Era FHC X Era Lula: a disputa simbólica no horário eleitoral de 2010

June 30, 2017 | Autor: Joyce M Leão Martins | Categoría: Comunicación Polìtica, Análise do Discurso, Comunicação e Política, Comunicação Política
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Era FHC X Era Lula: a disputa simbólica no horário eleitoral de 20101 FHC era X Lula era: the symbolic dispute on electoral schedule Joyce Miranda Leão Martins 2 Resumo: A revolução nos meios de comunicação provocou mudanças na configuração da política que, progressivamente, desloca seu lócus de atuação das ruas para as telas, principalmente quando se trata de atrair o voto de eleitores em campanhas majoritárias. No Brasil, isso passou a ocorrer a partir da redemocratização, período em que houve a queda da censura e o desenvolvimento do marketing político. A simbiose entre os campos político e midiático possibilitou o surgimento de novas formas de longevidade no poder, agora apoiadas em “imagens-marca” fortes, capazes de darem origem a distintas temporalidades políticas. O objetivo deste artigo é analisar o horário eleitoral de Dilma Rousseff e José Serra, na campanha presidencial de 2010, atentando para como os legados simbólicos de Lula e FHC, dos partidos de Dilma e Serra, respectivamente, foram usados para conseguir a adesão do telespectador/eleitor. A metodologia utilizada foi a da análise do discurso. Foram importantes noções como condições sociais de produção, lugar de fala e ethos. Palavras-chave: Era Lula; Era FHC; Horário eleitoral; Marketing Político.

Abstract: The revolution in the means of communication provoked changes in the configuration of the political power that progressively dislocate its locus of actuation from the streets to the screens, chiefly when it deals with attracting the vote of electors in majority campaign. In Brazil, this began to occur from the redemocratization period in which there was the fall of the censorship and the development of the political marketing. The symbiosis between the political fields and mediatic made possible the coming up of new forms of longevity in power, now supported by strong “images-mark” capable of bringing into being distinct Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no 7º congresso da Associação LatinoAmericana de Ciência Política (ALACIP). 2 Mestre em Sociologia (UFC) e Doutoranda em Ciência Política (UFRGS). Bolsista da CAPES. Contato: [email protected]. 1

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political temporalities. The objective of this article is to analyze Dilma Roussef’s electoral schedule and José Serra in the presidential campaign of 2014, considering the symbolic legacy of Lula and FHC, the parties of Dilma and Serra, respectively, that were being used to attain the adhesion of the television watcher and the elector. The methodology being used was the analysis of the discourse. They were important notions as well as social conditions of production, place of speaking and ethos. Key-words: Lula’s era; FHC’s era; electoral schedule; political marketing.

1. Introdução

As eleições brasileiras, ocorridas depois da redemocratização do país, acontecem dentro de um ciclo de padrão midiático publicitário3 de campanhas políticas, que teve origem em 1989, período em que o marketing político pôde se desenvolver, e os jornalistas puderam falar dos candidatos sem medo de censura. A midiatização da política, isto é, a política produzida para ser noticiada, acompanha o processo de revolução dos meios de comunicação e a preponderância destes nas formas de sociabilidade, as quais foram modificadas com o advento de novas tecnologias. A evolução técnica das sociedades causa transformações em distintos âmbitos, trazendo consequências, também, para a configuração da política. Antes mostrada nas ruas, nas visitas a casas dos eleitores, nos comícios, passa progressivamente a se deslocar para o campo das imagens, tendo a TV como lócus privilegiado. Os antigos modos de comunicação política não desaparecem, mas se adaptam ao que é interessante de ser mostrado na tela. O entrelaçamento do espaço político com o midiático provocou, de acordo com Champagne (1996), o surgimento de um novo jogo político, caracterizado pela tentativa de formação da opinião através da TV e com a ajuda de institutos de sondagem. Essas imbricações entre a política e a mídia podem ser vistas de modo especial durante as campanhas eleitorais, momento em que os próprios agentes do campo político utilizam o espaço midiático para falar com o público. Essa nova Definido pela ambiência midiatizada das campanhas eleitorais, bem como pelo forte apelo à publicidade, feito nas propagandas veiculadas nos “spots” (inserções políticas na programação diária) e nos blocos do horário eleitoral (Carvalho, 1999). 3

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forma de fazer política também proporcionou modo inédito de longevidade no poder, mantido através da construção e manutenção de imagens públicas positivas no horário eleitoral, na comunicação institucional de governos etc. A imprensa costuma chamar de “era” essa temporalidade, a qual “enraizada no imaginário coletivo produz e reproduz uma memória através de narrativas que particularizam uma ‘época’ cuja duração tende a se estender por mais de um mandato” (Carvalho, 2013, p.46). O objetivo deste artigo é analisar o Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE) de Dilma Rousseff e José Serra, na campanha presidencial de 2010, atentando para como os legados simbólicos de Lula e FHC, dos partidos de Dilma e Serra, respectivamente, foram usados para conseguir adesão do telespectador/eleitor.

2. O padrão midiático no jogo político

Campanhas presidenciais com forte apelo midiático são características das eleições ocorridas pós-redemocratização. Nessas campanhas, o discurso sedutor, ancorado em imagens, tornou-se elemento fundamental para o sucesso de candidaturas. Se antes a retórica, a troca de favores entre políticos e eleitores, os conchavos com chefes políticos tradicionais resultavam nos votos, agora a política tem que se adaptar à lógica da linguagem midiática, posto que, em eleições majoritárias, a televisão veio ganhando força cada vez maior. Os discursos audiovisuais funcionam como dispositivos mobilizadores de imaginários, os quais circulam em determinado meio social. O conceito de imaginário social foi proposto por Cornelius Castoriadis entre as décadas de 1960 e 1970, destacando a importância que assume na instituição da vida social. Na visão desse autor, os imaginários são significados construídos coletivamente em um processo que não ocorre de modo consciente. (1995). De acordo com ele, o imaginário usaria o simbólico “não somente para exprimir-se [...] mas para existir, para passar do virtual a qualquer coisa mais” (1995, p.154). A definição dada por Charaudeau, entretanto, é a adotada neste artigo. Para 71

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Charaudeau, todo imaginário é um “imaginário de verdade que essencializa a percepção do mundo em um saber provisoriamente absoluto” (2008, p.205), visto que o homem não construiria percepções significantes sobre o mundo se não as tivesse por verdadeiras. Sabendo que os imaginários circulam através da linguagem, Charaudeau, para ajudar na análise de discurso político, cria um conceito:

À medida que esses saberes, enquanto representações sociais, constroem o real como universo de significação, segundo o princípio de coerência, falaremos de “imaginários”. E tendo em vista que estes são identificados por enunciados linguageiros produzidos de diferentes formas, mas semanticamente reagrupáveis, nós os chamaremos de “imaginários discursivos”. Enfim, considerando que circulam no interior de um grupo social, instituindo-se em normas de referências por seus membros, falaremos de “imaginários sócio-discursivos. (Charaudeau, 2008, p.203).

A disputa simbólica entre discursos é a disputa pela hegemonia do sentido do imaginário, pela fixação de sentidos que possa ser mais vantajosa a candidato A ou B. As estratégias discursivas de Dilma Rousseff e José Serra, ao evocar os expresidentes Lula e FHC, mobilizaram imaginários tradicionais da política brasileira, em uma tentativa de conseguir adesão mais facilmente. O embate entre as duas eras foi iniciado por Dilma, que se valia da imagem de Lula para se apresentar aos eleitores. Para saber por que os ex-presidentes acabaram sendo protagonistas de uma eleição que não era a deles e quais os significados disso (dos discursos que evocavam os governos do PT e do PSDB), é importante uma breve explicação das eras Lula e FHC.

3. A emergência de duas eras

Os “governos Lula” e “governos FHC” estão no imaginário social como marcadores de distintas temporalidades na política brasileira. É como se uma era se contrapusesse a outra. Dois Brasis construídos com práticas e discursos

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políticos, que começaram a ser desenhados na segunda eleição presidencial, pósredemocratização. No começo de 1994, Lula lembrava episódios recentes da vida do país, como o governo corrupto de Collor. O petista levantava a bandeira da ética, da seriedade, posicionando-se como o “anti-Collor”. Lula começara o ano como favorito do eleitorado, mas quando Fernando Henrique anunciou (29/03/1994) que iria deixar o ministério4 para lançar sua candidatura à presidência da República, o cenário começou a mudar. Se Lula recordava fatos que nenhum brasileiro gostaria de vivenciar novamente, FHC trazia para o cenário da disputa uma lembrança que parecia assustar muito mais: a inflação do governo Sarney contraposta à estabilidade, pela qual somente ele, Fernando Henrique, seria o responsável. O Real nasceu envolto em mantos de esperança dos brasileiros, e suas primeiras cédulas vinham com a assinatura de seu “pai”. E, assim,

O afastamento do ministério para candidatar-se, longe de significar abandono do filho à sua própria sorte, foi semantizado como ato de confirmação da preocupação de pai zeloso com o futuro do rebento: concluída a tarefa de germinação ele antecipa-se para pleitear o lugar ideal (a presidência) para acolhê-lo com a segurança de poder garantir a continuidade de seu desenvolvimento saudável. (Carvalho, 1995, p.36).

FHC conseguiu a proeza de controlar a inflação brasileira, que apresentava números constantemente crescentes desde os últimos governos militares (Geisel e Figueiredo). O feito, simbolizado na criação do Real, permitiu a Fernando Henrique ganhar “de virada” o pleito presidencial de 1994, decidido já no primeiro turno. A conquista de manutenção da estabilidade, aliada ao fato do sociólogo mostrar-se na campanha de 1998 como o grande homem capaz de combater as crises econômicas, e por consequência atenuar o desemprego, permitiriam a reeleição do psdebista, em 1998, novamente no primeiro turno. Esse resultado também refletia a descrença da população no PT, o medo do retorno da instabilidade econômica, que poderia ser gerado por Lula e seus aliados. Ou seja, a

Fernando Henrique era ministro da Fazenda de Itamar Franco, vice de Collor, que assumiu a presidência quando este renunciou, acuado por denúncias de corrupção. 4

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vitória de FHC, no primeiro turno em 1998, não demonstrava (necessariamente) um contentamento da população diante da situação do país. O desenrolar e o fim do segundo mandato de FHC, com o país envolto em crises econômicas, trouxeram marcas negativas para o sociólogo e seu partido, o PSDB. FHC saiu da presidência como privatizador; responsável pela estagnação da economia e do desemprego. Seus adversários reforçaram essa ideia (o PT iria ajudar a tornar a privatização uma marca negativa da Era FHC). Excluído da campanha de 2002, o ex-presidente não pôde responder aos ataques. José Serra, candidato do PSDB, rejeitou a missão que caberia a ele de defender o governo de seu partido, afirmando que FHC era uma pessoa, e ele, Serra, outra. Desse modo, sua atuação na campanha parecia falar, entrelinhas, que ter sido do governo era um “peso” para sua candidatura. FHC ia saindo do cenário político-eleitoral como um presidente ruim, estando já muito longe, quase apagada, a imagem do “grande homem” que soube vencer a inflação. Nesse contexto, ressurgiu Lula como um homem que soube aprender com seus erros e amadureceu. Lula simbolizava a esperança da mudança, de uma vida diferente, mas sem rupturas bruscas. Eleito no segundo turno, mas com a maior votação já recebida por um candidato a presidente (mais de 52 milhões de votos5), ele iniciou o mandato adotando projetos6 de FHC. As primeiras decisões do novo presidente provocaram uma divisão no partido, e os dissidentes se desligaram do PT para fundar o PSOL (Partido do Socialismo e Liberdade), sigla oposicionista de esquerda. Mesmo com os percalços do escândalo do mensalão7, Lula conseguiu se reeleger e continuar a trilhar um caminho positivo no imaginário social brasileiro, diferente daquele de FHC. Com alta aprovação popular, Lula chegou ao final de seu primeiro governo como um pai bondoso, que ajudava seus filhos. Lula saiu praticamente ileso das denúncias de corrupção que derrubaram líderes do PT e auxiliares seus no comando da presidência. Como explicar esse fato Fonte: http://g1.globo.com/Noticias/Eleicoes/0,,AA1330800-6282,00.html A Reforma da Previdência é um dos projetos em pauta que mais causa a revolta dos eleitores de Lula. 7 Nome como a imprensa passou a se referir às denúncias do deputado Roberto Jefferson (Partido Trabalhista Brasileiro – PTB), que acusava o PT e o Ministro da Casa Civil, José Dirceu, de manterem um esquema de pagamento para os deputados votarem em propostas do governo. 5 6

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e a vitória de Lula em 2006? E seus mais de 80% de aprovação pessoal8, no final de seu segundo mandato? Uma das hipóteses consideradas é que, sendo pessoal o caráter do carisma, a veneração e confiança estão depositadas apenas em Lula, que é reconhecido como “pessoa extraordinária”. Outra suposição, feita pelo sociólogo Francisco Oliveira, é que a vitória de Lula estaria relacionada à posição de governante, e como tal, com recursos para desenvolver programas para os mais pobres. O apoio popular se basearia assim nas políticas assistencialistas do governo, de gerenciamento da pobreza, tendo como maior exemplo o programa

Bolsa Família. Para referendar essa tese, Oliveira diz que “no Nordeste, região que recebe o maior contingente da assistência [dessa política do governo], Lula ultrapassou os 70%” de votos recebidos para legitimar seu segundo mandato9. Decerto que a oposição a Lula não cessou, mas encontrou pouco espaço para atuar. Nacionalmente, o PSDB (de oposição ao governo federal petista) chegou a votar favoravelmente em propostas de Lula, quando essas reproduziram algumas reformas idealizadas pelo PSDB. Os movimentos sociais, que sempre foram base do PT, encontravam-se em delicada situação para se opor de maneira veemente ao presidente, devido à dependência que tinham do governo: “Lula nomeou como ministros do trabalho ex-sindicalistas influentes na CUT. [...] Mesmo o MST vê-se manietado [em relação ao governo, pois este] financia o assentamento das famílias no programa de reforma agrária”10. Outros movimentos da sociedade civil, que se colocavam como oposição ao executivo federal, eram de menor amplitude e força na mídia, visto que muitos eram recentes e alguns surgiram depois que Lula se tornou presidente. De acordo com Oliveira, o que se via era um governo de comando da classe trabalhadora, com políticas sociais voltadas para os pobres, mas em aliança com os ricos. Desse modo, Lula se tornava quase um consenso. Francisco de Oliveira afirma que:

Popularidade de Lula é de 80,5%, aponta pesquisa CNT/Sensus: http://g1.globo.com/politica/noticia/2010/08/cntsensus-mede-popularidade-de-lula-em805.html 9 Ver: Oliveira, p. 1, Hegemonia às avessas. 10 Ver: Oliveira, p. 4, Hegemonia às avessas. 8

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A vitória do ex-metalúrgico [...] criou no país [...] o que chamou de uma hegemonia às avessas: a classe dominante aceita ceder aos dominados (que Lula, em tese, representa) o discurso político, desde que os fundamentos da dominação que exerce não sejam questionados. (Entrevista à Lydia Medeiros, do jornal O Globo)11.

Ainda de acordo com o cientista social, o conjunto dessas aparências (de comando, domínio, por parte dos antes dominados) esconde outra coisa, para a qual não temos nome, nem talvez conceito.12 As suposições que se possam fazer partirão todas de um mesmo princípio: a aprovação gritante que Lula conseguiu perante os brasileiros. A análise de Oliveira foi feita em 2007, um ano após a reeleição de Lula, e o ex-presidente continuou com alta aprovação e com a imagem de um pai que ajudava os pobres. Esse fato que será bastante explorado na eleição de 2010, na qual, mesmo sem ser candidato, Lula apareceu como um importante personagem no discurso dos postulantes à presidência. Em contraposição a ele também estará presente a Era FHC que Serra tenta esquecer no início da campanha. Antes de analisar esta, vai se passar ao método utilizado.

4. O Horário Eleitoral e as imagens no discurso

Analisar imagens que surgem nos discursos significa compreender o seu processo de produção, que passa pelos contextos histórico, social e político. É importante esclarecer que essas imagens vão além de sua conotação visual: “imagem pública não é um tipo de imagem em sentido próprio, nem guarda qualquer relação com a imagem plástica ou configuração visual exceto por analogia com o fato da representação” (Gomes, 2007, p.246). Imagem pública de um sujeito qualquer é, pois, “um complexo de informações, noções, conceitos, partilhado por uma coletividade qualquer, e que o caracterizam. Imagens públicas são concepções caracterizadoras.” (Gomes, 2007, p.254). Ver: http://www.ie.ufrj.br/aparte/pdfs/chicooliveira040207.pdf 12 Ver: Oliveira, p. 5, Hegemonia às avessas. 11

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O ethos, construção da imagem de si no discurso (Maingueneau, 2005), que depende da incorporação de outrem, é criado com a mobilização de imaginários sociais. De acordo com Charaudeau “o ethos político deve [...] mergulhar nos imaginários populares mais amplamente partilhados, [pois] deve atingir o maior número, em nome de uma espécie de contrato de reconhecimento implícito”. (Charaudeau, 2008, p.87). Imaginários seriam as percepções significantes tidas como verdadeiras pelos sujeitos sociais. (Charaudeau, 2008). A atuação desses imaginários e das imagens públicas, na fala dos agentes sociais, é percebida pela análise do discurso, que surge entre as lacunas da Linguística, da Psicanálise e do Marxismo: interroga a “Linguística pela historicidade que ela deixa de lado, questiona o Materialismo perguntando pelo simbólico e se demarca da Psicanálise pelo modo como, considerando a historicidade, trabalha a ideologia como materialmente relacionada ao inconsciente sem ser absorvida por ele” (Orlandi, 2012, p.20). Quando a análise do discurso é usada como instrumento metodológico para a compreensão de discursos políticos midiatizados, precisa levar em conta que estes, ao contrário da maioria dos discursos que circulam no social, são pensados com o objetivo maior de conseguir adesão e de estar adequados à tela, sendo a parte inconsciente dos discursos, supostamente, atenuada. Mas o que é discurso e qual a sua diferença para o simples texto? A distinção se dá porque este é somente unidade de sentido e aquele implica sujeito, historicidade. De acordo com Pinto, o discurso nada mais é que o local onde práticas sociais são materializadas. Por isso, não deve ser entendido como um ramo da Linguística, mas como um estudo das formas com que “sujeitos históricos significam suas condições de existência” (Pinto, 1989). Pode-se dizer que Charaudeau complementa a afirmação, ao argumentar que, nas Ciências Sociais, o estudo do discurso se diferencia de uma simples observação da linguagem:

Novas noções como as de enunciação, de corpora de textos (e não apenas de frases), de contextos, de condições de produção permitiram aos estudos linguísticos descobrir e determinar um novo campo de análise da linguagem, que não remetia mais à língua, ao estudo dos sistemas da língua, mas ao discurso, isto é, aos atos de linguagem que circulam no mundo social e que testemunham, eles próprios, aquilo que são os

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universos do pensamento e de valores que se impõem em um tempo histórico dado. (2008, p.37).

Importante dizer que um discurso está sempre dentro de outro (interdiscurso), que o permite, atualiza-o e desloca seus sentidos. Ao trazer o contexto para a cena da produção das falas, o analista do discurso político deve contar com o apoio das pesquisas de opinião pública, responsáveis por captar tendências da sociedade em determinado momento. Para Jorge Almeida é fundamental que, “nos estudos sobre o discurso político midiático, sempre que possível se trabalhe combinando a análise do discurso; com a análise da cena política e dos cenários que vão sendo construídos; e com a recepção através de pesquisas qualitativas e quantitativas” (1999, p.72). Observar o contexto de fabricação dos discursos é perceber as condições

sociais de produção destes que, segundo Orlandi, podem ser consideradas em sentido estrito (contexto imediato) e em sentido amplo, incluindo o contexto sóciohistórico, ideológico. (2012). Às condições sociais de produção se ligam o lugar de fala do enunciador, o qual se distingue do locutor por ser este o que profere as palavras, enquanto o enunciador as produz. O lugar de fala se refere à posição no campo político, a um lugar construído discursivamente e também ao ambiente cognitivo. Os discursos se filiam a formações discursivas (que são componentes das formações ideológicas) determinam o que pode e deve ser dito em um contexto, de acordo com a posição do enunciador. A formação discursiva é o lugar de constituição de sentido, modo de inscrição histórico no qual os textos se apresentam como regularidades enunciativas (Almeida, 1999). Os conceitos expostos foram utilizados para a análise dos programas do HGPE de José Serra e Dilma Rousseff. Pinto (1989) e Orlandi (2012), por serem de distintas escolas de análise do discurso, não são autoras que costumam ser utilizadas juntas. Entretanto, têm em comum a percepção de que no discurso são travadas batalhas de imposição de sentidos, bem como a noção de que para aquele emergir são necessárias condições de produção, atreladas ao lugar de fala e às 78

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formações discursivas. A visão de ambas é importante dentro de uma hermenêutica da profundidade (HP), proposta por Thompson (1999). De acordo com o autor, a HP é um referencial metodológico geral (no qual teoria e prática se retroalimentam), que pode abarcar diversos métodos para uma melhor compreensão/interpretação da realidade. Thompson divide a HP em três fases: análise sócio-histórica; análise discursiva; interpretação/reinterpretação. Todas as três podem abarcar variados leques de métodos e permitem ao analista selecionar uns e preterir outros, dependendo da subjetividade de cada cientista, do objeto a ser estudado, das condições de pesquisa etc. A primeira fase refere-se às condições sociais de produção e recepção das formas simbólicas; a segunda relaciona-se aos meios para se compreender as estruturas de um discurso: análise de conteúdo, de conversação etc.; a terceira analisa a doxa, levando em conta essa dimensão, mas procurando entender “como as formas simbólicas são interpretadas e compreendidas pelas pessoas que as produzem e as recebem no decurso de suas vidas quotidianas.” (1999, p. 363). Excetuando-se a análise da doxa, pois aqui não haverá estudo de recepção, somente das estratégias utilizadas para a persuasão de destinatários idealizados, as outras duas fases da HP serão contempladas. Importante destacar que aqui se refere ao destinatário idealizado como sendo o eleitor, mas aquele também pode ser o político adversário em uma tentativa de um programa do horário eleitoral de impor ao outro a sua “agenda”, a sua “pauta”. Para a análise, todo o horário eleitoral foi gravado e assistido, porém aqui se destacaram as falas relacionadas a Lula e FHC, que tiveram bastante peso na campanha e foram decisivas nos momentos finais do jogo eleitoral de 2010.

5. Dilma Rousseff: a candidata anunciada pelo presidente

Em 17 de agosto de 2010, primeiro dia dos blocos de propaganda do HGPE, Dilma surge do Brasil gigante, que vai do Rio Madeira ao Chuí. Vem ao lado do padrinho. O Brasil de Dilma é o mesmo de Lula, fruto de uma era dourada

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construída pelo petista. Ela seria a sucessora natural, posto que fez parte do governo do presidente e que suas biografias políticas se entrecruzavam: Lula se tornou o primeiro operário presidente, e Dilma a primeira mulher a ser ministra de Minas e Energia, presidente do Conselho de Administração da Petrobras e ministra-chefe da Casa Civil. Lula deu rumo ao Brasil. Dilma coordenou todo o ministério e programas como o PAC, o Minha Casa, Minha Vida e Luz Para Todos. Lula [...] inovou, rompeu barreiras, mudou o país. Não por acaso, quer passar a faixa à primeira mulher presidente do Brasil.

Além de ser a herdeira autorizada pelo presidente, Dilma aparecia como a garantia de que a Era Lula não findaria. Em trecho do programa, em que presidente e candidata conversam, há o seguinte diálogo:

Dilma: - o futuro começa sem que se interrompa o presente, porque o Brasil não quer e não pode parar. O povo brasileiro quer seguir construindo este Brasil novo [...]. Nosso povo sabe que agora tem um projeto com a força e o tamanho do Brasil. Lula: – Um projeto, Dilma, que está só começando. Muita coisa já foi feita, mas tenho certeza que saltos ainda maiores vão acontecer no seu governo,

Se Lula foi um pai para os brasileiros, Dilma seria a mãe, com todo o viés positivo que o imaginário ligado à imagem de mãe traz: é aquela que cuida, zela, defende. Ela vinha pelas mãos de Lula, e ele entregava a ela seu povo, para que ela desse continuidade à Era Lula. O programa se encerra com jingle que narra a entrega simbólica do mandato do então presidente: Deixo em tuas mãos o meu povo E tudo que mais amei Mas só deixo porque sei Que vais continuar o que fiz E meu país será melhor E o meu povo mais feliz Do jeito que sonhei e sempre quis Agora, as mãos de uma mulher vão nos conduzir Eu sigo com saudade Mas feliz a sorrir Pois sei, o meu povo ganhou uma mãe Que tem um coração que vai do Oiapoque ao Chuí

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Com o sucesso da primeira semana do HGPE, Dilma sobe nas pesquisas13 de intenção de voto:

GRÁFICO 1. Intenção de voto estimulada para presidente – Respostas estimulada

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/poder/786566-dilmaabre-17-pontos-sobre-serra-e-venceria-no-1-turno-apontadatafolha.shtml

O programa da candidata não sofre inflexão, mas, além de mãe e herdeira da era dourada (reiterada em músicas e imagens de um Brasil feliz), também são apresentadas imagens da petista como uma batalhadora. Apesar do apoio do presidente, no dia da Independência, o programa do dia 7 não deixou de ressaltar que Dilma era uma mulher guerreira (capaz de vencer obstáculos sozinha), ao fazer a analogia de Dilma com mulheres que estiveram à frente de seu tempo. Texto, fala de narrador em off, música instrumental e imagens foram intercaladas ao percorrer a vida de mulheres pioneiras ao longo da história do Brasil. A

13 Gráfico tirado do jornal Folha de São Paulo. A pesquisa é do Data Folha. http://www1.folha.uol.com.br/poder/786566-dilma-abre-17-pontos-sobre-serra-e-venceria-no-1turno-aponta-datafolha.shtml

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primeira delas, Catarina Paraguaçu, chegou a ser colocada como a responsável pela formação do povo brasileiro: Primeiros anos de 1.500: uma índia se casa com o português Diogo Caramuru e inicia a formação de um povo novo e mestiço, povo brasileiro. (Catarina Paraguaçu); 1835: indignada com a escravidão, ela se engaja na luta dos malês pela liberdade. (Luíza Mahin); 1877: ao romper barreiras ela partiu para reinventar a música brasileira (Chiquinha Gonzaga); 1888: uma mulher sanciona a lei que abole a escravidão (Princesa Isabel); Anos 30 e 40: uma mulher projeta a cultura e a alegria brasileira em todo mundo (Carmem Miranda).

Dilma vai ao segundo turno devido ao caso Erenice14 e, na nova etapa da campanha, acentua-se a evocação a Lula e a contraposição da imagem deste ao período de FHC. Antes de mostrar a disputa mais acirrada, vai se passar à apresentação de Serra no HGPE, durante o primeiro turno.

6. José Serra: a oposição que não estava lá

A grandeza de Serra está no povo, ele não tem padrinhos, não fala dos governos do PSDB e “esquece” o ex-presidente Fernando Henrique. O Brasil de Serra também é feliz. Quem autoriza o psdebista são os mais humildes, a quem o candidato se assemelha pela história de vida. Em 17 de agosto de 2010, Serra é apresentado pelo narrador em off, enquanto imagens do candidato, quando criança, aparecem na tela: O Serra nasceu nessa casinha, num bairro operário de São Paulo. A mãe, dona de casa. O pai, vendedor de frutas. Filho de família pobre, estudou em escola pública. Aos 21 anos, já era líder, presidente dos estudantes do Brasil. Foi secretário estadual do Planejamento; deputado federal duas vezes. Aprovado pelo povo, se elegeu senador. Como ministro do Planejamento, ajudou a implantar o real. Pela sua competência, se tornou 14 O programa de Serra relacionava Dilma a José Dirceu e a nova ministra da Casa Civil, amiga de Dilma. A notícia propagada era a seguinte: “Entra dia, sai dia e o governo do PT cada vez mais se enrola em escândalos e mais escândalos. Hoje, mais um caso grave. Folha de S. Paulo de hoje: Filho da ministra Erenice Guerra pediu 5% de comissão para aprovar financiamento para empresa. Diz o jornal: “A empresa recebeu a proposta de doar 5 milhões de reais para a eleição de Dilma”. Dilma e Erenice, juntas desde 2003. As duas entraram no lugar de Zé Dirceu.”

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ministro da Saúde. Em 2004, Serra é eleito prefeito de São Paulo. Em seguida, governador do estado. O único governador, da história de São Paulo, eleito no primeiro turno.

Serra e o povo brasileiro se parecem pelas suas histórias de luta. Não se nega que Lula tenha feito um bom governo, mas seria Serra o melhor para sucedêlo. Lula é Silva, Serra é Zé, os dois são povo. Assim, depois de colocar vários nordestinos15 em seu programa, Serra surge em uma favela cenográfica, ao som de

jingle que dizia: “Quando o Lula da Silva sair, é o Zé que eu quero lá [...] José Serra é um brasileiro tão guerreiro quanto eu. É o Zé que batalhou, estudou, foi à luta e venceu. Zé é bom, eu já conheço, eu já sei quem ele é. Pro Brasil seguir em frente, sai o Silva e entra o Zé”. Agindo desse modo, Serra ajudava na manutenção da aura positiva relacionada à Era Lula. Todavia, devido a posição do candidato no campo político (postulante pelo PSDB, sigla de oposição a Lula), Serra não obtém sucesso com a estratégia de se aproximar do presidente. O lugar de Serra era o da oposição, mas ele não estava lá. Na primeira semana do HGPE, Serra cai nas pesquisas 16 e seu programa sofre inflexão. Apesar de não afastar, de imediato, seu ethos da imagem de Lula, passa a explorar outras imagens públicas como: o homem de bem, de Deus, bom gestor, ficha limpa. Essa última imagem é contraposta a de Dilma, amiga de Dirceu, responsável por deixar Erenice na Casa Civil. Ainda no primeiro turno, Serra tentou fazer com que a disputa entre imagens fosse somente ligada a ele e Dilma: “Eu não cheguei na vida pública, agora não, nem foi um padrinho quem me trouxe até aqui. Por isso, eu não preciso ficar na sombra de ninguém” (Programa do dia 4 de setembro de 2010). Ganhou uma batalha quando, com o caso Erenice17, ajudou a provocar o segundo turno. Mas perdeu a guerra, em definitivo, na nova etapa da campanha, quando Lula e

15 Serra tentou destruir o pré-ethos de que era contra nordestinos, bem como atrair a parcela do país mais beneficiada com programas sociais do governo Lula. 16 Ver tópico “Dilma Rousseff: a candidata anunciada pelo presidente”. 17 Até o resultado oficial do primeiro turno, a eficácia da nova fase da campanha para produzir um segundo turno era um mistério, que somente se desvaneceu com a apuração. O surpreendente número de votos da candidata Marina Silva, do Partido Verde (PV), evangélica, possibilitou o segundo turno, mas Sirkis (2011), dirigente do PV e um dos responsáveis pela campanha de Marina, o próprio João Santana, marqueteiro da Dilma, reconheceram que “o fator dominante do desgaste de Dilma naquela reta final do primeiro turno foi o caso Erenice”.

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Fernando Henrique vieram a se tornar protagonistas de uma eleição que não era a deles.

7. O Brasil de FHC x o Brasil de Lula

A disputa entre dois Brasis, simbolizados em duas eras distintas, fica mais evidente no segundo turno. Apesar de Dilma surgir agradecendo a Deus (algo que não tinha feito durante todo o primeiro turno), e Serra falar da defesa da vida e do meio-ambiente, apesar do tema aborto ser bastante falado no período do segundo turno, foi a disputa entre as eras Lula e FHC que deu o tom da nova fase da campanha. O novo jingle de Serra, apresentado já no final do primeiro turno, ecoou bastante, numa tentativa explícita de opor candidato e adversária, colocando o psdebista como a representação do bem:

Quando se conhece bem uma pessoa, Logo se sabe se é gente boa. Com Serra, essa certeza a gente tem: Serra é do bem. Serra do seguro-desemprego, Do genérico, remédio mais barato. Serra é o Brasil seguindo em frente, Cuidando da gente, sempre ao nosso lado. Serra tem firmeza no que faz, A gente conhece, a gente já viu. Tanta coisa boa ele já fez E vai fazer muito mais, Por todo o Brasil. Quando se conhece bem uma pessoa, Logo se sabe se é gente boa. Com Serra, essa certeza a gente tem: Serra é do bem.

Mas não havia condições sociais de produção de um discurso de “Salvador” (mito político descrito por Girardet, 1987) e da mobilização de um imaginário dos temores. Ao contrário, Serra é que foi ligado eficazmente a um período sombrio. A propaganda de Dilma acusava Serra e FHC de responsáveis por um passado em

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que o Brasil era ruim. No primeiro programa petista, do segundo turno, uma locutora afirmava: No Brasil de Serra e FHC não haveria o Bolsa Família. Não haveria o Minha Casa, Minha Vida nem o Luz Para Todos. 36 milhões de brasileiros não teriam alcançado a classe média e 28 milhões ainda estariam na pobreza. Não haveria PAC nem os 14,5 milhões de empregos criados por Lula. Agora o Serra quer voltar, mas é o Brasil que não quer voltar ao passado. O Brasil quer seguir mudando com Dilma.

As comparações passaram a ser constantes. Em 18 de outubro, é o próprio Lula quem abre o HGPE de Dilma, afirmando:

O Brasil que ficou para trás era o país da desigualdade, do arrocho salarial, do desemprego. O novo Brasil que estamos construindo, distribui renda, cria mais de 14 milhões de empregos e eleva a maioria de sua população para a classe média. Está na hora de você escolher o Brasil que você quer: o Brasil capaz de tirar 28 milhões de brasileiros da miséria e levar 36 milhões para a classe média ou o Brasil que fechava os olhos para a pobreza. O Brasil que dava errado ou o Brasil que está dando certo e que Dilma vai continuar.

Alguns programas foram feitos apenas com esse sentido, imputar a Serra o anti-ethos de privatizador e, simultaneamente, mostrar Dilma como a protetora do Brasil. Dia 14 de outubro, afirmava a candidata:

É um crime privatizar a Petrobras e o pré-sal. Falo isso porque, há poucos dias, o principal assessor do candidato Serra, para a área de energia, e ex-presidente da Agência Nacional de Petróleo, durante o governo FHC, defendeu a privatização do pré-sal [...], nosso grande passaporte para o futuro. Com ele, o Brasil vai arrecadar bilhões de dólares. Essa riqueza será investida nas áreas de Educação, Saúde, Cultura, Meio-Ambiente, Ciência e Tecnologia e combate à pobreza. Graças a uma lei criada pelo nosso governo, com a minha participação.[...] Nós acreditamos que o fortalecimento das nossas empresas é bom para todo o povo brasileiro. Eles só pensam em vender o patrimônio público.

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Uma narração em off alerta para os perigos de votar em quem “entregou de bandeja as riquezas do Brasil”, avisando que Banco do Brasil, Caixa Econômica e a Petrobras escaparam por pouco.

Serra tentava defender-se, dizia em debates que não ia privatizar nada, mas apresentava uma postura dúbia, pois seu programa passou a legitimar uma das privatizações feitas por FHC: No passado era assim: gente rica tinha telefone. Gente pobre tinha lugar na fila do orelhão. O Serra defendeu a modernização da telefonia. O PT, da Dilma, foi contra, mas a ideia do Serra venceu e, hoje, graças à modernização da telefonia, todo mundo, rico ou pobre, tem o seu celular e acesso à internet. Com Serra, o avanço é pra todos.

Sem saída e sem poder tirar do caminho os governos federais do PSDB, Serra insistia que a disputa deveria ser entre ele e Dilma, que tinha posições dúbias sobre o aborto e era aliada a um PT radical e corrupto. O candidato tentou, como nova estratégia, defender que as conquistas do Brasil tinham surgido bem antes de Lula:

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José Serra construiu sua biografia com muito trabalho e com muito esforço. Serra já lutava pelas reformas de base, pelos trabalhadores, pela liberdade. Serra foi perseguido pela ditadura e teve que se exilar no Chile. De volta ao Brasil, lutou pelas eleições diretas já. A Dilma, ninguém sabe, ninguém viu. Serra apoiou Tancredo Neves para presidente, diferente do PT da Dilma, que não apoiou Tancredo contra Maluf. Serra foi o melhor deputado da constituinte de 88. Diferente do PT da Dilma, que se recusou a assinar a constituição. No Ministério do Planejamento, Serra ajudou no Plano Real. Diferente do PT da Dilma, que foi contra. Este é José Serra um homem que nunca se envolveu em escândalos e que sempre foi coerente. Sempre condenou o aborto e sempre defendeu a vida.

A tentativa, porém, mostrou-se tardia. Depois do primeiro ethos não consolidado, o de homem do povo, Serra foi perdendo os demais por assuntos que surgiram em outros espaços da mídia: uma ex-aluna da mulher de Serra afirmou que esta havia feito um aborto; Dilma, em debate da Rede Bandeirantes, chamou de corrupto ex-assessor de Serra. Enquanto as acusações iam ficando sem respostas, Serra via esvanecer suas imagens de homem de bem e de ficha limpa. Dilma estava fortalecida, amparada pelos que confiavam na Era Lula. Como se fora um rito de consagração, o último programa da candidata convocou os brasileiros para votar mais uma vez em Lula (agora representado por uma mulher), em Dilma e em si mesmos: Quatro anos atrás milhões de Lulas e Dilmas decidiram que o Brasil devia continuar mudando. Avançando, cada vez mais, na direção de um país socialmente mais justo, mais humano, grandioso. E assim mudaram para melhor seus destinos e o destino de milhões de irmãos, que finalmente saíram da pobreza. Milhares de jovens, que jamais teriam oportunidade na vida, ingressaram na universidade. Famílias, que sequer tinham um teto, ganharam um lar, e o Brasil finalmente virou um país de verdade. O país dos brasileiros. Cada um dos Lulas e Dilmas que foram às ruas naquele dia, há quatro anos, são responsáveis por um novo Brasil e tudo por causa de um simples gesto [aparecem imagens de urnas e de brasileiros indo votar]. Dilma presidente é o povo no poder de novo, para continuar transformando o Brasil.

O voto aparecia como um dever, forma de agradecer e louvar a Santíssima Trindade: Lula, Dilma e a Pátria. As representações da candidata, de Lula e da Pátria se fundem.

Negar Dilma seria negar uma nação melhor, de mais

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oportunidades, colocando todos os brasileiros sob o risco de voltar ao “país das sombras”, que remetia ao “tempo do FHC e do Serra”.

8. Comparando estratégias discursivas

No horário eleitoral, a disputa pelo poder é travada através das imagens que aparecem nos discursos, os quais podem ser de três tipos: parafrástico, polissêmico e polêmico (Orlandi, 2012). O primeiro está dentro de uma formação discursiva18 dominante, tentando reproduzir os sentidos desta. O segundo, por sua vez, aceita a formação discursiva dominante, mas tenta dela se deslocar e criar outros significados sobre o mundo social. Já o discurso polêmico é aquele que procura romper completamente com o discurso dominante, caso de Plínio Sampaio na eleição de 2010, que rejeitou a afirmação de que "O Brasil vai bem", expressa na formação discursiva da continuidade. De acordo com Carvalho, "o instituto da reeleição, em vigor a partir das eleições presidenciais de 1998, [...] introduziu uma variável nova na dinâmica eleitoral, favorecendo a tendência de continuidade política" (2013, p. 46). A continuidade, que costumava ter um sentido negativo, pois associada a clientelismo, ganha, no padrão midiático publicitário, outra conotação. Nesse sentido, Dilma foi mostrada como a herdeira do legado de Lula, a candidatagoverno, que discursava do lugar de fala do poder, de quem sabe o que diz por estar no comando. Desse modo, a estratégia da "herdeira" tinha significados que não eram apenas promessas. Ancorava-se em realizações de Lula, que afirmava que ela era ele. Ser herdeira do então presidente significava, segundo os programas do HGPE: a continuação dos programas sociais do governo Lula; ter a garantia do "voto certo" avalizada pelo presidente; a distância do desemprego. A construção dessa imagem perpassou as outras duas que o programa tentou criar: ela seria uma boa mãe porque estava ao lado de Lula; era uma mulher batalhadora como as mulheres brasileiras mas, ao mesmo tempo, não era qualquer uma: tinha estado ao

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Ver, neste artigo, o tópico O Horário Eleitoral e as imagens no discurso.

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lado de Lula. Levando adiante o sentido de que o Brasil estava bem, era nefasto tudo que se opusesse a Dilma e Lula. Serra, tentando aproximar-se da imagem bem aceita do petista, apresentouse como o "Zé" (homem do povo, melhor para seguir Lula) e competente, tentando, posteriormente, mobilizar as forças do bem (representadas pelos que estavam com ele) contra as forças do mal (simbolizadas no PT). A primeira e a última estratégia do psdebista foram arriscadas, posto que ambas esbarravam nas inexistentes condições sociais de produção desses discursos. Ele, conforme foi dito na descrição/explicação dos programas, falava de um lugar de fala que não era o seu e tentava se apresentar como "Salvador da Pátria" (Girardet, 1987), mobilizando o imaginário dos temores, no momento em que o país não passava por crise. As imagens, além de dependerem da aprovação de outrem, também esbarram no contexto de determinado momento, o que explica a opção de Serra de deixar vazio o lugar de fala da oposição, não se opondo ao discurso hegemônico (Pinto, 1989) que era respaldado pelas pesquisas de opinião. Assim, a disputa pelo poder não ocorreu frontalmente, visto que Serra adotou um discurso parafrástico e só, posteriormente, deslocou-se para o discurso polissêmico, tentando mostrar que o Brasil havia começado a melhorar desde 1988, com a nova constituição, e que o governo de FHC também fora responsável por algumas das vitórias vistas atualmente. Ou seja, além da dificuldade de ser um representante do PSDB quando o governo Lula tinha grande aprovação, Serra terminou criando, para si, outro obstáculo: tendo aceitado o discurso hegemônico, como depois se opor a este? Os governos Lula e FHC foram, inicialmente, usados como estratégia discursiva, por Dilma Rousseff, na disputa pelo executivo federal. O sentido foi o de potencializar a força do apoio de Lula, bom apenas não por ser ele, mas por significar uma oposição a FHC. Serra tentou se desvencilhar desse embate, trazendo a disputa para a imagem dele e a da Dilma. Ele, um homem do povo, com história que se assemelhava a de Lula pelas batalhas diárias pela vida; ela, uma mulher da qual pouco se sabia. A queda nas pesquisas somada ao abandono da primeira estratégia do candidato do PSDB (a palavra Zé foi abandonada) permite inferir que a estratégia 89

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não foi bem sucedida. Depois de tentar mobilizar outros ethé, para além do homem do povo, Serra acabou entrando na disputa colocada por Dilma: a Era Lula X a Era FHC. Na tentativa de apresentar pontos positivos do governo do PSDB e de amenizar as qualidades do governo Lula, na campanha já no segundo turno, Serra ajudou a mostrar que a disputa entre governos passados teve importância fundamental na campanha de 2010.

9. Conclusão

O horário eleitoral, veiculado em tempo em que a política vem deslocando seu locus de ação das ruas para as telas, é importante ferramenta para os candidatos se apresentarem aos eleitores e tentarem convencê-los, através de discursos audiovisuais. A política midiatizada recicla imaginários tradicionais, mostrando-os em nova roupagem. A aceitação ou não das imagens públicas que se tentam construir dependerá das visões políticas de cada eleitor. O “Zé” apresentado por Serra, no primeiro dia do horário eleitoral, não convenceu como o melhor para suceder Lula, o qual apresentou Dilma como sua candidata. Surgiu uma “mãe” para o Brasil, legitimada pelo criador da era dourada brasileira. Ao colocar-se fora do seu lugar de fala (candidato de oposição ao PT), Serra aparecia como usurpador de um Brasil que não era seu, que ele não havia ajudado a construir. Durante todo o primeiro turno, o candidato do PSDB tentou se aproximar de Lula e evitou falar de Fernando Henrique e no governo deste. Devido ao lugar de fala e as condições sociais de produção, um discurso não é totalmente livre, e a imagem de Serra era indissociável a do PSDB e da Era FHC, ficando claro que somente para Dilma era benéfica a estratégia de evocação dos governos passados do PT e do PSDB. Dilma explorou a ligação da imagem de Serra à de Fernando Henrique, enquanto aproximava seu ethos ao de Lula e da sua era, bem como ligava a própria imagem a um Brasil feliz. Aproximar-se de Lula, ao mesmo tempo em que relacionava ex-presidente do PSDB a candidato do mesmo

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partido, era um trunfo que Dilma tinha nas mãos para mobilizar para si imaginários positivos (a zelosa, a guerreira, a herdeira da era dourada). A disputa entre os Brasis de Serra e Dilma foi, assim, a disputa entre as eras FHC e Lula, que atuaram como sombras durante toda a campanha. No segundo turno, essa disputa com personagens “alheios a 2010” se intensificou. Vence o sentido de que o Brasil de Serra não era pensado para os brasileiros, posto que ele seria um privatista, enquanto o país de Dilma e Lula seria o Brasil da era de ouro, a “mãe gentil” disposta a lutar pelos seus filhos, que não fogem à luta e votariam no PT por votar na defesa dos seus. A eleição de 2010 atualizou a disputa travada por PT e PSDB há 16 anos. Apesar dos novos personagens, é possível afirmar que os imaginários em torno de Fernando Henrique e Lula foram os protagonistas.

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