Entrevista com Rogério Skylab

June 16, 2017 | Autor: M. Machado | Categoría: Pop Art, Composição Musical, Composição de Canção
Share Embed


Descripción

99

ENTREVISTA COM

ROGÉRIO SKYLAB

FOTO ALEXANDRE REZENDE/DIVULGAÇÃO

“Vejam vocês, tudo é tão sem nexo… e ao mesmo tempo, infinito e complexo.”

Um ouvinte menos atento pode pensar em Rogério Skylab como uma figura escalafobética e estrambótica. De fato, é assim que a mídia mainstream gosta de trabalhar sua imagem. Entretanto, por trás das performances extravagantes, há um cancionista original e incansável, intelectualmente poderoso, consciente dos mecanismos de sua poética como poucos na música popular brasileira. Nesta entrevista, deixamos de lado aquela tendência já desgastada de forçar o entrevistado a enunciar respostas de teor humorístico. Aqui, o que nos interessa é a força conceitual das ideias e opiniões de Rogério Skylab.

100 ABATE

Sobre a questão da composição, quero trabalhar com a diversidade de materiais e de caminhos composicionais. O aleatório, o serialismo, a música tonal... A minha grande referência é Gilberto Mendes.

BRUNO ISHISAKI (B.I.): Inicio esta entrevista com uma questão a respeito do seu processo criativo. Em outras entrevistas, você disse que é um processo racional e meticuloso, e um ouvinte atento logo percebe que seu trabalho, de fato, nada tem a ver com improvisação ou humor. Gostaria que você descrevesse os detalhes do seu metiê. Algumas questões particularmente interessantes, para mim, são aos caminhos harmônicos (um exemplo que me vem à mente agora é “Eu não consigo sair daqui”), e a relação melodia-letra: como você faz essas escolhas? Testa possibilidades em um violão ou piano, ou trabalha colaborativamente com a banda? Como é esse processo? ROGÉRIO SKYLAB (R.S.): Eu me lembro de uma gravação, na casa de André Midani, em que estavam os bambas da música popular brasileira, Caetano, Gil, Jorge Benjor... Rolou um papo sobre improvisação, coisa que o Jorge Benjor e o Gil sabem fazer muito bem, e o Caetano foi enfático: “eu não sei improvisar”. Eu também não sei improvisar. Acho até que é uma insuficiência de minha parte, entre tantas outras. Principalmente se pensarmos que a novíssima música brasileira

(por favor, não pensem que eu estou falando do baixo Augusta) aponta cada vez mais nessa direção. Sobre essa questão do humor, ri quem quiser, rir não é proibido; só que jamais é o que almejo quando faço uma canção. Sobre a questão da composição, quero trabalhar com a diversidade de materiais e de caminhos composicionais. O aleatório, o serialismo, a música tonal... A minha grande referência é Gilberto Mendes. Quanto a essa relação melodia e letra, a que você faz referência, é o grande mistério da canção. Alguns se debruçaram sobre esse mistério e tentaram teorizá-lo. É o caso de Luiz Tatit, que, por sinal, vem a ser também um grande cancionista. No meu caso, o processo composicional é solitário. O processo colaborativo com a banda é um momento subsequente, que é também muito importante. Mas o nascedouro das canções se dá de forma absolutamente solitária. Por fim, o processo harmônico de “Eu não consigo sair daqui” está contido na letra – talvez seja, das minhas canções, a de maior caráter metalinguístico. B.I.: Ainda sobre a manipulação de sonoridades, noto um uso intencional do idiomático de determinados gêneros (a sonoridade jazzy, em “Mastigando um

Entrevista com Rogério Skylab chiclete”, ou a bossa, em “Você é feia”) que projeta seu trabalho para além de um suposto rótulo de rock alternativo. Percebo que seu trabalho tem muito mais a ver com um diálogo com a contemporaneidade, vejo nele um jogo de agenciamentos entre idiomas, gêneros musicais e enunciados, e temáticas que orbitam territórios-tabus. Seria algo muito próximo daquilo que Oswald de Andrade mencionava em seus manifestos: “transformar tabu em totem”. O que você pode comentar a respeito do uso de sonoridades idiomáticas? Pode exemplificar a escolha jazzy de “Mastigando um chiclete”, se quiser. R.S.: Quando você fala em “uso intencional do idiomático”, quero creditar a isso o antinaturalismo. Nenhum autor me foi tão enfático quanto Cabrera Infante em seu “Três Tristes Tigres”, no que tange a essa questão. Para ele, tudo é exercício de linguagem. Daí a multiplicidade de gêneros na minha música. Não tem nada a ver com ecletismo, que sempre me soou uma palavra vazia pra amaciar o ego de músicos-ginastas, tipo Hamilton Holanda e Yamandu Costa. Você não pode esquecer a questão do conceito. Por

exemplo, o meu atual projeto, a Trilogia dos carnavais (já lancei dois volumes e estou trabalhando, atualmente, no terceiro), é um mergulho na linguagem da música popular brasileira – uma certa dicção, uma forma específica de gravação, de arranjo, até a maneira de cantar – tudo, tudo, tudo é impostado, nada é natural. Em algumas músicas, eu abordo especificamente esse tema – por exemplo, em “É Tudo Atonal”, do Skylab VII. Em outras, eu faço a junção de gêneros diferentes numa mesma canção – é o caso de “Música para Paralítico”. É mais aglutinação do que fusão. Não é síntese. Rogério Duprat, assim como muitos integrantes do movimento “Música Nova”, foram importantíssimos para o tropicalismo. Isso porque os tropicalistas conhecidos tinham a intuição, mas não tinham a técnica. B.I.: Em algumas entrevistas a programas de TV aberta, você mencionou a atração que sente pela figura do travesti, que traz a tensão de criar, para si, a imagem do feminino, imagem essa que contrasta com a afecção da genitália masculina. Você concorda que há, no travesti, em um sentido deleuziano, um devir mulher? Quando você diz que o travesti

Rogério Duprat, assim como muitos integrantes do movimento “Música Nova”, foram importantíssimos para o tropicalismo. Isso porque os tropicalistas conhecidos tinham a intuição, mas não tinham a técnica.

101 101

102 ABATE traduz a contemporaneidade, há nisso uma analogia com o que é transitório, devir e presente? R.S.: O devir-mulher não é um Deleuze puro, é misturado com Guatari. Esse é o problema. Mas o que eu dizia sobre a contemporaneidade do travesti era a capacidade de produzir o seu próprio corpo, fugindo, portanto, de uma natureza. Isso me interessa. A outra questão do travesti, e nesse sentido devo confessar que sou mais atraído por ele do que pelo “viado”, é que não há síntese: você encontra os peitos de uma mulher e o pau de um homem. Esse é o desconcerto que me seduz. B.I.: O que acha do termo “pós-moderno”? R.S.: A crise das vanguardas acena para o pós-moderno, colocando em questão inclusive a ideia de autoria. O problema é que existe, hoje em dia, um descompasso entre a mentalidade e a tecnologia. O conteúdo não avança na mesma velocidade da técnica. Nas décadas de 1950 e 1960, esse processo era inverso: se pensarmos nas ousadias do concretismo, seremos obrigados a considerar suas experimentações no campo poético como atitudes heroicas.

Eu sou filho do tropicalismo. Mas sou patricida. É sob essa perspectiva que tendo a valorizar os trabalhos de José Agrippino e dos próprios Mutantes, que, contra o próprio contexto da época, tentaram abrir, na marra, um caminho próprio.

B.I.: Em canções como “Fátima Bernardes Experiência”, “Câncer no cu” ou “Chico Xavier e Roberto Carlos” percebo um trabalho de desterritorialização dos ícones e personalidades da cultura de massa. Ao longo do século XX, muitos intelectuais e artistas de vanguarda satanizaram essa cultura, enquanto outros a abraçaram, às vezes genuinamente, outras vezes de forma mais cínica. O que você pensa a respeito da cultura de massa? R.S.: Essas músicas são produtos de um campo minado pela cultura de massa. Pense, por exemplo, o que veio a ocorrer no Brasil, a partir da década de 1960, com algumas pesquisas no campo da música erudita. Eu sou filho do tropicalismo. Mas sou patricida. É sob essa perspectiva que tendo a valorizar os trabalhos de José Agrippino e dos próprios Mutantes, que, contra o próprio contexto da época, tentaram abrir, na marra, um caminho próprio. B.I.: Você acredita que exista uma distinção entre a música erudita e a popular? Ela não seria uma taxonomia burguesa enrustida, que serviria apenas para segregar a cultura assim como se faz com a sociedade? Beethoven era

Entrevista com Rogério Skylab do povo (apesar de ser um elitista); do mesmo modo, em de Heitor Villa-Lobos (tido como o compositor erudito brasileiro mais influente) vemos uma obra permeada de trechos de música e de um pensamento musical “popular”: idiomatismos instrumentais, melodismos, caráter improvisatório, liberdade formal etc. Sem contar a erudição presente no Cartola, no Hermeto, no Hermelino Neder. Hermelino e Arrigo, que já seriam inclassificáveis dentro de uma distinção entre popular e erudito... R.S.: Essa tua pergunta me remete ao que falei acima. Será que a indústria cultural também não promoveu uma outra espécie de hierarquização? É a pergunta de Roberto Schwarz. O fato de Villa-Lobos trabalhar com materiais populares, tal como fazia Bella Bartok, Stravinski, não lhe excluía o campo erudito. Não há mal algum na distinção entre música erudita e música popular. Veja o caso de Arrigo: servia-se de materiais da música erudita para fazer música popular, processo inverso ao de Villa-Lobos – no caso de Arrigo, estou me referindo ao seu clássico “Clara Crocodilo”. Naturalmente, Arrigo se aventurou nas

Não há mal algum na distinção entre música erudita e música popular [...] A grande mudança é que, hoje, Cartola e VillaLobos são igualmente valorizados, sem que seja necessário romper a diferença entre o popular e o erudito.

missas, dentro de uma linguagem erudita, mas quero crer que sua força está na música popular. A grande mudança é que, hoje, Cartola e Villa-Lobos são igualmente valorizados, sem que seja necessário romper a diferença entre o popular e o erudito. B.I.: Você vê o seu trabalho como arte, artesanato ou produto? Por quê? R.S.: Vejo sob essas três perspectivas: envolve arte por causa do conceito; artesanato, porque é um trabalho com os materiais (no meu caso, a junção de letra e melodia, os arranjos); e também é um produto a partir do momento em que, enquanto criador, você deixa de ter um controle sobre teu trabalho quando é lançado num show ou num disco. MARCO A. MACHADO (M.M.): De certa maneira um criador permanece na encruzilhada entre o belo e o novo. De que modo você enxerga essa dicotomia? E como você vê o belo e o novo na sua produção? R.S.: Olha, essa encruzilhada é própria da arte, ainda que possamos admitir em alguns casos a prevalência do belo, em outros, a

103

104 ABATE prevalência do sublime (vou identificar o novo como um elemento do sublime). Isso vem de Kant. A grande diferença é que o sublime é um símbolo do informal ou do novo; enquanto tal, ele tem aspectos formais simbolizando o informal. Essa me parece a grande encruzilhada – fazer com materiais conhecidos algo completamente novo. Mesmo usando o idiomático, como vocês observaram, a minha perspectiva é sempre tomando uma certa distância.

O meu negócio é o silêncio.

M.M.: Em uma entrevista ao Bate-papo da UOL você afirmou ser preconceituoso. Acreditamos que todo preconceito é bonito, já que nasce diante de um exercício do deleite, sendo uma escolha estética. Você concorda? O preconceito pode ser importante em seu processo de criação de canções? R.S.: Lembro que quando foi lançado “Cidade de Deus” eu falei assim: não vi e não gostei. Muitos são os filmes e livros dessa espécie. O leitor ou espectador que não é capaz de tais atitudes preconceituosas, não gosta de filmes nem gosta de livros. A relação de paixão envolve essas posturas. Não existe neutralidade nem espírito objetivis-

ta para esses. “O amor é cego, Ray Charles é cego, Stevie Wonder é cego, e o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem”. M.M.: Gostaríamos de saber se você escuta música contemporânea (nacional e internacional) e, se sim, quais são seus gostos e comentários sobre estas experimentações sonoras. R.S.: Eu, na verdade, não escuto música, nem contemporânea, nem popular. O meu negócio é o silêncio. Mas devo confessar que vi, recentemente, “A Odisséia de Gilberto Mendes” e me apaixonei completamente por esse santista. Quem sabe eu ainda não faço um trabalho sobre ele. M.M.: Grande de possibilidades de ordem técnica ou tecnológica veio com o século XX. Vejo em várias de suas canções a exploração de alguns desses aspectos, como a repetição obstinada (minimalismo), o mergulho no sonoro (eletroacústica, espectralismo) e ideias ligadas à música conceitual. Esse trabalho é intencional? Fruto de pesquisa? Ou são consequência da incorporação dessas técnicas pela escuta?

Entrevista com Rogério Skylab R.S.: Eu já tinha abordado essa questão do avanço tecnológico e isso realmente é muito importante, mas não é suficiente. Tenho sempre a sensação de que não se tem explorado até às últimas consequências o que temos em mãos. Por outro lado, há exemplos na História de esforços notáveis no sentido de se superar uma insuficiência tecnológica. No meu caso, é um intercruzamento de leituras e escutas, sem nunca perder de vista o campo da música popular em que estou inserido, com sua longa tradição e suas especificidades. M.M.: O que lhe causa prazer acústico? O que tem ouvido recentemente? Você tem gosto por sonoridades não musicais? Quais sons? R.S.: Uma das pessoas que eu vim a entrevistar no meu programa Matador de Passarinho, exibido todas as segundas-feiras, meia-noite, no Canal Brasil, foi Lívio Tratemberg, um cara por quem tenho grande admiração e respeito. Estamos, inclusive, em via de produzir um disco juntos. Outro que eu fiz questão de trazer ao programa foi Tim Rescala. Ambas as entrevistas foram maravilhosas e estão disponíveis no

site do Canal Brasil. Quero dizer, com isso, que sempre me interessou esse segmento da música pura, que enfrenta todas as espécies de dificuldades, principalmente num país periférico como o nosso, sob a avalanche da indústria cultural. Por outro lado, eu trabalho com música popular e, ainda que eu veja com bons olhos esse intercruzamento de informações entre o popular e o erudito, não há como desconhecer a especificidade de cada um desses campos. Reconhecer a separação talvez ajude, ao contrário do que pensam os tropicalistas e seus herdeiros, evitarmos uma nova hierarquia de valores, agora sob os auspícios da indústria cultural. Por exemplo: esse termo “inclassificáveis”, que vocês usaram para mencionar Arrigo, e que foi uma febre a partir da década de 1990, teria justo essa função: derrubar muros que a lógica capitalista sempre fez questão de levantar, priorizando as segmentações. O fato é que os “inclassificáveis” vieram a criar um novo segmento. E, o pior de tudo: os que faziam questão de se autodefinirem assim – me lembro daquela turminha (Chico César, Paulinho Mosca, Lenine, Arnaldo Antunes, Chico Science...) – não tinham nada de inclassificáveis, muito pelo contrário, estavam

totalmente inseridos dentro de uma música de consumo. Eu credito isso justamente à “grande revolução tropicalista”: você tem a informação mas não tem a técnica. Moral da estória: ou você se socorre daqueles que a tem ou então vive no mundo dos nomes, isto é, fala mas não faz. Nesse sentido é que eu credito grande importância ao trabalho de Arrigo Barnabé e dos poetas concretos. M.M.: E você vai continuar fazendo música? R.S.: Sim. Estou concluindo o terceiro volume da Trilogia dos carnavais (“Desterro e Carnaval)” e estou começando o segundo volume de Rogério Skylab & Orquestra Zé Felipe – uma espécie de experimentalismo primitivo que está cada vez mais tomando força na nova música carioca. Trabalhos como os de Negro Leo, Chinese Cookie Poets, Sobre a Máquina (do veterano Arto Lindsay) e mesmo o Metá Metá, do paulista Kiko Dinucci. O clima de revezamento entre os músicos, o projeto Quintavant, na Áudio Rebel... enfim, propiciam uma nova cena que cada vez mais toma corpo. E o Rogério Skylab & Orquestra Zé Felipe está nos primórdios de tudo isso.

105

Lihat lebih banyak...

Comentarios

Copyright © 2017 DATOSPDF Inc.