Grande Entrevista a Manuel Pires da Rocha

July 11, 2017 | Autor: Manú Pereira | Categoría: Jornalismo, Entrevista, Investigação, Redação
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| Grande Entrevista |

31 de Janeiro de 2013 “NOS DIREITOS DO CONSUMIDOR A JUSTIÇA CHEIRA A INJUSTIÇA”

Tem o diploma do curso superior de Direito mas admite não sentir a “propensão nem para as magistraturas nem para a advocacia”. A Associação Portuguesa de Direitos do Consumo (APDC) é o resultado do interesse em “oferecer informação jurídica, descodificada e acessível às pessoas”.

Catarina Almeida Neves

Nasceu em Moçâmedes mas veio para Portugal para concluir os estudos, para posteriormente regressar à terra natal. Mas por força do destino tal não aconteceu. Mário Frota tem 72 anos e já exerceu funções enquanto docente universitário nomeadamente na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Contudo, é no Direito do Consumo que reside o principal foco de interesse e investigação. É que, enquanto personalidade do Direito, Mário Frota considera que “os juristas não têm formação na área do consumo”. Nesta entrevista o presidente da APDC levanta a falta de interesse do Governo português e admite que se não houver uma justiça justa e segura estamos “feitos”.

Catarina Almeida: Nasceu em Moçâmedes (actual Namibe). O que o trouxe a Portugal? Mário Frota: Depois de ter cumprido o serviço militar obrigatório, em Angola, permaneci ainda em funções administrativas. Entretanto, em 1972, vim à metrópole para concluir os meus estudos universitários com a expetativa de regressar para exercer a minha atividade profissional.

CA: E regressou? MF: Não. Fui surpreendido pelo acontecimento. A minha família já estava em África há seis gerações e ainda não tinha criado raízes em Portugal.

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A simples circunstância de aqui chegar no momento em que se deu a debandada, permitiu que os meus familiares servissem de estrutura de acolhimento a um número impressionante de pessoas próximas que ficaram acolhidos em nossa casa. Isto em Outubro/Novembro de 1975.

CA: Disse que o objetivo era terminar os estudos. Que via seguiu? MF: Direito. Ao permanecer aqui, em Portugal, acabei por iniciar outro tipo de funções. Como não tinha propensão para as magistraturas nem me sentia bem como advogado segui a docência universitária onde me mantive até 2005 - altura em que deixei as funções que então exercia na Faculdade de Direito da Universidade de Paris XII - ao cabo de uma trintena de anos de actividade quer em Portugal quer no estrangeiro.

CA: Acabou por nunca exercer a profissão de advogado? MF: De advogado não. Mas mesmo assim tive de me defrontar em determinados momentos da minha vida porque sempre entendi que o Direito não podia ser um exclusivo de uma casta. Fiz o estágio da advocacia e estava inscrito como advogado sem exercer. Entendi que deveria oferecer informação jurídica, descodificada e acessível à generalidade das pessoas.

CA: Para além disso presidiu e participou em manifestações nacionais e internacionais. Uma parte da sua vida que se relaciona com uma vertente mais reivindicativa? MF: Enquanto docente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – ainda como assistente – entendia que a Escola não faria sentido se dissociada da vida. E, como tinha um contacto frequente com os estudantes, incentivei-os desde logo a realizarem eventos científicos ou de divulgação de temas. Para além do apoio efetivamente relevante e das actividades que o próprio Conselho Directivo – ao qual fazia parte – estimulou, nós próprios realizámos alguns eventos de manifesta projecção. Mal saí do Conselho Directivo confrontei-me com problemas que se prendiam com a interpretação dos contractos de adesão. Em 1986, acudiu-me ao espírito desencadear, de modo singular, um conjunto de diligências tendentes à edificação do primeiro Congresso Europeu. E o facto é que o projecto teve uma magnitude

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extraordinária. E o facto é que o projecto teve uma magnitude extraordinária. Contou com o apoio do Presidente da República, com o suporte material da Comunidade Europeia, e da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Louvain através do então Centro de Direito do Consumo.

CA: E qual foi o resultado desse projecto? MF: A breve trecho a iniciativa contou com a adversão de altas personalidades da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – ainda hoje estou para saber por quê – como Orlando de Carvalho que nos criou um conjunto de “amargos de boca”. Falo na circunstância de Rui de Alarcão que acabou por me criar dificuldades de toda a ordem. Era uma escola voltada para o passado que pelos vistos não se identificava com uma procura pela justiça contractual e uma efectiva protecção do consumidor. Acabei por contar com meia centena de estudantes que foram o esteio de uma iniciativa que, no dizer de António de Arruda Ferrero Correia, Reitor Honorário, foi a coisa mais grandiosa que a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra realizou na sua existência. A resistência e oposição na personalidade do reitor levou a que criássemos a Associação Internacional do Direito do Consumo, que veio depois a ser o suporte de todas as manifestações. Em 1999 criámos a APDC que era a “antena” nacional da Associação Internacional.

CA: Em que moldes funciona a APDC? MF: Ainda agora estava a concluir o relatório trimestral da APDC que reflecte a actividade estuante de uma estrutura que tem um corpo permanente mínimo e dispõe de um conjunto de elementos que desenvolvem a sua missão estimulada por sentimentos que não por vencimentos. Temos delegações, algumas delas incipientes, no Alto Minho, Trás-os-Montes e Vale do Sousa. Esta estrutura, que assenta no esforço denudado da sociedade civil, às vezes vive à míngua de recursos porque o Estado tem obrigações específicas mas não as cumpre. De boas intenções está o inferno cheio. Se os consumidores já de si estão desprotegidos é pior ainda para os consumidores o facto do próprio Estado não se mostrar atento.

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CA: E é nessa mesma vertente que vamos discutir. A sociedade está consciente dos direitos que têm relativamente ao consumo? MF: Eu oiço muito boa gente instalada dizer que sim. Se juristas muitas vezes, em público, dão informações menos consistentes, o que pensar da generalidade das pessoas que têm epidermicamente a noção de que os seus direitos foram agredidos mas que não sabem rigorosamente como. A generalidade das pessoas, mesmo juristas, que não têm formação nesta área, não fazem ideia nenhuma dos direitos e muitas vezes os direitos perdem-se por negligência. As pessoas não se fazem a caminho para reivindicar direitos.

CA: Neste prisma, já que a generalidade das pessoas não tem formação, e consequentemente noção dos seus direitos enquanto consumidores, como é que podem ficar a par dos deveres? MF: Uma coisa é o anteparo da outra. As pessoas devem ter uma certa lisura. No contraponto as empresas têm de agir de boa-fé. Quando as empresas agem sistematicamente de má-fé, o que pensar de pessoas indefesas que não têm meios para combater as agressões cometidas. É um drama terrível mas tudo tem uma causa. A Lei da Defesa do Consumidor, estabelece no seu artigo 6º o direito à formação e à educação. O artigo é um verdadeiro programa. No entanto, esta norma está por concretizar no sistema de ensino desde 1981.

CA: Disse numa entrevista que a educação para o consumo continua a não ter lugar em países como Portugal. Que lacuna atribui ao Governo português? MF: O facto é que tendo a primeira lei sido editada em 1981não se fez rigorosamente nada até ao momento. Há meras iniciativas de professores, mais letrados e bem preparados, mas a educação e a formação para o consumo roçam zero e situam-se fora de qualquer plano curricular. Ora, isto reflecte bem o descaso que se vota a um domínio tão relevante como este. É preciso criar sujeitos críticos, envolver os consumidores desde tenra idade, para descodificarem e serem críticos na escolha e na avaliação dos

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produtos. Sem este conjunto de instrumentos nós temos, efectivamente, uma sociedade com consumidores passivos e, consequentemente, ao jeito das estratégicas mercadológicas.

CA: Escreve-se a teoria mas não se aplica na prática. E o Governo? Desresponsabiliza-se desta matéria? MF: Os sucessivos governos. Eu lembro-me de durante o consulado de Mário Guterres ter escrito uma carta aberta ao Ministro da Educação. E ele respondeu-me. Disse-me que estava na altura de se reflectir sobre isso. Eu respondi que não podíamos estar permanentemente em reflexão. Aquilo que nós entendemos é que, em cada uma das disciplinas, se faça a adaptação dos programas de forma a servir de modo harmónico a educação para o consumo. A educação para o consumo não é saber comprar.

CA: Pretendia perguntar como caracteriza a evolução da legislação, em Portugal, relativamente ao consumo. Mas, neste sentido, é mais correcto falar em estagnação? MF: Absolutamente. Ainda no outro dia estivem no Agrupamento de Escolas de Anadia e fiz uma acção sobre publicidade infanto-juvenil. Marcou. Mas depois de terminada fica apenas como uma acção isolada, episódica. E o que se exige é fogo nutrido, isto é, acções consequentes, quotidianas que permitam realmente revesti-las de uma segunda natureza. Já dizia Aristóteles que os hábitos constituem uma segunda natureza: a primeira fase é começar pela formação de formadores.

CA: Relativamente ao trabalho da APDC. Têm insistido em acções de formação? MF: Temos aqui um centro de estudos, com modestas instalações, com rendas em atraso. Ainda ontem me perguntava sobre a dificuldade em pagar os salários à nossa gente, na medida em que o Estado não cumpre com as suas obrigações, quando a lei diz que incumbe ao Estado, às regiões autónomas e às autarquias locais, proteger os consumidores através do apoio ao funcionamento das associações de consumidores. Mas, nem todas existem verdadeiramente, como é o caso da Associação União Geral de Consumidores

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(UGC) que não é nada. O simples facto de a APDC estar e ser de Coimbra é motivo de desqualificação.

CA: E o consumo enquanto matéria para os meios de comunicação social portugueses? Há serviço público neste particular? MF: Nós não temos serviço público neste particular. Em tempos eu intervinha num programa da televisão pública que esteve na génese de uma lei, que, por acaso, foi ontem alterada. E eu fazia eco da natural indignação das pessoas contra os serviços de distribuição de gás e águas, contra a Portugal Telecom e EDP. O programa foi extraordinário mas numa base exactamente fora do que, imperativamente, estabelece o artigo sétimo da Lei da Defesa do Consumidor. No final de contas, neste particular, o artigo é autêntica letra morta. Há um enorme défice de informação dirigida aos consumidores.

CA: Referiu a existência de associações de Apoio ao Consumidor. Uma das associações mais proferidas pela voz dos portugueses é a DECO. Mas há diferenças. Qual considera ser a causa para a dificuldade em distinguir a DECO de outras associações, como é o caso da APDC? É aqui que entra a importância da educação no consumo? MF:É verdade. Parte da educação no consumo, mas também da informação. Tempo houve em que a APDC era frequentemente solicitada. Depois, o poder da publicidade e do marketing directo fez o resto. Eles são massificantes. Eles sacrificam as pessoas ao peso, não só dos embustes dos brindes que oferecem a quem se candidata, como através do marketing directo agressivo. Por outro lado, a comunicação social ainda hoje o faz sistematicamente ao referir a defesa do consumidor DECO fazendo tábua rasa das restantes associações. Em bom rigor, a única instituição de interesse genérico é a ACOPE.

CA: Não considera a DECO uma associação de consumidores? MF: É, no fundo, um corpo que não tem associados porque considera como associados os assinantes da revista belga. O que muitas vezes era feito pela APDC era levado a crédito da Deco. Tudo de mal que eles fazem, porque incomodam as pessoas, invadem a privacidade…

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CA: … Surgem também os testes e estatísticas que, muitas das vezes, são alvo de análise. MF: Isso é um escândalo. Quando eles dizem que têm mais de mil reclamações basta fazer as contas para ver que eles não têm estruturas para gerir um número tão elevado. É uma mentira odienta mas as pessoas acreditam.

CA: No fundo o cerne da questão prende-se com uma associação que apela e defende o consumidor mas, ao mesmo tempo, acaba por levá-los em falácias? MF: Absolutamente. Fazem dos consumidores tolos uma vez que os enredam naqueles embustes. No Brasil já se registaram inúmeras reclamações porque as ofertas acabam por nunca se realizar. Mas já há um pequeno número de gente esclarecida que já não cai em embustes.

CA: Portanto, é no sentido de aproximação com os consumidores que a APDC tem, na sua matriz, uma tríplice função? MF: Exactamente. Na formação nos desenvolvemos planos, projetos e programas que levamos às escolas em Portugal, de acordo com o que se pode fazer em função da voluntariedade e, sobretudo no Brasil. Depois temos um papel informativo. Já estivemos em 100 jornais e num número considerável de Rádios. Mas, estranhamente, houve uma menor apetência da comunicação social para a informação ao consumidor. E hoje estamos em meia dúzia de jornais e em três ou quatro estações de radiodifusão. Temos também um jornal virtual, o NetConsumo, que dispõe consultas na ordem das 1100/ dia. Trata-se, portanto, de uma antena permanente em que formamos e informamos os consumidores.

CA: Uma das vontades da APDC é alterar a lei que estipula a utilização de menores com 12 anos para fins publicitários. A lei portuguesa e europeia não resguarda os direitos das crianças? MF: Não. Países nórdicos como a Suécia ou a Dinamarca contêm nas suas legislações proibições neste sentido. A Suécia, por exemplo, tem desde há muito tempo acções consertadas de educação para o consumo entre as

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quais figuram lições para a educação na publicidade. Aquilo que nós estimamos, ao contrário da prática corrente do Ministério da Educação, é que haja educação para a publicidade para que as crianças e os jovens olhem de forma crítica que não acrítica. Portugal tem um código de publicidade que é também letra morta. É preciso repensar porque se as crianças são o melhor do mundo não as podemos deixar abandonadas a esta avidez com que são usadas pelo mercado, pelos publicitários, pelos anunciantes, pelos suportes. CA: Nos direitos do consumidor a justiça “cheira” a injustiça? MF: Justiça que tarda tem sempre o sabor a injustiça, ao contrário daqueles que dizem que justiça que tarda nunca falha. O direito do consumidor é o direito do dia-a-dia, do quotidiano. Se não tivermos uma justiça pronta, segura, gratuita e acessível, e solução imediata para os problemas, estamos efectivamente “feitos”.

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