Espaço social e lugar em Milton Hatoum e Juan José Saer

July 5, 2017 | Autor: Cristhiano Aguiar | Categoría: Juan José Saer, Milton Hatoum
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Descripción

COMUNICAÇÃO ORAL LETRAS NO ASFALTO 2013 Universidade Presbiteriana Mackenzie

Espaço social e lugar em Milton Hatoum e Juan José Saer

Cristhiano Aguiar Universidade Presbiteriana Mackenzie [email protected]

No seu conhecido livro A condição pós-moderna, David Harvey, citando teóricos como Marshall Berman, Daniel Bell e Frederic Jameson, afirma que a discussão sobre o espaço se tornou um dos principais problemas estéticos e sociais da segunda metade do século XX (p.187). Páginas adiante, no mesmo livro, afirma: “O modo como representamos o espaço e o tempo na teoria importa, visto afetar a maneira como nós e os outros interpretamos e depois agimos com relação ao mundo”. Os textos literários, desta forma, não apenas contêm inúmeras representações espaciais, como sempre contribuíram na construção de diversas geografias, tanto íntimas, quanto sociais. Interpretamos e narramos a nossa cultura através de espaços criados dentro do universo da palavra: o que seriam conceitos tais como “Amazônia”, “Nordeste” ou “São Paulo” sem a mediação das obras de escritores como Euclides da Cunha, Raul Bopp, Graciliano Ramos, ou Mario de Andrade? Deste modo, pensar o contemporâneo implica em refletir a respeito de toda uma malha de discursos produtores de espacialidades. O objetivo desta pesquisa em andamento, sob a orientação da professora Helena Bonito Pereira, consiste em estudar a categoria narrativa do espaço na ficção contemporânea brasileira e hispano-americana, tomando como objetos de estudo o romance Cinzas do Norte, do brasileiro Milton Hatoum, e o romance Ninguém Nada Nunca, escrito pelo argentino Juan José Saer. Cabe, neste ponto, tornar o debate um pouco mais específico. Comecemos por Cinzas do Norte, de Milton Hatoum. O espaço narrativo nos parece fundamental para o projeto desse romance, que consiste em contar a história da modernização conservadora e predatória

promovida pela ditadura militar, tendo a Manaus dos anos 60-80 como foco. As alterações no espaço – na natureza e na cidade – são denunciadas e debatidas do início ao fim do livro. Em consequência, o espaço também é elemento importante usado na desconstrução, empreendida pelo livro, da ideologia do progresso e de qualquer identidade fixa a respeito do “ser amazônico”. Como exemplo de uma abordagem típica no tocante ao espaço em Cinzas do Norte, gostaria de ler a cena das páginas 143-144: “Atrás do Palácio do Governo uma mancha escura se movia lentamente nas margens do rio. Urubus, dezenas, bicavam dejetos deixados pela vazante. Um cacho de asas abriu um clarão, e no meio apareceram homens e crianças maltrapilhos. Mundo falou ‘Nossa cidade...’. Subimos pelas ruas dos Educandos; na avenida Beira Rio vimos, lá embaixo, o vazio perto do porto da Escadaria, antes ocupado por um aglomerado de palafitas. ‘Sabes onde eles estão?’, perguntou Mundo. ‘Eles quem?’. ‘Os moradores da beira do rio. Foram jogados no outro lado da cidade. A área foi toda desmatada, construíram umas casas... Sobrou uma seringueira.” No caso de Ninguém nada nunca, do argentino Juan José Saer, por outro lado, o espaço adquire uma outra dimensão, quase oposta a de Milton Hatoum. No romance deste que é um dos principais narradores argentinos contemporâneos, encontramos uma narrativa experimental que suspende ao mínimo os conflitos entre personagens e o desenvolvimento de uma “história”, em função da ênfase na construção de cenas predominantemente descritivas, nas quais o foco é justamente a representação poética do espaço. Assim como no romance de Hatoum, o pano de fundo político do romance de Saer também é um regime de exceção, no caso, a ditadura argentina. Durante os anos 70, em um intenso verão nos pampas argentinos, cavalos são misteriosamente mortos na província de Santa Fé. Este mistério, que dá ares de trama policial ao romance, nunca é resolvido, pois o foco da narração consiste justamente na investigação metafísica do espaço que envolve todos os personagens. O ritmo da narração é extremamente lento. O narrador escrutina com todos os detalhes as cenas apresentadas, que são “congeladas” pela narração: um cavalo respirando no quintal, ou uma bola que é lançada ao ar, por exemplo. “A esfera multicoloridade está no ar, imóvel, suspensa contra o céu azul, tendo alcançado o ponto máximo, tensa, no extremo, contra a imensa cúpula azul, vazia, e a cabeça do Gato,

caída um pouco para trás, que acompanhou da janela o movimento vertical, está bem fixa, inerte, os olhos entreabertos pelo esforço, a boca aberta, os cotovelos apoiados no umbral da janela e os antebraços pendurados para fora, as mãos como mortas, com os dedos encolhidos e separados, pendentes. A esfera multicolorida está no ar, imóvel, suspensa contra o céu azul. No ar. Imóvel. Suspensa. Contra o céu azul. Das cintilações que rodopiam do disco solar, e que obrigam a baixar os olhos, de tal modo que a eles resta adivinhar, mais do que ver, essa zona de incandescência, despreende-se uma espécie de poeira esbranquiçada, ou uma luz poeirenta, finíssima, flutuante, que vai se disseminando, lenta, pelo ar e o céu”

Creio que este trecho é um bom exemplo daquilo que pode ser encontrado no romance do escritor argentino. A partir da descrição de um sábado ensolarado a beira de um rio na região de Santa Fé, Saer fragmenta o espaço e espacializa a própria temporalidade da cena a fim de tornar irreconhecível uma paisagem tipicamente turística. Não se trata mais de um Lugar, nem de um Não lugar nos termos de Marc Augé: o espaço resultante é um locus de puro estranhamento, porém cheio de densidade simbólica.

Qual o ponto de convergência entre duas propostas aparentemente tão díspares?

PONTO DE CONVERGÊNCIA

Sabemos que as literaturas na América do Sul desempenharam um importante papel de fixar uma ideia de “nacional”. O espaço foi uma categoria fundamental neste sentido, seja para, como diria Antonio Candido em “Literatura e subdesenvolvimento” (1979), exaltar a riqueza natural dos países em que se situam, ou então para denunciar o nosso atraso social. Colocando o espaço como elemento central nos seus romances, Hatoum e Saer o utilizam como ponto de partida de suas investigações poéticas, existenciais e políticas, atacando desta maneira os discursos nacionalistas e as ideologias identitárias que permeiam as noções de “brasilidade”, “argentinidade”, por exemplo. E é interessante perceber o quanto realizam isto trazendo para o centro do debate da ficção contemporânea de seus países espaços sociais considerados à margem – o norte amazônico e a região argentina de Santa Fé.

CONCLUSÃO

Duas modalidades de espaço se delineam na obra de Hatoum e de Saer. No caso do escritor amazonense, teremos uma ênfase, em toda a sua obra, na construção daquilo que, a partir de Henri Lefebvre e Edward Soja, chamaremos de Espaço social. Como já foi destacado, a obra de Hatoum pode ser lida como um coerente projeto ficcional que procurará, a cada romance, refletir a respeito da formação de uma espacialidade formada por tensões sociais e econômicas. O debruçar-se sobre os processos formadores do nosso espaço social é uma tônica forte da nossa prosa ficcional, uma tradição que conecta a obra de Hatoum a certas preocupações do Romance de 30, na sua vertente muitas vezes chamada de “Regionalista”. Se, contudo, a obra de Hatoum é “regionalista”, será uma questão que abordaremos com cautela. Por outro lado, encontraremos na obra de Juan José Saer uma tentativa de “desproduzir” o espaço social. É preciso, porém, cuidado: nesta “desprodução” não está uma forma “alienada/alienante” de representação. Pelo contrário. Assim como a obra de Hatoum não se reduz ao “nacional” ou ao “social”, apontando para diferentes questões, inclusive no tocante ao tema da mímesis, a desprodução do espaço social em Saer nunca deixará de levar em conta o contexto social e político da época em que cada uma das obras do escritor é escrita. Mesmo em seu período de experimentação mais radical, formado pelos livros La Mayor, El lemonero real e Nadie nada nunca, momento de sua produção que nos interessará mais, temos uma complexa imbricação entre forma, política e sociedade. No conjunto de obras destacado encontramos, e Nadie Nada Nunca nos parece o exemplo no qual isto foi levado até o extremo, um Espaço em permanente fragmentação analítica. Interessa ao narrador criado por Saer investigar de maneira obcecada de que maneira as coisas do mundo, os númenos, como diria Kant, se transformam em fenômenos na consciência dos personagens do romance. Deste modo, o tempo no romance é espacializado, os movimentos são decompostos e a própria estrutura empírica do meio circundante aos personagens é fragmentada neste processo analítico. “Narrar a percepção” – diz Beatriz Sarlo (2007, p.281) a respeito da literatura de Saer. Desta forma, temos dois projetos ficcionais bastante diferentes, mas que se unem na primazia que conferem ao espaço em suas narrativas. Estes dois projetos ficcionais tendem a representações distintas do espaço: um espaço que tende à representação da percepção

individual, complementado por um espaço que comenta de maneira mais direta estruturas e processos sociais.

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