Espaço e Vigilância: Reflexões a partir da Geografia Nova - III Simpósio Internacional LAVITS

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ISSN 2175-9596

ESPAÇO E VIGILÂNCIA: REFLEXÕES A PARTIR DA GEOGRAFIA NOVA Space and surveillance: insights from the renewed geography Lucas Melgaço a (a) Vrije

Universiteit Brussel , Bruxelas - Bélgica, e-mail: [email protected].

Resumo Apesar de vigilância ser mais comumente associada ao mundo digital, virtual e de certa forma “imaterial” é importante não se perder de vista que ela é uma prática marcadamente espacial. As câmeras de vigilância, por exemplo, vigiam não só pessoas mas sobretudo lugares, espaços. Locomover-se no espaço e, principalmente, cruzar fronteiras são práticas profundamente controladas. O mundo conectado em rede é um mundo vigiado, ou ao menos potencialmente vigiado. Além disso, a visibilidade em espaços públicos aparece quase como uma imposição. Agir no espaço é gerar informação, é deixar vestígios. Quando mais densamente informatizados os lugares, mais rastros digitais eles acumulam. Este artigo irá promover uma discussão entre espaço e vigilância tomando como referência a “geografia nova” proposta pelo geógrafo Milton Santos. O texto irá explorar como alguns dos conceitos propostos pelo autor podem auxiliar no entendimento da vigilância no atual período técnico-científico e informacional. O artigo se encerrará com uma discussão sobre alguns avanços informacionais e desdobramentos tecnológicos surgidos nos últimos 15 anos desde o falecimento de Santos, como o surgimento das redes sociais, dos smartphones, da internet das coisas, da realidade aumentada, da geolocalização, dos smart-grids, dos drones, do big-data e das chamadas smart-cities. Palavras-chave: espaço, vigilância, memória espacial, Milton Santos, meio técnico-científico e informacional.

Abstract Despite surveillance being more commonly associated to the digital, virtual and in a certain way “immaterial” world, it is important not to forget that surveillance is a genuine spatial practice. Surveillance cameras, for instance, monitor not only people but above all places, spaces. Getting around in space and especially crossing borders are deeply controlled practices. The network world is a surveilled world, or at least potentially surveilled. In addition to that, being 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios. 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil, p. 328341. ISSN 2175-9596

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anonymous in public places has become nearly impossible. Acting in public spaces creates information, leaves traces. The more densely digitized the place, the more traces gathered. This article will raise a discussion between space and surveillance through the proposal of a “renewed geography” suggested by Milton Santos. The text will explore how some of the concepts created by the author can help us understand the current technical-scientific and informational period. The article will conclude with an analysis of some digital and technological developments that have emerged in the last 15 years since Santos’s death. Among these developments is the appearance of: social networking sites, smartphones, the internet of things, augmented reality, geolocation, smart-grids, drones, big-data and the so-called smartcities. Keywords: space, surveillance, spatial memory, Milton Santos, technical-scientific and informational milieu

INTRODUÇÃO Se tomarmos como referência a definição de vigilância proposta pelo sociólogo David Lyon (2001, p. 2), ou seja, “qualquer forma de coleta ou processamento de dados pessoais, identificáveis ou não, com o intuito de influenciar ou gerir aqueles cujos dados foram coletados”, veremos que a origem da vigilância remete a períodos muito anteriores à atual sociedade da informação. A história da humanidade está repleta de ocasiões em que dados sobre populações foram sistematicamente coletados e organizados com o objetivo de se exercer poder sobre grupos. Tanto a história da burocracia quanto a história da cartografia podem ser de certa maneira entendidas como parte da história da vigilância. As diversas metrópoles europeias, por exemplo, monitoraram a vida das suas colônias através da implantação de documentos de identificação, censos e mapas. Posteriormente, mas num estágio ainda anterior ao atual, tecnologias como os gravadores de áudio e as câmeras fotográficas analógicas, e mais tarde as câmeras de vídeo, facilitaram a sistematização do ato de espionagem. No caso brasileiro tais práticas estavam bastante presentes durante os anos da ditadura militar (Pimenta & Melgaço, 2014). Apesar da vigilância ser uma prática antiga, é somente nas últimas três décadas que se passou a falar em termos de uma “sociedade da vigilância”. Autores como Gary Marx (1985), Oscar Gandy (1989) e David Lyon (1994) destacam como, na atual sociedade da informação, a vigilância se transforma de algo ocasional a uma condição permanente. As tecnologias de 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil

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vigilância se tornam cada vez mais presentes no cotidiano dos lugares. Elas passam a fazer parte da busca por segurança, na organização das empresas e em diversas tarefas de administração pública. Dentre as inúmeras tecnologias voltadas à vigilância ou passíveis de vigilância destacam-se o surgimento das câmeras de CFTV (Circuitos Fechados de Televisão) nos anos oitenta e a difusão da internet nos anos noventa. A interceptação de correspondências, algo existente muito antes da internet, passa a ser incrivelmente facilitada com o surgimento dos correios eletrônicos. A informatização do cotidiano faz com que a vigilância apareça hoje quase como uma imposição. Em um dia qualquer uma pessoa comum gera, desde o momento em que se levanta ao momento que retorna à cama, uma quantidade considerável de dados rastreáveis. Dentre os inúmeros exemplos de atividades que podem gerar vestígios digitais podemos citar o uso: do computador para navegar na internet ou consultar e-mails, do telefone celular, de cartões de débito ou crédito, de instrumentos de localização por satélites, de bilhetes de transporte eletrônicos, entre tantas outras. Uma simples caminhada por espaços públicos pode ser capturada em imagens de várias câmeras digitais diferentes. Sair de casa se tornou sinônimo de ser monitorado. Por outro lado, como veremos posteriormente, ficar em casa já não é mais necessariamente garantia de privacidade. A sociedade da vigilância surge em consonância com a sociedade da informação. A segunda é na verdade a condição para a primeira. Não só os espaços se tornaram vigiados como se tornaram eles mesmos de certa forma digitais. Há uma crescente imbricação entre o virtual e o material no período atual. Por um lado o espaço é “capturado” e “traduzido” em informação digital. Por outro lado, a informação digital passa a estar cada vez mais presente no espaço, como uma espécie de camada adicional. Um elevador, por exemplo, é hoje mais do que um conjunto de pesos, polias, cordas e roldanas. Ele é também um objeto informacional formado por um conjunto de computadores e sensores. Elevadores inteligentes são capazes de coletar dados os mais diversos que incluem a identidade dos passageiros e os andares acessados. Ademais, esses dados podem ser transmitidos pela internet e armazenados em bancos de dados. O objetivo central deste texto é o de levantar uma discussão entre espaço e vigilância. Para isso ele foi dividido em duas partes. A primeira irá discutir tal relação a partir de elementos da matriz teórica proposta pelo geógrafo brasileiro Milton Santos. A segunda parte irá analisar algumas

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inovações tecnológicas e eventos surgidos após o falecimento do autor em junho de 2001. Buscaremos apontar como o espaço tem se transformado nesses últimos quinze anos em relação a sua informatização e à vigilância e discutiremos a validade da teoria de Santos para entender isso que ele chamou de “aceleração contemporânea” (Santos, 1993).

VIGILÂNCIA E O MEIO TÉCNICO-CIENTÍFICO E INFORMACIONAL A teoria de Milton Santos revolucionou a forma de se fazer geografia e de se pensar o espaço geográfico no Brasil. Em uma obra vasta o autor propôs conceitos que se associam de forma coerente e complementar, criando uma proposta de método ao mesmo tempo rigorosa e poderosa. O termo “geografia nova” presente no título deste artigo foi inspirado na obra “Por uma geografia nova” (Santos, 1978), uma provocação de Santos à geografia quantitativa e computadorizada, e de forte influência norte-americana, que à época foi apresentada como sendo uma “new geography”. Publicado a mais de 30 anos, o livro faz um resgate do que existia até então em termos de escolas geográficas e propõe algo novo, uma proposta diferente de uma geografia renovada. Esse livro, e aquela década em geral, marcaram o início de um período de renovação da geografia brasileira, mudança espacialmente em relação ao seu método. Até sua morte em 2001, Milton Santos trabalhou na concepção de uma série de conceitos capazes de lidar com o espaço como totalidade e como complexidade. Dentre as suas diversas proposições está que o objeto de estudo da geografia é o espaço geográfico, definido pelo autor como “um conjunto indissociável de objetos e ações” (Santos, 1996a). Espaço para o autor é mais do que um simples palco para as ações humanas. Espaço e sociedade seriam, portanto, um híbrido. A teoria de Santos inclui outras formulações importantes, como a de que: o espaço geográfico pode ser entendido como sinônimo de território usado (Santos et al., 2000c), conceito este que chama a atenção para o caráter complexo do espaço e para a noção de totalidade; o lugar é o espaço do acontecer solidário, e é no lugar que se dão as contrarracionalidades (Santos, 1996a, 2000a); o espaço geográfico pode ser interpretado através de pares dialéticos como psicoesfera e tecnoesfera, horizontalidades e verticalidades, fixos e fluxos (ibidem); a geografia é a filosofia das técnicas (idem, 2002); e o espaço geográfico pode ser periodizado a partir dos diferentes meios técnicos, do natural ao atual meio técnico-científico e informacional (idem, 1996a, 2000a). 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil

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Milton Santos deixou um legado: sua teoria tem sido utilizada em estudos que envolvem temas, contextos e escalas as mais diversas, não só na geografia mas nas ciências sociais como um todo. Sua influência no contexto mundial só não é maior pelo simples fato de a maior parte da sua obra ainda não ter sido traduzida para o inglês, tarefa na qual temos nos engajado ultimamente (Melgaço, 2013). Apesar de Milton Santos nunca ter escrito nada diretamente ligado às discussões sobre vigilância ou controle, e poucas vezes ter tocado em assuntos como segurança e violência, sua teoria traz uma série de reflexões teóricas que podem servir de base para a análise desses temas, como no que diz respeito às relações entre espaço e informação. Para Santos, é justamente a informação que dá as bases técnicas para o atual período. É através dos diferentes usos da informação, por exemplo, que a globalização se dá como fábula, perversidade e possibilidade (Santos, 2000a). Para Milton Santos (1996a), o momento atual é o estágio mais avançado de uma periodização esquemática da história da humanidade em três grandes momentos técnicos: o natural, o técnico, e técnico-científico e informacional. Durante o período natural as relações entre homem e natureza se davam através de técnicas muito simples. Havia poucos objetos técnicos à disposição, tais como a foice e a enxada, ferramentas que funcionavam como uma espécie de extensão do corpo humano. Durante esse período era ainda a natureza a principal determinante das relações sociais. Com o desenvolvimento de máquinas complexas, o período natural foi se transformando em período técnico. Objetos técnicos começaram a se libertar do corpo humano e a funcionar de maneira quase independente. A crescente cientifização e informatização dos objetos técnicos e dos sistemas de engenharia levaram posteriormente ao surgimento do meio técnico-científico e informacional. Para Santos (1996a), esse novo período aparece após a Segunda Guerra Mundial, mas é a partir dos anos 1970 que ele se estabelece de forma efetiva globalmente. Houve uma consolidação das já existentes tecnologias de comunicação como o telefone a e televisão e o revolucionário aparecimento da internet. A informação, nas suas diversas formas, passa a ser o grande motor social. A consolidação do meio técnico-científico e informacional coincide, portanto, com o surgimento da chamada sociedade da vigilância. Santos sugere uma lista de conceitos para descrever o meio técnico-científico e informacional, alguns dos quais serão detalhados a seguir: unicidade técnica, alargamento dos contextos, convergência dos momentos, cognoscibilidade do planeta e aceleração contemporânea. Tais

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conceitos nos ajudam a entender como a informação passa a ser fator fundamental para o entendimento do tempo presente, sobretudo em um momento em que as redes e os lugares travam cotidianamente um embate dialético. Diferente do que existia em outros períodos técnicos, quando os sistemas tinham extensão apenas regional, há hoje um sistema técnico informacional que é praticamente o mesmo para todos os diferentes países do mundo. O símbolo atual mais importante dessa unicidade técnica é certamente a internet. Um e-mail enviado do Brasil pode facilmente ser lido por qualquer computador na França ou Japão, um vídeo produzido China pode ser visualizado em qualquer computador dos Estados Unidos, já que há uma unicidade de códigos e parâmetros. Quando se pensa em vigilância, há inúmeros exemplos de como a unicidade técnica tem facilitado o ato de monitorar pessoas. Como exemplo, o sistema global de posicionamento por satélites (GPS) é utilizado para rastrear a posição e os deslocamentos de objetos de forma semelhante em qualquer canto do planeta. Além disso, o espraiamento mundial da internet permite uma inédita padronização não somente de formas de comunicação, mas também de vigilância. Usuários de redes sociais como o Facebook, por exemplo, têm seus perfis monitorados estejam ele onde estiverem. Além disso, as marcas e tecnologias de vigilância por câmeras são praticamente as mesmas nos diferentes continentes. Há hoje um processo de globalização das tecnologias de vigilância como bem apontaram Murakami Wood e Webster (2009). A unicidade técnica facilita a troca de dados digitais e a integração de tecnologias diversas. Sobre isso Santos diz que: Em nossa época, o que é representativo do sistema de técnicas atual é a chegada da técnica da informação, por meio da cibernética, da informática, da eletrônica. Ela vai permitir duas grandes coisas: a primeira é que as diversas técnicas existentes passam a se comunicar entre elas. A técnica da informação assegura esse comércio, que antes não era possível. Por outro lado, ela tem um papel determinante sobre o uso do tempo, permitindo, em todos os lugares, a convergência dos momentos, assegurando a simultaneidade das ações e, por conseguinte, acelerando o processo histórico. (Santos, 2000a, p. 25)

Santos aponta que a unicidade técnica cria as condições necessárias para o surgimento de uma convergência dos momentos que, segundo ele (Santos 2000a, p. 27) “não é apenas o resultado de que, nos mais diversos lugares, a hora do relógio é a mesma. Não é somente isso. Se a hora é a mesma, convergem, também, os momentos vividos.” Um exemplo claro de convergência dos 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil

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momentos é o uso de video streaming utilizados por ativistas, como aqueles do Coletivo Mídia Ninja, para cobrir manifestações em tempo real. Através dessas tecnologias, pessoas em localizações diferentes no espaço podem compartilhar momentos e experiências de forma instantânea. A união de unicidade técnica e convergência dos momentos permitiu o surgimento do que Santos (1996a) chamou de alargamento dos contextos. O conceito faz referencia à capacidade atual de se acessar e interferir em diferentes lugares a partir de um único lugar. Se pensarmos nos casos do isolamento geográfico de denunciadores como Edward Snowden (exilado na Rússia), Julian Assange (na embaixada equatoriana em Londres) e Chelsea Manning (na prisão militar de Leavenworth, no Kansas, E.U.A.) veremos que hoje, mesmo apesar do confinamento a que estão submetidos, suas ações e declarações continuam tendo repercussão global. Chelsea Manning, por exemplo, mesmo estando preso por ter revelado segredos militares estadunidenses, continua agindo globalmente ao ditar por telefone as mensagens a serem publicadas em sua conta no Twitter. O significado do conceito de alargamento dos contextos se assemelha ao de convergência dos momentos, com a diferença que o primeiro enfatiza a importância da comunicação em rede e o segundo a ideia de instantaneidade. Essas mudanças técnicas supracitadas permitiram a existência do que Santos chamou de cognoscibilidade do planeta, ou seja, à possibilidade dada pelas redes e sistemas técnicos atuais de se conhecer a totalidade do planeta. Notícias como a descoberta de tribos isoladas na Amazônia e desconhecidas do resto da humanidade se tornarão cada vez mais raras, já que o mundo, como destacou Santos (2000a, p. 21) se tornou uma realidade empírica A ideia de cognoscibilidade do planeta também pode ser aplicada à quase impossibilidade de se estar “invisível” nos espaços públicos. Com tantos sistemas de vigilância em jogo, de câmeras de vigilância a celulares, boa parte do que se passa nos espaços públicos se torna de algum modo informatizada, registrada e passível de investigação. Cada vez menos movimentos passam desapercebidos. Vários exemplos recentes poderiam ser citados aqui, como no processo judicial envolvendo o ex-goleiro Bruno Fernandes de Souza acusado de ter assassinado a estudante Eliza Samudio. Apesar do corpo dela nunca ter sido encontrado, diversos rastros digitais deixados pelo ex-goleiro foram suficientes para incriminá-lo. Segundo a promotoria, provas como as ligações telefônicas entre os suspeitos do crime e entre Bruno e a vítima e o registro de uma infração de

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trânsito promovida pelo veículo Range Rover pertencente ao ex-jogador foram fundamentais para comprovar envolvimento dele no caso. Captadas por sensores diferentes, as ações do ex-goleiro deixaram rastros digitais no espaço. O espaço adquire assim uma espécie de memória digital, uma memória espacial. Além da unicidade técnica, convergência dos momentos, alargamento dos conceitos e cognoscibilidade do planeta, o momento presente é também marcado pelo que Santos chamou de aceleração contemporânea. No atual período a ideia de duração dá lugar à de sucessão. Há uma aceleração contemporânea em que as inovações aparecem cada vez mais rapidamente levando a uma banalização e também a um rápido perecimento dos inventos (Santos, 1993). O intervalo entre a invenção de uma nova tecnologia e a sua difusão tem se tornado cada vez mais curto. Como ilustração, a disseminação da internet foi muitas vezes mais rápida do que a da televisão, que por sua vez foi mais rápida que aquela do rádio. A mesma aceleração pode ser notada com a rápida difusão das tecnologias de vigilância. A todo momento novos inventos são apresentados ao público. Câmeras cada vez mais potentes e menores, programas de identificação facial e de comportamentos e uma série de outras tecnologias nos dão a impressão de que os limites entre ficção científica e realidade têm se tornado cada vez mais tênues. O espaço e o cotidiano nunca foram tão informatizados e vigiados, e essa tendência só tende a aumentar.

ESPAÇO E VIGILÂNCIA NA ÚLTIMA DÉCADA E MEIA Desde a morte de Santos, em junho de 2001, ocorreram vários eventos e transformações tecnológicas importantes, em outras palavras, a aceleração contemporânea continuou em marcha. Logo em setembro do mesmo ano, o mundo conheceu o ataque às torres gêmeas de Nova Iorque, um evento que alterou significativamente a forma como segurança e vigilância são promovidas em todo o mundo. Surgiram também as redes sociais como o Facebook, o já aposentado Orkut, o Twitter e o Youtube. Wi-fi passa a ser uma palavra do dicionário português. O dinheiro se torna ainda mais digital, com os talões de cheque sendo substituídos por cartões eletrônicos e máquinas de cobrança móveis como Cielo e Redecard. Os celulares se transformaram em smartphones, fazendo com que a internet não se limitasse mais a um computador pessoal, mas passasse a ocupar as ruas. A expressão “conectar-se à internet” passa a fazer menos sentido pois há hoje a possibilidade de se estar permanentemente conectado. Surge a internet das coisas em que objetos 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil

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antes apenas analógicos se tornam digitais e são capazes de gerar e transmitir mais e mais dados em linha. As tecnologias de localização por GPS se banalizam. Hoje qualquer carro ou celular já saem de fábrica com tal tecnologia embutida. A infinidade de dados que podem ser gerados, coletados e cruzados justifica o uso de novas expressões como big data. Surgem também novas metáforas como cidade 2.0 e smartcities. Junto com essas novidades tecnológicas despontam novas formas de monitoramento. Ao mesmo tempo que o Estado reforça seu papel de vigilante (veja por exemplo o caso da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos revelado por Edward Snowden), outras formas laterais e de contravigilância emergem. Os cidadãos conhecem novas possibilidades de ação até então impossíveis antes dessas inovações dos últimos anos. Novos formas de solidariedades e de resistências surgem nos lugares. Com a difusão das redes sociais, da internet e dos celulares a convergência dos momentos e o alargamento dos contextos foram potencializadas se comparadas ao momento sobre o qual escreveu Santos. Hoje não há mais um intervalo obrigatório entre a ocorrência do fato e a produção da notícia. No caso dos protestos de junho de 2013, por exemplo, fato e notícia ocorreram quase que simultaneamente. Através de seus celulares ligados a serviços de web streaming, ativistas puderam transmitir em tempo real o que se passava nas ruas. Essa instantaneidade faz inclusive com que a notícia seja capaz de influenciar o próprio evento, tudo em tempo real. Um vídeo ou um tweet publicado durante uma manifestação pode mudar os próprios rumos do protesto. Além disso, começam a se popularizar aplicativos como Meerkat e Periscope que permitem que vídeos gravados por celulares sejam transmitidos ao vivo pela internet. Hoje, com o surgimento de tais aplicativos, não só ativistas com conhecimento de informática mas qualquer indivíduo em posse de um celular passa a ser um repórter em potencial. A instantaneidade atinge um grau extremo. De certa forma, as cidades de hoje se transformaram em relação às cidades que Milton Santos vivenciou. O urbano nunca foi tão digital e informacional. Nunca fomos tão conectados e tal conectividade, mesmo que ainda desigual, somente tende a crescer. Nos próximos anos a banalização de tecnologias como os drones e os Google glasses irá gerar espaços ainda mais conectados. Essa multiplicidade de sensores potencializam a memória espacial digital. Nos dias de hoje uma ação, desde que captada por sensores e transformada em códigos digitais, pode ficar 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil

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eternamente registrada. Como bem apontou Mayer-Schönberger (2009), há uma quase impossibilidade de esquecimento na atual era da informação. Até mesmo o lar, o exemplo máximo de lugar privado já não é mais garantia de privacidade. O que fazemos dentro de casa através do uso de computadores e celulares ligados à internet gera rastros passíveis de monitoramento. O que assistimos em televisões “inteligentes” ou em serviços como Netflix é registrado e monitorado. Nosso gostos privados já não são mais tão privados. Mais recentemente, a criação de aparelhos de medição precisa do gasto elétrico de residências, os chamados smart-grids, permitem a revelação de informações privadas como quais aparelhos elétricos estão sendo utilizados, suas marcas, ao extremo de se poder saber até mesmo se uma família está assistindo a um DVD e qual filme está sendo projetado na tela. Um ano antes de sua morte Milton Santos publicou o texto “Há mesmo um espaço virtual” (Santos, 2000) em que ele advoga que a expressão espaço virtual deve ser entendida apenas como metáfora. Para o autor, a ideia de espaço supõe trabalho e o espaço virtual não é em si mesmo trabalho, apesar de poder ser sua condição. No momento em que Santos escreveu tal texto a separação entre o virtual e o material era mais clara do que no momento atual. Sentado na frente de um computador podíamos adentrar uma realidade digital, de certa forma imaterial. Hoje, porém, como já apontado, material e virtual têm se fundido de forma cada vez mais híbrida. Fala se inclusive em “realidade aumentada” para caracterizar essa fusão. Os objetos estão cada vez mais informatizados e conectados. A internet passa a se fundir com a materialidade do espaço. Se não há um espaço virtual, há certamente um espaço “virtualizado”, ou ao menos “informatizado”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Com a crescente informatização cotidiana, a relação entre espaço e vigilância tem se tornado cada vez mais intrínseca, e isso traz implicações sociais e políticas. Há certamente dois movimentos ao mesmo tempo contraditórios e complementares que decorrem desse processo. A crescente informatização tem sido usada por agentes hegemônicos para reforçar o caráter vertical e totalitário da informação. Resistir à vigilância dos Estados e das empresas tem se tornado tarefa cada vez mais difícil. Por outro lado, a informatização junto com a crescente conectividade do mundo têm permitido que atores antes hegemonizados tomem a cena e reajam através de contrarracionalidades. 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil

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O exemplo das manifestações revela a dialética dos espaços monitorados. Um manifestante que carrega seu celular para um protesto se expõe ao gerar informações que podem ser utilizadas contra ele. O simples fato de portar um celular ligado, mesmo que ele não seja efetivamente utilizado, já é suficiente para que informações sobre sua localização e seus deslocamentos sejam coletadas. Um caso que evidencia tal situação ocorreu durante as manifestações do dia 21 de janeiro de 2014 em Kiev, capital da Ucrânia. Manifestantes, espectadores e outras pessoas próximas ao local dos protestos receberam em seus celulares uma mensagem de uma fonte não identificada dizendo: “Caro assinante, você foi fichado como participante de um motim em massa”. A mensagem, que muito provavelmente partiu do governo e com anuência das operadores de telefonia, foi enviada a partir das informações da localização dos celulares daquelas pessoas e tinha o claro intuito de convencê-las a desistir do protesto. Entretanto, mesmo que um manifestante não carregue consigo seu celular, sua presença no espaço monitorado provavelmente não irá passar desapercebida, já que seus rastros podem ser detectados por diversos outros sensores, como câmeras de vigilância ou câmeras dos celulares de outros manifestantes. Logo, ele está sujeito a uma vigilância que o desapodera. Por outro lado, o uso do celular permite que tal manifestante monitore, por exemplo, atos de violência policial e que os publique em tempo real pela internet. O celular, nesse caso, seria um instrumento que dialeticamente traz poder àquele que o carrega. Além disso, manifestantes têm hoje a possibilidade de acessar parte significativa das informações coletadas por outros indivíduos. Uma simples busca por imagens associadas a uma hashtag específica no Twitter, por exemplo, pode trazer uma quantidade considerável de informações sobre um certo evento. A grande massa de informação gerada pelos diversos sensores não é utilizada exclusivamente por agentes hegemônicos e de forma totalitária. Há brechas no sistema e diversas possibilidades de contravigilância. O espaço cada vez mais monitorado e conhecido pode, portanto, resultar tanto em mais injustiças e subserviências, como também estimular movimentos genuínos de transformação vindas de baixo para cima. A atual cognoscibilidade do planeta levaria ao que Santos chamou de consciência universal, ou seja, à possibilidade de se conhecer o acontecer do outro: Com essa grande mudança na história, tornamo-nos capazes, seja onde for, de ter conhecimento do que é o acontecer do outro. Nunca houve antes essa possibilidade oferecida pela técnica à nossa geração de ter em mãos o conhecimento instantâneo do acontecer do outro. Essa é a grande novidade, o 3o Simpósio Internacional LAVITS: Vigilância, Tecnopolíticas, Territórios 13 à 15 de Maio, 2015. Rio de Janeiro, Brasil

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que estamos chamando de unicidade do tempo ou convergência dos momentos. A aceleração da história, que o fim do século XX testemunha, vem em grande parte disto. Mas a informação instantânea e globalizada por enquanto não é generalizada e veraz porque atualmente intermediada pelas grandes empresas da informação. (Santos, 2000a, p. 28)

Todavia, desde o falecimento de Santos surgiram, paralelamente ao poder crescente dessas grandes empresas da informação, formas alternativas e independentes de coleta e distribuição da informação. Há, portanto, esperança pois, como outrora afirmou Santos (1996b, p. 38), “o futuro, e não o passado, torna-se âncora”.

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