Entrevista Inês Moreira por Luís Santiago Baptista, Revista ARQA #104, Dezembro 2012

June 13, 2017 | Autor: Ines Moreira | Categoría: Architecture, Curating, Visual Arts, Post-industrial landscapes
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ENTREVISTA INÊS MOREIRA por Luís Santiago Baptista Revista ARQA #104, Dezembro 2012

arqa: Como comissária da exposição “Edifícios & Vestígios: Projecto-Ensaio sobre Espaços Pós-industriais”, quais as intenções e objectivos da sua proposta curatorial para a Guimarães 2012? IM: Edifícios & Vestígios apresenta-se como um “projecto-ensaio” sobre o espaço pósindustrial. Inicialmente pensado como um projecto de exposição entre arte e arquitectura, que trabalharia a um nível mais conceptual ou metafórico a relação com os espaços das antigas indústrias locais, e outras europeias, ao aproximar-nos do terreno descobrimos diversas modos de conhecimento empírico, e outras tantas disciplinas que estão a procurar aprofundar modos de relação com o passado industrial. O projecto foi porém além da exposição, experimentando novas leituras e abordagens ao pós-industrial da arquitectura e a arte, à engenharia, arqueologia, história, sociologia, fotografia, cinema e som, como também à conservação e restauro. Se pretendíamos inicialmente apresentar trabalhos que “tocassem” o tema, ao longo dos dois anos e meio de investigação-produção, chegámos a um projecto-ensaio que produziu novo conhecimento em diversas áreas, e novos trabalhos artísticos. Importa referir que convidei a curadora polaca Aneta Szylak, que dirige um centro de arte num edifício industrial apropriado dentro do estaleiro naval de Gdansk, a trabalhar connosco na coconcepção da exposição, onde se mostram os resultados da pesquisa e os trabalhos artísticos. arqa: Tendo em conta o conceito teórico do “pós-industrial”, de que forma este parte e se desenvolve a partir do contexto específico do Vale do Ave? Qual o papel dos outros contextos internacionais, com especial incidência para Gdansk, convocados para a exposição? IM: O conceito pós-industrial serve a diversas abordagens aos futuros da indústria e da economia: a terciarização, o digital, a criatividade, são propostas que usam a mesma designação, propondo futuros. Nós situámo-nos entre o passado e o futuro. Nesse sentido, o convite à Aneta Szylak com a qual tenho colaborado e com quem cocomissariei em Gdansk, a par a Leire Vergara e do Arne Hendricks, a exposição Materiality. Pretendíamos com Gdansk e o graalho de curadoria lá desenvolvido, enunciar a dimensão política da industria, o trabalho, os trabalhadores e também a grande escala da industria de Estado. Há uma triangulação invisível na exposição que liga o projecto, as localizações e suas peculiaridades; a grande e media/pequena escala 1

da industria, que no caso de Gdansk era pública e de grande escala e em portugal privada e numa orgânica evolutiva; e as tensões entre a dimensão material e a dimensão imaterial da activação do espaço industrial, hoje presenets e centuadas pelo abandono e incompletude dos espaços pós industriais. arqa: A exposição cruza campos disciplinares muito diversos, da arte à arquitectura, da antropologia à geografia, da história à biografia, etc. Quais os motivos que levaram à opção alternativa pelo modelo de “projecto-ensaio”? IM: Existe um vasto edificado abandonado/devoluto e uma enorme potencialidade nos achados, objectos, remanescentes das indústrias, com o qual não se sabe lidar. O projecto-ensaio reside aí, na tentativa de leitura, articulação, experimentação de respostas à pergunta que colocámos: como ler, registar e transformar espaços pósindustriais? O projeto tem uma base epistemológica e outra de acção directa; explora a leitura interdisciplinar da arquitetura e edificado industrial através das perspetivas da cultura visual, da arte e da imagem cinemática. As ferramentas de pesquisa da história, da antropologia ou da arqueologia (como o trabalho de campo e a documentação de vestígios) foram fundamentais na relação com os esdifícios eos vestígios. Existe uma real urgência em pensar novas propostas para o pós-industrial, e em materializá-las, e foi no entrosamento que a dimensão real, material, concreta surgiu. Para diversos actores que viemos a conhecer no terreno o projecto permitiu explorar áreas mais especulativas, menos convencionais da sua produção corrente. E na verdade descobri que estamos a cmeçar a trabalhar num modelo de investigação-produção em que os diversos investigadores que convidei puderam concretizar projectos de investigação, e em que os artistas foram convidados a investigar e apresentar os seus próprios métodos. É um “projecto-ensaio” que experimenta e ensaia abordagens, que se materializam em modalidades de “investigação-produção”. A exposição apresenta as diversas metodologias e propostas contadas na 1ª pessoa, muitas vezes antagónicas entre si, mas reflectindo exactamente od diversos futuros possíveis do pós-industrial. arqa: Existe na exposição uma contaminação de campos considerados opostos, o da ciência e o da arte, o da técnica e o da cultura, o da documentação e o da ficção, etc. O que lhe interessa nesses campos específicos? Como definiria esse espaço entre estas lógicas diferenciadas? IM: Não acredito na oposição dos campos _  _ nem na total orquestração de um repertório de respostas/soluções dadas por um curador. Ao seguirmos um par de referentes e um conceito - os edifícios e vestígios pós-industriais e o que fazer com eles – descobrimos que há uma babel de conhecimento, de leituras poéticas e metafóricas, 2

de modos de resolução de problemas técnicos, de visões de potenciais futuros, ou de modos de arquivar o passado. E especialmente de expectativas que hoje as pessoas e instituições têm e que estão por articular e por relacionar: a memória colectiva local, a estruturação do território e da paisagem, a poluição/contaminação, as estórias de azares e as histórias de vida, todas surgem e pululam as conversas. Nesse sentido, E&V é um diálogo polifónico: as curadoras falam com pessoas locais e com artistas, cientistas, historiadores, trabalhadores, e estes por sua vez trazem referências e outros autores que juntos criaram uma rede de questões, de propostas e de parcerias institucionais. Foi muito interessante por exemplo a colaboração com o Museu da FEUP, pois o mapeamento de soluções e materializações técnicas – ex: remediação de solos, ou reconstrução de uma chaminé com técnica de tijolo – exigiram uma adequação da linguagem do projecto, e o repensar da selecção de artistas, de modo a que o diálogo fosse realmente entre os diversos participantes. Ou também o modo como o colectivo britânico The Decorators criou o nosso espaço de conferência. em colaboração com uma cesteira, as costureiras e a cozinha da tasca local. Numa lógica de “edição curatorial” os discursos precisaram ser modelados (tal como no som) para que se possam ouvir asdiversas vozes. Dos diversos comentários ao projecto, retive um que é inspirador pelo seu hibridsmo e incompletude: “uma tarefa ciclópica”, que enuncia um observador “fora da lei” com um olhar atravessado, herdeiro dos construtores e ferreiros. Se lhe acrescentarmos o modelo dialógico por detrás temos uma figuração tão híbrida quanto a investigação. arqa: A exposição está dominada por uma atmosfera diríamos que romântica, acentuadamente nostálgica e melancólica, convocando inevitavelmente sentimentos de perda, destruição e ausência. É a sua exposição concebida a partir do negativo? É a negatividade a condição dos espaços pós-industriais? IM: Esta leitura é uma possivel se olharmos para os vestígios e a experiência imersiva num espaço cru e na penumbra… Porém uma visão progressista da indústria, ou mesmo da arquitectura, seria hoje um modo de ficção. há uma camada romântica ironizada na roulote negra, a Máquina Rmântica do Pedro Bandeira, mas há também a brutalidade da demolição no filme de Michal Szlaga ou nos filmes de Konrad Pustola sobre as minas portuguesas, ou ainda no improviso com que os skaters são “achados” por Tiago Hespanha e Frederico Lobo. Mas sei que nos antípodas desta leitura estão o projecto de arquitectura do Matadero, realizado por Artur Franco e vencedor do Prémio FAD de Arquitectura 2012; o Can Framis que é um novo Museu em Barcelona; ainda a SNA Europa, uma fábrica em Vila do conde gerida pelo modelo LEAN que é um caso de sucesso de gestão e o filme sobre a sua produção realizado por Rui Manuel Vieira. E depois temos os novos materiais de construção com resíduos de centrais eléctrica 3

(FEUP), ou as técnicas de conservação e restauro que são inovadoras (Lab C&R do IPTomar) ou o regresso às minas e à industria da extracção preconizada pelo governos português como solução para a economia nacional. Mas há ainda um outro layer bastante optimista! E nós estamos optimistas quanto aos futuros e potencial do pós-industrial (não do industrial no modelo dos anos 60). Se pensarmos que diversas destas investigações surgiram numa pequena escala, pequenas experiências que fazem colecção e podem criar Museu (Confiança), criaram evento (The decorators) ou criaram espectáculo (Jonathan Saldanha) e, podendo ou não prosseguir, foram transformadoras das vidas dos participantes. arqa: Poder-se-ia dizer que a exposição se centra na questão da memória, da sua simultânea presença e ausência. Algo já patente por exemplo no texto “terrain vague” de Ignasi de Solà-Morales ou no documentário Ruínas de Manuel Mozos. A memória de um mundo industrial em desaparecimento, a memória dos seus vestígios materiais, a memória da sua actividade ausente, etc. Qual a relação estrutural entre espaço e memória em Edifício & Vestígios? IM: Ambas referências são certeiras, fui aluna de Solá-Morales em 99 e nas suas aulas os espaços expectantes foram amplamente debatidos como manifestações do urbano, do artificial, da desaparição da natureza - os espaços expectantes são manifestações espaciais da cultura contemporânea. Porém hoje leio esse texto com distância, os espaços já não estão tão expectantes e com a queda do imobiliário, a desaparecição do investimento, estes espaços estão numa condição menos temporária, já não esperam... E o filme do Manuel Mozos é uma referência forte na relação entre edificado e documento tendo a voz como guia espacial. Em E&V há duas dimensões muito fortes que são exploradas: a materialidade e o imaterial. E sim, procurámos espaços que falam, que ressoam e que se contam. A área de formação da Aneta é a teoria da literatura, a minha a arquitectura. A Aneta tem uma tese de Doutoramento sobre Palimpsestos e a polifonia segundo Baktin, e foi nessa ligação que vi o potencial de uma colaboração: a materialidade e o lado não-representacional da arquitectura. Em E&V interessam-se presenças e ausências do espaço, e também as histórias imaterias contadas que acivam o espaço. Na minha investigação formulei um argumento que posso avançar: o corredor habitado produz um espaço a partir da linguagem, o que difere dos mitos fundacionais da arquitetura mencionados nas extensas bibliografias de arquitetura e das suas noções do abrigo como um lugar de proteção física. Há uma entrada oblíqua para os espaços funcionais e produtivos, testemunhando o nascimento de algo diferente: performatividade e afetividade como os constituintes menores do espaço. Trata-se de uma passagem das noções de arquitetura e construção para noções de um espaço produzido pela fala. 4

arqa: Não sendo uma exposição estritamente de arquitectura, pode-se dizer que ela pode ser fundamental para pensar espacial e arquitectonicamente sobre o território pós-industrial. Aparte de duas obras de arquitectura apresentadas, a exposição esquiva-se a propor respostas através do projecto arquitectónico. O que determina esse distanciamento ao campo disciplinar da arquitectura? Existe um conflito estrutural entre o projecto arquitectónico e a memória edificada industrial? IM: A exposição é sobre “espaços” e parte de uma leitura cultural e tecno-científica (e não especificamente da arquitectura). Como referi, inclui casos de arquitectura construídas nos últimos anos, modos de reconversão do espaço através da gestão visual e de cor, mas também o levantamento de dois edifícios demolidos, o trabalho de três fotógrafos, de dois realizadores de cinema, a criação de cinco projectos de engenharia, abrindo uma grande diversidade de disciplinas. Penso que se coloca a questão do arco temporal, pois todos os Edifícios presentes na exposição foram construídos, seja no século XIX, seja ao longo do século XX seja no ano passado. Estamos a relacionar-nos com eles como existentes, demolidos, reconstruídos, desmantelados, reciclados, registados, arquivados explorando as diversas vidas e pósvidas que um edifício tem. Temos projecto, modelo, blueprint, amostras, documentários, uma ampla amostragem dos formatos e das representações da construção arquitectónica. Mas, o que está implícito na questão, é a encomenda de projectos de arquitectura para a indústria. A arquitectura industrial portuguesa na região Norte (o litoral e Lisboa nisto diferem) não é uma arquitectura dita de autor, mas um edificado que cresce com as necessidades de albergar maquinaria. Há excepções, mas dominam os casos, muito interessantes, em que na aquisição de parque de máquinas para a produção (textil) a fábricas do estrangeiro, ofereciam já o projecto da fábrica para albergar as máquinas, que era uma carapaça à medida da distribuição no espaço. Não havia arquitectura mas construção. Hoje, com o desmantelamento das industrias e o preço dos metais, as máquinas são vendidas e estas carapaças são demolidas e vendidas à sucata. Não se reserva o espaço, apenas se recicla a sua materialidade. É nesta crueza em que o espaço pós-industrial se instancia, como nas gigantescas gruas que são demolidas em Gdansk, ou na análise minuciosa de sucata que a FEUP desenvolveu para este projecto, que creio que estamos a estender, ou a expandir o território de leitura da arquitectura. arqa: Existe uma grande preocupação com a estratégia curatorial desenvolvida, convidando artistas a participar criativamente com perspectivas sobre o tema, convocando a memória e os vestígios da presença industrial no contexto em volta de 5

Guimarães, envolvendo instituições museológicas e de ensino que fornecem vários tipos de informação e material, etc. Como se estruturam e compatibilizam estas participações diversas na abordagem curatorial? IM: Poderia a curadoria do espaço não incluir os objetos, arquitetura, design industrial, história local, antropologia ou engenharia dos materiais e de minas, excluindo estas redes de pesquisa devido aos limites impostos pela literatura? E o que concluir em relação aos contributos pessoais, empíricos e afetivos? Para que “estudos de caso”, autores e contribuições científicas devemos olhar? Há uma autora da área dos estudos culturais da tecno-ciencia cuja leitura me vem acompanhando desde 2001, a Donna Haraway, que é uma extraordinária analista e epistemóloga. Os diálogos múltiplos que Haraway estabelece com disciplinas e autores, recorrendo a um modo de investigação situacional e não neutral, relacionam o conhecimento com os textos, objetos e pessoas de diferentes origens. O escritor (ou investigador ou curador) é uma modesta testemunha situada no espaço e no tempo que está subjetivamente a difratar o conhecimento. Ao situar o leitor e o escritor numa afiliação literária e numa relação afetiva com os objetos e o texto, favorece-se um esbater das fronteiras rígidas existentes entre as diferentes disciplinas que geralmente marcam onde termina uma determina área de investigação e onde começa a afetividade. As literacias múltiplas propostas por Haraway incluem leituras adquiridas ao longo de uma educação especializada e outros modos de conhecimento menos disciplinar. Juntamente com ferramentas mais convencionais e referências científicas baseadas nas competências, a ideia de cuidado, proteção e afeto no que diz respeito à própria complexidade são modos de nos relacionarmos com o conhecimento que deviam ter um papel destacado como modos de conhecer os objetos de estudo. Este modelo epistemológico possibilita-nos uma abordagem ao espaço pós-industrial, à materialidade e aos seus ciclos. arqa: O edifício da Fábrica Asa, no qual se apresenta a exposição, é em si mesmo parte da exposição, facto que se manifesta claramente com a intervenção artística de Paulo Mendes. Qual o papel do espaço expositivo no projecto curatorial? IM: Durante o processo de investigação realizado para Edifícios & Vestígios deparei-me com noções gastas de relações de continente/conteúdo, bem como com transferências de espaço expositivo/objeto exposto. As presenças e ausências nos espaços existentes e as suas relações com as histórias locais influenciaram a narrativa curatorial. Edifícios & Vestígios vai além de uma forma técnica, tectónica ou estritamente material de compreensão/curadoria do espaço e dos edifícios, contornado a relação de neutralização que usualmente se estabelece entre a curadoria e o espaço expositivo. As 6

linhas principais são simples: se os espaços pós-industriais possuem uma carga (material e semiótica), expor (n)esses espaços e ocupar esses espaços, é expor essa “carga”. As principais questões ultrapassam aspetos de design, construção ou técnica e levaramnso ao cerne do conhecimento curatorial: como conjugar invólucros arquitetónicos (industriais) e o objeto/artefacto exposto? Como resolver as dicotomias espaço/coleção, continente/conteúdo, ou narrativa/interpretação? Isto levanta uma questão mais ampla, que apontou o que me parece ser uma área fértil de investigação neste projecto e em projectos futuros: que ferramentas e domínios de conhecimento devem ser convidados, para que se possam desenvolver abordagens abrangentes ao pósindustrial? Os espaços pós-industriais exigem que se estabeleçam diálogos com as histórias antigas e com as mais recentes, com conceitos, espaços continentes e objetos encontrados. Numa perspectiva mais específica, a exposição permitiu materializar um conceito espacial que venho explorando, os brown rooms/grey halls no seu diálogo de contentor/conteúdo, isto é, o contentor pós-industrial e os conteúdos de reflexão numa continuidade entre edifício-objecto-exposição. Penso que neste projecto damos um passo importante dentro da curadoria do espaço.

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