Governança corporativa em cooperativas de crédito: a importância da confiança entre constituintes do SICREDI Região dos Vales, RS - Governance in credit unions: the role of trust among stakeholders of SICREDI Região dos Vales, RS, Brazil

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ESAC Economia Solidária e Ação Cooperativa 1(1):26-32, julho/dezembro 2006 © 2006 by Unisinos

Governança corporativa em cooperativas de crédito: o papel da confiança entre stakeholders no SICREDI Região dos Vales, RS Corporative government of credit union: the role of trust in stakeholders of SICREDI Região dos Vales, RS, Brazil

Maurício Tombini Nunes1 [email protected]

Profa Dra. Tania Nunes da Silva2 [email protected]

Resumo Este artigo examina a importância de normas sociais para a governança corporativa de cooperativas de crédito, sob a ótica dos seus stakeholders. Para aprimorar a compreensão das teorias envolvidas nesta questão, foi realizado um estudo de caso de natureza exploratória e descritiva, cuja unidade de análise foi uma cooperativa de crédito gaúcha com alto padrão de desempenho, integrante do sistema SICREDI. Os dados primários (entrevistas em profundidade com o gerente regional e o presidente do Conselho de Administração) foram analisados à luz dos conceitos de governança corporativa (abordagem stakeholder) e doutrina cooperativista. Os dados secundários (demonstrações financeiras e outras fornecidas pela cooperativa) passaram por análise documental. O estudo de caso ajuda a concluir que mecanismos de governança baseados em normas sociais são mais adequados do que mecanismos baseados em incentivos econômicos para lidar com situações onde o risco de oportunismo é grande, como em organizações cuja propriedade é muito dispersa e custos de agência são mais altos. Cooperativas de crédito que alinhem suas práticas com o ideário cooperativista podem estabelecer um diferencial de desempenho em relação às demais, através de práticas de governança superiores, baseadas em processos sociais não replicáveis. Palavras-chave: governança, cooperativas, stakeholders, confiança.

Abstract This article examines the importance of social principles for the corporative government of the credit union, under the view of its stakeholders. As an attempt to improve the comprehension of the theories involved in this matter, a case study of exploratory and descritive matter was made, of which unit in analysis was a credit union of Rio Grande do Sul, South of Brazil, with a high standard of performance, member of the SICREDI system. The fundamental data (interviews in thoroughness with the regional manager and the Chairman of the Board of Directors) were analyzed under corporative government concepts (stakeholder approach) and cooperative doctrine. The minor data (financial demonstrations and others, provided by the cooperative) were obtained from documental analysis. The case study helps to conclude that the government mechanisms based on social principles are more suitable than mechanisms based on economical incentives to deal with situations in which the risk of opportunism is high, as in organizations which property is far too disperse and branch agencies costs are higher. Credit unions that put its practices in line with the cooperatives ideals, through superior government practices based on non-replicable social processes, can establish a unique performance compared to others.

1 Graduado em Administração pela Ufrgs. 2

Key words: government, cooperatives, stakeholders, trust.

PPGA e Cepan/Ufrgs.

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Governança corporativa em cooperativas de crédito

Nesta seção, o artigo pretende esclarecer os conceitos de governança corporativa, a lógica e estruturação diferenciadas da organização cooperativa, e as peculiaridades da governança de cooperativas de crédito. A seguir, são apresentados o método utilizado e os resultados do estudo. Governança corporativa A noção de governança é bastante abrangente. Podese falar em governança de uma transação, governança corporativa, governança de cadeias de valor, e governança “cívica”, ou pública. De modo genérico, governança diz respeito à geração, implementação e monitoramento de regras e acordos sociais, bem como à legitimidade de todo este processo. Lodi (2000) afirma que, a Governança Corporativa (GC), sem esta denominação, vem passando por uma evolução há 50 anos, tendo atingido a maturidade nos anos 1990. O termo surgiu para denominar o sistema de relacionamento entre acionistas, auditores independentes e executivos de empresas, liderado pelo conselho de administração. Com o passar do tempo, foram aparecendo os “Códigos de melhores práticas de Governança Corporativa”, sendo que um deles, o relatório Cadbury, consagrou os seguintes princípios que orientam a missão do conselho de administração (board): Fairness, traduzida por senso de justiça e equidade para com os acionistas minoritários contra transgressões de majoritários e gestores; Disclosure, que significa transparência, com dados acurados, registros contábeis fora de dúvida e relatórios entregues nos prazos combinados; Accountability, ou responsabilidade pela prestação de contas por parte dos que tomam as decisões de negócios; Compliance, ou obediência e cumprimento das leis do país. O debate sobre GC gera atualmente uma certa polarização: os Estados Unidos são vistos como o maior expoente na defesa da maximização do ganho do acionista (abordagem shareholder), enquanto a Alemanha é tida como a defensora do princípio dos stakeholders, que são todos os agentes cujas decisões afetam a firma, ou cuja utilidade é afetada pelas decisões desta. Uma abordagem teórica bastante utilizada para discutir a governança da firma é o da Teoria da Agência. Nessa perspectiva, um sistema de Governança Corporativa emerge justamente para procurar resolver o problema de agência gerado pela separação da propriedade e do controle das organizações. É útil explorar o conceito de Agência. Jensen e Meckling (1976) definem uma relação de agência como um contrato onde uma ou mais pessoas (principal[is]) contratam outra(s) pessoa(s) (agente[s]) para realizar algum tipo de serviço em seu favor, que envolva alguma forma de delegação de autoridade decisória ao agente. Se ambas as partes buscarem maximizar sua utilidade,

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é provável que o agente nem sempre aja de acordo com os interesses do principal, e contornar este impasse necessariamente gera custos (pecuniários ou não), denominados “custos de agência”. Na literatura que se ocupa dos interesses dos shareholders , eles são considerados os principais carregadores de risco, e é neles que deve se concentrar a alocação dos direitos de propriedade. No entanto, alguns grupos “apostam” na firma, muitas vezes mais que os próprios acionistas, realizando investimentos mutuamente específicos que não podem ser replicados por mecanismos de mercado. Na abordagem stakeholder isto é a base para o reconhecimento das reivindicações de grupos que não são legalmente detentores de direitos de propriedade da firma. Freeman e McVea (2000) observam que a abordagem stakeholder não é inteiramente nova. O uso do termo cresceu com o trabalho pioneiro do Stanford Research Institute (SRI) nos anos 1960. O trabalho do SRI, essencialmente, argumentava que os gestores precisavam entender e levar em conta as preocupações dos diferentes stakeholders, de modo a obter seu comprometimento. Porém, há uma grande diferença entre “levar em conta” e “ser responsável diante” dos interesses dos stakeholders da firma. Gestores que negligenciam esta responsabilidade, tornando a distribuição do valor criado dentro da firma excessivamente assimétrica, podem enfrentar cobranças ainda mais importantes do que a dos acionistas. A abordagem Stakeholder parece ser mais apta a incorporar o conceito de trust, ou confiança do que a visão da primazia dos shareholders, mais inclinada para o uso de mecanismos contratuais de governança. Conforme Jones e Wicks (1999), embora existam muitos meios para limitar e ou controlar o oportunismo - monitoramento, mecanismos de alinhamento de interesses e incentivos de performance, por exemplo - eles são quase sempre muito custosos. Um modo mais eficiente de controle do oportunismo é a adoção de normas e padrões morais compartilhados e que guiem os agentes nas relações econômicas. Além disso, a abordagem stakeholder reconhece que não é perfeitamente possível precificar ex-ante os esforços não verificáveis dos agentes, que também carregam uma parcela do risco da firma ao ter de confrontar situações inesperadas e tomar decisões cujos resultados (positivos ou negativos) não estão previstos na distribuição contratual. Uma vez que não podem ser objeto de contrato ex-ante, estes resultados devem ser apropriados em um processo de barganha ex-post. Transferências de benefícios podem ser efetuadas, desde que preservem a manutenção da coalizão entre os stakeholders, em arranjos que coloquem uma ou mais partes em melhor situação sem piorar definitivamente a situação das outras. No caso de deterioração da utilidade de uma parte, esta deverá ter a garantia de compensação no futuro. Assim, na ótica da “defesa” dos stakeholders, questões como a compensação de perdas, distribuição

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Referencial teórico

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de valor, entre outras, deslocam-se do domínio da técnica pura e tornam-se decisões mais ou menos politizadas. A maximização da riqueza de uma parte é substituída pela negociação acerca de qual dimensão deve ser maximizada naquele momento, para que se atinjam os objetivos que são a tradução prática da razão pela qual a organização existe. A barganha ex-post de um período torna-se o arranjo ex-ante do próximo, definindo as expectativas das partes, que por sua vez servirão de guia para as decisões dos agentes. Esta negociação é mais ou menos eficiente na medida em que economiza em custos relacionados ao oportunismo e risco moral. Neste sentido, combinações de mecanismos formais de incentivos contratuais são mais custosos que a confiança, ou trust, em sua forma forte.

Lógica e estruturação diferenciadas da organização cooperativista

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A sociedade cooperativa, além de disciplina jurídica própria, que varia conforme o contexto nacional e regional, possui uma identidade internacional, homologada pela Aliança Cooperativa Internacional (ACI). Essa identidade lhe é conferida através da observação de alguns princípios fundamentais, cuja elaboração se iniciou na metade do século XIX, com a experiência dos tecelões de Rochdale, na Inglaterra. Os princípios definidos pela ACI estabelecem claramente as características principais de toda organização cooperativista, em qualquer setor ou país. Com base na definição divulgada pela ACI em 1995, pode ser dito que uma cooperativa é uma associação autônoma de pessoas que se unem voluntariamente para satisfazer suas necessidades comuns, através de um empreendimento coletivo, gerido democraticamente por membros comprometidos e conscientes de seus direitos e deveres. Na sociedade cooperativa, o cooperante é, ao mesmo tempo, dono e usuário. Irion (1997) qualifica isto como “princípio da dupla qualidade”. Segundo o autor, para uma instituição ser considerada uma cooperativa, o sócio deve simultaneamente atender a condição de proprietário e de usuário do negócio (demandando e ofertando fundos, mercadorias, consumindo, utilizando serviços de agenciamento, utilizando estruturas coletivas de produção, etc.). Dadas essas e outras peculiaridades, é preciso indagar acerca do que há de diferente em gerir uma organização cooperativista e uma organização mercantil. A literatura parece oferecer uma gama de respostas que vai do “absolutamente nada” até “toda a diferença”. Groves (1985) sugere que o fato das cooperativas serem organizações que operam guiadas por princípios é uma importante diferença, que pode orientar o gestor na tarefa que lhe foi delegada.

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Governança corporativa em cooperativas de crédito A governança de instituições financeiras é caracterizada pela forte regulação e supervisão externas, seja pela via legislativa, seja pela ação de instituições como o Banco Central, no Brasil. As cooperativas de crédito (CC) estão sujeitas a essas regulações como qualquer organização que opera no sistema financeiro nacional. Internamente, as CC utilizam, assim como todas as cooperativas de outros ramos, um aparato de governança composto da assembléia geral, do conselho de administração, do conselho fiscal, e da administração contratada. Embora a conformação das estruturas de regulação e supervisão internas e externas das CC possa guardar semelhanças com as de outras instituições financeiras, elas têm especificidades importantes. Principalmente, existem para promover o desenvolvimento econômico e social de seus membros, não podendo ser analisadas exclusivamente sob a ótica da maximização de resultados. No entanto, Westley e Shaffer (1997) lembram que a rentabilidade também é importante, tanto para promover a expansão e a sustentabilidade, como para servir de “colchão” contra choques negativos. Dadas essas especificidades, dois grandes problemas se destacam na literatura específica sobre o tema da Governança em CC: o problema de agência e o problema das preferências do tomador líquido de fundos. Muitos dos princípios utilizados no estudo das chamadas organizações de Microfinanças (geralmente utilizadas como instrumento de desenvolvimento local, canalizando ajuda externa) são perfeitamente aplicáveis às cooperativas de crédito, e quando pertinente, foram utilizados neste trabalho sem maiores discriminações. Emmons e Schmid (1999), afirmam que o problema de agência é ainda mais crítico em CC do que nas instituições financeiras de propriedade de acionistas. Isso em função do princípio do voto capitário, que favorece o “problema do caroneiro”, à medida que o número de membros aumenta. Uma das manifestações do problema do caroneiro, ou free-rider, consiste na atitude de alguns proprietários de eximir-se dos custos de monitorar e ou influenciar o gerenciamento do negócio, presumindo-se que outros o farão. Branch e Baker (1998) explicam que a capacidade de monitoramento dos conselheiros de uma CC depende de suas habilidades e conhecimentos para lidar com a complexidade da cooperativa que eles devem monitorar. Os problemas de governança também ocorrem quando as regras acerca de tomada de decisões e monitoramento destas decisões não estão definidas claramente, ou não são devidamente observadas. Esses autores alertam para o fato de que, problemas de governança também podem tomar a forma oposta da excessiva interferência por parte dos diretores. Isto é, os conselheiros podem falhar na sua responsabilidade fiduciária por omissão, negligência ou oportunismo, ao invés de por excesso de zelo. Quanto ao problema das preferências

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Governança corporativa em cooperativas de crédito Grande do Sul, que formam a Região dos Vales. Essa cooperativa foi a unidade de análise escolhida para uma pesquisa do tipo estudo de caso, de natureza exploratória e descritiva. O objetivo do estudo foi auxiliar a compreensão de questões que emergem das discussões teóricas apresentadas anteriormente neste texto. Os suportes da pesquisa foram dados primários coletados através de uma entrevista semi-estruturada com o gerente regional, em 12/09/2002, e outra com o presidente do Conselho de Administração em 17/09/2002, além de observação direta e entrevista exploratória com o gerente de controladoria em ocorrida em 20/08/2002; e dados secundários coletados através de documentos fornecidos pela central estadual do SICREDI, e demonstrações financeiras, índices de desempenho e informações mercadológicas fornecidas pelo SRV. Os dados primários foram analisados sob a luz dos conceitos de governança corporativa, cooperativismo e estratégia; e os dados secundários passaram por análise documental. A pesquisa foi realizada em um período de dois meses, de julho de 2002 a setembro de 2002. Segundo Yin (2001), um estudo de caso não é capaz de produzir resultados generalizáveis para uma população, nesse caso, de cooperativas de crédito. É a metodologia mais indicada para investigar fenômenos complexos, como os que envolvem interação humana, e para: (1) esclarecer uma decisão ou um conjunto de decisões, (2) por que estas decisões foram tomadas, (3) como elas foram implementadas e, (4) quais os resultados alcançados. Estes foram também os objetivos desse estudo junto ao SRV.

Análise do caso SICREDI Região dos Vales A análise do caso busca estabelecer uma relação entre os dados coletados e a discussão teórica sobre governança corporativa, cooperativismo, e sobre peculiaridades da governança de cooperativas de crédito. Inicialmente, é descrita a unidade de análise. A reflexão sobre o caso se organiza a partir do conceito de agência, do conflito entre tomadores e poupadores, do papel da confiança e da doutrina cooperativista, e da abordagem stakeholder. As considerações finais reforçam a peculiaridade da alocação dos direitos de propriedade em cooperativas como a questão-chave para a reflexão sobre a governança destas organizações.

Método

A governança no SICREDI Região dos Vales

O Sicredi Região dos Vales (SRV) é a denominação da Cooperativa de Crédito Rural de Encantado, filiada ao SICREDI (Sistema de Crédito Cooperativo – interestadual), e presente em 18 municípios do Estado do Rio

No ano de 2001, pelo segundo ano consecutivo, o SRV conquistou o 1º lugar entre as 106 sedes regionais do SICREDI, nos Estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, no ranking de

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de tomadores líquidos de fundos, Branch e Baker (1998), afirmam que a experiência mostra que uma boa qualidade de governança é atingida em cooperativas que apresentam um equilíbrio entre poupadores e tomadores. Poupadores têm mais capacidade de exigir “accountability” dos gestores, pois têm interesse genuíno na rentabilidade da instituição como meio de preservar a viabilidade de longo prazo da cooperativa. Também pelo poder que detém em função da possibilidade de reclamar seus depósitos, punindo maus gestores. Em contraste, tomadores geralmente agem em uma perspectiva de curto prazo, e tendem a favorecer políticas que minam a sustentabilidade da cooperativa, como por exemplo, flexibilização excessiva do crédito, além de taxas muito baixas em operações ativas, ou ainda distribuição de sobras no final do período, o que contribui para a precarização da capacidade de prestação de serviços da cooperativa. O equilíbrio no quadro social pode ser atingido através de medidas como o redirecionamento dos serviços, ajuste de taxas de crédito e depósitos, de estipulação de limites de acesso a crédito subsidiado, entre outras. O aumento do número de poupadores, com maior porção de sua riqueza investida na cooperativa, se refletido na composição do conselho, pode fazer com que o agente seja monitorado mais de perto. Amess e Howcroft (2001) confirmam esta avaliação, afirmando que o tamanho e a homogeneidade (de perfil e de idéias) dentro do quadro social das CCs, podem criar um ambiente propício para a presença de trust, que economiza em custos relacionados com seleção adversa e risco moral. Há membros que são essencialmente pragmáticos, e associam-se apenas para poder acessar as vantagens que são oferecidas, ou por não poderem acessar no mercado os serviços que são oferecidos pela cooperativa. Nesse caso, eles associam-se para usufruir os benefícios imediatamente mensuráveis, deixando de transacionar com a cooperativa se o mercado se apresentar momentaneamente mais vantajoso, ou até assumindo créditos que não pretendem liquidar (oportunismo). Ao mesmo tempo, há quem se associe por acreditar no ethos da cooperativa, e no espírito no qual ela opera, além é claro, de usufruir suas vantagens. Esta última é a situação ideal, para qual as CC são projetadas. As estruturas e práticas de governança devem servir para aproximar, o máximo possível, a realidade das CC de seu projeto original. Neste esforço, os princípios e a identidade cooperativa são mais do que belas palavras, pois integram a base de estratégias de desenvolvimento seguro da CC, e podem garantir as vantagens competitivas mencionadas, e ainda outras de difícil mensuração.

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avaliação que mede 18 ítens de desempenho, como crescimento, eficiência, custo fixo, rentabilidade, tamanho, entre outros. Mas o quadro nem sempre foi tão agradável. O SRV já esteve na última posição do mesmo ranking, há cerca de seis anos. Na época, chegou a cogitar-se a sua liquidação (o equivalente à falência para as sociedades cooperativas). Conscientizada da gravidade da situação, a diretoria teve de apelar para que o quadro social depositasse sua confiança na cooperativa, passando a operar com ela de forma mais intensa. Ao mesmo tempo, iniciavase a busca de recursos externos para atender as demandas dos associados, especialmente às de recursos de longo prazo, de modo que estes voltassem a crescer, e pudessem então colaborar ainda mais para a recuperação da cooperativa, em um círculo virtuoso que viria a se confirmar nos anos seguintes.

Problemas de agência O trabalho em conjunto do Conselho de Administração com o Gerente Regional (não limitado à pessoa do gerente, mas incluindo controladoria e staff) foi decisivo para o sucesso da mobilização para superação da crise. Agente e principal desenvolveram, naturalmente ao longo do tempo, uma sistemática de trabalho que vai ao encontro das recomendações dos mais importantes códigos de melhores práticas em governança corporativa. As políticas organizacionais e o arcabouço normativo do SICREDI são ricos em mecanismos de incentivos, como a responsabilização de administradores e remuneração variável (remuneração de performance distribuída a todos funcionários, calculada a partir de ítens como volume de recursos administrados, índice de custo fixo, sobras, tamanho, eficiência, e rentabilidade). Porém, isso por si só não impede situações de fraco desempenho econômico-financeiro em outras cooperativas do sistema SICREDI. No caso do SRV, os mecanismos contratuais são complementados com um mecanismo que depende muito das idiossincrasias da cooperativa: a confiança. Ficou evidente a centralidade da figura do agente (os executivos e o staff) neste processo. Porém, esta centralidade não implica em perda da soberania do princi-

pal, muito pelo contrário. É natural que o ambiente em que se encontra a cooperativa não permita consultas freqüentes que referendem todas as decisões do agente. A soberania dos associados só seria ferida se estas decisões distanciassem a cooperativa da linha traçada pelo Conselho de Administração, e este por sua vez negligenciasse sua responsabilidade fiduciária de zelar pelos interesses do quadro social. Eventos que, a julgar pelos depoimentos prestados e números que a cooperativa apresenta, são improváveis. Isto é, a separação das funções de decisão e monitoramento confirmou neste caso ser uma prática eficaz.

Perfil do quadro social em relação à preferências típicas de tomadores e poupadores Um ponto importante na recuperação do SRV, na prática, foi a mudança de posição dos associados quanto à distribuição de sobras. Existia uma preferência evidente por esta forma de benefício. Preferência essa que, se mantida, poderia minar em grande parte a capacidade de atendimento das demandas dos associados, afetando a rentabilidade e o crescimento. O gerente regional afirma com segurança que, se essa preferência não houvesse sido revertida, a cooperativa teria deixado de crescer no mínimo 30%, em cerca de quatro anos (o montante de sobras revertido para patrimônio líquido em forma de reservas melhora a capacidade de emprestar da cooperativa, dados os parâmetros de segurança do sistema no processo de adequação ao acordo da Basiléia). Portanto, no que diz respeito ao conflito entre tomadores e poupadores, a situação da cooperativa denota visível equilíbrio. O crescimento do nível de recursos (Tabela 1) sugere que o corpo de associados é formado, na sua maioria, por poupadores. Além disso, casos de oportunismo, segundo a diretoria executiva, são poucos e facilmente identificáveis. Os “usufruidores” geralmente têm a maior parte de seus depósitos em outra instituição, e utilizam a cooperativa quando conveniente. Estes devem ser alvo, em um primeiro momento, de uma campanha de conscientização para adequação ao padrão vigente. Medidas drásticas, como a demissão, não haviam sido ainda discutidas até o encerramento deste trabalho, e a diretoria mantinha esperanças de que não fossem necessárias.

Tabela 1. Principais indicadores do SICREDI Região dos Vales.

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Ano 1998 1999 2000 2001 2002*

Associados 3938 8155 12818 16052 17530

Funcionários 31 52 60 76 90

Sobras R$ 493.478,00 R$ 1.057.543,00 R$ 1.156.654,00 R$ 2.082.286,00 R$ 1.508.131,00

Patrimônio Líquido R$ 2.046.819,00 R$ 3.189.328,00 R$ 4.512.838,00 R$ 6.792.644,00 R$ 8.500.000,00

Recursos Totais R$ 13.977.235,00 R$ 23.747.484,00 R$ 34.711.379,00 R$ 55.972.355,00 R$ 68.200.000,00

Fonte: Relatório anual SICREDI Região dos Vales 2001. * Até o mês de maio.

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Empréstimos Totais R$ 8.927.276,00 R$ 12.974.903,00 R$ 27.846.230,00 R$ 39.314.924,00 R$ 40.500.000,00

Governança corporativa em cooperativas de crédito

A administração não poderia contar com o reinvestimento na cooperativa (através de depósitos à vista e a prazo, bem como de uma série de outras operações) dos recursos liberados agressivamente, se fossem consideradas razões puramente mercadológicas de preço e produto. Isto porque, embora o SICREDI tenha investido muito na área tecnológica, e consiga oferecer uma gama variada de produtos atraentes, o fato é que os grandes grupos bancários, presentes também na região, ainda mantêm a dianteira em muitos destes aspectos (exceto o preço em algumas operações ativas). Através dos depoimentos, ficou claro que no processo de superação da crise, a confiança esteve presente inicialmente em razão de um somatório de interesses individuais, mais do que pela valorização de ideais cooperativistas. Atualmente, diante da situação de pujância da cooperativa, dificilmente algum associado negaria a importância da mutualidade e do comportamento cooperativo, o que permite o cultivo de relações de confiança baseadas no valor intrínseco desta idéia. Isto é, o “quanto” das transações passou a ser ponderado com o “quem” de forma equilibrada.

A importância da perspectiva stakeholder para análise do SRV Um aspecto muito discutido em organizações cooperativas é o da Organização do Quadro Social (OQS). O ponto chave da organização do quadro social no SRV é o modo como o funcionário se posiciona na comunidade. O que é fundamental, no entendimento da direção, é a relação cotidiana do associado com a cooperativa, e a convivência dos seus agentes na comunidade. Esses canais aleatórios de comunicação, juntamente com o atendimento diferenciado, devem garantir o fortalecimento do senso de propriedade da cooperativa por parte dos associados. O êxito de tal estratégia se reflete na participação dos associados, tanto no aspecto político como no econômico (as reuniões no ano de 2001 contaram com a participação de mais de 50% do quadro social, e o número de associados ativos, isto é, que operaram regularmente com a cooperativa neste ano, aproximou-se de 80%). A importância da abordagem stakeholder na análise do caso do SRV reside no fato de que, não é possível analisar a firma cooperativa sob a ótica estreita do conflito entre proprietários e gestores. Há que se ter presente que estes proprietários são também clientes. E que um dos princípios de uma organização cooperativista é o envolvimento com a comunidade. Também não se pode esquecer que há pessoas que mantém com

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a cooperativa relações de trabalho tradicionais. Todos estes stakeholders devem ser contemplados na governança da organização. Na abordagem stakeholder, o papel do agente na distribuição do valor gerado é o de orientar quanto às conseqüências dos tradeoffs entre, por exemplo, receber os benefícios no presente ou no futuro, como uma espécie de assessor financeiro. No SRV, a reversão da distribuição de sobras, de certa forma transferiu valor do associado na condição de proprietário, para o associado na condição de cliente. Atualmente, esta transferência está em vias de ser compensada, com a remuneração das cotas capitais em aproximadamente um ponto percentual acima da caderneta de poupança, independentemente das operações que o associado tenha realizado com a cooperativa.

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O papel da confiança e do ideário cooperativista na recuperação do SRV

Considerações finais No caso do SRV, a presença de lideranças capazes de respeitar a orientação ideológica da organização foi decisiva para sua recuperação. A observação dos fatos sugere que o principal mérito dessas lideranças foi alinhar a estratégia de sobrevivência da cooperativa com a base ideológica que lhe caracteriza, ainda que não houvesse a preocupação de explicitá-la em seminários, ou documentos. Este alinhamento foi feito na prática, através de uma política de relacionamentos, de modo a obter o comprometimento do quadro social, fortalecendo seu senso de propriedade da organização. Ficou muito claro nos depoimentos e dados coletados, que a prática dos princípios cooperativistas foi muito mais decisiva para o processo, do que a “doutrinação”. Em sociedades de capital as boas práticas de governança ajudam a reduzir o custo de capital, facilitando o acesso a este, e elevando o potencial de valorização dos ativos emitidos. Em uma cooperativa de crédito, a principal fonte de recursos é a poupança de seus membros. O SRV foi feliz ao estabelecer padrões de conduta para o quadro de funcionários, bem como para a cooperativa em relação à comunidade, percebendo que, a relação a ser regulada não era apenas entre associados e gestão. Isto foi fundamental para viabilizar o acesso, não apenas ao mercado de depósitos (à época do estudo, o SRV contava com aproximadamente 40% dos depósitos – considerado o sistema financeiro tradicional – da região), mas também ao potencial de geração futura de riqueza de cada associado. E para o fortalecimento da imagem da cooperativa, que tem um grande peso na valorização dos ativos por ela emitidos. Quando o assunto é governança, há pontos críticos, como a questão da separação entre as funções de monitoramento e decisão, que mesmo que estejam bem defi-

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nidos contratualmente, não se resolvem completamente ex-ante. Dependem da dinâmica de interação entre os diversos constituintes da firma. Esta interação terá muito mais chances de levar a resultados positivos, se for orientada por um consenso de longo prazo, um conjunto de valores internalizados entre os stakeholders, função que no SRV é cumprida pelo cerne da doutrina cooperativista. Esta doutrina, por sua vez, se funda em normas de reciprocidade, em comportamento com motivações extra-econômicas, que só são possíveis através do estabelecimento de relações de confiança entre os membros de uma cooperativa.

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