Gozar, Godard, Cortar, Cortázar, ou Metafísica de la parrillada

May 25, 2017 | Autor: Luiz Felipe Soares | Categoría: Jacques Lacan, Julio Cortázar, Jean-Luc Godard
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Descripción



Apresentado no Colóquio Cortázar 100 anos, na Ufsc, dia 23 de setembro de 2014.
Cf. Sterrrit, David. Jean-Luc Godard: Interviews. Jackson: University Press of Mississippi, 1998, e Sterrrit, David. The films of Jean-Luc Godard: seeing the invisible. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
Godard, Jean-Luc. "Lemmy Caution erre dans le futur comme dans le 'labyrinthe' de Borges", Les Lettres françaises, n. 1077, 22 de abril de 1965.
Entrevista a Cley Gama de Carvalho. Veja, 7 de fevereiro de 1973
Miller, Jacques-Alain. Perspectivas dos escritos e outros escritos de Lacan: entre desejo e gozo. Tradução de Vera Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 198. Disponível em http://www.institutopsicanalise-mg.com.br/horizontes/textos/17a20.pdf
Miller, Jacques-Alain. Perspectivas dos escritos e outros escritos de Lacan: entre desejo e gozo. Tradução de Vera Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 198-9. Disponível em http://www.institutopsicanalise-mg.com.br/horizontes/textos/17a20.pdf.
Lacan, Jacques. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: ____. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998 (p. 807-842), p. 815.
Idem, p. 813.
Idem, p. 819.
Idem, p. 820.
Idem, p. 831-2.
Conférence de presse. Cahiers du cinéma n. 199 (março de 1968), p. 34.
Citado por Agamben, G.. Le cinéma de Guy Debord. In: Image et memoire. Paris: Hoëbeke, 1998.
Cf. http://www.imdb.com/title/tt0062480/fullcredits?ref_=tt_ov_st_sm
Libération Afrique: cinéma et domination étrangère en Afrique Noire. Peuples noirs, peuples africains (dir. Mongo Beti), n. 13, janeiro/fevereiro de 1980, p. 142. Disponível em http://mongobeti.arts.uwa.edu.au/issues/pnpa13/pnpa13_12.html
Lacan, Subversão do sujeito..., op. cit., p. 815.
Lacan, Jacques. L'inconscient. Paris: Desclée de Brouwer, 1966 (p. 159-170), p. 167.
Lacan, Subversão do sujeito..., op. cit., p. 817.
Collet, Jean. Le dur silence des galaxies. Cahiers du cinéma, 199, Mars 1968, p. 60.


Gozar, Godard, Cortar, Cortázar
(ou Metafísica de la parrillada)
Luiz Felipe Soares
Godard corta Cortázar. O nome Julio Cortázar, esse significante, não aparece nos créditos do filme. Nem nos cartazes, nem nas sinopses, nas críticas, nem mesmo nos Cahiers du Cinéma à época do lançamento. Seria necessário precisar (até agora não consegui) quando e onde essa associação entre filme e conto passa a ser assumida nos comentários em geral, até se tornar tão costumeira quanto é hoje.
O conto de Cortázar, "La autopista del sur", aparece no livro Todos los fuegos el fuego, lançado em Buenos Aires em 1966 pela Sudamericana. O filme de Godard, Week End, estreia em Paris no final do ano seguinte, dia 29 de dezembro de 1967. A edição francesa do livro, Tous les feux le feu, só saiu na França, pela Gallimard, dia 3 de junho de 1970, com tradução de Laure Gille-Bataillon. Em inglês, o livro sairia nos Estados Unidos em 1973, pela Pantheon (NY), e no Reino Unido em 1979, pela Marion Boyars. Daí se deduz que, se Godard leu realmente o conto antes de fazer o filme, deve tê-lo lido em espanhol, e se o fez, deve ter providenciado imediatamente a escrita do projeto do filme, que então teria sido viabilizado, realizado e lançado em tempo recorde – essa hipótese não deixa de ser plausível, dada a facilidade de produção para Godard à época: Week End foi seu décimo quinto longa em oito anos.
Mas podemos também pensar na possibilidade de Godard ter tido acesso ao conto, em Paris, antes da publicação na Argentina, talvez com a ajuda de algum intermediário, já que então Cortázar já morava em Paris havia cerca de 15 anos. Isso é improvável. É curiosa a ausência do nome de Cortázar em textos e entrevistas de Godard. Minha pesquisa está longe de se esgotar, mas até agora ele não apareceu. Não consta, por exemplo, em nenhum dos dois livros que David Serrit dedica a Godard, um de entrevistas, reunindo 14 delas em 1998, e um de resenhas, de 1999, no qual Serrit escreve 40 páginas sobre Week End sem mencionar Cortázar. Nos arquivos dos Cahiers, igualmente, até agora nada. Há um contraste evidente, por exemplo, com a presença de Borges, citado textualmente em Alphaville, de 1965. O título da entrevista de Godard para Les Lettres françaises, à época do lançamento de Alphaville foi uma frase dele: "Lemmy Caution erre dans le futur comme dans le 'labyrinthe' de Borges".
Simetricamente, é parca a presença do nome de Godard em Cortázar. Aparece por exemplo em "Modelo para armar", do ano seguinte ao filme (1968), quando Marrast convida Nicole a ir ao cinema. Aparece também na entrevista que Cortázar deu a Veja em fevereiro de 1973, mas apenas no sentido de manter a distância. O entrevistador era Cley Gama de Carvalho, que lhe pergunta sobre Valentina. Cortázar responde: "Sou muito tonto para entender Valentina. Gasto horas relendo. (...) No cinema é a mesma coisa. Assisti até quatro vezes a alguns filmes de Godard porque não entendia nada".
É preciso então assumir logo a dificuldade: é tão surpreendente dizer que o filme é baseado no conto quanto dizer que não é. De qualquer modo, a associação acaba instalando no filme, historicamente, o nome de Cortázar como um corte. Além disso, junto a isso, o conto, ao aparecer no filme como ausência, o próprio conto como corte ou ponto de partida, enfim, o conto como escrita se alia às imagens da escrita no filme – nos cartazes de letras grandes e coloridas então já quase obsessivos em Godard – para nos lembrar da hipótese que Lacan desenvolvia na mesma época, segundo a qual o gozo é ordenado à estrutura de linguagem. Jacques-Alain Miller resume: "A partir do momento em que se trata de gozo – simplifico – é o corte que encontramos. Lacan funda sobre o traço de corte a introdução da estrutura de linguagem no gozo. E Lacan diz simpaticamente: pois bem, ao final, tudo o que resta é o próprio corte". Conforme explica Miller,
O essencial da estrutura da linguagem seria o corte que isola as suas unidades. Reencontramos esse corte na delimitação das zonas erógenas que, no organismo, são especialmente locais de borda e também na bordadura dos objetos pulsionais. Consideramos esse corte – presente no nível do gozo – como o que articula o gozo à estrutura de linguagem, o que torna o gozo conforme à estrutura de linguagem.
Embora Lacan valide a palavra corte por meio da topologia, na qual os cortes com a tesoura têm efeitos transformadores sobre a estrutura dos objetos matemáticos, tal palavra não deixa de ser completamente equívoca. É que o corte propriamente linguístico introduz o negativo, introduz o menos, ao passo que os cortes que se pode querer designar no nível libidinal não anulam a positividade de conjunto. Portanto, aqui, o termo corte é também um amboceptor. [...] Temos aqui esse ambíguo de desejo e de gozo, um ambíguo lingüístico-libidinal, com o qual pensamos resolver os paradoxos propostos pela experiência.
De fato, pouco antes do conto e do filme, Lacan sugeria aos colegas analistas que o sujeito que lhes interessa se surpreende no mais forte dos cortes, ou seja, "aquele que serve de barra entre o significante e o significado". A seção analítica se institui como ruptura no discurso falso, "naquilo que o discurso realiza ao se esvaziar como fala". Ele lembra que "o inconsciente, a partir de Freud, é uma cadeia de significantes que em algum lugar (...) se repete e insiste, para interferir nos cortes que lhe oferece o discurso efetivo". Lacan apresenta então como o desejo se situa "em relação a um sujeito definido por sua articulação pelo significante".
Em cada ponto em que o significante tenta deter o deslizamento da significação, aparecem cruzamentos, ou cortes, entre a cadeia significante e o vetor do desejo – que Lacan distingue plenamente de demanda ou necessidade, no sentido de caracterizá-lo justamente como indefinição. Um desses cruzamentos nos traz todo o tesouro do significante, de modo que cada significante "só se sustenta pelo princípio de sua oposição a cada um dos demais". Este é o lugar do Outro, da combinatória absoluta, sem essência, sem verdade, na qual o sujeito se insere, recebendo desse Outro a mensagem que ele próprio emite – tudo o que ele diz depende desse Outro. O segundo cruzamento correspondente à pontuação, ao uso da língua, corresponde ao sonho da significação como produto acabado. A submissão do sujeito ao significante se produz entre um cruzamento e outro. A impossibilidade de controle da significação acaba correspondendo justamente ao sujeito como falta, como vazio que se estabelece no corte que se efetua no uso da língua, entre o ímpeto à verdade, ou ao controle impossível da significação, e o fingimento desse controle na fala.
O gozo é dependente do corte enquanto estrutura linguística no sentido de que o sujeito desvanece em seu encontro com aquele Outro, identificado com o tesouro dos significantes, e também com a pulsão, confundida com a demanda. "Que a demanda também desaparece, é evidente, exceto que resta o corte, pois este continua presente no que distingue a pulsão da função orgânica que ela habita: ou seja, seun artifício gramatical, muito patente nas reversões de sua articulação com a fonte e com o objeto".
O próprio corte, que no fim das contas une e separa Godard e Cortázar, gozo e corte, é aprofundado pela dissimetria de poder. Em primeiro lugar, ainda que a diferença cronológica seja muito pequena, de cerca de um ano, Cronos em pessoa veio salvar Cortázar de qualquer acusação de ter baseado seu conto no filme. O livro foi lançado antes. Essa dissimetria garante ou estimula outra. Há um indisfarçável prazer poscolonial, ou anticolonialista, na imagem de um autor europeu consagrado ter baseado sua obra, seu gozo, num autor latinoamericano consagrado. Essa imagem já havia aparecido em Alphaville, bem pouco antes, e agora bate forte na porta de novo, querendo voltar. Trata-se, é claro, de uma dissimetria colonial, de um corte histórico. A associação entre filme e conto é nitidamente mais frequente por parte de comentadores latinoamericanos do que de europeus. (E é curioso o fato de que os próprios autores, Godard e Cortázar, passam longe dessa briga.)
O prazer relativo a essa dinâmica específica entre gozo e corte em Week End, pelo menos no meu caso, aumenta por se tratar de Godard. O próprio Godard se divide, e já o fazia à época, entre sua posição já canônica no âmbito da produção cultural europeia e sua radicalidade, dirigida a vários sustentáculos dessa cultura. É um dos nomes emblemáticos tanto da estrutura da fase inicial dos Cahiers du cinéma, durante os anos 50, quanto da ruptura posterior com a intelligentsia francesa, no fim dos 60, pouco depois de Week End, rumo à violência esquerdista do Grupo Dziga Vertov.
No mesmo número dos Cahiers, o 199, de março de 1968, em que saíram os primeiros textos sobre Week End, assinados por Jacques Aumont e Jean Collet, há um editorial em protesto contra a arbitrária demissão de Henri Langlois da Cinemateca Francesa e uma transcrição do debate aberto à imprensa, conduzido por Godard, que elabora dez questões, desenvolvidas então por Astruc, Rivette, Chabrol e Kiejman. A primeira questão é "Qu'est-ce que la Cinematheque Francaise aujourd'hui?", e a quinta, reforçando o princípio já exposto no editorial, é "La Cinematheque Francaise peut-elle exister sans Langlois?". Tratava-se já, plenamente, do contexto que se deixou emblematizar pelas barricadas de maio. Pouco antes de Week End, Godard havia lançado La chinoise e recebido o título dado por Debord de "le plus con des Suisses prochinois".
A ambivalência de Godard aparece no filme. Uma das sequências mais longas e curiosas é aquela dos discursos revolucionários. Os personagens do caminhãozinho amarelo que dão carona aos protagonistas, um branco e um negro, param numa estrada vicinal para um lanche, enquanto Corine e Roland trabalham carregando o caminhão. O branco e o negro estão em pé encostados no caminhão comendo seus pães, Roland sobe à carroceria enquanto Corine, fora de quadro está recolhendo as caixas que deixou cair. Roland lhes pede pão, recebe uma migalha; pede mais um pouco, e o negro lhe explica que aquele pão corresponde exatamente à parte do orçamento americano endereçada ao Congo. Corine chega, pede pão ao branco e só ganha depois de beijá-lo, primeiro na bochecha e então na boca. Enquanto come ainda leva uma tapa do branco, que esclarece estar aplicando a ela a mesma lei que as grandes companhias de petróleo aplicam à Argélia: a lei do beijo e do chute na bunda. Então o branco (Lex de Bruijn) aparece em close dizendo "Mon frère noir va dire ce que je pense".Ele continua em close enquanto ouvimos a voz do negro em seu discurso revolucionário. Depois acontece o oposto, o negro (Omar Diop) aparece em close dizendo "Mon frère arabe va parler pour moi", e então ouvimos a voz do branco num discurso revolucionário, muito parecido, praticamente uma continuação. Alguns planos já vistos no filme reaparecem durante o discurso, como a aparição de Saint Just na relva. O discurso, em resumo, começa justificando o otimismo africano, lembrando que os povos africanos sofreram também uma forma de extermínio nazista e que agora devem estar unidos e preparados para combater esse nazismo na América e na Europa. Declara (enquanto vemos Saint Just) que a África não será libertada pelo desenvolvimento industrial, mas pelas mãos e pelos cérebros dos africanos, e confia em que esta libertação está próxima. Sentencia que a liberdade negra tem o mesmo valor da branca, e deve ser estabelecida pelos mesmos métodos, recusando mesmo o pacifismo, a paciência e o amor:
La liberté des noires a autant de valeur que celle d'en blanc. Je prétends que le noir est en droit, pour conquérir sa liberté, de faire tout ce que d'autres hommes ont pu faire pour conquérir la leur (...) nous sommes, vous et mois, en droit et en état de suivre l'exemple, de tous ces qui, pour être libre, ont sacrifié leur vie et aussi pris la vie à d'autres hommes, et que nous sommes prêts à les imiter.
Por fim, o revolucionário declara guerra contra a América e seus amigos, indicado que, estando em desvantagem de forças, estão aprendendo técnicas de guerrilha inclusive a partir da lição que quanto a isso tiveram soldados americanos com os próprios vietcongues. Enquanto se fala do uso de todo tipo de sabotagem possível, estando os negros infiltrados até nas casas dos brancos, vemos novamente um pedaço do famoso travelling da estrada com vários corpos brancos estendidos.
Há claramente um misto de efetividade de uma fala revolucionária real com a ladainha sonora associada à retórica a ao vocabulário típicos. Tanto quanto a ironia da sigla FLSO, Front de Libération de Seine et Oise, se aproxima e se afasta de qualquer frente de liberação – antecipando inclusive a Front de Libération de la Solmalie Occidentale, a sequência desse discurso da libertação africana, grudado àquele da questão árabe ou muçulmana, indica ironicamente proximidade e distância de qualquer iniciativa história de guerra sistemática à dominação do capitalismo industrial.
Irônico também é que o personagem negro do filme é referido no Imdb como "Mon Frère Africaine", e o ator, Omar Diop, assim como o irmão árabe e vários outros, também não ganha crédito. Mas a ambivalência ganha força quando consideramos a ironia da própria viabilização do filme, que tem entre os produtores a Comacico, Compagnie Africaine Cinématographique Industrielle et Commerciale, fundada em 1959. Em texto não assinado, a revista Peuples noirs, peuples africains, dirigida por Mongo Beti, em seu número 13, de 1980, aponta a Comacico e a Secma (Société d'Exploitation Cinématographique Africaine) como as controladoras absolutas da distribuição e da exploração do cinema na África negra francófona.
Comacico et Secma rapatrient en Europe chaque année environ 40% du chiffre d'affaires réalisé sur le sol africain et réinvestissent ces capitaux dans d'autres secteurs jugés plus rentables. Cet effet de détournement des revenus, caractéristique des sociétés capitalistes, représentait en 1960 le salaire annuel de 2000 ouvriers d'Abidjan pour la Secma et de 4000 ouvriers pour la Comacico.
A ambivalência de Godard, longe de se restringir à questão africana, atinge – já no filme – a profundidade do questionamento das próprias condições de possibilidade da representação histórica europeia pela imagem e pela linguagem. Saint Just ressurge em pessoa diante dos protagonistas, com seu discurso libertário... tão teatral quanto provavelmente o era na Assembleia 200 e poucos anos atrás, só que agora naquele cenário apocalíptico: não deu certo, mas ainda aparece íntegro, morreu mas passa bem. Como Agamben indicou em conferência no início de 1995, logo após o suicídio de Debord, Godard – tanto quanto Debord, mas de modo bem diferente – tem uma teoria da imagem que investiga as condições de possibilidade do próprio cinema – uma delas sendo, justamente, o corte, a outra, a repetição. Claro que, em Godard, essa teoria tomaria corpo de fato em 1988, com o primeiro capítulo das Histoire(s) du cinéma, mas já nos primeiros filmes, incluindo Week End, ela se anuncia justamente nesse misto de imagem e linguagem em ameaça recíproca, ao mesmo tempo reconhecendo e desconfiando da vida de elementos passados, perigosamente revolvidos.
Enfim, observar Cortázar como corte em Godard não equivale a ver, dicotomicamente, em Cortázar a estrutura de linguagem introduzida no gozo de Godard. Mais do que isso, Cortázar se introduz, e permanece, como estrutura linguística, cultural, complexa, que nos faz ver o gozo godardiano, bem como os próprios cortes do filme, como dependente(s) de uma estrutura discursiva que sustenta tanto o discurso colonial quanto sua autodestruição. Ou seja, Cortázar como corte contagia os cortes do gozo de Godard, dá a eles uma cor que eles não tinham. Sob outro ponto de vista, o nosso talvez, o que se vê é a invasão de Cortázar na estrutura de linguagem que atua como corte no gozo possível e alucinado, destruidor e lucubrador, de Week End.
Ainda quanto às dissimetrias, ou melhor, às interseções que caracterizam o corte fantasmático de Cortázar, podemos ver aquela entre concentração e dispersão. As doze pistas entupidas de "La autopista del sur", num ponto mais próximo de Fontainebleau do que de Paris, concentram o absurdo da civilização europeia sem saída. Os personagens, seus nomes, ao longo do conto acabam se confundindo com os nomes das marcas de seus carros, marcas quase todas europeias em geral, francesas em particular. Os nomes são marcas – Peugeot, Renault (que fabrica o Dauphine da guria), Citroën, Volkswagen, Simca, Mercedes, Ford, Lancia, Skoda, BMC, Peugeot, Porsche, Volvo etc. Não apenas escroques, moralistas, freiras, engenheiros, aposentados ou burgueses fúteis, com seus conflitos e suas urgências, mas também a virulenta inviabilidade da conexão dessas vidas: viver junto é tão impossível quanto permanecer parados na estrada por meses, como esses personagens se mantêm. A melancólica liberação da estrada, com a frustração do protagonista quanto à vida que virá depois, é como a explosão desse absurdo superconcentrado a espalhar destroços pelo futuro europeu.
A dissimetria está na dispersão do absurdo em Godard. Vemos pouco de um engarrafamento e muito dos destroços espalhados, carros ardendo, cadáveres no asfalto, corpos despedaçados, discursos desmembrados e soltos imitando antigos fogos fátuos, imagens, letras e personagens fragmentados surgindo e sumindo sem razão ou sentido em meio à dor, ao gozo geral. A autopista que insiste em assombrar o cenário é literalmente "del sur", do sul de Paris, assim como a África dos argelinos, dos frères africains, de Mongo Beti ou de Omar Diop, assim como a América Latina de Cortázar e dos guerrilheiros reunidos na imagem do Che vivo, muito próxima à do próprio Cortázar, ou aquela do Che morto, suficientemente distribuída pelos caçadores dois meses antes do lançamento do filme. O engarrafamento é então o corte fantasmal cortazariano que faz concentrar toda a absurda tensão do sul à beira de Paris. O gozo se faz, em retorno, na dispersão desse absurdo a partir de Paris, a partir desse corte do Sul.
A análise da dissimetria precisa também considerar o que há em comum, principalmente a fluência. Tanto no conto quanto no filme, a impressionante fluência do discurso e do aparecimento de imagens contrasta justamente com o engarrafamento, com a paralisia do mundo. Em ambos os trabalhos, se pudéssemos confiar na distinção entre o mundo diegético e o extradiegético, diríamos que todo o entrave do primeiro chega a ser ironizado pela absoluta liberdade de movimentos que caracteriza o segundo. Já na abertura, o primeiro parágrafo de Cortázar o demonstra de modo exemplar. Em todo o conto, percebe-se que Cortázar usa poucos pontos finais – poucos cortes. Mas nesse aspecto o primeiro parágrafo é especial: tem 370 palavras e apenas um ponto, que separa as duas primeiras orações de todas as outras, resultando em 345 palavras sem separação por ponto. O sujeito da primeira oração é a guria do Dauphine, o da segunda é o engenheiro do Peugeot 404. Em todo o restante do longo parágrafo, o olhar do narrador sobrevoa os carros parados nas 12 pistas com serenidade e total liberdade, entrando e saindo de qualquer um deles pelas aberturas ou pela transparência dos vidros, dispensando as respirações para além de vírgulas ou parênteses:
Al principio la muchacha del Dauphine había insistido en llevar la cuenta del tiempo, aunque al ingeniero del Peugeot 404 le daba ya lo mismo. Cualquiera podía mirar su reloj pero era como si ese tiempo atado a la muñeca derecha o el bip bip de la radio midieran otra cosa, fuera el tiempo de los que no han hecho la estupidez de querer regresar a París por la autopista del sur un domingo de tarde y, apenas salidos de Fontainbleau, han tenido que ponerse al paso, detenerse, seis filas a cada lado (ya se sabe que los domingos la autopista está íntegramente reservada a los que regresan a la capital), poner en marcha el motor, avanzar tres metros, detenerse, charlar con las dos monjas del 2HP a la derecha, con la muchacha del Dauphine a la izquierda, mirar por retrovisor al hombre pálido que conduce un Caravelle, envidiar irónicamente la felicidad avícola del matrimonio del Peugeot 203 (detrás del Dauphine de la muchacha) que juega con su niñita y hace bromas y come queso, o sufrir de a ratos los desbordes exasperados de los dos jovencitos del Simca que precede al Peugeot 404, y hasta bajarse en los altos y explorar sin alejarse mucho (porque nunca se sabe en qué momento los autos de más adelante reanudarán la marcha y habrá que correr para que los de atrás no inicien la guerra de las bocinas y los insultos), y así llegar a la altura de un Taunus delante del Dauphine de la muchacha que mira a cada momento la hora, y cambiar unas frases descorazonadas o burlonas con los hombres que viajan con el niño rubio cuya inmensa diversión en esas precisas circunstancias consiste en hacer correr libremente su autito de juguete sobre los asientos y el reborde posterior del Taunus, o atreverse y avanzar todavía un poco más, puesto que no parece que los autos de adelante vayan a reanudar la marcha, y contemplar con alguna lástima al matrimonio de ancianos en el ID Citroën que parece una gigantesca bañadera violeta donde sobrenadan los dos viejitos, él descansando los antebrazos en el volante con un aire de paciente fatiga, ella mordisqueando una manzana con más aplicación que ganas.
Essa apresentação, que obviamente não permite prever que o engarrafamento duraria semanas, com consequências muito estranhas, já apresenta os personagens e expõe algumas regras do jogo, como a própria liberdade de movimentos do narrador e o modo como ele se refere aos personagens, sempre na dependência da marca do carro, com as quais eles vão depois se confundir sem pudor.
A mesma fluência, no filme, nos chega através do famoso travelling de 300 metros ao longo da estrada, pouco depois das sequências iniciais. Vemos o carro de Corine e Roland transgredindo a berros e buzinas a regra da paciência imposta aos outros motoristas, enquanto a câmera passeia por ali com total serenidade, sem qualquer empecilho, colocada a mais de dois metros de altura sobre um carrinho que por sua vez desliza pelo trilho de 300 metros instalado ao lado da vala de escoamento de água do asfalto. Godard, aliás, foi fotografado saltando a vala em direção ao trilho do travelling, como que comemorando essa liberdade – atitude que se soma ao sorriso diante do incêndio de carros bem sucedido em outra foto.
A movimentação do olhar por entre as cenas é igualmente suave, firme, constante em ambos os casos. Pouco se observa as transições. No conto, o fluxo verbal do narrador quase não deixa marcas divisórias entre dia e noite, entre o calor e o frio. No filme, os espaços se sucedem também quase sem fronteiras, por mais que variem de uma estrada de asfalto a uma de areia ou ao meio de uma floresta fechada. Ambos os textos valorizam, portanto, num sentido amplo, a perfeição do raccord.
Isso é importante para a caracterização dessa fluência de ambos os olhares porque essa suavidade das passagens corresponde na maior parte das vezes a um salto improvável ou impossível entre situações logicamente díspares. A fluência do olhar vence a descontinuidade, torna contíguo o que é separado, metonímico o que deveria ser metafórico. Normalmente se atribui ao conto, assim como a quase tudo o que Cortázar escreve, o caráter "fantástico", enquanto o adjetivo que frequentemente recai sobre o filme é "surrealista". Seria difícil (e inútil) dar a essas adjetivações o rigor que lhes falta, mas podemos tomá-las como sintomas do estranhamento que causa esse raccord radicalizado, em que a fluência do olhar simplesmente (para além das categorizações) vence as distâncias espaçotemporais e dispensa solenemente qualquer necessidade de explicação – o próprio motivo do engarrafamento de semanas simplesmente não aparece. Os protagonistas interagem com Emily Brontë ou com o baterista na floresta, ou seja, com gente que não podia estar ali; tanto quanto encontram abertas, para sair ou para entrar, as portas de seu mundo diegético: eles reclamam do próprio filme que os aprisiona, por exemplo, e reconhecem os atores italianos da própria coprodução que lhes dá condição de existência.
Simplesmente não há explicação. Assim nessa fluência extrema do olhar, em ambos os casos (mas estruturalmente no corte de Cortázar), há, como também há no intervalo entre enunciado e enunciação, um vazio correspondente ao sujeito que fala, ou melhor, ao sujeito desse olhar fluente impossível. Há um [Eu], para além do diegético, estruturado na linguagem, que se deixa ver justamente na ausência da substancialidade, ou da necessidade que simplesmente impossibilitaria essa fluência mágica.
A radicalidade da fluência vai além. Em ambos os casos, o olhar fluente, desprendido da materialidade do eu que habita o espaço em questão, se separa – assim como o poeta que transforma sua própria linguagem em imagem – do próprio ethos que o constitui. E em ambos os casos esse ethos é catastrófico, constituído biopoliticamente. Através dessa fluência radical, o engarrafamento de ambos deixa de ser vaga metáfora e passa a ser sinédoque da catástrofe biopolítica geral, da própria inviabilidade da cultura. No engarrafamento não há saída. Os sonhos, os conflitos, o mercado negro de água e comida, as esperanças, a ansiedade e o conformismo, tudo isso, em conjunto, pode ser lido, é claro, como microcosmo do mundo de base europeia, mas a partir do corte linguístico que elide o sujeito e faz ver o buraco desejante do sentido, é possível ver, sob um olhar fluente para todos esses agitos, uma submissão coletiva, radical, a uma situação que se define simplesmente pela absoluta falta de sentido.
Essa submissão se torna mais intensa com o calor. O calor em Cortázar atinge violentamente a pele, as entranhas, os pneus, os olhos ofuscados pelos reflexos nos cristais e nas partes cromadas. A falta d'água se torna o centro de boa parte dos conflitos. Em Godard é o fogo. Volta e meia nos aparecem os carros queimando e o convite ao cheiro de corpos carbonizados no asfalto quente. A submissão radical, inexpugnável, a essa situação lembra (como lembrou a protagonista de Lejos de donde, de Cozarinsky), a óbvia falta de reação dos cortes de carne ou dos embutidos nas parrillas do Sul, muito conhecidas de Cortázar. A fluência poética de ambos, Godard e Cortázar, por sobre os detalhes do mundo engarrafado que se vê como sinédoque parisiense da invasão do sul produz então, metaforicamente, uma metafísica da parrillada.
Esse calor, esse fogo, intensifica a presença de Cortázar como corte no gozo godardiano. É preciso lembrar que o título do livro em que aparece o conto tem, por antecipação, a estrutura do primeiro dos oito livros e filmes das Histoire(s) du cinéma, que sairia em 1988, apenas substituindo a história pelo fogo: Todos los fuegos el fuego em Cortázar (1966), Toutes les histoires, une histoire seule em Godard (1988). Acrescente-se que na França, em 1970, o livro de Godard foi lançado como Tous les feux le feu, ou seja, com a riqueza fonológica bem ao gosto de Godard, já que singular e plural de fogo aqui têm exatamente o mesmo som, e também o mesmo som de falso ou de falsos. O mesmo som, aliás, que aparece em Week End no cartaz que anuncia a Faux-tographie, fotografia feita e não feita, não de fótons, mas de faux/feux, ou seja, do som, tanto de falsos quanto de fogos.
Acrescente-se ainda que o singular plural, assim sem vírgula como no título de Cortazar, corresponde, como já indiquei em outro ensaio, ao pilar central da enunciação da teoria da imagem – e da história e do cinema – que distingue Godard, principalmente a partir das Histoire(s), de toda a tradição de simplificação e do conformismo da imagem como representação ou como respeito à lógica e à intenção. Aquilo a que me refiro aqui como corte em Cortázar, dando cor de sangue ou fogo ao gozo de Godard, contagia a pluralidade dos cortes em Godard, sugerindo também um corte singular plural, todos os cortes, o corte, como condição fantasmática de possibilidade do filme.
Essa pluralidade do corte, que parece permear filme e conto, justamente na fluência que se impõe na paralisia, faz ver o quanto ambos devem também ao corte, talvez ao estilo, de Bataille. Em Cortázar paralisia e movimento reforçam o cerne da teoria bataillana do erotismo. Durante o engarrafamento, cuja duração, a rigor não tem como ser precisamente medida, o que se observa é uma forçosa continuidade entre os corpos, confortável ou não, agradável ou não, erotizada na relação entre o Dauphine da guria e o Peugeot 404 do engenheiro. Na dispersão final, a angústia do engenheiro aparece justamente quando ele percebe o fim daquela continuidade e a retomada da costumeira descontinuidade civilizatória – parisiense neste caso. É preciso agora lembrar de Lacan apontando o corte da cadeia siginificante como verificação da "estrutura do sujeito como descontinuidade no real".
Em Godard, a vida humana, cultural, civilizada, é justamente essa descontinuidade, em que cada corpo está individualizado, vestido, construindo sua pequena liberdade normatizada. A descontinuidade, talvez como potência de vida, só se produz na morte, no êxtase religioso e no erotismo. O corte cortazariano parece sugerir o acréscimo do engarrafamento, ou da parrillada, a essas situações.
Aquilo que Corine relata no início do filme, apenas falando, apenas de sutiã e calcinha, aquela cena contada, é obviamente bataillana ao extremo, praticamente citação da História do olho. No relato de Bataille, o olho fica muito próximo do olho. No relato de Corine, na cena da masturbação coletiva na cozinha, enquanto ela está de quatro, um ovo é colocado entre suas nádegas, e se rompe quando ela goza. Temos apenas as palavras faladas, e imaginamos o corte, a ruptura do ovo, gema e clara fluindo no gozo geral. No colóquio de Bonneval de 1960, sobre a posição do inconsciente, Lacan propõe: "À casser l'œuf se fait l'Homme, mais aussi l'Hommelette". A palavra omelete aqui se refere também, ambivalentemente, a homenzinho, neste caso homenzinhos fritos, queimados, no gozo inevitável de uma coletividade venda do sul, reunida e assada inexoravelmente no charme erótico centro. Lembremo-nos de que, se em Bataille o erotismo coloca o próprio ser em questão, em Lacan é nos próprios furos, no próprio corte da cadeia significante que o ser estremece, "pela vacilação que lhe retorna de seu próprio enunciado".
O clímax da concentração em Cortázar, o que não deixa de equivaler a gozo, torna-se o fim dos tempos para o engenheiro, a volta à catastrófica descontinuidade, ou seja, da dispersão absoluta que caracteriza o inferno gozoso em Godard – como indica o cartaz no início, um filme achado no ferro velho. Como propõe Jean Collet,
Godard presente volontiers son travail comme des fragments d'un film imaginaire. Rien n'est plus eloigne de son esprit que la notion d'oeuvre telle que l'a forgée pour nous la culture classique: defi a l'usure du temps. 'Week-End' nous rappelle d'abord que le cinema est le plus perissable de tous les arts.


27/06/2013 18:03 Notimex / Foto: Especial (http://www.excelsior.com.mx/comunidad/2013/06/27/906274)

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