ENTREVISTA COM STEFAN GRUNDMANN (Interview with Stefan Grundmann) - Otavio Luiz Rodrigues Jr, Karina Nunes-Fritz e Sergio Rodas

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ENTREVISTA COM STEFAN GRUNDMANN INTERVIEW WITH STEFAN GRUNDMANN OTAVIO LUIZ RODRIGUES JUNIOR Professor Doutor do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo São Francisco – Universidade de São Paulo. [email protected]

KARINA NUNES-FRITZ Doutoranda em Direito Privado na Humboldt Universität zu Berlin. LL.M. pela Universidade de Erlangen-Nürnberg. Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Assistente do Prof. Dr. Dr. Stefan Grundmann (Humboldt Universität zu Berlin). Professora do LL.M da FGV Rio. Advogada. [email protected]

SÉRGIO RODAS Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. [email protected]

Revista de Direito Civil Contemporâneo – Sua formação envolveu Direito e História da Arte. Como se deu essa escolha e qual o papel da Arte em sua visão de mundo, como jurista?1 Stefan Grundmann – Para mim, a escolha desde o início foi entre Direito e Filosofia. Desde os tempos de colégio queria estudar Filosofia, pois gostava muito das questões da sociedade e isso é meu interesse principal. Interesso-me mais pela Ética da Filosofia, mas também pelo modo de pensamento da sociedade. Por isso, decidi estudar Filosofia e Direito. Mas depois de um ano tive um professor muito simpático e carismático, que foi o Erik Jayme, que me ensinou Direito Privado, mas também uma certa visão da vida. Não queria abandonar completa-

1. Entrevista concedida na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em 12 de novembro de 2015, por ocasião do II Ciclo de Estudos de Direito Privado Contemporâneo, promovido pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA). O texto foi revisto pelo entrevistado. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; NUNES-FRITZ, Karina; RODAS, Sérgio. Entrevista com Stefan Grundmann. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 9. ano 3. p. 337-350. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2016.

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mente a Filosofia, mas naquele momento gostei tanto do Direito, dos efeitos que ele produz na sociedade, que isso acabou prevalecendo sobre a Filosofia. Um dia, Jayme me disse que naquela noite havia um trem para Veneza e que eu deveria ir até lá ver três quadros de Ticiano: Assunta, Madona de Pesaro e Pietà. E isso foi surpreendente para mim! Ali nasceu o amor pelas imagens, pela arquitetura e escultura. Para mim, o vínculo entre ambas as áreas permaneceu sempre um pouco no mundo dos pensamentos. E é na Filosofia pós-moderna onde diria que esse vínculo mais se revela. Eu estudei muito Filosofia pós-moderna, onde há essa ideia-chave de que um sistema seja fragmentado e não perfeito. Tem muito potencial de inovação e mudança em tudo isso. Então, a Filosofia do não perfeitamente sistemático foi muito importante para mim no Direito, sobretudo porque faço muito Direito transnacional europeu. Um pouco mais tarde, escrevi um livro sobre o moderno e o pós-moderno na arquitetura e vejo que também meu gosto estético tem muito a ver com essa visão de descontinuidade, de infinito, por assim dizer. Isso vejo como uma coisa importante em ambas as matérias, embora a Arte seja uma parte da vida que não tem que ver com o Direito, pois é prazer e entusiasmo. RDCC – Diante de seu interesse por História da Arte e por Filosofia, como o senhor se coloca no quadro das escolas jurídicas contemporâneas? Stefan Grundmann – Essa pergunta toca verdadeiramente as bases, mas mesmo as bases mudam com o tempo. Se fosse dar a resposta hoje, essa seria diferente que no início. No início, escrevi um artigo que considero um dos mais importantes, que se chama “pluralismo de métodos” como perspectiva e desafio. Neste artigo, falo da relação do Direito num ambiente de disciplinas da sociedade. E, para mim, isso tem a ver também com a Filosofia pós-moderna, em aceitar o pluralismo do mundo moderno. Por isso, diria que talvez a base teórica mais importante para mim agora é a hermenêutica. Hans-Georg Gadamer era filósofo e em sua teoria de comunicação a ideia é que o conteúdo não é objetivamente fixado, nem o conteúdo da mensagem feita pelo emitente, nem o conteúdo que chega ao receptor e que esse conteúdo muda também na relação entre ambos, de modo que depende um pouco de ambos. Então, a comunicação é mais um processo, não um conteúdo fixado. E, para mim, um dos grandes juristas, Joseph Esser, formulou uma ideia paralela acerca da comunicação entre a norma e os fatos, falando do ciclo hermenêutico. E penso que o ciclo hermenêutico não é só entre fatos e normas, mas, como ele explica, trata-se de um ciclo que estabelece a ponte entre ontem e hoje, realidade e norma etc. Dessa forma, creio que seja também um método para falar de várias disciplinas, porque uma disciplina, vista sob a perspectiva de outra disciplina, muda de conteúdo. Então, essa visão da verdade jurídica – se posso dizer isso – como processo entre tantos componentes importantes para chegar a alguma coisa aceitável, acho que seja a coisa mais importante para mim. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; NUNES-FRITZ, Karina; RODAS, Sérgio. Entrevista com Stefan Grundmann. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 9. ano 3. p. 337-350. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2016.

DIÁLOGOS COM A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA RDCC – Como se deu sua formação? O senhor poderia falar um pouco de sua trajetória, da escolha do curso de Direito, desde a graduação, passando pelo LL.M em Berkeley até sua habilitação? Stefan Grundmann – Eu estudei em Munique Direito, Filosofia e História da Arte. Fui várias vezes ao exterior, mas não fiz, na época, a coisa mais tradicional na Alemanha que era mudar de universidade dentro da própria Alemanha, pois optei por ir a Aix-en-Provence (França) e Lausanne (Suíça) durante a graduação. Depois escrevi uma tese de Direito Internacional Privado em Portugal, porque lá havia, há aproximadamente dez anos, um código muito interessante de Direito Internacional Privado e naquela época, na Alemanha, discutíamos sobre a codificação do Direito Internacional Privado. Eu queria estudar um direito já existente, bastante moderno, com um pouco de jurisprudência e, por isso, fiz uma tese de Direito Internacional Privado comparado em alemão e português, em Lisboa. Também fui muito à Itália e à Grécia. Depois das minhas teses, inclusive sobre História da Arte e Ticiano, resolvi ir a Tübingen, onde Josef Esser havia lecionado, embora não quisesse fazer Direito Internacional e Transnacional combinado com Direito da Família e Sucessões, que era a combinação normal de Eric Jayme. Eu compartilhava mais a visão de Max Weber, de que a matéria que mais transforma a sociedade é a economia. Por isso resolvi combinar o Direito Internacional e Transnacional, que sempre gostei muito, com o Direito Econômico. E uma das pessoas mais interessantes e mais internacionais nesse sentido foi Klaus Hopt, professor em Tübingen. Quando ia me mudar para Tübingen, Klaus Hopt recebeu um convite da Universidade de Munique e decidiu se mudar para lá. Não é muito normal o professor “seguir” o assistente, normalmente ocorre o contrário, mas nesse caso aconteceu e acabei escrevendo minha habilitação com ele em Munique. E mais ou menos quando acabei, ele foi para Hamburgo como diretor do Instituto Max-Planck, porque viram o que ele havia feito e que ele era a pessoa mais internacional no Direito Econômico. Em minha habilitação sobre relações fiduciárias, combinei as relações fiduciárias no Direito Societário e no Direito Contratual, que são os dois modelos de organização econômica mais importantes. Isso foi um algo excepcional, porque, normalmente, temos essa divisão entre Direito Civil, de um lado e Direito Comercial, do outro. E essa combinação entre societário, contratos e também bancário permaneceu um pouco o elenco das minhas matérias, sempre dialogando com a teoria internacional e interdisciplinar. Durante a habilitação, fui a Universidade de Berkeley, na Califórnia, porque não se pode estudar relação fiduciária sem ir aos Estados Unidos. Recebi um convite de Harvard, mas acabei optando por Berkeley, porque lá tinha um professor que combinava essas duas coisas, que era o Melvin Eisenberg, que foi meu orientador e que também tem uma combinação entre dogmática e abertura interdisciplinar e diz que precisamos ver as outras disciplinas como ajuda para melhor entender os desafios do Direito. E essa foi sempre minha ideia também. Lá RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; NUNES-FRITZ, Karina; RODAS, Sérgio. Entrevista com Stefan Grundmann. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 9. ano 3. p. 337-350. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2016.

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tinha também o Richard Buxbaum, que seja talvez o privatista e comercialista americano que mais conhece a Europa e a Alemanha. Os dois foram meus orientadores em Berkeley, onde escrevi parte da habilitação. Essas foram, em resumo, as universidades e países onde estudei, ou seja, fui um pouco em todos os lugares. RDCC – Muitas faculdades de Direito brasileiras tem buscado dar maior ênfase a matérias práticas, o que desperta cada vez mais o interesse dos alunos nessas áreas. Como o senhor acha que disciplinas como História da Arte e Filosofia podem ajudar na formação de um profissional do Direito? Stefan Grundmann – Acho que, acima de tudo, isso permite uma visão ampliada, sob diferentes ângulos, do fenômeno jurídico. Para mim, foi sempre um prazer ter este mundo das ideias, sempre combinado a casos concretos. Vou dar um exemplo: no Direito dos Contratos, a pesquisa e a prática legislativa focam no contrato como instrumento de troca. Mas na vida prática, tem uma segunda função do contrato muito importante, que é o contrato enquanto base de uma organização permanente. Não teríamos pagamentos eletrônicos, nem financiamentos e grandes empréstimos a empresas, nem especialização na produção e distribuição sem os contratos que chamo de contratos de organização. Agora, por que o mundo do Direito fala tão pouco disso? Seria diferente se aqui consultássemos mais escritos de economistas e sociológos, porque aí, por exemplo, o estudo daqueles contratos de longo prazo, das redes contratuais, bem como dos contratos organizacionais é central. Veja-se o caso de Oliver Williamson, da Universidade de Berkeley, que ganhou o prêmio Nobel em 2009 ao estudar os problemas dos contratos de organização, principalmente os de longo prazo, onde se constata tipos de vulnerabilidade diferentes dos contratos de troca. Da mesma forma, a nova sociologia econômica dos anos oitenta e noventa também fala das redes e, com frequência, esses contratos de organização são claramente redes contratuais. Eles analisam quando essas redes têm êxito e quando não, demonstrando muito bem, ao meu ver, porque a sociedade é o melhor modo de organização. Mas, no plano legislativo, inclusive europeu, falamos sempre do contrato, mas nem tanto nos contratos de organização. Então, eu diria que a teoria, a dogmática e os problemas práticos estão muito conexos. RDCC – O ensino jurídico alemão é fortemente baseado no estudo de casos e na preparação dos alunos para a solução de problemas práticos. Qual sua visão sobre a formação jurídica na Alemanha? Stefan Grundmann – Isso é verdade. Nosso exame é um exame de casos, mas sem ser muito técnico. Um grande civilista alemão, Claus-Wilhelm Canaris, sempre disse, de forma muito convincente, que isso é o núcleo verdadeiro da pesquisa da igualdade, ou seja, quando se tem que diferenciar ou não, quando há igualdade ou não. Acho que, com o foco em casos concretos, discute-se esse elemento primordial da justiça, a igualdade, mas esse método tem algumas desvantagens como, por exemplo, não abordar ideias mais gerais e nem estudar RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; NUNES-FRITZ, Karina; RODAS, Sérgio. Entrevista com Stefan Grundmann. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 9. ano 3. p. 337-350. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2016.

DIÁLOGOS COM A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA outras disciplinas. Isso não faz parte do currículo alemão. Mas penso que isso é importante para cerca de 10% dos juristas, aqueles que verdadeiramente criam o Direito e são responsáveis pelo seu desenvolvimento. Em minha opinião, na nossa universidade temos que ter espaço também para uma educação mais puxada e intensa para aqueles dez por cento. Sempre faço isso nos seminários e nos cursos que instalei, ou seja, ofereço algo diferenciado para a “elite”, isto é, os cientistas do direito, pois se trata de uma elite, em certo sentido. Obviamente, isso é mais fácil na Humboldt do que nas minhas primeiras universidades. A primeira foi a Universidade de Halle-Wittenberg, a antiga Universidade de Martinho Lutero. Resolvi ir naquela época à Alemanha Oriental para viver um momento histórico. Normalmente, não se tem muitos momentos históricos na vida, mas esse foi um deles e minha escolha foi verdadeiramente decorrência dessa curiosidade pelo momento histórico. Depois de alguns anos no exterior, fui professor em Londres e minha segunda filha nasceu lá. Em seguida, fui para Erlangen, a mais velha universidade da Baviera e após três anos para a Humboldt. Eu diria que na Humboldt os estudantes são tão bons, que dez ou vinte por cento podem estudar essa visão mais ampla do Direito, mais internacional, interdisciplinar e mais história do pensamento. Nos meus seminários, lemos textos importantes e escrevemos sobre esses textos, uma coisa que não temos tanto no currículo. RDCC – Atualmente, há uma discussão muito intensa no Brasil sobre o papel do Direito do Consumidor no sistema do Direito Privado. Em sua visão, como as normas de Direito do Consumidor devem-se relacionar com as de Direito Civil? Stefan Grundmann – As visões do Brasil e da Europa, sobretudo da Alemanha, são diversas em relação ao Direito do Consumidor. No Brasil, a ideia de que o Direito do Consumidor tem autonomia é muito forte, enquanto na Alemanha integramos o Direito do Consumidor no Direito Civil em 2002, na grande reforma do Direito Privado alemão. Isso foi importante, sobretudo, porque, se o Direito do Consumidor fosse inserido dentro do Direito Civil, toda a comunidade dos civilistas e comercialistas discutiria necessariamente essa relação. No fundo, diria que há diferenças de regras, mas elas se referem mais a diferenças na formação do contrato do que nos deveres do contrato. O Direito do Consumidor é diferente do Direito Comercial, mas mesmo o Direito do Consumidor é também um Direito da Empresa, porque quer sempre equilibrar a informação entre um profissional e um consumidor, não entre dois consumidores. Então, o Direito do Consumidor tem muito a ver com outras matérias civis, comercialistas e até de regulamentação de mercado. Um Direito do Consumidor autônomo e isolado, apartado do código, corre o risco de não levar adequadamente em consideração outros interesses importantes. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; NUNES-FRITZ, Karina; RODAS, Sérgio. Entrevista com Stefan Grundmann. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 9. ano 3. p. 337-350. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2016.

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RDCC – Em linhas gerais, como se apresenta o Direito do Consumidor na Europa? Quais seus mais princípios mais importantes? Stefan Grundmann – Há dois princípios fundamentais. O primeiro é o equilíbrio da situação de informação, por isso a maioria das normas versa sobre a transferência da informação, importante para a formação do contrato. O segundo princípio importante é o da proteção processual dos consumidores, que muitas vezes têm motivos, mas não os meios para verdadeiramente impor seus direitos. Oitenta por cento do Direito do Consumidor atualmente vêm da Europa. Nas matérias que estudo, diria que hoje, em quase todos os campos, o Direito Europeu é mais importante para as linhas gerais que o Direito nacional. RDCC – Como se dá a relação entre o Direito europeu e os Direitos nacionais em matéria de relações de consumo? Stefan Grundmann – Diria que oitenta por cento do Direito do Consumidor vem da Europa, o que revela muito do caráter da União Europeia e muito da legislação europeia, que ainda é muito jovem, vez que temos um direito contratual europeu há apenas quinze anos. E ele foi, primeiro, um direito dos consumidores, pois só depois de 1995 surgiu o conceito de um direito europeu dos contratos. A legislação europeia nasce muitas vezes de crises, mas, por vezes, um, dois ou três países da União já tem uma ideia: a Alemanha já tinha um pouco de Direito do Consumidor, da mesma forma que a França, mas não outros tantos países do bloco. Em Bruxelas, funcionários de diferentes países discutem internacionalmente sobre diversos temas, de forma que temos lá uma espécie de mercado de descoberta de ideias, razão pela qual acho a legislação europeia, muitas vezes, mais moderna que a nacional. Nas minhas matérias, como disse, o Direito Europeu é mais importante, em linhas gerais, que o Direito nacional que, obviamente, nos detalhes, ainda é o direito aplicado, mas as linhas gerais vêm decididas da União Europeia. RDCC – Como o senhor salientou, o Direito do Consumidor europeu protege as pessoas principalmente com regras de informação. Esse sistema não supervalorizaria a atenção dos consumidores e prejudicaria os menos atentos? Stefan Grundmann – Isso é verdade apenas em parte. Em minha palestra na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, a convite da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, expliquei que há essa tendência de distinguir entre vários consumidores diferentes. Essa tendência de dizer que os mais vulneráveis têm que ser muito mais protegidos, que temos que ter sempre mais proteção ao consumidor, gera, a meu ver, problemas de distribuição e, também, efeitos sobre as estruturas do mercado, o que tem que ser levado em consideração. Uma proteção muito intensa pode restringir a liberdade de escolha dos demais consumidores. Consumidores não são um grupo homogêneo. Existem consumidores fortes e os menos fortes, e aqui detecta-se um paradoxo: muita proteção ao consumidor custa caro e, numa economia de mercado, os preços são pagos por todos, pelos ricos e pelos menos ricos. Mas as vantagens, muitas vezes, chegam mais aos consumidores mais ricos, RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; NUNES-FRITZ, Karina; RODAS, Sérgio. Entrevista com Stefan Grundmann. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 9. ano 3. p. 337-350. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2016.

DIÁLOGOS COM A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA mais fortes. Isso porque eles têm mais dados, mais experiência para pesquisar e também mais assessoria jurídica. Por exemplo, em caso de dano por tempo perdido, normalmente, um empregado que ganha um salário baixo quase não tem dano, ao passo que para um empresário o dano seria muito alto. Por isso, se a regra é, por exemplo, que a cada atraso de voo tem que ser paga uma indenização, pode ser que os bilhetes fiquem mais caros, mas só aqueles mais ricos teriam vantagens. E, por isso, minha proposta seria que o nível de proteção do consumidor teria que ser tal que ajudasse o funcionamento do mercado e possibilitasse ao consumidor escolher bons serviços e bens. Isso, normalmente, é a função da informação. Evidentemente, em alguns contratos, ela não precisa ser abundante e a regra da informação, como tal, ajuda o funcionamento do mercado. Dessa forma, uma proteção muito forte ficaria restrita aos casos especiais de vulnerabilidade, nos quais a vida, saúde e a existência econômica dos consumidores estão em risco. RDCC – Em sua conferência, o senhor propõe uma diferenciação no conceito de consumidor, mas não há lei disciplinando esse tratamento diferenciado. Ele deveria ser dado pelo legislador ou poderia ser dado pelo juiz, no caso concreto? Stefan Grundmann – A diferenciação que propus não é tão só entre os diferentes tipos de consumidor (razoáveis, vulneráveis, hipervulneráveis etc.), o que seria uma diferenciação subjetiva, uma proteção subjetiva. Proponho também uma diferenciação objetiva, ou seja, quanto às matérias. Isso quer dizer: nas matérias relacionadas a simples danos econômicos, diria que, em regra, seria suficiente a proteção realizada através das regras de informação que os consumidores razoáveis podem compreender, porque são regras que também ajudam o mercado. Mas nos casos que envolvam a liberdade, saúde, vida, esses direitos fundamentais da pessoa, mas também sua existência econômica, de não entrar em insolvência, por exemplo, esses direitos teriam que ser protegidos de modo que também o mais vulnerável dos consumidores goze dessa proteção. Isto é, não só através de regras informativas (ex.: informação acerca da periculosidade de produtos e serviços), mas efetivamente através de normas mais intervencionistas. Essa é a ideia de uma das mais importantes teorias de filosofia moral e política do século XX, formulada por John Rawls, que faz exatamente essa distinção e explica como um legislador razoável, via discussão, chegaria a esta distinção. Eu acho que isso é, mais ou menos, o que a Corte Europeia vem fazendo em relação às liberdades fundamentais. No “Caso Clinique”, por exemplo, diz-se que um cosmético que precisa ser importado não é um bem comum, porque entra em contato com a pessoa e pode causar riscos à saúde e, neste caso, também menores e idosos teriam que ter uma proteção completa. E descrever e informar nem sempre é suficiente nesses casos. Então, essa diferenciação, como tem fundamento na teoria filosófica, é uma linha de princípio que tanto pode ser usado pelo legislador como pelo juiz, naqueles casos que requeiram uma integração do sistema jurídico através da interpretação, por exemplo, de cláusulas gerais com as liberdades fundamentais. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; NUNES-FRITZ, Karina; RODAS, Sérgio. Entrevista com Stefan Grundmann. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 9. ano 3. p. 337-350. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2016.

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RDCC – Há quem diga que a melhor proteção ao consumidor seria assegurada pela existência do livre mercado, no qual a competição garantiria a qualidade dos produtos e serviços e os preços mais baixos. Com base nessa argumentação, alguns defendem que o Estado invista mais no fortalecimento de um mercado livre do que na elaboração de leis de proteção ao consumidor. O senhor concorda com essa ideia? Stefan Grundmann – Digamos que, no Direito dos Contratos, talvez o expoente mais conhecido dessa ideia seja Alan Schwarz, que foi professor na Universidade de Yale, nos Estados Unidos da América. Tenho muitas discordâncias com ele, porque, embora tenha uma certa visão liberal do Direito do Consumidor, como expliquei acima, não podemos deixar de levar em consideração a ideia do market of lemons (o “mercado de limões” refere-se à venda de carros usados nos Estados Unidos) de George Akerlof, ou seja, a assimetria informativa existente no mercado, uma vez que o comprador, antes da conclusão do contrato, não detém informações adequadas sobre a qualidade do produto posto a venda – e, muitas vezes, nem tem como fazê-lo – e, consequentemente, acaba tomando uma decisão inadequada, isto é, fazendo uma seleção adversa. O Direito dos Contratos não pode funcionar dessa maneira e, por isso, digo que precisamos ter regulamentação na forma de regras de informação. Tivemos claramente, no início do século 20, uma mudança do princípio do caveat emptor para o princípio do caveat praetor. E isso em toda a Europa, porque fundado em uma diretiva europeia. Ao mesmo tempo, diria também que há situações onde a informação não ajuda muito, por exemplo, quando há cláusulas gerais, estandardizadas. Estudos empíricos demonstram que não são as grandes empresas que têm as fórmulas mais abusivas, mas sim empresas não tão conhecidas, uma vez que aquelas se preocupam com a perda de reputação e credibilidade. O recurso a clausulas abusivas não tem necessariamente a ver com a estrutura competitiva do mercado, é um outro mecanismo. RDCC – E como que o senhor avalia o Direito do Consumidor brasileiro? Stefan Grundmann – Eu, como disse, gosto mais da solução de integrar o Direito do Consumidor no âmbito do Direito Civil, por razões de dinâmica de conversação. Quando há integração no Direito Civil, a comparação entre as diferentes situações é um desafio permanente. Neste sentido, dentre os sistemas estrangeiros, prefiro a solução alemã. Quanto ao conteúdo, também já disse que penso que nas situações normais, dos negócios do dia a dia não existenciais, eu optaria praticamente por estabelecer regras de informação. Creio que o Direito brasileiro foi bem em alguns pontos, longe demais em outros. Sobretudo, tem muitas regras imprevisíveis, a previsão no Direito Constitucional, regras e cláusulas muito amplas e gerais que tornam imprevisível a possibilidade de justiça no caso concreto. E essa previsibilidade para as partes poderia ser melhor concretizada. Isso não quer dizer que sou da opinião que as regras informativas, como as temos agora, são ideais; às RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; NUNES-FRITZ, Karina; RODAS, Sérgio. Entrevista com Stefan Grundmann. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 9. ano 3. p. 337-350. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2016.

DIÁLOGOS COM A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA vezes, não são suficientes para garantir a informação, mas muitas vezes tem informação demais (information overkill) e isso é um sério problema também. RDCC – O senhor, então, considera que o sistema brasileiro é muito protetivo? Stefan Grundmann – Eu diria que sim, mas vejo também algumas razões para isso. O Brasil teve um desenvolvimento formidável nas últimas duas ou três décadas, mas tem, sem dúvida, ainda um grupo grande de pessoas que são os típicos consumidores supervulneráveis. Por isso, no período de transição, pode ser que um pouco mais de proteção tenha trazido mais vantagens. Como não conheço bastante a sociedade brasileira, é um pouco difícil dizer se as regras são sempre adequadas, mas, em linha de princípio, diria que vejo muitas regras paternalistas que, na realidade europeia, não seriam desejáveis. RDCC – No Brasil, muitos consumidores reclamam que o valor das sentenças condenatórias impostas aos fornecedores de bens e serviços são muito baixos e que isso incentivaria as empresas a não resolver seus problemas e continuar violando os direitos dos consumidores. O senhor concorda com a crítica de que condenações mais altas poderiam incentivar as empresas a respeitar os direitos dos consumidores? Stefan Grundmann – Como disse, um dos pilares do Direito do Consumidor é a imposição de regras. É normal que a parte vencida ache que ou o Direito do Consumidor é fraco ou é muito paternalista. Nos litígios entre bancos e clientes é sempre assim: às vezes lamentam-se os bancos, às vezes os clientes. Mas, sem dúvida, tem certos segmentos da indústria e dos serviços onde sistematicamente os direitos dos consumidores são violados, como na conclusão de contratos via internet, na área de telefonia e, por experiência própria, nos serviços aéreos. Quase todas as companhias de aviação que conheço não ressarcem os danos que teriam que pagar, mesmo quando reclamados por um professor de Direito. Por que fazem isso? Porque sabem que se um em três consumidores não entrar na justiça, já ganham. Nestes casos, em segmentos onde se pratica uma tal estratégia sistemática, eu diria que uma possibilidade seria o juiz dar danos triplos, por exemplo, quando restasse evidente a má-fé e a estratégia lesiva da empresa. Dessa forma, o Direito teria também uma tendência sancionatória, o que considero adequado em certos segmentos, com condições bem definidas. RDCC – O Direito alemão reconhece a existência dos danos punitivos em casos de lesões ao consumidor, como ocorre nos Estados Unidos? Stefan Grundmann – Não, em linha de princípio, mas há algumas poucas exceções, como nos casos de estratégias abusivas ou em situações de violação de direitos da personalidade, por exemplo, quando os jornais publicam coisas falsas. Mas inexiste um princípio geral de que estratégias abusivas teriam que ser punidas por meio de indenização. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; NUNES-FRITZ, Karina; RODAS, Sérgio. Entrevista com Stefan Grundmann. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 9. ano 3. p. 337-350. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2016.

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RDCC – O Poder Judiciário brasileiro está sobrecarregado e as ações consumeristas são apontadas como uma das principais causas desse problema. O ministro Luís Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, chegou a enunciar uma frase que já se tornou célere: “As empresas transferiram seu call center para o Poder Judiciário”. Nesse sentido, meios adequados de resolução de conflitos, como conciliação, mediação e arbitragem, poderiam ajudar a melhorar essa situação? Stefan Grundmann – Sem dúvida. Mas tem-se o inconveniente de não se criar com isso uma massa crítica de conteúdo jurídico, geralmente traduzível em jurisprudência. Então, para a previsibilidade dos casos futuros, tais meios não são a melhor alternativa. Isso vemos, por exemplo, em alguns Estados-membros da União Europeia, como a Itália, onde há uma instituição de mediação para todos os contratos bancários. Lá, o desenvolvimento dessa matéria jurídica já não é o mesmo que antes. O litígio também cria uma certa clareza sobre o Direito. Para os casos de menor relevância, sobretudo, diria que pode ser uma boa alternativa, até porque temos ainda os casos mais importantes, que criam o Direito. RDCC – O que que o senhor pensa do modelo das class actions dos Estados Unidos? Stefan Grundmann – Não sei se funcionaria no Brasil, mas na União Europeia temos duas áreas onde criamos um mecanismo um pouco semelhante, com diferenças nos detalhes. Essas são o Direito dos Mercados Financeiros e no Direito Antitruste. Ambas são matérias nas quais os casos são verdadeiramente paralelos, quer dizer, tem mais ou menos a mesma forma de litígio e, ao mesmo tempo, os danos não são tão importantes. E, naqueles casos, a economia em escala, de fazer tudo isso num único processo, são muito altos. Ao mesmo tempo, intentar um processo sem essa possibilidade é muito raro, porque o dano não é tão grande. Então, para impor verdadeiramente as regras nestas matérias, acho que seja uma boa solução, em linha de princípio. RDCC – No Brasil, discute-se a criação de um código de proteção para usuários de serviços públicos. Tal medida é conveniente? A proteção a consumidores de serviços públicos deve ser diferente da proteção de consumidores de serviços privados? Stefan Grundmann – Normalmente, esses segmentos, ditos segmentos regulamentados, têm uma estrutura de mercado diferente dos mercados normais. Quer dizer, foram mercados monopolistas em um primeiro momento, porque público, e são tipicamente oligopolistas e, por isso, diria que a ideia de uma fiscalização permanente por uma administração é uma ideia geralmente razoável, da mesma forma que a fiscalização dos contratos no mercado oligopolista se justifica mais que num mercado de concorrência. E por isso diria que em energia, telecomunicações e também nos transportes pode ser uma boa ideia. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; NUNES-FRITZ, Karina; RODAS, Sérgio. Entrevista com Stefan Grundmann. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 9. ano 3. p. 337-350. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2016.

DIÁLOGOS COM A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA RDCC – Um dos grandes problemas atuais nas relações de consumo é a questão da obsolescência programada. Como definir que um defeito foi programado para acontecer depois de um tempo ou que foi um mero acidente? Stefan Grundmann – A regra normal é que os produtos têm uma garantia legal durante um certo tempo, não só seis meses ou dois anos. Há também mecanismos do mercado, como as garantias mais amplas. A obsolescência é um problema realmente e todos os produtos tiveram vida mais longa em tempos antigos. Mas é difícil conceber regras que vão mais longe que um controle sobre o regime contra as práticas comerciais abusivas. As práticas abusivas têm essa possibilidade: se um produto tem elementos ocultos que reduzem a vida normal da coisa esperada, isso vem sendo considerado como prática abusiva. A alternativa seria de dizer: nós controlamos mais ou menos todos os componentes dos produtos se tecnicamente não for possível fazer um produto mais durável. Isso seria uma alternativa, mas não sei se verdadeiramente seria a favor disso. RDCC – Em relação à publicidade e às práticas abusivas, qual sua visão sobre suas formas de controle? Seriam mais adequados os controles por meio de normas estatais ou por técnicas de autorregulamentação? Stefan Grundmann – A publicidade hoje é fonte de informação. Ela é mais importante que há vinte ou trinta anos e não só na televisão, mas na internet etc. Por isso, se a publicidade tem este aspecto, de formar a base da decisão dos consumidores, temos que aplicar as regras sobre a informação dada. Quer dizer, se a informação é incorreta, tem-se que ter um remédio. A publicidade também pode integrar o conteúdo do contrato, desde que tenha verdadeiramente conteúdo. Isso é sempre um pouco difícil de dizer, pois tem toda uma atmosfera e vai depender se um cliente razoável poderia perceber esse conteúdo. Mas essa linha entre fatos e sua atmosfera, às vezes é um pouco difícil de definir, mas para os fatos, diria que a publicidade teria que ter força vinculante também, porque é uma fonte de informação tão importante para as decisões. RDCC – No Brasil, após a promulgação da Constituição de 1988, passou-se a examinar o fenômeno da constitucionalização do Direito Privado. Esse movimento de constitucionalização fez-se sentir na Alemanha, depois da entrada em vigor da Lei Fundamental e com a atuação do Tribunal Constitucional nas últimas décadas. O senhor poderia explicar como se deu esse movimento em seu país? Stefan Grundmann – Na Alemanha, também vivemos esse fenômeno da constitucionalização. Nossa Constituição entrou em vigor em 1949 e o Tribunal Constitucional teve um papel muito importante nesse processo. Considero que, no entanto, nós façamos diferenciações que infelizmente não são feitas no Brasil ou, pelo menos, não tão claramente como na Alemanha. E essa ausência de diferenciações está na raiz de muitos problemas. Para nós, há uma eficácia direta da ConsRODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; NUNES-FRITZ, Karina; RODAS, Sérgio. Entrevista com Stefan Grundmann. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 9. ano 3. p. 337-350. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2016.

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tituição apenas no momento em que falamos de ato de autoridade pública. Por exemplo, o Tribunal Constitucional declara inconstitucional uma lei que diz que, no matrimônio entre cônjuges de nacionalidades diferentes, se aplica a lei do marido, o que contraria a norma constitucional que assegura a igualdade dos sexos. Nós distinguimos desses casos aqueles nos quais as partes atuam, por exemplo, celebrando um contrato de Direito Comercial ou de Direito Civil. Neste caso, dizemos que há um direito fundamental na Constituição que dá liberdade e autonomia privada às partes e, por isso, temos de fazer um compromisso entre dois direitos fundamentais: igualdade e autonomia privada. E por isso, dizemos que não podemos aplicar diretamente a norma fundamental, mas temos de dar autoridade ao juiz para fazer esse compromisso, essa ponderação. Desse modo, na relação entre particulares, não podemos dizer que há uma eficácia direta, mas sim uma eficácia apenas indireta. Talvez a palavra indireta obscureça o conceito, mas a ideia é fazer um compromisso, uma ponderação, por intermédio do julgador, entre dois direitos fundamentais nos casos em que não atua o Estado, mas apenas as partes. Temos casos muito importantes a respeito. Os mais famosos são dois: o agente comercial e o caso da fiança, no qual o Tribunal Constitucional disse que se uma parte é mais fraca e tem pouca informação sobre o contrato, o Estado, por força da Constituição, tem o dever de proteger a pessoa, quer dizer, nesse caso, a liberdade dela de não entrar em insolvência sem possibilidade de ser desfeito o contrato. Em síntese, a jurisprudência do Tribunal Constitucional e a doutrina majoritária não tratam, na Alemanha, de eficácia direta dos direitos fundamentais em relação aos particulares. RDCC – Assiste-se hoje, no Brasil, a uma discussão sobre como concretizar as cláusulas gerais, que tem sido muito utilizada pelos tribunais, debate que há muito tempo ocorreu também na Alemanha. Como foi a experiência alemã e quais são os riscos de se utilizar as cláusulas gerais pelo julgador? Stefan Grundmann – Essa é uma pergunta verdadeiramente sobre os fundamentos do Direito, em vários sentidos. Podemos falar da experiência alemã, mas também da experiência europeia, que é bem mais recente. A alemã começa aproximadamente no tempo do nacional-socialismo. Nessa época, houve uma tendência que um famoso autor alemão, Justus Wilhelm Hedemann, chamou de “fuga para as cláusulas gerais”. Ele dizia que as cláusulas gerais dão um poder exagerado ao juiz. E, para dizer a verdade, no nazismo tivemos todas essas coisas terríveis e verdadeiramente racistas contra os judeus e contra os bons costumes, viabilizadas em grande parte por meio das cláusulas gerais. Por isso, depois da Segunda Guerra Mundial, teve uma certa ressalva contra as cláusulas gerais. É verdade que nós temos cláusulas gerais primordiais como a dos bons costumes e da boa-fé objetiva. A Alemanha é, sem dúvida, o país da Europa que mais utiliza e valoriza as cláusulas gerais. Em outros países elas nem existem. Ao mesmo tempo, a experiência com a cláusula geral é interessante, porque primeiro tem-se sua consagração no plano legislativo, mas depois de certo tempo precisa haver uma concretização desRODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; NUNES-FRITZ, Karina; RODAS, Sérgio. Entrevista com Stefan Grundmann. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 9. ano 3. p. 337-350. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2016.

DIÁLOGOS COM A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA sa cláusula, que ocorre com a formação de exemplos e grupos de casos, etc. Se no tempo do nacional-socialismo tivemos esse problema com as cláusulas gerais, na era democrática elas tem muita utilidade quando há lacunas, porque as coisas importantes nem sempre são decididas pelo Parlamento, mas pelos juízes. É por isso que, normalmente, depois de um certo tempo de concretização das cláusulas gerais, surgem linhas mestras para os casos novos. No nível europeu, a experiência com as cláusulas gerais não tem sido boa. A proposta de código europeu continha muitas cláusulas gerais e isso foi muito criticado, não só na França e na Inglaterra, que têm muito menos cláusulas gerais, mas também na Alemanha. E a razão principal foi que em um âmbito jurídico, no qual nem todos partilham as mesmas ideias, como em uma situação transnacional, por exemplo, é quase impossível chegar a uma concretização da cláusula geral que seja aceitável para quase todos, porque todos têm diferentes ideias do que uma determinada cláusula geral poderia exprimir. Então, é necessária uma certa homogeneidade na comunidade jurídica como condição inafastável de uso de uma cláusula geral. Essa é a razão principal, por que, a nível europeu, não é uma boa ideia pôr tudo em cláusulas gerais, porque, na verdade, não se legisla verdadeiramente dessa forma, mas se deixa tudo para ser decidido pelos juízes. RDCC – Então, não é um ideal de política legislativa ter uma lei que contenha muitas cláusulas gerais? Stefan Grundmann – Eu diria, em linha de princípio, que quando um caso ocorre com frequência, o legislador tem de ter a responsabilidade de concretizar, de legislar sobre essas hipóteses de fato. Pode ser que uma linha jurisprudencial faça isso e receba consenso e adesão, mas, do ponto de vista da teoria democrática, dir-se-ia que se muitos são os casos, então se trata de uma coisa importante e, nesse caso, o legislador tem de ter a responsabilidade de pelo menos estabelecer as linhas gerais. RDCC – Como aconteceu com a Reforma do Direito das Obrigações, onde muitos institutos desenvolvidos pela jurisprudência foram codificados no BGB? Stefan Grundmann – Exatamente. Mas já antes, na elaboração da Lei contra as Cláusulas Abusivas, tínhamos uma cláusula geral, mas com muita especificação de casos individuais, também para dar ao juiz uma direção na solução de casos futuros. RDCC – O senhor pesquisa muito sobre direito europeu. Como se encontra hoje o debate sobre o tema e, principalmente, se o código civil europeu ainda é uma realidade almejada no bloco? Stefan Grundmann – Essa é uma pergunta difícil, porque a minha resposta seria sim e não, infelizmente. Eu acho que a ideia de um código europeu seria muito boa para o desenvolvimento da comunidade europeia e do Direito Privado europeu, para que possa existir um sistema exterior para o desenvolvimento. Mas, agora, é RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; NUNES-FRITZ, Karina; RODAS, Sérgio. Entrevista com Stefan Grundmann. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 9. ano 3. p. 337-350. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2016.

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bastante claro que todas as propostas não foram aceitas e isso por duas razões principais. A primeira, é que a proposta foi feita em 2009, no momento da crise econômica mundial e, sem a crise, talvez o código europeu tivesse sido o grande projeto europeu daquele momento. Mas então surgiram outros projetos mais importantes como, por exemplo, a união europeia bancária, que é uma resposta do regulador à crise do Euro, estabelecendo mais instrumentos de estabilidade financeira. A segunda razão é que muitos Estados-membros foram contra a proposta do código europeu. E tenho a impressão que foram contra as propostas, porque os projetos dialogavam com um meio acadêmico restrito do próprio país. O mundo acadêmico na Alemanha ficou majoritariamente contrário ao projeto, porque infelizmente não houve discussão na comunidade cientifica, tendo sido as propostas, ao contrário, feitas a portas fechadas. Foram exemplos de como não se deve fazer uma discussão científica. Eu diria que foi péssimo para o desenvolvimento do direito europeu que essa chance tenha sido desperdiçada dessa maneira.

RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; NUNES-FRITZ, Karina; RODAS, Sérgio. Entrevista com Stefan Grundmann. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 9. ano 3. p. 337-350. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2016.

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