Estado de Coisas Inconstitucional (Livro)

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Descripción

Carlos Alexandre de Azevedo Campos

Estado de Coisas Inconstitucional

Estado de Coisas Inconstitucional

Carlos Alexandre de Azevedo Campos

Estado de Coisas Inconstitucional

2016

Rua Mato Grosso, 175 – Pituba, CEP: 41830-151 – Salvador – Bahia Tel: (71) 3363-8617 / Fax: (71) 3363-5050 • E-mail: [email protected] Copyright: Edições JusPODIVM Conselho Editorial: Eduardo Viana Portela Neves, Dirley da Cunha Jr., Leonardo de Medeiros Garcia, Fredie Didier Jr., José Henrique Mouta, José Marcelo Vigliar, Marcos Ehrhardt Júnior, Nestor Távora, Robério Nunes Filho, Roberval Rocha Ferreira Filho, Rodolfo Pamplona Filho, Rodrigo Reis Mazzei e Rogério Sanches Cunha. Diagramação: Maitê Coelho ([email protected]) Capa: Ana Caquetti

F383

Ferreira, Olavo Augusto Vianna Alves Controle de constitucionalidade e seus efeitos / Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira. 3. ed. rev. e atual. – Salvador : Juspodivm, 2016. 314 p. Bibliografia. ISBN 978-85-442-0610-2. 1. Direito constitucional. 2. Controle de constitucionalidade. I. Ferreira, Olavo Augusto Vianna Alves. II. Título. CDD 341.202

Todos os direitos desta edição reservados à Edições JusPODIVM. É terminantemente proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio ou processo, sem a expressa autorização do autor e da Edições JusPODIVM. A violação dos direitos autorais caracteriza crime descrito na legislação em vigor, sem prejuízo das sanções civis cabíveis.

À memória de minha querida avó Neusa Brandão Quitete de Campos.

“Se quiseres conhecer a situação socioeconômica do país visite os porões de seus presídios”. Nelson Mandela

Prefácio

Em 1988, no derradeiro ato decorrente da passagem do regime de exceção para o essencialmente democrático, foi promulgada a Constituição Federal, que o saudoso deputado federal Ulisses Guimarães apontou como cidadã. Nela, pela primeira vez, os direitos sociais vieram disciplinados, de maneira geral, antes da estrutura específica do Estado. Sob o ângulo formal, buscou-se elucidar princípios e direitos da maior relevância. É redundância dizer que o Documento Básico da República a todos submete indistintamente. Assim ocorre relativamente aos Poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário –, às pessoas jurídicas e naturais. Nele estão enumerados, com envergadura maior, direitos e garantias a que correspondem obrigações estatais. A Carta Federal é analítica, dela constando normas materialmente constitucionais e outras que se fazem merecedoras desse enquadramento apenas porque nela estão inseridas. A dualidade não implica gradações diversas. Todas estão no mesmo patamar e assim tem de ser consideradas pelo ledor, pelo intérprete, por todos aqueles que a manuseiam, na busca, sempre e sempre, seja qual for a quadra vivenciada, da primazia da ordem jurídica. Em época de crise, devem prevalecer valores e princípios, sob pena de vingar o critério de plantão e ter-se insegurança incompatível com a vida gregária. Mas existe hiato muito grande, observadas a forma e a realidade. O problema é de dimensão ímpar, porque verdadeiramente cultural. O cenário do País é agravado pelo crescimento demográfico desenfreado nos últimos anos. Recordemo-nos do chavão da Copa do Mundo de 1970: 90 milhões de brasileiros em ação. Hoje somos cerca de 205 milhões. O aumento, em pouco mais de 45 anos, foi da ordem de 130%. Educação, saúde, habitação, transporte e mercado de trabalho

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não avançaram nesse diapasão. O sistema, então, não fecha. A consequência mais perversa é a falta de oportunidade dos cidadãos das classes menos favorecidas, surgindo delinquência de toda ordem. O Estado repressivo atua, sucedendo-se prisões. O sistema penitenciário é precário, ficando em segundo plano o direito dos custodiados de verem preservadas a integridade física e a moral. Um dia, há de ocorrer a soltura, voltando o cidadão ao convívio social. Chega embrutecido e revoltado, no que não teve respeitada a própria dignidade. Esse contexto, pinçado como exemplo – e muitos outros poderiam ser ressaltados –, revela, a mais não poder, a conveniência do livro “Da Inconstitucionalidade por Omissão ao Estado de Coisas Inconstitucionais”, fruto do Programa de Pós-graduação em Direito, desse celeiro de grandes valores que é a Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Sou testemunha da caminhada acadêmica e profissional de Carlos Alexandre de Azevedo Campos. Percebeu ele, desde cedo, que o aperfeiçoamento é infindável. O saber é e será sempre uma obra inacabada. Pobre, muito pobre de espírito é o homem que se sinta em patamar no qual não dependa mais de aportes no campo do conhecimento. Carlos Alexandre aceitou desafio ao escolher o tema. Debruçou-se sobre a matéria e, de forma organizada, oferece aos estudiosos do Direito panorama doutrinário e jurisprudencial da maior valia. Ganham aqueles que têm compromisso com dias melhores nesta sofrida República e que reclamam do Estado postura que sirva de exemplo, visando, acima de tudo, a almejada paz social, no que muito depende do respeito aos direitos fundamentais. Tenho a leitura, o estudo da obra, como necessária. Que cada qual faça a sua parte, como o fez Carlos Alexandre de Azevedo Campos, até bem pouco tempo assessor do Supremo, em meu Gabinete, no qual, de forma incansável, prestou insuplantáveis serviços. Marco Aurélio Mello Ministro do STF

Sumário

INTRODUÇÃO........................................................................................... 15 1. Uma história que continua................................................................. 15 2. Propósitos e premissas do livro......................................................... 16 3. Estrutura do livro................................................................................ 23 Capítulo I OMISSÃO INCONSTITUCIONAL: A VISÃO TRADICIONAL DA DOUTRINA BRASILEIRA.................. 25 1. A relevância da inconstitucionalidade por omissão....................... 25 2. A expansão mundial do controle de constitucionalidade da omissão normativa................................ 27 3. Conceito, espécies e pressupostos da omissão incons­titucional... 31 4. A concepção tradicional da doutrina brasileira.............................. 37 5. Os limites da evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal............................................................ 46 6. A necessidade de revisão da concepção tradicional....................... 53 Capítulo II A TUTELA DEFICIENTE DE DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO OMISSÃO INCONSTITUCIONAL............................................ 55 1. Vícios teóricos a serem revisados...................................................... 55 2. A questão é de atuação da norma constitucional, não de estrutura dos enunciados normativos.................................. 59 3. O problema é de efetividade de direitos fundamentais, não de eficácia jurídico-formal dos dispositivos constitucionais..... 65

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4. O escopo é a concretização da Constituição como um todo, não de preceitos constitucionais particulares.................................. 71 5. Consequências político-institucionais dramáticas.......................... 74 6. Um novo olhar: a tutela insuficiente de direitos fundamentais como omissão normativa inconstitucional...................................... 76 6.1. Direitos fundamentais em sua dimensão objetiva e deveres de proteção................................................... 77 6.2. Princípio da proporcionalidade e proibição da proteção insuficiente de direitos fundamentais................. 84 7. Um passo a mais: falhas estruturais como hipótese de omissão inconstitucional.................................... 91 Capítulo III O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL.................................. 95 1. Apresentando o estado de coisas inconstitucional.......................... 95 2. Uma visão geral da jurisprudência ativista da Corte Constitucional colombiana................................................ 99 2.1. O controle das práticas políticas e das ações dos Poderes Executivo e Legislativo..................... 101 2.1.1. O controle judicial das declarações de estado de exceção......................................................... 101 2.1.2. O controle de constitucionalidade da reeleição presidencial................................................... 103 2.2. A promoção dos direitos fundamentais, sociais e econômicos................................................................... 107 2.2.1. O caso dos devedores hipotecários................................. 109 2.2.2. O reconhecimento judicial dos direitos dos homossexuais........................................ 112 3. Evolução da jurisprudência da Corte Constitucional colombiana em torno do estado de coisas inconstitucional.......... 120 3.1. O caso dos docentes municipais............................................... 121 3.2. O direito de petição dos aposentados e a ineficiência administrativa................................................... 125 3.3. O caso do sistema carcerário colombiano............................... 128 3.4. O caso da não convocação de concurso público para notários........................................... 135 3.5. O caso dos defensores de direitos humanos............................ 137

SUMÁRIO

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3.6. A mora no pagamento das verbas de aposentadoria............. 139 3.7. O caso do deslocamento forçado.............................................. 142 4. Elementos descritivos de implicações normativas.......................... 153 Capítulo IV TEORIZANDO O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL: FUNDAMENTOS, PRESSUPOSTOS E AS SENTENÇAS ESTRUTURAIS ....................................................... 155 1. Há espaço para uma “doutrina do estado de coisas inconstitucional”?............................................................... 155 2. Fundamentos filosóficos e jurídicos do estado de coisas inconstitucional................................................. 157 3. Objeto principal: direitos sociais e econômicos e políticas públicas...................................................... 162 4. Os ciclos do estado de coisas inconstitucional na Corte Constitucional colombiana................................................ 163 5. O estado de coisas inconstitucional no Direito Comparado......... 168 6. Conceito e pressupostos do estado de coisas inconstitucional...... 177 7. As sentenças estruturais ..................................................................... 187 8. Os efeitos da decisão que declara o estado de coisas inconstitucional................................................... 204 9. Relevância do monitoramento........................................................... 208 10. Critérios de superação do estado de coisas inconstitucional......... 210 11. O “estado de coisas inconstitucional” no contexto político-democrático..................................................... 214 Capítulo V ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL, ATIVISMO JUDICIAL ESTRUTURAL E DIÁLOGOS INSTITUCIONAIS .......................................................... 217 1. Os termos do debate............................................................................ 217 2. O estado de coisas inconstitucional como ativismo judicial estrutural ..................................................... 219 3. As objeções de ordens democrática e institucional ........................ 226 3.1. As objeções de ordem democrática ......................................... 226 3.1.1. A fórmula thayeriana de deferência judicial................. 227 3.1.2. O valor fundamental do autogoverno popular............. 230

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3.1.3. Constitucionalismo popular v. supremacia judicial..... 233 3.2. As objeções de ordem institucional ......................................... 236 3.3. Os limites às objeções ................................................................ 239 4. A resposta dialógica............................................................................ 240 5. A legitimidade do “ativismo judicial estrutural dialógico”............ 244 5.1. Superando bloqueios políticos.................................................. 245 5.2. Superando bloqueios institucionais.......................................... 247 5.3. Aumentando a deliberação e a participação popular............. 249 5.4. Evitando a supremacia judicial................................................. 250 6. Uma construção teórica para o Brasil?............................................. 256 Capítulo VI UMA AGENDA PARA O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL RELATIVO AO SISTEMA CARCERÁRIO............................................. 257 1. O estado de coisas inconstitucional como possibilidade para o Brasil ...................................................... 257 2. O vergonhoso sistema carcerário brasileiro .................................... 264 3. A configuração do estado de coisas inconstitucional..................... 267 4. A intervenção possível do Supremo Tribunal Federal.................... 276 5. A ADPF nº 347/DF.............................................................................. 283 6. Críticas formuladas e respostas de legitimidade............................. 290 6.1. As objeções da ubiquidade e do uso difuso............................. 293 6.2. Os riscos de subjetivismo decisório......................................... 298 6.3. Ameaça à democracia?............................................................... 301 6.4. Violação à separação de poderes?............................................. 306 6.5. O perigo da inefetividade.......................................................... 311 7. Conclusão............................................................................................. 319 Referências bibliográficas.......................................................................... 323

Introdução

1. UMA HISTÓRIA QUE CONTINUA Em meu livro “Dimensões do Ativismo Judicial do STF”,1 fixei, entre outras, três premissas fundamentais que serviram de base teórica ao desenvolvimento de meu conceito e avaliação do ativismo judicial: diferentes fatores, de natureza política, social e jurídico-cultural, influenciam e podem justificar o comportamento ativista de juízes e cortes; o ativismo judicial pode manifestar-se por diferentes dimensões decisórias e comportamentais; o ativismo judicial não pode ser considerado aprioristicamente ilegítimo, pois isso depende dos diferentes fatores envolvidos e da dimensão decisória manifestada. Concluí o livro defendendo que apenas a dimensão antidialógica, na qual a corte afirma a “supremacia judicial” e se recusa a dialogar com os outros poderes, deve ser tida como manifestação judicial ilegítima em qualquer hipótese. No presente livro, continuo a contar essa história apresentando um exercício concreto de ativismo judicial, que se manifesta diante de insistentes comportamentos políticos omissivos e de grave quadro social de violação de direitos fundamentais, fundado na cláusula constitucional do Estado social de direito, que possui uma dimensão predominantemente estrutural e que se mostra legítimo por oportunizar o diálogo de juízes e cortes com os outros poderes e a sociedade: o “Estado de Coisas Inconstitucional” ou, simplesmente, daqui por diante, 1.

CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do ativismo judicial do STF. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

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ECI. Criado pela Corte Constitucional colombina, a figura “tem sido um dos aportes fundamentais do constitucionalismo colombiano à jurisprudência e à discussão internacional sobre a proteção dos direitos humanos”.2 A expectativa é a de este livro contribuir para que a ferramenta do ECI venha a ser útil para a jurisprudência e discussão sobre a proteção de direitos fundamentais aqui no Brasil. 2. PROPÓSITOS E PREMISSAS DO LIVRO Em palestra proferida no Estado de Goiás, o então presidente do STF Ricardo Lewandowski disse que, no século XXI, a missão do Poder Judiciário é “ajudar a pensar em políticas públicas para melhorar o país: Essa era uma ideia impensável algum tempo atrás, mas hoje alguns juízes participam da formulação dessas políticas, especialmente na proteção das minorias desprotegidas”.3 Propor a aplicação do ECI, como técnica de decisão voltada à tutela de direitos fundamentais, máxime os sociais, é defender a intervenção judicial no ciclo das políticas públicas. Este é o principal aspecto do ECI: uma corte, quando declara a vigência do ECI, afirma a si mesma a legitimidade para interferir na agenda política e nos processos de formulação, implementação e avaliação das políticas públicas, quando isso se mostrar indispensável para a superação de quadros de violação massiva e sistemática de direitos fundamentais. 4 Para assim intervir, a corte deve identificar uma situação especial e sistêmica de inércia estatal, conectando a paralisia política e administrativa à realidade contrária aos comandos constitucionais sobre direitos fundamentais. Significa dizer: a corte precisa de uma nova concepção de omissão inconstitucional, que alcance estágio particular de

2.

RODRÍGUEZ GARAVITO, César. ¿Cuándo cesa el estado de cosas inconstitucional del deslocamento? Más allá del desplazamiento, o como superar um estado de cosas inconstitucional. In: _____. (Coord.). Más allá del desplazamiento. Políticas, Derechos y Superación del desplazamiento forzado en Colombia. Bogotá: Universidad de los Andes, Facultad de Derecho, Ediciones Uniandes, 2009, p. 436. 3. Conjur, 30/10/2015: http://www.conjur.com.br/2015-out-30/elaborar-politicas-publicas-papel-judiciario-dizlewandowski. 4. ARIZA, Libardo José. The Economic and Social Rights of Prisoners and Constitutional Court Intervention in the Penitentiary System in Colombia. In: MALDONADO, Daniel Bonilla. Constitutionalism of the Global South. The Activist Tribunals of India, South Africa and Colombia. New York: Cambridge University Press, 2013, p. 129 e ss.

INTRODUÇÃO

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falhas estruturais e se manifeste não pura e simplesmente em função do descumprimento de enunciados constitucionais específicos, mas da falta de efetividade de direitos fundamentais e sociais. A omissão inconstitucional traduzir-se-ia como falta ou insuficiência de políticas públicas voltadas a concretizar esses direitos. Apresentar e teorizar o ECI é o propósito principal deste livro; revisitar a noção de omissão inconstitucional, além de premissa, é o primeiro objetivo da obra. A doutrina tradicional costuma incorrer em dois reducionismos ao tratar das omissões inconstitucionais: (1) vincula a omissão normativa inconstitucional, exclusivamente, ao descumprimento de ordens constitucionais expressas de legislar ou de regulamentar, não levando em consideração o nível de efetividade dos direitos fundamentais de modo independente da tipologia dos enunciados constitucionais correspondentes; (2) e foca, de forma estanque, na omissão do tipo legislativo ou na omissão do tipo administrativo, numa ou noutra, ignorando que a falta de atuação das normas constitucionais possa ser decorrente da falha de coordenação entre diferentes órgãos e entidades de todos os poderes estatais. Este livro defende a necessidade de revisão desses aportes tradicionais. É preciso ampliar o alcance da omissão inconstitucional em função de seus aspectos mais elementares – lançar novas luzes sobre a própria identificação do fenômeno. O primeiro passo é revisitar a visão tradicional acerca da configuração da omissão normativa inconstitucional, reavaliando os seus pressupostos.5 Usualmente, as omissões inconstitucionais são identificadas em razão de enunciados constitucionais específicos, tradicionalmente classificados como sendo de eficácia normativa limitada. São dispositivos que reivindicam, expressamente, a tarefa legislativa e regulamentar integradora – ordens constitucionais expressas e conclusivas, destinadas ao legislador ou ao agente da regulamentação. Todavia, o tema é bem mais rico do que o reducionismo semântico-estrutural oferece.

5.

As linhas gerais desse primeiro propósito foram pensadas em conjunto com o professor Daniel Sarmento. Foram por ele formuladas e fixadas as três primeiras premissas da revisão teórica da configuração da omissão inconstitucional, desenvolvidas no capítulo II, que foram, anteriormente, apresentadas em minha tese de doutorado e, com a sua concordância, manifestadas também neste livro. O professor Daniel Sarmento não possui responsabilidade quanto às citações doutrinárias correspondentes.

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Mais do que abordagens formalistas, focadas apenas em critérios textuais, semântico-estruturais, a preocupação com a atuação da Constituição deve “envolver também considerações substantivas e morais”.6 Com efeito, não é que a estrutura dos enunciados normativos constitucionais e sua heterogênea tipologia não tenham algum papel a cumprir para a identificação da omissão inconstitucional, mas esses elementos não podem ser os únicos nem mesmo os mais relevantes critérios. Deve-se dar atenção maior a critérios de ordem material, porque os direitos fundamentais, para deixarem de ser “direitos de papel”, necessitam de proteção e promoção estatal, independentemente de como forem configurados os enunciados constitucionais correspondentes, inclusive se, semanticamente, forem classificados como normas autoaplicáveis. A omissão estatal não viola, simplesmente, um enunciado normativo constitucional, mas impede a atuação concreta da norma constitucional correspondente e do direito fundamental veiculado. Isso, sem embargo algum, critérios puramente formais não permitem seja adequadamente alcançado. A doutrina tradicional, ao atrelar a omissão normativa inconstitucional apenas aos casos de descumprimento de enunciados específicos, de eficácia normativa limitada e que contêm ordens expressas de atuação do legislador ou do agente regulamentador, acaba prejudicando a compreensão adequada do fenômeno. Essa postura da doutrina: (i) possui vícios cognitivos e metodológicos – a atenção recai na estrutura dos enunciados normativos, em vez de focar-se na norma constitucional; (ii) peca pelo excesso de formalismo – na caracterização da omissão normativa inconstitucional, a dogmática tradicional prestigia a eficácia formal dos dispositivos constitucionais em detrimento da necessária efetividade dos direitos fundamentais; (iii) promove um alcance restrito de atuação da Carta da República – é míope à imperatividade de realizar o projeto constitucional como um todo;

6.

SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional. Teoria, História e Métodos de Trabalho. Belo Horizonte: Forum, 2012, p. 370.

INTRODUÇÃO

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(iv) acaba cimentando bases normativas equivocadas com consequências político-institucionais dramáticas – lança o Parlamento e o Supremo a uma relação meramente adversarial, do tipo tudo ou nada. Essas insuficiências da doutrina tradicional serão questionadas e revisadas no capítulo II. Negando a primazia da abordagem semântico-estrutural, busco atacar a visão tradicional da omissão inconstitucional em dois pontos essenciais: (i) primeiro, ao demonstrar o erro da afirmação comum de estarmos diante de fenômeno atrelado exclusivamente às chamadas normas constitucionais de eficácia limitada, defendo a possibilidade de ocorrência da omissão, inclusive, diante dos enunciados constitucionais considerados autoaplicáveis; (ii) segundo, ao negar o vínculo necessário entre o dever constitucional de legislar ou regulamentar, cujo inadimplemento é pressuposto necessário da omissão inconstitucional, e sua formulação expressa e inequívoca em um enunciado normativo constitucional específico, defendo decorrer essa obrigação, antes e acima de tudo, do dever objetivo do Estado de proteger e assegurar a efetividade dos direitos fundamentais, sobretudo, por meio da atividade legislativa e de formulação de políticas públicas, independentemente de estarem envolvidos enunciados constitucionais autoaplicáveis; neste caso, mesmo o cumprimento incompleto ou deficiente de enunciados tidos como programáticos pode ensejar a inconstitucionalidade por omissão. O dever constitucional de legislar ou de regulamentar, como pressuposto necessário da omissão normativa inconstitucional, passa a configurar-se como um dever de proteção suficiente dos direitos e liberdades fundamentais, incluídos os socioeconômicos, tutelável e exigível pela jurisdição constitucional, independentemente da estrutura do enunciado correspondente. A atuação judicial, ante a inércia estatal, não mais se limitaria a determinada espécie de preceito constitucional, mas se justificaria ante um quadro real, atual e objetivo de tutela estatal deficiente de direitos fundamentais e sociais. Isso incluiu, por certo, a interferência sobre políticas públicas concretizadoras de enunciados constitucionais programáticos.

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O segundo passo é combater a visão tradicional da inconstitucionalidade por omissão como sendo algo definido por exclusão: ou é omissão legislativa, ou é administrativa. Esta obra trabalha a ideia de a omissão inconstitucional poder decorrer da falha de coordenação entre o Legislativo e o Executivo, a implicar deficiências na consecução de políticas públicas. Muitas vezes, há lei e iniciativas administrativas para cumprimento dos comandos legais em favor da realização de direitos constitucionais, notadamente os sociais, porém o resultado é pífio, revelando-se a insuficiência na proteção estatal. A omissão não seria tanto por conta da falta de lei, mas da ausência de estrutura apta a tornar realidade os comandos legais. Tal situação, em muitos casos, mostra-se insistente, não demonstrando nem o Legislativo nem o Executivo capacidades institucionais e disposição política para revertê-la. A omissão, implicando proteção deficiente de direitos, caracteriza-se como um quadro permanente de falhas estruturais. O quadro negativo de violação massiva de direitos decorrente de falhas estruturais foi rotulado pela Corte Constitucional colombiana como ECI. Sem embargo, configurada uma realidade de massiva e sistemática violação de direitos fundamentais, decorrente da deficiência institucional e estrutural do Estado e de insuperáveis bloqueios políticos, a Corte vai além de afirmar uma “inconstitucionalidade por omissão” para assentar a vigência de um “estado de coisas inconstitucional” (ECI). Como eu disse, o ponto mais relevante deste livro é apresentar o instrumento teórico do ECI, que se revelou uma ferramenta decisória importantíssima da aludida Corte Constitucional, e do próprio constitucionalismo daquele país,7 no enfrentamento de omissões estatais, estruturais, que implicam quadros de violação massiva dos direitos fundamentais. Como desenvolvo nos capítulos III e IV, instrumentos como o ECI se mostram relevantes para o cumprimento das promessas transformativas das Cartas de direitos promulgadas, notadamente, em países marcados por passados autoritários e por grandes desigualdades sociais.8 Nesse contexto, o ECI tem se apresentado como inovação típica 7. 8.

GÓMEZ PINTO, Luis Ricardo. El Juez de las Políticas Públicas. Bogotá: Ibáñez, 2012, p. 25: “A história do estado de coisas inconstitucional relata o que tem sido parte da história da Colômbia”. Cf., por todos, VILHENA, Oscar et all (Ed.) Transformative constitutionalism: Comparing the Apex courts of Brazil, India and South Africa. Johannesburg: PULP, 2013.

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da contemporânea jurisdição constitucional de países do Sul Global, nos quais vem sendo desenvolvidas técnicas semelhantes de intervenção judicial “estrutural” e “com monitoramento”, voltadas a controlar políticas públicas e a alocação de recursos econômicos em favor dos direitos sociais. Apoiado nas decisões da Corte Constitucional e nos comentaristas colombianos, defino o ECI como a técnica de decisão por meio da qual cortes e juízes constitucionais, quando rigorosamente identificam um quadro de violação massiva e sistemática de direitos fundamentais decorrente de falhas estruturais do Estado, declaram a absoluta contradição entre os comandos normativos constitucionais e a realidade social, e expedem ordens estruturais dirigidas a instar um amplo conjunto de órgãos e autoridades a formularem e implementarem políticas públicas voltadas à superação dessa realidade inconstitucional (item 6 do capítulo IV). Há, assim, íntima conexão entre o ECI e as sentenças estruturais, desenvolvidas pioneiramente nos Estados Unidos e, recentemente, aprimoradas em países como Argentina e Índia para o combate a cenários extravagantes de violações de direitos fundamentais e sociais.9 Não obstante as virtudes dessas propostas, devo reconhecer que a ampliação do campo de incidência e de tutela judicial da omissão inconstitucional, até chegar ao reconhecimento do ECI, levanta inequívocas suspeitas de favorecimento ao ativismo judicial. Não se pode, nem se deve esconder isso. Para evitar disfunções institucionais decorrentes do risco de supremacia judicial, é necessário que cortes, no âmbito de sua intervenção estrutural, atuem sob um viés dialógico. A ideia é assegurar a proteção mais abrangente possível dos direitos fundamentais e sociais, mas sem unilateralismos decisórios. Desse modo, a proposta definitiva deste livro é aumentar a proteção dos direitos fundamentais e sociais sem deixar de defender o equilíbrio institucional para essa tarefa, próprio de um governo democrático e de poderes constitucionalmente separados. Tal como desenvolvo no capítulo V, o ativismo judicial estrutural, praticado com a declaração do ECI, apenas pode ser legítimo se for 9.

Cf. GARGARELLA, Roberto (Comp.) Por uma justicia dialógica. El Poder Judicial como promotor de la deliberación democrática. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2014; MALDONADO, Daniel Bonilla. Constitutionalism of the Global South. The Activist Tribunals of India, South Africa and Colombia. Op. cit.

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dialógico. A superação do ECI, pelo fato de este decorrer de falhas estruturais, somente é possível por meio de “remédios estruturais”, dirigidos a um número abrangente de atores políticos e buscando coordenar as ações dessas autoridades na tarefa de assegurar a proteção eficiente de direitos. Isso significa que as cortes nada podem fazer sozinhas, por conta e risco próprios. Sem embargo, esses remédios estruturais devem ser ordens flexíveis, que fixem objetivos a serem alcançados, erros a serem corrigidos e princípios a serem concretizados, mas sem excluir os espaços próprios de decisão política e técnica dos outros poderes sobre os meios a serem empregados, isto é, sobre o conteúdo das políticas públicas. Ademais, essas ordens devem ser implementadas seguidas de processos de monitoramento pelas cortes, nos quais deverá ocorrer, mediante audiências públicas, amplo debate, entre os atores políticos e sociais envolvidos, acerca da qualidade das políticas públicas formuladas e o sucesso de sua implementação. O monitoramento contínuo, nesses termos, ostenta virtudes tanto democrático-deliberativos quanto pragmáticas; favorece o debate inclusivo e oportuniza o alcance de bons resultados práticos. Pode até haver ativismo judicial de partida com a afirmação do ECI e a expedição de ordens flexíveis sobre políticas públicas, mas no trajeto e na chegada a intervenção judicial é sempre dialógica. Esse é o modelo definitivo de prática do ECI que, no capítulo VI, defendo seja introduzido no Brasil, tendo o grave problema do sistema carcerário como campo de teste. Sob a perspectiva metodológica, a pesquisa deste livro abre-se a uma nova empreitada: sem abandonar os importantes aportes de fontes tradicionais como os Estados Unidos, Alemanha e Itália, a abordagem teórica e prática passa a prestar atenção também nas experiências menos conhecidas dos países que compõem o Sul Global, mormente Colômbia, Índia e Argentina. Este livro se distancia do preconceito comum que vigora no uso do Direito Comparado no Brasil, considerada a atenção exclusiva e dogmática com as teorias e institutos originários dos países do Norte Global, vindo a prestigiar e levar a sério as inovações que surgem no ambiente do Sul Global. Como afirma Daniel Bonilla Maldonado, muitos são os motivos para a usual desimportância dos aportes vindos de países do Sul Global: a fraca tradição jurídica, o costume das doutrinas locais de apenas

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reproduzirem a produção jurídica de países do Norte Global, o histórico excesso de formalismo jurídico, a baixa qualidade dos centros acadêmicos e o estilo fechado e paroquial das comunidades acadêmicas do Norte Global.10 Ainda que nem sempre tenha sido um sucesso na prática, a relevância doutrinária do ECI na Colômbia é inquestionável11 e sua importação teórica, tal como desenvolvida neste livro, se apresenta como um experimento válido, até mesmo porque sua formulação rompeu com muitas das razões de preconceito, apresentadas por Daniel Bonilla: é inovador e criativo, afasta-se de premissas e práticas formalistas para servir a utilidades pragmáticas e fortalece a comunidade acadêmica local, orgulhosa de produzir uma ferramenta agora digna de exportação. Sem embargo, as práticas estruturais, como o ECI, realizadas pelas “cortes do Sul Global”, têm colocado essas entre as cortes mais criativas e preocupadas com a efetividade dos direitos fundamentais do mundo, o que, por si só, é um sinal bastante positivo. Ademais, há muito de similitude entre a ordem constitucional e jurídica e as condições políticas e sociais da Colômbia e do Brasil, o que sugere a possibilidade de sucesso do experimento. Claro, essa importação não pode ser irrefletida e essa foi uma preocupação. Considerados os pontos positivos e negativos, acredito que nossa prática judicial de tutela e de efetividade dos direitos fundamentais tem muito a ganhar com o contato e reprodução das práticas estruturais, como o ECI, desenvolvidas por nossos “vizinhos” do Sul Global. Este é o grande mote deste livro. 3. ESTRUTURA DO LIVRO O livro divide-se em seis capítulos: o capítulo I descreve a visão tradicional da doutrina brasileira sobre a omissão normativa inconstitucional, da evolução da jurisprudência do Supremo sobre o tema e destina-se a explicar o critério puramente semântico-estrutural de

10. MALDONADO, Daniel Bonilla. Introduction. Towards a Constitutionalism of the Global South. In: _____. (Ed.) Constitutionalism of the Global South. The Activist Tribunals of India, South Africa and Colombia. Op. cit., p. 5-11. 11. GÓMEZ PINTO, Luis Ricardo. El Juez de las Políticas Públicas. Op. cit., p. 27: O ECI “continua sendo, quinze anos depois de sua primeira declaração, a figura que maiores efeitos jurídicos e acadêmicos tem desencadeado; ainda que na prática tenha passado quase despercebido em toda a sua força, para, inclusive, restar relegado em alguns casos”.

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Estado de Coisas Inconstitucional – Carlos Alexandre de Azevedo Campos

identificação utilizado; o capítulo II ocupa-se em criticar a visão tradicional descrita, apontando equívocos e insuficiências e propondo a ampliação dos pressupostos de configuração da omissão inconstitucional; o capítulo III destina-se a descrever o desenvolvimento da doutrina do ECI pelas decisões da Corte Constitucional colombiana; o capítulo IV tem por objeto a proposta teórica do ECI, composta de seus fundamentos filosóficos e jurídicos, seus pressupostos, a conexão com as sentenças estruturais, os efeitos das decisões, a relevância dos processos de monitoramento; o capítulo V trata do enquadramento da declaração do ECI no conceito de ativismo judicial, da questão, em abstrato, da legitimidade democrática e institucional de seu exercício e da formulação, ao final, da ideia de ativismo judicial estrutural dialógico; o capítulo VI apresenta a aplicação do ECI no Brasil, relativo ao sistema carcerário brasileiro, o julgamento da ADPF nº 347/DF e as respostas que acho adequadas às objeções ao ECI, formuladas após o exame pelo STF da aludida ação. Por fim, conclusões.

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