Entrevista com Richard Hingley

July 8, 2017 | Autor: P. Funari | Categoría: Archaeology, Arqueologia, Roman Archaeology
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Descripción

http://historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=entrevistas&id=9 Entrevista Richard Hingley: Um novo olhar sobre Roma

por Ellen Nemitz

Sobre a autora[1]

O Império Romano (750 a.C-410 d.C.) dominou uma vasta área, que chegou a mais de 5 milhões de km2, e anexou uma extensa região da Europa, Ásia e África. O objetivo das conquistas, segundo alguns historiadores, era levar civilização aos povos ‘incultos’, ‘bárbaros’ – o que, em parte, não deixa de ser verdade. Mas o preço desse processo ‘civilizatório’ foi muito alto: extermínio de um grande número de pessoas e populações inteiras subjugadas. Para o estudioso Richard Hingley, do Departamento de Arqueologia da Universidade de Durham, na Inglaterra, os aspectos positivos e negativos da colonização imposta pelos romanos precisam ser balanceados, para que os fatos sejam interpretados de maneira verossímil. Recentemente, Hingley esteve no Brasil, pela Escola de Altos Estudos da CAPES, por meio da Universidade Estadual de Campinas e da Universidade Federal do Paraná, para um ciclo de palestras, em agosto de 2008, em atividade coordenada pelos professores Pedro Paulo A Funari (Unicamp) e Renata Senna Garraffoni. No curso, abordou suas pesquisas e divulgou as idéias expressas em seu último livro, Globalizing Roman culture (‘Globalizando a cultura romana’, ainda sem tradução para o português).

O que o senhor trata em seu livro ‘Globalizando a cultura romana?

Tento encontrar um outro modo de estudar o Império Romano, procurando balancear seus aspectos positivos e negativos, uma vez que a maioria dos trabalhos sobre o tema enfatiza demasiadamente o lado positivo. Procuro também balancear os estudos sobre

os romanos ricos e poderosos e sobre os menos ricos e com menos poder. Olho então não só para a cultura da elite de Roma e de todo o império, mas também para a cultura de outros grupos sociais. Trato ainda da relação entre o conhecimento do passado e sua relação com o presente. No fundo, é uma tentativa de fazer um debate mais crítico sobre a natureza do Império Romano. Esses aspectos são estudados por mim e por outros pesquisadores há cerca de duas décadas e inserem-se em uma linha de investigação de temas pós-coloniais.

Como definir o sentido do termo romanização?

Evito o uso dessa palavra, que a meu ver tem dois sentidos. Na Grã-Bretanha, por exemplo, tinha um sentido religioso há 100 ou 200 anos; muitos a empregavam para nomear os recém-convertidos ao catolicismo. Mas esse significado se perdeu. O outro sentido diz respeito à mudança de um comportamento bárbaro para um comportamento civilizado sob influência do Império Romano. Os antigos britânicos viviam em pequenas vilas, tinham uma economia pastoril bem desenvolvida e cultivavam cereais; eram primitivos por natureza. Costuma-se dizer que o Império Romano trouxe-lhes inovações, como estradas, botes de metal, sistema de esgoto, cidades, impostos, exército organizado... Do século 1 a.C. ao século 2 d.C., os romanos levaram para a Europa ocidental muitas coisas consideradas modernas pelos estudiosos. Romanização seria, portanto, o processo pelo qual povos bárbaros supostamente se tornaram civilizados. A idéia de romanização não é algo da época romana, mas um conceito forjado no início do século 20. Como vivíamos um momento de expansão imperialista na virada do século 19 para o 20, os ingleses teriam feito um paralelo e explicado o mundo romano a partir de sua experiência imperialista. Conclui-se, então, que toda pesquisa histórica é fruto do momento histórico em que ela é realizada. Foram os ingleses da virada do século 19 para o 20 que, na tentativa de encontrar uma justificativa política para o domínio, criaram a explicação de que os romanos levavam civilização a outros povos. É preciso perceber que esse é um discurso retórico para que se possa questioná-lo.

Em seus estudos o senhor privilegiou fontes textuais ou material arqueológico?

Examinei tanto textos de autores clássicos quanto material cultural, evidências arqueológicas que ‘informam’ como as pessoas viviam. Na escola clássica, em geral separam-se as evidências arqueológicas das textuais. Muitos estudam os textos clássicos, que tratam principalmente da riqueza e do poder no Império Romano. Vale lembrar que no Império Romano escrever era um privilégio de membros da elite, que faziam relatos escritos para seus compatriotas. Tem-se então uma literatura que trata, sobretudo, de valores elitistas. As evidências arqueológicas (material cerâmico, casas, cidades etc.) dizem respeito a um número maior de pessoas da sociedade. Por meio de escavações de vilas e residências, é possível olhar o modo de vida tanto dos ricos quanto dos menos poderosos. Na Inglaterra, há grande variedade desses sítios arqueológicos. O material aí encontrado requer interpretação, pois não ‘diz’ nada por si só, diferentemente de textos de autores, que registram seu ponto de vista sobre o problema tratado. No caso de cartas encontradas em sítios escavados em áreas do Império Romano, temos fragmentos da vida de pessoas que dizem muito mais que textos históricos que procuram descrever o cotidiano de grupos sociais. Interessa-me tentar juntar as duas fontes, pois julgo possível fazer descrições que integrem dados de estudos literários e de objetos encontrados em sítios arqueológicos. Mas isso é algo que arqueólogos e historiadores classicistas acham difícil de fazer. Deve-se levar em conta que trabalho em uma perspectiva mais geral e não tento estudar as sociedades em detalhe. Um tipo de ‘documento’ que considero especialmente útil são os objetos arqueológicos que contêm textos. Felizmente há material desse tipo a ser estudado.

O senhor faz trabalho de escavação arqueológica ou se baseia no que já foi encontrado?

Meu trabalho consiste principalmente em interpretar evidências a partir do exame de objetos já coletados. Mas acho que o acadêmico não deve se manter afastado do trabalho de campo. Nos últimos anos cheguei a coordenar projetos arqueológicos que requeriam algum tempo para se fazer arqueologia propriamente dita. Aliás, comecei minha carreira com genuíno interesse por escavações. Mas na universidade pode ser difícil fazê-las sistematicamente, uma vez que isso requer enorme grau de

profissionalismo. Na Inglaterra há escavadores profissionais muito bons trabalhando em unidades arqueológicas.

O Império Romano compreendeu uma vasta área. Por que seus estudos enfocam apenas a Grã-Bretanha?

O passado romano foi fundamental para a maneira como os ingleses construíram seu próprio império. A meu ver, os estudos romanos na Grã-Bretanha são de especial relevância para o presente, pois a Grã-Bretanha esteve na periferia do Império Romano, tornou-se mais tarde um país imperial – obviamente usando várias idéias derivadas da Roma clássica – e voltou a ser novamente periférica no sistema mundial atual. Somos um país rico, mas politicamente temos pouco poder em comparação com o que tínhamos há 100 anos. Por tudo isso, interesso-me pela arqueologia britânica. Muito do meu trabalho diz respeito ao Império Romano na Grã-Bretanha. Mas me interesso por outras

áreas

que

também

estiveram

submetidas

ao

imperialismo

romano,

particularmente na Holanda, Alemanha e Espanha.

Por que a ‘periferia’ do Império Romano era pouco estudada?

Posso parecer simplista, mas o cerne dos estudos romanos clássicos é o centro imperial. A cidade de Roma, a Itália e algumas áreas muito próximas da Itália foram o foco da atenção da maioria dos estudiosos. As pesquisas arqueológicas tendem a centrar-se em monumentos como o Fórum Romano ou o Panteão, em Roma, e nas impressionantes cidades romanas. Em meu país, não foi diferente. Há, portanto, uma longa tradição de interesse pelas construções e por figuras clássicas. Mas em certas áreas da periferia do Império Romano houve uma espécie de reação a essa visão e surgiu gente interessada em examinar outros povos do império, que talvez tenham tido menos influência na política romana. Interesso-me pela Itália e por Roma, mas meu foco sempre foi a GrãBretanha e outras áreas da Europa mais afastadas de Roma. Para mim é mais fácil explorar o passado do meu próprio país.

O senhor defende uma desconstrução do discurso imperial. Como assim?

Roma, bem como a Grã-Bretanha, tinha um discurso imperial. Mas esses discursos não são exatamente iguais, uma vez que a natureza das coisas muda com o passar do tempo. Na realidade, os britânicos adotaram o discurso de autores romanos, como o historiador Tácito [c. 56 -c. 117], por exemplo, para construir o seu durante o século 19 e início do 20 e justificar seu domínio na Índia e em outras colônias na Ásia e África. O propósito de ‘civilizar’ o ‘inculto’ esconde ações negativas, inerentes ao princípio imperialista, pois envolvem deslocamento de populações, morte de pessoas, mudança na vida de outras, alterações em seu território... Isso aconteceu não só durante a expansão do Império Romano ou no século 19; vemos isso hoje também. De fato, o objetivo de romanos e britânicos era ampliar seu poder e riqueza. Fascina-me investigar a construção desse discurso escamoteador, pois há lições a tirar de seu estudo. Uma delas é evitar a reutilização no presente de argumentos aparentemente ingênuos, mas no fundo astutos.

Como era o relacionamento entre os romanos e os nativos conquistados?

O Império Romano expandiu-se em parte para atrair pessoas que aderissem a seus projetos. Então, foram adotadas medidas que encorajavam gente nas províncias a cooperar com o esforço imperial. O que se fazia, aliás, era algo comum a todos os impérios, pois um império não pode expandir-se e sobreviver, por séculos como o Império Romano, sem assimilar pessoas, envolvê-las em seus propósitos. Os romanos praticaram, portanto, muitas ações positivas nos territórios dominados. Os impérios não são totalmente negativos; não sobreviveriam se assim fossem. Ao estudar esse tema, tento mostrar que há, entre os historiadores, uma tendência de enfatizar as ações positivas, deixando de lado os aspectos críticos. Há quem argumente que as ações negativas são justificadas pelas positivas. Na verdade, precisamos de uma perspectiva balanceada, em que o olhar não se fixe em um só ponto. Do contrário, tem-se uma visão

distorcida da história. O raciocínio é válido também para os casos recentes de imperialismo. Há pouco tempo alguém me disse que os ingleses fizeram muitas coisas boas pela África e que a vida por lá piorou depois que eles deixaram o continente. Confesso que me sinto constrangido com o legado colonial na África, mesmo tendo consciência das ações positivas dos britânicos nas colônias.

De que modo o presente interfere na interpretação do passado?

Se fosse possível construir uma máquina do tempo e voltar à época do Império Romano, por exemplo, ainda assim não conseguiríamos entender completamente aquela sociedade, por não estarmos inseridos nela nem entender sua cultura. Hoje, para saber como funciona uma comunidade, um antropólogo social passa longo tempo com ela. No caso dos estudos clássicos, não dispomos do benefício de poder encontrar pessoas, falar com elas... Então, quando estudamos o passado clássico, ou qualquer outro período do passado, só podemos interpretar evidências, levando em conta como fomos educados e como vivemos. A teoria da romanização foi desenvolvida em uma sociedade altamente imperial, como a inglesa, e teve importante papel na sociedade da rainha Vitória [de 1837 a 1901] e do rei Edward [de 1901 a 1910]. Ela ajudou os ingleses a entender sua posição no mundo e como comandar e manter seu império. Os estudos do passado são feitos com base em comparações. Quando historiadores e arqueólogos estudam o passado, eles, na verdade, examinam esse período na tentativa de entender o presente. É preciso enfatizar ainda que as interpretações que fazemos do passado são produto do presente e que o conhecimento do passado muda a cada geração.

Então o modo como se vê o Império Romano hoje é diferente daquele como se via há 100 anos...

E daqui a 100 anos nossa interpretação terá mudado outra vez e possivelmente será diferente da de hoje. Um exemplo é a interpretação do imperador Augusto [63 a.C.-14 d.C.] e do período de Augusto. Muitos italianos classicistas e alguns outros europeus o

reinterpretaram no tempo do ditador Benito Mussolini [1883-1945]. Na Itália das décadas de 1930 e 1940, Augusto era tomado como um modelo para Mussolini. Mas, após a morte do ditador, o modo de ver Augusto mudou novamente, pois Mussolini não era mais uma força no mundo contemporâneo. Morto Mussolini, ficou mais fácil ter-se uma visão mais positiva de Augusto. Mas se a neta de Mussolini se tornasse uma ditadora poderosa na Itália, provavelmente teríamos novos críticos de Augusto. O exemplo mostra como o passado é parte do presente.

Diante das novas interpretações sobre o Império Romano, o que deve mudar no ensino e nos livros didáticos de história?

Na Inglaterra, apesar de termos tido uma geração de arqueólogos que tentou mudar a descrição do passado romano, houve mudanças muito pequenas na escola, no que diz respeito à educação das crianças. Houve certa mudança na natureza dos livros didáticos de história, e Roma é tratada de modo um pouco diferente agora. Entretanto, há uns cinco anos a tevê inglesa exibiu o documentário O que os romanos fizeram por nós, enfatizando o lado positivo de tudo o que trouxeram para a Grã-Bretanha. Fiquei louco de raiva, pois foi contra tudo isso que lutei durantes anos em minha vida. Então, pensar que o nosso trabalho tem uma influência profunda é pura ingenuidade. Felizmente, porém, como boa parte das pessoas raciocina, elas entendem, quando falo com elas, que o Império Romano foi uma coisa complexa e não inteiramente positiva. Mas no ensino básico é diferente, e acho que não estamos em uma posição ideal para oferecer saídas muito concretas. É preciso reconhecer também que na Inglaterra foram publicados alguns livros que apresentam uma boa abordagem geral do Império Romano na GrãBretanha, que comunicam novas idéias aos estudantes. Os artigos acadêmicos que publicamos não são necessariamente tão úteis para alunos jovens quanto os livros que tentam interpretar a arqueologia em novos termos. Do ponto de vista do ensino, essa é uma questão para a geração de arqueólogos e historiadores que está chegando agora e começa a ocupar posições que lhes permitem apresentar os novos argumentos. A propósito, é importante que as instituições acadêmicas empreguem pesquisadores que pensem o passado de modo crítico. Levei 15 anos para conseguir um emprego em meu país porque o que eu tentava fazer não era aceito por meus colegas. A aceitação de

novas idéias requer tempo, mas, se forem apresentadas de modo consistente, gradualmente vão sendo absorvidas.

Há no Brasil pesquisadores que trabalham na sua perspectiva?

Trabalho na Grã-Bretanha, mas tenho contato na Europa com gente que faz estudos semelhantes aos meus. Na Alemanha, Espanha e mesmo na Itália há pessoas interessadas em arqueologia pós-colonial. Fiquei particularmente impressionado de ver que no Brasil também há gente interessada no tema, particularmente no que diz respeito à nossa interpretação do passado à luz do presente. O convite que recebi para vir ao Brasil é uma prova de que aqui também há interesse pelo trabalho de nosso grupo. Isso mostra que nossa perspectiva atravessa fronteiras; é mais uma evidência de que os britânicos não são os únicos interessados na questão da arqueologia pós-colonial. Recentemente li dois artigos em que os autores diziam que esse tema é uma fixação britânica. Isso não é verdade, pois, como abordagem, a teoria nasceu de um autor palestino, Edward Said [1935-2003], que publicou dois livros em que a adota para estudar textos clássicos. Além disso, a maioria dos autores que aplicaram a abordagem pós-colonialista em estudos literários e culturais não é britânica.

[1] estudante de jornalismo da Universidade Federal do Paraná

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