Entrevista com Jacques Revel e Sabina Loriga

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Entrevista com Jacques Revel e Sabina Loriga* Sidney Lobato**

Foi na sala 809 do oitavo andar do prédio da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Ehess), na Avenida de France, que, no dia 22 de janeiro de 2016, entrevistei Jacques Revel – historiador francês, professor e expresidente da Ehess, além de autor de volumosa obra sobre história europeia, teoria e metodologia da História – e Sabina Loriga – historiadora italiana, professora da Ehess e autora de diversos estudos voltados principalmente para temas do campo da teoria e metodologia históricas. Nesta entrevista, o foco de perguntas e respostas foi o patrimônio histórico e a historicidade dos processos de patrimonialização.

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Texto traduzido do original em francês por Sidney Lobato (Unifap) e revisado por Annick Marie Belrose (mestre em Ciências da Linguagem pela Universidade Stendhal Grenoble 3 e professora do Curso de Letras da Universidade Federal do Amapá). ** Doutor em História Social pela USP, com pós-doutorado em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Ehess-Paris) e professor do Curso de História na Universidade Federal do Amapá (Unifap).

Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.1 | julho-dezembro de 2015 | p. 26-41

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Sidney Lobato: Eu vos convido a falar primeiramente sobre o patrimônio na atualidade, tema que tem sido explorado em diferentes campos, por agentes políticos, econômicos e etc. Nós falamos em patrimônio pessoal, ambiental, cultural... Então, eu gostaria de saber: como vocês explicam essas diversas formas de utilização do termo “patrimônio”?

Jacques Revel: tradicionalmente, o termo patrimônio remete ao campo jurídico e familiar. Ele designava os bens transmitidos pelo pai a sua descendência. Tratava-se de uma noção do direito privado e que qualificava um legado pessoal transmitido dentro do grupo familiar. O sentido atual ao qual você se refere e que se tornou predominante no senso comum qualifica uma realidade totalmente diferente, uma vez que se trata de uma propriedade coletiva – aquela de um grupo social ou de uma nação, ou ainda da humanidade inteira – sobre bens considerados comuns. Quando falamos de “patrimônio ambiental”, que pode ser de uma região, mas também da humanidade, o percebemos ameaçado pelo desflorestamento, pela urbanização, pelas mudanças climáticas, que, de diversas formas, colocam em risco isso que coletivamente recebemos e que supostamente deveríamos transmitir às gerações futuras. Há, portanto, uma profunda mudança no sentido daquela noção, que reencontramos em outros contextos, por exemplo, quando se fala de “patrimônio da humanidade” (world heritage) no sentido dado pela Unesco, trata-se de bens identificados, classificados, situados historicamente, mas que devem ser protegidos. Porque teoricamente pertencem a todos e por isso devem ser protegidos e valorizados pela coletividade das nações. Por quê? É mais fácil constatar do que explicar. Entretanto, eu arrisco uma hipótese: essa mudança de significado parece-me indissociável da transformação da nossa relação não só com o passado em particular, mas com o tempo histórico de modo geral. Todas as sociedades, pelo menos aquelas que deixaram vestígios que podem ser verificados, estavam preocupadas com o que deixariam para trás, o que poderia assumir formas extremamente diferentes. Mas, ao mesmo tempo, até recentemente, essas sociedades deixavam ao tempo o trabalho de seleção e de decantação que iria decidir o que seria preservado e o que iria desaparecer. Isto é o que parece ter mudado radicalmente: pode-se sentir que as sociedades em que vivemos – provavelmente porque elas não confiam no futuro, ou naquilo que o porvir lhes reserva – são obcecadas com a conservação na forma de arquivos, museus, proteção da natureza, etc., ao ponto de

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pretenderem manter tudo o que eram e o que são. Isto é correspondente à parábola do mapa do Império de escala 1/1, do famoso conto de Borges. Temos a tendência de conservar tudo para evitar o trabalho do tempo. Essa preocupação – deve-se dizer: esta situação de urgência – por vezes é expressa em termos muito concretos nos debates que podem parecer anedóticos, mas que não o são. Há trinta anos, na França, por exemplo, houve um longo debate em torno da preservação de todos os enormes arquivos de seguridade social. Do ponto de vista arquivístico, eles contêm dados muito importantes, pois as histórias do corpo individual, das políticas populacionais, da saúde e da doença, da proteção social, lá estão documentadas. É, portanto, uma fonte incomparável, mas cuja conservação – especialmente no período anterior à informatização dos dados – levanta questões muito complexas. E isso nos obriga a nos perguntar se temos e especialmente se as gerações futuras terão necessidade de uma imagem fiel dos dados sociais da segunda metade do século XX. E vamos admitir: não sabemos bem como responder a uma pergunta como essa, que surge cada vez com mais frequência. No fundo, nós não confiamos mais no tempo histórico e tentamos, ineficazmente,

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curto-circuitar seu trabalho.

Sabina Loriga: gostaria de acrescentar duas coisas sobre o medo do futuro e a falta de confiança no porvir. Em primeiro lugar, quero lembrar uma imagem muito forte. Durante a destruição do gueto de Varsóvia, Emmanuel Ringelblum organizou uma operação secreta cujo codinome era Oyneg Shabbes (o que significa em iídiche "prazer do sábado"), para reunir documentos, papéis oficiais, cartazes, decretos, diários e documentos relativos à vida comum da comunidade judaica em perigo (convites para concertos, cupons de leite e de caixa de chocolate, etc.). Ele recolheu três malas, penso eu, e parece que uma das malas ainda está escondida no jardim da embaixada da China, em Varsóvia, não sabemos exatamente onde. Aqui encontramos as causas profundas da preocupação com a patrimonialização diante de um presente e de um futuro imediatamente ameaçadores. Mas, o problema é que, hoje, a preocupação com o patrimônio não mais concerne exclusivamente a situações extremas: as nossas sociedades são, em geral, impregnadas de um sentimento de ameaça. O segundo acréscimo ao que Jacques Revel disse concerne ao processo de democratização

da

patrimonialização.

Antigamente,

os

objetos

considerados

patrimonializáveis eram aqueles que pertenciam às belas artes. Em 1855, Jacob Burckhardt, o grande historiador de arte suíço, publicou, após sua viagem à Itália, um texto extraordinário Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.1 | julho-dezembro de 2015 | p. 26-41

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intitulado Le Cicérone. Guide de l'art antique et de l'art moderne en Italie, no qual ele apresentou uma espécie de inventário do patrimônio artístico italiano. Acho que hoje estamos longe desta ideia de patrimônio artístico e nós ampliamos a definição de patrimônio. A patrimonialização atualmente abrange quase todas as produções. A distinção entre arte e artesanato foi gradualmente posta em discussão. Se antes havia apenas interessados na vida dos reis, dos “grandes homens” etc., hoje estamos interessados na vida dos indivíduos comuns. Esta mudança levanta uma questão difícil: como escolher? Quais são os critérios a serem adotados na seleção do patrimônio?

Jacques Revel: É isto que faz com que os utensílios de cozinha, da gastronomia, os alimentos – na Itália, na França etc... – agora se tornem objetos patrimonializáveis, juntamente com inúmeros outros...

Sabina Loriga: É uma das questões interessantes colocadas pela organização do Museu do Quai Branly, em Paris. Quais são os limites entre artesanato e arte? Ainda há aí uma hierarquia?

Sidney Lobato: Convido vocês a explorarem um pouco mais essa relação entre o processo de patrimonialização e a insegurança em relação ao futuro...

Jacques Revel: Este é um tema que se tornou um pouco obsessivo na última geração (desde 1980), mesmo se podemos encontrar formulações anteriores. Na França, um exemplo precoce e famoso é o do escritor Paul Valéry, que, logo após o cataclismo da Segunda Guerra Mundial, no livro La Crise de l’esprit (de 1919), advertira: "sabemos agora que nossas civilizações são mortais". Aliás, podemos encontrar formulações sobre a incerteza do futuro (e até do presente) ainda mais antigas, nascidas na virada do século XIX para o século XX, portanto antes do choque do conflito mundial. É notório que o debate em torno desta questão não começou na década de 1980. Mas, nessa década ele tornou-se mais sistemático, momento em que passamos a ter a sensação de entrar no que é chamado de pós-modernidade – um termo que se tornou ao mesmo tempo comum e profundamente ambíguo. Nós nos vemos além da modernidade ou entendemos que a modernidade ficou para trás, assim como seus valores, dentre os quais se destaca o "progresso". Uma das primeiras formulações desse diagnóstico é, notoriamente, a de Jean-François Lyotard em A condição pós-moderna (1979), Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.1 | julho-dezembro de 2015 | p. 26-41

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livro que tem sido amplamente traduzido e lido. No ano seguinte, com abordagem e argumentos diferentes, o historiador franco-polonês Krzysztof Pomian publicou um artigo notável sobre "A crise do futuro", na revista Le Débat. Este foi apenas o começo de um movimento de reflexão que tem continuado a crescer e que está amplamente internacionalizado. O que ele nos ensina? Simplificando as coisas ao extremo, podemos aqui responder. O que Koselleck e Hartog chamam de "regime moderno da historicidade" – nascido na virada do século XVIII para o XIX – era a antecipação do futuro como princípio de organização das três dimensões do tempo. Em outras palavras, organizava-se o passado em função do futuro para o qual supostamente os homens marchavam. O tempo histórico tinha um sentido seguro – o do progresso – ao qual o passado estava ajustado. Quando o futuro torna-se mais incerto, mais opaco, como é o caso na sociedade contemporânea, esta organização temporal se desarticula: as incertezas do futuro trazem o passado a reboque. A afirmação pode parecer paradoxal, uma vez que o passado nos parece algo dado, mas não é. O passado já não antecipa o porvir de modo evidente. Ele não mais nos conduz de forma clara a lugar algum. Daí deriva a importância crescente do presente no regime pós-moderno de historicidade. É o que François Hartog chama de presentismo: uma dilatação do momento presente, resumindo assim a relação de nossas sociedades com o tempo histórico. A crise do futuro é, no fundo, a incapacidade das nossas sociedades se projetarem no tempo. Até os anos 60 havia um corpo de especialistas chamados prospectores. Os mais rigorosos desenvolviam cenários temporais e expectativas que esboçavam antecipações do que ocorreria em vinte, trinta ou cinquenta anos nessas sociedades, amparando-se em estatísticas relativas ao presente que era extrapolado com base em uma série de suposições: em 2020, nós teríamos quatro televisões por família, três carros, o PIB per capita teria subido tanto por cento, etc. Uma formulação deste tipo, que podia ter sido elaborada de modo mais ou menos sério, tinha legitimidade no regime de tempo moderno, que ainda era dominante. Estes cenários foram em geral otimistas – não todos, uma vez que as primeiras reservas do Clube de Roma (The Limits of Growth, 1972) sobre as limitações e os problemas de crescimento global ainda eram parte deste mesmo paradigma. Porém, o problema mais importante reside em outro lugar: o que se questiona é a própria possibilidade de descrever um futuro, na intenção de prescrevê-lo ou para produzir uma antecipação de cunho científico. Quem se arrisca hoje a prever curvas quando tantos elementos que as determinam tornaram-se incertos? Os especialistas em previsões, que eram religiosamente consultados há meio século, nos fazem rir hoje como os áugures da Roma antiga. Mas temos de ver bem: a nossa Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.1 | julho-dezembro de 2015 | p. 26-41

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experiência é a de um estreitamento do horizonte e experiência temporal, tanto do lado do passado quanto do lado do futuro.

Sabina Loriga: Jacques Revel sublinhou com precisão que a pós-modernidade expressa uma crise de confiança no futuro, e é bem verdade. Eu diria que antes já tinham ocorrido alguns sinais de alerta. Um exemplo: o século XIX produziu uma enorme quantidade de utopias e acronias: havia mais de 2 mil histórias que imaginavam o advento de uma sociedade perfeita em termos de produção, de justiça, de relações sociais, sexo, etc. No entanto, ao longo do século XX, nós tivemos principalmente distopias, onde o futuro aparece como uma ameaça totalitária, que poderia esmagar a liberdade individual. Basta pensar no grande livro Nous autres, de Ievgueni Zamiatine, publicado em 1920; no 1984, de George Orwell, publicado em 1949; ou no livro de Aldous Huxley, Admirável mundo novo. Essas são apenas três distopias particularmente importantes, mas há milhares de outras. Eu quero dizer que hoje a imaginação utópica é minoritária e que, na maioria dos casos, a imaginação do futuro tomou um tom de pesadelo. As razões para esta mudança são extremamente complexas. Em história, nunca há uma causa única e a causalidade nunca é unilinear. No entanto, podemos dizer que o distópico de saída acompanha a crise do conceito de progresso. Descobrimos que o progresso material também ajuda a desenvolver a nossa capacidade de destruição. Basta pensar nas ameaças ambientais. Ou em uma série de tragédias históricas que marcaram o século XX (a Primeira Guerra Mundial, o Holocausto e o genocídio de Ruanda...). O desenvolvimento técnico não tem nada a ver com o progresso intelectual, e menos ainda com o progresso moral.

Jacques Revel: esta crise atingiu primeiramente os antigos países desenvolvidos, aqueles que foram mais fortemente identificados com o caráter positivo do progresso e que pensavam em si mesmos como a vanguarda das sociedades humanas: os outros tinham a vocação para se juntar a eles, seguindo os mesmos passos. Mas, afinal, a crise acabará por afetar as sociedades jovens e que nos pareciam estar decididamente abertas para o futuro. Pense na África, na Índia e até mesmo no Brasil. O desenvolvimento brasileiro é pago, por exemplo, pela destruição da Amazônia, que é há muito tempo imaginada como uma fronteira de desenvolvimento – o equivalente do oeste americano no século XIX – e que carrega com ela hoje, pelo menos em alguns aspectos, a ameaça de um desastre ecológico de grande magnitude, o desaparecimento de formas de organização social, de culturas tradicionais e etc. Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.1 | julho-dezembro de 2015 | p. 26-41

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No mínimo, a ambiguidade e as contradições do progresso estão em toda parte e elas tornaram-se evidências com as quais somos obrigados a nos confrontar. Há um paradoxo forte. O século passado foi o século do progresso tecnológico sem precedentes em áreas-chaves: medicina; técnicas de produção e comunicação; a mobilidade de pessoas, de bens e ideias; computador... O ambiente técnico e humano da vida diária e do trabalho foi completamente transformado nos últimos cinquenta anos. No decorrer de uma vida nós víamos (e vemos) o desfile de uma massa de inovações absolutamente incrível. Inovações muito palpáveis que têm mudado e que ainda continuarão mudando profundamente as condições de vida, trabalho, etc. No entanto, essas inovações nos preocupam... E é isto que nos separa da experiência do século XIX: não que a modernização tenha sido sempre aceita sem resistências (lembremo-nos do Ludismo); mas, naquele século ela veio acompanhada por um senso de evolucionismo otimista. O progresso era a lei de desenvolvimento das sociedades. Hoje, enquanto as técnicas conquistaram tantas áreas, o progresso nos inquieta porque em vários aspectos estamos convencidos de que a técnica destrói o meio ambiente, o trabalho e chega mesmo a ameaçar a identidade humana.

32 32 Sidney Lobato: Cada país tem desenvolvido a sua própria política de preservação do patrimônio. Aqui na França vemos uma paisagem patrimonializada. Em cada cidade francesa existe um centro histórico. Paris é chamada de "cidade-museu" porque tem uma paisagem urbana patrimonializada ou muito preservada. Para aquele que aqui chega é impactante ver esta paisagem. Assim, podemos imaginar que, na França, o patrimônio é um valor. A partir de quando a política patrimonial começou a desempenhar um papel importante no governo francês e por que isso aconteceu?

Jacques Revel: Várias fases da noção de patrimônio se sucedem e, neste percurso, as práticas de conservação foram profundamente transformadas. Não é um único movimento contínuo. Para simplificar, começamos a nos preocupar com a conservação, identificando o que precisava ser mantido, no século XVIII. Foi o momento em que começamos a fazer pesquisas sobre antiguidades nacionais (e outras, claro) e quando os primeiros inventários foram realizados. Mas, a guinada veio com a Revolução Francesa. Por que a Revolução? Em primeiro lugar porque ela destruiu. Ela não destruiu enormemente, mas destruiu. A legislação em matéria de propriedades da Igreja e de imigrantes fez com que certo número de bens ficasse sem herdeiros e sujeito assim à destruição ou açambarcamento – o que foi chamado, Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.1 | julho-dezembro de 2015 | p. 26-41

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em termos muito gerais, de "vandalismo". O termo vandalismo também foi inventado durante a Revolução. Ele nos mostra que desde muito cedo nós nos tornamos sensíveis à ameaça que pesava sobre aqueles bens e, por meio deles, sobre os testemunhos do passado. É um momento excepcional e contraditório. A Revolução Francesa se pensa como uma ruptura na ordem do tempo, como um novo começo na história da humanidade. Como afirma o matemático Gilbert Romme, "o tempo abre um novo livro à história". Ela é uma revolução política, mas também uma revolução cultural. O conceito de Antigo Regime, formado rapidamente nos primeiros meses, é usado para inscrever no passado tudo o que e com quem se pretendia romper e, mais tarde, em 1793, um novo calendário vai tentar enquadrar, simbólica e praticamente, a ordem do tempo. Aqueles hostis aos novos rumos, como Burke, denunciavam os perigos de se fazer da História uma tábua rasa; porém os homens da Revolução reivindicavam isto. Eles estavam pelo menos de acordo sobre este ponto, do qual eles tiravam conclusões opostas. Mas isso não é tudo. O projeto revolucionário de interromper a continuidade temporal e de recomeçar a história apagando o passado teve um efeito paradoxal: aquele de tornar o tempo histórico extremamente presente e sensível. Foi então que se desenvolveu uma poética das ruínas que inspirou Volney (Les Ruines, 1791), o pintor Hubert Robert (o primeiro diretor do novo Museu do Louvre, que em uma famosa pintura imagina a Grande Galeria, em construção, em ruínas, em 1795) e muitos outros. Foi então também que se começou a exigir uma política de conservação de um passado que se pretendia esquecer. A denúncia do passado de um lado e a consciência da importância do passado do outro. O resultado pode parecer contraditório. Ele é e não é. É justamente porque se pretendeu transformar as condições da experiência temporal que ela, de repente, tornou-se algo sensível, do que deriva o discurso revolucionário contra o vandalismo (denunciado pelo abade Gregoire à Convenção), de onde vem também a preocupação com a preservação. Ele se traduz em ação. Como a criação do Louvre, o projeto de um museu que pudesse reunir as maiores obras da humanidade. Para revolucionários não poderia caber senão à França – nova Atenas, nova Roma, novo berço da humanidade – a missão de reunir o patrimônio artístico para ensinar as nações. Esta história foi fortemente marcada por seu compromisso com a temporalidade. O Museu de monumentos franceses, nascido da iniciativa individual de Alexandre Lenoir e que reúne as obras de escultura medieval, é outro testemunho desta recuperação inesperada de um passado profundo. É preciso lembrar que este é o lugar onde o jovem Michelet proclamou ter descoberto sua vocação como historiador? Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.1 | julho-dezembro de 2015 | p. 26-41

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Adveio também a preocupação de se salvar o que fosse possível, sem, no entanto, se ter os meios para isso. A Comissão dos monumentos foi criada e logo se fundiu com a Comissão das artes, reivindicando salvaguardar as obras do passado em nome de um direito coletivo que pode ser denominado "patrimonial": aquele do "povo francês, que se tornou o único proprietário dessas obras geniais, bem como o seu melhor apreciador", conforme dizia Jean-Baptiste Mathieu, presidente da Comissão, em dezembro 1793. Mais palavras do que ações nestes tempos conturbados e difíceis. Mas, o problema é levantado, e não mais deixará de ser posto durante todo o século XIX, o grande século de conservações, de inventários. Claro, os meios jamais estiveram à altura das ambições e as injunções foram sempre contraditórias. O século XIX destruiu bairros urbanos e áreas históricas. A Paris de Haussmann é para nós uma Paris histórica dentre outras, uma das mais eloquentes para aqueles que – como você – visitam a cidade hoje. Contudo, não seria importante lembrar que a Paris de Haussmann foi construída sobre a destruição de parte da Paris medieval e moderna (como a de Balzac)? Nem tudo foi mantido. Porém, a noção de conservação estava presente e certo número de coisas foi efetivamente conservado. Um problema que rapidamente foi posto é de delimitar o que tinha que ser preservado, uma vez que as inciativas de preservação devem sempre enfrentar este problema. O que nós devemos salvar? A isto, diferentes respostas foram dadas ao longo do tempo. Se a pergunta fosse feita em 1800, a resposta seria: você tem que preservar tudo. O que é tecnicamente impossível. Mas, se tal questão fosse posta trinta ou trinta e cinco anos mais tarde, sob a Monarquia de Julho, nos depararíamos com os escritos de François Guizot – um grande político, mas também um grande historiador – e, neles, com a ideia de que temos que salvar o passado que nos convém. Isso quer dizer: o passado que faz sentido para nós, contemporâneos, homens e mulheres localizados em um ponto do tempo histórico. Portanto, a forma de responder a tal pergunta é em si histórica, pois varia de acordo com a nossa posição no tempo. Os contemporâneos de 1835 não são aqueles de 1800 e, futuramente, as suas expectativas ainda vão se transformar. É a crença do historicismo, um ponto de vista relativista, essencialmente formulado no mundo alemão, cuja contrapartida francesa foi muitas vezes negligenciada. Nela se exprime a convicção de que em 1835 o passado a ser preservado é aquele que faz sentido para os homens de 1835. Assim, a conservação do patrimônio deve ser parcial, seletiva e interpretativa. Quanto mais adentramos no século XIX, mais as agências de conservação e a legislação de preservação se avolumam. Mais inventários surgem e isso se estende até o Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.1 | julho-dezembro de 2015 | p. 26-41

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século XX, atingindo o início da Quinta República. A atuação de André Malraux, ministro da Cultura escolhido por De Gaulle, compõe o final de uma longa série de leis e de medidas de conservação do patrimônio. Ela também marca uma grande mudança, uma vez que faz com que a produção do século XX entre no domínio do patrimonializável. Expande-se, assim, o perímetro do inventário patrimonial até o período mais contemporâneo. A experiência dos últimos trinta ou quarenta anos reforça esse movimento de ampliação temporal e a anexação do presente, o que confirma o diagnóstico de François Hartog. Só que, onde o Estado realizou sozinho medidas que visavam inventariar ou conservar bens, o movimento foi em grande parte revertido nas últimas décadas. As instituições públicas não são mais as únicas responsáveis pela definição de políticas que valorizam o patrimônio. O movimento agora também vem da base. Hoje, qualquer entidade social ou qualquer ator individual pode se tornar um agenciador de patrimônios. É dito que na década de 1980 um museu por dia era aberto na França. Eu não sei se isso é verdade, ou mesmo se é verificável. Mas, o que é verdade é que agora podemos colocar qualquer coisa em um museu. Abriram-se museus de moldes de waffle, de caixas de fósforo, provavelmente já existe de telefones celulares, para falar a verdade, de qualquer coisa, de tudo o que é considerado colecionável. Aqui estamos muito perto da popularidade do vintage, este movimento que, desde os anos 1980, transforma em testemunho histórico objetos comuns de consumo a um ritmo cada vez mais acelerado. Contudo, esses objetos ganham sentido exclusivamente pelo seu pertencimento ao passado, ainda que seja um passado muito recente. A patrimonialização ganhou, deste modo, capilaridade. Nem tudo está à mercê da iniciativa das pessoas... Ainda resta muito. Multiplicam-se atualmente as micropolíticas de patrimonialização, muitas vezes impulsionadas por preocupações com a promoção do turismo e, mais amplamente, com a valorização de lugares. Se necessário, elas produzem o passado desejável. Estas são muitas vezes iniciativas locais, mas também existem agências especializadas que podem fabricar e vender programas prontos para o usufruto, ou seja, vender um passado visível, que é parte de um espaço demarcado e que pode tornar-se visível por meio de sinais e espetáculos. Há em toda parte exemplos famosos, que já foram bem estudados. O movimento vem agora tanto da base quanto das instituições centrais. Neste novo contexto, surgiram especialistas que concebem, organizam e vendem programas de patrimonialização que às vezes são fundamentalmente artefatos. Retorno a sua observação sobre a zelosa preservação das cidades francesas, talvez mais amplamente das cidades europeias. Tal esforço de preservação existe sem dúvida. E é Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.1 | julho-dezembro de 2015 | p. 26-41

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certamente mais evidente para um observador externo, vindo de um país jovem, do que é para nós. Ele corresponde a dados objetivos: a história acumulada, sedimentada, mas também a uma densidade mais ou menos forte, que favorece ou não as intervenções urbanas. Isso se aplica mesmo a Paris, mas destaco que a histórica Paris foi amplamente modificada na segunda metade do século XIX. Por outro lado, uma cidade como Berlim, mais recente e cuja densidade é muito mais flexível, e também uma cidade que experimentou uma ampla destruição no final da Segunda Guerra Mundial, é mais plástica e menos voltada à preservação.

Sabina Loriga: Isto significa que não houve um "efeito Londres". Londres, nos últimos vinte anos, mudou muito, mesmo no centro (Trafalgar Square, Victoria Station...), enquanto aqui...

Jacques Revel: Existem muitos fatores aí atuando, e valores como a autenticidade. Eu acho que a autenticidade é um valor que ganhou muita força no século XIX, em termos de patrimônio material. Durante muito tempo nós conservamos reparando, reorganizando e transformando. Uma necessidade imperiosa de autenticidade – salvaguardar o idêntico – aparece apenas em meados do século XIX. As grandes obras de Eugène Viollet-Le-Duc – o homem que, em meados do século XIX, parcialmente reconstruiu a Igreja de Notre Dame, Compiègne, no norte de Paris, e também a cidade medieval de Carcassonne, no sul da França – foram depois submetidas a uma crítica radical porque elas passaram a parecer inautênticas, pois ele fabricou uma perfeita Idade Média: "a restauração de um edifício, não é mantê-lo, repará-lo ou reconstruí-lo é restabelecê-lo em um estado completo que pode nunca ter existido a um dado momento". Um princípio que logo se tornou inaceitável em nome precisamente da autenticidade: salvaguardar é manter o mesmo. Mas, esta exigência é datada, e ela não está presente em todas as culturas, longe disso.

Sidney Lobato: os historiadores têm desempenhado um papel importante neste esforço para a preservação? Qual é a importância da história enquanto disciplina no movimento da preservação dos patrimônios?

Sabina Loriga: Não creio que os historiadores, no sentido estrito, têm desempenhado um papel importante. Eu diria que houve pesquisadores que estudaram história na Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.1 | julho-dezembro de 2015 | p. 26-41

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universidade e que, em seguida, trabalharam em museus, ministérios ou associações privadas. Esta é a questão da public history. Como J. Revel acaba de dizer, estas pesquisas não são necessariamente feitas pelos historiadores universitários. Há três anos, a Cité nationale de l'histoire de l'immigration de Paris organizou um seminário interessante sobre as memórias dos migrantes (Mémoires des migrations, temps de l’histoire, sob a direção de Marianne Amar, Hélène Betheleu et Laure Teulières, Tours, François Rabelais University Press, 2015). Muitas intervenções demonstraram o papel das associações na patrimonialização da memória dos imigrantes. Na maioria dos casos, essas entidades estão envolvidas na colheita e preservação de documentos, livros, jornais, objetos; elas incentivam a escrita de memórias autobiográficas e transmitem ou inventam rituais coletivos (festas, representações, etc.). É neste contexto que, por vezes, a "causa" dos imigrantes pode ser "defendida" por um sociólogo, um historiador ou um jornalista.

Jacques Revel: Eu sinto que a disciplina, a nossa, mais tem corrido atrás dos fenômenos do que os tem inspirado. Uma obra como Lugares de memória (seis volumes organizados por Pierre Nora, 1984-1992), pode ser entendida como uma elaboração acadêmica sofisticada que partiu de um movimento de fundo que a precedeu.

Sabina Loriga: Em última análise, poderíamos dizer que os historiadores universitários têm muitas vezes olhado com certa desconfiança para este alargamento, essa difusão da questão do patrimônio e da memória coletiva. Talvez, às vezes, até mesmo com muita desconfiança. De modo geral, não foram os historiadores "oficiais", mas outros profissionais que aí desempenharam um papel importante. Feita esta ressalva, podemos dizer que é claro que os historiadores participaram entusiasticamente nesta onda de patrimonialização. Tomemos o exemplo da história oral. Na década de 1970, houve um movimento significativo de historiadores e sociólogos que reivindicou o direito de sair do "campo", ou dos limites da "profissão". Na Inglaterra, Ralph Samuel, um dos principais fundadores da History Workshop Journal, escreveu um famoso artigo intitulado "Déprofessionaliser l'Histoire", que visava conciliar as perspectivas profissional e militante, especialmente na defesa de grupos sociais que não tinham direito à voz. Na França, Daniel Bertaux muito bem narrou como, em 1968, a história de vida lhe apareceu como uma ferramenta alternativa de conhecimento (antiautoritário) do passado, mas também como um instrumento de luta para transformar a

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sociedade no presente. Em geral, a história oral tem desempenhado um papel muito importante no processo de valorização de memórias e de patrimonialização.

Jacques Revel: Trata-se de salvaguardar e mais geralmente de produzir traços de experiências que muitas vezes estão ausentes nos arquivos, nas formas institucionalizadas de conservação...

Sidney Lobato: Hoje, temos no Brasil uma divisão que também está sendo debatida: patrimônio material e imaterial. Temos leis para ambos. Vocês concordam com essa divisão?

Jacques Revel: No movimento atual de patrimonialização esta divisão parece muito frágil. Se você observar a política da Unesco, ela inicialmente está preocupada com a preservação dos monumentos e de conjuntos monumentais que haviam sido ameaçados por guerras civis, guerras coloniais ou simplesmente porque eles não estavam sendo preservados. Mas, cedo a inscrição na lista de patrimônios mundiais da Unesco tornou-se uma questão política, um meio de promoção e de disputada entre os países que começaram a desenvolver estratégias de competição para saber quem iria receber algo e, acima de tudo, quem iria ficar com mais do que outros. Sabina Loriga e eu lemos uma tese de uma pesquisadora que abordou este tema. Ela mostrou que o Egito, por exemplo, desenvolveu uma política patrimonial geograficamente variável, mas sempre preocupada em dar-lhe um papel central: dentro de poucos anos, passou a existir um Egito patrimonial africano, ou árabe, ou faraônico, segundo os momentos e as oportunidades. Atualmente, no patrimônio mundial, estão entrando as entidades imateriais, tais como os "pratos da gastronomia francesa" (2010). Até que ponto vamos nessa direção? Você disse que no Brasil há uma forte distinção legislativa. Claro, podemos imaginar as diferentes disposições legais para a proteção de edifícios e para as realidades intangíveis. Mas, isto pode vir a afetar o movimento de fundo? Devolvo a questão a você.

Sabina Loriga: E, às vezes, talvez inevitavelmente, damos aos fenômenos históricos uma "materialidade" arbitrária. Talvez seja o caso do projeto da rota dos escravos de Ouidah, uma cidade no sul do Benin, aprovado em 1993 pela Unesco. O antropólogo Gaetano Ciarcia mostrou que a realidade histórica das "estações" projetadas para representar sequências do

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"calvário" do tráfico não é confirmada pelas fontes documentais da época. Identificou-se aí uma "geografia" simbólica.

Jacques Revel: Vamos, provavelmente, na direção da promoção do patrimônio imaterial. Na Filadélfia, existe o percurso da Independência americana, que está demarcado em um perímetro urbano. Portanto, há coisas para ver. Em Berlim, para rememorar o genocídio, um memorial foi construído perto do Portão de Brandemburgo, um lugar que cria desconforto quando você o visita. Não só porque lembra o genocídio de judeus e de outras minorias, mas porque o layout físico do lugar – uma série de lajes ou estelas – dá uma sensação de mal-estar: você nunca está bem aprumado. Trata-se de uma invenção memorial, ou melhor, de uma invenção projetada para produzir memória, sem relação com a imagem do genocídio que encontramos em outros lugares.

Sabina Loriga: Visa-se agora a patrimonialização das sensações. No Museu da Revolta de Varsóvia – inaugurado em 2004, por ocasião do sexagésimo aniversário da revolta ocorrida nesta cidade contra a ocupação pelo exército alemão – os visitantes são convidados a entrar em uma reconstrução de esgotos, na qual a decoração e os efeitos visuais e sonoros pretendem criar uma atmosfera onde possamos nos imaginar tais quais os insurretos de outrora. Na cafeteria, você pode pedir um café preparado com ingredientes que foram usados durante a guerra. Eis aqui outra fronteira entre o material e o imaterial, onde a questão da definição dos critérios de autenticidade continua a ser muito complexa...

Sidney Lobato: Na América Latina há um forte discurso historiográfico que defende a preservação do patrimônio dos vencidos (escravos, trabalhadores, etc.). Na Europa existe esse tipo de clivagem?

Sabina Loriga: Eu não tenho certeza de que podemos falar de clivagem. Na verdade, o termo "história dos vencidos" remete "à história que sempre foi escrita pelos vencedores". Hoje, essa ideia é geralmente atribuída a Walter Benjamin. Mas, como lembra Eric Michaud, ela circulava na Alemanha, por meio das penas dos pensadores de direita, como Ernest Jünger. Era uma ideia disseminada. Em suas Teses sobre a história, Benjamin opõe a história dos vencedores àquela do historiador materialista, que busca reativar as possibilidades não

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realizadas, mas que existem na história. Desde então, houve uma série de diferentes versões deste projeto. Este é o caso da história oral. É também o dos estudos sobre a cultura popular. Na introdução de seu livro O queijo e os vermes, Carlo Ginzburg disse que queria resgatar a história dos vencidos. E essa ideia também marcou a história das mulheres e dos estudos subalternos. Esta ideia não cessa de reaparecer na historiografia. Nos últimos anos, ela tornouse uma questão importante na relação entre história e literatura. Hoje, muitos romancistas reivindicam a missão de escrever a "verdadeira" história dos vencidos, para dizer o que a historia ignorou. Limito-me a apenas dois exemplos. Para o romancista italiano Leonardo Sciascia, a literatura seria a forma mais absoluta que a verdade do passado poderia assumir, uma vez que a história teria sido sempre escrita pelos vencedores, com a intenção de legitimar seu poder. E o escritor antilhano Édouard Glissant repetiu insistentemente a ideia de que a tarefa do escritor é explorar as latências da história, para revela-las continuamente no presente e no atual. Para ele, não se trata simplesmente de integrar os "vencidos” no discurso da história; é preciso compensar a falta de lembranças ou registros com uma memória fictícia ou profética. Em suma, a literatura procura apresentar-se como um vector mais livre da memória social dos vencidos.

Jacques Revel: deste ponto de vista, a maior parte da produção histórica da segunda metade do século XX – e este ainda é o caso hoje – teve a ambição declarada de restaurar a história que foi menos registrada em fontes e, portanto, a mais difícil de apreender. A história das mulheres é um exemplo óbvio. Escrever a história das mulheres muitas vezes é retomar os habituais materiais da história a fim de descobrir aí o lugar das mulheres, que não aparecia nas primeiras abordagens. Mas, isso também é verdade para a história dos imigrantes em um país como a França, onde a imigração tem sido um fenômeno muito importante, que por muito tempo foi ignorado e que apenas tardiamente começou a ser estudado, pois não tinha um estatuto reconhecido.

Sidney Lobato: E na política patrimonial? No Brasil, por exemplo, temos a preservação dos espaços sociais dos vencidos...

Jacques Revel: Na Inglaterra, essa preocupação tem sido fundamental para a origem das History workshops das quais Sabina Loriga estava falando, isto é, das formas associativas Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.1 | julho-dezembro de 2015 | p. 26-41

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em que os historiadores profissionais colaboram com os atores sociais para contar e restabelecer as suas histórias. Os historiadores começaram a conduzir com eles um trabalho que pudessem controlar, mesmo que a preocupação não fosse exclusivamente o patrimonial: tratava-se de cultivar a consciência de classe, para lhe conferir uma legitimidade suplementar, que pudesse se basear na experiência temporal. Na Alemanha, temos o que foi chamado de história do cotidiano (Alltagsgeschichte) e que desenvolveu um programa semelhante, com um interesse particular nas formas de experiência comuns durante o período do Terceiro Reich.

Sabina Loriga: Na Itália também, embora talvez seja uma experiência menos conhecida. Especialmente nos anos 60 do século XX, houve algumas experiências interessantes em círculos de esquerda, mas que não eram comunistas. Por exemplo, Danilo Montaldi recolheu e elaborou uma série de histórias de vida das classes populares (imigrantes, ativistas políticos, vagabundos, etc.), enquanto Gianni Bosio e Roberto Leydi fizeram um trabalho muito importante de coleta de músicas populares. Finalmente, em 1985, Saverio Tutino, um jornalista que testemunhou a Revolução Cubana, abriu o Archivio diaristico nazionale à coleta de diários e de memórias de homens e de mulheres "comuns".

Jacques Revel: Na França, parece-me que, mesmo que o problema esteja posto, há menos experiências deste tipo, talvez porque é um país que continua a ser altamente institucionalizado e onde práticas centralizadas ainda são fortes.

Sabina Loriga: Talvez possamos pensar, apesar de tudo, na pesquisa dedicada à experiência protestante, penso em particular no trabalho de Philippe Joutard sobre os Camisards...

Jacques Revel: Sim, sem dúvida, a memória protestante. Em menor medida, a memória judaica. Mas, tenho a sensação de que, na seara do patrimônio, o modelo centrando no museu continua a ser predominante. Transformamos em museu bairros urbanos, desenvolvemos a arqueologia industrial, ou seja, as fábricas que já não mais produzem tornaram-se museus que visitamos. Mas, nós não investigamos, apesar disso, as memórias vivas.

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