‘EU (NÃO) SOU CHARLIE’: O desafiador convívio entre diferentes compreensões de fé

June 30, 2017 | Autor: Elvio Figur | Categoría: Islamic History, Islam, Religious Fundamentalism, Cristianismo, Charlie Hebdo
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‘EU (NÃO) SOU CHARLIE’: O desafiador convívio entre diferentes compreensões de fé Elvio Figur1

1. Introdução No dia 7 de janeiro de 2015 um ataque de um grupo fundamentalista muçulmano ao jornal satírico Charlie Hebdo, em Paris deixou 12 mortos e vários feridos na redação do jornal. O ataque foi reivindicado pela Al-Qaeda do Iêmen que atribuiu a ação a uma vingança pela publicação de caricaturas do profeta Maomé. O acontecimento despertou uma série de outros atentados na França e no mundo todo. Protestos se espalharam revelando indignação ao ocorrido e reações diversas contra o jornal e contra o ataque como a marcha que levou às ruas de Paris mais de 40 líderes mundiais no dia 11 de janeiro. Até um jornal ultraortodoxo de Israel ganhou repercussão mundial porque teria tirado, por pudor, a chanceler alemã, Angela Merkel, de uma foto da marcha. Segundo Binyamin Lipkin, editor do jornal Hamevaser que publicou a foto manipulada; “Incluir uma foto de uma mulher em algo tão sagrado, para nosso conhecimento, pode profanar a memória dos mártires” (PORTAL G1, 14 de Janeiro de 2015). No Níger, norte da África, a onda de ataques contra a charge de Maomé publicada no Charlie Ebdo destruiu no dia 17 de janeiro duas igrejas cristãs brasileiras em Niamey, capital do país, e só nos dias 16 e 17 de janeiro, dez pessoas morreram e cerca de 20 templos cristãos foram atacados (COLON, 2015). Segundo o site Catholicus, uma missionária que estaria no Níger revelou que “o grupo extremista Boko Haram pretende ‘massacrar todos os cristãos’ do país” (CATHOLICUS, 2015). No dia 15 de fevereiro de 2015 outro grupo jihadista, o Estado Islâmico (EI), divulgou um vídeo mostrando a decapitação de 21 cristãos coptas egípcios que haviam sido sequestrados na Líbia. O vídeo foi divulgado nas redes sociais de jihadistas líbios que apoiam o EI com a seguinte legenda; “O povo da cruz, os seguidores da igreja egípcia hostil” (TOLBA, 2015, p.1). Diante dos acontecimentos, o líder da maior igreja cristã ocidental, o Papa Francisco, afirmou que a liberdade de expressão não dá direito a insultar o próximo, e que matar em nome de Deus é um absurdo (GAZETAWEB, 2015). No entanto, esses acontecimentos despertaram a atenção do mundo todo para assuntos que envolvem a relação entre Política, Religião e Sociedade. Isso porque, fenômenos extremistas como os citados, se relacionam a uma série de questões difíceis de compreender. Entre essas questões podem estar; a ameaça ao monopólio religioso em algumas sociedades; a mistura entre religião e política, ou entre fé religiosa e identidade nacional, e; o avanço de formas políticas democráticas e liberais sobre governos totalitários. O presente artigo se propõe a debater essa tensão abordando aspectos da dinâmica que envolve as diferentes visões de fé das duas maiores religiões mundiais, a judaico-cristã e a 1

Mestrando em Ciência da Religião pela UFJF (Universidade federal de Juiz de Fora, MG).

religião islâmica e sua relação com a situação política e o fundamentalismo. Tentaremos, na medida do possível, encontrar possíveis contributos históricos para a situação atual tendo em mente os aspectos que envolvem compreensão de fé, doutrinas e tensões causadas pelo atrito ou pela mistura entre religião ⁄ fé religiosa e política ⁄ identidade nacional.

2. Eu (não) sou Charlie O ataque ao Jornal Charlie Hebdo denuncia a existência de uma tensão políticoreligiosa no mundo atual. É preciso, primeiramente, deixar claro, no entanto, que a cruel violência que atingiu o jornal e a decapitação dos cristãos coptas precisa ser amplamente repudiada, não por ter sido dirigida a combatentes inimigos, mas por ter sido um crime contra civis desarmados. É fato que os jornalistas, especialmente cartunistas do semanário, foram infelizes em suas representações do profeta Maomé, mas a violência praticada pelos invasores foi um ato absolutamente brutal e covarde. No caso dos ataques a cristãos, a única ‘razão’ encontrada pelos jihadistas foi o fato de que não compartilhavam da mesma fé. Se a campanha Je suis Charlie (Eu sou Charlie), que tomou conta das ruas de Paris e das redes sociais deixou claro que a ação foi um ato de violência contra a liberdade de expressão, por outro lado lembremos que o atentado foi uma resposta a algo que ofendia a fé de milhares de muçulmanos. Com Eu sou Charlie, muitos manifestantes buscaram defender a liberdade de expressão. Para estes, os radicais islâmicos, desafiam democracias de forma doentia representando uma ameaça real à liberdade de expressão. Philippe Val, antigo editor chefe do Charlie Hebdo, questiona; “Que tipo de civilização é a nossa se não podemos ridicularizar aqueles que soltam bombas em trens e aviões e cometem assassinatos em massa de civis inocentes?” (WATKINS, 2015, p.65). Para Nathalia Watkins, autora do artigo A expressão não pode ter limites, as charges do Charlie e tantas outras como as que retratam Karl Marx com sangue nas mãos ou Jesus Cristo crucificado segurando uma cerveja ou uma bomba, não significam que o autor pensa que todos os marxistas sejam assassinos sedentos de sangue ou que os cristãos são beberrões ou terroristas. “São pensados para agitar o debate. Mas rotular essas imagens como racistas é engano perigoso” (WATKINS, 2015, p. 64-65). No entanto, como, equilibradamente, lembrou o papa Francisco, liberdade de expressão não dá direito a insultar o próximo (GAZETAWEB, 2015). Assim, a outra frase de protesto, Eu não sou Charlie, defendeu outras ideias, tais como; os limites da liberdade de expressão; a luta contra a islamofobia, e; o respeito às diferenças religiosas. Segundo Boff, um dos motivos porque, as charges polêmicas do Charlie Hebdo são perigosas, está ligado à intolerância. Segundo ele, na religião muçulmana, há um princípio que diz que o profeta Maomé não pode ser retratado, de forma alguma; Esse é um preceito central da crença Islâmica, e desrespeitar isso desrespeita todos os muçulmanos. Fazendo um paralelo, é como se um pastor evangélico chutasse a imagem de Nossa Senhora para atacar os católicos […] Qual é o objetivo disso? O próprio Charb falou: “É preciso

que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo”. “É preciso” porque? Para que? (BOFF, 10 de janeiro de 2015).

Enfim. Parece que o atentado ao Charlie e a decapitação dos cristãos coptas expôs com bastante clareza um grande e cruel conflito presente e vivido hoje no mundo todo. Conflito este que “veio substituir a Guerra Fria, travada durante mais de setenta anos entre a antiga União Soviética e o Ocidente capitalista, liderado pelos Estados Unidos com o apoio dos principais coadjuvantes: França e Inglaterra” (GRANJEIRO, 19 de janeiro de 2015). Porém, o conflito atual é até mais difícil de resolver, pois não se trata apenas de divergência política; A dissonância entre as partes envolvidas tem caráter religioso e territorial, a impor o antagonismo entre o mundo islâmico, com suas eternas divisões, e os valores ocidentais, representados pelos Estados Unidos e seus aliados. A falta de entendimento mútuo se agravou após o 11 de Setembro e seu atentado ao World Trade Center, e, na sequência, a invasão e submissão do Iraque, com a ajuda da Inglaterra, da França e de outros países (GRANJEIRO, 19 de janeiro de 2015).

Quer queira, quer não, de alguma forma são as diferenças religiosas e diferentes perspectivas de fé associadas a ideologias políticas que acabam por polarizar os grandes conflitos mundiais da atualidade. O que o mundo ocidental não esperava, era que a Jihad dos muçulmanos pudesse atravessar continentes chegando a territórios como a Europa e a América. Enquanto esse tipo de ataque acontecia apenas em países como Iraque, Síria ou na Faixa de Gaza, a indignação mundial não atingia os níveis a que chegou depois dos ataques citados. Vele lembrar ainda que já houve, ao longo da história, diversos outros conflitos e ataques liderados, também por forças do Ocidente. Basta lembrar a guerra religiosa conhecida como Cruzadas cuja intenção era eliminar os infiéis na Terra Santa no período da Idade Média. Mas, Muitas e muitas guerras depois, o conflito continua, e já é impossível eliminar as divergências religiosas entre os dois mundos. O resultado acaba se traduzindo em episódios como o do Charlie Hebdo, que ocorre num momento em que movimentos de intolerância racial se espalham pela Europa. O atentado ao semanário francês tende a acirrá-los ainda mais (GRANJEIRO, 2015, p.1).

Para tentar entender um pouco da relação entre Política, Religião e Sociedade em nosso tempo, precisamos voltar na história e tentar entender o nascimento do islã e seu desenvolvimento para a tradição sunita e xiita. Ao mesmo tempo, entender mais a fundo as raízes do cristianismo e do judaísmo. Isso porque, especialmente a partir da Idade Média, essas duas religiões passaram a representar, grosso modo, o Oriente e o Ocidente tendo fortes influencias na Política Mundial.

3. Islamismo e a Jihad

O Alcorão é o livro do Islã que reúne os preceitos religiosos e jurídicos que teriam sido transmitidos por Allah a seu profeta Maomé. Ele é o texto fundador e a autoridade das comunidades muçulmanas. É no texto sagrado que o fiel muçulmano encontra o sentido do mundo ao seu redor. O Alcorão é considerado como a palavra de Allah materialmente presente no texto. No século VII da era cristã os povos da península arábica viviam em tribos politeístas. A tribo dos Coraixitas, à qual pertencia Maomé, era guardiã dos lugares sagrados de Meca onde eram venerados astros, pedras e arvores. E é contra essa religião politeísta, ou pagã, que Maomé se levantou. Em 610 ele começa a escrever as revelações recebidas de Allah através do arcanjo Gabriel. Em 622 Maomé deixa Meca para ir a Medina onde organiza a primeira comunidade muçulmana político-religiosa. Assim, Maomé é apresentado no Alcorão como o profeta que vem corrigir os erros judaico-cristãos. Essa ligação com os judeus e cristãos justifica o estatuto particular que lhes é reservado no seio da Umma, a comunidade, pois, durante a expansão do mundo árabe eles, judeus e cristãos, puderam continuar com a sua religião, enquanto que os pagãos eram obrigados a se converterem (ROLLET, 2001). A partir da passagem de Meca para Medina, no entanto, essa relação de tolerância mudou radicalmente. Na Surata 9, intitulada O Arrependimento, no versículo 29 está escrito; Combatei aqueles que não creem em Deus e no Dia do Juízo Final, nem abstêm do que Deus e Seu Mensageiro proibiram, e nem professam a verdadeira religião daqueles que receberam o Livro, até que, submissos, paguem o Jizya. (ALCORÃO, Surata 9:29).

E nos versículos de 38b a 41 da mesma Surata está; Acaso, preferíeis a vida terrena à outra? Que ínfimos são os gozos deste mundo, comparados com os do outro! Se não marchardes (para o combate), Ele vos castigará dolorosamente, suplantar-vos-á por outro povo, e em nada podereis prejudicá-Lo, porque Deus é Onipotente. Se não o socorrerdes (o Profeta), Deus o socorrerá, como fez quando os incrédulos o desterraram. Quando estava na caverna com um companheiro, disse-lhe: Não te aflijas, porque Deus está conosco! Deus infundiu nele o Seu sossego, confortou-o com tropas celestiais que não poderíeis ver, rebaixando ao mínimo a palavra dos incrédulos, enaltecendo ao máximo a palavra de Deus, porque Deus é Poderoso, Prudentíssimo. Quer estejais leve ou fortemente (armados), marchai (para o combate) e sacrificai vossos bens e pessoas pela causa de Deus! Isso será preferível para vós, se quereis saber (ALCORÃO. Surata 9:38b-41).

Segundo Rollet (2001), aqui fica claro que os muçulmanos devem combater não só os pagãos, mas também os judeus e os cristãos. Por isso, é praticamente impossível refutar um islamita contemporâneo quando ele declara que essas prescrições justificam a jihad como guerra santa. O muçulmano moderado bem poderá dizer que jihad designa antes de tudo o combate do crente contra si próprio, aquilo que o cristão chama de

conversão, mas o fato é que ele designa igualmente a guerra chamada santa (ROLLET, 2001, p.46).

Dizer que a jihad seja apenas uma luta interior é, portanto, ir contra as palavras do próprio profeta Maomé e o próprio Alcorão como fica claro nas passagens citadas. O tema fundamental e base do pensamento islâmico é a unicidade de Allah que é afirmada contra o politeísmo árabe e contra o cristianismo. O termo Islam significa submissão. Estes temas, juntamente com a ideia de responsabilidade ligada à Jihad formam o tripé da religião Islâmica fundamentada ainda na inerrância e perfeição do Alcorão. Há ainda a Sharia (via ⁄ caminho), que é a lei muçulmana que prescreve comportamentos em matéria de vida da comunidade baseados no Corão e nos Hadith, os ditos do profeta. Ao contrário da maioria das sociedades do ocidente, nas sociedades islâmicas não há a separação entre a religião e o direito. Assim, as leis da chamada Sharia são baseadas nas escrituras sagradas do Islã ou nas opiniões dos líderes religiosos (ROLLET, 2001, p.47). O problema é que, nesse conjunto de regras, existem princípios fixos que versam mais sobre questões pessoais envolvendo casamento e ritos religiosos, por exemplo, e há princípios mutáveis como a aplicação de penas para determinados crimes. Estas leis ou princípios mutáveis podem ser interpretados e aplicados conforme o julgamento de cada corte ou líder, como explica Mazlloum; Ditadores que estavam no poder, em geral, não se apegam muito à Sharia. Eles estavam interessados em leis que beneficiassem a eles próprios. Na Líbia, Por exemplo, era um código redigido pelo próprio Kadhafi, o Livro Verde (PORTAL G1, 26 de outubro de 2011).

3.1 O Sunismo e o Xiismo No islã não existem estados-nações. A Umma, uma espécie de comando político, está além das fronteiras e pertencem a ela aqueles que aderem à religião. O único poder é o de Allah. Assim, é o califa, substituto ou sucessor de Maomé, que detém o poder executivo, ou seja, ele deve fazer respeitar as leis divinas e a chamada Sharia (ROLLET, 2001, p.48). A divisão entre sunitas e xiitas se dá com um racha a partir do quarto califado por questões de sucessão. Surgem os sunitas (sunita significa costume, tradição), com Moawiya, e um islã mais ortodoxo, e os xiitas, com Ali que considera os sunitas como usurpadores (ROLLET, 2001, p.49). Os xiitas constituíram a oposição no interior do Islã, defensores dos oprimidos e adversários dos privilégios e do poder. Eles identificam-se com Maomé em Meca lutando contra as oligarquias pagãs no poder. Foram as revoltas e lutas xiitas que deram a eles suas características e a sua fama. Eles têm sempre uma posição subalterna, mesmo nos países onde os xiitas são maioria, como no Iraque. Entre eles o soberano é chamado de Imã. Este, por sua vez, tem qualidades ditas messiânicas. Eles acreditam que o verdadeiro Imã foi escondido dos homens e retornará em tempo oportuno para restabelecer o reino de Alá na terra (ROLLET, 2001, p.49).

Para tentar entender um pouco melhor a tensão entre sunitas e xiitas, precisamos lembrar que, Historicamente, se você quiser colocar o problema em termos de pensamento religioso ou teologia, os xiitas são mais racionais em comparação aos sunitas. Eis um exemplo: se você quiser se tornar um clérigo sunita, você deve memorizar o Corão e memorizar tudo o que Maomé disse (os haddith ou tradições, ditos e relatos sobre a vida do Profeta). Quando você se torna clérigo, você tem de pensar em termos de como você pode replicar esse aprendizado, mais do que pensar de forma independente. Se você vai para uma escola religiosa xiita, você tem de memorizar o Corão, mas a próxima etapa é estudar filosofia e lógica. O objetivo é fazer de você um pensador independente, não necessariamente alguém que simplesmente recita o que memorizou. Assim, pelo menos em um nível elementar, o xiismo é muito mais racional do que o sunismo [...]” (MOURAD, 2015).

Ainda, segundo Mourad, o sunismo começou como um movimento que se dedica àquilo que considera essencial a um legítimo muçulmano. Ou seja, aquilo que considera primordial na criação de algum tipo de unidade no mundo Islâmico; Sunismo, por definição, significa ‘aqueles que seguem o exemplo do Profeta Maomé’. Assim, eles se concentram tremendamente em que você viva sua vida da mesma maneira, ou pelo menos que você aspire a viver sua vida da mesma maneira, que o Profeta Maomé viveu a vida dele. E existem diferentes interpretações ou diferentes concepções sobre como o Profeta Maomé viveu [...] Por fim, isso levou à formação de eruditos que se parecem com imitadores, como papagaios. Eles apenas repetem coisas em vez de pensar independentemente. Há uma crise no mundo sunita porque não se pode contar com eruditos e clérigos para chefiar uma espécie de renascimento islâmico, uma vez que, na maioria das vezes, esses indivíduos são treinados para imitar, não para pensar de forma independente (MOURAD, 2015).

Em razão das diferentes características entre os grupos islâmicos, as negociações e tensões entre ambos se tornam desafiadoras. Essas tensões se explicam porque, em muitos países muçulmanos, há ditadores no poder. Assim, “há pessoas interessadas em mantê-los lá e outras – a maioria, provavelmente – interessadas em derrubá-los” (MOURAD, 2015). Muito provavelmente, os interessados em derrubar ditadores são pessoas oprimidas historicamente, daí se explica parte do movimento conhecido como Primavera Árabe. Mas há ainda outros conflitos e interesses envolvendo o islã.

3.2 O Islamismo Medieval Na Idade Média o califa omíada (661-750) era o chefe da comunidade muçulmana. Ele era um rei árabe e sua força apoiava-se no exército. O califa abássida (750-1258) tomou uma dimensão completamente diferente. Pôs em evidência seu prestígio religioso. Ele é o imã (dois lados), o chefe simultaneamente temporal e espiritual, o soberano absoluto cujo poder é fixado pela sharia, a lei muçulmana. Os califas dessa dinastia manifestavam o caráter

teocrático do seu poder. Eram os representantes de Deus na terra exigindo obediência incondicional. Esse califado durou até o ano 1254 (ROLLET, 2001, p. 63). A partir daí, dois sábios muçulmanos ou árbitros da Sharia (ulemás), especialmente, vão instruir e guiar o povo. São eles; Ibn Taymiyya e Ibn Khaldun. O primeiro é o inspirador da maior parte das obras islâmicas contemporâneas. Para Ibn Taymiyya, a fé pressupõe a submissão pontual às prescrições objetivas do islã: temor a Deus, humildade, suportação paciente das provações e a Jihad como combate interior. A maior fonte de perigo para a comunidade muçulmana vem do interior, da Fitna (sedição, querela) que faz com que o muçulmano seja inimigo do muçulmano. É por isso que todos os fiéis devem combater os hipócritas que querem separar o espiritual do temporal. [...] um muçulmano deixa de sê-lo quando não aplica a sharia, quando deixa portanto de cumprir as injunções principais que dizem respeito à vida, à propriedade, à Jihad, ao estatuto dos não muçulmanos, ao código de comportamento sexual, á proibição do álcool, ao jogo (ROLLET, 2001, p. 65-66).

Ibn Khaldun, por sua vez, é, de certo modo, contrário a Ibn Taymiyya. Ele foi um materialista que procurou, sobretudo, as honrarias. Para este, “o poder político é necessário em qualquer sociedade, enquanto dado humano que não tem em si nenhuma relação com a religião. Embora esta possa reforçá-lo, ele é, contudo, válido sem ela” (ROLLET, 2001, p. 67). Ele afirma ainda que “a história começa quando os povos compreendem que não são regidos unicamente pela providência, e que a religião sem a força coletiva é incompleta” (ROLLET, 2001, p. 67). Khaldun é considerado um teórico importante, mas não um inspirador para o Islã.

4. Os fundamentos do Cristianismo A Bíblia é, para os cristãos, um conjunto de livros que imprimem significado e unidade centrados na figura de Cristo. O Antigo Testamento representa o período de preparação, e o Novo Testamento, de realização. A relação da religião com a política está presente desde os primórdios do povo de Israel. A saída do Egito e a experiência da libertação são tidas como o nascimento de um povo que reconhece seu Deus nesse processo político ao mesmo tempo religioso. Também o direito israelita é envolvido nessa mesma experiência de libertação sociopolítica. Da mesma forma as figuras dos profetas são essenciais, pois é por meio deles que o juízo, o discernimento e a avaliação acontecem. São eles que tratam principalmente das relações sociais opondo-se à opressão de ricos sobre pobres, do rei sobre o povo ou da autoridade sobre os súditos (ROLLET, 2001). Já no Antigo Testamento a figura do Messias aparece. Mais como uma figura política propriamente do que como um salvador, mas é no Novo Testamento que Deus torna-se homem. O Cristo é a manifestação de Deus em pessoa, pois; “[...] o Verbo se faz carne e habitou entre nós” (BÍBLIA, 2012, João 1.14). O escrito bíblico Paulo declara isso ao afirmar que ele, “a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de

homens” (BÍBLIA, 2012, Filipenses 2.7). Assim, o reinado de Deus revela-se no Deus que exerce, em Jesus, a sua realeza quando os pobres e oprimidos são chamados para a libertação. Como diz Jesus aos discípulos de João Batista que o interpelavam; “[...] Ide e anunciai a João o estais ouvindo e vendo: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados [...]” (BÍBLIA, 2012, Mateus 11.4 e 5). Sua mensagem, no entanto, vai além. Ele pretende mostrar, com sua morte, uma liberdade que vai além da política, e que, além disso, é gratuita. Um presente da Graça; Disse, pois, Jesus aos judeus que haviam crido nele: Se vós permanecerdes na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará [...] Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres (BÍBLIA, 2012, João 8. 31, 32 e 36).

Deus, em Cristo, liberta o seu povo. Assim, para o cristianismo, a vitória de Cristo sobre as forças da morte volta a dar esperança de que “a própria criação será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus” (BÍBLIA, 2012, Romanos 8.22). O Deus que ama, o Deus que se pensou ser imutável e impassível, é aqui o Deus que se torna, na história dos homens, o Deus que sofre. [...] Não é na sua exterioridade e no seu desprendimento em relação ao mundo que Deus mostra a sua grandeza; é no rebaixamento mais extremo, no suplício do escravo privado de direitos humanos, que Deus revela que ele é precisamente aquele a quem chamamos ‘Deus’. É onde somos tentados a ver apenas a decadência que ele nos faz ver a forma extrema do amor [...] A transcendência de Deus se manifesta supremamente naquilo que para o homem é sinônimo de rebaixamento. É aqui que podemos falar, na realidade, de transcendência na imanência (ROLLET, 2001, p.40).

Assim, as primeiras comunidades cristãs não se opuseram às autoridades constituídas, mas acreditavam fielmente que era preciso tempo para que as consequências da mensagem de amor de Deus produzisse efeito nas sociedades em que era difundida. Eles confiavam na ação do próprio Deus, cuja loucura é mais sábia que os homens e cuja fraqueza é sua força (BÍBLIA, 2012, 1 Coríntios 1.25). As perseguições sofridas pelos cristãos, incitadas por imperadores como Nero, Domiciano, Trajano e Marco Aurélio, tiveram caráter mais político do que religioso. Primeiro, os cristãos recusavam-se a cultuar os deuses romanos e a aceitar a divinização dos imperadores “pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em ligar do criador” (BÍBLIA, 2012, Romanos 1.25). E, segundo, graças a sua mensagem libertadora, o Cristianismo conseguiu grande sucesso entre os excluídos da sociedade romana, especialmente pobres e escravos (ROLLET, 2001). Tertuliano de Cartago expressou isso quando afirma que “O sangue dos mártires é a semente da igreja”. O livro do Apocalipse é uma denúncia dessas opressões e perseguições sofridas. Nele se revela uma forte repulsa ao poderio sanguinário dos imperadores romanos. Mas trata-se de uma resistência espiritual onde Cristo é chamado de “O Rei dos reis e Senhor dos senhores e Rei dos reis” (BÍBLIA, 2012, Apocalipse 17.14). À medida que a crise do Império Romano se agravava, suas estruturas administrativas se deterioravam. Foi assim que, em 390, o imperador Teodósio, com o Edito de Tessalônica,

tornou o Cristianismo a religião oficial. Ele pretendia, não apenas exercer controle sobre a crença cristã, mas utilizar-se dela para organizar o Império. E foi assim que o cristianismo se infiltrou no interir do paganismo romano a ponto de ter, mais tarde, forte influência política. Mas nem sempre o cristianismo foi pacífico e tolerante com outras religiões. Por volta do ano 1.000 houve um significativo crescimento das peregrinações de cristãos a Jerusalém por acreditarem que o fim do mundo estava próximo. Mas o Islamismo, no final do século XI, já havia se tornado grande suficiente para reivindicar seus lugares sagrados. Esses lugares, no entanto, coincidiam com os lugares sagrados dos cristãos. Jerusalém, especialmente, é a cidade santa tanto para judeus, como para cristãos e muçulmanos. Foi assim que os muçulmanos ocuparam cada vez mais a Terra Santa criando dificuldades para o transito de cristãos. A situação foi se agravando a tal ponto que irritou os cristãos que se reuniram para a realização de expedições militares à Terra Santa a fim de tentar expulsar os muçulmanos da região. Entre os anos de 1096 e 1270 diversas expedições foram organizadas para tentar reconquistar Jerusalém, porém, sem sucesso. Essas expedições são hoje conhecidas como Cruzadas. E, ainda hoje, a ocupação das regiões próxima à Terra Santa é motivo de conflitos entre essas religiões.

4.1 O Cristianismo Medieval É na Idade Média que o cristianismo se estabelece teologicamente. Duas são as referências do pensamento da época com respingos importantes até os dias de hoje. São elas; Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino.

4.1.1 Agostinho de Hipona Frequentemente se diz que, tanto o catolicismo como o protestantismo, as duas principais correntes cristãs da atualidade, têm suas origens no pensamento de Agostinho. O catolicismo obtém especialmente dele o alto conceito da igreja e dos sacramentos. O protestantismo segue Agostinho na sua visão da soberania de Deus, da perdição do homem no pecado e da graça de Deus como meio exclusivo para a salvação do homem. Essa declaração, no entanto, é simplória, pois há católicos que compartilham de seu pensamento acerca da Salvação por Graça, e há protestantes que não compartilham das mesmas premissas. De qualquer forma, foi de Agostinho que o pensamento teológico cristão recebeu suas maiores contribuições (BROWN, 2001). Contra os pagãos, que culpavam os cristãos pela queda de Roma, Agostinho escreveu A Cidade de Deus onde ele distingue a cidade celeste da igreja terrena. A antítese é a cidade dos homens minada pelo pecado. Para Agostinho, ambas estão confundidas neste mundo e os cristãos participam de ambas. Eles obedecem às leis, mas o fazem num espírito diferente direcionada à Cidade de Deus. Assim, a Igreja não é essa cidade, mas é composta por pessoas que pertencem às duas cidades.

Ainda para Agostinho, a dominação do homem sobre o homem é devida ao pecado, o governo coercitivo é, portanto, legítimo e necessário para o estado atual do mundo (ROLLET, 2001, p. 54). Por outro lado, Fé, na teologia de Agostinho, é um dom, mas também um ato voluntário que implica empenho na aceitação dos conteúdos revelados que expressam a intervenção histórico-salvífica de Deus; uma virtude sobrenatural, um dom através da qual o ser humano, sob a autoridade divina, aceita livremente a verdade salvadora revelada por Deus em Jesus Cristo. Verdade que vem testemunhada pela Sagrada Escritura e pela Igreja. Crer é assentir à verdade da revelação acolhendo o mistério de Deus (DETONI, 2010, p. 101).

Assim, para Agostinho, a Igreja é superior ao governo terreno. E é nesse ponto que reside sua fraqueza. Ele acaba aderindo à ideia de que o braço secular deve agir contra a heresia, criando leis em defesa da fé verdadeira (ROLLET, 2001, p55).

4.1.2 Tomás de Aquino Em sua Suma Teológica, Tomás de Aquino liga os ensinos da Bíblia, às tradições da igreja e da filosofia, especialmente de Aristóteles. Tomás desenvolve uma maneira de pensar antropocêntrica na qual busca distinguir Fé e Razão. Para ele, ambas não são contraditórias, mas complementam-se, pois a Razão pode demonstrar o que a Fé aceita. Nesse sentido, “a lei chamada eterna não é mais do que a razão divina enquanto princípio do governo de todas as coisas. Ela atualiza-se de uma maneira particular no que respeita ao homem, ser inteligente e voluntário” (ROLLET, 2001, p.55). Assim, para ele, o homem tem a inteligência e a capacidade de agir de forma sensata e moralmente boa. Nisso reside a finalidade da política democrática; buscar o bem comum. Tomás de Aquino rejeita, portanto, a interpretação agostiniana de que todo o poder vem de Deus (ROLLET, 2001, p. 62). Para ele, o poder político vem do direito humano elaborado pela razão. O político é, para Aquino, uma mediação indispensável para a vida boa das comunidades humanas e para a realização da vontade de Deus.

5. O Islamismo atual O Islamismo é a religião que mais cresce no mundo hoje. Ela é a segunda religião com maior numero de fiéis, atrás apenas do cristianismo. Há no mundo quase 6 bilhões de habitantes, sendo que, segundo o Centro de Estudos e Divulgação do Islam (CDI), aproximadamente 1,5 bilhão são muçulmanos. Boa parte dos islâmicos hoje está preocupada com a manutenção de rituais, costumes e práticas antigas. É o que se observa, por exemplo, em Foz do Iguaçu, no Paraná onde o município teve que se adaptar à lei Islâmica sobre o uso do lenço ou véu. Isso porque, segundo o Sheik Mohamed Kallil;

Na lei Islâmica é uma obrigação de todas as mulheres, de todas as moças, quando elas completam nove anos. Usar o lenço só fora da casa. Usar o lenço para proteger ‘si mesmo’ como ela um ser humano, um ser feminista (RIC NOTÍCIAS, 2014).

Outro exemplo dessa preocupação é o relacionado ao Método Halal 2 de abate de aves e bovinos. Em Marechal Cândido Rondon e em muitos outros municípios paranaenses há um numero considerável de muçulmanos que para lá se dirigiram seguindo o lastro de oportunidades de emprego no abate Halal. Como explica o Sheik Mohamed do Centro Islâmico de Brasília, qualquer coisa que um muçulmano come “antes, tem que falar o nome de Allah [...] Esse sistema de Abate Halal, é um sistema islâmico, muçulmano, do nosso livro sagrado, o Alcorão” (TV TST, 2011). E esse método de abate é exigido pelos países muçulmanos para comprar a carne, mas só pode ser realizado por muçulmanos e na presença de um religioso. O Paraná é o maior exportador mundial de carne de frango e, só em 2013 exportou 1,8 milhão de toneladas de aves abatidas pelo método Halal. Por essa razão os muçulmanos estão cada vez mais presentes nas cidades onde há frigoríficos de aves que exportam para estes países. E nessas cidades vão sendo formadas pequenas comunidades que, à medida que se organizam, se tornam congregações. Conforme o grupo cresce e se organiza, formam-se associações com intuito de prestar serviços beneficentes, “E para o uso de ferramentas digitais visando à difusão do Islã, como Facebook, blogs e sites na internet” (MILLEO, 2015, p.1). O Islamismo também se espalha pelo mundo buscando identificar-se com jovens que se excluíram da sociedade por sofrer com o racismo; Para eles, mudando de comportamento, o Islã é a solução para os problemas das favelas e dos subúrbios, começando pelas drogas [...] Excluídos da sociedade, eles descobrem na história brasileira as revoltas dos escravos negros muçulmanos, o suficiente para forjar uma identidade ligada ao Islã, onde o rap os fortalece o sentimento de que eles pertencem a uma comunidade [...] Alguns [...] sonham que o Brasil se torne um Estado Islâmico, com bairros livres do álcool e da carne de porco [...] O crescimento do Islã no Brasil está acontecendo de uma maneira acelerada. Nós vemos muitas pessoas que estão se convertendo ao Islã, que estão a procura do Islã como forma de conhecimento e como auto-afirmação religiosa (FRACE 24, 2013).

Assim, observa-se que o islamismo também atrai a atenção, como diria Olavo de Carvalho, “seduzindo muitos conservadores desesperados por meio de apelos a ‘valores tradicionais, à revolta contra o mundo moderno’ etc” (CARVALHO, 2015). 2

Em árabe, halal significa legal ou permitido, termo usado para descrever aquilo que é permitido pelas leis da Allah (Deus). Muçulmanos só podem consumir alimentos halal, obtidos conforme os preceitos do Alcorão e da Jurisprudência Islâmica. Animais só são considerados halal se abatidos segundo os rituais islâmicos. Apenas muçulmano pode fazer o abate, em local separado do convencional, precedido pela frase “Em nome de Alá, o mais bondoso, o mais misericordioso”. Para permitir uma sangria única e que o animal morra sem sofrimento, o corte deve atingir a traqueia, o esôfago, artérias e a veia jugular, para todo o sangue escoar. A inspeção da carne necessita da presença de certificadoras halal, que garantem a procedência. As quatro principais certificadoras no país são a Alimentos Halal Brasil, a Cdial Halal, a Cibal Halal/Fambras e a Siil Halal (MILLEO, 2015, p.1).

Mas não é só de valores tradicionais e conservadores que vive o islamismo hoje. Existem ainda muitas correntes que pretendem conciliar o Islã com aspectos da modernidade. É o que pode ser observado em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, por exemplo, com sua tentativa de mostrar uma sociedade moderna dentro das fronteiras do Islã, especialmente em sua arquitetura. A Universidade Al-Azhar, do Cairo, uma das mais antigas e prestigiadas do mundo islâmico sunita, também tem mostrado serviço no sentido de uma renovação ou reforma no islã; Somos uma universidade [...] voltada para o conhecimento humano do Islã. Como outros países de maioria muçulmana, o Egito consulta a Al-Ahzar sobre o que acha correto para a sociedade. Por exemplo, a nova Constituição do Egito prevê liberdade religiosa - e a Al-Ahzar ratificou a Carta (ABDEL-GHANI, 2015).

Muitos acadêmicos muçulmanos islâmicos acreditam que a Jurisprudencia Islâmica (FIQH) deva ser renovada, e que os juristas clássicos deveriam perder o seu estatuto especial. Eles defendem a formulação de uma nova fiqh que seja praticável no mundo moderno sem alterar os pontos fundamentais do islamismo, mas evitando más interpretações da lei, que é o que, em geral, acontece entre os grupos extremistas islâmicos atuais. O maior desafio é, no entanto, que “o islã não possui uma instância capaz de dizer qual a atualização oficial da mensagem do alcorão que pode ser feita hoje” (ROLLET, 2001, pág. 151).

5.1 Grupos extremistas islâmicos Al-Qaeda, Al-Qaeda do Iêmen, Estado Islâmico (ISIS), Talibã, Boko Haram são alguns dos grupos extremistas de diferentes regiões que matam sem piedade e deturpam em nome da religião islâmica. No dia 14 de janeiro de 2015 a Al-Qaeda do Iêmen assumiu que os terroristas que invadiram a redação do jornal francês, Charlie Hebdo, eram militantes do grupo. O grupo quer que todo o mundo siga a lei islâmica (Sharia) e pretende eliminar quem não acreditam no Islã. Ela é a dissidência mais ativa da Al-Qaeda original de Bin Laden. Al-Qaeda, por sua vez, quer dizer a base e surgiu em 1988, na Arábia Saudita. Foi o primeiro grupo islâmico a internacionalizar o terror, criando uma verdadeira rede pelo mundo inteiro. Mas o grupo terrorista que mais assusta hoje é o Estado Islâmico (ISIS), que; Nos últimos três anos e meio [...] se aproveitaram do vazio de poder criado pela guerra civil da Síria e tomaram grandes áreas, inclusive campos de petróleo que ajudam a financiar o terrorismo. Hoje, o Estado Islâmico domina mais de 30% da Síria e avança sobre o Iraque, onde domina, por exemplo, Mossul, a segunda maior cidade do país. Quando entra em um novo território, os terroristas do Estado Islâmico matam muçulmanos de outras denominações, escravizam as mulheres, e tentam converter os cristãos. Quem não aceita, é executado (PORTAL G1, 18 de janeiro de 2015).

Esse grupo, que se aproveitou da guerra civil síria para se expandir (COCKBURN, 2015, p.40), era inicialmente um braço forte da Al-Qaeda e é formado basicamente por islâmicos sunitas e seus militantes consideram os xiitas, grupo predominante no Iraque, como infiéis que merecem ser mortos. Além disso, afirmam que os cristãos têm que se converter ao Islã, pagar uma taxa religiosa ou enfrentar a pena de morte 3. Um dos objetivos do EI é criar um estado muçulmano que inclua as zonas sunitas do Iraque e da Síria (COCKBURN, 2015, p.9); Eles querem criar um califado, um poder central para mandar em todos os povos muçulmanos. E em nome disso, cometem barbaridades. Atos de selvageria divulgados como troféu nos vídeos que eles espalham na internet. [...] E escolhem vítimas para fazer execuções que provoquem a ira dos governos do Ocidente [...] O Estado Islâmico montou um aparato militar bem equipado e financiado. Tem 200 mil homens com armamentos modernos, inclusive quatro aviões caça [...] A pretensão desses grupos extremistas é a reconstituição política desse califado e dessa hegemonia muçulmana sobre diversas terras, sonhando com o velho império muçulmano da Idade Média, que ia ali da Ásia central até a Espanha (PORTAL G1, 18 de janeiro de 2015).

Vídeos postados em 2014 pelo EI do Iraque mostram jihadistas estrangeiros, provavelmente em algum lugar na Síria, queimando seus passaportes para demonstrar um compromisso permanente com a jihad. À medida que eles rasgam seus passaportes e os jogam nas chamas, fazem declarações de fé e promessas de lutar contra os governantes de seus países de origem (COCKBURN, 2015, p.39), em favor do califado através da jihad. Abu Bakr al-Baghdadi, líder do EI, disse que esse califado seria “[...] um estado onde o homem árabe e o não árabe, o homem branco e o negro, o oriental e ocidental são todos irmãos... A Síria não é para os sírios, e no Iraque não é para os iraquianos. A Terra é de Allah.” (COCKBURN, 2015, p.9). Muitas ideias adotadas pelos grupos extremistas islâmicos são tomadas, historicamente, de Mohammad ibn Abdul Wahhab, sunita nascido em 1703. Foi ele quem proibiu o cigarro, a dança, a musica e, acima de tudo, proibiu qualquer desvio do monoteísmo muçulmano (COMMINS, 2006, p.6). Ele dizia; “O barro não pode salvá-los. Orem a Alá e somente a ele” (WATKINS, 2015. p.68) e expandiu a campanha da reconversão onde, depois de retomarem os mandamentos originais da religião, os bons muçulmanos devia fazer com que todos os demais também os acatassem, por bem ou por força. O objetivo é “purificar o islamismo para devolvê-lo às suas raízes do século VII” (OTTAWAY, 2004, p.1). Para muitos estudiosos do tema, trata-se de uma visão retrógrada “configurando a resistência à transformação de ideias, à ausência de percepção da mudança e à negação do tempo” (TORRES, 2004, p.23). Uma “descontinuidade do tempo social”, a qual pode ser “caracterizada pela conjunção do tempo linear e do tempo mítico” (GONÇALVES, apud TORRES, 2004, p.23). 3

Por esta razão são também conhecidos como Jihadistas. Na Surata 9, intitulada ‘O arrependimento’, no versículo 29 está escrito; “Combatei aqueles que não creem nem em Deus nem no último dia, que não consideram proibido o que Deus e os seus apóstolos proibiram, e aqueles dentre os homens das escrituras que não professam a verdadeira religião. Combatei-os até que paguem o tributo com as próprias mãos e que seja submetido” (Alcorão. Editora Garnier-Flammarion, 1970).

O Wahabismo, como ficou conhecido esse movimento de purificação do islamismo, foi fortemente combatido pelos Otomanos, mas sobreviveu e, mais tarde, foi retomado por Ayman Al-Zawahiri que forneceu os fundamentos ideológicos que Bin Laden desenvolveria. Estes dois, Zawahiri e Bin Laden, planejaram juntos a restauração do califado, um estado teocrático, em todo o mundo islâmico a quem todos os muçulmanos deveriam obediência e o ataque aos infiéis americanos em 11 de setembro de 2001. Esse atentado foi um formidável veículo de propaganda para os extremistas (COCKBURN, 2015), pois diversos grupos brotaram de sua ideologia, inclusive a Al Qaeda do Iêmen que assumiu a autoria do atentado ao Charlie Hebdo. Nasr AL-Ansi, que aparece no vídeo, diz que todos os envolvidos no ataque agiram sob as ordens do supremo comandante Ayman Al-Zawahiri (WATKINS, 2015. Pág. 69). Mas boa parte dos muçulmanos não apoia esses extremistas. Na realidade, com relação à violência praticada em nome da religião islâmica, parece que o que está em jogo é o poder e o dinheiro. O que esses grupos extremistas querem é derrubar governos e construir seus próprios impérios ou califados. É contra isso que Abdel-Hhani, porta-voz dos imãs da milenar Universidade Al-Azhar, no Egito, argumenta; Não existe um Estado islâmico. No Islã, não está previsto nada como o que esse grupo propõe ou como o que acontece no Irã, em que o líder religioso é o líder do Estado. O Islã não tem uma igreja. Não temos um líder único, um papa, e não temos um Vaticano. O profeta não propunha um Estado religioso, mas uma sociedade em que os ensinamentos de Deus fossem seguidos por muçulmanos, cristãos ou judeus de acordo com seu entendimento comum e não porque um líder qualquer os impõe (ABDELGHANI, 2015, p.1).

Ali Zoghbi, vice-presidente da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil afirma que; “O islamismo é uma religião que evoca paz, que evoca a preservação da vida. Que evoca o direito inalienável da liberdade de expressão” (PORTAL G1, 18 de janeiro de 2015). Isso contradiz a interpretação que certos grupos extremistas fazem da própria religião. Eles entendem que seja justificável tirar a vida daqueles que eles consideram infiéis ou que impedem a realização de seus planos. Enfim, o cenário atual pode ser resumido pelas palavras de George Friedman; O cristianismo se viu prejudicado pelo seu zelo evangélico e já não usa a espada para matar e converter seus inimigos. Pelo menos partes do Islã mantêm isso, e dizer que nem todos os muçulmanos compartilham essa visão não resolve o problema. Há um número suficiente de muçulmanos que dividem esse fervor de pôr em perigo a vida dos que desprezam (apud WATKINS, 2015. Pág. 59).

6. O Cristianismo atual O cristianismo é a maior religião do mundo, com um pouco mais de 2 bilhões de adeptos, o equivalente a, aproximadamente um terço da população mundial. É a maior religião ocidental com influências profundas sobre a cultura e sobre a política atual nesse lado

do planeta. É amplamente fragmentado em dezenas de milhares de grupos de fé, grandes e pequenos. O maior e mais representativo grupo cristão é o católico, do qual pertencem cerca de 50% das pessoas que se identificam como cristãs. Apesar das muitas transformações pelas quais passou, o cristianismo, desde seu inicio, teve significativa contribuição para o desenvolvimento das sociedades ocidentais democráticas. Diferentemente do islã, o cristianismo reconhece a autonomia da ordem profana, ou poder político, em relação à esfera religiosa. Essa autonomia está implícita nos conceitos de secularização e laicidade. Até recentemente, no entanto, muitos países ainda eram governados por regimes que se identificavam diretamente com determinados grupos cristãos. O que se observa, com o passar dos anos, é uma tendência cada vez maior em direção à laicidade. Ou seja, um governo sem interferência direta da religião e onde a liberdade religiosa é defendida como principio para a boa convivência. O cristianismo, portanto, em sua essência não busca um governo cristão como tal, mas se esforça no sentido de que os governos seculares reconheçam a dignidade básica universal de todas as pessoas, o direito de liberdade de expressão, de crença e de culto para todas as pessoas e religiões. Para o cristianismo, essa liberdade é que garante o livre curso do evangelho. A secularização começou já com o judaísmo e a moral da aliança que tinha o propósito de orientar a liberdade do homem, e é confirmada pela encarnação de Cristo (ROLLET, 2001, Pág. 174). Dietrich Bonhoeffer, numa perspectiva pastoral, afirma que o homem moderno tornou-se irreligioso, o que seria um desafio para o anuncio da mensagem cristã. Precisamos lembrar, no entanto, que a religião remete o homem para a potência de Deus, mas a Bíblia remete o homem para a fraqueza de Deus que é, na realidade, a força do cristianismo. Essa fraqueza de Deus é sua humanação de um Deus que, como disse Dorothy Sayers, “teve a honestidade e a coragem de tornar-se também homem” (apud YANCEY, 2001, p.164). Bonhoeffer acredita que a Idade Adulta do mundo liberta o homem para que ele olhe, não para o Deus da religião, mas para esse Deus da Bíblia. Ou seja, a secularização, de certa forma, favoreceria a fé bíblica. Essa afirmação é reforçada por Barth que lembra que a religião não é, por si só, um verdadeiro acesso a Deus, pois ela tende à auto-justificação (ROLLET, 2001, p.174-181), ou à idolatria que é o maior perigo para da Fé (TILLICH, 1985, p.15). Isso já nos dá um indicativo de como o cristianismo se alinha, em termos gerais, com o mundo secularizado e contribui positivamente para a democracia. Kant, por exemplo, lembra que, “Quanto menos coagido fisicamente puder ser o homem, mais ele poderá ser coagido moralmente (pela simples representação do dever), e mais ele é livre” (apud ROLLET, 2001, p. 183). Esse é um dos princípios mais importantes na democracia; a liberdade responsável. É claro que esse é um ideal humanamente impossível de ser plenamente vivido, segundo pensadores cristãos, em razão do problema do mal. O mal, no cristianismo, é entendido como aquilo que uma liberdade pode cometer de negativo, o que pode ser trágico especialmente na política. Isso pode ser visto claramente na história por meio da tirania. Assim, o homem é confrontado com a sua culpabilidade na sua ação política. Lutar contra esse mal só é possível por meio da conversão. Por esse motivo a razão filosófica da Kant vê a necessidade de uma religião moral e, para ele, só o cristianismo merece esse título (ROLLET, 2001, p.196). Para Kant, é em Cristo que se firma o reinado da liberdade para todos os que

querem renunciar o mal, como diz a Bíblia; “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (BÍBLIA, 2012, João 8.32). A salvação seria, para o cristianismo, a renovação radical da liberdade impulsionando o homem a “amar o próximo como a si mesmo” (BÍBLIA, 2012, Mateus 22.39) consistindo-se aí o verdadeiro exercício da moralidade cristã.

7. A Dinâmica da Fé e o problema do fundamentalismo Os acontecimentos recentes envolvendo o semanário Charlie Hebdo e todas as reações ou ações subsequentes despertou o mundo, mais uma vez, para um problema que o assola de tempos em tempos. A questão do fundamentalismo religioso. Ainda que haja diferentes formas de o fundamentalismo se manifestar em diferentes contextos, é possível a busca por um elemento comum entre as diferentes manifestações. Segundo Pace e Stefani, trata-se de uma lógica social onde pessoas professam credos diferentes, mas animadas por um mesmo espírito combativo, imbuídas de uma íntima e urgente paixão por valores éticos e religiosos que sentem ameaçados pelo triunfo do individualismo e do pluralismo (PACE e STEFANI, 2002, p.6-7).

Esse elemento de paixão por valores éticos e religiosos ameaçados mostra que, em todos os movimentos do universo fundamentalista, há uma espécie de “retorno das teologias políticas” (PACE e STEFANI, 2002, p.7). Trata-se de movimentos coletivos que pretendem conduzir ou reconduzir a política em direção à fé religiosa, ou ao espírito religioso. O fundamentalismo é [...] esse jogo que decorre entre a decadência moral da política e a tentativa dos grupos religiosos radicais de encontrar uma solução para a crise da política: a do retorno aos fundamentos últimos (sagrados, se necessário, e por isso, absolutos) da ação humana na sociedade política (PACE e STEFANI, 2002, p.10).

Vale lembrar ainda que; não se pode reduzir a complexidade desse fenômeno às manifestações mais radicais, e que; eles nascem, em geral, no seio das grandes religiões mundiais. É o caso como o cristianismo por meio das cruzadas, do fundamentalismo protestante ou católico, e também do islamismo como já citado anteriormente. Para tentar compreender melhor a questão do fundamentalismo e sua relação com a fé, retornamos a um autor que julgamos fundamental nessa discussão. Trata-se de Paul Tillich e sua exposição da Dinâmica da Fé. Segundo Tillich; Toda expressão de fé que manifesta aquilo que toca uma comunhão de fé última e incondicionalmente, precisa incluir a crítica a si mesma. Em todas as afirmações confessionais, sejam elas de natureza litúrgica, teológica ou ética, é necessário que seja bem manifesto que elas não tenham validade última nem incondicional. A sua função é, isto sim, indicar o valor último e o incondicional que a todas transcende. Isso é o que eu chamo de Principio Protestante (TILLICH, 1985, p.23).

Para Tillich, esse Princípio Protestante da crítica a si mesmo é muito importante porque as afirmações confessionais, símbolos ou manifestações de fé não podem assumir o lugar daquilo que toca uma comunhão de fé última e incondicionalmente, ou seja, a ideia de Deus. É por isso que ele defende a necessidade de uma crítica radical ao mito, pois “a consciência mítica primitiva resiste obstinadamente a toda tentativa de entender o mito como mito [...] Os símbolos e mitos são entendidos literalmente”. E, “Uma fé que entende seus símbolos literalmente é idólatra” (TILLICH, 1985, p.37). O problema é que, na fé idólatra, “o portador, o invólucro do sagrado, é confundido com o próprio sagrado. Também isso se dá em todos os tipos de fé” (TILLICH, 1985, p.68). É o caso, por exemplo, da “doutrina da Igreja católica-romana de que ela sozinha esteja de posse da verdade”, e da “ortodoxia protestante, que rejeita todas as outras formas do cristianismo e da religião” (TILLICH, 1985, p.79). O monoteísmo exclusivo dos profetas, sua luta contra as divindades do paganismo, a mensagem de justiça universal no Antigo Testamento e de graça universal no Novo Testamento – tudo isso tornou o judaísmo, o Islã e o cristianismo intolerante perante toda outra religião [...] eles são intolerantes e podem intensificar essa atitude até o fanatismo (TILLICH, 1985, p.79).

Esse fanatismo é visto especialmente no cristianismo e no islamismo atual. Nesse último, através de uma supervalorização do Alcorão como livro sagrado, e através da leitura literal dos textos sagrados da religião. Grupos fundamentalistas islâmicos tomam como princípios; a inerrância do conteúdo do livro; a astoricidade em que a razão não tem poderes para interpretar historicamente a mensagem religiosa; a crença de que é possível deduzir do livro sagrado um modelo integral de sociedade perfeita, e; a referência a um princípio absoluto que estimula a imaginar a possibilidade de decalcar a cidade terrena sobre o modelo ideal apresentado no livro (PACE e STEFANI, 2002, p.20-21). Esses princípios tornaram o islã intolerante e suscitou grupos ao fanatismo. Para Abdel-Ghani, no caso, por exemplo, dos sauditas islâmicos, O problema é que, nos últimos 200 anos, os sauditas têm propagado as crenças de Ibn Taymiyyah e Ibn Abd al-Wahhab (fundadores do salafismo e do wahabismo), que defendiam uma leitura textual do Alcorão, desconsiderando a premissa de compreender os textos dentro dos contextos em que foram escritos. O salafismo e o wahabismo trazem visões fundamentalistas e, muitas vezes, errôneas do Islã, porque ignoram estudos para o melhor entendimento do significado das escrituras. Mesmo para os que têm o árabe como primeira língua é difícil compreender textualmente as escrituras ancestrais, porque o idioma se modificou. Há um verso no Alcorão dizendo que a Terra é "elíptica", mas a mesma palavra pode ser traduzida como "plana". (ABDEL-GHANI, 2015, p.1).

Vemos claramente que, no caso do uso do Alcorão por alguns grupos extremistas islâmicos, aquele que é um símbolo da fé, o livro, foi elevado à validade última e absoluta num fundamentalismo que nega a hermenêutica, quer dizer a interpretação (TORRES, 2005, p. 26). Mas, como lembra Tillich, “O símbolo não pode se tornar um ídolo [...] Por isso o critério para a verdadeira fé está em que ela contenha em si um elemento de auto-crítica”

(TILLICH, 1985, p.64). E isso vale também para o cristianismo, o budismo e todas as religiões que tem seus símbolos, ritos e mitos como expressão e linguagem de fé, pois, O inimigo da teologia crítica não é, por isso, a compreensão literal ingênua dos símbolos, mas sim aquela que é feita conscientemente, com uma agressiva supressão do pensamento independente (TILLICH, 1985, p.39).

Para Abdel-Ghani, essa é a grande crise do Islã nos dias atuais, o conflito “entre as escrituras (o entendimento literal do Alcorão) e o intelecto (a interpretação de estudiosos do Islã)” (ABDEL-GHANI, 2015, p.1). Quando o jornal Hamevaser publicou a foto manipulada da qual tirou, por pudor, a chanceler Angela Merkel da marcha dos líderes mundiais em Paris, ele o fez baseado em algum princípio moral retirado do livro. O mesmo pode ser afirmado com relação ao uso do véu e à exigência do método Halal de abate. A reação contra a publicação das charges polêmicas do Charlie Hebdo também foram motivadas por princípios religiosos. A Al-Qaeda do Iêmen, que assumiu a autoria do atentado, deixou claro que houve, por parte do Charlie, a quebra de um princípio da Sharia, o que levou o grupo a cometer atos extremos em nome de uma fé baseada na literalidade da interpretação. O Alcorão, a Bíblia, a Cruz ou a figura de Maomé são expressões daquilo que toca incondicionalmente. Entretanto, não é fácil estabelecer a linha divisória entre uma fé e uma expressão, mas isso precisa ser tentado sempre de novo no encontro entre as formas de fé. Só então pode-se evitar o fanatismo ao mesmo tempo em que é mantida a certeza interior da fé (TILLICH, 1985, p.80).

Eis o grande desafio da sociedade moderna: lidar com diferentes expressões de fé numa convivência harmoniosa, tolerante, e ao mesmo tempo, construtiva. Essa é a razão porque há a necessidade de discutir de maneira sensata a relação entre Política, Religião e Sociedade. Nesse processo, é preciso ter claro que, Mesmo que uma determinada sociedade seja praticamente idêntica com uma comunhão de fé, e sua vida seja cunhada essencialmente pela substância espiritual de uma igreja, as autoridades seculares não deveriam se imiscuir nas questões de fé, aceitando a possibilidade de formação de novas formas de fé. Pois se o seu empenho em forçar a unidade em questões de fé for bem sucedido, excluem-se com isso o risco e a coragem que fazem parte de toda fé real. Elas fizeram da fé um esquema de comportamento que não permite a decisão livre e que jamais terá o caráter de validade última, mesmo se todos os deveres religiosos forem cumpridos com toda a seriedade (TILLICH, 1985, p.22).

Esses são princípios que precisam ser mais amplamente discutidos entre o ocidente e o oriente. Essa relação entre Política, Religião e Sociedade requer a busca de caminhos para o diálogo sem ferir destrutivamente a fé do outro. A grande utopia fundamentalista é conseguir uma unidade na ação dos indivíduos capaz de superar as opiniões individuais e os diferentes pontos de vista. Não se sabe se isso algum dia será possível e é provável que nunca, mas este é um caminho que pode ser trilhado

em busca de uma convivência harmoniosa. Tillich apresenta o caminho que julga apropriado e que é, ao mesmo tempo, um grande desafio nas mãos da sociedade ocidental; Através da conversão o trabalho missionário das grandes religiões procura alcançar a unidade de todas as formas de fé [...] Existe, porém, somente uma possibilidade de atingir essa unidade: a fé precisa ser diferenciada das formas de expressão em que ela aparece. O caminho para uma única fé que englobe a terra é o caminho dos profetas, que rejeitaram a idolatria e proclamaram o Deus que é realmente Deus [...] Dado à sua autocrítica radical o cristianismo, dentre todas as religiões, é a que apresenta maior vocação para a universalidade – isso enquanto ele permitir que essa autocrítica prossiga atuando em sua própria vida (TILLICH, 1985, p.81).

Na maioria das sociedades ocidentais, a política pertence ao domínio dos fins intermediários e é confiada aos homens que legislam com o uso da liberdade e da razão que lhes foi confiada pela divindade. No Oriente, no entanto, o poder é uma manifestação de força. No Islã “a legitimação do poder político não apela para a razão humana, mas sim para a palavra do Alcorão, e a autoridade do príncipe só se pode apoiar na obediência à Sharia” (ROLLET, 2001, p.168). Isso significa que, na maioria das sociedades Orientais, principalmente nas mais fundamentalistas, o legislador não atua por mandato divino, mas como obediência à sua vontade. Enquanto o islamismo desenvolve uma lógica de submissão, o cristianismo parece harmonizar-se bem mais profundamente com a democracia, pois nele a liberdade torna-se uma questão chave. O islã situa a liberdade “no aprender a fazer o que trará as melhores consequências (nesta existência e no além)”. Nessa perspectiva, ele se apresenta como “o método divino de educar a liberdade do homem [...] de educá-lo no exercício de seu livre-arbítrio” (OUMAIRI). Por isso, o islamismo “torna efetiva a Shariah (lei divina) possibilitando que a sociedade como um todo exerça suas liberdades fundamentais” (OUMAIRI). Trata-se de uma lógica de liberdade que é, ao mesmo tempo, submissa às leis e que segue uma lógica sacrifical onde a liberdade permanece condicionada à ação humana, ou seja, à obediência. O cristianismo, por sua vez, coloca um fim nessa lógica sacrifical, pois “Nem razão, nem a vontade, nem a autoridade conseguem criar fé” (TILLICH, 1985, p.29). É por isso que a liberdade é orientada, não sob uma cartilha, mas na ordem do agir humano social e político como uma vontade boa direcionada para o bem comum. E nesse sentido, a questão de Deus, ou daquilo que nos toca incondicionalmente, é uma questão de sentido da existência. Ao criticar a autoridade da religião e ao reintroduzir a autocrítica da igreja aos seus elementos sacramentais da fé que haviam sufocado os elementos proféticos (TILLICH, 1985, p.49), o cristianismo inspirou profundamente a ética das sociedades democráticas. Esse é o caminho da fé que a modernidade, com importante participação do movimento protestante, conseguiu, a altos custos, resgatar. Ele continua necessário e atual.

8. Considerações finais

O ataque ao Charlie Hebdo, e todos os acontecimentos subsequentes, foi apenas mais um capítulo de uma história de conflitos entre diferentes visões de mundo e visões de fé polarizadas por duas grandes religiões mundiais, o Cristianismo e o Islã. Se, por um lado há o abuso da liberdade de expressão a ponto de insultar a religião do outro, por outro lado, acreditar que uma ação assassina como essa seja agradável a Deus, é um pensamento e uma atitude absurda e retrógrada num mundo que se quer moderno e democrático. Os acontecimentos despertaram a atenção do mundo para os desafios da relação entre Política, Religião em uma sociedade moderna e globalizada com a atual. Fica clara a necessidade de discutir essa relação de maneira sensata. Se as imagens do profeta Maomé publicadas pelo Jornal são pensadas para agitar o debate, ótimo, mas há que se tomar cuidado para que não ultrapassem os limites da compreensão e da visão de mundo e de fé da religião professada pelo islã que as viu como racistas e agressivas. A visão de mundo e da sociedade desenvolvida pelo islamismo tem raízes muito firmadas na ideia de submissão pontual às subscrições objetivas de sua religião. Essas prescrições envolvem o temor absoluto a Allah e as revelações do Alcorão como verdade inquestionável, e a Jihad como combate aos infiéis. Essas prescrições literalistas do sagrado contribuem, infelizmente, para um “empobrecimento brutal da criatividade e para a anulação do espírito crítico” (TORRES, 205, p. 29) impedindo que o mito seja entendido como mito, e formando assim uma religião idólatra e, como tal, problemática, sujeita, com muito mais risco, ao fanatismo. Nela, a liberdade está no “aprender a fazer o que trará as melhores consequências (nesta existência e no além)” e onde a religião apresenta “o método divino de educar a liberdade do homem” (OUMAIRI) o que, para a modernidade, é especialmente perigoso, pois aponta para um retrocesso histórico (TORRES, 205, p. 29) que ameaça não apenas o cristianismo, mas principalmente o livre pensamento intelectual, bem como o funcionamento do estado que existe para proteção da vida, propriedade e liberdade de todos. É claro que o cristianismo não está livre do problema do fundamentalismo. Porém, ele tem, em sua essência, o principio da autocrítica capaz de olhar para seus símbolos, ritos e mitos sem elevá-los à validade absoluta. Seus principais expoentes, partindo do próprio Cristo, são unanimes em deslocar a preocupação última além do meramente condicionado, ainda que esse condicionado seja o próprio Deus encarnado. E nessa perspectiva, o cristianismo mantém a cooperação entre a razão e a revelação divina em assuntos envolvendo política e sociedade. Isso porque, segundo Kant, quanto menos coagido fisicamente for o homem, “mais ele poderá ser coagido moralmente (pela simples representação do dever), e mais ele é livre” (apud ROLLET, 2001, p. 183). Essa liberdade responsável é um dos princípios mais importantes da democracia moderna. A relação entre Política, Religião e Sociedade especialmente nessa tensão quase polarizada entre Oriente e Ocidente, portanto, desafia para uma busca de senso comum. A busca de caminhos para o diálogo sem ferir destrutivamente a fé do outro. Trata-se de compreender, primeiramente, a tensão existente entre visões de mundo e entre maneiras diferentes de olhar para a fé, a religião e a relação dessas com o poder, a sociedade e a política. E, num segundo momento, buscar o diálogo a partir daquele que, dentro do islã, partilham de uma abertura onde a solução para a crise política não seja vista meramente como um retorno aos fundamentos religiosos absolutistas, mas que tenham também a razão e o intelecto (reflexão crítica) como caminho que rejeite a idolatria e proclame o Deus que é

realmente Deus (TILLICH, 1985, p.81). E isso supõe diálogo, direito à crítica, autonomia do agir e livre pensamento. Caso contrário, o futuro do mundo se dará nas palavras de outro líder político-religioso mundial; “Olho por olho, e o mundo acabará cego” (Mahatma Ghandi).

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