\"Entre a crença e a ciência\"

June 7, 2017 | Autor: Eliana Frazão | Categoría: Espiritismo, Ciências Sociais, Sociología, Saúde Mental, Psiquiatría
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Artigo de Revisão Bibliográfica

ENTRE A CRENÇA E A CIÊNCIA – A CONTROVÉRSIA ENTRE O ESPIRITISMO, A PSIQUIATRIA E A CIÊNCIAS SOCIAIS NA ANÁLISE DA SAÚDE MENTAL

Eliana Filipa Frazão Salgueiro 2015

Como em tudo o que existe no mundo e na vida, não há apenas uma forma de o/a perspetivar, mas sim várias, a nossa e a dos outros. Do mesmo modo que existem duas faces diferentes na mesma moeda, tudo com que lidamos no nosso dia-a-dia pode ser visto e interpretado de distintas maneiras, sem que haja a necessidade de considerar que uma está certa e a outra, errada. Pois, sem uma das faces, não existiria moeda, elas completam-se e tornam-na mais rica. Este raciocinio serve, a meu ver, para todos os parâmetros do “social” e do “domínio público”, ou seja, pretendo com isto dizer que, quando determinado assunto ou matéria diz respeito não só a “mim” mas também ao “outro”, adquirimos, consciente ou inconscientemente, a responsabilidade pela nossa opinião. A relação entre a Ciência e a Crença (ou a Religião no sentido mais estrito) foi sempre marcada por uma incompatibilidade de perspetivas, ideias, principios e valores e a ideia da sua complementariedade e pluridisciplinaridade, proposta por alguns, foi relegada para último plano, quando não perseguida e abafada, por outros. Tal como Vasconcelos se interrogou na obra “Espíritos Clandestinos: Espiritismo, Pesquisa Psíquica e Antropologia da Religião entre 1850 e 1920” , importa perceber «(...) porque é que o espiritismo era a idéia mais ridicularizada do século da ciência e porque é que os cientistas que se interessavam por ela eram olhados de soslaio pelos seus pares?», exatamente quando se dá a «emergência da pesquisa psíquica na conjuntura da separação moderna entre ciência e religião» (Vasconcelos, 2003, p. 100). Ou seja, o que é que faz com que a Ciência e a Crença não possam coexistir numa relação de harmonia? Porque não podem ser também elas as “duas faces de uma só moeda”?  Antes de falarmos e definirmos o que é a Religião, ou o que não é a Religião, torna-se relevante abordar o conceito de Cultura. Neste sentido é importante dar conta e significado à unidade e diversidade da cultura e da vida humana, visto que esta noção é usada e debatida cada vez com mais ênfase, quer nas ciências sociais quer no quotidiano de cada um.

Uma Sociedade é «um sistema de inter-relações que envolve os indivíduos coletivamente (...). Delas fazem parte milhões de pessoas (...) outras podem conter trinta ou quarenta (...).» (Giddens, 2010, p.22). O que as une é o fato dos seus membros se organizarem em relações sociais estruturadas segundo uma única cultura e, por isso, as culturas não podem existir sem as sociedades. Mas, do mesmo modo, nenhuma sociedade pode existir sem cultura. Sem cultura não seriamos “humanos”, no sentido em que usamos o termo, não teriamos linguagem para nos exprimirmos, nem sentido de autoconsciência, e a nossa capacidade de pensar e racicionar estaria limitada. Deste modo, quando falamos em Cultura não nos referimos apenas às “coisas elevadas de espírito”, como a arte, a literatura, a música e a pintura, mas também aos modos de vida dos membros de uma sociedade, que incluem «o modo como se vestem, as suas formas de casamento e de família, os seus padrões de trabalho, cerimónias religiosas e atividades de lazer» (Giddens, 2010, p.22). Assim, a Cultura refere-se aos aspetos das sociedades humanas que são aprendidos e não herdados, ou seja, eles são partilhados pelos membros da sociedade e tornam possivel a comunicação e cooperação. São esses elementos que formam o contexto comum em que os indivíduos vivem as suas vidas. A «cultura de uma sociedade engloba tanto os aspetos intagíveis – as crenças, as ideias e os valores que constituem o teor da cultura – como os aspetos tangíveis – os objetos, os símbolos ou a tecnologia que representam esse conteúdo» (Giddens, 2010, p.22) As ideias que definem o que é importante, útil ou desejável são fundamentais em todas as culturas e, são essas ideias abstratas, ou valores, que atribuem significados e orientam os seres humanos nas suas interações com o mundo social. Já as normas são as «regras de comportamento que refletem ou incorporam os valores de uma cultura» (Giddens, 2010, p.22). As normas e os valores variam imenso entre culturas e são eles que determinam entre si a forma como os membros de uma determinada cultura se comportam, por exemplo, algumas podem valorizar o individualismo e outras podem enfatizar as necessidades coletivas. Mesmo no seio de uma sociedade ou comunidade alguns grupos ou indivíduos podem deter valores contraditórios, como valorizar crenças religiosas tradicionais ou, por outro lado, preferir aprovar o progresso e a ciência.

Actualmente vivemos numa época marcada pela mudança, repleta de «movimentos globais de pessoas, bens e informação e por isso não é de estranhar que muitas vezes estejamos perante casos de valores culturais em conflito» (Giddens, 2010, p.23) Todas as culturas têm o seu padrão de cultura próprio, fator que se revela “estranho” às “pessoas de fora”, de outros contextos culturais. Torna-se importante relembrarmos que certos aspetos da vida quotidiana, que se tornaram inconcientemente assentes na nossa cultura podem não o ser noutras partes do mundo. É por esta razão que muitas vezes nos sentimos desorientados e perdidos quando nos inserimos numa cultura nova. Saímos da nossa zona de conforto e perdemos os pontos de referência que nos são familiares e que nos ajudam a entender o mundo que nos rodeia na tal forma que nos foi ensinada. As culturas podem revelar-se extremamente dificeis de ver e aceitar quando vistas de fora – ocorrendo muitas vezes o choque cultural – pois não é possivel compreender crenças e práticas se as separarmos das culturas de que fazem parte. Assim, uma cultura deve ser estudada e analisada segundo os seus próprios significados e valores (relativismo cultural), evitando o etnocentrismo, ou seja, sem julgar outras culturas tomando a nossa como medida de comparação. Os contextos culturais onde nascemos e crescemos influenciam o nosso comportamento, mas isso não significa que nos seja negada a individualidade e o livre arbítrio, ainda que por vezes possamos parecer «(...) o resultado dos moldes préconcebidos que a sociedade tem preparados para nós» (Giddens, 2010, p.29). Por intermédio da socialização aprendemos papeis sociais, ou seja, expetativas socialmente definidas que são seguidas por pessoas de determinada posição social. O papel do médico, por exemplo, envolve um conjunto de comportamentos que devem ser seguidos por todos os médicos, independentemente da sua personalidade, opinião ou formas de ver. De acordo com esta perspétiva, os indivíduos aprendem as expetativas associadas às posições sociais na cultura onde estão inseridos, desempenhando estes papéis tal como foram definidos. Não há espaço para a negociação ou criatividade, pelo contrário, o comportamento do indivíduo é condicionado.

Ora, no ponto de vista de Giddens (2010), e no meu, se assim o posso afirmar, esta pesrpetiva é errónea, pois sugere que os indivíduos apenas se limitam a desempenhar papéis, não intervindo na sua criação e negociação. O fato de estarmos envolvidos em interações com os outros, desde o momento em que nascemos até ao momento em que morremos, condiciona certamente as nossas personalidades, valores e comportamentos, no entanto, a socialização é um processo no qual também nós nos tornamos agentes e é nele que se encontra a origem da nossa própria liberdade e individualidade. Não somos «sujeitos passivos à espera de ser instruídos e programados» (Giddens, 2010, p.29) Toda esta matéria referente ao conceito de Cultura, revela-se pertinente à introdução do presente artigo, sendo que a meu ver, a identidade, ou seja, o entendimento que as pessoas têm acerca de si mesmas e daquilo que é importante para elas, vai condicionar a forma como veem e entendem as tradições, as ideias, as normas e os valores, bem como – central neste exercício - lidam com os simbolos e os significados das crenças religiosas do outro.  Ao longo dos tempos, a religião tem tido um importante papel na vida dos indivíduos e, sob uma forma ou outra, ela existe em todas as sociedades humanas conhecidas. Desde as sociedades mais primitivas, de que apenas adquirimos conhecimentos através de vestigios arqueológicos, estão presentes traços claros de simbolos e cerimónias religiosas, até hoje em que a religião continua a ser um elemento central da experiência humana, influenciando a forma como vemos e reagimos ao meio em onde estamos envolvidos. Com o desenvolver da modernidade, uma perspetiva racionalista veio conquistar muitos aspetos da nossa existência, fazendo com que a atitude religiosa e o pensamento moderno racionalista coexistam num «estado incómodo e de tensão» (Giddens, 2010, p.534). Por vezes, e como sabemos, a ciência e a religião revelam-se contraditórios, nomeadamente no que remete para as teorias evolucionistas e sobre a criação da história por exemplo, em que são reveladas duas formas muito distintas de compreender a origem do Homem.

Sempre houve e haverá reações contra a ciência e o pensamento racionalista por parte da religião e vice-versa, especialmente devido a questões fundamentais como o «significado e propósito da vida» (Giddens, 2010, p.534), temas que estiveram sempre no centro da religião e que alimentaram a ideia de fé, o “salto emocional” para a crença. A variedade de crenças e de organizações religiosas é de tal forma grande, que se tem notado uma dificuldade no sentido de se chegar a uma definição de religião genericamente aceite. Ainda assim, poderá ser enunciada uma série de carateristicas que parecem, segundo Giddens (2010) ser partilhadas por todas as religiões: o fato de todas elas implicarem um conjunto de simbolos que invocam sentimentos de reverência ou de temor, ligados a rituais ou cerimónias; o fato das pessoas acreditarem e venerarem uma “força divina”, ou um “deus”, ou “deuses pesonalizados” ou ainda outras figuras que “não são deuses” e a existência de uma múltiplicidade de rituais, hábitos e procedimentos de vida comum. A par das religiões que mais nos são familiares (quando falo em “nós”, falo em sociedades ocidentais) como é exemplo o Cristianismo, o Judaísmo, o Islamismo (religiões monoteístas), as religiões do Extremo Oriente, como o Hinduísmo (religião politeísta), o Budismo, o Confucionismo e o Taoísmo (religiões éticas que não têm deuses), existem outras, que nos são menos “conhecidas” talvez por serem recorrentes nas culturas mais pequenas, como é o caso do Totetismo e Animismo (religiões ligadas a crenças sobrenaturais e em espíritos). Outras doutrinas surgiram nos últimos cem, duzentos anos, como é o caso do Espiritismo Kardecista (2ª metade do século XIX) que será central no presente artigo, por se afirmar como uma abordagem triangular entre Ciência – Religião – Filosofia. O meu objetivo passa, primeiramente por identificar esta

“religião” (origem,

circunstâncias de surgimento, principios básicos, doutrina, visão sobre o mundo, entre outros), explicando sucintamente a forma como defendeu a sua cientificidade e como abordou a questão da prova dos fenómenos espirítas e, posteriormente analisar os seus simbolos, significados e questões terapêuticas relativos à saúde mental, confrontando-os com o entendimento psiquiátrico e das ciências sociais acerca dos mesmos. 

Falar de “espiritismo” implica imediatamente colocar-se sobre um «terreno de ambiguidades, imprecisões e, sobretudo de polissemeias» (Giumbeli, 1997, p.32). O termo foi introduzido em França, pela figura de Allan Kardec (1804-1869), pseudônimo do pedagogo Hippolyte Léon Rivail. Allan Kardec produziu uma doutrina, conhecida por Espiritismo Kardecista, que se baseava em preceitos científicos e estabelecia uma filosofia moral com diversos pressupostos como a existência de Deus, a imortalidade da alma, a crença na reencarnação e na pluralidade dos mundos habitados, e a capacidade de manifestação física de entidades espirituais. O espiritismo de orientação kardecista postula a existência de um universo dualista, ou seja, ”na sua concepção”, Deus criou não apenas o mundo material, onde vivemos o nosso dia a dia, mas dois mundos ou planos de existência: um mundo material ou visível, que nos é familiar, e o mundo espiritual ou invisível» (Jabert & Facchinetti, 2011) . Segundo esta doutrina, o mundo invisível, povoado pelos espíritos que o habitam, representa uma dimensão dinâmica que é responsável pelas nossas experiências no mundo visível, dando-lhes forma, sentido e substância. Kardec desenvolveu também uma teoria evolucionista, segundo a qual, «os indivíduos deveriam passar por várias etapas evolutivas até chegarem à perfeição espiritual». (Kardec, 2003; Giumbelli, 1997; Silva, 2006, cit. por Jabert & Facchinetti, 2011). Assim, cada espírito, ao ser criado, começa um «longo percurso de desenvolvimento, tanto moral quanto intelectual, que deverá levá-lo à perfeição» (Jabert & Facchinetti, 2011). Esta noção de progresso dos espíritos em direção à perfeição é o ponto central do sistema de crenças espíritas. Contudo, para evoluirem os espíritos do mundo invisível precisam de participar no mundo visível de forma a enfrentarem os desafios e sofrimentos do mundo material, que são encarados como “provações” Depois de cada encarnação, o espírito volta ao plano invisível, não necessitando mais do corpo que utilizou durante a sua vida. Assim ao desencarnar, descarta-o, assumindo um novo corpo quando voltar ao mundo material. Este ciclo demonstra o caráter secundário e inferior do corpo material em relação ao espirito, sendo que o primeiro se revela “temporário” e o segundo “eterno”. (Jabert & Facchinetti, 2011)

Kardec definiu a sua doutrina como uma «“ciência nova”, que vem mostrar “por meio de provas irrecusáveis» as relações do “mundo corpóreo” com o mundo espiritual, e que este último não é um mundo sobrenatural, mas sim uma das forças vivas e sem cessar actuantes da Natureza» (Vasconcelos, 2003, p. 116). O pedagogo tinha a noção que a sua doutrina não se tratava de uma ciência própriamente dita, mas sim “peculiar”, pelo que insistia na necessidade de provar a existência de espíritos de modo a fundamentar o Espiritismo como «“ciência” – “ciência religiosa” e “religião científica”» (Vasconcelos, 2003, p. 116). Contudo, esta “provação” constituía a parte de um grande problema, uma vez que esta (a prova) não podia ser objetivada como nas restantes ciências: «As ciências ordinárias assentam nas propriedades da matéria, que se pode experimentar e manipular livremente; os fenómenos espíritas repousam na ação de inteligências dotadas de vontade própria e que nos provam a cada instante não se acharem subordinadas aos nossos caprichos.» (Kardec, 1944, cit, por. Vasconcelos, 2003, p. 116). Sendo o objeto de estudo, o “espirito” ou o “médium” ditava-se impossível o uso normal dos instrumentos experimentais de que a ciência se faz acompanhar. Ainda que se tenham desenvolvido diversas técnicas, entre o final do século XIX e início do século XX, para se objetivar a existência / presença de espíritos, nenhuma delas «foi capaz de produzir resultados que convencessem a generalidade dos cientistas (...)» ainda que produzissem «resultados suficientemente convincentes para os espíritas e para os espiritistas em geral.» (Vasconcelos, 2003, p.117) O espiritismo começa a ser abordado e discutido no Brasil na segunda metade do século XIX, logo após as primeiras edições das formulações de Kardec. As obras “O Livro dos Espiritos” e “O Livro dos Médiuns” são dois dos cinco textos centrais do autor, publicados em 1857 e e 1861 respetivamente. Na década de 60 do mesmo século a obra de Kardec era já conhecida no Rio de Janeiro entre grupos de franceses radicados no Brasil e de brasileiros francófonos. Outros dos marcos que tornam visível a presença do espiritismo no país passam pela tradução para a lingua portuguesa das suas obras em 1875, e a fundação da Federação Espírita Brasileira, em 1884, no Rio de Janeiro. (Damazio, 1994, cit, por. Lima, 2011, p.29) O debate acerca das relações entre a religião e a saúde mental levantam a necessidade de uma abordagem multidisciplinar e interdisciplinar, que ultrapassa as

fronteiras da psicologia e o diálogo com as ciências das religiões, e se completa com os conhecimentos oferecidos pelas ciências sociais como a sociologia e a antropologia, bem como pela psiquiatria. Ainda que o espiritismo kardecista tenho recebido pouca ênfase durante o século XX, o interesse no estudo científico de fenómenos mediúnicos deu-se em parte ao surgimento da psiquiatria na Europa, nomeadamente no que respeita a sua análise crítica e pesquisas realizadas no âmbito da saúde mental. (Alvarado, Machado, Zangari, & Zingrone, 2007; Aubrée & Laplantine, 1990 cit, por Lima, 2011, p.16). Contudo, a partir de 1990, a temática complexa e multifacetada das relações entre psiquiatria e espiritismo no Brasil passa a ser alvo de «discussões académicas mais frequentes e produções bibliográficas mais intensas» (Dalgalarrondo, 2007, cit, por. Lima, 2011, p.16). O antropólogo Emerson Giumbelli desenvolveu diversos estudos a respeito do espiritismo, onde acentua a sua relação com o saber médico. Na sua obra “O Cuidado dos Mortos” (1997), Giumbelli analisou a especificidade dos discursos produzidos acerca do espiritismo entre 1890 e 1950 e debruçou-se tanto sobre a forma pela qual os grupos espiritas se articulavam internamente quanto sobre os discursos médicos, juridicos e jornalisticos desenvolvidos acerca dos mesmos, tudo isto através de um olhar reflexivo sobre a trajetória da Federação Espírita do Brasil. O cerne deste trabalho residiu na importância da discussão da repressão sofrida pelo movimento espírita e no acompanhamento dos processos penais movidos contra os espíritas no inicio do século. Este estudo apontou também para a «autoridade e consistência que o discurso médico ganhou com a patologização da mediunidade e ao mesmo tempo para as relações entre as exigências médicas de monopólio no tratamento dos doentes e a razão jurídica» (Giumbelli, 1997, cit, por Lima, 2011, p. 16) Noutra das suas obras – “Heresia, doença, crime ou religião: o espiritismo no discurso de médicos e cientistas sociais”, Giumbelli aborda de forma central textos médicos, explicitando como alguns psiquiátras da época como Nina Rodrigues ou Leonídio Ribeiro definiam e analisavam o espiritismo. O autor vai demonstrar como «a noção de espiritismo se transforma quando as categorias e argumentos inicialmente mobilizados pelo discurso médico passam a ser tratados por antropólogos e sociólogos» (Lima, 2011, p.16).

Através da análise do emprego das noções de “higiene mental” e “saúde pública” nas décadas de 1920 e 1930 e do estudo da atuação do médico Arthur Ramos relativamente à forma como este se colocava em relação de complementaridade com intervenções medicalizantes, responsáveis pela repressão aos centros espíritas, Giumbelli vai concluir que a classe médica dos finais do século XIX e inicio do século XX entendia as práticas mediúnicas como graves ameaças à saúde mental da população e que as mesmas deveriam de ser combatidas com a prisão ou internamento. O contexto médico-científico e a construção da noção de “loucura espírita” são retomados, através de uma revisão das obras de psiquiatras do começo do século XX, de modo a tecer uma reflexão sobre os elementos internos à psiquiatria que podem ter contribuído para o estabelecimento do confronto “medicina versus espiritismo”. Entre os fatores epistemológicos destacados estão «a insensibilidade cultural dos psiquiatras da época, que, pressupondo a existência de uma observação “ateórica”, não percebiam a influência das suas próprias crenças e desejos nas investigações; o apego à verdade sustentado pela ciência e o autoritarismo derivado do fato do cientista ser o “agente enunciador da verdade”; e, por último a tendência ao indutivismo e ao verificacionismo, que conduzia os psiquiatras a procurarem na sua clínica exemplos que confirmassem as teorias defendidas na Europa» (Lima, 2011, p. 17) Este tema é desenvolvido também posteriormente pela historiadora Angélica Almeida na sua obra “Uma fábrica de loucos: psiquiatria e espiritismo no Brasil (19001950)”, onde a mesma se foca na investigação do processo da construção da representação da mediunidade enquanto loucura, ou seja, na «análise da interpretação, dada pelos psiquiatras, das experiências mediúnicas espíritas como causa ou manifestação de doenças mentais» (Lima, 2011, p. 17) Segundo esta autora, a primeira metade do século XX foi marcada por uma disputa entre psiquiátras e espíritas, pela legitimação das suas próprias visões e abordagens terapêuticas em relação a questões como a mente e a loucura. De acordo com a sua análise, o discurso acerca da “loucura espírita” terá servido como uma estratégia dos psiquiátras para desqualificar o “adversário”. A proposta para a resolução deste conflito, segundo Almeida, só era possível com a legitimação simbólica dos grupos

nos

diversos

campos:

a

psiquiatria

se

consolidaria

no

espaço

académicocientífico-institucional, e o espiritismo, no campo religioso» (Almeida, 2007, cit, por. Lima, 2011, p. 18). Também Alexander Jabert se irá debater sobre estes temas, ainda que a partir de uma abordagem diferente. Na sua obra “De médicos e médiuns: medicina, espiritismo e loucura no Brasil da primeira metade do século XX”, o autor vai investigar as práticas terapêuticas e de saber, de orientação kardecista, a respeito da loucura, e a reação da classe médica no tratamento do louco e da loucura. (Lima, 2011, p. 18) Para Jabert, o campo de relações entre a psiquiatria e o espiritismo é mais complexo do que uma questão de hegemonia. Por esta razão, em vez de apontar carateristicas que acentuam o contraste entre as duas “ciências”, criticando-as, o autor vai, ao invés, evidenciar pontos de aproximação e afastamento no que respeita as formas de atuação no atendimento à saúde mental. Jabert (2008) argumenta que «as concepções espíritas de saúde e doença, procedentes, por um lado, do mesmerismo e da homeopatia e, por outro, do conceito de loucura por obsessão espiritual, obtiveram significativa penetração nos meios médicos, tendo o espiritismo de orientação kardecista agregado numerosos aliados entre a classe médica» (Lima, 2011, p. 18). Assim, contráriamente à percepção descrita inicialmente, onde foi referido que a classe médica criticava o espiritismo de forma ampla, veio a confirmar-se que a análise dos debates médicos da época evidenciam que não existia, de fato, um consenso sobre a postura a ser adotada em relação às práticas espíritas de cura. «Em resposta aos ataques perpetrados por setores da classe médica, o principal argumento utilizado pelos médicos defensores do espiritismo foi sempre o caráter “científico” tanto das pesquisas espirituais quanto do próprio estatuto do espiritismo» (Lima, 2011, p. 18). Os critérios de cientificidade dos experimentos levados a cabo pelos grupos espíritas desse período, apontam para os ideais de cientificidade atrelados às concepções empiristas da ciência positivista. «A busca pela verdade universal e necessária e por leis imutáveis que explicassem a natureza e o mundo social movia pesquisadores na construção de teorias que, baseadas em observações minuciosas da realidade, pretendiam representar, de maneira verdadeira e absoluta, a realidade em si mesma» (Lima, 2011, p. 18). É essa

compreensão positivista de “ciência fundamentada em fatos” que é incorporada à proposta kardecista de uma doutrina filosófico-religiosa “científica” que, ao mesmo tempo, se opunha às crenças religiosas abstratas ou hipotéticas e apostava na apreensão científica do mundo espiritual, ou seja, na compreensão de que «os fenómenos metafísicos eram passíveis de observação e experimentação» (Lima, 2011, p. 18), tal como descrito anteriormente. Nos último anos, novos passos têm sido dados no âmbito do estudo acerca da diversidade de posições médicas a respeito dos fenómenos mediúnicos. Exemplo disso, é a obra de Almeida, Oda e Dalgalarrondo (2007) que, através de uma revisão bibliográfica de psiquiátras brasileiros no período entre 1900 e 1950, identificaram que se constituiram duas correntes de pensamento lideradas, em primeiro lugar, por um grupo de psiquiatras que sustentou hipóteses e práticas mais próximas de uma perspectiva cultural ou antropológica, que, apesar de compreender os fenómenos de transe e possessão como “primitivos” e defender o controle médico e a educação para o controle das práticas espíritas e mediúnicas, não as considerava desencadeadores da loucura e, em segundo lugar, outro grupo, que devido à competição estabelecida entre médicos e espíritas pela legitimidade e hegemonia no tratamento da loucura, adotou o combate ao espiritismo, considerado um dos fatores determinantes para o avanço da alienação mental no Brasil. Por fim, Arthur Isaia (2008) é outro dos autores que vem abordar a temática do espiritismo no âmbito das classes médicas. Isaia ao analisar uma tese de doutoramento de Brasílio Machado, datada de 1922, que fora reprovada pela banca examinadora, percebe e aponta para a existência, já nessa época, de uma tentativa de defesa do espiritismo, sendo que esse trabalho procurou a possibilidade de um diálogo entre a medicina e o espiritismo, propondo uma revisão dos principios norteadores da psiquiatria. (Lima, 2011, p. 19) Isaia observou ainda que os doentes recorriam frequentemente a práticas populares de cura para resolver problemas de alienação mental. Ora, quando esses recursos falhavam, eram procuradas outras formas de tratamento, seja na medicina ou no espiritismo. Esta procura de recursos terapêuticos no espiritismo veio a comprovar, segundo Jabert (2008), a capacidade que a sua doutrina possuía/possuí na explicação

satisfatória para o adoecimento e uma possibilidade de positivação da experiência da loucura, o que a tornou ou a torna “algo suportável”. (Lima, 2011, p 22) «A pesquisa psíquica e o espiritismo (em especial na sua variante kardecista) foram empreendimentos intelectuais decididamente modernos, na medida em que derivaram de uma consciência aguda da separação entre ciência e religião.» (Vasconcelos, 2003, p. 103/104). No fundo, o espiritismo e a pesquisa psíquica vieram, no século XIX, desafiar a relação entre a Ciência e a Crença, exatamente, quando esta última tentava marcar passos na “naturalização do munndo dos espíritos”. Ainda que contorbadas, entre negociações e conflitos, as “fações religiosas” e as “fações cientificas” persistem e continuam hoje inseridas na definição kardecista de Espiritismo. Constata-se efetivamente que, atualmente, há uma separação entre a ciência e a religião bem como dos diferentes niveis de legitimação que são conferidos aos conhecimentos de cada uma. E, mesmo que o conhecimento cientifico se tenha tornado “padrão” daquilo que se pode considerar “conhecimento”, sabemos também que a maioria de nós não aprendeu a conhecer cientificamente o mundo que nos rodeia. O fato deste conhecimento ser considerado verdadeiro e “universal”, não quer dizer que tenhamos deixado de ser crentes, mas sim que aprendemos a viver a religiosidade de forma diferente, talvez, diria eu, “como duas faces da mesma moeda”. (João Vasconcelos, 2003, p. 102-103/128). BIBLIOGRAFIA - ALMEIDA, A. A. Silva De. (2007) - “Uma Fábrica de Loucos – Psiquiatria X Espiritismo no Brasil (1900 – 1950)”. Tese de Doutorado em História do Instiuto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. 2007. Disponivel em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000404162

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