Eu quero é ouro - Os falsificadores

August 1, 2017 | Autor: Paulo Cavalcante | Categoría: Brazilian History, Colonial Latin American History, Historia, História do Brasil, Hystory, História
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Descripción

PAULO

CAVALCANTE

Eu quero é ouro! Havia mil e uma maneiras -de desviar as riquezas descobertas na Colônia. De religiosos a governadores, todo mundo dava um jeito de enriquecer sem pagar imposto XTRAIR

OURO

E DIAMANTES

CUMPRINDO

AS REGRAS

e pagando os impostos estipulados pelo Estado ou fazê-Ia de modo ilícito, praticando o descaminho. Estas eram as duas faces do mesmo movimento, cujo nome é exploração. Nas Minas Gerais do final do século XVIIe das primeiras décadas do XVIII,todos queriam ouro. A qualquer preço. Os próprios representantes do Estado português governadores, ouvidores, provedores etc. -, cuja missão era disciplinar a extração e assegurar a ordem social, contribuíam para desviar as riquezas da Fazenda Real (a Receita Federal da época). Ordenar a extração significava estabelecer a de-

~ sordem da exploração. O funcionário empenhado em dar cabo de "execrandos delitos" (descaminhos e contrabando) precisava conviver com eles para melhor extingui-los. O funcionário que cunhava as moedas dentro da Casa da Moeda falsificava-as por fora. O homem de negócios que arrematava os contratos e fazia os pagamentos prometidos à Fazenda Real sonegava o gênero sal, por exemplo - ou dava livre trânsito ao ouro em pó, no caso do contrato das passagens (uma espécie de pedágio da época). Os descaminhos eram numerosos e variados. Quanto mais o Estado português apertava o cerco para assegurar a sua arrecadação, aí mesmo é que os desvios do ouro prosperavam, com extrema criatividade. O senso comum tornou notória a imagem do santo de pau oco como símbolo maior dos descaminhos. Imagens ocas de santos supostamente recheadas de ouro e diamantes nos servem mais como explicitação da contradição entre dois traços correntes na sociedade colonial - o fervor religioso e a cobiça material - do que como comprovação de práticas relevantes de evasão. Como a sociedade colonial era escravista, os trabalhadores negros encarregados da mineração eram vistos como os principais "passadores" (descaminhadores) de ouro e diamantes. Ouro em pó

n«if!. salpicado no cabelo de mulheres negras, pepitas e diamantes desviados no pequeno comércio dos povoados e das lavras - especialmente pelas chamadas "negras de tabuleiro", que vendiam comidas e bebidas - também foram modos de descaminhar a riqueza extraída da terra. Este último era tão forte e disperso que foi objeto de uma proibição publicada em 31 de julho de 1733, no Arraial do Tijuco, pelo ouvidor geral José Carvalho Mártires:

A mineração de Minas

mobilizava

menos de

Na página ao lado, oficial da Cavalaria de Minas Gerais da segunda metade do século XVIII:soldados contrabandeavam ouro em pó escondido nos botões de suas fardas.

5% da população

Gerais

Mando que nenhuma pessoa de qualquer qualidade ou condição que seja mande escravas ou escravos vender do Corgo das Lages em diante, gênero algum de comestíveis, ou bebidas; pena de que toda a escrava ou escravo que for achado do lugar referido em diante, vendendo os referidos gêneros, ser presa, e pagarem seus senhores cem mil réis de condenação (...) além desta pena serão os ditos escravos açoitados no lugar mais público deste Arraial.

"Na Serra da Estrela", aquarela de Thomas Ender que mostra um trecho do percurso para as minas: apesar da vigilância dos agentes metropolitanos e da existência

Outra forma muito eficaz de desvio foi a fabricação de colares para evitar o pagamento do quinto. Recheadas de colares ou cordões, as pessoas circulavam e propiciavam a fuga do ouro para Por-

de registros, caminhos clandestinos permitiram o descaminho do ouro.

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tugal em seu próprio corpo. O recurso foi classificado por funcionários da Coroa como "mui cavilo50" (ardiloso). Estava claro que "os tais cordões não servem para uso e ornato das pessoas, senão para por este meio usurparem os ditos quintos", concluiu o rei D. Pedro li em 1698. A maneira mais espetacular de desviar ouro era a falsificação de moedas. Encontravam-se moedas

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Os vários modos do verbo furtar Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo indicativo,porque a primeira informação que pedem aos práticos é que Ihes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o mero e misto império, todo ele aplicam despo~ ticamente às execuções da rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto Ihes mandam, e, para que mandem todos, os que não mandam não são ceeitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto Ihes parece bem e, gabando as coisas desejadas aos donos delas, por cortesia, sem vontade, as iozem suas. hstam pelo modo conjuntivo,porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito, e basta só que ajuntem a sua graça, para serem quando menos meeiros na ganôncia. Furtam pelo modo potencial, porque, sem pretexto nem cetimônia, usam de potência. Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram os permissões. Furtam pelo modo in~nitivo, porque não têm o ~m o furtar com o ~m do govemo, e sempre lá deixam raízes em que se vão continuando os furtos. Estes mesmos modos conjURam por todas as pessoas, por-

que a primeira pessoa do verbo é a suo, os segundas os seus criados, e as terceiros quantas para isso têm indústria e consoéncio. Furtam juntamente por todos os tempos, porque o do presente - que é o seu tempo - colhem quanto dá de si o triênio; e para induírem no presente o pretérito e futuro, do pretérito desenterram crimes, de que vendem os perdões, e dívidas esqueodos, de que se pagam inteiramente, e do futuro empenham as rendas e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído Ihes vêm a cair nas mãos. Finalmen~ te, nos mesmos tempos, não Ihes escapam os imperfeitos, perfêitos, plus quam perfei~ tos, e quaisquer outros, porque fUrtam, fUr~ taram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar, se mais houvesse. Em suma, que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a fur~ tar paro furtar.E quando eles têm conjuga~ do assim toda o voz ativa, e os miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados de despojos e ricos;e elas ~cam roubadas, e consumidos. ("Sermão do Bom Ladrão", do padre Antônio Vieira, 1655)

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falsificadas de diversos tipos: vazada, cerceada (eujas bordas eram raspadas para se ficar com o ouro), com peso reduzido ou fundida com metais considerados baixos (como cobre, níquel e estanho). Em 1708, o juiz da Casa da Moeda do Rio de Janeiro informou ao Conselho Ultramarino que recebera quinze moedas de ouro de 4 mil réis provenientes de São Paulo para serem examinadas por parecerem falsas. Feito o exame, constatou-se a fraude. Suspeitava-se que as tais moedas haviam sido cunhadas na fábrica de um estrangeiro. O assunto era sumamente grave, não só porque as moedas podiam enganar muita gente, mas também porque a presença de estrangeiros na costa ao sul do Rio de Janeiro começava a se intensificar, e a possível instalação de uma fundição falsa seria um indesejável sinal de enraizamento desses forasteiros. Mas a fábrica de moedas falsas de que realmente se tem notícia não foi obra de um estrangeiro. Resultou da ação de um "bom português", Inácio de Souza Ferre ira, e de uma grande rede de relações operando sob a proteção insuspeita do próprio governador das Minas Gerais, D. Lourenço de Almeida (1721-1732), e configurando uma "sociedade de contrabandistas" com conexões internacionais. D. Lourenço, a propósito, retomou riquíssimo a Portugal, com bagagem reluzente, no fim do seu governo. Estes sim, e não os escravos, foram os grandes descaminhadores. Neste caso, a moeda era falsa, mas não era ruim. Ou melhor, só era falsa porque não havia sido cunhada na fábrica oficial. Ao que tudo indica, a moeda da fábrica de Inácio era de qualidade, e certamente teve grande aceitação e circulação (saiba mais na página 34). Ainda assim, a preocupação_~om os estrangeiros era pertinente. Afinal, a intensa concorrência comercial entre os Estados europeus tornou-se particularmente desafiadora para Portugal quando foram descobertos ouro e diamantes na sua colônia americana. Era para Minas que todos queriam ir. A falsificação de moedas tinha o objetivo de retirar diretamente o ouro da colônia, desviando-o do mundo português. E essa prática não se limitava à América. Isso já havia ocorrido na Costa da Mina, na África, no início do século XVIII. O problema é que tanta gente estrangeira, de diferentes procedências (franceses, ingleses, espanhóis, holandeses, etc.), iam e vinham à costa da América, e eram tão vultosos os desvios que se temia não só o descaminho, mas a perda do centrole das próprias Minas para uma associação entre

colonos e estrangeiros, em particular os franceses. Esse é o limite extremo do convívío entre ordem e desordem, entre comércio legal e descaminhos: quando estes ameaçam o negócio português da colonização. As ilegalidades seguiam uma lógica mercantil. O ouro ilícito imediatamente entrava no circuito comercial geral. Por exemplo: o ouro saído dos ribeiros desimpedia-se dos controles locais, vencia as serras da Mantiqueira e do Mar, perpassava os registros nas passagens dos rios Paraibuna e Paraíba, entrava no Rio de Janeiro, desvencilhava-se de novos controles, alcançava os negociantes estrangeiros, desembaraçava-se da Alfândega, embarcava nos navíos da frota, apartava nas ilhas do Atlântico ou em Lisboa, desembaraçava-se novamente da Alfândega, prosseguia para Londres ou Amsterdã, e de lá rumava nos navíos anglo-holandeses reunidos no chamado "comboio de Esmirna" (ou Izmir) em direção ao Mediterrâneo, para o intercâmbio neste e em outros portos da península da Anatólia (Turquia), aos quais chegavam as rotas comerciais terrestres do Levante com sedas da Pérsia, entre outros artigos. O maior beneficio do ato de driblar a lei era evítar o pagamento do quinto - os 20%devídos ao rei -, cujo "recibo" era um cunho real, marcado na barra de ouro oficialmente fundida. Por isso, um dos mais engenhosos e bem-sucedidos descaminhos era falsificar o próprio cunho. A posse de um cunho falso garantia ao seu dono o poder de legalizar toda e qualquer barra fundida sem que o Estado sequer sentisse o cheiro da sua parte devida. Um dos casos mais interessantes de falsificação aconteceu em São Paulo em 1698. Os autores da fraude foram o vigário de Taubaté, José Rodrigues Preto, um monge beneditino chamado Roberto e um certo Domingos Dias de Torres. Nada surpreendente que homens de religião deixassem de lado suas prioridades espirituais para dar golpes do gênero. A cobiça não discriminava condição social ou credo. E eles ainda se beneficiavam de um privilégio legal: os religiosos não podiam ser punidos pelo governador, pois estavam fora da sua jurisdição. Mas, assim como burlar a lei era prática disseminada, cumprir os ritos juridicos também não era tão obrigatório. Resultado: os envolvidos foram presos pelo governador Artur de Sá e Meneses (1697-1702). Logo em seguida, fugiram. Mais tarde, o rei D. Pedro Il, "o Pacífico", resolveu perdoar a todos e deixar por isso mesmo: "Vosordeno que toca ao tempo passado se não fale mais neste delito", escreve ao governador em 1700.

Tamanha misericórdia não foi caso isolado. Afinal, ignorar normas e decretos era comportamento rotineiro até entre os agentes do Estado. Bom exemplo é a própria criação das casas de fundição para arrecadar o quinto. Elas foram instituídas em Minas por um bando publicado em Vila Rica no dia 18 de julho de 1719, conforme a lei de 14 de fevereiro de 1719. Entretanto, só funcionaram de fato a partir de 1 de fevereiro ~e 1725. Por quê? Por causa da resistência dos potentados locais. Ninguém queria ver a sua parte' do butim di-

Os populares santos de pau oco são mais representativos

e cobiça do que da pratica do contrabando de ouro e diarnantes.

0

Guardas da fiscalização transportavam

ouro em

pó escondido nos botões de seus uniformes minuída. Mas não houve jeito, e juntamente com as fundições veio a ordem de proibir a circulação 'de ouro em pó (por sua natureza, muito fácil de contrabandear). Nem por isso o ouro deixou de escorrer por entre os dedos do Estado: seus guardas, nos registros, transportavam ilegalmente aquela pulverizada riqueza... escondida dentro dos botões dos uniformes!

da

contradição entre fé

ossiê

Saiba Mais FURTADO, junia Ferreira. O livro da capa verde: o Regimento Diamantino de 1771 e a vida do Distrito Diamantino no período da Real Extração.São Paulo:Annablume, 2008. MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do Ou-

ro: a pobreza mineira no século XVIII. 4' ed. rev. ampl. Rio de janeiro: Graal, 2004. VIEIRA,Antônio.Escritos his-

tóricos e políticos. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

A ousadia dos descaminhos do ouro não conhecia limites. O lance mais espetacular ocorreu na presença do próprio rei D. João V. A sua quinta parte arrecadada dos mineradores de Cuiabá em 1727 havia sido acondicionada em quatro cunhetes (caixotes de munição de guerra). Recheados de ouro, eles, obviamente, estavam muito bem protegidos: guardados em cofres-fortes, sob a rigida vigilância de muitos guardas, foram colocados com toda a cerimônia junto ao trono do rei, sob o olhar cobiçoso do séqüito de cortesãos e representantes estrangeiros. No momento em que D. João ordenou a abertura dos cofres ... surpresa geral: o ouro havia desaparecido! Em seu lugar, diante de todos, revelou-se aos pés de Sua Majestade um metal nada nobre - o chumbo. Dá para imaginar a cara rei ... Mas a melhor época para a prática corriqueira dos desvios era a das frotas. Navios fundeados, alfândegas abarrotadas e mercadores por toda parte:

Os furtos e desvios não eram coisa de negro

nem de pobre. Não eram vício moral nem sinal de cultura bastarda. Eram uma prática branca, européia Casa da Intendência e Fundição de Sabará, atual Museu do Ouro: evitar pagar o quinto era um dos expedientes mais vantajosos para os que burlavam as leis do reino.

no caudal das gentes fluíam os negócios conforme acertos e desacertos. Tudo tão grave e insólito que o governador do Rio de Janeiro, Luís Vahia Monteiro (1725-1732), um dos maiores combatentes contra os descaminhos, sugeriu que se pusesse sob contrato o serviço das "tomadias", isto é, as operações de repressão aos descaminhos. Vahia propôs

ao rei que, tão logo a frota ancorasse e os navios estivessem protegidos pelos guardas, ele deveria "mandar pôr Editais para arrendar as tomadias do ouro em pó porque estou certo que o contratador achará os meios para o descobrir, e sempre faltam quando as administrações se fazem para Sua Majestade adonde todo mundo é liberal em furtar, e muito mais em dissimular os furtos". Na prática, isso significava, em termos atuais, a privatização do poder coercitivo legitimamente exercido pelo Estado. Uma total inversão. Ao contrário de yahia, quantos governadores não dividiram sua lealdade entre o rei e seus próprios bolsos, ou melhor, as suas "casas"? A "casa" em questão compunha-se não só da família, como a compreendemos hoje, mas de todas as demais pessoas ligadas por laços de sangue e de afinidade que gravitavam em tomo dela. Pelo poder do ouro, as "casas" das autoridades cresciam e aumentavam seu prestígio social. Tantos o faziam, e de modo tão explícito, que um dos mais destacados homens do mundo português na época moderna, o padre Antônio Vieira (1608-1697), dedicou-lhes uma parte do famoso "Sermão do Bom Ladrão" (ver box). O que concluir disso tudo? O rei absolve os descaminhadores. Governadores e oficiais furtam em todos os tempos e por todos os modos. Então, será que o descaminho é mesmo uma aberração do processo? Ou uma caracteristica inerente e indispensável à própria colonização? Provavelmente, é a segunda hipótese. A extração de ouro e diamantes apenas potencializou uma característica presente na Colônia desde o início. Não era coisa de negro nem coisa de pobre. Não era vício moral nem sinal de cultura bastarda. Era prática branca, européia, chegou à América com a expansão comercial e com o processo de formação do capitalismo, e aqui contribuiu, desde o primeiro momento, para a instituição da sociedade colonial. Por isso suas raízes são tão profundas. A prática do descaminho e o chamado exclusivo comercial (o tão conhecido "pacto colonial", segundo o qual as metrópoles reservavam para si próprias o comércio ultramarino) são dois lados da mesma moeda. Uma moeda que, falsa ou verdadeira, sempre levou consigo o ouro do maior quilate. H

PAULO CAVALCANTE UNIVERSIDADE

É PROFESSOR DE HISTÓRIA DA

FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

(UNI RIO), DA UNIVERSIDADE JANEIRO (UERJ) E AUTOR CAMINHOS 1750),

E DESCAMINHOS

(HUClTEC,

2006).

DO ESTADO DO RIO DE

DO LIVRO NEGÓCIOS DE TRAPAÇA: NA AMÉRICA

PORTUGUESA

(1700-

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PAULO

CAVALCANTE

Os falsificadores Com ~ proteção do governador, fábrica clandestina de moedas e barras de ouro fez fortuna no início da mineração No FINAL DA DÉCADA DE 1720, floresceu no vale do Rio Paraopeba, na base da atual Serra da Moeda nome bastante sugestivo -, uma verdadeira fábrica de barras e moedas de ouro. A fundição produzia ininterruptamente, e ganhou fama pela qualidade do ouro utilizado e do acabamento das peças. Só tinha um problema: era totalmente ilegal. E nada discreta. Sob o comando de um certo Inácio de Souza Ferreira trabalhavam cerca de 100 homens, entre brancos, negros, mulatos, mestiços, gente de outras capitanias, de outras partes dos domínios portugueses e até antigos funcionários da administração lusa na América. Como passaria despercebida uma fábrica de tais dimensões, mesmo _ protegida por mato e montanhas? Quem arriscou a hipótese de que a fábrica de ilicitudes contava com apoio oficial acertou na mosca. E de gente graúda: o próprio governador das Minas, D. Lourenço de Almeida (1721-1732). A cobertura oficial ia além da "vista grossa" - também azeitava as redes de comerciantes e contrabandistas capazes de fazer as barras e moedas chegarem à Europa. A fábrica foi desbaratada pelo ouvidor geral Diogo Cotrim de Souza. Ele precisou cercar a operação de muito sigilo para que o governador não suspeitasse de nada. O local, além da posição estratégica para facilitar a comunicação com diversas partes da Colônia, era bastante protegido. O historiador Augusto de Lima Júnior chegou a chamar a fábrica de "fortaleza", pois esta tinha para sua defesa cancelas, cercas, pontes estreitas, muita gente e armas. Observe a imagem e acompanhe a numeração. O número 1 assinala a "entrada pelo mato serra abaixo que tem meia légua até a casa de Inácio de Souza" (17). O número 2 indica duas cancelas sucessivas que serviam de defesa e de pontos de

controle das pessoas que ali trabalhavam. No número 29, cruzamos a cerca por uma pequena passagem. Note como as margens do caminho estão escuras e tracejadas, o que indica "a aspereza que tem a servidão (passagem) naquela serra". Cruzada a cerca, caminha-se por longo trecho até a primeira ponte (8) sobre o ribeiro (7). À esquerda, as senzalas em expansão (20 e 21); à direita, a casa de fundição do cunho e demais casas; em frente, uma pequena igreja (ermida) e a casa do Inácio (17). Toda a parte superior da casa do lnácio é uma espécie de grande varanda/terraço de onde se pode observar todas as instalações do lugar. Para se chegar à casa da moeda falsa propriamente dita (26 e 28), é preciso cruzar nova ponte sobre outro ribeiro (27) e depois nova cerca. Não há simplicidade nem pre-

cariedade. A planta registra uma cena complexa, bem planejada e em expansão. A fundição ilegal encerrou suas operações em 1731, mas D. Lourenço de Almeida já havia se beneficiado o suficiente do esquema para voltar riquíssimo a Portugal, onde sequer foi punido - pelo contrário, continuou desfrutando de cargos e de prestígio social. Já lnácio, o chefe da fábrica, mofou na cadeia. Deixando de lado os destinos pessoais, os dois eram faces da mesma moeda. Juntos, viabilizaram o negócio da colonização. H PAULO CAVALCANTE

É PROFESSOR ElE HISTÓRIA DA UNI-

Saiba Mais GUIMARÃES,André

Re-

zende. "Falsários e contrabandistas

nas Minas

Setecentistas: Inácio de Souza e 'sua rede internacional de negócios ilícitos". Dissertação mestrado

de

(UFMG. 2008).

GUIMARÃES, André Re-

VERSIDADE FEDERAL DO ESTADO RIO DE JANEIRO (UNIRIO).

zende. "Moedas falsas e

DA UNIVERSIDADE

negócios: o território

DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (UERJ) E

AUTOR DO LIVRO NEGÓCIOS MINHOS

NA AMÉRICA

DE TRAPAÇA CAMINHOS

PORTUGUESA

(1700-1750).

E DESCA-

(HUCITEC.

2006).

do

lícito e do ilícito nas Minas setecentistas", disponível em: httpJ/www.cerescaico.ufr n.br/mneme/anais/st_trab --pdf/pdC9/andre_st9.pdf TÚLlO, Paula Regina AIbertini. "Falsários d'el rei: Inácio de Souza Ferreira e a casa de moeda falsa do Paraopeba". Dissertação de mestrado

(UFF,

2005).

Desenho aquarelado da fábrica clandestina de barras e moedas de ouro onde, sob o comando de Inácio de Souza, trabalhavam cerca de 100 homens, entre brancos, negros, e até funcionários da administração régia.

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