parábola Editorial, 2012. LIMA, Priscila Augusta. Educação inclusiva e igualdade social. In: LIMA, Priscila Augusta; VIEIRA, Therezinha. Surdez: a(s) linguagem(ns) como sistemas de representação e organização mental. São Paulo: Avercamp, 2006. MACHADO, Paulo César. A política educacional de integração/inclusão: um olhar do egresso surdo. Florianópolis-SC: UFSC, 2008. MANTOAN, Maria Teresa. E. Inclusão escolar: o que é? Por quê? Como fazer? 2. ed. São Paulo: Moderna, 2006. QUADROS, Ronice Muller. Educação de surdos: a aquisição da linguagem. Porto Alegre-RS: Artes Médicas, 1997. RABELO, Annete Scotti; AMARAL, Inez Janaina de Lima. A formação do professor para a inclusão escolar: questões curriculares do curso de Pedagogia. In: LISITA, Verbena Moreira S. de S.; SOUSA, Luciana Freire E. C. P. (Org.). Políticas educacionais, práticas escolares e alternativas de inclusão escolar. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. REILY, Lucia. Escola Inclusiva: linguagem e mediação. 4. ed. CampinasSP: Papirus, 2004. STROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda. Florianópolis-SC: Editora da UFSC, 2008. VYGOTSKI, Lev Semenovich. Fundamentos de defectologia. Obras escogidas V. Madrid-ES: Aprendizaje Visor, 1997.

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SOBRE AS ORGANIZADORAS

Andréia Nunes Militão Professora Adjunta Doutora da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul-UEMS, atua nos cursos de Licenciatura em Pedagogia e Letras/Espanhol. É docente vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação (nível de Mestrado) e PROFHISTÓRIA. Possui Graduação em História (1998) pela FHDSS/UNESP, Mestrado em História (2001) pela FHDSS/UNESP, Graduação em Pedagogia (2011) pela União das Faculdades dos Grandes Lagos e Doutorado em Educação (2015) pela FCT/UNESP. Realizou Doutorado Sanduíche na Universidade do Minho sob supervisão do Prof. Dr. Licínio Lima. Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa Políticas Educacionais e Formação de Professores (GEPPEFUEMS-UFGD); integra o Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Educação, Relações Étnicorraciais e Formação de Professores (GEPRAFE-UFGD) e participa do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política e Avaliação Educacional (GEPALE-UNICAMP). É vice-coordenadora do GT08 – Formação de Professores da ANPED-CO.

Maria Silvia Rosa Santana É doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP/Marília, área de concentração: Ensino na Educação Brasileira, linha de pesquisa: Abordagens Pedagógicas no Ensino de Linguagens. Possui Mestrado em Educação pela mesma Universidade (2008), pós-graduação latu sensu e extensão em Psicopedagogia (2001) e Graduação em Pedagogia, pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho -UNESP. Atua na área de Educação, com experiência docente de 20 anos. No Ensino Fundamental atuou em instituições públicas, particulares e cooperativa de ensino. Desde 2007 atua como professora na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Unidade Universitária de Paranaíba. É docente nos cursos de Pedagogia e Ciências Socais, na Pós-Graduação lato sensu em

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Educação e em Direitos Humanos da UEMS, trabalhando especialmente com Didática e Fundamentos e Metodologia do Ensino de Matemática. É membro do GEPPE, Grupo de Estudos e Pesquisas em Práxis Educacional, participando como pesquisadora e líder da linha de pesquisa "Teorias e práticas educacionais", e pesquisadora do grupo Implicações Pedagógicas da Teoria Histórico-Cultural-UNESP/Marília. Docente no Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) da UEMS, atuando na linha de pesquisa "Currículo, formação docente e diversidade". Desenvolveu atividades de Pós-Doutorado na Faculdade de Formação de Professores (FFP) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), campus de São Gonçalo e atualmente continua sua pesquisa e atividades de Pós-doutorado junto ao PPGE da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara.

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AUTORES César Tello Elie Ghanem Fernanda Cristina de Souza Guillermo Arias Beatón Joana Sousa José Augusto Pacheco Júlio Emílio Diniz-Pereira Laura Marisa Carnielo Calejon Manuela Esteves Mariana Costa Lopes da Silva Raquel da Silva Ribeiro Renata Portela Rinaldi Rosângela Gavioli Prieto André Luís Carolli; Cláudia Gomes de Oliveira Danilo Pessopane de Almeida; Deine Esly Iglesias Junqueira Hernandes; Doracina Aparecida de Castro Araujo; Elizangela Ferreira de Andrade; Elson Luiz de Araujo; Laurenice de Fátima Coutinho de Carvalho; Maria Helena Bimbatti Moreira; Maria José de Jesus Alves Cordeiro; Maria Silvia Rosa Santana; Patrícia Bispo De Araújo; Samara Rodrigues da Cruz.

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