Entrevista Daniel Dennet_Revista Filosofia_54_2011

June 30, 2017 | Autor: Bruno Bartaquini | Categoría: Daniel Dennett, Filosofia da Mente, Filosofia da Ciência, Filosofia
Share Embed


Descripción

Entrevista

Entre a Ciência e a Filosofia Estudioso da Filosofia da Mente, Daniel Dennett fala da linha tênue e necessária entre Ciência e Filosofia, sobre a possibilidade de o homem criar robôs conscientes e da diminuição de religiosos no mundo Por Bruno Tripode Bartaquini

É difícil saber o que é mais prazeroso para o filósofo Daniel Dennett: se explicar como funciona o cérebro ou se discursar sobre o direito dos ateus saírem do armário e a consequente ameaça e mentiras das religiões para a sociedade. Nos dois casos, seus olhos brilham enquanto profere palavras há muito esquecidas e mesmo preteridas pelos filósofos pós-modernos como “verdade”, “bom”, “certo” ou “errado”. Considerado um funcionalista extremo no campo da Filosofia da Mente (refere-se aos seres humanos como “sistemas intencionais”), está exposto a uma enxurrada de críticas por parte de seus colegas que o veem como entusiasta excessivo dos laboratórios. Ainda assim, ou por causa disso, é um dos mais inovadores e prolíficos estudiosos da mente humana, utilizando-se de tiradas bem-humoradas como “um ácido ribonucleico com atitude” para explicar o que é um vírus, ou da imagem do “pandemônio cerebral” formado em nossa cabeça quando muitos circuitos mentais disputam o privilégio de resolver os problemas cognitivos. Do humor simples, seus conceitos-chave podem chegar a uma sofisticação erudita, como quando, por exemplo, usa o termo “máquina joyceana” para explicar a consciência como o resultado de processos cerebrais paralelos que criam um fluxo de pensamento em série parecido ao da linha narrativa de Ulisses, obra-prima do escritor irlandês James Joyce. No Brasil para palestrar no evento Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre, o autor de Quebrando o encanto: a religião como fenômeno natural (Globo, 2006), A perigosa ideia de Darwin (Rocco, 1998) e Tipo de mentes: Rumo a uma compreensão da Consciência (Rocco, 1997) falou para Filosofia Ciência & Vida sobre suas teorias, inteligência artificial, ateísmo e até opinou sobre a política brasileira.

FILOSOFIA • Para você, sendo um pensador limítrofe, onde termina a Ciência e começa a Filosofia? Quais são as limitações da Ciência e da Filosofia quando falamos sobre a mente? Daniel Dennett • Não acho que exista uma boa linha divisória e não penso que deveria haver. Creio que não se pode fazer Ciência sem ter pressupostos filosóficos no que está fazendo. Pode-se não examinar cuidadosamente, pode-se apenas esperar estar com sorte, mas não se pode fazer Ciência sem se comprometer com suposições científicas importantes e de alguma forma controversas. Portanto, os cientistas mais reflexivos irão inevitavelmente cruzar a linha e fazer Filosofia. Nos últimos anos, cada vez mais eles têm se disposto a fazer isso e em alguns casos têm sido até entusiastas em se aventurar nas questões filosóficas. Alguns são muito bons. Outros, muito ruins. Acho que, no momento, há muitos neurocientistas bem ruins pensando em, por exemplo, livrearbítrio e responsabilidade. Na minha visão, é uma tarefa primordial para mim e outros filósofos mostrar a esses neurocientistas que alguns de seus pensamentos sobre estes assuntos são bem confusos.

Há muitos filósofos que pensam que podem se intrometer em uma discussão científica e fazer contribuições quando, na verdade, não podem FILOSOFIA • E o contrário? Como um filósofo pode pensar o campo científico? Dennett • Claro que é difícil. Deve-se trabalhar duro e fazer a lição de casa e entender como a boa Ciência funciona de fato. Há muitos filósofos que pensam que podem se intrometer em uma discussão científica e fazer contribuições quando, na verdade, não podem, porque não aprenderam o suficiente da boa Ciência. E eu posso ser culpado disso algumas vezes, mas pelo menos entendo que esta é uma responsabilidade, aprender a Ciência e entendê-la. FILOSOFIA • Mesmo assim você é um grande entusiasta da Ciência. O que os outros filósofos pensam sobre isso? Você já foi chamado de “darwinista fundamentalista”... Dennett • Acho que “darwinista fundamentalista” é um termo muito inteligente, mas injusto. Foi criado por Steven Jay Gould, que tinha boas razões para estar bravo comigo porque eu estava expondo seus erros e ele tentou diminuir minha influência e reputação. Então, ele contraatacou. Não há um significado real nesse termo. E tenho me disposto a responder na direção contrária. FILOSOFIA • Você poderia explicar rapidamente o que são a “máquina joyceana” e a “instância intencional”? Dennett • Estamos acostumados com a ideia de que se pode usar um computador em série, como um laptop, para simular uma máquina paralela. Minha ideia é que a máquina joyceana é uma arquitetura serial simulada em uma máquina paralela. Nossos cérebros são profundamente paralelos. É criado dentro de nós um tipo de computador serial, o qual pode de fato pensar apenas em uma coisa de cada vez e usa muitos de seus recursos criando essa máquina joyceana, que é uma corrente de consciência não tão ampla e contínua.

Talvez o melhor jeito de entender a máquina joyceana é que é fácil de programar um laptop, uma máquina em série, porque você pensa, “primeiro ela faz isso, depois aquilo, e então deve fazer isso e aquilo”, e você está pensando em passos, um de cada vez, acontecendo em uma sequência. Por outro lado, é muito, muito difícil de programar uma máquina paralela, porque tudo acontece ao mesmo tempo em muitos canais, e não sabemos como pensar deste modo. Quando percebemos que não sabemos como pensar paralelamente e que, introspectivamente, temos a percepção de uma corrente de conteúdo, podemos ver que nosso modo de pensar normal humano é em série. A máquina joy- ceana é essa mente de funcionamento serial criada em um cérebro de funcionamento paralelo. FILOSOFIA • E a perspectiva intencional? Dennett • A perspectiva intencional é simplesmente um hábito instintivo que temos sempre que vemos algo complicado no mundo, que se mova de um modo que não entendemos. Então pensamos nesse “agente” como algo ou alguém que tem intenções, que tem crenças e desejos. “O que ele quer, o que está tentando fazer, o que ele sabe?” e , é claro, tipicamente quando fazemos isso estamos respondendo a estas questões porque de fato há um agente. Então, a perspectiva intencional é o hábito, a estratégia de pensar nas coisas como agentes racionais. FILOSOFIA • Como se houvesse uma alma em algum lugar... Dennett • Se você quiser explicar um termostato para uma criança, seria assim: “Você diz a temperatura que quer manter e ele fica checando regularmente se a temperatura está certa. Se não está, ele liga o aquecedor e, se está muito quente, ele sabe que tem que ligar o arcondicionado. Quando chega à temperatura desejada, ele desliga a ventilação.” Isso é explicar um termostato a partir da perspectiva intencional. Isso é um tanto complexo para um termostato, mas é isso que você tem de fazer se quiser explicar como um computador ou um animal funcionam. FILOSOFIA • E isso é o que você chama de ilusão útil? Dennett • Bem, a questão é se é realmente ilusório. É uma supersimplificação, mas uma simplificação de uma mensagem verdadeira. E é tão útil! Ela nos permite fazer antecipações confiáveis das atividades dos sistemas intencionais. FILOSOFIA • Mas quais são os critérios com que construímos esse outro “eu”, o outro “agente” que imaginamos? Dennett • Muito simples. Primeiro pressupomos, a não ser que tenhamos aprendido o contrário, que o agente vê e ouve. E que a audição, a visão e o toque dão ao agente informações verdadeiras sobre o mundo. Então, se eu disser “oi” eu espero que o agente saiba que estou balançando minha mão... FILOSOFIA • E sobre a Biogenética? Podemos mudar nossas mentes?

Dennett • Sim. Mas se podemos fazê-lo de uma forma guiada e controlada é outra questão. Temos modificado nosso cérebro por milhares de anos. Use heroína, fume um baseado, coma alguns cogumelos e você mudará seu cérebro. O segredo é mudar nossos cérebros na direção que queremos. Hoje temos inúmeras novas ferramentas e muita compreensão, mas um dos frutos desse novo entendimento é que mudar nosso cérebro será muito mais difícil do que pensávamos. Costumávamos supor que se tivéssemos um modelo realmente bom dos neurônios e como eles se conectam e interagem teríamos resolvido o problema. Acontece que os astrócitos, que também são células cerebrais, não são apenas para empacotar, não são apenas uns carregadorezinhos, eles também fazem cálculos! E existem dez vezes mais astrócitos no seu cérebro do que neurônios. Portanto, o cérebro é cem vezes mais complicado do que imaginávamos.

Não teremos robôs conscientes no sentido estrito simplesmente porque, apesar de serem possíveis, eles são muito caros e trabalhosos de se fazer Mas isso não significa que não se pode fazer progressos. Tenho um amigo bioquímico que criou um esquema para todas as drogas neuroativas possíveis. Ele é um designer de drogas baseado no uso de neuromoduladores como dopamina e serotonina. E acontece que existem centenas de neurorreceptores nos neurônios que podem receber essas drogas, e essa química é razoavelmente bem compreendida. Portanto, hoje em dia é possível imaginar e sintetizar drogas nunca antes vistas. E ele acha que pode prever os efeitos dessas drogas com antecipação. Ele e um pequeno grupo de voluntários estão sintetizando e tomando as drogas uma por vez, sob circunstâncias cuidadosamente controladas. Essa não é uma pesquisa totalmente fundamentada, mas pode ser muito frutífera... ou muito perigosa. FILOSOFIA • Recentemente, na campanha para presidente do Brasil, a candidata líder e hoje presidente eleita assinou uma carta comprometendo-se a não mudar as leis que afetariam a instituição da família. Basicamente, isso foi feito para manter o casamento entre homossexuais na ilegalidade e o aborto como crime. Quão problemático para o desenvolvimento do País você acha que é esse acontecimento específico? Principalmente porque na sua teoria, os grupos religiosos, a quem a mensagem foi direcionada, têm certas crenças e estão programados para defendê-las, defender seus memes. Dennett • Bem, é claro que é o direito deles defenderem suas crenças. Eles só não têm direito de defendê-las com falsidade perversa... Na verdade têm, mas então eu tenho o direito de denunciar o que estão fazendo. Liberdade de expressão é deixá-los dizer o que querem, mas me deixar denunciar se estão mentindo. FILOSOFIA • Mas isso está servindo de barganha de votos e apoio político. Isso é certo?

Dennett • Bem, eu fiquei sabendo disso e sinto muito. Não consigo pensar em nada assim nos EUA, pois não há barganhas explícitas, mas certamente há barganhas implícitas. No geral, os políticos americanos aprenderam, digo isso com pesar, que simplesmente não se pode dizer que você vai aumentar os impostos. Todos sabem que você vai aumentar os impostos, os dois lados sabem que os impostos têm de subir, mas ambos os lados estão torcendo para que a outra pessoa o admita, porque aí muitos idiotas vão deixar de votar no outro candidato só porque ele disse a verdade, mesmo que os impostos realmente tenham de subir! Então, isso cria hipocrisia sistemática, o que é muito ruim. Mas os políticos, infelizmente, estão em um estado em que têm medo de dizer qualquer coisa que as pessoas não queiram ouvir. E eles têm razão em ter medo, porque se o fizerem, as pessoas não votarão neles. Mas isso significa que os políticos não estão ensinando, não estão tentando mudar as mentes das pessoas, estão apenas tentando descobrir o que as pessoas estão pensando e então dizer aquilo para ganhar votos.

De todas as espécies que existiram no planeta, mais de 99% estão extintas. Portanto, o destino normal das espécies é ser extinta FILOSOFIA • Atualmente, a Ciência tem avançado a passos largos em campos anteriormente reservados à Religião ou à Filosofia. Mesmo assim, o número de pessoas que têm alguma crença religiosa continua crescendo no mundo todo. Como as instituições religiosas agregam tantas pessoas num mundo cada vez mais cientificizado? Dennett • Acho que a Ciência é vista por muitas pessoas como uma ameaça quando elas não têm educação científica e veem que cientistas têm poderes tremendos que lhes faltam. Portanto, qualquer movimento que prometa protegê-los da Ciência e que dê a eles um abrigo natural contra as intrusões da Ciência dentro de suas vidas é algo a que eles são atraídos. FILOSOFIA • Mas qual é a ameaça, já que o número de pessoas religiosas continua crescendo? Dennett • Não sei qual é a situação do Brasil, mas sei que, no geral, a Religião não está crescendo. Isso é um mito comum na imprensa. O grupo que mais cresce no mundo todo é de não religiosos: cresce mais rápido do que cristianismo ou islã. No Brasil, provavelmente, assim como em toda a América Latina, o protestantismo evangélico está retirando uma grande porção do catolicismo romano. Logo, há menos católicos e mais protestantes, mas não mais pessoas religiosas. Acredito que a razão dessa ilusão de crescimento é que, no século XXI, um fenômeno grandioso se apresenta a todas as religiões, que por milhares de anos nunca tiveram que enfrentar: a liberdade de informação trazida pelos telefones celulares, rádio, Internet etc. Portanto, as instituições religiosas não podem mais isolar seus membros do grande mundo da informação, das alternativas. E isso está criando um grande buraco nas religiões, que estão desesperadamente buscando remédios para essa perda. Nos EUA, uma pesquisa recente

financiada pelos evangélicos concluiu que, em vinte anos, apenas 4 % das crianças que estão sendo doutrinadas hoje serão o que eles chamam de “Bible Believing Christians” (cristãos que interpretam a Bíblia de forma literal). Eles estão tentando de tudo para frear esse abandono e é por isso que ouvimos tanto barulho. FILOSOFIA • Finalmente, onde está a inteligência ou senso darwinista em uma espécie que constrói sua própria extinção? Dennett • Bem, todas as espécies fizeram isso, é um traço normal. Deixe-me lembrá-lo que de todas as espécies que existiram no planeta, mais de 99% estão extintas. Portanto, o destino normal das espécies é ser extinta. FILOSOFIA • Mas elas cavaram a própria cova como nós? Dennett • Bem, elas não impediram sua própria extinção. E muitas delas possuíam traços que as levaram a acelerar o fim e, é claro, isso pode ser uma verdade para nossa espécie. Mas é também possível que tenhamos tamanho entendimento das nossas circunstâncias que possuímos boas chances de anteciparmos os grandes problemas e evitá-los. Nós já fizemos isso muitas vezes. Temos o poder tanto de nos extinguir quanto de prevenir nossa extinção. É impossível saber qual deles vencerá, mas devemos entender que temos essa capacidade.

FILOSOFIA • Portanto, é essencialmente uma reflexão de nós mesmos, sobre como nos sentimos... Dennett • Não creio que seja a forma certa de olhar para isso. De fato, é verdade que pressupomos que ele pode ver o que vemos e ouvir o que ouvimos. Mas assumimos que ele pode ver o que eu vejo desde que tenha bons olhos e seja inteligente. É por isso que, quando encontramos uma pessoa cega e não sabemos dessa condição, cometemos erros. É tão comum, estamos tão acostumados a ver que assumimos que eles podem ver quando não podem! Apontamos numa direção e dizemos “por ali”. Isso porque interpretamos automaticamente esse sistema intencional (a pessoa cega) como tendo visão. É difícil superar, é um hábito e esses hábitos são até em certo grau instintuais, eles não são sequer aprendidos, nascemos com eles.

FILOSOFIA • Os modelos pandemônio cerebral (nos quais muitos módulos cerebrais disputam entre si quais cumprirão as tarefas requeridas pela mente) são muito interessantes, mas quem decide quem fará o trabalho e por quê? E como isso acontece? Dennett • A primeira coisa que tem de ser entendida é que não existe um escolhedor, aquele que escolhe um vencedor. O vencedor ganha apenas sobrepujando os outros. FILOSOFIA • Mas como isto ocorre? Dennett • Estou no momento trabalhando nessa questão, modelos de competição intracraniana, e não há dúvidas de que o que está ocorrendo é que neurônios individuais estão de fato em competição por recursos. E eles formam times, formam coalizões e ajudam uns aos outros na competição. E isso fica cada vez mais complexo. FILOSOFIA • Então é como uma grande guerra. Mas e a cooperação entre os neurônios? Dennett • É atingível. E essa é a grande coisa. Um alto grau de competição é atingível por estes sistemas em guerra. FILOSOFIA • Quanto ao novo ser inteligente? De que campo virá? Da Robótica ou da Biogenética? Dennett • Não acho que teremos robôs conscientes no sentido estrito simplesmente porque, apesar de serem possíveis, eles são muito caros e trabalhosos de se fazer. Teremos cada vez mais robôs competentes que compreendem mais e mais e em algum momento poderemos discutir se eles são conscientes, mas isso não é uma discussão que valha a pena. Não há nada que um humano faz que um robô não possa fazer, em princípio, mas existem muitas coisas que eles não vão fazer somente porque é muito trabalhoso e difícil pôr robôs para cumprirem essas tarefas enquanto há tantas pessoas por aí aptas a fazer o serviço. Tivemos o Projeto Manhattan que construiu a bomba atômica, tivemos a Nasa e fomos à Lua. O desafio tecnológico de se fazer um robô consciente seria mil vezes mais caro e mais difícil do que ambos. Não irá acontecer, o que não quer dizer que não seja possível.

Lihat lebih banyak...

Comentarios

Copyright © 2017 DATOSPDF Inc.