Habermas e os modelos normativos de Democracia

August 20, 2017 | Autor: Giovanne Schiavon | Categoría: Jurgen Habermas, Filosofia do Direito, Filosofía del Derecho, Teoria Politica Y Filosofia
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MODELOS NORMATIVOS DE DEMOCRACIA E A POLÍTICA DELIBERATIVA DE HABERMAS 1 Giovanne Henrique Bressan Schiavon2

RESUMO: Apresenta o liberalismo e o comunitarismo republicanismo como modelos normativos a partir dos quais Jürgen Habermas elabora sua defesa da política deliberativa. Palavras-chave: Teoria política, teoria do direito, democracia deliberativa. SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 MODELOS NORMATIVOS DE DEMOCRACIA. 2.1 Liberalismo. 2.2 Republicanismo e Comunitarismo. 3 POLÍTICA DELIBERATIVA DE HABERMAS. 4 NOTAS CONCLUSIVAS.

1 INTRODUÇÃO

O direito surgiu como objeto de preocupação dos filósofos, na problemática análise do como agir ou da eleição de qual é a conduta correta. Os filósofos apontam que, mesmo de modo inconsciente, cada época possui uma explicação própria do seu modo de viver. Esse modelo de racionalidade, tende a ser universalizado e influenciar os indivíduos, posto que estes interpretam sua realidade a partir dessa compreensão. Pela história, vários modelos foram criados para explicar a experiência jurídica. A teoria do direito natural, por exemplo, notabilizou-se por – em seus vários momentos: clássico, teológico e racional – preconizar a existência de uma ordem normativa (um ethos) que obrigaria a ordem positiva

Este texto foi elaborado a partir do curso de extensão “Direito e Democracia I”, ministrado em conjunto com o Professor Doutor Aylton Barbieri na Universidade Estadual de Londrina (UEL) de março a junho de 2000. Tal referência não é feita no sentido de imputar-lhe as incorreções do presente, mas tão só, no sentido de indicar meu débito para com este. Foi apresentado no 1o. Simpósio Nacional de Filosofia sobre Ética, Política e Linguagem, promovido pelo Departamento de Filosofia da UEL, de 24 a 27 de agosto de 2004. 1

em grau de hierarquia ou sobreposição. Para essa doutrina, há identidade entre o soberano e o Estado, entre a moral e o direito, entre o Estado e a religião, além de possibilitar a metafísica afirmação de que o poder soberano é o concedido por Deus. Na modernidade, a partir dos estudos de Hegel, expressos na obra “Filosofia do direito” (1821), Max Weber interpreta que o processo de racionalização identificado na cultura ocidental desemboca em um “desencanto do mundo”. Entendido como uma perda da crença de que os valores se encontram respaldados por uma ordem imutável, acessível a todo o sujeito racional. É certo que lida-se com um fenômeno ambíguo, pois ao liberar o indivíduo das amarras da tradição, o poder soberano é deslocado para a vontade popular que deve ser incorporada pelo Estado. Nesse contexto, a vontade individual continua submetida à soberania, só que agora a um poder coletivo. Vale notar que, ao destacar a existência do desencanto do mundo, Weber não pretende atacar a razão, mas questionar suas pretensões. Uma ilustração da ilustração. Com a crítica weberiana ressalta-se que a legitimidade é o critério que confere autoridade e que os juízos sobre a legitimidade implicam uma referência a valores coletivos. Tal afirmação abre espaço a que só os enunciados empíricos são suscetíveis de comprovação, e por isso verdadeiros, enquanto que os enunciados normativos remetem a uma crença ou consenso social. Ganha destaque, assim, o empirismo jurídico para o qual o direito nasce do objeto, que pode ser a norma jurídica, o fato social, ou o fenômeno jurídico produzido no meio social. O positivismo jurídico, expressão do empirismo científico, busca a observação neutra de subjetividade, constituindo-se em modelo de regras que se auto-regulam. Regras aplicadas conforme a determinação de outras regras, a ponto de se auto-fundamentarem. De modo que, a dominação

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Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. Professor da Universidade Estadual de Londrina e da

jurídica não radicaria em seu conteúdo, mas em sua autoridade, é uma relação de vontades expressando uma vontade mais forte. Esse direito, no qual legitimidade deriva da autoridade, adota metodologia descritiva, seu único desiderato é indicar positivamente qual a conduta

correta.

Conseqüentemente,

o

ordenamento

jurídico

resulta

irremediavelmente separado da moral. A razão de Estado sobrepõe-se à razão individual. Ao direito não compete, por exemplo, aprimorar o sistema social, apenas estabilizá-lo. Se antes o direito era descoberto pelo sujeito cognoscente fazendo uso da razão, agora seu conhecimento está restrito ao exame da lei, conferindo-se aura divina à lei dos homens. Compartilha-se a presunção de que o processo político é desempenhado por representantes eleitos que legislam pela maioria de seus membros. Neste sentido, constitucionalismo é entendido como a préestrutura do processo político com certa garantia de legitimação que decorre da garantia de alguns direitos e da não interferência do Estado em áreas da vida privada delimitada pelos direitos fundamentais. Dentre os trabalhos doutrinários que vêm questionando esta concepção de democracia, destacam-se os que recomendam a adoção de uma concepção de democracia “deliberativa”. Contudo, o quê precisamente democracia deliberativa significa e abrange permanece objeto de discussão. Nos

estreitos

limites

deste

texto

pretende-se

primeiro

caracterizar os modelos de política preconizados pelas propostas liberal, republicana e comunitarista, para depois apresentar o conceito habermasiano de política deliberativa.

2 LIBERALISMO

Por liberalismo se entende a doutrina política que restringe o âmbito da discussão política, partindo de alguns princípios normativos, tais

Pontificia Universidade Católica do Paraná. E-mail: [email protected]

como: direitos naturais ou princípios de justiça. Pode-se identificar como exemplos de liberalismo: a).- lockeano, b).- econômico, e c).- igualitário. a).- Comumente indica-se como primeiro modelo de liberalismo o resultante dos estudos de John Locke e conhecido como o liberalismo dos direitos naturais. Tal como proposto na obra “Segundo tratado sobre o governo” (1690), o indivíduo na natureza vive em harmonia, porém na hipótese de haver conflito de interesses, não haveria outra forma de exigir seu direito que não através do uso da força ou aguardar a justiça divina 3. Então, para administrar a resolução de controvérsias, os indivíduos fundam a sociedade por meio de um “contrato social”. O qual pressupõe o direito natural (pois para se contratar tem-se que previamente possuir direitos) e o acolhe como seu conteúdo. Assim, o poder político é desempenhado por representantes dos cidadãos, aos quais compete elaborar as leis que deverão ser obedecidas por todos. Nesse Estado civil, o direito positivo existe para preservar o direito natural. O direito natural, bem comum, é determinado pela identificação da lei aos interesses similares dos indivíduos. De modo que, o contrato social é uma abstração que representa a autorização do uso da força pelo Estado para garantia desses interesses. O limite para a atuação estatal é estabelecido pela idéia do respeito que seres iguais devem manifestar entre si expressa na legislação. b).- A partir do liberalismo lockeano surgiram: o modelo de David Hume e Adam Smith (continuado atualmente Milton Friedman) como vertente econômica que sustenta que o Estado não deve atuar no mercado; o modelo de Benjamin Constant (continuado por Robert Nozick) ramo conservador que privilegia a defesa do indivíduo contra o arbítrio do Estado; e, o modelo igualitário, de Immanuel Kant e de John Stuart Mill (resgatado por John Rawls).

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Identifica Habermas que a proteção à vida, à liberdade e à propriedade na obra de Locke é inspiração que a filosofia clássica empresta para os revoltosos norte-americano quando escrevem sua Constituição e inauguram o seu regime jurídico; cf. HABERMAS, Jürgen. Teoria

No modelo de liberalismo econômico Adam Smith na obra “Teoria dos sentimentos morais” (1759), teoriza que o ser humano é interessado racional, ele é apto para selecionar a melhor alternativa entre as várias possíveis para uma ação (através do cálculo de “custo X benefício”). Nesse modelo, a vontade individual é sempre interessada, seja por motivos egoístas ou altruístas. Diferente de Thomas Hobbes (que considerava o homem como lobo do homem), Adam Smith enxergava bondade no homem, não porque o homem fosse bom, mas porque, em sociedade, nenhum dos interessados teria condições de impor sua vontade sobre os outros (tal átomos isolados). Nessa linha de idéias, Adam Smith formula, no clássico “A riqueza das nações” (1776), que o equilíbrio econômico surge quando o indivíduo age de modo livre em busca do seu bem. Em outras palavras, cada indivíduo sempre busca o melhor para si e individualmente progride, isso beneficia o grupo, que é a reunião de todos. Os indivíduos possuem alguns “direitos” frente ao Estado e a legislação deve respeitá-los. Ao Estado compete garantir os negócios, não deve determinar quando contratar. Mas, uma vez realizado o negócio, cabe a esse criar bases para que o produto seja entregue e o preço seja pago. Então, a atividade econômica. Nessas bases o mercado se auto-regula através da máxima: cada um busca o melhor para si e a demanda regula a oferta 4. Segundo Barbieri o ponto central do paradigma liberal é a crença na existência de alguns direitos individuais frente ao Estado, que podem ter, ou não, origem no direito natural. Com o liberalismo, busca-se um Estado de direito perante o qual todos são iguais. Nesse Estado, todos devem

y praxis: estudios de filosofia social. Trad. Salvador Mas Torres; Carlos Moya Espí. 3. ed. Madrid: Tecnos, 1997, p. 96-101. 4 Uma vez que o Estado possui a capacidade de se auto-regular, valoriza-se a autonomia das partes a atuação estatal dirige-se para limitar os excessos entre os concorrentes no mercado. Razão pela qual afirmava-se que o atuação do direito dirigia-se para garantir um direito subjetivo de cada concorrente ao livre desenvolvimento de sua “personalidade econômica” (DUTOIT, Bernard. O direito da concorrência desleal e a relação da concorrência: Dupla indissociável? Uma perspectiva comparativa. Trad. Elsia de Araujo Riberio Alvares. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo [RT] n. 15, jul./set., 1995, p. 28).

conhecer de antemão, quais são seus direitos subjetivos, de sorte a existir um mínimo de interferência estatal5. O jusnaturalismo pode fomentar o entendimento de que, as relações jurídicas constituem-se independentemente da previsão legal. De sorte que, o direito estatal estaria vinculado às crenças socialmente compartilhadas6. Isso era possível, porque essa abordagem remonta ao período histórico no qual as empresas eram produtoras de produtos (não meras licenciadoras de imagens) e cada produto era protegido como uma extensão da pessoa do seu criador. Na hipótese de um conflito, a solução mais adequada seria alcançada pelo acordo entre as vontades conflitantes. Razão pela qual, esses pensadores, concluem que a intervenção do Estado na economia é uma intrusão que impede o mercado atingir seu equilíbrio. Distingue-se Locke dessa vertente do liberalismo, porque para ele nem todos os interesses seriam transigíveis. Teria dificuldade, por exemplo, em aceitar esse homem interessado o tempo todo. Entretanto, esses dois primeiros modelos de liberalismo, concordam que o Estado (soberania popular) deve ter sua atuação restringida, ou pelo menos, disciplinada em prol da vontade individual. A racionalidade liberal, e a própria idéia de razão no Estado, foi perdendo defensores a partir da consolidação da chamada sociedade industrial. Mario Losano explica que a racionalidade (ou ausência desta) na sociedade industrial pode ser exemplificada com a adoção da teoria da 5

Notas de aula da disciplina, Filosofia do Direito, ministrada por Aylton Barbieri junto ao Curso de Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina de 15 out. e 26 nov. 2001. 6 cf. PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofía del derecho: moderna y contemporánea. Trad. José Calvo Conzález. Madrid: Tecnos, 1999. p. 15-6: “No plano filosófico e no epistemológico, os postulados teóricos característicos do jusnaturalismo, enquanto doutrina do direito natural, conduzem a presumir a existência de um direito ulterior e distinto do direito positivo e vigente, e em tudo diferente a este último; em geral, se trata de um direito concebido com o propósito de constituir o fundamento ético-natural sobre o qual se apóia ou deveria apoiar o direito positivo [...] Devido a esta ótica cognitivista e objetivista, o jusnaturalismo é também prevalentemente um “derivacionista”: de fato, não só considera possível conhecer universalmente verdades objetivas (como pertencentes à realidade da natureza, do ser, dos fatos), mas que delas deriva proposições normativas, preceitos: cai assim naquela falácia naturalista, que constitui um indevido salto lógico do ser ao dever ser”. [tradução nossa] cf. também, HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. II, p. 309.

evolução de Charles Darwin (1809-1882) publicada em 1859 para explicar o convívio social7. Com essa teoria se contesta a tradicional visão segundo a qual a diferença entre o homem e os animais está na capacidade racional do primeiro. A criação estática foi contraposta à criação progressiva e contínua. A teoria da evolução pôs em foco o princípio da “luta pela sobrevivência” a qual é incompatível com a moral pacífica do cristianismo. Como afirmado, o liberalismo lockeano e o econômico sustentavam que o homem no seu íntimo agia por interesse (egoístico ou altruístico). Nas obras de Kant pode-se identificar que a própria existência do direito está impregnada de uma idéia negativa de homem, uma vez que se o homem fosse bom não haveria necessidade de uma ordem coercitiva a obrigar suas condutas. Resta implícito nesse pensamento que, se os indivíduos forem colocados numa estrutura social adequada eles poderiam agir da forma correta, sem haver necessidade de se apelar para os seus sentimentos de justiça. Ao se neutralizar os valores individuais, a teoria política termina por incorporar o positivismo filosófico à teoria do direito e do Estado. Assim a teoria geral do direito incorporou que o homem é condicionado pelo meio, mas despreza a possibilidade do homem interferir nesse meio. Nessa linha de idéias, no século XIX, Karl Marx afirmará que a estrutura social (família, propriedade privada, etc.) resulta de instituições jurídicas frutos da sociedade de classe e não de uma estrutura natural. Se essas são resultados da sociedade de classe, com a modificação do modelo social, essas poderiam ser modificadas. Do final do século XIX ao meio do século XX, floresceu a percepção de que o Estado e o direito restringem-se em defender a classe dominante e a própria propriedade privada, não existiria a possibilidade de neutralidade no direito, o direito seria uma ideologia.

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LOSANO, Mario G. La nozione di sistema giuridico in Hans Kelsen: AmaliensträBler Heft n.4. Milano:CUESP, 1998, p. 22.

A partir de então restou separada a razão oriunda das ciências e o ser humano. Natureza e civilização seriam mundos separados. Losano recorda que uma conseqüência quase supérflua desta idéia de ruptura e abandono da racionalidade é que as teorias irracionalistas se voltaram contra a idéia de sistema, seja na filosofia, seja no direito 8. c).- Um terceiro modelo de liberalismo é o defendido nos dias atuais por John Rawls. Com origem nas idéias de Immanuel Kant e John Stuart Mill, Rawls propõe um liberalismo político, no qual a atuação do Estado e do direito devem ser guiadas em prol de se fomentar a eqüidade (“fairness”). Na obra “A Theory of Justice” (1971), John Rawls questiona que frente a existência de uma diversidade de idéias, religiões, ou correntes doutrinárias qual deve ser a postura do Estado? O abandono da idéia da razão ou, deve a soberania popular, determinar as concepções de bem para a vontade individual? A resposta proposta é que religião, cultura, artes pertencem à esfera individual e não devem ser determinados pelo Estado. Porém dão origem a uma razão pública9. Essa é constituída na soma das aspirações individuais e deve definir quais são os princípios de justiça e o modo de garantir a sua aplicação. John Rawls mostra-se contrário à formulação de uma doutrina geral e compreensiva – a qual, ao pretender universalizar o conhecimento, eliminaria a liberdade individual – em seu lugar, propõe a adoção de um método de deliberação pública, cujo resultado deve ser reconhecido como de consenso político. Opera o resgate da intuição kantiana de que o problema da eleição racional pode ser solucionado através de um procedimento comunicativo. Propõe que sob a cabeça dos indivíduos desça um “véu de ignorância”, apto a filtrar do debate político questões como raça, gosto, classe,

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LOSANO, op. cit., p. 22. VITA, Álvaro de. Democracia deliberativa ou igualdade de oportunidades políticas. Novos Estudos [CEBRAP]. São Paulo: CEBRAP, v. 66, jul. 2003, p. 126-7. 9

sexo ... de sorte que, embora possa haver restrição a alguns direitos subjetivos, essa ocorra em favor da eliminação das desigualdades sociais 10. John Rawls afirma que, numa sociedade “bem ordenada”, os indivíduos desligados de seus interesses particulares devem partir de que cada um deve ter direito ao maior número de liberdades e de que só há possibilidade de desigualdade em benefício dos menos favorecidos 11. Em síntese, com variações, os três modelos de liberalismo sustentam que existem determinadas questões que não devem ser discutidas pela soberania popular. Ou melhor, privilegia a vontade individual frente à soberania popular. A idéia do constitucionalismo, por exemplo, é uma limitação à soberania popular, uma vez que este documento político-jurídico consagra os direitos, quase sempre, intocáveis da sociedade. É certo que, o liberalismo limita a atuação da soberania popular a partir da afirmação de direitos humanos (naturais, subjetivos, princípios comuns, ...) e para resguardá-los estabelece um sistema de hierarquia de normas a partir da Constituição. Normas que chegam a ser blindadas (cláusulas pétreas) de modo a não serem objetos de deliberação 12. Outro pilar, do liberalismo, é a idéia do contrato social, que se baseia na ficção de um estado da natureza, marcado pela insegurança perpétua, a qual criaria nos indivíduos a aspiração por abandoná-lo. A passar para o estado civil. De receber aquela segurança indispensável para tornar eficazes as obrigações, transformando-as de internas em externas. Em algum momento, os indivíduos, formulam um acordo entre si para renunciar os direitos que possuíam no estado da natureza, transferindo-

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O imperativo kantiano define a ação moralmente correta, não por um princípio material, como um conceito de felicidade, bem estar, ou os efeitos do resultado concreto da conduta, mas por meio da aplicação de um procedimento racional tendente a, nos casos concretos, distinguir uma sentença moralmente válida de uma não válida (cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1997). 11 RAWLS, John. Teoría de la Justicia. 2a. ed. Trad. Maria D. González. México: Fondo de Cultura Económica, 1997, p. 31. Sobre a crítica de Jürgen Habermas à teoria da justiça de Rawls: BARBIERI, Aylton. La crítica de Habermas a los fundamentos éticos de la teoría de la justicia de Rawls. Crítica, Londrina, 1(4):405-420, jul./set., 1996. 12 A Constituição do Brasil, em seu art. 60, § 4º, dispõe: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais”.

o ao soberano, que recebe a obrigação de garantia das relações individuais elaboradas consensualmente. Disso decorre que, o espaço de ação individual (direitos subjetivos) deve ser reconhecido objetivamente pela lei e a ela se sobrepõe. O liberalismo propõe um conceito negativo de liberdade, perante o qual há liberdade quando nada obriga a agir. Por fim, vale indicar que o liberalismo acolhe o modelo da igualdade formal, do qual decorre a afirmação de que as leis devem ter uma forma semântica geral e abstrata. De sorte que, não admite a tratamento desigual dos cidadãos, assim, a lei tem validade universal e deve abranger a todos de maneira igual13.

2.2 Republicanismo e Comunitarismo

Em oposição ao conceito de liberalismo apresentado – entre a rígida oposição do direito público e privado – mas também sustentando a existência de uma razão na atuação estatal, surgem o republicanismo e comunitarismo. O republicano e o comunitarismo criticam o grande destaque conferido pelas teorias liberais à capacidade individual de alcançar o consenso e agir conforme esse. Através do republicanismo/comunitarismo propõe-se a substituição da razão individual por uma razão pública fundada na soberania popular. Antes de se conceituar esses modelos normativos de democracia, faz-se necessário esclarecer o conceito de soberania popular por esses adotado. Com apoio em Jürgen Habermas recorda-se que o conceito de soberania formulado por Jean Bodin como poder absoluto, irrenunciável e perpétuo foi apropriado por Rousseau e transformado no “autodomínio de sujeitos livres e iguais”:

No “caput” do art. 5o. da Constituição do Brasil: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” 13

Segundo a concepção republicana, o povo, ao menos potencialmente presente, é o portador de uma soberania que em princípio não pode ser delegada: em sua qualidade de soberano, o povo não pode ser representado. O poder constituinte se restringe na prática da autodeterminação dos cidadãos, não de seus representantes14. Em “O contrato social” (1762), Jean Jacques Rousseau já indicara que a exigência que os indivíduos compartilham de reconhecimento termina por corrompê-lo. Pois eles passariam a agir em razão dessa necessidade e não por dever, de sorte a ser necessária a criação do Estado e do direito para mediar as relações sociais. O bem comum é determinado pela coletividade a partir de normas que todos os cidadãos podem razoavelmente aceitar. Enquanto para Locke a legitimidade do direito decorre pela adequação do prescrito na lei com a moral substantiva constante no direito natural, para Rousseau as decisões da soberania popular são legítimas porque resultam de deliberações procedimentalmente estruturadas. A participação de todos garante que estes estabeleçam para serem obedecidas somente as leis a que estes conferiram sua aquiescência15. A cidadania deve se envolver em todos os problemas de modo ativo e há necessidade do reconhecimento de que alguns valores devem, obrigatoriamente, ser impostos ao grupo social. Há que se ter em conta, também, que esta reivindicação agrega-se ao indicado “desencanto do mundo” e se desenvolve a partir de perspectivas diferentes. Peña Echeveria identifica duas tendências básicas: uma centrada na identidade e outra direcionada contra a rígida separação da autonomia individual em pública e privada 16. A primeira perspectiva – comunitarista – critica a dinâmica abstrata e homogeneizadora da sociedade moderna, que não reconhece o

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HABERMAS, Jürgen, La inclusión del otro: Estudios de teoría política. Trad. Juan Carlos Velasco Arroyo e Gerard Vilar Roca. Barcelona: Paidós, 1999, p. 244-5. A essa idéia contrapõese o liberalismo quando afirma que embora todo o poder emane do povo o seu exercício se dará através de representantes (cf. pár. ún. do Art. 1o. da Constituição do Brasil). 15 ZURN, Christopher F. Deliberativey democracy and constitutional review. Law and Philosophy. n. 21, ano 2002, p. 476. 16 PEÑA ECHEVERIA, Javier. Identidad comunitaria y universalismo. Crítica [UEL/PR]. Londrina:UEL, v. 2, n. 5, out./dez. 1996, p. 7.

papel do contexto comunitário na Constituição e manutenção da identidade dos sujeitos. Essa situação tem provocado o desligamento dos indivíduos de suas tradições e valores. Sem os quais, torna-se impossível conferir coesão e sentido à vida humana. Como exemplos de autores que possibilitaram a afirmação do comunitarismo têm-se Aristóteles e Charles Taylor. Para Aristóteles uma ação é eticamente correta quando não se distanciar dos costumes da “polis”. Por exemplo: tem-se o covarde, o corajoso e o temerário. Aristóteles ensina que não deve-se pecar pelo excesso, logo ser corajoso é o virtuoso. Só existe virtude com referência aos valores da comunidade. A outra perspectiva – republicana – denuncia a dissociação liberal entre o privado e o público, e propõe a afirmação de uma comunidade democrática de cidadãos baseada na participação ativa e solidária. O republicanismo é a concepção defensora da necessidade da estrutura política e jurídica para organizar a sociedade e indicar os conceitos de bem, de moralmente correto, de comunidade. Nesse modelo, há necessidade de uma cidadania que esteja pronta a colocar em primeiro plano os interesses sociais. Cidadãos que estejam dispostos a deixar de lado seus afazeres pessoais para se envolver nas questões sociais por solidariedade. Razão pela qual afirma-se a existência de uma esfera pública ampliada17. A tradição republicana, nos moldes de Hegel na obra “Filosofia do direito” (1821), sustenta a existência de certos valores que não podem ser desprezados. Esses valores segundo Hegel devem ser incorporados pelo Estado e aplicados, mesmo que de modo autoritário. Assim concilia o conjunto de valores com as instituições de uma identidade moral real18. Hegel expressa a busca por uma identidade comunitária. Assim o grande homem é aquele que entende o “espírito” da época. A “eticidade substancial” é o conteúdo que informa a comunidade e que varia conforme as condições históricas e/ou sociais (dialética hegeliana). De sorte

17 18

Ibid. Ibid., p. 13.

que, o republicano, se pauta nos valores sociais e resulta num civismo acentuado. Peña Echeveria interpreta que o republicanismo propõe uma vontade racional absolutamente livre. Contudo isso só é obtido com a destruição de todo particular ou “positividade” preexistente. Assume-se, assim, o risco de que alguém chame para si a pureza da universalidade e a partir dela restrinja toda a individualidade. Por isso termina por voltar-se para o que é, para um projeto de vida moral real, em vez de manter-se na oposição infinita entre ser e dever ser da moralidade kantiana19. Hegel, então, contrapõe a concepção individualista liberal ao ideal comunitário e seus riscos de se conseguir integração ao preço da renúncia da subjetividade, já que se exige do cidadão fidelidade patriótica e se lhe nega capacidade de determinação20. Como pilares do comunitarismo e do republicanismo, têm-se que estes ampliam a soberania popular a ponto de que, seus valores, são elevados à categoria de fundamento do Estado e do direito. A partir dos valores confere-se identidade aos indivíduos e às instituições. Um segundo pilar, é a afirmação da “virtude cidadão” de modo que, o cidadão deve sempre participar das questões públicas e resguardar seus valores. Isso porque o comunitarismo é compatível com o conceito positivo de liberdade. A partir do qual há liberdade quando as ações são guiadas pelas máximas que o sujeito próprio elabora. O terceiro pilar está na substituição da igualdade formal liberal, por um paradigma material. Na medida em que a igualdade formal é injusta por não corresponder a uma realidade material. A lei deve ser contextual, ser particularizada. Deve adotar uma discriminação positiva. Como crítica a essa materialização do direito, Max Weber já apresentava que, ao se privilegiar minorias, estará procurando solucionar problemas morais por meio do direito e o Estado não deve tomar parte de questões morais. Entretanto, os defensores da igualdade material, poderiam 19 20

Ibid. Ibid., p. 14.

contra-argumentar que a sua busca por identificar, destacar as potencialidades de cada um visa dar efetividade à igualdade buscada pelos liberais no séc. XVII e XVIII. Desse modo, o comunitarismo critica o liberalismo, por entender, que sua busca pela neutralidade, engessa a comunidade - uma vez que o liberal distingue claramente a esfera pública da privada. Contra esse argumento, os liberais colocariam que essa constatação não significa nada mais do que a transformação do indivíduo em cliente do Estado. Não contribuindo, assim, para a formação da cidadania. O quarto pilar está no reconhecimento de que, embora só exista legitimidade quando o Estado observe os valores comunitários, os direitos subjetivos resultam do direito objetivo. Enquanto os liberais apegam-se na afirmação dos direitos humanos como limites à atuação estatal, de sorte que os direitos subjetivos são a origem dos comandos estatais objetivos. Para os republicanoscomunitaristas, numa sociedade onde há solidariedade não há necessidade da afirmação de direitos humanos. Pelo contrário, a insistência por um sistema de direitos pode converter-se em um foco de discórdia. Enfim, comunitarismo

a

converte-se

polêmica na

entre

polêmica

liberalismo entre

e

direitos

republicanohumanos

e

solidariedade.

3 POLÍTICA DELIBERATIVA DE HABERMAS

Os estudos de Habermas partem de que os direitos humanos liberais e a idéia comunitarista de soberania popular têm determinado a autocompreensão normativa das democracias constitucionais até os dias atuais. Sua proposta é de síntese do republicanismo e do liberalismo, a partir das críticas mútuas busca solucionar a controvérsia entre os dois grupos a partir da afirmação do que ele denomina como “democracia radical”.

De um lado os republicanos criticam os liberais porque esses reduzem em demasia o espaço da esfera pública e o papel da cidadania nesse processo. Enquanto que os liberais criticam o modelo republicano sustentando que esse é irrealista, face que o modelo de cidadania proposto não é encontrado nas sociedades contemporâneas nas quais os cidadãos estão mais interessados em suas próprias questões individuais. Maia sintetiza que: De modo simplificado, o principal traço caracterizador da grande divisão em torno da qual o debate sobre modelos de democracia vem se desenrolando na cultura anglosaxônica é o seguinte: as vertentes liberais sublinham a importância dos direitos individuais como prioritários em relação à autonomia coletiva; já as correntes comunitaristas e republicanas asseveram – inspiradas sobretudo em Rousseau – a primazia da vontade coletiva em face dos direitos individuais. Habermas, ao sustentar um terceiro modelo – procedimental – critica os liberais, pela sua negligência à necessidade de solidariedade social, enquanto os comunitaristas são também criticados por se inspirarem numa noção de comunidade limitada, excessivamente dependente dos laços de pertença étnicos e culturais21. Ou seja, Habermas aproveita-se das críticas mútuas entre liberais e republicanos e reformula a explicação dos sistemas sociais de sorte a obter um conceito de política deliberativa. Sua defesa da política deliberativa justifica-se no objetivo de buscar a compatibilização da idéia de justiça (representada pelos direitos humanos liberais) com o ideal de solidariedade republicano-comunitarista. Inicia com a afirmação de que as sociedades modernas são sociedades complexas, compostas por vários sistemas, ou seja, em cada instituição nas quais os indivíduos estão presentes suas ações são motivadas por princípios diferentes. Há instituições nas quais as ações são estratégicas (relações econômicas ou políticas, nas quais deve-se efetuar o cálculo custo X benefício) em outras são contextuais (as regras de boa educação são

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MAIA, Antônio Cavalcanti. Direitos humanos e a teoria do discurso do direito e da democracia. In. MELLO, Celso de Albuquerque; TORRES, Ricardo Lobo (orgs.). Arquivo de direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, v. 2, p. 55.

determinadas pelo entorno) ou são comunicativas (relações familiares, perante as quais se busca o entendimento). Vale esclarecer que o agir estratégico ocorre na política ou na economia, enquanto que o agir contextualista é relacionado à valores 22. No âmbito da ação comunicativa os indivíduos buscam de modo cooperativo a verdade, não simplesmente o consenso ou a reprodução de um agir tradicional. Os indivíduos partem de modo cético sobre suas próprias certezas e não buscam simplesmente vencer o debate, mas buscam o estabelecimento da verdade. Um bom exemplo de ambiente que deve vigorar o agir comunicativo é o meio acadêmico. Há a percepção de que o sistema das relações cotidianas, deve ser regido pelo agir comunicativo, porém o “mundo da vida” está cada vez mais marcado pelo agir estratégico e ou contextual. De sorte que, o âmbito do mercado e o âmbito do poder estão colonizando o mundo da vida, a ponto de eliminar a espontaneidade das relações cotidianas. Em 1981, quando da edição de sua obra “Theorie des Kommunikativen Handelns” [Teoria da ação comunicativa], Habermas identifica que inclusive o direito é mais um dos sistemas que interferem nas relações cotidianas

e

sustenta



necessidade

da

instituição

de

uma

ética

comunicativa23. Em 1992, com a edição da obra “Faktizität und Geltung” [Direito e democracia: Entre facticidade e validade], Habermas revê sua concepção negativa sobre o direito. E afirma que o direito é o sistema que possibilita a mediação entre o mundo da vida e os sistemas da economia e da política, do agir estratégico e agir comunicativo. O papel fundamental do direito passa a ser possibilitar o exercício da cidadania ativa. Na sua percepção, a principal diferença entre os modelos liberal e republicano funda-se na diferente compreensão da função do processo democrático.

22

WHITE, Stephen K. Razão, justiça e modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Trad. Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995, p. 29-30. 23 As bases da ética do discurso foram apresentadas em 1983 com a edição de “Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln” [Consciência moral e agir comunicativo].

Para os liberais o Estado é concebido como uma estrutura programada no interesse das pessoas privadas nos termos da economia de mercado. Enquanto que, para os republicanos, a política não se esgota numa mediação entre sujeitos privados, mas representa o meio a partir do qual os membros de comunidades em certo sentido solidárias assumem sua recíproca dependência e com o que em sua qualidade de cidadão prosseguem e configuram com vontade e consciência as relações de reconhecimento recíproco enquanto membros livres e iguais24. Daí então o conceito de cidadão para o liberal estar determinado pela medida dos direitos subjetivos que detém perante o Estado e perante aos demais cidadãos. Enquanto portadores de direitos subjetivos: ... desfrutam da proteção do Estado enquanto perseguem seus interesses privados dentro de limites traçados pelas leis e isto inclui também a proteção perante às autuações estatais que vão além das reservas legais de intervenção. Os direitos subjetivos são direitos negativos que garantem um âmbito de eleição dentro do qual as pessoas jurídicas estão livres de coações externas25. Para o republicano os direitos cívicos são liberdades positivas. Não garantem a liberdade de coações externas, mas a vida a partir de valores e costumes, cuja prática comum é o único modo de ser aquilo que o cidadão deseja ser: um sujeito politicamente responsável de uma comunidade de pessoas livres e iguais. Nessa

perspectiva,

o

poder

político

é

produzido

comunicativamente no exercício da autodeterminação dos cidadãos e se legitima na medida em que a institucionalização da liberdade pública proteja esse exercício: A razão de ser do Estado não radica primordialmente na proteção de iguais direitos subjetivos, mas na salvaguarda de um processo inclusivo de formação da opinião e da vontade comum, na qual os cidadãos livres e

24

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. I, p. 332-3; e, HABERMAS, Jürgen. La inclusión del outro: Estudios de teoría política. Trad. Juan Carlos Velasco Arroyo e Gerard Vilar Roca. Barcelona: Paidós, 1999, p. 231-2. 25 HABERMAS, Jürgen. La inclusión del otro: Estudios de teoría política. Trad. Juan Carlos Velasco Arroyo e Gerard Vilar Roca. Barcelona, Paidós: 1999, p. 232-3.

iguais se entendem sobre as metas e normas que seriam de interesse comum para todos26. Se o indivíduo é um ser egoísta (interessado racional), esse só se preocupa com seus próprios interesses, por isso o liberalismo preconiza a necessidade de um Estado judicial contra o que denominam Estado paternalista do modelo republicano-comunitarista. Daí porque afirma que o direito na concepção liberal se constrói partindo dos direitos subjetivos; no caso republicano o primado está no conteúdo objetivo desse ordenamento. Na crítica republicana e comunitária, os liberais, eliminam a possibilidade de solidariedade e da própria cidadania. Posto que, o princípio liberal da neutralidade não é compatível com a idéia de comunidade, uma vez que o grupo mais forte aniquilaria culturalmente o mais fraco. O

modelo

republicano-comunitário

possui

igualmente

vantagens e desvantagens. A vantagem está na auto-organização da sociedade mediante cidadãos unidos de maneira comunicativa e nas quais as linhas coletivas não somente se derivam de um consenso entre interesses privados contrapostos. O inconveniente resulta ser um modelo demasiado idealista de cidadãos virtuosos27. Habermas critica ambas as correntes identificando que as suas promessas estão esgotadas. Um modelo político deve conferir ao indivíduo um objetivo, um caminho, com o qual ele norteará sua vida em sociedade. Daí porque, ele afirma que uma nova utopia política deve ser buscada, dessa vez, com fundamento no entendimento que resulta da comunicação: Uma teoria da justiça diretamente normativa e que, ao tentar justificar princípios para a construção de uma sociedade bem ordenada, opera num plano situado acima das instituições e tradições existentes, tem que enfrentar o problema da relação entre idéia e realidade 28. Resgata-se o conceito de legalidade de Immanuel Kant expresso na obra “Fundamentação da metafísica dos costumes” (1797). Nessa obra já se encontra uma posição de síntese entre Rousseau e Locke, autores

26 27

Ibid., p. 233-4. Ibid., p. 238.

que inspiraram o republicanismo e o liberalismo. Para Kant a observância de um dever jurídico é compatível com a ação conforme o dever, mas não exige o comportamento por dever. Por exemplo, as pessoas quando usam o cinto de segurança cumprem a lei, não importando se concordam com a relevância desse uso29. Reconhece-se que o dever jurídico surge da imposição da vontade da maioria contra a vontade da minoria. Assim, as minorias não são obrigadas a cumprir a lei por dever, por acreditarem nela, mas simplesmente por reconhecer nessa a autoridade do direito. Dessa maneira Kant resolve o problema da obrigação jurídica. Não é necessário que as pessoas concordem com o conteúdo da obrigação, somente que a cumpram. Ninguém está obrigado a cumprir a lei movido por um convencimento da justiça dessa. Porém, igualmente ninguém está impedido de cumprir um dever jurídico convencido de sua justiça. Nesse segundo caso, se veria o cumprimento do direito de modo ético. Se se considerar que o direito resulta da vontade da maioria, pode-se indicar que pelo menos para essa, o direito é dotado de conteúdo justo. Enquanto o liberalismo parte do primeiro momento, o republicanismo aproveita-se desse segundo momento. Surge a tensão entre facticidade e validade. O que deve prevalecer? Para os republicanos deve prevalecer a validade enquanto que para os liberais deve prevalecer a facticidade. A conclusão que Habermas extraí de Kant é que o direito possui esses dois aspectos e desses não pode ser separado. Destaque-se, a partir da tensão entre facticidade e validade, Habermas afirma que todos os afetados pela entrada em vigor de uma norma devem dar seu assentimento racional àquela. Esse assentimento pode resultar ou do poder coercitivo do Estado ou do convencimento individual. A política deliberativa é o modelo político que possibilita explicação de racionalidade no direito habermasiano. Nesse modelo, parte-se 28

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. I, p. 245. 29 Sobre a releitura do pensamento kantiano por Habermas cf. BARBIERI, Aylton. A crítica de Habermas à dedução transcendental de Kant. Londrina/Passo Fundo: UEL/Universidade de Passo Fundo, 1996.

de que embora numa sociedade concreta não seja possível reunir todos os cidadãos numa praça para discussão das questões públicas. Isso não afasta a necessidade de um cidadão mais ativo que o liberal e menos ativo que o republicano. Em concordância com o republicanismo, a teoria discursiva coloca o processo de formação da vontade e da opinião política no ponto central, mas sem entender como algo secundário a Constituição em termos do Estado de direito; concebe os direitos fundamentais e os princípios do Estado de direito como uma resposta conseqüente à questão de como podem ser institucionalizados os exigentes pressupostos comunicativos do procedimento democrático. A teoria discursiva não faz depender a realização de uma política deliberativa de uma cidadania capaz de atuar coletivamente, mas da institucionalização dos procedimentos correspondentes. Já não opera com o conceito de uma totalidade centrada no Estado, que pudesse representar como um macro-sujeito que atua orientado por fins. Tampouco a teoria discursiva localiza essa totalidade em um sistema de normas constitucionais que regulem de maneira inconsciente o equilíbrio de poderes e interesses segundo o modelo desenvolvido pela negociação mercantil. Dita teoria se despede completamente das figuras de pensamento típicas da filosofia da consciência que, de certo modo, sugerem ou atribuir a prática da autodeterminação dos cidadãos a um sujeito social global, ou referir o império anônimo da lei a sujeitos particulares que competem entre si. Em um caso, a cidadania é considerada como um ator coletivo no qual o todo se reflete e atua por si; em outro caso, os atores individuais atuam como variáveis dependentes nos processos de poder que transcorrem de maneira cega, já que além do ato individual de votar não pode dar-se nenhuma decisão coletiva plenamente consciente (a não ser em um sentido meramente metafórico)30. O conceito de política deliberativa não é fundado no consenso e nem exige uma “virtude cívica”. Nessa perspectiva o acordo surge como uma formação de compromissos entre distintas partes que se apóiam em obrigações legais ou no comprometimento voluntário. Habermas afirma que embora as negociações deste tipo pressuponham alguma disposição para cooperar, isto é, “a vontade de obter – respeitando as regras do jogo –

resultados que possam ser aceitáveis para todas as partes ainda que seja por diferentes motivos”, não se pode excluir a ação estratégica do cidadão em atuar conforme o dever legal31. A partir das obras de Montesquieu e Maquiavel, Habermas incorpora que a idéia de Estado de Direito instituída na Modernidade, pressupõe que as instituições políticas tendem a exceder os limites de seu próprio poder. Daí porque o direito e as instituições jurídicas se fazem necessárias para que as instituições políticas se mantenham nos limites da vontade popular. Destaca então que o controle institucional exercido pelo direito sobre a política e economia, se dá também a partir de um poder comunicativo que pode ser percebido na indignação social frente aos fatos sociais. Vê-se a existência de grupos sociais organizados que fazem uso da imprensa para manifestar suas aspirações, por exemplo, o movimento feminista clama pela igualdade dos sexos (um interesse privado do grupo), porém ao fazer isso essa questão é socialmente decidida cabendo ao direito incorporar em suas normas o resultado dessa discussão social. Assim, através da comunicação forma-se uma vontade comum. Nessa política deliberativa não há prevalência de fundamentos morais, ou da autocompreensão ética, mas convivem paralelamente argumentos morais, éticos, acordos de interesses e compromissos (determinados mediante a eleição racional de meios em relação a um fim), políticos, econômicos e jurídicos. Nas palavras de Habermas: “Tudo depende, pois, das condições de comunicação e dos procedimentos que emprestam sua força legitimadora à formação institucionalizada da opinião e da vontade comum” 32. Quando o direito incorpora essa discussão o que se viu foi a criação de novos princípios de justiça, perante os quais todas as pessoas estão obrigadas a concordar. Lutar por interesses beneficia toda a sociedade 30

HABERMAS, Jürgen. La inclusión del otro: Estudios de teoría política. Trad. Juan Carlos Velasco Arroyo e Gerard Vilar Roca. Barcelona: Paidós, 1999, p. 241-2. 31 Ibid., p. 238-9. 32 Ibid., p. 239. Sobre a relação direito e moral em Habermas cf. SCHIAVON, G. H. B. Direito e moral em Habermas. In. HANSEN, Gilvan Luiz; CENCI, Elve Miguel. Racionalidade, modernidade e universidade: festschrift em homenagem a Leonardo Prota. Londrina: Cefil/Ed.UEL, 2000, p. 53-77.

na medida em que dessa manifestação são estabelecidos os princípios que comandarão a atuação do direito e conseqüentemente do Estado.

4 NOTAS CONCLUSIVAS

Na modernidade as doutrinas normativas de democracia se dividiram em republicano-comunitaristas e as liberais. Através de sua proposta de política deliberativa, Habermas busca compatibilizar a soberania popular com a afirmação dos direitos humanos. Já na conceituação de validade normativa, quando se fixa que a organização da sociedade pode se dar de modo coativo ou por convicção, Habermas deixa transparecer essa proposta de síntese. De sorte que não seria possível a afirmação da política deliberativa sem se reconhecer que seus conteúdos materiais já se encontram presentes nos modelos precedentes. Contudo, essa síntese, se dá sem a adoção de um conteúdo material específico para informar o novo modelo. Sua proposta se reveste na revisão do procedimento rousseauniano para determinação de qual conduta é adequada, numa determinada situação. Note-se que o resultado desse procedimento poderá ser pela adoção de normas morais, éticas ou técnicas sem prevalência entre essas. A legitimidade da norma se dá a partir do procedimento e não pela adoção de tal ou qual conteúdo. Para Habermas, sua proposta não revoluciona a organização política, uma vez que o Estado Democrático de Direito já está impregnado com a racionalidade da modernidade. Falta então que esse efetivamente exerça as funções que lhe são peculiares. Assim,

o

procedimento

habermasiano

fundamenta

a

organização social, provida pelo direito, no entendimento que surge da comunicação. Por meio da qual chega-se às normas que melhor ordenam a vida humana. As regras para o discurso, propostas por Habermas, é seu procedimento apto a produzir tais normas.

Advirta-se que, o conceito de poder comunicativo não é compatível com a idéia de manipulação. O direito não deve controlar a comunicação, mas organizar a sociedade de sorte a tornar possível que a sociedade, quando entender necessário, discuta suas questões. Daí porque, afirma, que a legitimidade da norma surge com a argumentação. Enquanto que facticidade, explicada de modo sociológico, é entendida como certeza ou segurança da proposição. De sorte que, a sociedade discursiva contará sempre com uma tensão entre facticidade (segurança) e legitimidade (validade). À cidadania, no modelo da política deliberativa, reserva-se o papel de participar sempre que houver necessidade. Reconhece-se que mesmo um sistema político justo contém normas injustas. Daí porque quando essas forem identificadas o cidadão deverá se mobilizar para removê-las do ordenamento. Insurgir-se contra o cumprimento burocrático do direito. De sorte que, os cidadãos não precisam estar continuamente participando das questões públicas. Porém se houver a percepção de que uma norma, ou atuação estatal não está conforme sua vontade, este deve estar pronto para manifestar sua indignação. Conclui-se que, esse modelo, só se sustenta se houver o bom funcionamento das instituições sociais.

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