Entrevista 2015 (1)

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Descripción

FERNANDO PESSOA Celebração do poeta ENTREVISTA JERÓNIMO PIZARRO

21.ª edição da Cx. http://revistacx.pt/edicao_n__21/#!11

Diretor Francisco Viana Editor Luís Inácio Design Rui Guerra Arte Rui Garcia
Coordenação editorial (CGD) Ana Rita Rodrigues e João Silva
Colaboradores Ana Ferreira, Ana Rita Lúcio, Bárbara Silva, Fernando Brandão, José Miguel Dentinho e Sandra Cardoso (texto); Bruno Barbosa, Filipe Pombo/AFFP, João Cupertino e Miguel Manso, com agência Getty Images (fotos); António Malheiro/4Screen (vídeo); Dulce Paiva (revisão) Gestor de produto Luís Miguel Correia
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Periodicidade Trimestral (Edição n.º 21) Correio do leitor [email protected]
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Esta revista está escrita nos termos do novo acordo ortográfico

«Pessoa é o escritor que deixou mais armadilhas para a posterioridade» A muitos milhares de quilómetros de Portugal, o colombiano Jerónimo Pizarro tinha 18 anos quando leu pela primeira vez o «Livro do Desassossego». Não se apaixonou de imediato por uma das obras mais emblemáticas de Fernando Pessoa e estava longe de imaginar que, anos mais tarde, se tornaria num dos mais dedicados investigadores do espólio de «um dos escritores mais importantes do século XX». texto Bárbara Silva fotos Miguel Manso vídeo António Malheiro/4Screen

Numa altura em que se assinala o 80.º aniversário sobre a morte de Fernando Pessoa – a 30 de novembro de 2015 –, fomos encontrar Jerónimo Pizarro, tradutor e investigador da obra do poeta, no número 16 da Rua Coelho da Rocha, em Campo de Ourique. Durante esta visita guiada pela última morada do autor, hoje transformada na emblemática Casa Fernando Pessoa, o Colombiano que conquistou a nacionalidade portuguesa por amor a Lisboa e à

literatura nacional explicou-nos como se transformou num «arqueólogo» de uma obra que só será plenamente descoberta daqui a alguns séculos, como previu o próprio Fernando Pessoa. Como descobriu Fernando Pessoa? Jerónimo Pizarro: Tinha 18 anos. Sempre sonhei ser biólogo marinho por causa de uma forte relação com o mar, apesar de viver a 15 horas de distância do oceano. Mas a universidade não abriu o curso e acabei por ingressar em Antropologia e só depois é que passei para Literatura, simplesmente porque gostava muito de ler. Na mesma altura, comecei a trabalhar numa livraria e foi um livreiro, em Bogotá, que me sugeriu a leitura do Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, e foi enquanto empregado de uma livraria que conheci o livro. Levei-o comigo numa viagem e a partir daí... Foi amor à primeira vista? No início não adorei. Enquanto adolescente, não tinha uma sensibilidade propriamente recetiva para o decadentismo. O Livro do Desassossego foi escrito nos anos em que Pessoa trocou cartas com Mário de Sá Carneiro. Depois, há um interregno de uma década (entre 1919 e 1929) entre um primeiro e um segundo livro. Neste último é que Fernando Pessoa faz um grande descobrimento poético: Lisboa. A partir daí, temos as varinas, a Rua dos Douradores, o Tejo, temos pessoas na rua, temos gatos. Foi esse livro, o da segunda fase, o que me marcou muitíssimo. Em O Livro do Desassossego, eu reconhecia duas estéticas diferentes e inicialmente não adorei, porque não percebia por que estava a passar constantemente do decadentismo ao pós-decadentismo. Quando consegui perceber que são duas fases diferentes e separar um Fernando Pessoa muito mais dentro de si, muito mais narciso, de um outro mais luminoso, que tem aquela luminosidade típica de Lisboa, passei a adorar o livro. Foi o livro que o fez querer conhecer Lisboa? Para mim, O Livro do Desassossego não era apenas conhecer Fernando Pessoa, era conhecer Lisboa. E continuo a afirmar que se trata do maior retrato literário da cidade. Durante muito tempo, o livro foi para mim um retrato de uma cidade que eu queria muito visitar. Ficava fascinado e continuo a pensar que o melhor roteiro de Lisboa para uma pessoa que não conhece a cidade é O Livro do Desassossego, na fase em que Lisboa aparece, a partir de 1929.

Jerónimo Pizarro calcula já ter passado mais de 50 meses na Biblioteca Nacional, a estudar milhares de documentos manuscritos pelo próprio Fernando Pessoa. Sente que a descoberta da obra de Fernando Pessoa acabou por ser uma espécie de armadilha? Eu acho que essa era a ideia do autor ao deixar a sua obra dentro de uma série de arcas. Pessoa é o escritor que deixou mais armadilhas para a posterioridade, pensando-a de forma nietzschiana; de facto, há muitas coisas que só foram e só serão descobertas tardiamente. O poeta fez ainda um horóscopo para indicar que só será descoberto de forma plena em Portugal perto do ano 2200 e fez cálculos astrológicos para indicar que não será plenamente conhecido antes de passarem, pelo menos, três séculos da sua morte. Ele tinha uma ideia muito clara. Eu sinto que ainda passou muito pouco tempo sobre a morte de Pessoa. Oitenta anos não é nada. Para o próprio Pessoa, o reconhecimento só chegaria passado muito mais tempo. Ainda estamos no início do que Pessoa imaginou para si próprio. Como ensina Fernando Pessoa e outros autores portugueses aos seus alunos colombianos? Há uma procura muito grande por Estudos Portugueses e é um prazer muito especial poder contribuir para a descoberta de autores

que podem vir a ser marcantes para outras pessoas. É bastante interessante ler autores portugueses a partir de referências culturais diferentes. A cátedra de Estudos Portugueses do Instituto Camões na Colômbia foi para mim uma forma de abrir Fernando Pessoa a outros universos culturais e relacioná-lo com outros autores. Tenho para mim que não houve outro autor no século XX para quem a identidade tenha sido mais importante. Fernando Pessoa talvez seja o autor que mais pensou no assunto e que mais fez disso a sua vida e a sua obra. O livro Eu Sou Uma Antologia: 136 Autores Fictícios sugere que a contagem inicial de 72 personalidades criadas por Pessoa tenha ficado aquém do total. O único autor com uma contagem semelhante de personagens diferentes (cerca de 101) é o colombiano Léon de Greiff, contemporâneo de Pessoa. Os seus alunos continuam a dizer que vão para as «aulas da saudade»? Eu gosto muito da palavra «saudade». Não é muito utilizada, mas entrou recentemente no dicionário oficial da Real Academia Espanhola. Não é uma palavra que se ouça na boca de uma pessoa da América Latina, por exemplo, mas começou a ser mais utilizada nas traduções e, por isso, não precisa de ser traduzida. A minha aula é sobre o conceito e a ideia de saudade, e começou a ouvir-se nos corredores: «Vamos para a saudade.» Em que ano visitou pela primeira vez Portugal? Em 1995. Estava em Madrid, a caminho de Inglaterra, e achei que tinha que fazer outras coisas. Vir de autocarro de Madrid para Lisboa foi das melhores coisas que fiz. Lembro-me de pensar: «Lisboa é uma cidade onde gostaria de viver no futuro». E foi isso que aconteceu. Falei com a minha avó e ela disse-me que o meu avô também gostava muito de Lisboa. Foi uma viagem por intuição; sabia que iria sentir-me muito à vontade por afetos anteriores. Morei nos Estados Unidos e, passado alguns meses, achei que não era ali que queria estar. Em Lisboa, passadas duas ou três semanas, eu já estava inserido e tinha uma vida normalíssima. No ano 2000, chegou então para ficar. Qual era o plano? No início, era tirar o mestrado na Universidade Clássica de Lisboa, mas, como já cheguei em outubro, depois do início do ano letivo, só fui aceite na Universidade Nova, no mestrado de Estudos Portugueses, com a especialização em Literatura Comparada.

Depois fui para os Estados Unidos, mas regressei sempre a Lisboa para fazer o doutoramento na Clássica. Quando começou a mergulhar nas arcas pessoanas? Foi em 2003, depois de passar pela Universidade Nova, onde trabalhei com as pessoas que na altura tinham a exclusividade da obra de Fernando Pessoa. Durante anos, eu era um dos poucos, em Lisboa, a ir à Biblioteca Nacional de Portugal a requisitar os papéis pessoanos e a estar muitas horas na sala dos reservados. Lembra-se da primeira vez que esteve em contacto com algo que Pessoa tenha escrito com a sua própria mão? Para mim, foi uma sensação transcendente. Eu até já utilizei a expressão «epifania». Que aquilo não estava a acontecer e de como era possível estar nas minhas mãos. Mas, na verdade, a sensação de ter os papéis reais nas mãos é fortíssima, porque é a sensação de termos feito algum tipo de transgressão, em que entramos num espaço que não é nosso e que chegámos longe de mais. Ter o privilégio de poder ver os papéis de um escritor tão importante é uma sensação de grande responsabilidade e fascínio. Depois, houve outra sensação de ignorância, porque eu tinha estado a ler todos os livros de Fernando Pessoa de uma ponta a outra e, quando comecei a analisar o espólio, percebi que estava a encontrar inéditos intermináveis. O espólio não era uma forma de conhecer o desconhecido, mas continuar a conhecer o autor já publicado. Pensei que o conhecia, mas, na verdade, não o conheço. Estar ali era um exercício todos os dias de estar e encontrar mais e mais coisas que nunca teria lido se não tivesse requisitado os papéis. São milhares de documentos. Isso não o deixou assoberbado? Eu não estou aqui para fechar um trabalho, já não é esse o caso. Precisava de percorrer os documentos na sua totalidade para finalmente ter uma visão de conjunto da obra, que não tinha. E para poder conhecer o que não conhecia. Quando comecei a trabalhar com os papéis originais, percebi que era um trabalho para muito tempo, ao longo do mestrado, doutoramento e pós-doutoramento, entre 2000 e 2009. Pelo meio ficou a questão da dupla nacionalidade, que foi uma forma de sentir que ficava a existir para sempre uma ligação com Portugal, que continua a ser construída.

Sentia-se um arqueólogo? Inteiramente. Até porque estudei arqueologia e foi uma das cadeiras que marcou muito o meu percurso académico. Estudar Fernando Pessoa é um trabalho arqueológico sobre a literatura dos últimos dois séculos. Nós admitimos que há, mais ou menos, 30 mil papéis. É um labirinto em expansão. É muito difícil perceber o que está publicado e o que está por publicar, o que é outro labirinto. E, depois, há ainda um outro labirinto de muitas línguas, de uma escrita difícil. Tem ideia de quantas horas passou na Biblioteca Nacional, nas arcas pessoanas? Calculo que foram cerca de 50 meses, indo quase todos os dias úteis. Não era o meu plano inicial, nunca imaginei dedicar tanto tempo da minha vida apenas a Fernando Pessoa. Foi acontecendo, de forma natural, e hoje é uma das componentes da minha vida. Esta é uma ligação permanente com Fernando Pessoa. Se não tivesse deixado uma obra tão grande e tão vasta, seria simples ir por outros caminhos. Como reagiu ao receber o Prémio Eduardo Lourenço, em 2013? O Eduardo Lourenço foi o primeiro autor que li para compreender Pessoa. Receber o prémio foi um reconhecimento muito grande. Como divide agora o seu tempo entre a Colômbia e Portugal? A partir de uma certa altura, tive que decidir passar mais tempo na Colômbia e menos tempo em Portugal. Venho a Lisboa de quatro em quatro meses e em duas semanas faço aquilo que não faço em Bogotá em dois meses. Aqui há sempre a possibilidade de regressar ao espólio, de voltar a ver os papéis. Já estou com dois ou três livros na cabeça e em Lisboa posso confirmar informações, porque posso ter os originais na mão. É em Lisboa que gosto de fechar os projetos relacionados com Pessoa e com a literatura portuguesa. O que mais gosta de fazer neste momento: ensinar, escrever ou traduzir? A tradução é uma descoberta recente, dos últimos quatro anos, e tem sido fascinante, porque, na verdade, é uma forma de ter a escrita criativa mais próxima. Trabalhar no arquivo representa uma forma de paz. Traduzir, outra. Os estudos literários e críticos parecem nunca terminar. Mas os arquivos obrigam a recuar do

mundo da especulação ao mundo da materialidade e a tradução é a tentativa de voltar a escrever grandes obras. Costumo traduzir autores com os quais tenho grandes dívidas enquanto leitor. Algum dia irá conseguir ler os documentos todos deixados por Pessoa? Não, vai ser impossível. Não terei tempo de percorrer o espólio na sua totalidade e apenas poderei contribuir na publicação em alguns dos muitos livros que ficaram nas arcas pessoanas. Virei a publicar ainda muitos mais livros, mas editar todo o arquivo, não. Para isso, é necessário uma equipa muito mais alargada. Gostava de traduzir muitos autores portugueses, mas também não tenho tempo para tudo. Tenho entre cinco e sete ideias de livros que queria traduzir já amanhã, mas vou ter de esperar. Há um livro de ensaios críticos que ainda gostaria de preparar. Tenho muita coisa para fazer.

MADONNA E FERNANDO PESSOA Para Jerónimo Pizarro, não é de estranhar este fascínio recente das grandes estrelas pop pelo poeta português: «Fernando Pessoa foi muito lido na Califórnia desde cedo e faz parte dos cinco autores mais importantes do século XX em todo o mundo. Só é português por acaso, no sentido em que García Márquez apenas é colombiano por acaso. Pessoa é talvez o mais universal de todos os autores portugueses. Não há outro autor português que seja tão conhecido e com tanta procura neste momento. A Madonna é só mais uma grande artista a celebrar Pessoa.»

JERÓNIMO PIZARRO: UM COLOMBIANO APAIXONADO POR LISBOA Professor, tradutor, crítico e editor, Jerónimo Pizarro é o responsável pela maior parte das novas edições e novas séries de textos de Fernando Pessoa, publicadas em Portugal desde 2006. Professor da Universidade dos Andes, titular da cátedra de Estudos Portugueses do Instituto Camões na Colômbia e Prémio Eduardo Lourenço (2013), Pizarro abriu as arcas pessoanas e redescobriu «a biblioteca particular de Fernando Pessoa», para utilizar o título de um dos livros da sua bibliografia. 
Foi comissário da visita de Portugal à Feira Internacional do Livro de Bogotá (FILBo) e há vários anos coordena a visita de escritores de língua portuguesa à Colômbia. Coeditor da revista Pessoa Plural, assíduo organizador de colóquios e exposições, atualmente dirige a Colecção Pessoa na Tinta-da-china. Fonte: Editora Tinta-da-China

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