Entrevista a Catarina Patrício

May 25, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoría: Arte Contemporanea, Desenho, Mulheres Artistas, Artistas portuguesas
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Descripción

Entrevista a Catarina Patrício1 Emília Ferreira Emília Ferreira – O teu desenho obedece à regra clássica de uma representação mimética, mas em termos temáticos e até da abordagem – do ‘ponto de vista’ – é completamente contemporâneo. Como defines a tua proposta plástica? Catarina Patrício – Poderia pegar na proposição de Hal Foster e moldá-la aos meus propósitos: é o retorno do real. E assumo que a minha proposta é programática: surge não como solução ao problema das artes, mas como recuo face a um excesso de obras sem obra, revestidas de uma falsa ideia de novo. Pelo menos o desenho, e o mundo da mimesis, têm a vantagem de cortar com essa ilusão pós-moderna. E a mão que faz está muito exposta e nesse sentido é também uma escolha muito honesta, não há espaço para pretensões. Uma proposta política, talvez. E.F. – No teu caso, o desenho é tudo: do projeto ao resultado final. O que expões são trabalhos sobre papel, o suporte clássico desta disciplina. Existe, para estas peças, um trabalho prévio, de esboço, de ensaio, ou o que é exposto é simultaneamente o projeto e a obra? C.P. – O meu desenho é isso mesmo: projecto e obra. Acho que é isso que me encanta mais no papel enquanto suporte. Existem, no entanto, desenhos que nunca sairão “da gaveta”. E.F. – O referente é evidente no teu trabalho. Figuras, espaços (se não a paisagem, pelo menos o contexto) e objetos são facilmente reconhecíveis. Como é que escolhes esses temas e pretextos? C.P. – Até os rostos são paisagens. Num primeiro momento o que existe é uma verdadeira pulsão para a figuração, para desenhar, para designar. Depois é pura transdução: do mundo “gasoso” das ideias ao mundo “sólido” dos objectos. E.F. – Que processos escolhes e que opções fazes para a composição da imagem final? 1

Entrevista para o catálogo da exposição Ciência do Desenho. Casa da Cerca-Centro de Arte Contemporânea,

Almada, 2012.



C.P. – Leituras aprofundadas, da filosofia à antropologia, tornou-se uma estratégia primordial. E claro, o cinema. Fui desenvolvendo uma táctica: pensar com imagens. A partir daí, o campo “semântico” (chamemos-lhe assim) é muito pessoal. Do ponto de vista logístico, vou arquivando pensamentos vertidos sobre imagens. São derivativas, claro! Reconheces cenários, gentes e situações. Mas é um processo bastante espontâneo. No fim, o desenho é que me diz onde quis ir. E.F. – O teu trabalho revela uma narrativa muito cinematográfica. As poses, o cuidado com a imagem (a personagem feminina que retoca a maquilhagem, das personagens retratadas remete para esse universo. Falaste uma vez na importância do filme do Stanley Kubrick, Dr. Strangelove, como sendo uma abordagem à guerra que te é especialmente interessante. É evidente que o é pela temática, por questões antropológicas; mas é-o também em termos estéticos? C.P. – O filme é puramente genial. É total: cosmopolítico e geoestético. É uma síntese incrível à bipolaridade da Guerra Fria, é altamente erótico pela constante menção aos “fluídos corporais”, convoca ainda o problema da extinção da espécie e remete-nos para a Terra. O Professor Bragança de Miranda, o meu orientador de doutoramento, lembra que com a aventura espacial apenas descobrimos a imensa solidão cósmica em que estamos mergulhados, impossibilitados verdadeiramente de habitar outro planeta. O filme do Kubrick trata já disso mesmo ainda antes de termos saído para a Lua. Será sempre na Terra que se resolverão os problemas e por isso a solução do Dr. Strangelove é o Bunker. E tudo acaba “bem” com a apoteótica explosão das bombas. Esse Eros a pulsar por todo o filme, também o braço autónomo do doutor, são em termos estéticos muito apelativos. E.F. – A guerra é um assunto que tens estudado no teu percurso académico mais teórico, que se seguiu às Belas Artes. O que é que atraiu neste universo, visualmente? C.P. – Sintetizando, direi: a guerra é um fenómeno absolutamente totalizante, tanto pela consubstanciação da técnica como pela arregimentação de energias, do trabalho humano aos recursos da Terra. A mobilização total descrita por Ernst Jünger é a guerra. E é também para o escritor um imenso vulcão cuspindo fogo. Foi o cinema que finalmente esclareceu como a guerra é altamente visual até ao ponto em que, como diz Virilio, Guerra é Cinema.

E.F. – O teu desenho é extremamente pormenorizado, em todos os aspectos da composição. A tua representação do tema não toma, contudo, como o eixo os cenários de destruição, mas a encenação que a sustenta. Há também qualquer coisa de banda desenhada na narrativa, no modo como o desenho é exemplarmente claro, mas simultaneamente gráfico (manchas mais expressivas conjugam-se com a linha definida, com a colagem). Porquê esta escolha? C.P. – Do ponto de vista formal, são escolhas que não consigo explicar. Faço porque gosto. Do ponto de vista conceptual, acredito mais na força poética da encenação e insinuação do que representações explícitas. Pura destruição pode cair numa pornografia da imagem choque que não me interessa. E.F. – A inclusão das mulheres (historicamente recente) na atividade militar é pretexto, da tua parte, para que tipo de reflexão? C.P. – Não dou muita atenção a questões de género. É evidente que as mulheres foram mantidas a uma certa distância de algumas actividades, profissões e cargos, e eu condeno essa deliberação histórica. Mas não me interessa reflectir sobre isso. Interessa-me muito mais pensar na humanidade e numa verdadeira política para a Terra planeta, do que em fragmentos ou casos particulares. Num momento em que só se falam em crises, seja a económica, a ecológica, a financeira, da arte, etc., parece-me ser politicamente necessário. E.F. – Em termos de formação académica, que importância teve – e mantém – a disciplina do desenho na tua obra? E como a conjugas com outros materiais? Como entendes este nosso tempo? C.P. – Sempre foi uma disciplina que me interessou. E criei tanta disciplina em torno desta disciplina que deixou de ser um problema técnico. E aqui a questão dos materiais parece querer dizer mais qualquer coisa. À medida que a lapiseira se foi tornando uma extensão do meu corpo, os lápis de cor e as tintas foram-se esvanecendo. E em relação a estes tempos... posso dizer-te que nesta era de velocidades, redes, ecrãs, espectáculo e ligações, desenhar faz-me voltar ao corpo. E.F. – Num universo saturado de imagens, que função pensas poder ter hoje a arte?

C.P. – É uma questão muito complexa e que tem originado grandes debates. No fim de contas desde Hegel que se pensa o problema da morte da arte, apesar de se ter tornado verdadeiramente problemático no século XX. Os sintomas são claros e estão identificados: tens milhões de objectos a circular (artísticos ou não, as categorias esbateram-se) e tens uma história da cultura visual “a rebentar pelas costuras”. Alguns vêm à visibilidade, outros não. As condições dessa aparição levar-nos-iam a outros territórios. Mas voltando à tua questão, se a arte corresponde à forma poética de fazer e ver mundos, o problema da sua função terá de ser recomposto ora a partir da ideia de obra de arte total, visível à totalidade do mundo (e sabemos como esta estetização foi muito perigosa no século XX) ora resignarmo-nos à ideia que tudo é possível, que todos, mesmo todos, produzimos arte, alguns objectos aparecem e outros não. É um vaticínio duro para um artista, mas é a mais pura verdade. Já o aceitei e não me preocupa mais. O que me interessa é sentir enquanto espectadora, simultaneamente dos meus desenhos e de todos os outros objectos artísticos, como existem desde os primórdios da humanidade objectos capazes de criar uma espécie de universo paralelo, como um espelho da Alice de Lewis Carroll. Aí há qualquer coisa de inexplicável... eu não consigo definir, mas que me parece ser ainda algo verdadeiramente mágico.

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