FRATERNIDADE

Share Embed


Descripción

FRATERNIDADE




Atahualpa Fernandez(




"... he aquí a la especie humana dividida
en manadas de ganado, cada una con su jefe, que
la guarda, para devorarla". Rousseau




Sobre a origem e o sentido da fraternidade se pode dizer o seguinte:
um valor que foi central na ilustração européia, que encontrou uma
expressão política muito acentuada na ala esquerda dos revolucionários
franceses, que teve seu grande momento de glória e apogeu no continente
ibero-americano e que nunca foi de todo admitido nos Estados Unidos de
América.
Todos os grandes ideais revolucionários, em certo sentido, pretendiam
recobrar a liberdade política republicana do mundo antigo. Assim que as
revoluções de finais do sec. XVIII e princípios do XIX olhavam tanto
para o futuro como para o passado. Seus modelos eram a democracia ateniense
para a esquerda e a república romana para a direita. Particularmente em
França, do que se tratava era acabar com a monarquia absoluta e recuperar
para os cidadãos proprietários, aos que a Assembléia Francesa chamou de
"cidadãos ativos", um regime de iguais liberdades políticas. A reação de
Robespierre ante essa tentativa constitui o marco em que se situa a origem
política da ideia de fraternidade.
De fato, a fraternidade significou um ideal de emancipação que foi
parte do programa político de Robespierre, autor da divisa
"Liberté, égalité, fraternité" que, em seu célebre discurso de 5 de
dezembro de 1790, defendendo os direitos do homem e do cidadão contra o
sistema censitário que pretendia aplicar-se à Guarda Nacional, apareceu por
vez primeira na história universal da humanidade. No projeto de lei
alternativo com que Robespierre concluía seu discurso, se determinava que
"todos" os cidadãos maiores de 18 anos – e não somente os ricos – seriam,
de direito, inscritos na Guarda Nacional de sua comuna; que esses guardas
nacionais seriam as únicas forças armadas empregadas no interior, e não o
exército herdado do velho regime; que, em caso de agressão exterior,
competiria aos cidadãos em armas, e somente a eles, o defender-se. E que,
finalmente, levariam sobre o peito e em seus estandartes estas três
palavras.
O deputado Robespierre, que vinha lutando sozinho desde há alguns
meses contra a distinção, aprovada em câmara, entre "cidadãos ativos"
(capazes de pagar um censo) e "cidadãos passivos" (pobres), voltava agora à
carga, e nada menos que em um ponto politicamente tão sensível como o
caráter de classe da futura Guarda Nacional. Reclamava que todos os que
eram reduzidos a "cidadãos passivos" (para os quais a revolução não tinha
muito que oferecer - salvo alguns incompletos e passivos direitos civis - e
que não podiam aspirar a um regime de igualdade e liberdade) pudessem
emergir à sociedade, a uma sociedade civil de tipo republicano.
Que dúvida cabe de que a fraternidade é a irmã pobre da tríade
democrático-republicana moderna, não só politicamente, senão também
filosoficamente? Nenhuma. Enquanto que os conceitos de igualdade e
liberdade foram (e são) continuadamente explorados, a fraternidade segue
parecendo uma noção amorfa. Algo desde logo intrigante, porque a
fraternidade, designando aquilo que partilha ou compartilha uma mesma
origem e um todo (M. A. Ribeiro), implica ela mesma generalização da
liberdade (que restabelece constantemente o princípio da virtude e da
dignidade) e da reciprocidade (que é a igualdade para todos).
Cada um dos três membros da tríade liberdade-igualdade-fraternidade
depende dos outros dois, "al modo en que los lados de un triángulo se dan a
la vez" (M. Bunge). Quer dizer, que todos, também os pobres, os humildes,
todos os que necessitam depender de outro para viver, todos quem, para
existir socialmente e previver, tem que pedir diariamente permissão a
outros, criados, trabalhadores assalariados, mulheres, todas as categorias
sociais dependentes, enfim, sairam "del domus subcivil en que la sociedad
señorial viejoeuropea (y colonial iberoamericana) les había inveteradamente
confinado, para emerger como ciudadanos de pleno derecho a una sociedad
civil de libres e iguales."[1] (A. Domènech)
Esta universalização da condição humana, da autonomia ou
independência civil (Kant), a ideia de que ninguém necessita ter que pedir
permissão a outro para poder existir socialmente, que todo mundo tenha sua
própria base material, seus próprios meios de existência social, faz da
fraternidade, da mesma forma que da liberdade e da igualdade, a base de
toda ordem política democrático-republicana e um conceito-chave para todo e
qualquer pensamento consistente sobre questões políticas, jurídicas e
éticas. Por consequência, não somente qualquer discussão séria acerca da
justiça (que não é algo que existe por si só, senão somente nas relações
recíprocas) deveria estar fundada em uma robusta compreensão sobre a esta
"terceira" virtude ilustrada (que, por sua vez, repousa sobre as concepções
de liberdade e igualdade), senão que todo e qualquer programa político
honrado e que pretenda propugnar de verdade sua causa (quer dizer, honrado
também na ação), deveria tomar-se em sério o mais contundente e
emancipatório valor da tradição republicano-revolucionária moderna: a
fraternidade.
Agora: É a fraternidade, conceitualmente falando, redundante ou está
limitada somente a canalizar determinadas atitudes mentais e formas de
conduta, sem as quais perderíamos de vista os valores expressados pelos
direitos democráticos? Não! Não o é e nem tão pouco padece deste tipo de
restrição proposta por Rawls[2]. E a razão para esta contundente negativa
está na evidência de que, desde seu "eclipse" ou pouquidade, não são poucas
as expressões permanentes do sentido de injustiça e da sensação airada de
repúdio ante o inaceitável, da defesa de procedimentos democráticos para
clamar contra a generalização de assimetrias arbitrárias, da necessidade de
levar à prática direitos que modifiquem a existência humana, enfim, da
busca de uma sociedade que demanda a gritos ser transformada e constituída
pela inclusão de todos os indivíduos em condições de igualdade, isto é,
como seres individuais, emancipados e libertos de toda barreira social,
econômica, política ou de classe infundada.
Isto indica que por meio da fraternidade, tanto no âmbito da atuação
política como no processo de elaboração e realização do direito, é de
fundamental importância produzir a incorporação na sociedade civil –
quebrada em decorrência de uma intensa polarização da vida social – dos
indivíduos mais desfavorecidos, com a consequente desaparição, eliminação
ou afrouxamento das barreiras que os impedem de ocupar e participar dos
espaços públicos, dissolvendo ou acabando com os eventuais e injustificados
vínculos de desigualdade e de não liberdade. Dito de outro modo, que uma
sociedade fraterna terá de ser também e necessariamente "inclusiva", dar
espaço para que indivíduos livres e iguais, procedentes de todos os seus
rincões, possam gastar suas vidas de forma digna.
Aliás, dito seja de passagem, no seu discurso de posse pronunciado
ante o Congresso Nacional em 02/01/2003, o ex-presidente Luiz Inácio Lula
da Silva (ainda que somente coberto de "boas intenções") mencionou por duas
vezes a fraternidade no sentido aqui tratado. Uma, rendendo tributo à
memória da luta da população trabalhadora brasileira: "E eu estou aqui,
neste dia sonhado por tantas gerações de lutadores que vieram antes de nós,
para reafirmar os meus compromissos mais profundos e essenciais, para
reiterar a todo cidadão e cidadã do meu País o significado de cada palavra
dita na campanha, para imprimir à mudança um caráter de intensidade
prática, para dizer que chegou a hora de transformar o Brasil naquela nação
com a qual a gente sempre sonhou: uma nação soberana, digna, consciente da
própria importância no cenário internacional e, ao mesmo tempo, capaz de
abrigar, acolher e tratar com justiça todos os seus filhos". E outra, para
ressaltar a unidade intergeracional e intergenérica do demos: "Os homens,
as mulheres, os mais velhos, os mais jovens, estão irmanados em um mesmo
propósito de contribuir para que o País cumpra o seu destino histórico de
prosperidade e justiça".
Claro que por dissipar toda relação de dominação e de dependência
política ou civil de seres humanos livres sobre seres humanos livres, a
fraternidade também implica (histórico-concretamente) que se pode atribuir
a alguém uma carga em atenção ao bem de outro, isto é, que a tarefa de
constituir uma verdadeira independência e autonomia em uma nova ordem
resultante (o tornar "irmão de" todos os indivíduos que poderiam chegar a
ser objeto da mesma situação) pode resultar em um perigo para o bem de
outros.
Mas esta comparação do bem geral que se quer alcançar com a entidade
do bem individual posto contextualmente em perigo (virtude que preside o
ajuste entre liberdade e igualdade), sempre dependente de valorações
concretas, não entranha necessariamente um risco para toda a sociedade,
posto que o rompimento ou abrandamento de antigas e degradantes barreiras
de classe, republicanamente falando, está condicionado à circunstância de
que todos tenham acesso a uma igualdade material (ainda que aproximada) de
oportunidades, elevando o nível de garantia do direito mais essencial de
existência material dos indivíduos e do imperativo ético de viver segundo
os próprios planos de vida.
Por isso que a melhor maneira de se viabilizar uma valoração concreta
verdadeiramente transformadora do status quo da ausência de fraternidade
deveria começar por um juízo formulado a partir das vítimas das desgraças
sociais, quero dizer, de adotar a perspectiva dos que se encontram na parte
mais escura da vida, "en el peor de los mundos posibles", para usar a
expressão de Schopenhauer. Considerar "a plena luz las perspectivas de las
víctimas y otorgar a sus voces su debido peso" implica uma verdadeira
disposição e capacidade para atuar (ou não atuar) em nome dos mais
desfavorecidos, "para imaginar sus expectativas incumplidas, para absolver,
para ayudar, mitigar o compensar, e incluso para no mirar hacia otro lado".
(J. Shklar)
Afinal, viver bem e de modo digno também significa estar e se
preocupar com os outros, ser um entre os outros dentro de um quadro
institucional que nos afirme na condição de cidadão: o ser humano completo,
ética e responsavelmente comprometido com a igualdade social, é o cidadão
virtuoso que combina a procura da felicidade pessoal com a exigência de uma
solidariedade que transcende sua própria individualidade, sob a égide de
instituições justas.
O que modela uma sociedade boa e decente não são somente as leis que
ajudamos a que se aprovem, os representantes políticos que ajudamos a
eleger, as grandes invenções, teorias e obras que elaboramos ou
reconhecemos, ou uma ordem institucional jurídica e política adequada,
senão também nossos pequenos e concretos atos mentais e de comportamento; a
generosidade que dispensamos em nossas relações, a maneira como educamos
nossos filhos, como nos relacionamos com os demais, como respeitamos
cotidianamente os limites de nossos direitos e cumprimos nossos deveres,
etc., são todas pequenas atitudes, decisões triviais, gestos da vida
privada que, a largo prazo, têm muito mais peso que todas as guerras
napoleônicas.
Enquanto para uma consciência cúmplice do sistema as vítimas são um
momento necessário, inevitável, um aspecto funcional ou natural do contexto
socioeconômico, para uma consciência crítica e responsável, que só pode
existir a partir de uma postura ética comprometida, as vítimas são
reconhecidas como sujeitos morais, como seres humanos que não podem (de
forma livre, inviolável, autônoma e digna) produzir, reproduzir ou
desenvolver suas vidas em comunidade, que foram excluídos da participação
na discussão democrática e que se encontram afetados por alguma situação de
verdadeira morte existencial "que la mundanidad renueva continuamente".
Para dizer em termos mais modestos e mais realistas, do que se trata é
de saber ouvir a voz do outro e de abraçar uma igualdade que abranja
fraternalmente a todos os indivíduos em condições de liberdade e autonomia
plena, isto é, como verdadeiros cidadãos. É necessário, na ética e práxis
do cotidiano, que nos situemos no lugar do outro para reconhecer que cada
um de nós não é mais que um ser entre outros, todos os quais têm desejos e
necessidades que lhes importam, o mesmo que a nós nos importam nossas
necessidades e desejos. Somente por esse caminho as vítimas sociais terão a
oportunidade para emancipar a si mesma em uma sociedade "livre, igualitária
e fraterna". Enquanto viverem na miséria e baixo a dependência de outros,
sob o manto perverso da mais atroz e patriótica indiferença, dignidade
humana, liberdade, igualdade, fraternidade e cidadania, não serão para eles
sequer meras possibilidades humanas[3].
Em resumo, a autêntica fraternidade somente pode dar-se na medida em
que a liberdade e a igualdade se deem efetiva e simultaneamente. Postula
que se considere a todos iguais (como membros do mesmo corpo) e como irmãos
plenamente livres (como "dueño de sí mismo, con la capacidad de cuidarse
completamente a sí mismo"). É a extensão dos "laços de sangue" aos demais;
e com eles das correspondentes relações afetivas. Trata-se não somente de
respeitá-los senão de reconhecê-los, porque a condição básica para ser um
bom cidadão é receber o reconhecimento e o respeito que se lhe deve e
outorgá-lo aos demais. E este reconhecimento/respeito, para ser pleno e não
cair na versão vulgar e perversa da caridade postula e requer a harmônica
integração de seres livres e iguais[4]. E, sobretudo, exorcizar a resignada
indiferença, fomentar o exercício de nossas melhores capacidades e
demonstrar nossa valia como seres humanos.
Esta é a condição de possibilidade da fraternidade: a ausência ou
supressão da dependência, da indiferença e da exclusão social. Um
compromisso que cabe a cada um de nós, no mais íntimo de nossa consciência
moral de responsabilidade pessoal e solidariedade social. Ignorar esta
responsabilidade republicana nos deixa a mercê do azar insensível ou, o que
é inclusive pior, dos parasitas exploradores travestidos das mais diversas
pelagens: política, religiosa, moralista, relativista, etc... etc. Depois
de tudo, o ser humano é o único animal vivente que está cognitivamente
dotado da capacidade para poder superar a indiferença, remover o sofrimento
inecessário e eliminar as desvantagens evitáveis.








-----------------------
( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España.
[1] A. Domènech mostra que o conceito de fraternidade "procede del ámbito
familiar, pues hunde sus raíces en la familia, célula de la sociedad del
 Ancien Régime, en la que no sólo la mujer y los hijos estaban sometidos a
relaciones patriarcales de dominación y dependencia, sino también
la canalla: artesanos pobres, aprendices, jornaleros, obreros asalariados,
yunteros, aparceros, oficiales, aprendices, preceptores y otros familiares
 de los grandes señores, domésticos de todo tipo, criados, lacayos,
campesinos sujetos a servidumbre, etc. La fraternidad revolucionaria
pretendía igualar en calidad de hermanos y liberar del patriarcalismo a
quienes estaban sometidos a servidumbre política, social o material, y
conseguir la plena incorporación a una sociedad civil republicana de libres
e iguales de quienes vivían por sus manos, del pueblo llano del viejo
régimen europeo".
[2] Esta é a visão "candorosamente psicologizante" que ofereceu Rawls da
"fraternidade" em sua Teoria da justiça: "En comparación con la libertad y
la igualdad, la idea de fraternidad ha tenido un lugar menor en la teoría
democrática. Está concebida para ser un concepto políticamente menos
específico, que no define por sí mismo ninguno de los derechos
democráticos, sino que canaliza más bien determinadas actitudes mentales y
formas de conducta, sin la cuales perderíamos de vista los valores
expresados por esos derechos".
[3] A essência da indiferença, do apático menosprezo com relação ao outro,
reside precisamente no fato de que carrega consigo a completa perda de
interesse no que sucede. Nada nos preocupa nem nos importa. E uma
consequência natural disso é que nossa disposição a estar atentos se
debilita e nossa vitalidade ou sensibilidade moral se atenua. Em suas
manifestações mais habituais e características, o conformismo apático
implica uma redução radical da agudeza e constância de atenção ao que
realmente importa. Nossa consciência moral perde a capacidade de perceber
injustiças, convertendo-se em algo cada vez mais homogêneo. E à medida que
se expande e se apodera de nós, a indiferença faz com que nossa consciência
ou compromisso ético experimente uma diminuição progressiva de sua
capacidade de perceber os fatos importantes. A justiça só é um valor para
os que se interessam e desejam a justiça. A humanidade só é um valor para
os que desejam viver humanamente; a vida só vale para quem a busca
ativamente; e nenhuma coisa comanda a não ser proporcionalmente ao
interesse que temos por ela (Spinoza). Dito da forma mais simples possível:
ter interesse por alguém ou algo significa ou consiste essencialmente,
entre outras coisas, em considerar seus interesses como razões para atuar
ao serviço dos mesmos.
[4] Não olvidemos que a presença e a aceitação do "outro" na convivência é
o fundamento biológico do fenômeno social e qualquer coisa que destrua ou
limite a presença e a aceitação do "outro", desde a competição até a
cooperação, passando pela manipulação ideológica, destrói ou limita o fato
de se dar o fenômeno social – e, portanto, humano -, porque aniquila ou
empobrece o processo biológico que o gera e o sentimento de que estamos
desenhados pela seleção natural para entender-nos uns aos outros (H.
Maturana).
Lihat lebih banyak...

Comentarios

Copyright © 2017 DATOSPDF Inc.