en passant - Estórias e Histórias de xadrez

June 28, 2017 | Autor: Salomão Rovedo | Categoría: History and Memory, Chess, Brazilian chess history
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Descripción

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Salomão Rovedo

en passant

Estórias e histórias de xadrez

Rio de janeiro 2015

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Salomão Rovedo

en passant Estórias e histórias de xadrez

Rio de janeiro 2015

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Índice Tempo de atirar pedras, pg. 4 * Xadrez, Ricardo Reis

Começando no CXG, pg. 7 Vivendo o jogo, pg. 20 Félix Sonnenfeld, pg. 25 Waldemar Costa: Xadrez como religião, pg. 35 José Soares Másculo, pg. 42 * Másculo - Yosupov

O excêntrico Jorge Lemos, pg. 58 Além do Reino de Caissa, pg. 70 O Mestre Alexandru Segal, pg. 72 O fabuloso N. N., pg. 77 O Campeão Olício Gadia, pg. 79 Torneio Aberto de Nova Friburgo 1980, pg. 85 Sérgio Farias: Mr. Interzonal, pg. 88 Reflexões en passant, pg. 98 Um certo Herman Claudius, pg. 101 El cordobés Luís Bronstein, pg. 104 Mecking, Mecking, Mecking, pg. 109 * Mequinho - Poluga * Bellón & Mecking * Quase epílogo * Dossiê Mecking

As dívidas do esquecimento, pg. 142 Revistas & Boletins, pg. 148 * Eu e a Revista Jaque * Revista Ajedrez 6000 * Revista Caissa * Idel Becker e a revista Caissa * Boletins do CXG

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Tempo de atirar pedras

2015 no CXG

“Não considero a nossa memória um elemento que retém por acaso apenas uma coisa e que por acaso perde outras, mas sim uma força que conscientemente ordena e sabiamente exclui. Tudo o que se esquece de nossa própria vida, já estava condenado a ser esquecido.” Stefan Zweig

Pretendo desfibrar a memória do tempo em que andei metido a jogar xadrez. Nos anos 1960/1980 eu estudava e trabalhava e, como todo brasileiro, estive envolvido em atividades políticas com o objetivo de salvar o Brasil. O foco da minha guerrilha poética era a descorrupção da política, combate ao empresário desonesto, redução dos partidos, reforma agrária, etc. Rezava a cartilha do nacionalismo: contra coca cola e hamburg, a favor do bife com fritas – e outros embates quixotescos. Como Pierre Proudhon, considero a propriedade um roubo. Assim, também o direito autoral, a posse, a patente e outras posses. Tudo que for inventado, criado, descoberto pelo homem pertence à humanidade e grátis. Aí vi que todo empresário é gatuno, os produtos são desonestos, o objetivo do político é $$ e poder, brasileiros se matando à toa, a democracia made in USA dava golpe a torto e a direito, a sociedade feudal é racista como nos tempos d‟antanho. Só não perdi a fé: afinal, fui criado na Ilha Rebelde. Buscava a Iluminação, esperava o Nirvana. Estava nesse rito quando a PM estourou o colégio, o restaurante popular, a UME, o Calabouço, na Av. Beira Mar, bem perto do CXG. E pior: tudo foi abaixo para erguer o pavilhão da Assembleia do FMI – meu inimigo nº 1. Aí foi demais! Mexeu com meus brios paraibanos e maranhenses! Em represália aceitei o emprego de office-boy que meu tio tinha oferecido e fui jogar xadrez. Apesar de só ter conseguido recuperar cerca de 70% do que produzi – e de falhar a memória – eu resolvi juntar este magote de lembranças dos tempos de xadrez... o jogo que me salvou de cair naquele outro xadrez... da maricota, do pau-de-arara, da tortura. Rio de Janeiro, Cachambi, 2013/2015

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Xadrez Ricardo Reis Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia tinha não sei qual guerra, quando a invasão ardia na cidade e as mulheres gritavam, dois jogadores de xadrez jogavam o seu jogo contínuo. À sombra de ampla árvore fitavam o tabuleiro antigo, e, ao lado de cada um, esperando os seus momentos mais folgados, quando havia movido a peça e agora esperava o adversário, um púcaro com vinho refrescava sobriamente a sua sede. Ardiam casas, saqueadas eram as arcas e as paredes, violadas, as mulheres eram postas contra os muros caídos, traspassadas de lanças, as crianças eram sangue nas ruas... mas onde estavam, perto da cidade, e longe do seu ruído, os jogadores de xadrez jogavam o jogo do xadrez. Inda que nas mensagens do ermo vento lhes viessem os gritos, e, ao refletir, soubessem desde a alma que por certo as mulheres e as tenras filhas violadas eram nessa distância próxima, inda que, no momento que o pensavam, uma sombra ligeira lhes passasse na fronte alheada e vaga, breve seus olhos calmos volviam sua atenta confiança ao tabuleiro velho. Quando o rei de marfim está em perigo, que importa a carne e o osso das irmãs e das mães e das crianças? Quando a torre não cobre a retirada da rainha branca, o saque pouco importa. E quando a mão confiada leva o xeque ao rei do adversário, pouco pesa na alma que lá longe estejam morrendo filhos. Mesmo que, de repente, sobre o muro surja a sanhuda face dum guerreiro invasor, e breve deva em sangue ali cair o jogador solene de xadrez, o momento antes desse (é ainda dado ao cálculo dum lance para o efeito horas depois) é ainda entregue ao jogo predileto dos grandes indiferentes. Desmoronem cidades, sofram povos, cesse a liberdade e a vida, os haveres tranquilos e avisos ardem e que se arranquem, mas quando a guerra os jogos interrompa, esteja o rei sem xeque, e o peão de marfim mais avançado pronto a tomar a torre. Meus irmãos em amarmos Epicuro e o entendermos mais de acordo com nós próprios que com ele, aprendamos na história dos calmos jogadores de xadrez como passar a vida. Tudo o que é sério pouco nos importe, o grave pouco pese, o natural impulso dos instintos que ceda ao inútil gozo (sob a sombra tranquila do arvoredo) de jogar um bom jogo.

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O que levamos desta vida inútil tanto vale se é a glória, a fama, o amor, a ciência, a vida, como se fosse apenas a memória de um jogo bem jogado e uma partida ganha a um jogador melhor. A glória pesa como um fardo rico, a fama como a febre, o amor cansa, porque é a sério e busca, a ciência nunca encontra, e a vida passa e dói porque o conhece... O jogo do xadrez prende a alma toda, mas, perdido, pouco pesa, pois não é nada. Ah! Sob as sombras que sem querer nos amam, com uma moringa de vinho ao lado e atentos só à inútil faina do jogo do xadrez, mesmo que o jogo seja apenas sonho e não haja parceiro, imitemos os persas desta história, e, enquanto lá por fora, ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida chamam por nós, deixemos que em vão nos chamem, cada um de nós sob as sombras amigas sonhando, ele os parceiros, e o xadrez a sua indiferença. ☼☼☼☼ O xadrez é uma pedra de toque para a inteligência. (Goethe) Certo Príncipe, que jogava ao estilo Philidor, pegou o Rei e disse: – Pobre Rei! Qual é teu poder? Foges quando eu avanço, tuas derrotas se sucedem uma atrás da outra. Eu, ao contrário, tenho exércitos que levam meu estandarte por todo o mundo. Isto é reinar! Eu faço a paz, faço a guerra. Então, ó prodígio! – o Rei de marfim fala: – Príncipe, minhas proezas pesam pouco; minha vida não inspira ambições; mas não faço nenhum mal e quando me vencem a minha derrota não fará verter uma gota de sangue sequer! (Ainé Pluchonneau) Um clube de xadrez é o mais oposto a uma igreja qualquer, a um centro de comunhão espiritual. O xadrez pode chegar a ser um dos meios de se enlaçar as pessoas sem comprometer, nessa integração, as suas almas. (Miguel de Unamuno) Se os graus de destreza no jogar correspondessem aos do entendimento, os grandes jogadores de Xadrez seriam os maiores gênios do mundo. (Jerónimo Feijoo) É um jogo gentil e agudo, e um bom passatempo, embora nele encontre uma falha: é que pode ser prejudicial saber jogá-lo bem, porque para isso teria que gastar muito tempo e dedicar tanto estudo como a qualquer outra ciência – e ao final de tudo não alcançaria mais do que ser excelente num jogo. (Castiglione) Os xadrezistas conseguem com o diálogo de movimentos, a muda comunicação de inteligência necessária ao exercício da sabedoria e do posicionamento. (FernándezBraso) É mais que um jogo. É uma diversão intelectual que tem algo de arte e muito de ciência. Ademais, é um meio de aproximação social e intelectual. Por isso, o xadrez deveria fazer parte do programa escolar de todos os países. O xadrez é no domínio intelectual o que o esporte é na esfera física: um meio agradável de exercitar a parte do corpo que se deseja desenvolver. Ademais, o xadrez serve, como poucas coisas neste mundo, para distrair e esquecer as preocupações da vida diária. (Capablanca) Compilado de: Júlio Ganzo - História General del Ajedrez - Ed. Ricardo Aguilera, Madri, 1966.

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Começando no CXG

Mas tudo começou mesmo foi no período em que entrei pela primeira vez no Clube de Xadrez Guanabara, cuja sede é na Av. Churchill, meu caminho cotidiano. O clube estava em ebulição: seu Presidente, o Gen. Pianchão de Carvalho tinha falecido e havia que arrumar o clube para entrar em nova era, sem o esteio que era Pianchão de Carvalho. Descobri o endereço nas Páginas Amarelas e logo procurei me associar ao clube, sendo recebido pelo Pedro, funcionário antigo que se tornava amigo de todos quantos entrassem ali. O símbolo que encabeça este capítulo deveria simbolizar C X C, ou seja, na notação antiga dos lances, Cavalo toma Cavalo. Por quê? Segundo Félix Sonnenfeld me contou, na verdade o clube nasceu em 1956 com o nome Clube de Xadrez Carioca. Na hora de oficializar o registro nos cartórios e entidades que representavam o esporte, se descobriu que já existia um clube com o mesmo nome. Alguém conhece o Clube de Xadrez Carioca? Pois ele existe sim, só que nada tem de xadrez. Trata-se do clube onde funciona a casa de espetáculos conhecida como Sambola, Av. Dom Hélder Câmara (antiga Av. Suburbana) no Bairro da Abolição. [Depois viria a conhecer o Clube de Xadrez de Nova Friburgo, onde o xadrez é a única atividade que não existe], Naquela época o Sambola era de propriedade do empresário e também bicheiro José Caruzzo Escafura, mais conhecido como Piruinha. Os fundadores do o CXG tentaram a liberação do nome, mas foi tudo em vão. O Sambola, que em princípio dava espetáculos de samba, transformou-se em salão para bailes funk, dos mais famosos dos subúrbios cariocas. Aliás, o nome se sofisticou e hoje é chamado Sambola Hall.

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Portanto, em não podendo ser Clube de Xadrez Carioca, alterou-se para Clube de Xadrez Guanabara, nome do Estado que substituiu a Capital Federal. Assim também o símbolo sofreu alterações e ficou C X G, com os Cavalos se cruzando, mas à primeira vista sem nenhum sentido. Como ia dizendo, o Pedro recebia os sócios, mas também servia de sparring para os novatos. Certo dia, vendo que eu em vez de jogar, preferia ficar circulando entre as mesas, assistindo às partidas – geralmente aquele ping violento de cinco minutos – ele se sentou ao tabuleiro e me convidou para jogar. Assim, fui perdendo a inibição e entrei para disputar um ping (quem perdia levantava e cedia a vez), mas fui impiedosamente massacrado por Henry Levinsphul, fortíssimo jogador, contra quem ousei jogar a Abertura Larsen! Depois tentei várias vezes participar do ping, mas voltei a ser de novo trucidado, o que me fez abandonar aquela loucura e optar por disputar torneios de partidas pensadas. A renúncia às disputas de ping foi a primeira atitude que tomei em respeito aos princípios que assinalei em linhas gerais sobre o que queria do xadrez. Com exceção dos torneios de ping realizados aos sábados (chamados Rock) – que são organizados e distribuem prêmios simbólicos – essa prática sempre causou discussões, atritos, chegando à agressão física. E pior: algumas vezes o chamado mal súbito, que poderia ser infarto, um leve AVC, pressão alta ou outra doença, que tais extremos de ira e irritação incrementam, deixava o jogador prostrado, carecendo de imediato atendimento médico ou mesmo internação para tratamento. Essas ocorrências eram agravadas quando a partida incluía apostas a dinheiro. Essa prática era assim tipo secreta, visto que o regulamento do CXG proibia qualquer atividade a dinheiro. Nos primórdios o CXG também tinha adeptos do jogo de Dama e Gamão. Ainda presenciei alguns associados que frequentavam o CXG para jogar Dama. ☼☼☼☼

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Uma figura imprescindível no CXG e para o xadrez da época era o Dr. José Carlos de Almeida Soares. Muitas vezes encontrei Almeida Soares na Rua São José, próximo ao Fórum, onde prestava serviços jurídicos, quase sempre de graça. Andava com algumas pastas na mão e um ou dois livros. Era um doador compulsivo, porque todas as vezes que a gente se encontrava ele dava jeito de me presentear um livro. Almeida Soares tinha sempre uma palavra útil ou filosófica sobre a vida, sobre o xadrez. Não perdia a oportunidade de ser sarcástico nos comentários sobre seus pares, inclusive no xadrez – então soltava grandes gargalhadas, em que sobressaíam na boca alguns espaços sem dentes. Uma das coisas a que ele resistia era o uso da expressão „enxadrista‟ (e todas as variantes). Para ele a versão exata em português seria „xadrezista‟. E também: depois da unificação dos Estados do Rio e Guanabara, a entidade administrativa deveria se chamar „Federação Fluminense de Xadrez‟– pois se tratava de representar todo o Estado, não somente „Carioca‟ ou „Metropolitana‟, como se chamou durante algum tempo – que refere apenas à cidade do Rio de Janeiro. Almeida Soares, negligente na aparência, como a maioria dos intelectuais de seu tempo, andava com o paletó semiamarrotado, gravata descuidada, sempre com aspecto mal ajambrado, semblante distraído, absorto nos muitos labirintos em que o pensamento se extravia. Sem ter nenhum encontro marcado, a gente se esbarrava por ali, nas redondezas do Fórum, então arrumávamos tempo e lugar para sentar e conversar. Sempre tinha nas mãos algum livro, jornal ou revista, ocasião em que muitas vezes fui presenteado, sem direito a recusar, com um volume sobre história, política ou direito – poucas vezes de xadrez. Era fácil encontrá-lo pelas redondezas da Travessa da Natividade, ao lado da Igreja de São José, onde tinha o Restaurante Chamego do Papai, muito frequentado pelo pessoal do Fórum, advogados, assistentes, escrivães, juízes, promotores, que se acomodavam democráticos nas cadeiras espalhadas pelo calçadão. Outro ponto de encontro dessa turma – que frequentei algum tempo pelas amizades – era o Restaurante Casa Urich, também na Rua São José, onde servia tradicional kassler com salada

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de maionese, tão bom quanto o do Bar Luiz ou do Bar Brasil, além do chope na caldereta gelada. Almeida Soares, segundo me contou, prestava serviços jurídicos, quase sempre de graça. Também advogava, quando necessário, pelo CXG. A maioria de seus „clientes‟ eram pessoas sem recursos, que por qualquer motivo estava sendo esbulhado pelos mais espertos. Por isso ele andava com várias pastas de processos nas mãos, entre um ou dois livros. Era a bondade em pessoa, um doador compulsivo, porque todas as vezes que a gente se encontrava queria porque queria me dar algo – se não tivesse nada à mão, decerto me daria bons conselhos e belas frases morais. Era doador também de seus conhecimentos a novos causídicos que sempre o procuravam onde quer que estivesse. Não poucas vezes fomos interrompidos na rua por um ou vários de seus „alunos‟, em busca de alguma informação ou conhecimento sobre a prática jurídica. Morador de Copacabana, próximo à Praça Serzedelo Correia, visitei o Almeida Soares algumas vezes, quando tive a oportunidade de conhecer melhor sua esposa, dona Dinah Macedo Soares, e sua única filha. Na praça sempre tinha alguns aficionados jogando xadrez e Almeida Soares era conhecido da maioria. Almeida Soares estava no grupo de jogadores que fazia presença constante nos torneios espalhados pelo Brasil, a que me refero em outras páginas, junto com Alexandru Segal, Antonio Rocha, Hélder Câmara, Hermann Claudius e tantos outros. Frequentar o CXG era se candidatar a cartola. Sempre havia carência de gente para administrar o clube. Afinal, o pessoal ia ali para se divertir e passar momentos relaxantes do estresse do trabalho ou de casa mesmo. Só muito tarde me dei conta disso. Quando acordei Claude Fisch e Félix Sonnenfeld já tinham me fisgado com aquela conversa mole e fala macia que eles tinham. Fazer parte da Diretoria do CXG era um exercício coletivo. Havia um revezamento nos cargos, porque não é fácil dirigir um clube que está

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sempre deficitário, cujas despesas são completadas por vaquinhas aqui e acolá. A mensalidade dos sócios não dava para pensar grande. Mesmo assim tinha aquele sócio fiel, que pagava mensalidade e ainda dava algumas contribuições por fora... por conta de sonhar com uma sede nova, mais ampla. Comecei como ajudante voluntário, depois fui elevado a Secretário pelo Claude Fisch. Cabia-me fazer as atas das reuniões, convocar assembleias, redigir ofícios, pregar declarações e avisos no quadro, conclamar os sócios a não atrasar a mensalidade, receber e responder correspondência. Quando fui Diretor-Técnico a minha responsabilidade era organizar o calendário, regulamentos de torneios, botar ordem no pedaço: fui autor de duas advertências a sócios famosos por jogar a dinheiro. Mas quem cuidava da parte técnica dos torneios era o Bruce Kover, um diretor independente, pois tinha amplo conhecimento técnico e cancha com regulamentos internacionais. Uma vez eu e ele batemos boca por causa de uma interferência que fiz na área técnica. Por exigência dos jogadores antecipei o início das rodadas noturnas de 20:30h para 19:30h. As partidas duravam em média quatro horas, assim as rodadas sempre terminavam quase meia-noite. Essa hora fazia muita diferença para quem mora no subúrbio, anda de ônibus, de metrô ou trem. O Bruce Kover tinha carro e morava no Jardim Botânico, não tinha condições de avaliar isso seriamente. Eu mesmo deixei de jogar torneios no CXG e no JTC, quando mudei para o Cachambi, porque tinha que pegar duas conduções altas horas da noite. Nos torneios sob minha direção os participantes escolhiam três membros para atuar como conselheiros. Assim aceitei a reivindicação e antecipei o horário na marra. A opinião dos jogadores tem que ser levada em conta. Essa prática deixou de existir porque todo cartola é meio ditadorzinho... Só não fui Diretor-Financeiro porque disso não entendo nada. E o CXG tinha um sócio que raramente (ou nunca) jogava xadrez, Dr. Moacyr Tavares, que sempre mantinha as contas do clube numa ordem impecável. Moacyr, de educação finíssima, formado, superinteligente, era nosso Ghandi: aquele que harmonizava qualquer desordem financeira, técnica ou

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teórica e muito bate-boca por acaso havido nas reuniões. Não tinha questão para a qual ele não encontrasse a solução mais harmoniosa possível, sempre em defesa dos interesses do CXG. Em matéria de jornalistas o CXG estava bem servido. Além de Waldemar Costa, que sempre frequentou o clube e fazia divulgação dos eventos em sua coluna do Jornal dos Sports, tínhamos a presença de Luciano Nilo de Andrade, decano do xadrez carioca, jornalista e dirigente da federação do estado durante muitos anos; de vez em quando surgia do J. T. Mangini – mestre de xadrez e colunista do Globo – também do Maia Vinagre, João Batista Cúrcio, nossos representantes em Niterói. Luciano de Andrade tinha um dos currículos mais respeitáveis do xadrez carioca: foi diretor do CXG e da Federação de Xadrez do Rio de Janeiro, da Confederação Brasileira de Xadrez e sempre compareceu para patrocinar eventos, participar dos torneios e jogar ping – seu torneio favorito era o Rock aos sábados. Além do mais, Luciano era excelente fotógrafo, fazendo o registro dos eventos promovidos com belíssimas fotografias, muitas das quais eram presenteadas ao clube e aos participantes fotografados. Luciano Nilo de Andrade continua sendo – merecidamente – patrocinador e homenageado, dando nome a inúmeros torneios de xadrez. A cabeça do CXG naquela época era sem dúvida o Claude Fisch. Sem ele a sobrevivência da associação seria mais difícil. Graças a seu senso administrativo o CXG conseguia arrecadar pelo menos o suficiente para pagar as contas e se manter ativo, realizando torneios durante todo o ano. Além do mais o clube se mantinha ativo também nos vínculos com a FEXERJ e a CBX. Só quem conviveu no clube àquela época pode avaliar o quanto isso é desgastante. Não foram poucos os problemas familiares a que todos nós estávamos sujeitos, geralmente causados por essa devoção ao xadrez. Não bastava passar o dia todo trabalhando, mas também à noite e aos sábados havia o expediente no clube. Isso é suficiente motivo para mil divórcios, além do risco de adquirir algumas “protuberâncias” na testa...

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Por causa da minha mania de escrevinhar ressuscitamos o Boletim Informativo do CXG. Escrever é vício do qual jamais me livrei. Ali mesmo ao lado no Calabouço, onde fiz estudos secundários, eu e colegas fundamos e editamos um Boletim Estudantil que saía mensalmente. Então, no CXG não seria diferente. Depois viriam as colaborações nas revistas nacionais e internacionais. Além das colaborações nas revistas Jaque e Ajedrez 6000, ponteei também em algumas publicações brasileiras, como o Boletim do CXG, na revista do Clube de Xadrez Epistolar Brasileiro (CXEB), dirigido por Ubirajara Barroso, além de colaborações esparsas, como as que foram publicadas na Revista Ajedrez Postal Americano, da Confederación Americana de Ajedrez Postal (CADAP), na Argentina. Era, na maioria, partidas comentadas e noticiário de conquistas dos jogadores brasileiros no xadrez postal. Depois que essa modalidade ganhou o suporte do computador não joguei mais torneio postal. Um exemplo do que era o Boletim do CXG, que nessa época ainda era datilografado, depois reproduzido e impresso no sistema de estêncil a álcool (azul). Como na reprodução a seguir.

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CLUBE DE XADREZ GUANABARA

Fundado em 28 de dezembro de 1956 Sede Própria: Av. Churchill, 109/101 - Castelo Tel. +55 (21) 2240-2093 RIO DE JANEIRO (RJ) BRASIL Boletim Informativo Ano IV nº 24

Rio de Janeiro, 30/julho/77 Responsável: Presidente Distribuição gratuita ****

XADREZ POSTAL – O Brasil cada vez mais se afirma no xadrez postal, tanto no âmbito interno como organização, quanto no âmbito internacional em competições. Não será, pois, otimismo exagerado pensar-se em supremacia Continental dentro de pouco tempo, mesmo levando-se em consideração a força patente que é a Argentina. No âmbito interno temos permanente atividade durante todo o ano, que consta de torneios de classificação – regulador da força inicial do enxadrista; torneios temáticos – que incrementam e aprofundam os estudos teóricos; torneios especiais – para acesso à Categoria Superior; Campeonato Brasileiro Individual – que reúne vários participantes antecipadamente classificados. E a Taça Brasil – competição que congrega toda a classe de enxadristas, sem quaisquer restrições, podendo participar jogadores

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do Brasil e do exterior. A Taça Brasil é para o xadrez epistolar o que o Campeonato Brasileiro é para o futebol. Na parte internacional o xadrez postal brasileiro também se mostra ativo, participando da Copa Latino-Americana Individual e por Equipes, torneios temáticos e Zonais, que classificam para a fase final e decisória do Campeonato Mundial da categoria. Toda essa enorme atividade coloca o Brasil na 2ª força do continente e vem sendo realizada com o memorável esforço do Clube de Xadrez Epistolar Brasileiro – CXEB, que, nascido de uma competição postal organizada pelo CXG [Clube de Xadrez Guanabara], é presidido com denodo por Ubirajara de Oliveira Barroso, que tudo faz para elevar ainda mais o nome do xadrez brasileiro, levando o jogador epistolar a todos os recantos do Brasil e do mundo! No presente Boletim damos realce às atividades postais do xadrez brasileiro, com artigos e partidas comentadas por vários especialistas do assunto. (Salomão Rovedo - Rio de Janeiro) **** ESTRIN – CAMPEÃO MUNDIAL – Finalmente, depois de várias tentativas e uma longa espera, o soviético da Armênia Yuri Estrin (*) venceu o Campeonato Mundial de Xadrez por Correspondência. O VII Campeonato Mundial, patrocinado pela ICCF - International Correspondence Chess Federation terminou em 1975 e desta vez o conhecido Mestre russo não precisou explicar por que, apesar de favorito, ainda não vencera. Os campões anteriores foram Purdy (Austrália), Schmid (não oficial), Ragozin (URSS), O’Kelly (Bélgica), Zagorovsky (URSS), Berliner (USA) e Rittner (DDR). Estrin participou de alguns dessas finais e coisas incríveis aconteceram impedindo-o de vencer. Mostramos duas partidas do atual campeão: A primeira, é um exemplo dos azares (?!) de Estrin: jogada contra o americano Berliner na final do V Campeonato, foi usada a Defesa dos 2 Cavalos, sobre a qual Estrin

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escreveu um livro! A segunda, do último Campeonato, uma variante das Trocas da Ruy Lopez, onde tudo correu bem para o teórico soviético. (Plínio Luís Nunes Dias - São Paulo) **** Yuri Estrin-Hans Berliner 5º Campeonato Mundial ICCF - Final (1965) Abertura Italiana: Defesa 2 Cavalos - Variante Ulvestad (C57) 1. e4 e5 2.Cf3 Cc6 3.Bc4 Cf6 4.Cg5 d5 5.exd5 b5 6.Bf1 Cd4 7.c3 Cxd5 8.Ce4 Dh4 9.Cg3 Bg4 10.f3 e4 11.cxd4 Bd6 12.Bxb5+ Rd8 13.O-O exf3 14.Txf3 Tb8 15.Be2 Bxf3 16.Bxf3 Dxd4+ 17.Rh1 Bxg3 18.hxg3 Tb6 19.d3 Ce3 20.Bxe3 Dxe3 21.Bg4 h5 22.Bh3 g5 23.Cd2 g4 24.Cc4 Dxg3 25.Cxb6 gxh3 26.Df3 hxg2+ 27.Dxg2 Dxg2+ 28.Rxg2 cxb6 29.Tf1 Re7 30.Te1+ Rd6 31.Tf1 Tc8 32.Txf7 Tc7 33.Tf2 Re5 34.a4 Rd4 35.a5 Rxd3 36.Tf3+ Rc2 37.b4 b5 38.a6 Tc4 39.Tf7 Txb4 40.Tb7 Tg4+ 41.Rf3 b4 42.Txa7 b3 (0-1) **** Zdenek Necesany-Yuri Estrin 7º Campeonato Mundial ICCF - Final (1972) Ruy Lopez: Variante das Trocas - Gambito Alapin (C69) 1. e4 e5 2.Cf3 Cc6 3.Bb5 a6 4.Bxc6 dxc6 5.O-O Bg4 6.h3 h5 7.Te1 Df6 8.hxg4 hxg4 9.Cxe5 Dxe5 10.Dxg4 Cf6 11.Df3 O-O-O 12.d3 Bd6 13.Rf1 g5 14.Cc3 g4 15.De3 Dh2 16.Bd2 Ch5 17.g3 Bxg3 18.Re2 Cf4+ 19.Rd1 Bxf2 20.Dxf4 Dxf4 21.Bxf4 Bxe1 22.Re2 Bxc3 23.bxc3 f5 24.e5 Rd7 25.a4 Th3 26.a5 Tf3 (0-1) **** (*) Algumas curiosidades sobre o artigo de Plínio Luís Nunes Dias, que só puderam ser constatadas hoje, nos tempos da internet: O Estrin a que Plínio Luís Nunes Dias se refere chama-se Yakov e não Yuri, ele nasceu em Moscou e não na Armênia. A confusão é normal: o nome dele era quase sempre grafado Y. Estrin, o que em russo remete de imediato a Yuri (Gagárin, etc.). Os Campeões Mundiais da ICCF, até Yakov Estrin, são:

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1) 1950-1953 – C. J. S. Purdy – Austrália 2) 1953-1956 – Lothar Schmid – Alemanha (*) 3) 1956-1959 – Viacheslav Ragozin – URSS 4) 1959-1962 – Alberic O‟Kelly de Galway – Bélgica 5) 1962-1965 – Vladimir Zagorovsky 6) 1965-1968 – Hans Berliner – USA 7) 1968-1971 – Horst Rittner – Alemanha 8) 1971-1976 – Yakov Estrin – URSS

**** John Purdy (1906-1979). Australiano, MI FIDE, GM e Campeão Mundial ICCF 1950-1953, pioneiro do xadrez na Austrália, editor, redator e colaborador de revistas de xadrez. Purdy sofreu um aneurisma quando jogava e suas palavras finais teriam sido: "Estou com a partida ganha, só preciso de mais tempo". Porém, o GM Ian Rogers diz que as palavras de Purdy foram: "Tenho que anotar um lance", e que ele "não tinha posição vencedora”. O bisavô, o avô e o filho de Purdy também são enxadristas. Lothar Schmid (1928-2013). Alemão, GM e Árbitro Internacional FIDE, muito conhecido por ter sido juiz de importantes matches pelo Campeonato Mundial, inclusive Fischer-Spassky, Reykjavík (1972). Por ter vencido o Torneio Internacional Dyckhoff-Gedenk (*), Schmid é considerado Campeão ICCF 19541956. Insaciável colecionador de livros, tabuleiros, peças, arte, antiguidades – tudo sobre xadrez – Schmid tinha a maior biblioteca de xadrez particular do mundo! Lothar Schmid jogou pela Alemanha 11 Olimpíadas de Xadrez. Viacheslav Ragozin (1908-1962). Da antiga URSS, GM e Árbitro Internacional FIDE, Campeão Mundial da ICCF 1956-1959, publicou a Revista Shakhmaty. Além de tudo mantinha ativa a carreira de engenheiro civil. Ragozin foi Vice-Presidente da FIDE de 1950 a 1961. A Defesa Ragozin no Gambito da Dama é caracterizada pelos lances 1. d4 d5 2. c4 e6 3.Cf3 Cf6 4.Cc3 Bb4 (ou por transposição). Albéric O'Kelly de Galway (1911-1980). Belga, GM ICCF, GM e Árbitro Internacional FIDE, arbitrou os matches Petrossian-Spassky (1966) e KarpovKorchnoi (1974). Foi o 3º Campeão Mundial de Xadrez ICCF 1959-1962 já que o título de Lothar Schmid não é oficial. A Variante O'Kelly na Defesa Siciliana (Najdorf), 1. e4 c5 2. Cf3 a6, ganhou o seu nome após estudos e análises táticas feitas por ele. Fazia questão de usar O'Kelly de Galway para atestar as nobres origens irlandesas. Ainda bem que não exigia o nome todo: Albéric Joseph Rodolphe Marie Robert Ghislain O'Kelly de Galway! Vladimir Zagorovsky (1925-1994). GM da antiga URSS, que só ficou conhecido após ter sido o 4º Campeão do Mundo da ICCF 1962-1965, mesmo já tendo vencido

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o Campeonato Absoluto de Moscou em 1952. No 5º Campeonato da ICCF ficou em quarto lugar, foi Vice-Campeão na 6ª edição (1971), ocupou o terceiro lugar no 7º Campeonato (1975) e novamente Vice-Campeão na edição seguinte (1980). Escreveu “Romantic Chess Openings” (The Tournament Players Collection), Harper Collins, 1982. Hans Berliner (Berlim, 1929). Alemão veterano jogador de torneios, Berliner foi o 5º Campeão Mundial ICCF 1965-1968. Norte-americano, de origem alemã, é GM da ICCF e MI FIDE. Foi professor de Ciência da Computação na famosa Carnegie Mellon University (CMU), na Pensilvânia (USA). Berliner projetou e dirigiu a criação dos primeiros programas de xadrez para computadores. Horst Rittner (Breslau, hoje Wroclaw, 1930). Alemão, originário dessa cidade que sofreu violências, destruição e metamorfoses em períodos bélicos, passou de mão em mão até ser considerada polonesa ao fim da II Guerra Mundial. Horst Rittner é GM da ICCF e Árbitro Internacional FIDE. Tornou-se conhecido após ter vencido o 6º Campeonato Mundial de Xadrez por Correspondência 1968-1971. Ele também foi fundador e editor da famosa revista alemã Schach. Yakov Estrin (1923-1987). MI FIDE e GM ICCF, teórico e escritor de xadrez, Campeão da URSS em 1962, cinco vezes finalista do mundial, 7º Campeão Mundial ICCF 1971-1976. Estrin escreveu vários livros de xadrez, entre os quais “A Defesa dos Dois Cavalos”, que passou para o folclore quando Hans Berliner o venceu com essa defesa. Por esse fato, a partida ficou famosa não só xadrez por correspondência, mas no enxadrismo em geral. (*)“De 1954 a 1957 foi realizado o Torneio Internacional de Xadrez Postal "Dr. Dyckhoff-Gedenk", em homenagem a esse pioneiro da modalidade. Com 1.860 participantes de 33 nações de todos os continentes, ainda hoje é o maior evento de xadrez postal já realizado em todos os tempos. Mais de 8.500 partidas foram disputadas. Tendo-se a média de 30 lances por jogo, o número total de movimentos é superior a um quarto de milhão. Isso significa que mais de meio milhão de cartões de xadrez circulavam entre as fronteiras estaduais e intercontinentais. Não só em termos de quantidade, o evento também foi especial em qualidade: participaram os principais mestres de xadrez por correspondência do mundo, além dos que não puderam jogar, por vários motivos. O torneio foi vencido por Lothar Schmid (GER), que marcou o impressionante escore de 14 pt. em 16 jogos, à frente de Alberic O 'Kelly (BEL) 12 pt. e Julius Nielsen (DEN) 10,5 pt.” Compilado de: http://kszgk.com/ **** O Boletim Informativo do CXG de janeiro de 1980 publicou em primeira página a eleição da nova diretoria nos seguintes termos: SALOMÃO ROVEDO ELEITO PRESIDENTE DO CLUBE

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Em reunião realizada no dia 19 de janeiro p.p. o Conselho Deliberativo do CXG elegeu novos mandatários para dirigir os destinos do Clube no biênio 1980/81, conforme segue: Presidente: Salomão Rovedo; Vice-Presidente: Antonio Carlos Gomes Siqueira; Conselho Fiscal: Antonio Maurício Rios Horta; Guilherme Xavier Wanderley Pires; Mário Luiz de Castilho (efetivos), Cícero Francisco da Rocha, Mário de Lucena Montenegro, Ermano Soares de Sá (suplentes). Na ocasião o Presidente eleito submeteu à apreciação do Conselho os nomes dos membros da sua diretoria, que foram homologados por unanimidade: 1º Secretário: Claude Fisch; 2º Secretário: William Mário Deisley; 1º Tesoureiro: Moacyr José Tavares; 2º Tesoureiro: Zairton Augusto da Cruz; Diretor Técnico: Warner Bruce Kover; Auxiliar do Diretor Técnico: Luiz Paulo Rosa. Outras decisões do Conselho: 1) Aprovado o relatório do Presidente para o exercício de 1979; 2) Aprovado parecer do Conselho Fiscal relativo às contas do exercício de 1979; 3) Aprovado o Plano Orçamentário para 1980 no valor de Cr$ 600.000,00; 4) Aprovada a constituição de Comissão para propor reforma dos estatutos, composta dos Srs. Salomão Rovedo, Pedro H. Miranda Rosa e Claude Fisch. Ao assumir a presidência do CXG em 1980 procurei agrupar o maior número de pessoas interessadas no xadrez e que tivessem tempo disponível. Administrar um clube pobre é fogo – ainda mais sabendo que ninguém quer patrocinar um jogo chamado xadrez. Afinal de contas, o que é xadrez? Tecnicamente falando, porém, existia entre os sócios a paixão certa pelo CXG, coisa que dura até hoje. É um clube de tradição, por isso mantém um grau de popularidade e respeito, igual ao Clube de Xadrez São Paulo: ambos são conhecidos no Brasil e no exterior. Volta e meia aparece um gringo turista que tem conhecimento do endereço CXG e vem jogar um ping. O Boletim Informativo que dava conta das conquistas do ano de 1980 estampava na primeira página os “Nossos Campeões”. Resultados individuais: Luís Loureiro – Campeão Carioca Roberto Stelling Neto – Campeão Carioca Juvenil João César Rocha – Campeão Carioca Infantil Resultados das equipes: Equipe “A” – Campeã Estadual 1º Tabuleiro - Luís Bronstein 2º Tabuleiro - Carlos Eduardo Gouveia 3º Tabuleiro - Herman Belém 4º Tabuleiro - Luís Loureiro Reservas: Mário Luís de Castilho, Warner Bruce Kover e Michel Bessler Equipe “B” – Campeã Estadual 1º Tabuleiro - Ângelo Bil Ramos 2º Tabuleiro - Evandro Franklin Quintella 3º Tabuleiro - Hélio Schechter 4º Tabuleiro - William Mário Deisley Reservas: Hilton Rios Filho, Sergio Luís de Abreu, Roberto Stelling Neto e João César Rocha

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Vivendo o jogo

Salomão Rovedo-Wallace Machado Torneio de Natal-Clube Militar (RJ)

O xadrez tem fama de ser jogo digno, recheado de elementos nobres. Em si mesmo, jogar xadrez pode ser grandioso, se disputado por pessoas dignas. Apesar de ser um esporte notável pelo que acrescenta a quem pratica, é impossível se evitar a aderência do ambicioso, do vaidoso, do egoísta. Praticando xadrez conheci muita gente espetacular, humana, cujo nível social some em frente do tabuleiro. Sempre houve no ambiente enxadrístico a figura do jogador profissional, para quem o xadrez é um vício, um meio de apostar e ganhar dinheiro. São jogadores compulsivos – para eles até a porrinha serve para arrancar algum dos otários. O jogador de xadrez tem os mesmos defeitos dos outros: tem o capoeirista (gosta de passar rasteira); o camelô (que usa artimanhas pra vender o produto); tem o punguista (distrai o adversário pra ganhar); o ilusionista (que usa mágica no jogo). O elenco é grande, igualzinho ao cardápio de outras atividades. Além do prazer de jogar e reencontrar amigos, no torneio, esbarro sempre com a turma que reclama da sorte com sons inapropriados: tsk, tsk, tsk; que atende o celular; que perturba a concentração pra anotar ou perguntar o lance; que chega atrasado, depois joga ping; adversário que em inferioridade oferece empate! Gerolamo Cardano (1501-1576) seria hoje o que chamamos porralouca: médico, matemático, astrólogo, alquimista, viciado em jogos – e também aquele para quem a ética nada significa. Autor de estudos básicos sobre a Teoria das Probabilidades confessa na autobiografia “De Propria

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Vita”, que era viciado em jogos de azar, entre os quais o xadrez, que praticou por mais de 40 anos. Mesmo sendo catedrático de matemática em Milão, ele continuou a estudar medicina, astrologia e magia. Cardano traiu o seu amigo Niccolo Tartaglia ao publicar a “Regra de resolução das equações de 3º grau”, que lhe tinha sido confiada apenas para estudos. Tartaglia se tornou inimigo mortal dele: em seus escritos espalhou a fama de desonesto e corrupto que Gerolamo Cardano carregou por toda a vida. A Teoria das Probabilidades é a Lei dos “Jogos de Azar”, estando aqui arrolados: jogo do bicho, roleta, pôquer, jogos de dados, gamão, jogos de cartas, mega sena, bingo e todas as demais loterias e sorteios. O jogador de xadrez tem os mesmos defeitos dos outros: tem o capoeirista (gosta de passar rasteira); o camelô (que usa artimanhas); tem o punguista (distrai o adversário); o ilusionista (que usa mágica no jogo). O elenco é grande, igualzinho a outras atividades. Além do prazer de jogar e reencontrar amigos, nos torneios enfrenta-se a turma que reclama da sorte com sons inapropriados: tsk, tsk, tsk; que atende o celular; que perturba a concentração do oponente para anotar ou perguntar o lance; que chega atrasado e depois joga ping para tentar recuperar o tempo; adversário que em nítida inferioridade oferece empate. E por aí vai – um sem número, enfim, de recursos extrajogo são usados para minar a concentração do outro! Cardano escreveu “O livro dos jogos de azar”, que viria a ser o sustentáculo da Teoria das Probabilidades. Não é o jogo de azar aquele que prima pelo cálculo das probabilidades e assim enriquece bancas e cambistas? Cardano gastou quase tudo que herdou do pai no vício do jogo: jogar cartas, dados e xadrez, virou sua perdição. O estudo da Teoria das Probabilidades dava a ele alguma vantagem sobre os adversários, mas o vício acabou por roubar de Cardano, o tempo valioso, dinheiro e reputação. Em 1533 as coisas correram tão mal no jogo, que ele penhorou as joias da mulher – obras de arte e até a mobília foi pra pendura! Em 1570 Cardano foi preso pela Inquisição pela heresia inédita de ter feito o horóscopo astrológico de Jesus Cristo!

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Ele descreveu a si mesmo: “A natureza dotou-me de um espírito filosófico e apto para o estudo das ciências; sou engenhoso, elegante, sensual, piedoso, fiel, amigo da sabedoria, reflexivo, empreendedor, entusiasta, inventivo. Tudo o que aprendi foi por mim mesmo, ardo em desejo de ver milagres, sou teimoso, astuto, trabalhador, descuidado, charlatão. Sinto desprezo pela religião, sou vingativo, triste, traiçoeiro, gosto de magia, dos encantamentos; sinto-me dedicado, sou cruel com os meus, retraído, antipático, severo, zeloso: tais são as grandes contradições do meu caráter e dos meus costumes”. Jacques de Thou (1553-1617), que o conheceu, observou a seu respeito: “Cardano teve a ousadia de querer submeter às leis quiméricas dos astros o verdadeiro Senhor dos astros, elaborando o horóscopo de nosso Salvador Jesus Cristo. (...) Enfim, morreu em Roma a 21 de Setembro, com 75 anos menos três dias, tal como tinha previsto, e julgava-se que se tinha abstido de ingerir alimentos para que a sua própria profecia acerca da sua morte não fosse falsa”. Ainda rememorando o meu percurso no xadrez, vejo que ele começa nos anos 1960/1970, tempo em aprofundei meus conhecimentos, o que foi possível lendo livros, reproduzindo partidas e jogando torneios de partidas rápidas com colegas estudantes do Calabouço, no intervalo das aulas. Logo me apaixonei e até hoje tento praticar o jogo. Posso dizer que o xadrez me „salvou‟ mentalmente muitas vezes nos tempos em que cheirar gás lacrimogêneo e levar porrada da polícia era moda no Rio de Janeiro, no militarismo a gente vivia à margem da loucura. Jogar xadrez ajudou a passar essa fase sem que fosse necessário pegar em armas, adotar o extremismo ou se alistar em guerrilhas brancaleônicas. Em compensação nada ganhei da verba milionária que a Comissão da Verdade dispende com artistas, políticos, jornalistas, escritores e familiares dos “perseguidos” pela Ditadura. Além dos cargos governamentais com salários altíssimos... Meu sábio avô sempre me dizia: – Quem está na chuva é pra se molhar.

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Graças ao xadrez não me suicidei, estou velho e espero morrer do modo mais indigno possível – apesar de quê: haverá dignidade na morte? Se não fosse dessa maneira, penso que, ao adotar os caminhos de meus contemporâneos, estaria roubando dinheiro público, enterrado anônimo numa cova rasa, arrasando e roubando boas empresas, os lava-jatos da vida, embolsando meu latifúndio mensalão – ou não? Quando me meti a jogar xadrez estabeleci alguns princípios, entre os quais o mais rigoroso seria parar de jogar, quando o xadrez deixasse de trazer diversão, alegria e prazer – ou seja, quando começasse a me aporrinhar. Não cairia infartado sobre o tabuleiro, como ocorreu a muitos jogadores de xadrez relâmpago. Em várias ocasiões estive nesse limiar, mas os obstáculos foram superados. Também tive por princípio não adotar o “tudo pela vitória” – fanatismo que muitos colegas assumem e praticam, transformando o jogo em guerra. Para admitir essa prática foi preciso aceitar as coisas como são. Ou seja, assimilar (mas jamais aprovar) o caráter do jogador cujo objetivo, acima de todos, é ganhar a partida a qualquer custo. Esses são predadores, faltos de ética, têm o DNA corrompido. Joguei muitas partidas em que estive em condições superiores para vencê-la, outras em que o empate se mostrava claríssimo, pois nenhum dos dois conseguiria superar o outro. Porém, usando de recursos, alguns legais, mas todos antiéticos, os adversários lograram somar os pontos. Em outras partidas estive completamente ganho, mas o sofrimento (ou pseudo sofrimento, a malandragem) do adversário traía o jogador e o eu-bonzinho acabava por oferecer empate, aceito com alívio. Nas muitas e muitas vezes que a guerra entre o anjo bom e o capeta mau aconteceu, no íntimo, o anjo bom sempre levou a melhor... Aceitei isso – nos outros e em mim – como falha humana, defeito de caráter, não como “crime premeditado”, porque uma coisa que os jogadores não podem apagar é a partida em si. Não pode ser apagada da sua própria consciência! Ela existiu, está anotada na planilha, foi assistida por outros jogadores e seria transcrita, lida e comentada, de maneira que fica bem

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claro quem tem condições técnicas para a vitória, derrota ou empate. Em muitas ocasiões li comentários em colunas de xadrez sobre partidas tais, que eu havia jogado, espantados com o resultado: “Como pode empatar com Torre a mais?” ou “Empate? Só se for por problema de tempo...” E muitos outros iguais. Mas, como diz o jargão policial: – “Tudo deve ser investigado, nenhuma possibilidade pode ser descartada”.

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Félix Sonnenfeld

Félix Sonnenfeld e eu no CXG

Félix Sonnenfeld nasceu no Rio de Janeiro em 1910 e viria a ser o problemista brasileiro mais consagrado de todos os tempos: conquistou títulos, prêmios e menções honrosas em competições no mundo inteiro. Foi o primeiro brasileiro árbitro da FIDE, tomou a iniciativa de fundar vários clubes (inclusive o Clube de Xadrez Guanabara), a fim de cumprir a meta exigida para fundar a Federação Brasileira de Xadrez e filiá-la à FIDE. Fundou a UBP - União Brasileira de Problemistas (1960), cujas atividades eram divulgadas no famoso Boletim da UBP. Félix era Economista, mas toda a sua vida foi dedicada ao xadrez. Faleceu em 1993 na cidade de Miguel Pereira (RJ). Certo dia Claude Fisch me perguntou se não queria ajudar a Diretoria suprindo a ausência do Sonnenfeld – foi assim que me tornei cartola no xadrez. Encontrei a Diretoria do Clube de Xadrez Guanabara assim formada: Claude Fisch (Presidente), Félix Sonnenfeld (Secretário), Bruce Kover (Diretor Técnico) e Moacyr Tavares (Diretor Tesoureiro), Fiscal da Receita Federal, a quem fui apresentado por Claude Fisch. Félix Sonnenfeld, alto, sempre esbelto, camisa social por dentro da calça, animava as reuniões da Diretoria, que geralmente se realizava aos sábados, às vezes em dia de semana à noite. A experiência e a prática – aliadas à altivez germânica – encaminhavam as questões sempre de modo pacífico, com soluções simples, sem perder o aspecto legal.

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Após as reuniões íamos almoçar e beber vinho em caneca no Galeto Esplanada, esquina de Av. Churchill com Praça Ana Amélia, no prédio da Casa do Estudante. Volta e meia Sonnenfeld dava uma escapada para ir ao Bob's e de lá voltava com um saco de fritas que encharcava na mostarda. Ele me induziu a essa prática, que eu sempre achei abominável. Mostarda com batata frita? Só se for alemão, aí tem tudo a ver. Félix vivia viajando chamado que era para organizar e dirigir torneios por todo o Brasil. Essa contínua convocação que lhe era feita tinha seus motivos: Félix Sonnenfeld era profundo conhecedor das leis do xadrez, juiz reputado pela FIDE e seria o que chamamos hoje de Árbitro Internacional. Muitas vezes o auxiliei em torneios (ele me fez de aluno) e vi com que cuidado ele fazia as fichas individuais de todos os jogadores e nelas anotava o adversário, a cor das peças e o resultado. Depois disso feito era fácil montar as próximas rodadas – principalmente pelo Sistema Suíço, que começava a se popularizar. Ele também administrava a União Brasileira de Problemistas – UBP, sua verdadeira paixão – que fundou junto com José Figueiredo e dirigiu até passar o bastão a seus seguidores. Acredito que a UBP ficou sob a direção de Roberto Stelling, estando, pois, em boas mãos. No intervalo das rodadas do Interzonal de Petrópolis (1973), nos salões do Serrano Football Club, Sonnenfeld era visto nos tabuleiros das mesas livres, mostrando seus problemas, divertindo participantes e enxadristas, sempre com grande plateia em torno do tabuleiro. Entre os GM ele era visto principalmente com Paul Keres – os dois ficavam horas e horas entretidos diante do tabuleiro, desvendando labirintos, em busca de solução para os enigmas do xadrez. Sonnenfeld também mostrava muitas composições de outros autores brasileiros e estrangeiros, pois a sua rede de conhecimento se estendia pelo mundo do problema sem fronteiras. Muitas, muitas vezes nos encontrávamos no CXG e ele me pegava para mostrar um problema, contar uma história. Entre as missões de Sonnenfeld tinha uma especial que era fazer as pessoas gostarem de problema, de divulgar e popularizar o problema. Aquilo que para ele era uma coisa natural, para mim se transformava num labirinto complexo, um enigmático emaranhado do qual não se via o fim. A ciência do Mate Ajudado então me era incompreensível, principalmente pela ideia: como pode as peças pretas forçar as brancas a dar mate? Esse suicídio alegórico no xadrez nunca me foi entendido plenamente. Para mim tratava-se de algo esotérico, emblemático, de

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sentido figurado, simbólico – por isso incompreensível. Mas a insistência, a fé, o ânimo que Félix Sonnenfeld carregava consigo para ensinar, divulgar e fazer a pessoa gostar de Problemas era férrea – assim ele pôde deixar um legado. Hoje existe uma população constituída de milhares de brasileiros que são apaixonados por Problemas de Xadrez. Devo a Félix Sonnenfeld o pouco conhecimento e o raro interesse que ainda mantenho sobre a arte do Problema, que me levou a escrever um conto “Mate às cinco” cujo enredo é inspirado num problema. Certa vez no CXG Félix me mostrou um Problema, com o qual – segundo ele – tinha inventado uma nova peça. Era um problema Direto #2, até certo ponto de fácil solução, só que para executar o mate – que seria dado por Cavalo – havia um impedimento: a casa estava ocupada por uma Torre. Matutei, matutei e enfim disse: – Mas Sonnenfeld o único mate que vejo é aqui, mas a casa está ocupada. Ele respondeu: – Por isso é que se chama Problema. Então, pegou o Cavalo e depositou sobre a Torre: – Mate! Essa era a nova peça que ele tinha inventado: a Catorre!! Coisas do Félix... Quando em 1981 o CXG se programava para comemorar os 25 anos de sua fundação, Félix Sonnenfeld aproveitou a ocasião para lançar um Torneio Internacional de Composição. Lá foi toda a equipe acorrer para colaborar com o Félix, cujo entusiasmo contagiava a todos. Preparou-se o edital, em edição bilíngue, fez-se a programação, tudo detalhado para todas as categorias de Problemas. Os éditos foram envelopados, enviados para a enorme agenda de endereços que Sonnenfeld tinha. Após a divulgação, acorreram Problemistas do mundo todo! Era muita carta que chegava, algumas pediam resposta, muitos problemas para classificar (e desclassificar), descobrir furos, separar por categoria, escolher os mais bonitos e dar a premiação. Tenho certeza que ninguém (exceto os Problemistas) imagina o volume de trabalho que isso provoca. Félix fez o apelo e teve a ajuda de todo o problemismo nacional, muita gente acedeu ao chamado de modo voluntário, o edital foi enviado via correio a centenas de revistas, publicações e clubes do mundo todo. Lá pelas tantas vi que no edital aparecia o meu nome como Juiz. Recusei: – Félix, é muita responsabilidade. Entendo muito pouco disso. Com a tranquilidade de sempre ele respondeu: – Não te preocupes, você já entende o suficiente. Eu apronto a análise, você faz uma revisão e assina embaixo. Meu amigo, isso sim que é um problema! – pensei cá comigo. Dois anos depois saiu o Resultado, a premiação e um número especial do

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Boletim do CXG bilíngue com todos os problemas e soluções! O pagamento dos prêmios foi remetido ao vencedor de cada categoria e diplomas de participação foram distribuídos a todos os participantes. Félix Sonnenfeld tratou do xadrez como cuidou da própria vida. A partir de certo tempo, aproximando-se dos 80 anos, começou preparar a aposentadoria do xadrez e parar de fazer as coisas que a idade não permitiria mais daquela forma que era o jeito dele: com entrega absoluta e religiosa. Esse preparo espiritual é próprio de pessoas cuja estética de vida é totalmente diferente da nossa. Quem aqui se prepara para morrer? Ninguém – a gente sempre acredita que amanha irá beber uma cachacinha no Boteco do Tio Osmar... Com pensamento na roça, ou melhor, em Miguel Pereira, Félix Sonnenfeld se organizou todo: se desfez do que era para ser descartado, doou o que era para ser doado, transferiu a UBP para novos dirigentes, tirou todo o peso do esquife, para que o corpo fosse leve também para os amigos. Deixou o seu habitat no bairro do Grajaú vazio, gavetas, estantes, tudo que se relacionasse ao xadrez, o que sobrou cabia numa trouxa. Como disse Manuel Bandeira, enfim: “Quando a indesejada das gentes chegar encontrará lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar”. Assim fez Félix Sonnenfeld, com uma estética de vida sem frescuras, seguindo o roteiro milenar herdado de seus ancestrais germânicos. Dentro do mesmo espírito, dentro desse fechamento de carreira, Félix Sonnenfeld me ofertou, com registro em ata e diploma, o título de Benemérito da UBP, apesar das minhas poucas intervenções em torneios de solução de problemas terem sido apenas administrativas e não técnicas. Como se fosse um epílogo Em meados de 1988/1989 Félix já estava de malas arrumadas, pronto para ir morar em Miguel Pereira. Nessa época eu estava afastado do xadrez de modo que foi um tempo em que raramente nos víamos. Claude Fisch havia se mudado para Brasília, Dr. Bruce Kover, além das aulas que dava na PUC e outras universidades, começou a se dedicar ao xadrez postal, Dr. Moacyr Tavares estava aposentado se deliciando com a tranquilidade da Tijuca, na Zona Norte, eu desemboquei em novo endereço

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do Cachambi – então aquele time de pessoas que haviam sido unidas pelo xadrez estava se desfazendo. As notícias que circulavam eram colhidas aqui e acolá. Ainda encontrei o Moacyr Tavares almoçando próximo à Praça Saenz-Peña, vi o Bruce Kover dando entrevista na TV Globo, sabia que o Claude Fisch estava “escondido” lá pelas bandas de Taguatinga. DF – e o Félix Sonnenfeld desfrutando a tranquilidade de Miguel Pereira, a cidade fluminense com melhor clima do mundo para viver, segundo avaliação internacional. Em 1989 Félix Sonnenfeld – que sempre foi protegido pelos anjos – recebeu em Miguel Pereira e visita de um fã: Gil Cléber. Começaram a trocar Cléber ideias, participar de atividades enxadrísticas e assim se tornaram amigos. Gil teve o bom senso de ir anotando tudo e, depois, com a colaboração do próprio Félix, a iniciar a biografia que viria a ser publicada um ano após o falecimento do nosso Mestre Problemista. Na verdade o livro é mesmo uma biografia enxadrística, porque o Sonnenfeld sempre conservou a vida íntima bem distante dos outros segmentos de sua atividade profissional e particular. Para contar melhor essa história, tomei a palavra do próprio Gil Cléber, através da introdução de seu livro, que ainda se encontra disponível nas livrarias e que reproduzo a seguir.

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© Gil Cléber Editora Ciência Moderna, 2004 http://www.gilcleber.com.br/

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Página de Sonnenfeld na revista Ajedrez 6000

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Waldemar Costa: Xadrez como religião

Os primeiros dias de janeiro de 2015 me deram a alegria de reencontrar Waldemar Costa, jornalista, historiador e romancista – que durante décadas fez parte da equipe do Jornal dos Sports (o „cor-de-rosa‟), de Mário Filho onde, extra-pauta, assinava uma coluna diária de xadrez, sempre carente na imprensa. Editou por anos a Revista Caissa e o semanário Xadrez Expresso. Além disso, Waldemar Costa ainda encontra tempo e joga xadrez, participa da Federação, dirige o Departamento de Xadrez do Jacarepaguá Tênis Clube e foi co-fundador do Praça Seca Xadrez Clube. Na sua página na internet, (vide abaixo), Waldemar Costa historiou os “Governantes de Jacarepaguá”, a “Paróquia de N. S. de Loreto”, recuperou as fotos antigas do bairro em “Imagens de Jacarepaguá” e desvendou o “Significado dos nomes das ruas de Jacarepaguá”. Quer dizer, em http://www.wsc.jor.br se encontra um verdadeiro manancial de informações sobre o bairro de Jacarepaguá e adjacências, onde Waldemar Costa nasceu, estudou, cresceu e sempre residiu. Como romancista Waldemar Costa já publicou “O Estigma da Cruz de Rubis”, “O Paraíso Azul” e “O Ferrador”, este último, por ser romance de época, daria excelente roteiro para uma série, filme ou mesmo novela, se os diretores não fossem tão corporativistas laureando-se mutuamente. O xadrez nos uniu em grande amizade e foi visitando a Associação Shalom Aleichem, que realizava o Torneio Aberto da Fexerj 2015, onde o reencontro se deu. Waldemar Costa divulgava ali a 2ª edição do livro

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“Epopeia do Campeonato Brasileiro de Xadrez 1927-2008” (Editora Solis 2009), que, por inexplicável que seja, permanecia engavetado na editora, sem distribuição. Antes que apodrecesse Waldemar Costa resgatou a publicação que está sendo avidamente comprada pelos xadrezistas e se esgotará em pouco tempo. Empresários brasileiros... Para Waldemar Costa a republicação de “Epopeia do Campeonato Brasileiro de Xadrez 1927-2008” guarda, no íntimo, outra emoção que não seja o significado do fato em si. É que a 1ª edição do livro (saída em dois pequenos volumes em edição limitada), teve e participação e atuação decisiva de dona Lina de Mello Costa, mãe do autor, que atuou como pesquisadora, na editoração e como revisora. Além disso, dona Lina não hesitava em „agredir‟ o filho com o indispensável e rigoroso estímulo, instigando-o à persistência num tempo em que não existia internet. Esse trabalho minucioso, de formiga, foi bem descrito pelo Campeão Brasileiro de Xadrez, Hermann Claudius van Riemsdijk, no Prefácio ao volume. Por que os livros feitos à moda antiga, isto é, em papel, letras e tinta, são e serão importantes? Porque as informações contidas em “Epopeia do Campeonato Brasileiro de Xadrez 1927-2008” não se encontra em outra parte, inclusive na internet. Precisava ver como os participantes do torneio se aproximaram do livro de Waldemar Costa, folhearam as páginas, devorando, comiam as informações enciclopédicas e, por fim, não se importando com a idade da pedra do livro de papel, compraram e carregaram como tesouro, preciosidade. Em pouco tempo o estoque acabou e não tinha mais nenhum – Waldemar Costa voltou com a mochila vazia. O livro está cheio de informações históricas, ali estão os campeões do passado, é narrada uma pré-história do xadrez aqui no Brasil, que Waldemar Costa situa no século XIX. Tenho cá minhas dúvidas, pois o tabuleiro de xadrez era – junto com o baralho – peça indispensável nos baús, porque serviria para distrair a tripulação do estresse de que era vítima nas caravelas de antanho. É caso para pesquisar... Para mim “Epopeia do Campeonato Brasileiro de Xadrez 19272008” trouxe outras emoções. Li nele informações, as imagens, as partidas de xadrez e muitas notícias sobre pessoas amigas com as quais tive o prazer da convivência durante a participação dos torneios. Amigos que não estão

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mais entre nós, amigos que estão dispersos pelo sopro dos tempos, cada qual levado pelas responsabilidades da vida. Entre muitos desses amigos a minha lembrança caiu em José Soares Másculo, jovem Campeão Brasileiro Juvenil, 5º lugar invicto no 44º Campeonato Brasileiro de 1978. Além das qualidades enxadrísticas, Másculo também era, apesar de jovem, muito responsável com a ética no esporte. Pelo seu talento, José Soares Másculo teria pela frente não só o título de Grande Mestre, como também o futuro como dirigente, capaz de elevar com responsabilidade o nome do xadrez brasileiro. Abatido por doença grave, José Soares Másculo teve a carreira enxadrística interrompida prematuramente... E agora que fiquei chateado, triste com essa lembrança, não conto mais nada. Quem quiser saber mais ou adquirir “Epopeia do Campeonato Brasileiro de Xadrez 1927-2008”, entre em contato com Waldemar Costa e corra porque a edição está acabando. ☼☼☼☼ Conheci o Waldemar Costa num dos dias em que ele aparecia no Clube de Xadrez Guanabara em busca de notícias para alimentar a coluna de xadrez que mantinha no Jornal dos Sports. O JS era conhecido como „o jornal cor-de-rosa‟, foi fundado por Mário Filho (irmão de Nélson Rodrigues) – autor do famoso livro „O negro no futebol brasileiro‟. Nos tempos em que não havia „racismo‟ no Brasil. Mário Filho dá um exemplo claro de como historiadores devem tratar a questão da discriminação ao destrinchar a ascensão do negro na sociedade brasileira através do futebol – e dos esportes em geral. Enquanto trabalhou no Jornal dos Sports, por mais de vinte anos, Waldemar Costa dava notícia da maioria dos eventos enxadrísticos, inclusive os ocorridos no Clube de Xadrez Guanabara. Foi no Jornal dos Sports que saiu a notícia dos empates que consegui em duas simultâneas dadas pelos GM Miguel Quinteros e Eugenio Torre, ambas no CXG. Depois de uma capivarada que eu cometi na abertura, o GM Eugenio Torre quis me crivar um mate. Defendi o mate e consegui rearrumar as peças – quando isso ocorre, quem quer dar mate acaba tendo problemas. Estava assim, ele atrapalhado, eu caçando a Dama dele, que bailava pra lá e pra cá no centro do tabuleiro. Numa dessas ocasiões, enquanto ele jogava os demais tabuleiros, Luis Loureiro palpitou: “Oferece

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empate, vê se ele aceita”. Não é que ele aceitou? Já sabe, né? Nunca mais aceito palpite ao Loureiro. Na outra simultânea, contra o GM Miguel Quinteros, entramos na partida em um final de Torre e Peões. Ele já tinha terminado as demais 21 partidas, vencendo todas. Exigiu que nosso final fosse a relógio e com árbitro. Determinou-se (acho) uns 5 minutos pra acabar a partida e ficamos ali cara a cara. Claro que isso era muita pressão em cima de mim, capivara contra GM, todo mundo em volta – tremia pra cacete! Eu tinha um peão a mais, na sexta casa, ele ficou cortando o Rei por trás, lá pras tantas dei bobeira, ele capturou o peão, igualou tudo e gentilmente falou: “Tablas”. No ano de 1981, Waldemar Costa me convidou para participar como convidado do Campeonato do Jacarepaguá Tênis Clube, entidade tradicional da sociedade da Praça Seca, Rio de Janeiro. A seção de xadrez estava sob a direção dele, que organizou o torneio com onze jogadores. Entre eles estava o próprio Waldemar Costa, Antônio Souza Lima e Abelardo Braga – irmão do compositor Braguinha – além de outros fortes jogadores do JTC: Carlos Jamil, Jorge Farah, Sérgio Cardoso, Délcio Gama, Wairy Dias, Laucóf Migon. Para jogar o torneio eu saía do Cachambi com antecedência, pois tinha de pegar duas conduções (a rodada iniciava às 19:00h). Em certo momento, faltavam três rodadas para o torneio terminar, esperei o meu adversário por uma hora regulamentar e comuniquei ao Diretor do Torneio, reclamando o ponto por WO. Waldemar Costa, por cuja retidão boto a mão no fogo, me pediu para “esperar mais um pouco”, pois o atraso se deveria por algum motivo sério (deveria ser a novela da TV Globo). Sempre gentil e educado, esperei esse “mais um pouco”, que demorou mais de uma hora, fazendo com que a partida iniciasse às 21h, coisa totalmente irregular. Enfim chegou o meu adversário, Laucóf Migon, bem disposto, de banho tomado, barba feita, cheiroso, com a cabeça afiada, para enfrentar um rival aporrinhado, tenso, por estar duas horas sentado esperando. Depois de quatro horas de jogo, perdi a partida, joguei de pretas uma Ruy Lopez, lembro bem. Não digo que poderia vencer o Laucóf, que era bom jogador e adversário temido, mas me senti bem inferiorizado pelas circunstâncias e não joguei uma partida normal. Como o dia se mostrasse mesmo aziago para mim, depois da partida, sonolento, estava no ponto do ônibus na Praça Seca. Já passava de 1h e tanto da madrugada, estávamos eu, uma moça e mais três gatos pingados esperando ônibus, quando passou um carro em alta velocidade, seguido de

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uma viatura da polícia, em perseguição. Mal o carro circundou a praça para entrar na Rua Baronesa, os policiais começaram o tiroteio. Protegidos precariamente atrás da coluna de concreto, ouvíamos as balas ricochetearem, até que os tiros perfuraram os pneus do carro e a polícia rendeu os ocupantes. Emocionante, né? Depois disso, encerrei o torneio com mais duas derrotas nas últimas rodadas. Tirei do site do merecido Campeão do JTC (não só neste 1981, mas em outros anos também), meu querido amigo Waldemar Costa, o quadro da classificação final. Infelizmente no site do Waldemar Costa não consta as partidas daquele torneio, algumas das quais bem interessantes. Depois desse torneio, participei de outras competições no JTC, a mais destacada foi o Torneio do 45º Aniversário do Clube, em 1984. Ali fiz muitas amizades e se parei de ir lá foi justo pelo horário das rodadas, que terminam sempre em horas tardias e invade as noites cariocas, cujas emoções são demais para este pobre coração... Vendo os quadros dos torneios dá saudade do Sistema Schuring – também chamado “Todos contra todos” ou “Robin Round” – no qual os jogadores se enfrentam entre si, que foi substituído pelo Sistema Suíço (sempre os suíços!). Esta modalidade de emparceiramento transformou o xadrez em competição popular atraindo milhares de jogadores para participar seus inúmeros torneios, mas perdeu muito em emoção. Hoje o xadrez – como os demais esportes – movimenta cifras milionárias em todo o mundo, estando consolidada a “era capitalista” e profissionalizando os jogadores, coisa rara no passado, onde os jogadores eram filósofos, físicos, músicos, matemáticos, tendo a prática do xadrez como segunda opção. Waldemar Costa, bairrista por excelência, nasceu em Jacarepaguá (mas diz que nasceu em Rocha Miranda) e ali vive até hoje, sem perder nenhuma oportunidade de divulgar a história de seu lugar. Sobre o bairro já publicou vários artigos, reportagens fotográficas e os livros “O Vale do Marangá” e “Imagens de Jacarepaguá”. Em todo esse labor, que não foi pouco, Waldemar Costa teve uma fada madrinha que lhe deu suporte enquanto Deus permitiu que eles estivessem juntos: Da. Lina de Melo Costa, que, em se tratando de xadrez não era apenas a mãe, mas a secretária, a incentivadora, a revisora, a

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bibliotecária, a que trazia o cafezinho quando as horas altas da noite o trabalho literário faziam esquecer o tempo. Era dona Lina quem atendia as centenas de telefonemas que eu dava a Waldemar Costa, era dona Linda quem o defendia quando eu enchia o saco dele, pedindo informações, livros emprestados, comentários de partidas – já que o homem é uma enciclopédia viva! Sorte dele que teve mãe e cúmplice na sua maior paixão, o xadrez. Dona Lina foi a pessoa que o acompanhou durante a jornada imprevisível que é a vivência profissional, o xadrez, ópio exigente que vicia e escraviza quem cai em sua malha. Não sendo assim, então que aprenda a renunciar a tudo e conviva silenciosa e solitariamente tentando encontrar a saída do labirinto dos 64 escaques... Recuperei alguns dados da minha participação no Torneio do 45º Aniversário do JTC, do qual Waldemar Costa foi Campeão, com grande performance: +9 -2! Abelardo Braga (irmão do compositor Braguinha) e Antônio Souza Lima dividiram o vice com 8,5 pts., eu fiquei em 4º lugar com 8 pts. Ao ser convidado por Waldemar para participar do torneio, me tornei sócio do JTC e várias vezes levei a família para se divertir na piscina e nas festividades do clube. Jacarepaguá Tênis Clube - Torneio 45º Aniversário Rio de Janeiro – 1984 PARTICIPANTES Waldemar Costa Abelardo Braga Antônio Souza Lima Salomão Rovedo Carlos Jamil Jorge Farah Fernandes Délcio Oliveira Gama Sérgio Luiz Cardoso Farias Wairy Dias Cardoso Laucof Migon Pedro Cardoso Lima

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1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 0

9,0 1º 8,5 2º 8,5 3º 8,0 4º 6,0 5º 5,5 6º 5,5 7º 4,5 8º 4,0 9º 4,0 10º 1,5 11º

Salomão Rovedo-Carlos Jamil Ataque Torre - ECO D03 1. d4 d5 2.Cf3 Cf6 3. Bg5 Ce5 4. Cbd2 Cxg5 5. Cxg5 Bf5 6. e4 dxe4 7. Bc4 e6 8. C5xe4 Dxd4 9. Cc3 c6 10. 0-0 Be7 11. Bb3 Cd7 12. De2 0-0 13. Cf3 Db6 14.

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Tad1 Tad8 15. Cd4 Bb4 16. Ce4 Cc5 17. Cxf5 exf5 18. Cxc5 Bxc5 19. c3 Txd1 20. Txd1 Td8 21. Txd8+ Dxd8 22. Bc2 g6 23. Rf1 De7 24. Dxe7 Bxe7 25. Re2 Rg7 26. f4 f6 27. Rf3 Bd6 28. g3 Rf7 29. h4 b6 30. Bb3+ Rg7 31. Be6 Rh6 32. Bd7 c5 33. Be6 (½-½) Ivan Nicolich-Salomão Rovedo Abertura Inglesa - ECO A17 1. c4 Cf6 2. Cc3 e6 3. g3 Bb4 4. Bg2 0-0 5. Cf3 c5 6. 0-0 Cc6 7. a3 Ba5 8. d3 Bxc3 9. bxc3 d5 10. cxd5 Cxd5 11. c4 Cde7 12. Bb2 Cd4 13. e3 Cxf3+ 14. Bxf3 Cg6 15. Dc2 e5 16. Tfd1 Te8 17. d4 Df6 18. Bg2 exd4 19. exd4 Bf5 20. Db3 Te2 21. f4 Tae8 22. Dxb7 Be4 23. Bxe4 T8xe4 24. Tab1 Df5 25. dxc5 Dh3 26. Td8+ Cf8 27. Txf8+ Rxf8 28. Db8+ Te8 (0-1) Waldemar Costa-Salomão Rovedo Defesa Petroff - ECO C42 1. e4 e5 2. Cf3 Cf6 3. Cxe5 Cxe4 4. d4 d6 5. Cf3 Bg4 6. Bd3 d5 7. De2 De7 8. O-O Cc6 9. c3 O-O-O 10. Bf4 g5 11. Bg3 h5 12. h3 Cxg3 13. Dxe7 Bxe7 14. fxg3 Be6 15. b4 g4 16. b5 Cb8 17. Ce5 Tdf8 18. Bf5 Cd7 19. Cg6 fxg6 20. Bxe6 Txf1+ 21. Rxf1 Tf8+ 22. Re2 Bd6 23. Bxd5 gxh3 24. gxh3 Bxg3 25. Bf3 Te8+ 26. Rd3 Te1 27. Be4 g5 28. Bg6 Cf6 29. a4 Bf4 30. Rc4 g4 31. hxg4 hxg4 32. Ta2 g3 33. Tg2 Rd8 34. Cd2 Cg4 35. Rd3 Td1 36. Be4 Cf2+ (0-1)

36. Be4 Cf2+

Manoel Jonis - Salomão Rovedo Gambito Benko - ECO A57 1. d4 Cf6 2. Cf3 g6 3. c4 c5 4. d5 b5 5. cxb5 a6 6. Cc3 d6 7. e3 Bg7 8. Be2 Cbd7 9. O-O O-O 10. Dc2 Cb6 11. Td1 c4 12. bxa6 Bxa6 13. e4 Cfd7 14. Cd4 Ce5 15. Bg5 h6 16. Bf4 Cd3 17. Cc6 Dc7 18. Be3 e6 19. Bxd3 cxd3 20. Db3 Cd7 21. Ca4 exd5 22. Tac1 Cc5 23. Cxc5 dxc5 24. Txc5 Bc4 25. Db4 Tfe8 26. exd5 Ba6 27. Dd2 Dd6 28. b4 Bb7 29. g3 Ta6 30. Rg2 Rh7 31. Dc1 Txa2 32. Txd3 Df6 33. Dd1 Txe3 34. Txe3 Dxf2+ 35. Rh3 Dxh2+ 36. Rg4 Dh5+ 37. Rf4 Df5# (0-1)

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José Soares Másculo

Másculo aos 15 anos

Não poderia deixar de falar em José Soares Másculo, meu amigo chegado, que costumava frequentar o meu modesto apartamento no Cachambi e conhecia toda a minha família. Másculo por um período estudou na Universidade Gama Filho e muitas vezes apareceu lá em casa para almoçar comigo, já que o Cachambi fica nas redondezas daquela instituição. Quando ele foi a Londres competir no torneio trouxe para mim um pôster de um artista londrino, que até pouco tempo enfeitava minha sala. José Soares Másculo foi dos jovens a quem sempre o Clube de Xadrez Guanabara prestou o auxílio e suporte possíveis para que evoluíssem no xadrez. Aliás, todos os associados do Clube de Xadrez Guanabara que conheciam o Másculo só tinham motivos para gostar dele, devido à educação, simpatia e entrega com que fazia as coisas. Eu tinha conseguido o boletim completo do Campeonato Brasileiro de 1975 (Carlos Eduardo Gouveia, Campeão) e estava organizando o quadro, fazendo revisão, com vista a publicá-lo. Másculo me pegou um dia fazendo esse trabalho no CXG e ficou observando. Sem muita convicção, perguntei se ele não gostaria de analisar e comentar algumas partidas. O Másculo se entusiasmou e acabou que esse foi um dos melhores trabalhos que tive em mãos! Infelizmente faltou grana para publicar e o projeto gorou.

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Há última vez que o vi foi no balneário de Búzios. Ele estava de sunga e camiseta na areia, jogando gamão com alguns amigos, na Praia de Geribá. Quando ele me viu, se levantou e exclamou abrindo os braços: – Salomão! Aqui em Búzios! Realmente era um dos lugares mais improváveis para a gente se encontrar. Másculo se levantou do gamão, ante o espanto geral dos colegas, para a gente trocar um abraço gostoso. Perguntei pela saúde, ele estava um pouco magro, mas escondia os efeitos do tratamento que fazia detrás do sorriso sincero. Logo depois de breve conversa empurrei ele de volta, pois os amigos estavam esperando. Confesso que rever naquele momento Másculo me deixou muito emocionado. Tanto que saí dali e fui beber uma gelada, lá na ponta da praia, num bar ilegal construído sobre pedras e frequentado por uns artistas metidos a besta que só sabiam chamar o garçom com xingamento e depreciação. Bebi uma cerveja, perguntei ao garçom como ele aturava aquelas piadas racistas. Ele engrossou o quilo de insultos que carreguei na turma, aquilo era uma turma de imbecis metidos a besta, artistas novos ricos. Falei para ele não aturar aquelas merdas, paguei e caí fora. Fui comer porquinho frito com cerveja gelada, com direito a pagode, na Praia do Forte, em Cabo Frio – que é mais o meu terreiro. Másculo foi campeão brasileiro juvenil de 1977, em Volta Redonda (RJ), bicampeão em 1978 (Vacaria, RS), ficou em 8º lugar no 43º Brasileiro de 1977 e em 5º lugar no campeonato do ano seguinte (Natal, 1978). Como Campeão Brasileiro Juvenil, aos 19 anos ganhou o direito de jogar o Campeonato Mundial U20, como é chamado, em Innsbruck (Áustria). José Soares Másculo sempre foi considerado „cria‟ do CXG. Era ali o local que ele frequentava para estudar, pescar aulas e conselhos com Olício Gadia, conversar com Carlos Eduardo Gouveia, analisar partidas com o professor Maurício Horta (inclusive de xadrez postal), ver os problemas e finais dos mestres Félix Sonnenfeld e Sebastião A da Silva, conviver com os amigos, Luismar Brito, Luiz Loureiro e muitos outros enfim.

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Mas não era só o Másculo. Naquela época o CXG era o celeiro onde se reunia um grupo de jovens que viriam a ser bons jogadores e mestres do xadrez brasileiro: Jerônimo Pimenta, Hermes Amílcar, Otacílio Veloso, Cristóvão Kubrusly, Luiz Loureiro, Herman Belém, Roberto Stelling, Marcos Roland, Alberto Mascarenhas e tantos outros. Jogadores já aperfeiçoados, jogadores jovens, que juntos formavam uma equipe de dar inveja, uma verdadeira seleção! Depois, com o recrudescimento do xadrez no Tijuca Tênis Clube, a fundação da ALEX – Associação Leopoldinense de Xadrez, Clube de Xadrez de Niterói, além das seções de xadrez dos clubes de futebol – Vasco, Flamengo e Fluminense – todos procuraram acomodar suas necessidades da melhor maneira possível. Com o programa de alunos-atletas da Universidade Gama Filho, esta instituição de ensino conseguiu formar esportistas de alto nível em várias modalidades do atletismo. Fundado em 1939 por Luís da Gama Filho (1906-1978), o modesto Colégio Piedade cresceu, gerou faculdades e se transformou na UGF em 1972. O sucesso e a fama da UGF se devem, também, ao fato de ter sido a primeira instituição a ter a coragem, o pioneirismo, de abrir um campus e oferecer cursos superiores num bairro periférico do subúrbio carioca. Oferecendo cursos de graduação e pós-graduação (stricto sensu e lato sensu), a Gama Filho cresceu também em importância e qualidade, sendo considerada uma das mais importantes instituições de ensino superior do país. Seu corpo discente chegou a contar com cerca de quinze mil alunos vindos de todos os cantos. Em volta do Campus se criou um mercado direcionado à instituição, como pousadas, restaurantes e centros comerciais. Basta dizer que tinha um hospital-escola no próprio campus da UGF no bairro de Piedade. Dá pena ver hoje todo aquele complexo de edificações abandonado ao tempo, envelhecendo e se deteriorando, deixando equipamentos, móveis, construções, restaurantes e lanchonetes – tudo sendo carcomido, se deteriorando, nem nenhuma expectativa de aproveitamento, ainda que o

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déficit universitário no país seja uma constante. É esta terra de corruptos e corruptores que cria situações assim... Aproveitando esse estímulo, Másculo se inscreveu e foi aluno desde o Colégio Piedade (o “Aplicação” da Gama Filho) até se diplomar em Direito. Com esse programa a UGF também conseguiu formar sua equipe de xadrez, entre os quais formavam Alfredo Pereira dos Santos (oficialmente Professor de xadrez do Departamento de Educação Física da UGF), Luís Loureiro e muitos outros. Nessas andanças pela Gama Filho é que Másculo sempre achava tempo para dar um “pit stop” no Cachambi, no meu antigo endereço da Rua Capitão Resende e depois na Rua Basílio Brito. Ali ele fazia uma parada de paz, brincava com meus filhos, bebia uma água gelada, me ensinava xadrez, mostrava partidas, via alguma coisa do que eu jogava, lanchava, almoçava e dava até para tirar uma sesta de vez em quando. Era da casa...

Duas notas acenderam a luz verde e me obrigaram a escrever mais umas lembranças sobre José Soares Másculo. Primeiro foi o Waldemar Costa que, na Epopeia do Campeonato Brasileiro de Xadrez (Editora Solis 2009), a respeito do Campeonato Brasileiro de 1977, escreveu: “José Soares Másculo foi o único dos quatro semifinalistas do Rio de Janeiro que conseguiu a vaga para a final do Campeonato Brasileiro de 1977. Na época ele era campeão brasileiro juvenil, título conquistado em Volta Redonda, e também tricampeão carioca juvenil. Másculo teve vida efêmera, pois morreu de câncer aos 44 anos de idade no dia 15/7/2003. Ele nasceu no Rio de Janeiro em 2/6/1959”. Depois, cavoucando a internet em busca de correção e clareza sobre alguns dados, informes para o texto que tento transformar em escrita, deparei com a emocionada crônica de Dirceu Viana, também ele um dos felizardos a privar da amizade sincera e única que José Soares Másculo dedicava aos amigos.

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A crônica de Dirceu Viana supriu uma lacuna na minha amizade com Másculo: pois foi nesse período eu tive de mudar o rumo da vida, novo emprego, mudança de endereço, a luta de sempre. O próprio Másculo já estava também cuidando da vida fora do xadrez e morava em Macaé, por isso nos perdemos de vista. Agora sei que aquele encontro casual em Búzios, a que me referi, se deu pelo fato dele estar morando em Macaé, pois são cidades próximas. Eis um resumo do comovente texto de Dirceu Viana: Na última sexta-feira recebi uma notícia de rasgar o peito. Colegas do xadrez tentavam checar comigo a informação de que um grande amigo havia falecido. José Soares Másculo era para mim uma espécie de irmão mais velho, uma figura alegre, falante e um amigo confiável. Másculo faleceu no dia 15 de julho, aos 44 anos. Conheci o Zé há exatos 20 anos, no Posto 6, em Copacabana. Naquele pedaço de areia os primeiros craques da seleção de vôlei jogavam na rede de Tia Léa. Ao lado, a turma do frescobol. Mais em cima, perto da calçada, um grupo de funcionários da Varig e agregados queimavam os miolos no tabuleiro de xadrez. Eu começava no xadrez e quando podia arriscava no vôlei. Naquele ano de 1983 foi sua última final de Brasileiro na qual se sentia com chances. [Másculo tirou 12º lugar na semifinal e não se classificou]. A nova geração certamente não conheceu José Másculo. Eu mesmo tenho dificuldades em listar seus resultados. Ele foi bicampeão brasileiro juvenil nos fins dos anos 70, esteve entre os dez melhores jogadores do país, jogou torneios na Europa e mais recentemente nos Estados Unidos. De brancas dominava a Inglesa e os fianquetos, de pretas, tentou me ensinar os segredos da Siciliana Clássica, do Gambito Benko, da IndoBenoni, coisas que nunca entendi. Outra virtude: nunca guardava para si estes conhecimentos. Só não foi mestre porque foi trabalhar como advogado e contador. Os diplomas, porém, não mudaram sua vida.

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O Zé foi também responsável pela maior renovação que o xadrez carioca conheceu. Foi através dele, no fim do anos 80, que várias crianças e adolescentes conquistaram para o Flamengo importantes provas por idade, algumas até fora do Brasil. Nos últimos anos nem conversávamos muito sobre xadrez. Sua relação com o jogo era atípica para um jovem que havia sido vencedor. Másculo nunca deixou de ser um garotão, nas roupas, na fala, nos hábitos. Másculo foi também comerciante (durante seis anos cuidou da loja do avô), flertou com o gamão, tentou sem sucesso jogar peteca (sugestão minha, sic!), e lá na adolescência teve momentos de surfista. Ele me dizia que o xadrez era apenas um meio de alcançar as coisas na vida. Quem era bom no xadrez podia ser bom em qualquer área, por causa da capacidade de concentração. Recentemente ele trabalhava como fiscal de ISS no município de Macaé, norte do Rio. Dividia a semana entre a capital e a cidade do petróleo. Seu último projeto ligado ao xadrez consistia em montar uma equipe e jogar o interclubes com os outros cariocas que viviam em Macaé. No fundo ele sabia que eram palavras ao vento, o xadrez fazia parte do passado. Os bons livros, o tabuleiro, ficaram encaixotados na casa da mãe, logo ali, a poucas quadras. O amigo Capi é que sempre dava um jeito de soprar a poeira, puxar assunto e relembrar aquela época, quando a vida não nos exigia tanto. Bons tempos não voltam mais, ele dizia, sem nenhuma tristeza. Não sei Zé, talvez para você os bons tempos só estejam começando. Vá em paz irmão, que Deus o proteja...

Másculo-Yosupov Quando venceu o Campeonato Brasileiro Juvenil em 1977, José Soares Másculo adquiriu o direito de participar do Mundial Sub 20 na cidade de Innsbruck (Áustria). Logo eu e o Claude Fisch iniciamos – como acredito que muitos outros amigos de Másculo também o fizeram – uma „conspiração secreta‟ para colaborar com a subsistência de Másculo em

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terras distantes. Fizemos uma vaquinha que foi oferecida e aceita de coração. Não me recordo quanto arrecadamos – nem isso é importante agora – mas mesmo que tivesse rendido pouca coisa daria alguns ¢ a mais para ele gastar lá fora. Másculo realmente merecia! Sobre a participação de Másculo nesse Mundial Sub 20 houve um fato que jamais vi divulgado aqui, nem mesmo nas redes de intrigas secretas do xadrez. Tudo eu soube através da Revista Jaque da Espanha. O fato ocorreu na partida Másculo-Yusupov, que acabou sendo o vencedor da competição. Corria a oitava rodada. A partida J. S. Másculo-Artur Yusupov foi suspensa no lance 40, de acordo com as regras da época. Todos correram para seus lugares, tratar de analisar a posição para a conclusão da mesma. A „equipe‟ de apoio de Másculo era formada por Sérgio Farias (19352013), que viria a ser Presidente da CBX em 1978 – e mais ninguém. Notese que aqui se desenha o mesmo modelo que viria ser denunciado a Henrique Mecking no match contra Polugaevsky: o Segundo e Treinador será apenas um inexpressivo Cartola, sendo que Mecking ainda teve o suporte técnico do GM italiano Sergio Mariotti e depois de Juan Manuel Bellón, da Espanha (ambos de categoria inferior à de Mecking). Durante as análises da partida suspensa vieram em socorro de Másculo alguns participantes da América Latina: Alonso Zapata (Colômbia) – que seria o vice-campeão – Miguel Bernat (Argentina), Plínio Pazos (Equador), Hernán Salazar (Chile), entre outros. Depois da análise e dos estudos mais minuciosos e exaustivos que essa equipe improvisada conseguiu fazer – imagina a confusão: todo mundo dando palpite – chegouse a conclusão que a partida estaria empatada. E todos foram comer, beber, descansar para a rodada seguinte e para a sessão de partidas suspensas. Só que o treinador de Yusupov chamava-se Mark Dvoretsky, Campeão de Moscou (1973), 5º no Campeonato Soviético (1974), 1º em Wijk aan Zee Masters (1975). Dvoretsky renunciou ao jogo no tabuleiro, aos torneios e campeonatos, até mesmo ao título de GM para se aplicar no estudo da teoria e, em consequência, a ser treinador. Dentro de pouco tempo sua reputação foi crescendo, pois ele ganhou fama de pegar

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jogadores medianos, com Rating em torno de 2200 e levá-los ao título de GM. Ao mesmo tempo muitos GMs o procuravam para aprimorar o potencial de jogo e Dvoretsky sempre achava uma técnica de aplicar seus estudos para tornar melhores os já titulados. Na realidade, foi o estudo universitário de pedagogia que serviu de suporte para sua didática e assim ele podia aplicar a metodologia certa ao perfil psicológico de cada jogador. Passaram pelo seu método Garry Kasparov, Viswanathan Anand, Veselin Topalov, Evgeny Bareev, Joel Lautier, Loek van Wely, entre outros. Artur Yusupov, quando se tornou o número três do mundo (atrás de Kasparov e Karpov), declarou que a sua ascensão foi devida ao método de ensino de Dvoretsky. Por fim, eles se tornaram amigos, sócios, publicaram livros em coautoria e juntos fundaram uma escola de xadrez. Diz a Revista Jaque que a partida parecia realmente empatada, mas que Dvoretsky encontrou numa sutileza o árduo caminho das pedras para a vitória. O caminho foi não tentar impedir as brancas de coroar o peão passado, mas posicionar as peças negras de modo a impedir que a coroação redundasse em empate. Nas análises, ao se constatar que seria um final de Rei e Damas, teoricamente é empate. Mas na posição final se vê que não é bem assim. ☼☼☼☼ Campeonato Mundial sub-20 Innsbruck 1977 8ª Rodada J. S. Másculo-Artur Yusupov Reti-Nimzowitsch - ECO A06 1. Cf3 d5 2. b3 Bg4 3.e3 Cf6 4.Bb2 e6 5.Be2 Cbd7 6.Ce5 Bxe2 7.Dxe2 Cxe5 8.Bxe5 c6 9.O-O Bd6 10.Bxd6 Dxd6 11.d4 O-O 12.Cd2 c5 13.dxc5 Dxc5 14.c4 Tac8 15.e4 dxc4 16.e5 Cd5 17.Cxc4 b5 18.Cd6 Cc3 19.Dg4 Tc7 20.Tfe1 f5 21.Df3 b4 22.h3 a5 23.De3 Dxe3 24.Txe3 f4 25.Td3 Tc5 26.Cc4 a4 27.Cb6 Txe5 28.Cxa4 Cd5 29.Cb2 Te2 30.Cc4 Cc3 31.a4 e5

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32.Rf1 Tc2 33.Cxe5 Te8 34.Te1 Tb2 35.Cc6 Txe1+ 36.Rxe1 Txb3 37.Ce5 Rf8 38.g3 Tb1+ 39.Rd2 Tb2+ 40.Rc1 Txf2

40. ... Txf2 41. gxf4 Ca2+ 42.Rb1 Cc3+ 43.Rc1 Cxa4 44.Td8+ Re7 45.Cc6+ Rf7 46.Cxb4 Cc5 47.Cd5 Tf3 48.Rd1 Txh3 49.Re2 Td3 50.f5 h6 51.Td7+ Cxd7 52.Rxd3 Cf6 53.Cf4 Ce8 54.Re4 Rf6 55.Cd5+ Rg5 56.Re5 h5 57.Cf4 h4 58.Ce6+ Rg4 59.Cxg7 h3 60.Cxe8 h2 61.f6 h1=D 62.f7 Dh5+ 63.Re6 Df5+ 64.Re7 Dc5+ 65.Cd6 De5+ 66.Rf8 Rg5 67.Rg8 De6 68.Rh7 Dg6+ 69.Rh8 Dxd6 70.Rh7 Dg6+ 71.Rh8 Df6+ 72.Rg8 Rg6 73.f8=D De6+ 74.Rh8 Dh3+ (0-1)

74. ... Dh3+ [www.chessgames.com] Um final duríssimo. Uma partida digna de GM! Mas, ora, vale pensar no fator psicológico. Másculo chegou para a continuação da partida confiante nas análises de sua „equipe‟, para aplicar ao final uma

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continuação estudada, analisada, que dava o empate como certo – e jogou o final muito bem – apesar da partida ter fugido da continuação prevista pelos analistas. Mas os estudos de Dvoretsky estavam corretos e Yusupov chegou à vitória pelo “caminho das pedras”, ou seja, manobrando para que a coroação de Másculo se fizesse como chegou à posição final. A isso se chama estudo, análise profunda, coisa a que, apesar do esforço coletivo, os „segundos‟ de Másculo não se aproximaram. Ao vencer o Campeonato Mundial sub 20, em 1977, Artur Yusupov, com a idade de 17 anos, recebeu também o título de Mestre Internacional FIDE. Agora vamos ver o que aconteceu, em consequência da derrota, dando uma olhada no quadro final da competição, com 48 participantes:

(BrasilBase)

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O campeonato estava na 8ª rodada quando ocorreu esse resultado, até certo ponto inesperado. O efeito psicológico também foi imprevisto, Másculo ficou visivelmente perturbado e desgastado fisicamente com o final difícil e a derrota inesperada. O baque, o desconforto ante o acompanhante, a desconfiança em futuras análises, tudo foi uma pedra a mais para o resultado desastroso que se seguiria, quando ele viria a perder as quatro partidas seguintes! Depois da derrota para Artur Yusupov, José Soares Másculo não marcou meio-ponto sequer em quatro rodadas! Foi defenestrado para o 28º lugar (de um total de 48 participantes), resultado decepcionante para ele, bicampeão brasileiro juvenil, que tinha obtido bons resultados nas competições em que tinha participado. Esse desastre poderia resultar num monte de justas reclamações. Mas, como só poderia acontecer a uma pessoa do caráter de José Soares Másculo, ele ficou em silêncio, pois não tive conhecimento de surgir algum comentário dele sobre esse lastimável fato. Esse infatigável Mark Dvoretsky eu viria a conhecer durante o Interzonal do Rio de Janeiro, 1979. Ele era o treinador da equipe feminina da URSS na competição, formada por Nana Ioseliani, Nana Alexandria, Valentina Koslovskaya e Tatiana Zatulovskaya. Irina Levitina – quatro vezes campeã da URSS – não foi incluída na equipe por castigo: na época o seu irmão tinha fugido para Israel. Depois, em 1991, a WGM Levitina emigrou para os USA, onde ganhou três títulos nacionais. Nana Ioseliani venceu o Interzonal do Rio de Janeiro de 1979 com duas rodadas de antecedência! Lembro-me como a vimos, com o ar radiante, passar pelo corredor contíguo à sala do boletim, vibrando com a vitória e como sorriu agradecida ao ouvir os aplausos coletivos do Bulletin Team. Dvoretsky era um russão típico, grandalhão, branco, um pouco gordo. Volta e meia ele aparecia na sala de boletins com um maço de papeis manuscritos (em russo, claro), para tirar cópias xerox. Eram longos artigos com análise das partidas dos Interzonais.

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Recordo-me que um desses artigos era sobre a Defesa Siciliana, uma variante que eu gostava de jogar (1. e4 c5 2. Cf3 Cc6 3. d4 cxd4 4. Cxd4 e5) e tirei uma cópia para mim. Depois, vendo com mais vagar, reparei que não me serviria de nada, pois só entendia a notação algébrica dos lances, não conseguia ler os comentários e análises em ciríluco e a maçaroca acabou virando papel de rascunho. Bom, tudo isso serve para registrar o jeito escroto com que nossos melhores jogadores de xadrez foram e são tratados em competições internacionais: – Luís Tavares da Silva, Mariotti, Bellón, segundos de Mecking; Sérgio Farias, treinador de Másculo – essa mistura política só poderia dar em merda mesmo! Mecking reclamou e não deu em nada. E a sacanagem continua acontecendo em pleno século XXI! ☼☼☼☼ PS: Como se poderá ver pelo quadro final do Interzonal Feminino 1979, das oito primeiras colocadas, quatro são da URSS. Isso que se chama „trabalho em equipe‟!

☼☼☼☼

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O Torneio Panamericano que levou Másculo ao Mundial sub 20, foi noticiado pela Revista Jaque nº 74, de fevereiro de 1978: SAO PAULO (Brasil) - Finalizó el Torneo Panamericano Juvenil, con la victoria del argentino BERNAT, que totalizó 9 puntos de 11 posibles, seguido de MASCULO (Brasil) y BRAGA (Brasil), ambos con 8,5; McCAMBRIDGE (EE. UU.), 8; CIFUENTES (Chile), 6; NAVARRO (México), 6; RIVERA (Uruguay), 5,5; HERNANDEZ (Colombia), 5; PEREIRA (Bolivia), 3,5; DELGADO (Ecuador), 2,5; FERRAO (Puerto Rico) y MELENDEZ (El Salvador), 1,5. El torneo se disputó por sistema de liga. PARTIDAS 43º Campeonato Brasileiro - Curitiba - 1977 José Roberto Pimenta-José Soares Másculo ECO A37 1. Cf3 c5 2. c4 g6 3. Cc3 Bg7 4. g3 Cc6 5. Bg2 e5 6. a3 Tb8 7. Tb1 a5 8. d3 Cge7 9. Bg5 f6 10. Bd2 d6 11. 0-0 Be6 12. Ce1 0-0 13. Cc2 d5 14. b3 b6 15. h3 Dd7 16. Rh2 Rh8 17. cxd5 Cxd5 18. Ce3 Cxc3 19. Bxc3 Tfd8 20. Dd2 Cd4 21. Cc4 Cxb3 22. Txb3 Bxc4 23. dxc4 Dxd2 24. Bxd2 Txd2 25. Tfb1 Txe2 26. Txb6 Txb6 27. Txb6 h5 28. Tc6 Txf2 29. Txc5 Tc2 30. Tc8+ Rh7 31. g4 h4 32. Rg1 f5 33. gxf5 gxf5 34. Bd5 e4 35. Rf1 Bd4 36. Be6 Rg6 37. Td8 Be3 38. Td5 Rf6 39. Bd7 f4 40. Td1 Tf2+ (0-1) José Soares Másculo-Cicero Nogueira Braga ECO A26 1. c4 g6 2. Cc3 Bg7 3. g3 d6 4. Bg2 e5 5. Cf3 Cc6 6. 0-0 Cf6 7. Tb1 a5 8. d3 0-0 9. a3 Bf5 10. b4 axb4 11. axb4 Dd7 12. b5 Ce7 13. Te1 Bh3 14. Bh1 h6 15. Bb2 Cg4 16. Ta1 Tab8 17. Dc2 f5 18. Ta7 f4 19. Ce4 Cf5 20. Tea1 Rh8 21. Bc3 De8 22. Db2 g5 23. d4 Df7 24. dxe5 Dxc4 25. exd6 Bxc3 26. Dxc3+ Dxc3 27. Cxc3 Cxd6 28. Bg2 Bxg2 29. Rxg2 fxg3 30. hxg3 Tf5 31. b6 cxb6 32. Ta8 Tff8 33. Txb8 Txb8 34. Tb1 Cc4 35. Cd5 Te8 36. e3 Tf8 37. Cxb6 Cce5 38. Cxe5 Cxe5 39. f4 Cg6 40. Cd7 Te8 41. Rf2 Te7 42. Txb7 Rg7 43. Rf3 h5 44. Cc5 Txb7 45. Cxb7 h4 46. Cd6 hxg3 47. f5 Ce5+ 48. Rxg3 Rf6 49. e4 Re7 50. Cb5 Rf6 51. Ca3 Cf7 52. Cc4 Re7 53. Rg4 Rf6 54. e5+ Re7 55. Rh5 Rf8 56. f6 Cd8 57. Rxg5 Cc6 58. e6 Re8 59. Cd6+ Rf8 60. Rf5 Cd4+ 61. Re5 Cc6+ 62. Rd5 Cb4+ 63. Rc5 Cd3+ 64. Rd4 (1-0) José Soares Másculo-Mauro Athayde ECO C65 1. e4 e5 2. Cf3 Cc6 3. Bb5 Cf6 4. De2 Bc5 5. c3 d6 6. d4 exd4 7. cxd4 Bb4+ 8. Bd2 Bxd2+ 9. Cbxd2 0-0 10. 0-0 Ce7 11. Tfe1 Cg6 12. Cf1 c6 13. Bd3 Te8 14. Cg3 Da5 15. Dd2 Db6 16. h3 Be6 17. a3 a5 18. Bf1 Tad8 19. Cg5 Bb3 20. f4 h6 21. Cf3 d5 22. e5 Ce4 23. Txe4 dxe4 24. Cxe4 Bd5 25. Bd3 f5 26. Cd6 Bxf3 27. gxf3 Dxd4+ 28. Rh1 Cxf4 29. Bc4+ Dxc4 30. Cxc4 Txd2 31. Cxd2 Txe5 32. Cc4 Tc5 33. Cd6 b5 34. Cb7 Tc2 35. Cxa5 Cxh3 36. b4 g5 37. Cb3 Tf2 38. Cd4 g4 39. Cxf5 Rh7 40. fxg4 Cg5 41. Ce3 Cf3 42. Cf1 Tc2 43. a4 bxa4 44. Txa4 Tf2 45. Ta1 Tb2 46. Tc1 Txb4 47. Txc6 Txg4 48. Cg3 h5 49. Rg2 Cd4 50. Tc7+

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Rg6 51. Rh3 Tf4 52. Cxh5 Rxh5 53. Rg3 Ce2+ 54. Rg2 Tf5 55. Tc8 Rg4 56. Tc4+ Rg5 57. Tc8 Rf4 58. Rf2 Cd4 59. Te8 Ta5 60. Tf8+ Cf5 61. Re2 Ta3 62. Rf2 Re4 63. Te8+ Rd5 64. Td8+ Cd6 65. Re2 Re5 66. Th8 Cc4 67. Te8+ Rd4 68. Td8+ Re4 69. Te8+ Ce5 70. Td8 Tc3 71. Td6 Te3+ 72. Rd1 Tc3 73. Re2 Th3 74. Tf6 Cf3 75. Te6+ Rd5 76. Te8 Cd4+ 77. Rd2 Th2+ 78. Rd3 Th3+ 79. Rd2 Cf3+ 80. Re2 Ce5 81. Ta8 Rd4 82. Ta4+ Cc4 83. Ta8 Th2+ 84. Rf3 Ce5+ 85. Rg3 Th7 86. Rf2 Tf7+ (½-½) Dirk Dagoberto van Riemsdijk-José Soares Másculo ECO B66 1. e4 c5 2. Cf3 d6 3. d4 cxd4 4. Cxd4 Cf6 5. Cc3 Cc6 6. Bg5 e6 7. Dd2 a6 8. f4 Dc7 9. 0-00 Bd7 10. Cxc6 Bxc6 11. De1 Be7 12. Bd3 b5 13. Bxf6 gxf6 14. Rb1 0-0-0 15. Ce2 Db6 16. Dg1 Dxg1 17. Thxg1 Bb7 18. c4 h5 19. g3 h4 20. g4 h3 21. Cg3 Th4 22. Be2 Bf8 23. Bf3 Bh6 24. Ch5 f5 25. g5 fxe4 26. Bg4 Bf8 27. Cf6 Bg7 28. f5 exf5 29. Bxf5+ Rb8 30. Cd5 Be5 31. Td2 Bxd5 32. cxd5 Tg8 33. Te2 e3 34. g6 fxg6 35. Txg6 Tf8 36. Bd3 Tf2 37. Txe3 Txb2+ 38. Rc1 Txa2 39. Bc2 Bf4 40. Rb1 Txc2 41. Te8+ Tc8 (0-1) Rubens Filguth-José Soares Másculo ECO B53 1. e4 c5 2. Cf3 d6 3. Bb5+ Cc6 4. d4 cxd4 5. Dxd4 Dd7 6. Bxc6 bxc6 7. c4 Dg4 8. 0-0 e5 9. Dd3 f5 10. Cc3 Cf6 11. Te1 Be7 12. c5 fxe4 13. Cxe4 d5 14. Cd6+ Bxd6 15. cxd6 e4 16. Ce5 De6 17. Dc3 Bd7 18. Bf4 Tc8 19. Cd3 0-0 20. Cc5 Df5 21. De5 Tb8 22. b3 Dxe5 23. Bxe5 Bf5 24. f3 exf3 25. gxf3 Tbd8 26. Bg3 Ch5 27. Be5 Bc8 28. d7 Bxd7 29. Bc7 Tc8 30. Bd6 Tf7 31. Tac1 Bh3 32. Te3 Td8 33. Be5 Te8 34. Tce1 Tfe7 35. Bd4 Txe3 36. Txe3 Txe3 37. Bxe3 Bc8 38. Cd3 a6 39. Ce5 Bb7 40. Rf2 Cf6 (½-½)

☼☼☼☼ 44º Campeonato Brasileiro - Natal - 1978 José Soares Másculo-Jerônimo Pimenta ECO B30 1. e4 c5 2. Cf3 Cc6 3. Cc3 e5 4. Bc4 d6 5. d3 Bg4 6. h3 Bh5 7. Cxe5 dxe5 8. Dxh5 g6 9. Dd1 Dd7 10. Cd5 O-O-O 11. Bg5 Cge7 12. Bf6 Tg8 13. Dg4 h5 14. Dxd7+ Rxd7 15. Bg5 Cxd5 16. Bxd5 Be7 17. Bxc6+ bxc6 18. Be3 f5 19. f3 f4 20. Bf2 g5 21. Re2 Tg7 22. g3 fxg3 23. Bxg3 Re6 24. b3 Tf7 25. Taf1 Tg7 26. Bf2 Rd6 27. Thg1 Tdg8 28. Tg2 Re6 29. Tfg1 Rf7 30. Be3 Tg6 31. Tg3 T6g7 32. Rd2 a6 33. Rc3 Re6 34. Rc4 h4 35. Tg4 Tf7 36. Bxc5 Bxc5 37. Rxc5 Txf3 38. Txh4 gxh4 39. Txg8 Txh3 40. Rxc6 Tg3 41. Tf8 Tg2 42. c4 Txa2 43. b4 Tb2 44. Rc5 h3 45. Th8 h2 46. Th6+ Rf7 47. Rd6 Rg7 48. Th3 Rf6 49. c5 Td2 50. Rc7 Txd3 51. Txh2 Tb3 52. Th6+ Rg5 53. Tb6 Rf4 54. Rb7 (1-0) Francisco Trois-José Soares Másculo ECO E71 1. d4 Cf6 2. c4 c5 3. d5 g6 4. Cc3 Bg7 5. e4 d6 6. h3 O-O 7. Bd3 e6 8. Bg5 exd5 9. exd5 Cbd7 10. f4 a6 11. a4 Te8+ 12. Cge2 h6 13. Bh4 Cf8 14. O-O Dc7 15. Dc2 Bd7 16. b3 Dc8 17. Rh2 Bf5 18. Tae1 Te3 19. Cc1 Bxd3 20. Cxd3 Txe1 21. Txe1 C8d7 22. g4 Df8 23. Dd2 Te8 24. Rg2 Txe1 25. Dxe1 De8 26. Dxe8+ Cxe8 27. Ce4 Cdf6 28. Rf3 Rf8 29. Be1 Re7 30. Cg3 Cd7 31. a5 Bh8 32. h4 Ba1 33. h5 Cdf6 34. b4 cxb4 35. Bxb4 Cg7 36. hxg6 fxg6 37. Ce5 g5 38. Cg6+ Rf7 39. f5 Cge8 40. Ce4 Cxe4 41. Rxe4 Bb2 (½-½)

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José Soares Másculo-Antônio Rocha ECO E18 1. g3 Cf6 2. Bg2 d5 3. Cf3 e6 4. O-O Be7 5. c4 O-O 6. d4 b6 7. Cc3 Bb7 8. Ce5 Ca6 9. Da4 De8 10. Dxe8 Tfxe8 11. cxd5 exd5 12. Bg5 Ce4 13. Bxe7 Txe7 14. e3 c5 15. Tac1 Cxc3 16. bxc3 c4 17. Cf3 Cc7 18. a4 Ce8 19. Ce1 Cf6 20. Cc2 Td8 21. Cb4 a5 22. Cc2 Bc6 23. Ta1 Tb8 (½-½) José Soares Másculo-Hélder Câmara ECO A11 1. g3 d5 2. Cf3 c6 3. c4 dxc4 4. a4 g6 5. Ca3 Bg7 6. Cxc4 Be6 7. Dc2 Ca6 8. a5 Dd5 9. d3 h5 10. Bg2 h4 11. Cxh4 Dd7 12. Cf3 Bh3 13. Cce5 Bxe5 14. Cxe5 De6 15. Bxh3 Txh3 16. Dc3 Cf6 17. Bf4 Th5 18. e4 Cc7 19. a6 Cxa6 20. Ta5 Cc7 21. Dc4 Dxc4 22. Cxc4 Txa5 23. Cxa5 O-O-O 24. Re2 Ce6 25. Be3 Cd4+ 26. Bxd4 Txd4 27. Tc1 Tb4 28. Tc2 (½-½) Jaime Sunye Neto-José Soares Másculo ECO A47 1. Cf3 c5 2. b3 Cf6 3. Bb2 e6 4. e3 Be7 5. d4 O-O 6. Bd3 b6 7. O-O Bb7 8. Cbd2 d5 9. De2 Cbd7 10. c4 Bd6 11. e4 dxe4 12. Cxe4 Cxe4 13. Bxe4 Bxe4 14. Dxe4 Be7 15. Tad1 Bf6 16. dxc5 Bxb2 17. Dc6 Dc8 18. Dxc8 Tfxc8 19. Txd7 bxc5 20. Tfd1 h6 21. Tb7 a5 22. Tdd7 Td8 23. g3 Txd7 24. Txd7 a4 25. Rf1 axb3 26. axb3 Ta3 27. Td3 Rf8 28. Re2 Re7 29. Cd2 f5 30. f4 g5 31. Cf3 Bf6 32. Ce1 Ta1 33. Td1 Ta3 34. Td3 Bd4 35. Cf3 Bf6 36. Ce1 (½-½) Herman Claudius van Riemsdijk-José Soares Másculo ECO B56 1. e4 c5 2. Cf3 d6 3. d4 cxd4 4. Cxd4 Cf6 5. Cc3 Cc6 6. f4 e5 7. Cxc6 bxc6 8. fxe5 dxe5 9. Dxd8+ Rxd8 10. Bc4 Bb4 11. O-O Re7 12. Bd2 Td8 13. Be1 Be6 14. Bxe6 Rxe6 15. Ca4 Be7 16. Bh4 Td4 17. Cc3 Td2 18. Tac1 Tb8 19. Bg5 Td4 20. b3 Cxe4 21. Cxe4 Txe4 22. Bxe7 Rxe7 23. Tce1 Txe1 24. Txe1 f6 25. Rf2 Td8 26. Re3 Re6 27. a4 f5 28. a5 f4+ 29. Re2 e4 30. g3 g5 31. h4 h6 32. hxg5 hxg5 33. Th1 Re5 34. Th7 e3 35. gxf4+ gxf4 36. Rf3 Td1 37. Te7+ Rf6 38. Te8 Tf1+ 39. Rg4 Tf2 40. b4 e2 (0-1) José Soares Másculo-Herbert Abreu Carvalho ECO A36 1. g3 c5 2. Bg2 Cc6 3. c4 g6 4. Cc3 Bg7 5. e3 d6 6. Cge2 h5 7. h4 Ch6 8. d3 Cf5 9. b3 Dd7 10. Bb2 b6 11. Dd2 Bb7 12. Cf4 Ce5 13. Ce4 O-O 14. O-O b5 15. a4 bxc4 16. bxc4 Bc6 17. a5 Tab8 18. Tab1 Tb3 19. Ba1 Tfb8 20. Da2 Txb1 21. Txb1 Dc7 22. Bc3 Cxd3 23. Txb8+ Dxb8 24. Cxd3 Bxe4 25. Bxe4 Bxc3 26. Bxf5 gxf5 27. Cf4 e6 28. Da4 a6 29. Dc6 Bxa5 30. Dxa6 Bc3 31. Cxh5 (½-½) Rubens Filguth- José Soares Másculo ECO B51 1. e4 c5 2. Cf3 d6 3. Bb5+ Cc6 4. O-O Bd7 5. c3 Cf6 6. Te1 a6 7. Ba4 b5 8. Bc2 Bg4 9. d3 e6 10. Be3 Be7 11. Cbd2 d5 12. h3 Bh5 13. De2 O-O 14. Cf1 Cd7 15. Cg3 Bg6 16. d4 cxd4

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17. Cxd4 Cxd4 18. Bxd4 dxe4 19. Bxe4 Bxe4 20. Dxe4 Cf6 21. Bxf6 Bxf6 22. Tad1 De7 23. Ch5 Tfd8 24. Dc6 Bh4 25. Cf4 Da7 26. Df3 g6 27. Cd3 Td5 28. Ce5 Tad8 29. Txd5 Txd5 30. g3 Bd8 31. Td1 Txd1+ 32. Dxd1 Bb6 33. Df3 Dc7 34. Cg4 h5 35. Cf6+ Rf8 36. Rg2 Re7 37. Cg8+ Rf8 38. Cf6 Re7 39. b3 Ba5 40. b4 (½-½)

☼☼☼☼ Em seguida eis a participação de José Soares Másculo nos Campeonatos Brasileiro Absoluto 1977 e 1978. Nas duas competições, Másculo totalizou + 5 – 5 = 12 pontos. Em 1979 ele saiu na 3ª rodada por motivo de saúde, em 1980 fez apenas 5,5 pts (+1 -7 =9), em 1981 fez 6,5 em 22º lugar, em 1982 não se classificou. Em 1983, segundo palavras de Dirceu Viana, foi sua última final de Brasileiro na qual se sentia com chances [Másculo tirou 12º lugar na semifinal e não se classificou]. Como se costuma dizer, esse foi o canto do cisne da carreira enxadrística de José Soares Másculo... Campeonato Brasileiro Absoluto Curitiba 1977

Campeonato Brasileiro Absoluto Natal 1978

Fonte: Brasil Base

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O excêntrico Jorge Lemos

Estava cavoucando mais temas sobre Olício Gadia, algo que me fizesse reativar a lembrança de fatos ocorridos, quando dei com um artigo de Luís Loureiro sobre o mestre. Mas não havia nada para tirar dali nem algo que atiçasse a memória, talvez porque o Loureiro fosse mais novo que eu, tivemos momentos, visões e temas diferentes. O nosso olhar sobre Olício Gadia também era dessemelhante. Para Luís Loureiro – assim como para muitos garotos talentosos que estavam se iniciando no xadrez estudando muito – Olício Gadia foi um exemplo e excelente mestre. Era um dom natural a forma como ele aceitava desenvolver os temas que a garotada levantava, tanto sobre teoria, a prática e a ética do xadrez. Gadia tinha ciência de como isso seria importante, repassar técnica, experiência, sabedoria, em conjunto, para que eles tivessem uma visão ampla do jogo, para que tudo não se limitasse a um mero entretenimento. Olício Gadia transmitia a sua própria lógica, a experiência vivida como Mestre e Campeão Xadrez. Não era um simples explicador de posições, aberturas, defesas – como muitos „professores‟ repassam aos alunos, pensando assim estar ensinando o xadrez. Havia nas entrelinhas, de forma bem clara, uma lógica – ética e estética –, uma razão de ser que se associavam e faziam o conhecimento teórico ganhar importância. Luís Loureiro cita alguns dos “alunos” do Mestre Gadia:

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“Se me permitem, começo com meu nome e acrescento os de Eduardo Limp, Sadi Dumont, Luismar Brito, Jerônimo Pimenta, Francisco Sampaio, Ignácio Barreto, Hermes Amílcar, Darcy Lima, Hilton Rios e José Kubrusly. E talvez esteja, injustamente, esquecendo alguém mais. Minhas desculpas antecipadas”. Não sei não, mas acho que meu grande parceiro, meu amigo admirado José Soares Másculo também era, não só aluno, mas também amigo de Olício Gadia... e não é um nome que se deva esquecer. No entanto no texto de Luís Loureiro encontrei uma curiosa coincidência: ao falar de Olício Gadia mencionamos de passagem a figura de Antonio Maurício Horta, que Luís Loureiro achou um dos jogadores mais folclóricos do clube. Estranhei essa acepção, que nunca havia sequer me passado pela cabeça, a respeito de Horta, tanto que fui catar o significado de folclórico para ver se eu estava errado no meu ponto de vista. Folclórico, adj. - 1 - referente a folclore; 2 - p. ext. inverídico, fantasioso; 3 - p. ext. pitoresco, antiquado, ultrapassado; 4 - Pitoresco, mas desprovido de seriedade; risível; extravagante; excêntrico. Não encontro paralelo entre Horta e as definições acima, talvez todas elas, misturadas, sirvam para qualificá-lo, aos pedaços, aqui e ali. Fora isso, para mim o Maurício Horta não se encaixa nesse tipo. Ao contrário, Antonio Horta uma pessoa simples, quando entrava num ambiente cumprimentava a todos com educação e alegria e não se comportava, definitivamente, como as pessoas folclóricas. Entretanto, tudo é um ponto de vista. Antonio Horta era um jogador talentoso, mas tinha falhas técnicas e éticas sobre o xadrez. Ademais, ele usava o tempo que deveria aprimorar o seu xadrez (sempre foi forte adversário para todos), jogando ping a dinheiro. Outra atitude não exclusiva do Maurício Horta, mas de muitos outros jogadores, era quando participavam de campeonatos e torneios oficiais, valendo pelo ranking nacional. É neles que se revela a segunda falha: quando não somava pontos ou perdia nas primeiras rodadas, estava quase certo de ele abandonar o torneio, muitas vezes em prejuízo de participantes que o tinham enfrentado. Fico a pensar que, tivesse o Maurício Horta estudado com o mesmo afinco e dedicação que tinham Luís Loureiro, José Másculo, Jerônimo Pimenta e outros, que aprenderam naquela mesma mesinha lá no canto da

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sala do Clube de Xadrez Guanabara, ele certamente seria um dos maiores jogadores de xadrez entre nós. O que importa é que isso me remeteu diretamente ao Dr. Jorge Lemos, ele sim, era o personagem folclórico e excêntrico por excelência, mais de acordo com a definição: “Excêntrico - adj. aquele que desvia ou se afasta do centro. No sentido figurado, significa extravagante, esdrúxulo, esquisito, folclórico. Ser excêntrico é se afastar do habitual, do que é comum. É cometer exageros, é ter seu próprio estilo de vida, no modo de vestir, de pensar e também no aspecto comportamental. Excêntrico é o indivíduo que tem seus próprios modos, com características fora dos padrões sociais vigentes na sociedade em que vive. É aquele considerado diferente dos padrões normais”. Se fosse enquadrar o cara mais folclórico e excêntrico que conheci no ambiente do xadrez, escolheria o Jorge Lemos, uma figuraça! Encontrei e convivi com Dr. Jorge João de Lemos, médico sanitarista e clínico geral, durante muitos anos, nos quais conheci também sua mãe, Dona Zaquia, libanesa (que fazia um quibe maravilhoso) e sua filha Simone. Como metade de minha família é de origem libanesa, a amizade foi fácil. Esse tempo foi suficiente para atestar algumas das excentricidades e manias de Jorge Lemos, sendo as mais relevantes: 1) Jorge Lemos ele não lavava o carro, ou raramente lavava. Deixava o carro empoeirado, imundo, lanternas quebradas, tudo isso “para não ser roubado”. Um dia paramos para abastecer o carro num posto da Lagoa Rodrigo de Freitas, veio aquele atendente que joga água para limpar o parabrisa – pra quê! Jorge saiu do carro gritando: – Não, não limpa! – de tal jeito que o garoto se assustou (e eu morrendo de rir). Mesmo assim, certo dia fui chamado à sua presença, encontrei o Jorge se lamentando: o seu carro tinha sido roubado em Rocha Miranda – e não tinha seguro contra roubo! É mole? 2) Jorge Lemos usava cópias de documentos para não perder (ou ter roubados) os originais. Vínhamos de Friburgo, onde fizemos campanha para eleições da FEXERJ, numa viagem noturna, nervosa, com uma neblina que cegava a gente. Na estrada, sugeri ao Jorge dar uma paradinha, porque a gente não enxergava um palmo adiante do nariz. Ele reduziu o carro, foi encostando, topou com o meio-fio e descemos. Quando me dei conta, vi que estávamos a um metro de uma ribanceira íngreme, que ficava logo depois do meio-fio. Fiquei gelado!

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Já chegando ao Rio de Janeiro, Jorge pegou um caminho cortando ali pelo Morro da Providência. Transitando pelas ruas escuras e desertas, fomos parados pela polícia: demos de cara direto com uma blitz da PM. O carro dele todo sujo, fudido, retrovisor quebrado, lanternas traseiras apagadas. Chega um soldado pede os documentos, Jorge tira do porta-luvas uma porrada de papéis, amarrotados, dobrados, amarelados, tudo fotocópia! Só quem sabe o que é parar numa blitz no Rio de Janeiro depois da meia-noite vai entender. Meu cu ficou pequenininho. Estamos ferrados, pensei. Jorge viu que o cara era subalterno, chamou ele e perguntou: – Quem é o chefe da tropa? Veio um oficial jovem, Jorge Lemos se identificou como médico e que estaria indo direto para o plantão no hospital: – Se algum paciente meu vier a morrer, a culpa vai ser da blitz! Vocês serão responsabilizados. Eu já estava do lado de fora do veículo, aproveitei a proximidade do oficial e expliquei em voz baixa que a gente estava chegando de viagem, que realmente Jorge Lemos era médico, que estava nervoso, cansado de dirigir, tentei – enfim – aliviar a barra. O jovem oficial deu um esporro no Jorge Lemos por causa do carro todo esculhambado e por não portar os documentos originais, que deveria se envergonhar por ser médico, por andar irregular e mandou a gente embora: – Suma daqui! Saímos de fininho... 3) Muitas vezes fui com Jorge Lemos ao apartamento que ele tinha alugado em Madureira só para guardar os mais de 30 mil livros que formavam a sua biblioteca. Mas não era só livro de xadrez, tinha tudo quanto é assunto e também de medicina, principalmente da área sanitarista, que era a especialidade dele, além da clínica geral. Uma particularidade: todos, todos os livros eram guardados num saco plástico, que ele tirava para ler e depois recolocava de novo. Era o pavor de fungos que Jorge Lemos tinha, das bactérias e de outros assassinos invisíveis! Jorge Lemos também era „ladrão de livros‟, ou seja, aquele cara que pede livro emprestado e não devolve (vício que muita gente tem). Eu passei anos sem falar com o sacana porque ele desmanchou a coleção que eu tinha de 10 volumes da edição portuguesa de “As Mil e Uma Noites”. Jorge Lemos foi lá no Cachambi, pediu emprestado o Volume nº 1 para ler,

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depois devolveria e pegaria o volume seguinte e assim estaria lendo toda a coleção. Essa foi uma exigência minha, mas não adiantou nada: ele nunca mais devolveu o Volume nº 1 – destruindo assim a minha edição. De que vale uma coleção de 10 volumes se não se tem o nº 1? Fora isso ele também nunca me devolveu outros livros que tinha pegado emprestado comigo. Como disse, o médico Jorge Lemos tinha pavor a germes. Bebia água mineral com gás diretamente da garrafa, não usava copos e jamais encostava a boca no gargalo! Quando certa vez “limpei” a boca da garrafa com minha camisa, ele simplesmente pediu outra garrafa. Eu tive que beber a água “contaminada”. Estávamos eu, Jorge Lemos e uma doutora colega dele, em frente ao PAM do Méier (onde ele trabalhava), bebendo água mineral. Ele comentou com a colega: – A minha urina está ótima, bem amarela, forte. Pois eu disse: – Ora, então a minha está melhor que a sua: branquinha, cristalina, dá até pra beber! Ele olhou para a colega e depois para mim, com aquele ar de superioridade e disse: – Ignorante! Eu, claro, ri à bessa. Certa vez Jorge Lemos chegou ao Clube de Xadrez Guanabara com a sua filha Simone – minha amiga, superinteligente, que também jogava xadrez. Enquanto ele pegava a turma do ping, eu e Simone ficávamos conversando ou jogando algumas partidas amistosas, sem relógio. Eu ficava esperando a carona, pois Jorge sempre me deixava no Méier. Quando íamos sair e ele soube do resultado: – Você perdeu para o Salomão? Assim mesmo, debochado, me esculachando, como se fosse impossível Simone perder para mim. Mas nem ela nem eu ligamos para a exaltação do pai coruja, orgulhoso da filha, apenas sorrimos da reação dele

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ao fato. Ao entrar no carro Jorge sempre protegia a cabeça da filha com as mãos: – Cuidado com a cabecinha, dizia ele, com receio de que alguma pancada fizesse mal à inteligência de Simone. Jorge Lemos me disse que se ele quisesse Simone seria Campeã Brasileira de Xadrez. Mas a prioridade não era essa: o tempo que ela iria se dedicar ao xadrez, era tempo perdido na educação. Eu acredito que sim. Com 15 anos de idade Simone já falava mais de cinco idiomas, inclusive árabe e russo. Quando Viktor Korchnoi veio ao Rio de Janeiro para dar uma simultânea na Hebraica, estávamos os três: eu, Jorge e Simone. Korchnoi deu uma de superstar e saiu do carro apressado, cercado de puxa-sacos. Lá fomos os três correndo, Jorge Lemos instigando Simone a falar com Korchnoi, o que ela conseguiu. E por fim trocaram algumas palavras, Korchnoi diminuiu o ritmo das passadas para falar com ela. O assunto foi como tinha sido a viagem, se ele estava bem, bem-vindo ao Rio de Janeiro, essas coisas triviais. Mas serviu para testar o russo de Simone, que àquela altura estava bem. Um magnata chinês Tung Chao Yung comprou o transatlântico desativado “Queen Elizabeth” e fez dele uma universidade flutuante, o “SS Seawise University”. Tung Chao Yung colaborou com várias universidades do mundo para manter seu programa acadêmico do mar, que reunia os jovens mais inteligentes de vários países para estudarem juntos, visitando os locais de estudo, com os melhores professores de cada matéria. Na verdade o chinês era um caçador de jovens talentosos pelo mundo afora, a serviço das grandes potências. Simone Lemos foi uma das duas estudantes brasileiras selecionadas para estudar no “Mundo Campus Afloat”. A outra era uma pernambucana, que não conheci. Fui vê-la quando o navio aportou na Praça Mauá. Ela, a muito implorar, conseguiu do Comandante autorização para me mostrar todo o navio e depois almoçamos a bordo. Simone estava radiante de felicidade: ali estavam reunidos os mais prodigiosos estudantes de todo o mundo. Depois ela continuou os estudos nos USA e apareceu em noticiário da TV Globo como “a brasileira que trabalha no Programa Guerra nas Estrelas”. Quando saí do navio, o comandante estava à escada e quis agradecer pessoalmente: – Beautiful boat – eu disse em meu pobre inglês de cais do

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porto. – Beautiful ship V ele corrigiu na hora! Mandei-lhe meu riso amarelo e caí fora. Jorge Lemos, ficou mais famoso quando teve uma fotografia publicada no Jornal do Brasil dando a notícia do afastamento de Mecking do Interzonal de 1979 por miastenia gravis – doença que, segundo alguns, Mecking jamais teve. Jorge Lemos era o médico oficial da competição e foi quem assinou o atestado. A foto é essa que ilustra o capítulo. Na imagem divulgada pelo Jornal do Brasil, Jorge estava com barba por fazer, usando aqueles óculos de lentes tipo de fundo de garrafa, cabelos desgrenhados subindo pela cabeça. Para nós, que o conhecíamos, estava tudo normal, em sendo Jorge Lemos! Mas na notícia, subscrito abaixo das fotografias de Jorge Lemos e de Mecking, um texto curto e grosso dizia: “Quem é o doente?” Como já disse por aí, certa época o Jorge Lemos me convocou para fazer com ele a campanha para a presidência da FEXERJ. O adversário era José Thiago Mangini, que já tinha sido presidente e diretor várias vezes. Mangini, Campeão Brasileiro, Estadual e do Rio de Janeiro em várias ocasiões, colunista d‟O Globo, era um candidato praticamente imbatível. Eu logo adverti a Jorge Lemos: – Para fazer campanha, Jorge, tem que ir ao local do voto. Recebo muitas cartas dos dirigentes de clubes do interior, reclamando que vocês só aparecem quando tem eleição. Depois de eleito o Presidente da Fexerj some e nada é feito pelo xadrez do interior. O Jorge aceitou o meu conselho e lá fomos nós. Visitamos clubes em Petrópolis, Teresópolis, Friburgo (quando ocorreu o caso da blitz que contei acima), Volta Redonda, Barra Mansa, Macaé, São João da Barra, onde tivesse clube federado lá estávamos nós. No dia da eleição, que foi realizada na sede da FEXERJ na Av. Passos, tinha muita gente reunida, a sala estava abarrotada, mas havia também muitos votos por rocuração (um vício que persiste até hoje nessas eleições caducas e malandras). Eu fiquei ao largo, no corredor. Sempre me dei bem com Mangini e com Jorge Lemos, mantive o equilíbrio equidistante. Mas Mangini soube que eu fiz a campanha a favor do Jorge. O Jorge Lemos fez a sondagem de boca de urna entre os votantes e veio me trazer o resultado: vamos ganhar por 21 votos, contra 20 para Mangini. Realizou-se o pleito e o escrutínio. Lá vem ao corredor onde eu estava o Jorge Lemos gritando exaltado:

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– Fui traído! Fui traído por um voto. O resultado foi Mangini: 21 votos, Jorge Lemos: 20 votos! Acho que foi a única eleição que Mangini teve apuros para se eleger. Antes de iniciar a votação vi Mangini em conversa de pé-de-ouvido – nisso ele era um Mestre também – com certa pessoa, que eu não conhecia. Chamei o Jorge e perguntei: – Quem é aquele fulano ali? Ele me falou e então eu contei o flagrante que fiz da conversa cochichada. – Foi ele, foi ele! – repetiu Jorge. – Ele tinha me prometido o voto. O filho da puta me traiu! ☼☼☼☼ Eu tinha prometido a Jorge Lemos que iria escrever um artigo só com as partidas dele que tivessem abiscoitado o Prêmio de Beleza nos torneios, instituto que hoje não se promove mais, devido ao alto índice de torneios populares, com centenas de participantes. Não sei se nos torneios mais seletivos, a prática ainda existe. Não haveria dificuldade se quisessem dar mais esse realce às competições. É só fazer um apelo no início do torneio aos jogadores, para que inscrevessem partidas que considerassem de boa qualidade, capazes de concorrer ao título de melhor partida do torneio, isto é, ao Prêmio de Beleza. Pedi ao Jorge Lemos que ele fizesse uma seleção de partidas que gostaria de ver publicadas. Ele me deu a recolha, comentou algumas partidas, e passou-se um tempo antes que eu preparasse o artigo. Escrevi o texto, traduzi o texto da seleção das partidas para o espanhol e – vupt! – envelope no correio para Las Palmas de Gran Canárias. Lá na revista também, é claro, o texto demorou um pouco para sair e já estávamos – eu e Jorge – esquecidos da coisa quando recebi a revista. Saiu o artigo! Jorge ficou eufórico, naturalmente, e comprou vários exemplares para distribuir aos amigos. Recuperei um desses exemplares por gentileza do Clube de Xadrez Guanabara, nas figuras dos amigos MF Ângelo Bil e do secretário-adjunto Mário do Estácio, que neste glorioso 2015 seguram a barra pesada que é

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manter vivo um clube que fará 60 anos em 2016. Jorge Lemos fez questão de autografar a página da Revista Ajedrez 6000 em que saiu o artigo. O artigo saiu assim (a versão original, que escrevi em espanhol, está também no final deste livro, em imagem). Anexei também várias outras publicações sobre o Brasil, saídas naquela revista. ☼☼☼☼ Ajedrez es brillantez Por Salomão Rovedo Revista Ajedrez 6000 (Espanha) Nº 65 - Dezembro 1976 Ainda existem jogadores para quem os primeiros lugares pouco significam diante da criatividade. Sim! Ainda existem, porém, com certeza é uma espécie em extinção, a partir do momento em que o Jogo Ciência superou o Jogo Arte. O MN brasileiro Jorge Lemos é uma dessas pessoas que costumam resistir heroicamente ao pseudo-cientificismo que hoje acomete o xadrez. Assim é que, considerando o jogo antes de tudo uma arte, tem durante toda sua carreira enxadrística poucos primeiros lugares, porém jamais deixou de marcar sua presença nas competições com rasgos de genialidade, quase sempre reconhecidos em Prêmios de Beleza. Hoje sua coleção soma mais de 31 partidas brilhantes, agraciadas com Prêmio de Beleza iniciada em 1947 aos 15 anos de idade no Campeonato Interclubes do Rio de Janeiro. Uma de suas criações mais recentes foi no Open Cidade de São Lourenço, vencido pelo GM argentino Miguel Angel Quinteros, secundado pelo GM filipino Eugenio Torre. Jorge Lemos ganhou o Prêmio de Beleza e a partida foi batizada com o carinhoso título de Pérola de São Lourenço, dado pelo vencedor do torneio. Sem dúvida, ainda hoje Jorge Lemos continua colhendo êxitos, pois no recente Campeonato do Rio de Janeiro de 1976, deixou a marca do seu estilo, sendo agraciado com mais um Prêmio de Beleza! ☼☼☼☼

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A seguir reproduzo as partidas que ilustram o artigo. As „provocações‟ a que Jorge Lemos se refere nos comentários da partida com Hélder Câmara explica-se pelo fato de ambos terem sido grandes amigos e adversários constantes nas várias competições nacionais e pelo Brasil afora. Se diria que eram „inimigos figadais‟ – mas hoje não se usa mais tal expressão... e sim „inimigos fidagais‟... ☼☼☼☼ Torneio Internacional IV Centenário do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 1965 Jorge Lemos - Hélder Câmara ECO B06 1. e4 g6 (Ao jogar esse lance o MI e Campeão Brasileiro Hélder Câmara me perguntou: “Sabe que defesa é esta? Chama-se Pirc-Ufimzev. Agora me deixar escrever porque você não vai acertar”. Era uma clara provocação, bem ao estilo Hélder, mas não me deixei abalar). 2. d4 Bg7 3. Cc3 c5 4. Cf3 cxd4 5. Cxd4 (Com esse lance se chega a uma posição da Siciliana Dragão, favorita do MI brasileiro). 5 ... c6 6. Cb3 Cf6 7. Be2 d6 8. O-O O-O 9. f4 a6 10. g4 b5 11. g5 Cd7 12. f5 Cb6 13. Be3 Ce5 14. f6 exf6 15. gxf6 Bh8 16. Rh1!! (Lance chave de toda a combinação, na qual tinha gasto uma hora do meu precioso tempo. Nesse meio termo, Câmara continuava com as provocações). 16 ... Be6 17. Cd4 Te8 18. De1 b4 19. Cxe6 Txe6 20. Bxb6 Dxb6 21. Cd5 Dd8 22. Dh4 Cd7 23. Ce7+ Rf8 24. Dh6+ Re8 25. Dxh7 Bxf6 26. Cxg6 Ce5 27. Dg8+ Rd7 28. Cxe5+ Txe5 29. Dxf7+ Be7 30. Bg4+ Rc7 31. Dc4+ Tc5 (As brancas dão xeques seguidos porque estava em zeitnot – com o limite de tempo apurado, devido à demora com que calculou o meio-jogo. A partida também se estenderá demasiado pelo mesmo motivo).

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32. Dxb4 Tb8 33. Da3 Dh8 34. Tf7 Rd8 35. Td1 De5 36. Dg3 Dxg3 37. hxg3 Txb2 38. Tf2 Txa2 39. Th2 Tcxc2 40. Th8+ Rc7 41. Th7 Rd8 42. e5 (1-0) (O resto foi apenas uma questão de técnica de final... e apuro de tempo. As negras só abandonaram no lance 79 – depois de ficar repetindo mil vezes: “Ainda vou ganhar esse final! Ainda vou ganhar esse final!”) Comentários de Jorge Lemos. Open Cidade de São Lourenço São Lourenço 1975 Sadi Dumont - Jorge Lemos ECO B75 1. e4 c5 2. Cf3 d6 3. d4 cxd4 4. Cxd4 Cf6 5. Cc3 g6 (Dessa maneira se implanta a Variante do Dragão, sistema que oferece maiores contrachances para as negras). 6. Be3 Bg7 7. f3 Cc6 8. Dd2 O-O 9. Bc4 Bd7 10. h4 Dc7 11. Bb3 Ce5 12. O-O-O Tfc8 13. h5 Cc4 14. Bxc4 Dxc4 15. hxg6 fxg6 16. g4 b5 (A Variante do Dragão é de ataque e contra-ataque. Se observarmos, a maioria das partidas, a estratégia é igual para ambas os lados: ataques diretos ao Rei). 17. Rb1 b4 18. Cce2 a5 19. Cg3 a4 (O ataque negro a partir de agora é mais promissor. O branco perdeu um tempo na abertura e isto nesse tipo de variante é mortal). 20. b3 axb3 21. cxb3 Da6 22. Cde2 Bb5 (As negras prosseguem o fulminante ataque!) 23. a4 Bxa4 24. bxa4 Dxa4 25. Bd4 b3 (Ameaçando 26. Tc2!) 26. Tc1 Txc1+ 27. Txc1 Cxe4 (Começa a sinfonia. Agora todas as peças negras entrarão em jogo).

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28. Db2 Cd2+ 29. Dxd2 Da1+ 30. Bxa1 Txa1++ (0-1) Comentários do GM Miguel Angel Quinteros – vencedor do torneio – que chamou esta partida de “A pérola de São Lourenço”. Campeonato Estadual do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 1976 Fernando Duarte - Jorge Lemos ECO D44 1. d4 c6 2. c4 d5 3. Cf3 e6 4. e3 f5 5. Bd3 Cf6 ( 5... b6 6. O-O Dc7 7. Ce5 ) 6. O-O Bd6 7. b3 O-O 8. Dc2 Ce4 9. Ce5 Cd7 10. f4 Cdf6 11. Ba3 Bxa3 12. Cxa3 De7 13. c5 Bd7 14. b4 a6 15. Tab1 Rh8 16. Tb3 Tg8 17. Cb1 g5 18. fxg5 Txg5 19. Tf3 Tag8 20. Bf1 Th5 21. Cc3 Cg4 22. Cxd7 Txh2 23. Cxe4 dxe4 24. Ce5 Cxe5 25. Tf4 Cf3+ 26. Rf2 Dg5 27. Txf3 Txg2+ (0-1) Campeonato Brasileiro 1951 Rio de Janeiro 1951 Jorge Lemos - Washington de Oliveira ECO C15 1. e4 e6 2. d4 d5 3. Cc3 Bb4 4. Bd2 Ce7 5. Dg4 Cg6 6. a3 Be7 7. Bd3 b6 8. Cf3 Ba6 9. h4 h5 10. Dg3 Bxd3 11. cxd3 a6 12. Tc1 dxe4 13. dxe4 Cd7 14. Cg5 Cdf8 15. O-O Bxg5 16. Bxg5 Dd7 17. Cd5 exd5 18. Txc7 De6 19. exd5 Dxd5 20. Tfc1 Td8 21. Bxd8 Ce6 22. Tc8 Cxd8 23. Te1+ Ce7 24. Dxg7 Tf8 25. Df6 Dd7 26. d5 Tg8 27. d6 (1-0) (Alguém poderia me corrigir, mas acho que, se em vez do lance 20 ... Td8 as pretas jogassem direto 20 ... Ce6, as coisas teriam sido diferentes – talvez esta partida nem estivesse aqui. Mas nunca se sabe em que circunstâncias o jogo ocorreu, os apuros de tempo, etc.). Torneio Cidade de Belo Horizonte Belo Horizonte 1964 Peter Toth - Jorge Lemos ECO C30 1. e4 e5 2. f4 Bc5 3. Cf3 d6 4. Bc4 Cf6 5. b4 Bb6 6. De2 Cc6 7. c3 O-O 8. f5 d5 9. exd5 e4 10. dxc6 exf3 11. Dxf3 Te8+ 12. Rd1 Ce4 13. Rc2 Cd6 14. Bd3 bxc6 15. Bb2 Bb7 16. f6 c5 17. Dh5 Be4 18. Bxe4 Cxe4 19. c4 Cxf6 20. Dg5 cxb4 21. c5 Ba5 22. Tf1 Te6 23. h3 b3+ 24. Rxb3 Dd3+ 25. Cc3 Ce4 26. Dd5 Tb8+ (0-1)

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Além do Reino de Caissa

Carteira da FMX assinada por Friedrich Alfred Salamon

Acho que todo enxadrista – e aqui falo de toda a fauna que movimenta as peças – problemistas, viciados em ping-pongue, solucionistas, compositores – e também aquele que chega ao clube, arranja uma cadeira e fica todo o tempo a ver partidas e/ou problemas, saindo depois satisfeito rumo a seu destino, acho, dizia, que todo enxadrista não deve se limitar apenas ao jogo do xadrez em si, mas percorrer todos os seus caminhos e labirintos. Quando resolvi aprender xadrez, além dos necessários compêndios de aberturas, regras, etc. fiz-me acompanhar do livro de Edward Lasker “A aventura do xadrez” para que pudesse, também, penetrar na alma do jogo, isto é, conhecer seus detalhes, a vida de vários mestres, o comportamento durante a partida ou durante um torneio e aí por diante. Sabia que, se não conseguisse a façanha de incutir dentro de mim esse espírito, não seria capaz de captar a alma do xadrez em sua amplitude. E não errei! Depois, já jogando partidas em torneios, passei para outras experiências. Uma vez, antes de uma rodada de torneio, resolvi desfrutar um delicioso galeto al primo canto, devidamente acompanhado de uma cervejinha bem gelada. A iguaria estava tão gostosa que chamei outra “lourinha” para acompanhar a primeira e, regalado, caminhei para enfrentar meu adversário.

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Lá pelas tantas a digestão já se achava bem encaminhada e se fez presente, transfigurada em lances completamente desconexos, o que ocasionou a derrocada da partida. Perdi a partida, mas o galeto, a ninguém nego, estava ótimo! Esse fato me fez lembrar um outro, que ocorreu na minha primeira partida de torneio. Naturalmente o sistema suíço me proporcionou logo um adversário forte, visto que eu não tinha “rating” e figurava no fim do quadro. Arranjei um calmante e tomei, mas o bicho não fazia efeito algum e resolvi complementar, ingenuamente, com uma dose reforçada de excelente conhaque. Quem conhece o efeito explosivo dessa combinação pode antecipar o ocorrido. Na verdade todo o medo desapareceu como por milagre e eu fiquei desperto como um vampiro em lua cheia! Deslanchei uma Ruy López e, lá pelas tantas, sacrifiquei um cavalo por três peões e fui pra cima do meu adversário. Tal como agora em linguística, devo ter promovido alguma inovação xadrezística que havia proporcionado um final entablado [empatado] com forte adversário e a zebra teria dado [as caras] se o tempo não me consumisse todo o fosfato necessário para tal empresa. Mais recentemente fui forçado a jogar três rodadas de um torneio com alguns graus de febre, rebatida por comprimidos, além do antibiótico necessário ao combate de violenta faringite. Confesso que a experiência não foi das melhores. Não consegui ganhar um mísero meio ponto, mesmo frente a adversários reconhecidamente inferiores! Combinações furadas, peças no ar, mate em um, e outras façanhas cometi, antes de solicitar a minha exclusão. Em três rodadas a única coisa que consegui foi um 0-0-0! Mencionei aqui algumas poucas (e orgânicas) experiências com o xadrez, mas outras há e hão de continuar a nascer para que se comprove também a perenidade do nobre “jogo-ciência”. (Publicado no Boletim Informativo do CXG, 1970/1980)

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O Mestre Alexandru Segal

Conheci Segal nas idas e vindas ao Clube de Xadrez São Paulo, a mais notável instituição brasileira dedicada ao xadrez. O CXSP fica naquele prédio de quatro andares da Rua Araújo nº 154, localizado no centro nervoso da cidade, próximo ao Teatro Municipal e Praça da República. Toda oportunidade que tinha de ir a São Paulo, a visita ao CXSP era agenda certa. Todos que chegassem ali eram recebidos com um cafezinho bem paulista, aliado à eterna simpatia de Virgilio – funcionário desde os anos 1950 (depois com a companhia do seu irmão Izidoro). Possuidor de rara sensibilidade, Virgilio recepcionava a todos no mesmo nível, sem desmerecer fama, notoriedade ou renome – do Grande Mestre a este escrevinhador –, todos eram iguais. Do Virgilio simples, de fala macia e gestos leves, emanava um halo, uma grandeza no trato, que fazia com que todos se sentissem tratados com exclusiva deferência. Mas o clube tinha seus lugares secretos. Um deles era a biblioteca do CXSP, que hoje conta com mais de 4.000 livros. Formada a partir de 1941 com doações dos primitivos fundadores, a biblioteca do CXSP tem qualidade e importância histórica tais que a torna uma das mais admiráveis de todo o mundo. Entrar ali, pois, é para privilegiados. Nesse ponto, Virgilio me foi útil quando precisei fazer pesquisa para os torneios internacionais do clube, na cobertura que fazia para as revistas Jaque (San Sebastian – Dir. José Maria Gonzalez) e Ajedrez 6000 (Canárias – Dir. Bent Larsen). A qualquer um que ali chegue é apresentado ao folder de apresentação, que corre também pela internet nas páginas do CXSP.

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“Receber os principais jogadores mundiais é uma constante na história do CXSP. Dentre outros astros do esporte, estiveram em sua sede os campeões mundiais Jose Raul Capablanca, Alexander Alekhine, Max Euwe, Vassily Smyslov, Tigran Petrosian, Boris Spassky, Anatoly Karpov e Vladimir Kramnik. Outros jogadores exponenciais como Ricardo Reti, Samuel Reshevsky, Miguel Najdorf, Ludwig Engels, Victor Kortchnoi, Bent Larsen, Oscar Panno, Ulf Andersson, Rafael Vaganian, Lubomir Ljubujevic, Anthony Milles, dentre tantos outros, visitaram o Clube e participaram de seus eventos. Todos os campeões brasileiros, assim como os maiores jogadores de xadrez do Brasil, participaram de torneios no CXSP, transformando-o na via central do xadrez brasileiro ao longo de sua existência mais que centenária”. Não é de admirar, portanto, que Segal tenha adotado o CXSP como a sua casa, só se ausentando para competições fora do país. Foi o lugar onde ele se habituou a frequentar no dia a dia, na maior parte da sua vida, principalmente a partir do momento em que passou a se dedicar inteiramente ao xadrez. Os encontros com Segal se sucederam também nos muitos torneios que se faziam pelo interior do país, notadamente em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Era um grupo fabuloso que se formou, com destaque para os mestres brasileiros que não deixavam de pontilhar: Antonio Rocha, Hermann Claudius e seu irmão Dagoberto van Riemsdyjk, Herbert de Carvalho, Hélder Câmara, Sérgio Farias, Jorge Lemos, Norma Snitkowsky, André Cajal (recém chegado), Sadi Dumont, Cícero Braga, Alexandru Segal, Francisco Trois (às vezes aparecia), a turma de „garotos‟ do Rio de Janeiro, Eduardo Limp, Mascarenhas, José Másculo, Jerônimo Pimenta, Luismar Brito, Ricardo Teixeira, – e mais um montão de pessoas que se revezavam pra lá e pra cá, onde quer que tivesse torneio de xadrez. Presença constante nos torneios, participamos de eventos Brasil afora: Itatiaia, São Paulo, Itanhaém, Águas de Lindoia, São Lourenço e outros. Formou-se um grupo constante: havia sempre o reencontro em ambiente camarada, confraternização sem contar o nível enxadrístico. Essa farra só acabou quando em 1980 tive de dar novo rumo à vida profissional. Aí só o encontrava esporadicamente. Estive em São Paulo no Torneio Internacional do CXSP (1977), quando Segal ganhou a última norma de MI, em empate com o Campeão do Torneio, o GM Rafael Vaganian. Participei da sua alegria com um forte abraço. Escrevi artigo para a Revista Jaque (Espanha) sobre o feito de

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Segal. Em 1979 estaríamos juntos trabalhando no Interzonal do Rio de Janeiro: num salão especial, Segal comentava e analisava partidas para um público numeroso; eu ficava encravado no subsolo do Copacabana Palace com vários amigos e colegas elaborando o Boletim Oficial. A última vez que o encontrei foi no Campeonato Brasileiro Sênior de 2008, realizado no Clube de Xadrez Guanabara, Rio de Janeiro, um campeonato pobre de participantes, pois é difícil para os veteranos se deslocarem por conta própria. Por outro lado, se reparou na ausência de um número grande de veteranos do Rio de Janeiro, que prefere se preservar e disputar torneios e campeonatos com os jovens enxadristas que surgem a cada ano a serem chamados veteranos, jogando com sexagenários. Segal veio e foi direcionado não sei por quem para um hotel de segunda categoria, lá pela Rua Monte Alegre, próximo ao chamado Bairro de Fátima. Descendo a Rua Monte Alegre – pois é ladeira de acesso a Santa Teresa – se desemboca na Rua Riachuelo, cruzando os Arcos da Lapa, para afinal chegar na Rua Santa Luzia e ao CXG. Para nós é fácil, mas ficou claro que ele não gostou nada disso. Ainda sugeri que fizéssemos uma vaquinha para colocar o mestre no Hotel Íbis, que fica próximo ao Clube de Xadrez Guanabara, bem melhor e de qualidade internacional. Mas infelizmente não foi possível realizar essa transferência – eu estava no bloco do eu sozinho... Enfim, com essa tabela de número ralo de participantes, nos cruzamos na última rodada do torneio. A essa altura Alexandru Segal já era Campeão invicto! Fiquei pensando: o que jogar contra o Mestre? Tudo que eu fizesse, exceto um milagre, seria superado pelo Mestre e certamente sairia derrotado, pois falta-me talento e arte... Optei pela Trompowsky, abertura que joguei muitas vezes, tantas, que até algumas publicações ficaram sabendo: The opening played in this game is Trompowsky (ECO A45), established by the moves 1.d4 Nf6 2.Bg5. This is the most frequently played parent class opening by Salomao Rovedo, used in more than 44% of his games. The A45 is the third most frequently played parent class opening by Alexandru Sorin Segal, used in more than 11% of his games. Então, tá explicado: tanto eu quanto Segal gostamos da Abertura Trompowsky.

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E lá fui eu enfrentá-lo, com a turma toda em volta, esperando o quê? Um massacre, naturalmente. Jogamos calmamente, pensando cada qual em seus planos, sendo que o meu era não errar, nem deixar peça voando. Pelo menos isso! 1. d4 Cf6 2. Bg5 d5 3. Cd2 Cbd7 4. Cgf3 h6 5. B:f6 C:f6 6. e3 Bg4. Ao completar essa jogada, Segal diz: “Eu ofereço empate”. Fiquei surpreso, mas aceitei logo, antes que ele se arrependesse. Nos demos as mãos e em seguida houve o ritual de premiação, modesto, mas significativo: Alexandru Segal tinha alcançado o objetivo de se habilitar ao Campeonato Mundial Sênior. Depois que o pessoal se dispersou, ficamos conversando e eu o convidei para almoçar no galeto da esquina. Comemos bem, mas Segal não aceitou o vinho que ofereci, ele já estava com algum problema de saúde – talvez diabetes – que o impedia de agir como nos tempos dos antigos torneios, quando ficávamos hospedados em bons hotéis com mesa e adega fartas. Aliás, bem serviu esse almoço para animá-lo um pouco, porque fiquei perguntando sobre as pessoas que participavam daqueles eventos e assim ele finalmente aprofundou a lembrança com esses detalhes. Numa dessas ocasiões ele me contou a história que corre por aí, sobre o MI Antonio Rocha, que foi encontrado, errante, em Minas Gerais, mal vestido e anônimo, uma coisa assim bem típica dos romances trágicos. Atualizei sobre outros nomes do xadrez paulistano, como André Cajal, com quem conversava muito quando eu aparecia por lá, quem morreu, quem estava vivo. Quando lhe pedi desculpas pelo almoço modesto, afinal era apenas um galeto e não um dos restaurantes famosos que o Rio de Janeiro possui, ele simplesmente respondeu: – Mas, Salomão, isso que você está me oferecendo é um banquete! Assim era Alexandru Segal que muita gente conheceu e admirou: simples, de fala mansa, calma de diplomata, pensamento de genuíno humanista. Num janeiro triste faleceu Alexandru Segal, economista, mestre de xadrez romeno que chegou ao Brasil em 1971, sentindo-se em casa, virou brasileiro e abraçou o xadrez como paixão. Por ocasião do seu falecimento postei a nota abaixo nos espaços que furto na internet, divididos entre blogs, facebook, google+, etc:

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O romeno-paulista Segal Janeiro triste: faleceu Alexandru Segal, economista romeno que chegou ao Brasil em 1971. Sentindo-se em casa, Segal logo virou brasileiro e abraçou o xadrez com paixão. Presença constante nos torneios, participamos de eventos Brasil afora: Itatiaia, São Paulo, Itanhaém, Águas de Lindoia, São Lourenço e muitos outros. Formou-se um grupo constante: havia sempre o reencontro em ambiente camarada, confraternização sem contar o nível enxadrístico. Eu estava em São Paulo (1977), quando Alexandru Segal tirou a última norma de MI, em empate com o campeão do torneio GM Rafael Vaganian. Participei da sua alegria com um forte abraço. Escrevi artigo para a Revista Jaque (Espanha) sobre o feito de Segal. Em 1979 estávamos juntos trabalhando no Interzonal do Rio de Janeiro – Segal comentava e analisava partidas para um público numeroso. No Campeonato Brasileiro Sênior de 2008, no Rio de Janeiro, nos cruzamos na última rodada: Segal já era Campeão invicto! O que jogar contra o Mestre? Optei pela Trompowsky, jogo que Segal também gostava. Jogamos: 1. d4 Cf6 2. Bg5 d5 3. Cd2 Cbd7 4. Cgf3 h6 5. B:f6 C:f6 6. e3 Bg4 – ao completar esta jogada, Segal me oferece empate. Fiquei surpreso, mas aceitei logo. Assim era Alexandru Segal que muita gente conheceu e admirou: simples, de fala mansa, calma de diplomata, pensamento de genuíno humanista. (12/01/2015)

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O fabuloso N. N.

Não se sabe ao certo quando ele surgiu, mas é muito provável que tenha nascido há milênios juntamente com o próprio xadrez. Todos, porém, conhecem essa estranha e misteriosa criatura que anonimamente já enfrentou os maiores e mais famosos jogadores de todos os tempos, conhecidos e desconhecidos, campeões ou não. Possuidor de fértil imaginação, o Fabuloso N. N. cria, recria, inventa, descobre sempre novas variantes, novas aberturas, fantásticas e desconcertantes combinações. Part. nº 507 – Greco x N. N. (Roma, 1619) 1. e4 b6, 2. D4 Bb7, 3. Bd3 f5, 4. exf5 Bxg2, 5. Dh5+ g6, 6. fxg6 Cf6, 7. gxh7+ Cxh5 8. Bg6# (1-0) Dono de incrível tenacidade o Fabuloso N. N. jamais abandona a luta, prosseguindo quase sempre até o mate ou raríssimas vezes, até quando o mate se fará inevitável. A sorte, porém, não o acompanha: suas partidas estão destinadas ao desastre e geralmente findam em terríveis catástrofes, não importando que só os peões se movam. Part. nº 508 – N. N. x Bruening (Berlim, 1907) 1. d4 d5, 2. c4 e6, 3 Cc3 c5, 4. Bf4 cxd5 5. Bxb8 dxc3, 6. Be5 cxb2 (0-1) Todos os manuais, compêndios e enciclopédias de xadrez possuem as criações do Fabuloso N. N. todos os autores, por mais célebres, consideram incompletas as antologias se nelas não constar uma obra dessa famosa figura. Profundas pesquisas provaram (e nada existe em contrário)

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que o Fabuloso N. N. é sem dúvida o inventor da miniatura no xadrez. O incontável número de minipartidas protagonizadas por ele só mostram, mais ainda, a paixão desvairada, a dedicação exacerbada, sem limites, pelo gênero. Suas partidas raramente ultrapassam o vigésimo lance! Isso tudo faz dele o cultor máximo e patrono único da miniatura no xadrez. Part. nº 509 – Blackburne (às cegas) x N. N. 1. e4 e5, 2. f4 d5 3. exd5 e4, 4. Cc3 Cf6, 5. d3 exd3, 6. Bd3 Bb4 7. Cge2 Dxd5 8. 0-0 Bxc3 9. Cxc3 Dc5+ 10. Rh1 0-0 11 f5 Cc6 12. Bg5 Ce5 13. Bxf6 gxf6 14. Ce4 De7 15. Dh5 Rh8 16. Cg5 fxg5 17 f6 (1-0) Até pouco tempo se pensava estar o xadrez postal (por razões óbvias) vedado ao Fabuloso N. N. ledo engano! Não se sabe como, mas existe uma partida publicada que inaugurou a participação desse “monstro” (no bom sentido, claro) também naquela modalidade. Ademais, à vista dos inúmeros analistas que interferem hoje em dia nas partidas postais, cada postalista está propenso a se tornar rapidamente num famoso N. N. Part. nº 510 – N. N. x Keres (Corr. 1939) 1. e4 e5 2. Cf3 f5 3. Cxe5 Cc6 4. Dh5+ g6 5. Cxc6 dxc6 6. De2 Bg7 7 exf5+ Ce7 8. fxg6 Bf5 9 gxh7 Dd7 10. Dh5+ Bg6 11. Dh3 Cf5 12. Dd3 Df7 13. Dc4 Df6 14. Cc3 0-0-0 15 d3 Tde8+ 16. Be3 Txe3+ 17 fxe3 Ce3 18. Da4 Tf8 19. Be2 Dc3+ 20 bxc3 Bxc3# As coisas mais estranhas acontecem nas partidas do fabuloso N. N. inexplicavelmente suas peças se movem capengas, seu Rei fixa em exposição perigosa, sua linha defensiva está cheia de brechas, tudo enfim ocorre com ele, como se fosse predestinado ao caos. Part. nº 511 – Morphy x N. N. (New Orleans, 1852) (As brancas dão vantagem da Torre de a1) 1 e4 e5 2. Cf3 Cc6 3. Bc4 Cf6 4. Cg5 d5 5 exd5 Cxd5 6. Cxf7 Rxf7 7. Df3+ Re6 8. Cc3 Cd4 9. Bd5+ Rd6 10. Df7 Be6 11. Bxe6 Cxe6 12. Ce4+ Rd5 13 c4+ Rxe4 14. De6 Dd4 15. Dg4+ Rd3 16. De2+ Rc2 17 d3+ Rxc1 18. 0-0# (Publicado no Boletim Informativo do CXG, 1970/1980)

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O Campeão Olício Gadia

Aquela mesinha que havia no CXG, isolada num cantinho discreto, era também a mesa preferida de Olício Gadia, que muitas vezes encontrou a „sua‟ mesa ocupada por mim. Gadia era caladão, mas quando simpatizava com a pessoa se mostrava bom conversador e seus assuntos não se limitavam ao xadrez, como ocorre com a maioria. Queria saber da gente e principalmente falar sobre a sua vida no xadrez e fora dele, contar os problemas que enfrentava lutando por dignidade e ética. Era um homem solitário e muitas vezes o encontrei naquela mesa, reproduzindo alguma partida, estudando alguma posição, a mão direita espalmada na testa, um peão agitado de leve na mão esquerda. Ao cumprimentá-lo sempre ouvia o convite para sentar-me. Eu estava disputando o único torneio que venci no CXG. Olício Gadia de vez em quando acompanhava esses torneios em que participavam jogadores simples. Depois que acabei a minha partida, no encerramento, ele veio me cumprimentar e trocamos o seguinte diálogo: Gadia: – Salomão, o seu jogo tem melhorado. Você está estudado? Eu: – Que estudar nada Gadia! Falta tempo e talento. Gadia: – Sempre é tempo de aprender alguma coisa... Eu: – Tenho visto e reproduzido algumas partidas, linhas práticas de jogar, coisa fácil...

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Gadia: – Reproduzir partidas é estudar! Nessa mesma ocasião estava presente Antonio Horta, cujos lances e rasteiras que aplicava nos incautos e inexperientes, Gadia chamava de “hortaliças”. Horta assistia ao lado da mesa o final da minha partida, a última que faltava pra encerrar o torneio. O empate me favorecia, estávamos no meio-jogo, mas eu estava em posição inferior. Após o meu lance ofereci o empate e meu adversário aceitou. Assim que apertamos as mãos, o Antonio Horta disse: – Pois eu não aceitaria empate. Jogaria aqui... E meteu a mão no tabuleiro, mexeu na posição, começou a fazer lances e mais lances. Claro, sendo jogador de nível, buscava mostrar a superioridade das negras. Eu e meu parceiro tivemos uma reação igual: não nos interessou as jogadas e variantes que ele tentava mostrar. Apenas levantamos o olhar para a cara de pau do Maurício Horta e se intrometer na partida sem ser convidado. Pegamos nossas planilhas e saímos da mesa. Eu ainda disse a Antonio Horta: – Bem, Horta, isso já é outra partida. Eu estava sentado àquela mesma mesa do cantinho onde ocorreu essa partida, que o Gadia, certa noite entrou apressado e se dirigiu a mim: – Salomão, eu passei aqui só pegar você. Não quer conhecer o Spassky? Estou indo ao Aeroporto do Galeão, encontrá-lo. Ele está de passagem para a França, o voo faz conexão no Rio, assim teremos algum tempo para conversar. Vamos! Ora, quem pode dizer não a um convite desses? Fui. Pegamos um táxi ali mesmo embaixo na Av. Churchill direto para a Ilha do Governador. Chegando ao Galeão ele me deixou numa poltrona com ordem expressa e saiu. – Espere aqui. Dentro em pouco chegou Gadia na companhia de Boris Spassky. Eu estava diante do Campeão Mundial juvenil, GM aos 18 anos, Campeão da URSS em 1973, do atual Campeão do Mundo! A personagem que colocou Bobby Fischer no topo do xadrez... e da loucura – por que não dizer? Gadia nos apresentou e avisou logo ao Spassky sobre as dificuldades do meu

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pobre inglês. Assim, quando ele queria que entendesse as coisas falava bem devagar e achava graça quando eu mostrava ter entendido tudo. Os cabelos grisalhos começavam a pintar a cabeça do campeão russo. Mas se via que eram as cores determinadas mais pelos problemas da vida do que pela idade em si. Por sorte nossa, o avião da conexão, que deveria estar no Galeão às 23 horas, atrasou algumas horas. Assim a conversa entre Olício Gadia e Boris Spassky se prolongou um bocado, só foi interrompida para um rápido e saboroso cafezinho. Eu seguia grudado ali ao lado, comprovando que a amizade entre o Campeão Mundial e o Campeão Brasileiro era de fato daquelas boas, sinceras, tanto pela felicidade de Gadia, quanto pelas risadas de Spassky. Amizade que pode ter iniciado em 1960, quando Gadia participou do 23º Torneio de Mar del Plata, tradicional prova argentina. Gadia ganhou direito a participar da competição por ter sido Campeão Brasileiro de 1959. Para nosso Campeão o torneio foi osso duro de roer: 1º/2º Spassky e Fischer 13,5 pts. O desempenho de Spassky: 12 vitórias e três empates. Fischer (com 16 anos): 13 vitórias, um empate com David Bronstein e uma derrota para Spassky logo na segunda rodada. Mar del Plata-1960 Boris Spassky - Bob Fischer ECO C39 – Gambito do Rei 1. e4 e5 2. f4 exf4 3. Nf3 g5 4. h4 g4 5. Ne5 Nf6 6. d4 d6 7. Nd3 Nxe4 8. Bxf4 Bg7 9. Nc3 Nxc3 10. bxc3 c5 11. Be2 cxd4 12. O-O Nc6 13. Bxg4 OO 14. Bxc8 Rxc8 15. Qg4 f5 16. Qg3 dxc3 17. Rae1 Kh8 18. Kh1 Rg8 19. Bxd6 Bf8 20. Be5+ Nxe5 21. Qxe5+ Rg7 22. Rxf5 Qxh4+ 23. Kg1 Qg4 24. Rf2 Be7 25. Re4 Qg5 26. Qd4 Rf8 27. Re5 Rd8 28. Qe4 Qh4 29. Rf4 (1-0) Poucas vezes vi o Gadia tão alegre como naquela noite, por isso se tornou motivo de dupla sorte – conhecer Boris Spassky e ver Olício Gadia sorrindo. Porque, para mim, muitas vezes Gadia levantou a questão de que era perseguido e dizia-se vítima na sua profissão, no que diz respeito a tudo que tinha direito, promoções, cargos, melhoria salarial, tudo lhe fora tirado, injustamente arrancado. Segundo ele, a perseguição tinha origem nos governos militares, uma espécie de punição por ele ter participado do Campeonato Pan-Americano de Xadrez de Cuba em 1966, sem autorização governamental. Isso era a causa de sua aparência furibunda com que muitas vezes assustava os amigos.

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Gadia já tinha tomado parte em 1963 do Pan-Americano de Xadrez, também realizado em Cuba, com excelente desempenho: 3/5 lugares com Alberto Foguelman (Argentina) e René Letelier (Chile), os três com 8 pontos, atrás de Eleazar Jiménez (10 pts) e Eldis Cobo (9 pts), ambos cubanos. Os problemas que começaram com a negativa do „visto‟ para Cuba refletiram no desempenho nos tabuleiros, mas não foi um mau torneio, simplesmente o Pan-Americano de 1966 era mais forte do que o de 1963. Depois de muita luta na Justiça, Olício Gadia recuperou o cargo, as funções e promoções, mas não conseguiu evitar que as rugas de expressão mostrasse o desgaste que tudo isso lhe causou. Às vezes chegava ele ao CXG abatido, os ombros encurvados, como que buscando no ambiente um pouco mais de fôlego para resistir. Bem ou mal, aquele ambiente cheio de pessoas que o queriam bem, era um alento para as amarguras do “xadrez da vida”. Toda essa digressão provoca uma séria reflexão sobre a amizade entre Spassky e Gadia. Como se sabe Boris Spassky teve muitos problemas na URSS quando perdeu o título mundial para Bobby Fischer. A disputa do campeonato não se limitava ao tabuleiro de xadrez, era também tema político que refletia as negruras da era pós-Stalin e da Guerra Fria. O casamento de Boris Spassky com uma cidadã francesa tem algumas curiosidades que provam que não se tratou de um „golpe‟ para que ele adquirisse a cidadania francesa e sair da URSS. Certo dia de 1974, seu amigo, o célebre ator russo Anatoly Romachine, apresentou Marina Cherbatcheva à Spassky. Marina era uma diplomata francesa de origem russa. Foi mais um caso de amor à primeira vista que outra coisa: o casal se apaixonou e queria se casar logo, mas as autoridades soviéticas não aprovaram a união. Durante um encontro entre Leonid Brejnev e Georges Pompidou, por ocasião da Missão Comercial francesa que visitava Moscou, Marina (intérprete francesa), aproveitou uma brecha da conversa com Georges Pompidou e perguntou a ele: – Monsieur Pompidou, o que o senhor pensa do amor? O Primeiro-Ministro francês respondeu como só um francês galante responderia: – Não existe coisa mais maravilhosa no mundo do que o amor!

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Essa foi a deixa que ela queria: – Então, por que todos estão se opondo ao meu casamento com Boris Spassky? Georges Pompidou – que não sabia de nada – não se fez de rogado a tal chamamento, bancou o cupido e levou a questão diretamente a um Brejnev perplexo, pois ele também ignorava aquela história de amor. Chamou a quem de direito, deu aquele esporro que só os russos sabem dar e autorizou imediatamente o matrimônio. Dentro de pouco tempo os noivos estavam se casando num Cartório de Moscou. E assim Boris Spassky ganhou o direito à cidadania francesa, sem abdicar da nacionalidade russa, tanto que venceu o fortíssimo Campeonato Soviético de 1973. Então, era natural que Gadia e Spassky tivessem muitas afinidades além do xadrez. A batalha mais ingrata era contra o “xadrez da vida” – como Gadia muitas vezes se referiu quando desabafava narrando problemas pessoais. Porém, ele também havia descoberto algo que o ajudou a superar material e espiritualmente tanta pressão: a Hermenêutica. Muitas vezes ele tentou me explicar sobre essa filosofia. – Salomão, a solução está na Hermenêutica, tudo que se precisa para entender o mundo está na Hermenêutica! Até a interpretação do xadrez está ali, depois de muito estudar eu encontrei a solução, inclusive para vencer a batalha do xadrez da vida! Certa noite Gadia chegou com um livro de capa amarela nas mãos. Era sobre Hermenêutica, editado pela Zahar. Veio com ordem expressa para mim: – Ler! Nunca fui chegado à filosofia, matemática, e outras ciências exatas. Pois a tal de Hermenêutica é difícil de entender mesmo, nunca consegui descobrir um vínculo real com o xadrez. Depois de ler e reler as partes difíceis vagamente, eu entendi que a hermenêutica ajuda na interpretação da leitura, das posições, das análises. O autor defendia a tese de que a Hermenêutica é também arte, uma vez que exige tanto imaginação quanto competência para aplicá-la ao foco de cada interesse: “uma arte que não pode ser aprendida na sala de aula, pois resulta de prática constante em sua área de atuação”. Entenderam? Eu não...

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Ping, gamão, pôquer, bridge – eis o terror dos jogadores de xadrez quando estão começando a carreira. Esse é um vírus grave, que, infelizmente, atacou na juventude muitos outros amigos, entre os quais Luismar Brito, que já deveria estar titulado GM faz tempo – se não fosse propenso a ajudar os colegas! Que grandes jogadores eles seriam, com titulação assegurada – pois talento não faltava se não tivessem desviado o rumo para jogos menores... No entanto, como disse Baldassere Castiglione sobre o xadrez: “É jogo agudo, embora nele encontre uma falha: pode ser prejudicial jogá-lo bem, porque teria que gastar muito tempo e dedicar tanto estudo como a uma ciência – e ao final não alcançaria mais do que ser excelente num jogo”. Por aquela mesa a que me referi neste capítulo sobre Olício Gadia, passariam ainda José Másculo, Jerônimo Pimenta, o próprio Luís Loureiro, Hermes Amílcar e tantos outros jovens de talento, queimando a pestana, enfiados nos livros, numa concentração que nada os movia dali. Outros, como Olício Gadia, apenas sentariam diante de uma posição, uma variante, uma abertura, um final, examinando e analisando as centenas e milhares de opções que uma partida de xadrez oferece – imaginando que milagre se faria realizar se tais opções pudessem ser transpostas para a vida real.

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Torneio Aberto de Nova Friburgo 1980

Foto Waldemar Costa

Vencedor: Jayme Sunié. A CBX, que não havia patrocinado nada em 1980, resolveu patrocinar este torneio aberto e dar-lhe o título de Campeonato Brasileiro de 1980. A Fexerj, por seu lado, abonou a promoção com a modesta quantia de 40 mil cruzeiros (segundo o Presidente da Fexerj, o combinado seria na verdade 50 mil, mas a nossa federação anda muito curta de grana). Friburgo entrou com a cidade, o nome, o Hotel Bucsky... e oito convidados! Pasmem! O normal é a cidade patrocinadora ganhar uma vaga de presente. Em Friburgo (que não é Itu...) foram oito vagas, ocupadas por jogadores sem nenhuma qualificação para disputar o Campeonato Brasileiro. Todos eles, inclusive, com ELO inferior ao exigido, tiveram o rating milagrosamente elevado para 2000. O que, em alguns casos, significou uma “subida” de 300 pontos!! Presentes ao evento alguns expressivos mestres brasileiros e vários inexpressivos mestres nacionais. Já ouviram falar n‟O pagador de promessas? Aquele filme de Nelson Pereira dos Santos baseado em Dias Gomes? Pois bem, o Presidente da CBX certamente deveria estar pagando as promessas feitas durante a campanha eleitoral, senão nada justificaria organizar e patrocinar um torneio aberto incapaz de significar o Campeonato Brasileiro. Muito menos quando esse campeonato deveria determinar a seleção brasileira que jogará a Olimpíada de Malta. Durante o transcorrer da prova, as reclamações de sempre: emparceiramento dirigido para favorecer alguns, compra e venda de pontos

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e colocações, mordomias concedidas a alguns poucos, injustificadamente, mordomias essas que se estenderão até Malta. Respeitemos as participações honrosas de vários jogadores que, por conta própria, vieram de diversas partes do país, de Norte a Sul, para disputar o “campeonato”. Nenhum deles, entretanto, justificou tecnicamente a presença em Friburgo. As partidas da segunda metade dos participantes foram de nível baixíssimo a incrível. Jogadores com peças a menos, com Rei só contra Rei e peões, só abandonavam quando o mate se anunciava em poucos lances. Afora isso os inevitáveis empates programados e pontos cedidos prazerosamente. O recorde, porém foi de um ponto vendido na última rodada, que custou cerca de Cr$ 50 mil! Afinal, estava valendo a passagem a Malta, estadia, mordomias, talvez um acompanhante, etc. Pelo preço que estão as coisas, custando os olhos da cara, até que não foi tão exagerado assim... Ressalte-se também a combatividade daqueles que não ajuntam pontos para vender a vaga nas últimas rodadas por um bom preço, entre os quais se destacam Herbert Carvalho, heroico vice-campeão; Luiz Loureiro, que por escasso ponto não logrou a classificação; Dagobert van Riemsdijk, um profissional que não nega a sua condição, mas que a exerce sem vender pontos; Ricardo Teixeira, que combate o bom combate; Olício Gadia, excampeão que não perde jamais a fidelidade a seus princípios. E muitos outros que anonimamente souberam honrar alguns princípios milenares do jogo-ciência (estou propenso a mudar o nome para jogo-vergonha) e disputaram as partidas com luta e tenacidade, entre os quais destaco Antonio de Pádua, única revelação digna de nota neste “campeonato”. Alguns mestres conhecidos devem seguramente fazer uma revisão do que tem sido o seu currículo enxadrístico nos últimos anos, para que não percam definitivamente o conceito adquirido entre os enxadristas e o enxadrismo nacional. O xadrez brasileiro está longe de fazer milionários exclusivamente pelo jogo (aqueles que buscam no xadrez o enriquecimento pelos negócios não estão aqui considerados) e sabe-se que a vida realmente tem sorrido para muitos poucos brasileiros nos últimos tempos. Por isso, antes que a corrupção corroa todos os resquícios de honestidade que o enxadrista naturalmente tem, faz-se mister rever esses princípios e tornar a viver harmonicamente com o xadrez e com aquilo que

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o xadrez profissionalmente oferece, sob pena de ser forçado a voltar a esse caminho pelas circunstâncias... ou dele se afastar definitivamente. Nem sempre esse fato ocorre por desonestidade, mas geralmente por apatia e desinteresse pelas coisas “oficiais” do xadrez. Muita culpa de tudo que ocorre nesse sentido é da CBX e das federações estaduais, que tem tratado o enxadrismo nacional como um objeto mercantil de segunda classe. A esses dirigentes também dirigimos nossa conclamação para que retornem ao caminho ético e social que o xadrez tem, por tradição, a percorrer. Antes, repetimos, que sejam forçados a fazê-lo por caminhos mais espinhosos... (Publicado no Boletim Informativo do CXG, 1970/1980)

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Sérgio Farias: Mr. Interzonal

Sérgio Farias era patrono, ex-presidente e benemérito do Clube de Xadrez Guanabara. Nossa amizade se aprofundou em 1977, quando Sérgio começou a campanha para a presidência da Confederação Brasileira de Xadrez - CBX. Um dia ele me chamou e disse: “Salomão, estou com o apoio da maioria das federações de xadrez do país. No entanto, tem um voto que ainda não consegui – o de Santa Catarina. Sei de tuas amizades por aquelas bandas e da sua origem catarinense”. Como ele soube que minha mãe é de lá, até hoje não descobri. Mas logo em seguida ao seu pedido tratei de enviar cartas a Miguel Russowsky, Adauto Nóbrega, Gerd Giebel, ao Presidente da Federação Catarinense de Xadrez, Jorge Kotzias e a outros conhecidos daquele Estado. A resposta do presidente da Federação veio imediata: “Salomão, não conhecendo Sérgio Farias, estava em dúvida e precisando de uma palavra como a sua. Chegou bem na hora: o meu voto é dele”. E assinou: Jorge Kotzias. Entreguei a carta a Sérgio Farias. Após a eleição ele foi eleito e me disse que eu estava na equipe de assessores dele – seria Assessor de Imprensa. Eu finalmente seria investido no cargo de Aspone... Mas a composição da nova Diretoria da CBX foi publicada e lá estava meu nome entre os demais assessores. Esse fato credo à gentileza de Sérgio, porque, nunca falamos sobre cargos. Sou contra. Ademais, embora tenha escrito em

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vários jornais – algumas pessoas me intitulam jornalista – não me considero um deles. Assim, intimamente jamais tomei „posse‟ do cargo, embora o Sérgio sempre me jogasse na fogueira quando se tratava de assunto, digamos, inglório. Fiquei como assessor pau-pra-toda-obra... A Revista Jaque nº 75, de março de 1978 publicou notícia sobre as eleições: Rio de Janeiro (Brasil) - Quedó constituida la nueva Junta Directiva de la Confederación Brasileña de Ajedrez, siendo nombrado presidente Sergio Farias, con Luís Tavares da Silva y Lincoln Lucena como Vicepresidentes de exterior y interior respectivamente; Joao Batista Curcio, Vicepresidente Técnico, y Wilton Campos, Vicepresidente Financiero y Patrimonial. En el cuadro director están integrados Antonio Mauricio Horta, Oscar Vieira, Marcio Miranda y Andrelino Moreira; y en el asesor, Carlos Benavides, Peter Toth y Salomao Rovedo.

O Ministro Mário Henrique Simonsen costumava jogar ping com Sérgio Farias, tanto no Clube de Xadrez Guanabara quanto no Clube Militar. Para falar a verdade, onde se encontrassem lá vinha o ping, muitas vezes o Ministro convocava o Sérgio para ir à residência dele para jogar ping, almoçar, se divertir. O Ministro Simonsen era bom jogador, mas não pareava com a experiência de Farias no relâmpago. Mário Simonsen era melhor barítono que jogador de ping – um dia eu e Sérgio nos encontramos com o Ministro ao final de uma aula de canto ao piano no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Antes de chegarmos ao salão de estudo já ouvíamos de longe ecoar o piano e o vozeirão do Simonsen. Se eu entendesse de música arriscaria a dizer que o economista e professor Mário Simonsen era na verdade tenor, pois, com exceção do vibrato troppo largo, tradicional aos barítonos, a gradação da voz dele tendia a se expandir, aproximando-se do tenor. No entanto, o canto – como o xadrez – era para ele apenas um diletantismo, porque o Ministro Simonsen fumava pra caralho e tinha um estoque de uísque invejável. O cinzeiro, o copo com gelo e uísque era comum ao lado do tabuleiro de xadrez. Foi o Sérgio Farias quem deu força a dona Iluska Simonsen (esposa de Mário Henrique e também jogadora de xadrez), para disputar os campeonatos estadual e brasileiro de xadrez. Um grande feito de Sérgio Farias na CBX foi trazer o Interzonal Masculino e Feminino de 1979 para o Rio de Janeiro. O evento foi realizado no Copacabana Palace Hotel, sob o patrocínio da AtlânticaBoavista Seguros, leia-se, Antônio Carlos de Almeida Braga – um mecenas dos esportes. Grande Benemérito do Fluminense Futebol Clube, o Tricolor das Laranjeiras, Braguinha (como era conhecido), foi patrono de várias

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modalidades esportivas no país. Nessa época a Atlântica-Boavista já bancava equipes de vôlei masculino e feminino. Quando começou a agitação de organizar o Interzonal, Sérgio Farias me promovia de assessor para secretário e pau pra toda obra. No Interzonal fiz parte da equipe do Boletim Oficial: Claude Fisch, Bruce Kover, Luismar Brito, Luís Loureiro, Cristóvão Kubrusly e muitos outros, brasileiros e estrangeiros, apareciam por lá para ajudar. Assim que uma partida terminava, uma cópia da planilha feita pelo anotador da partida iria direto às nossas mãos. Imediatamente começávamos a revisão da partida em tabuleiro, a classificação da abertura, a datilografia (que também era revisada), um quadro progressivo, só então o boletim era finalizado e reproduzido em xerox – a informática ainda era assunto secreto. No mais tardar, uma hora depois de terminada a rodada, o boletim ia parar nos apartamentos de todos os jogadores, além de ser distribuído à imprensa local e internacional. Éramos uma equipe invisível, mas eficiente. O primeiro a receber o Boletim de minhas mãos era o boa-praça Sir Harry Golombek – Árbitro Geral da competição –, um velhinho simpático para quem eu não deixava faltar água e café. Conheço umas lojas em frente ao Arsenal da Marinha, na Rua 1º de Março, que vendia uniformes militares e outros apetrechos. Passando lá vi um pedestal em miniatura com um par de bandeirinhas fincadas. Comprei um bem bonito, com as bandeiras do Brasil e da Inglaterra lado a lado e no dia seguinte botei discretamente em sua mesa, que ficava no anfiteatro onde as partidas eram disputadas. Quando chegou viu as bandeirinhas e olhou para mim, eu fiz sinal de OK, ele sorriu agradecendo e as flâmulas só saíram de sua mesa no final da competição. Harry Golombek (1911-1995), campeão inglês em 1947, 1949, e 1955, recebeu o titulo de MI em 1950 e de GM honorário em 1985. Era arbitro oficial da FIDE tendo trabalhado em muitos torneios, inclusive nos matches de candidatos de 1959 na antiga Iugoslávia, no match entre Mikhail Botvinnik vs. Tigran Petrosian, em 1963. Defendeu a Inglaterra em nove Olimpíadas de Xadrez e foi o primeiro jogador britânico a se classificar para um Interzonal. Foi jornalista responsável pelo xadrez no The Times de 1945 a 1989 e editor da British Chess Magazine nos anos 1938-1940 e 1960-1970s. Golombek traduziu muitos livros de xadrez do russo para o inglês. Numa época que isso era raro. Em Setembro de 1939, Golombek estava em Buenos Aires, competindo na Olimpiada de Xadrez juntamente com C. H. O'D. Alexander e Stuart Milner-Barry, quando tiveram de retornar de

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imediato à Inglaterra. Ali foram chamados a Bletchley Park, onde durante a guerra funcionou o Centro de Inteligência que “quebrava” a criptografia dos códigos secretos inimigos. Golombek trabalhou na seção responsável que descobriu a codificação do encriptador naval alemão “Enigma”. Sir Golombek é autor de uma Enciclopédia de Xadrez (Golombek's Encyclopedia of Chess, Batsford-Crown-1977), que eu fiz questão de comprar e pedir para ele autografar. Peguei também o autógrafo de muitos jogadores que participavam do Interzonal e estavam citados na Enciclopédia. Esse livro eu não tenho mais: algum amigo me pediu e eu dei, ou vendi, ou coisa parecida... Como, aliás, tudo que eu tive sobre xadrez. Mas o Sérgio Farias ainda soube tirar partido do meu cargo de Assessor de Imprensa: todas as vezes que chegava algum participante do evento no Aeroporto do Galeão, lá estava Salomão Rovedo para desembaraçar o GM e levar até o Copacabana Palace. Tinha um carro com motorista à disposição (sem bar) e assim foi que despachei muita gente para o Interzonal. Os únicos que consegui reconhecer foram o GM holandês Jan Timman, acompanhado de sua esposa (natural de Curaçao), o inglês Anthony Miles, supercampeão do Memorial Capablanca e Jan Smejkal. Eu e o Sérgio Farias, sempre que havia tempo disponível, vivíamos pra lá e pra cá, não só tratando de assuntos do xadrez. Ele era oftalmologista (as más línguas diziam que ele era apenas técnico em ótica). Mas o importante é que o Dr. Sérgio tinha de uma rede de óticas espalhadas pelos bairros. Assim, algumas vezes prestei a ele alguns serviços como despachante aduaneiro, liberando na Alfândega produtos para sua empresa. Nunca tive carro, por isso jamais aprendi a dirigir (do jeito que eu bebia naqueles tempos que não tinha Lei Seca, já teria derrubado porradas de postes). Assim, a única exigência que fazia ao Sérgio Farias, era que ele me levasse (ou disponibilizasse alguém) para ir aos locais do trabalho. Muitas vezes isso se dava no belíssimo Mercedes-Benz amarelo, com forração de couro vermelho, que tinha pertencido ao Ministro Simonsen. Não sei – nem nunca quis saber – a que se deveu a aquisição: Sérgio Farias disse a mim que tinha comprado o carro do Ministro Simonsen, mas é possível que tenha custado apenas uma partida de ping, quem saberá? Andar naquele carro era como flutuar numa nuvem... E tinha vantagens adicionais: ar condicionado e no banco de trás comportava um bar completo, bom estoque de bebidas, balde de gelo e uísques tais que só

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especialistas como o Ministro Simonsen e Sérgio Farias saberiam selecionar e degustar. Eu fazia o teste de qualidade... Durante o Interzonal de Petrópolis eu estava trabalhando e tinha que subir a Serra nos feriados ou fim de semana – exceto quando conseguia uma folga por ter pouca coisa a fazer. Já no Interzonal de 1979 eu me encontrava em mudança de emprego, que teria de assumir em agosto, mas consegui prorrogar a posse para setembro/outubro, alegando mil coisas que o carioca sabe justificar. Então tive o tempo todo para me dedicar ao Interzonal de 1979, mas o trabalho lá era tanto que não dava para aproveitar a presença dos ídolos. Quando conseguia ver alguém da turma de famosos era só de passagem: Petrossian, calçado de meia e chinelos, com a esposa a tiracolo (uma armênia atarracada e muito séria); a superestrela Sônia Braga, frequentando o Interzonal e o Clube de Xadrez Guanabara, forma de fazer laboratório para o próximo trabalho (sempre tinha tempo para passar no Bulletin Team para dar um alô simpático); o Hubner andando sempre em disparada como um louco. Aqueles que se interessava pelo nosso trabalho e visitavam sempre o Departamento de Boletins eram: o jovem MI Murray Chandler, Guillermo Soppe, argentino, que secundava sua irmã Edith Soppe no Interzonal Feminino – Zsuzsa Veroci-Petronic (Vice-Campeã do Interzonal, atrás de Nana Ioseliani), que fez amizade com Claude Fisch e se comunicavam em francês [não sei se comeu], Mark Dvoretsky, que era o treinador das jogadoras russas. Mark aparecia com artigos e mais artigos escritos à mão, em cirílico, pedindo para tirar cópia. Era cada calhamaço com análise das partidas, as aberturas jogadas, reportagem sobre o Interzonal, projetos de livros – posso dizer que o Mark Dvoretsky escrevia pra caralho! Muitos jornalistas especializados em xadrez também frequentaram a nossa sala. Entre as pessoas que circulavam tinha um rapaz russo, universitário, estava fazendo pós-graduação em língua portuguesa, com o objetivo de se graduar professor em língua estrangeira e dar aulas. Veio como intérprete da delegação russa. Já falava muito bem, mas tinha acento lusitano. Conversamos muito, ele era curioso em saber das coisas, de tudo. Quanto à língua, eu expliquei a ele sobre a diferença entre o sotaque brasileiro e o português: dava pra notar que ele tinha estudado o português de Portugal, algo diferente do falado no Brasil. E demonstrei a distinção da fala, da escrita, da pronúncia entre o brasileiro e o lusitano. Todos os dias ele me procurava para conversar.

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Nas poucas vezes que estive no salão, fiz amizade com o VicePresidente da FIDE Américas e também com Guillermo García, um gênio do xadrez, ambos eram cubanos. Guillermito – um ídolo em sua terra – era assim conhecido pela sua baixa estatura. Em certo momento do torneio Guillermo Garcia esteve com nove partidas suspensas para terminar! Esse problema foi levado à Direção do Torneio e ficou decidido que as partidas tinham que estar encerradas na penúltima rodada. Guillermo Garcia era conhecido como exímio finalista, mesmo assim fui com Luismar Brito no apartamento dele para oferecer ajuda nas análises, pois ele corria o risco de perder alguma partida, só pelo atraso em terminá-la. Ele nos tranquilizou mostrando as partidas, uma a uma, como se estivessem todas as nove já resolvidas em sua cabeça. Guillermo García na época estava com apenas 26 anos de idade e fumava pra cacete. Certa vez ele me chamou e disse: – Salomón, o meu cigarro acabou. Onde encontro aqui? Perguntei qual tipo de cigarro ele gostava. – Humo duro, respondeu. Isso queria quer dizer que ele gostava de cigarro forte, fumo duro, o mais pesado que tiver. Mais ou menos parecido com o “puro” havanês. Prometi trazer. No dia seguinte, antes de ir para Copacabana, passei pela Tabacaria Africana, na Praça XV de Novembro, onde achei o Caporal Amarelinho, que era nosso cigarro mais forte, daquele que os fumantes costumam chamar “arrebenta peito”. Comprei dois pacotes com dez maços cada e dei a ele. Ele perguntou quanto era, queria pagar: – Un regalo – respondi. Alguns dias depois quis saber o que ele achou do nosso cigarro: – Bom, muito bom – disse – mas um pouco fraco... Guillermito – como era conhecido [os amigos cubanos o chamavam Gulle simplesmente] – nasceu em 1953, começou a jogar com seis anos de idade, por isso se destacou muito cedo. Basta recordar que em 1969, com apenas 16 anos, derrotou o GM argentino Oscar Panno no Torneio Capablanca In Memoriam. Foi Campeão Juvenil de Cuba em 1971 com o escore de 11/11 (!); Tricampeão Absoluto do Nacional Cubano; aos 21 anos obteve a primeira norma de GM em Las Palmas 1974; completou o título em Orense dois anos depois; disputou os Torneios de Zurique,

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Plovdiv, Caracas, Orense, Cidade do México, Medellín, Maspalomas, Portugalette e Pontevedra. Em 1988, no New York Open “Centenário de Capablanca”, ficou em 2º lugar, com desempenho ELO de 2709 pontos! No fortíssimo Interzonal de Moscou de 1982, começou de modo espetacular perfazendo 5,5 pontos de 6 possíveis e se transformou na grande figura do torneio. Sua carreira era também vitoriosa em sua terra, vencendo vários torneios em Cuba. Como destaque ficou a fama de ter sido o primeiro criollo (nativo cubano) a vencer o Premier Capablanca In Memoriam, em Cienfuegos 1977. Guillermo Garcia faleceu prematuramente em Havana, num acidente de trânsito, aos 47 anos de idade. Pelas imagens que tenho daquela cidade, me pergunto: – Quem morre em acidente de trânsito em Havana? ¡Carajo! ☼☼☼☼ Bons tempos – apesar de tudo – foram aqueles que nós passamos no Interzonal 1979, mas não foi moleza, não. Quando a máquina xerox ou outro equipamento enguiçava era um sufoco, uma correria danada, pois a entrega do Boletim Informativo para a imprensa e para as delegações era imprescindível. Por questão de honra, compromisso assumido pela CBX e pela Atlântica-Boavista tudo funcionava como um relógio... suíço. Aí eu voltava ser assessor do Sérgio Farias, da CBX. Uma vez saí que nem um louco para ir até a sede da AtlânticaBoavista, que ficava na Rua Barão de Itapagipe, Rio Comprido. Era um domingo, tudo fechado, só tinha seguranças e porteiros. Conseguimos transporte para levar a máquina enguiçada e trazer outra novinha. O vigia já tinha sido avisado pelo próprio Braguinha e não deu problema, pois me entregou a chave da sala nas mãos: – Ordem do Dr. Almeida. O que você precisar! Achei muita responsabilidade, mas vamos lá! Pegamos uma máquina zero Km, cabos, galões de tonner, papel e mais papel, caixas de grampos, grampeadores. Não podia esquecer nada. Nesse dia o trabalho extrapolou e passou da meia-noite. Alguns tinham dificuldade em sair para casa àquela hora. Pois bastou uma conversa com o Gerente do Copacabana Palace e nos foi colocado à disposição refeições, lanches, bebidas e apartamentos para pernoitar no anexo. Mas, enfim, missão cumprida, deu tudo certo – tudo pelo xadrez! Só que no dia seguinte tinha gente dormindo na mesa de trabalho...

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Não foi mole não! Quando o evento se encerrou, ainda fizemos o trabalho de rescaldo, arrumar tudo, devolver produtos e máquinas. Estava sob nossa responsabilidade não só o equipamento usado para produção do Boletim do Interzonal, papel, máquinas de escrever, copiadoras, telefones, etc. Também éramos responsáveis pelas planilhas, relógios e jogos de peças, material que tinha de sofrer revisão todos os dias para seguir para o salão de jogos em perfeito estado. Além de tudo tínhamos que devolver o recinto ocupado em perfeitas condições aos que nos davam suporte no hotel. Depois de cumpridas todas as formalidades, relaxamos e a equipe se reuniu para uma breve comemoração pelo sucesso da empreitada. – E de lembrança – perguntei – não se ganha nada? Os certinhos foram contra, outros a favor. Por fim a turma avançou mesmo foi nos relógios. Não sobrou um sequer! Bom, a única coisa que consegui foi um jogo de peças. Era jogo de tamanho oficial, com os quais os jogadores disputaram as partidas e que eram recolhidos para nossa seção para guarda e conservação. Hoje não tenho mais essas peças: algum amigo me pediu e eu dei... ☼☼☼☼ No dia 14 de janeiro de 2013 a Confederação Brasileira de Xadrez emitiu o Comunicado CBX nº 13/2013, nos seguintes termos: Comunicado CBX nº 13/2013: Falecimento e missa de sétimo dia de Sérgio Farias. O Ex-Presidente da CBX , o carioca Sérgio Antonio Barreira Lopes de Farias, faleceu no dia 07/01/2013 e hoje ocorre a missa de sétimo dia. Sérgio Farias foi Presidente da CBX duas vezes. No primeiro mandato de 1978 a 1979 e depois de 1983 a 1987. A CBX apresenta suas condolências a família e fica de luto com a notícia. Sérgio também jogou finais de Brasileiros e era figura frequente nos torneios e clubes de xadrez do Brasil.

O jornalista e enxadrista Waldemar Costa publicou o fato em sua excelente página na internet (www.wsc.jor.br), na Seção Efemérides: 7/1/2013 – Em Monte Santo de Minas (MG), morre Sérgio Farias (Sérgio Antônio Barreira Lopes de Farias), por motivo de grave doença que o deixou tetraplégico e sem fala desde 1998. Sérgio Farias foi Presidente da CBX (Confederação Brasileira de Xadrez) de 1978 a 1979 e de 1983 a 1987. Em 1979, quando era presidente da CBX, organizou o Interzonal do Rio de Janeiro, realizado no Copacabana Palace. Sérgio Farias foi campeão do antigo Estado do Rio de Janeiro (atual Interior do novo Estado do Rio) em 1961. Foi campeão do Interclubes-RJ em 1963 (Clube de Xadrez Carioca), 1971 (Clube de Xadrez Guanabara), 1984 (Flamengo) e 1986 (Flamengo). Nasceu no Rio de Janeiro (RJ) em 18/8/1935.

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Fotos do Interzonal Rio de Janeiro 1979

Lincoln Lucena e Sir Harry Golombek

Lincoln Lucena discursa no encerramento

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Guillermo Garcia

Sir Harry Golombek

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Reflexões en passant

Atirando pedras... aos 73 anos!

O que o xadrez adicionou à minha vida? Essa pergunta me persegue há vários dias e futuramente dissecarei o tema em todas as suas variações. De qualquer modo, mesmo sem ter ainda a resposta ideal, uma coisa é certa: quando o xadrez me trouxer aborrecimentos e inimigos, será a hora de parar. Em 1973 entrei para o CXG e logo iniciei a remessa de colaborações para a revista espanhola “Jaque”. A cada novo número recebido era uma alegria ver artigos, partidas, notícias, sendo divulgadas em todo o mundo enxadrístico de fala espanhola. Em 1976 surgiu a revista Ajedrez 6000 e fui convidado para representá-la e ser correspondente no Brasil. Era mais um espaço para notícias do xadrez nacional, que foi fartamente utilizado nos dois anos de existência de tão excelente publicação, que tinha como principal colaborador [e Diretor Técnico] o GM Bent Larsen. De lá pra cá mais de 200 artigos, reportagens, noticiários e partidas foram publicados no estrangeiro exclusivamente sobre o xadrez brasileiro! Tenho certeza que divido o orgulho e a satisfação com centenas de enxadristas, pois sempre assinei revistas estrangeiras e nunca vi notícia alguma sobre o xadrez verde-amarelo. Nenhuma!

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Fiz então contato com outro emérito colaborador de revista, Romélio Milián Gonzalez, grande divulgador do xadrez cubano. Iniciamos logo a troca de materiais, revistas, boletins, saídos lá e cá. Entre as publicações cubanas recebi algumas coleções da revista Jaque Mate e também para lá remeti noticiário, partidas e artigos. A revista, porém, lamentavelmente deixou de circular... Um dos artigos foi sobre a desconhecida Abertura Trompowsky, que vinha sendo citada na revista apenas como “Peão Dama”. O artigo saiu na Ajedrez 6000, em três ou quatro páginas, com cerca de vinte partidas que havia coletado sobre nossa única abertura! Para alegria minha (e daqueles que gostam de ver nossas coisas divulgadas) o número de janeiro de 1979 do Boletim de Ajedrez editado pela Rádio Rebelde (que Romélio gentilmente me remeteu) traz todas as partidas jogadas 1. d4 Cf6 2. Bg5, mencionando em destaque “Apertura Trompowsky”! Considero também da maior importância o fato de que os mestres cubanos começam a jogar em suas competições a “desconhecida” e surpreendente Abertura Trompowsky. Na revista “Jaque” o trabalho mais recente foi a cobertura que fiz do III Torneio Internacional de São Paulo [tradicional prova organizada pelo CXSP], que saiu no número de abril de 1979. É outra reportagem que me orgulha porque a revista cedeu nada menos que cinco páginas com extenso texto, quadro final, fotos, diagramas, comentários, etc. espaço dado somente para competições de nível olímpico ou Interzonal. O colunista de xadrez d‟O Globo J. T. Mangini, porém, fez publicar a partida Antônio Rocha - Ronald Byrne (vitória do brasileiro) com o despropositado comentário a seguir: “O Sr. Salomão Rovedo, representante no Brasil da revista espanhola Jaque, esqueceu-se de publicar esta partida. Aliás, ele não publicou nenhuma vitória brasileira. Só derrotas”.

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Naturalmente pedi ao J. T. Mangini que fizesse uma retificação, isto porque o meu trabalho se limitou a reportar o evento e remeter o Boletim Oficial integral à revista, que foi a responsável pela seleção de partidas. Costumo deixar passar em branco tais fatos, mas a responsabilidade perante os que me leem é maior e registro aqui o “lance ilegal” do J. T. Mangini: um bom colunista checa sempre a informação antes de dá-la a público. (Publicado no Boletim Informativo do CXG, 1970/1980)

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Um certo Herman Claudius

Para falar de Herman Claudius eu teria que ter um dom especial. Não tenho. Falarão dele melhor as demais pessoas que conhecem mais intimamente esse campeão brasileiro, que se preocupa também com a história do xadrez e – principalmente – com a ética do xadrez. É o mais completo enxadrista da atualidade no Brasil, porque sua atividade se estende a arbitragem, conhece como ninguém a parte administrativa, as regras, as leis e as diretrizes locais e internacionais – seu nome é bem conceituado na própria Fide. Sendo Árbitro Internacional Herman Claudius tem uma base de conhecimentos sólidos que, juntados à ética pessoal, ética de vida e ética profissional, podem trazer ao xadrez brasileiro o equilíbrio e destaque que merece. Por que então Herman não está ocupando o lugar de destaque que a sua trajetória merece? Porque aqui ainda se vive a época do cangaço e da corrupção nos esportes e também no xadrez. No Brasil não interessa – em nenhuma área que as coisas andem eticamente perfeitas, legalmente ajustadas. Poderíamos livrar o xadrez dessa peste que atinge em todos os níveis nossas instituições, e já estaríamos fazendo muito pelo xadrez e pelo país. Mas não é assim: ao atrelarmos o xadrez ao trem dos que só querem levar vantagem prestamos um desserviço. Mesmo assim, Herman Claudius já deu sua colaboração à Fedeação Paulista de Xadrez, à Confederação Brasileira de Xadrez e muitas vezes emprestou seu nome em apoio às causas justas. Talvez o próprio Herman tenha recusado a assumir algum posto no qual serão as graves responsabilidades um desafio devido ao peso das pressões políticas de baixo nível. Quando isso irá mudar?

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Mas, sempre naquele exato momento em que alguém de coragem monte uma equipe administrativa que tenha atitude e a postura maiores do que a ambição pessoal Herman estará disponível para colaborar, desde que o cansaço dessa longa e maravilhosa jornada que ele percorreu no xadrez brasileiro. São enxadristas da índole de Herman Claudius, cujo temperamento interior obriga a tomar posições irrepreensíveis, que terão a capacidade de recolocar o xadrez no alto nível que se faz necessário. Mas infelizmente não será assim que será tão próximo: guardamos nas gavetas os nomes de ética e moral, honestos e capazes, para promover o mau elemento. E por que não, se o exemplo vem de cima – dirão os infratores. Mas, sim, tenho esperança que um dia isso acabe... Em 2007 quando soube que a final do Campeonato Brasileiro seria no Rio de Janeiro, arrumei logo jeito de ir ao SESC Copacabana, Rua Domingos Ferreira. A sala de jogos estava vazia de público. Havia quatro ou cinco mesas com tabuleiros nas quais estavam sendo disputadas partidas, insuladas por uma corda de isolamento. A uma mesa lateral estava o Ricardo Barata, Diretor do Campeonato e presidente da FEXERJ – cargo que se eternizou ilegalmente durante mais de uma década. E foi a ele que me dirigi para saber se poderia entrar no reservado para ver algumas partidas. A resposta foi: – Não! Tudo bem. Fiquei vendo de longe, esticando o pescoço tentando alongá-lo para alcançar o „nível girafa‟ para ver as partidas em andamento. Eu cansei de frequentar torneios nacionais e internacionais, no Clube de Xadrez São Paulo, os Interzonais de Petrópolis e Rio de Janeiro, Águas de Lindóia, Zonal Sudamericano em Santiago (Chile), além de centenas de torneios nacionais. Em todos eles fui credenciado para assistir as partidas – pois sempre escrevi e fui correspondente da imprensa sobre xadrez (vejam artigos e informes reproduzidos neste volume). Dessa vez fui barrado no baile. Isso porque foi lá em Copacabana, mas se tivesse sido no Cachambi a conversa seria outra... Herman Claudius, se não me falha a memória, estava jogando com o „japinha‟ – apelido carinhoso dado por minha sobrinha (ela também sansei), ao Alexandr Fier – a quem conhecemos na Copa Contaud em Mato Grosso (Campeão Rafael Leitão).

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Mesmo sem fazer qualquer ruído, é claro que a gente não consegue ficar invisível. Herman Claudius completou o seu lance, se virou e deu comigo espiando que nem um louco, tentando ver alguma coisa de longe. Ato contínuo ele exclamou: – Salomão! Levantou-se na hora, saiu do “curral”, veio me dar aquele abraço que sempre trocam os amigos, mesmo que se revejam somente a cada dez anos. Batemos um papo cochichado típico dos torneios de xadrez, atualizamos nossas saúdes e felicidades, alegres pelo reencontro. Depois disso, ainda que de modo precário, fiquei assistindo as partidas um pouco mais. E continuo acompanhando a carreira de Herman Claudius, a paixão pelo xadrez. Serei sempre um aprendiz, reproduzindo suas partidas, lendo a sua página na Internet, seguindo-o nas chamadas „redes sociais‟, coisa inventada por Deus para juntar os amigos distantes. Depois me despedi de longe e saí da sala em silêncio como havia chegado, à francesa. Acionei o mecanismo de esquecer as coisas menores que acontecem com a gente, dos episódios obscuros, das pessoas pequenas que jamais irão crescer. Ainda bem que tais lapsos e buracos negros que nos acometem de vez em quando, são logo ofuscados por um abraço, uma consideração, esses sim, verdadeiros troféus, pequenos triunfos, grandes vitórias, que nos acompanham no dia a dia da vida.

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El cordobés Luís Bronstein

No CXG tinha uma mesa isolada no canto, perto da janela, que era preferida por quem queria ficar estudando, reproduzindo partidas ou solucionando problemas e finais de xadrez, isolado dos demais. Quando chegue ao clube, estavam sentados frente a frente Luís Bronstein e Sebastião A. da Silva, laureado compositor de estudos e finais, com vários prêmios internacionais. No tabuleiro diante dos dois estava a posição do Estudo de final mostrado mais adiante (que tive a sorte de reencontrar em: http://stelling.wordpress.com). Cheguei e cumprimentei ambos, sentando-me na cadeira à mesa ao lado, como faz todo peru, sem me manifestar, claro, mas espiando, espiando, totalmente alheio ao que se tratava. Nem sequer sabia que aquilo que estava sendo analisado seria um Estudo de Final, de Sebastião Silva. As peças estavam no tabuleiro, Luís Bronstein apontava o lance, seguia até certo ponto, quando Sebastião demonstrava a refutação. Ficaram assim por quase uma hora. Sinceramente? Eu não estava entendendo nada. Sabia que era um final, mas não vi linha nenhuma que levasse as brancas ao empate. Se o Luís Bronstein não viu, imagina este pobre mortal! A análise então se arrastava. Entretanto, em certa hora reparei que todas as vezes que os lances se repetiam, determinavam certa desarmonia na sequência. O que vinha em mim, o que eu sentia, tratava-se apenas de um sentimento, uma sensação de que um dos lances estaria sendo feito antes do tempo. Tratava-se de uma inversão desarmônica, se é possível se dizer assim, provocada por lances

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feitos fora do tempo. Aí eu cometi o pecado mortal de todo “peru”, em certo momento, impensadamente, incontido e exaltado, disse: – Mas vocês estão fazendo tudo errado! Fez-se um silêncio mortal. Bronstein e Sebastião se voltaram para o lado e os dois me fulminaram com “aquele” olhar... Apenas o Bronstein falou: – Como é Salomão? Eu fui apontando com o dedo os lances, sem mexer na posição inicial, até que chegou ao momento do lance em que estava aquilo que eu considerava “inversão do movimento”. Quando Luís Bronstein foi fazer o lance, um movimento de peão, eu falei: – Não! Primeiro a Torre. E o Bronstein, com o semblante de dúvida, mas pensando e analisando tudo, se fez iluminado com a descoberta: – A Torre? A Torre! Tem razão, Salomão, aqui ela protege. E fez a sequência do Final de cabo a rabo. Sebastião, a quem eu cumprimentava, mas não tinha muita intimidade, assistiu a tudo sem dizer palavra e também sem entender nada. No entanto, amenizou o olhar – agora eram olhos de espanto, embora mais contemplativos, assim como quem diz: – Ele acertou! Como pode? Até hoje nem eu sei! Para mim, isso foi uma daquelas coisas inexplicáveis, trazidas por espíritos do além. Imagine que eu mal conheço o jogo de xadrez, sei apenas o suficiente para jogar partidas medianas. E nada, nada sei nem entendo aqueles profundos Estudos e Finais que Sebastião A. da Silva cria, nem sei nada dos problemas loucos de Mate Ajudado de Félix Sonnenfeld! Embora tenham toda a harmonia, a ciência e a beleza do xadrez, para mim sempre foi uma alucinação, eram e continuam sendo grego para mim: não entendo patavina. Encontrar a solução do problema foi pura intuição. Eis o problema, que também chegou a mim pela internet de maneira estranha, localizado no primeiro item de busca, a página de Roberto Stelling.

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Sebastião A. da Silva (Brasil) Shakhmaty 1971 – 1º/2º Prêmio ex-aequo Brancas jogam e empatam

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1. c7 Rf6; 2. Tf8+ Rg5; [A melhor alternativa, se 2. … Re5 ou 2. … Re6 as brancas jogam 3. Te8+ e será possível jogar Rb8 com a Torre branca em e8 e o Rei preto em qualquer uma das casas: f6, f5 ou f4!]. 3. Tg8+! [Nessa posição 3. Rb8? falha por 3. … Tb1+ 4. Ra8 Th2! 5. c8=C Ta1+! 6. Rb7 Tb2+ 7. Rc7 (cobrir com o Cavalo perde para a dobra das Torres na coluna) Tc1+ 8. Rd7 Td2+ 9. Re7 Te1+ 10. Rf7 Td7+ 11. Rg8 Rg6 com mate próximo]. 3. … Rf4; 4. Tf8+ [Necessário porque o Rei preto está à esquerda da Torre e é preciso mantê-lo à direta da Torre]. 4. … Re3; 5. Te8+ Rf2; 6. Rb8! [No momento certo]. 6. …Tb1+; 7. Ra8 T:c7; 8. Te2+! E as brancas seguem dando xeque na coluna e enquanto o rei preto estiver da segunda à oitava fila. Se 8. … Rg1 9. Tg2+! Rh1 10. Th2+ Rg1 11. Th1+ e empatam. (Diagrama, análise e comentários extraídos de http://stelling.wordpress.com).

Luís Bronstein morou muitos anos no Rio de Janeiro e sempre participava das atividades enxadrísticas, pois era profissional. Sua companhia inseparável era a também enxadrista Norma Snitkowsky (várias vezes finalistas dos campeonatos estaduais e brasileiros femininos), com quem ele morou enquanto esteve aqui. Ambos frequentavam o CXG, o Bronstein dando palestras, aulas teóricas e práticas, participava de torneios de mestres e Norma jogando os campeonatos carioca e brasileiro, torneios nacionais e torneios internos do clube e a irresistível partida-relâmpago. No ano de 1980 eu estava saturado da atividade de cartola do xadrez. O Félix Sonnenfeld já arrumava a sua mesa, transferia para Roberto Stelling os pertences e a direção da UBP, Claude Fisch tinha planos de se transferir para Brasília onde moravam os pais já idosos, enfim, uma série de acontecimentos praticamente me expulsava ou me convidava para sair (ou tirar férias) do xadrez. Atendendo à prática do rodízio, nesse ano eu

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tinha sido eleito para o cargo de Presidente do CXG, ainda com Claude Fisch, Bruce Kover, Moacyr Tavares e Félix Sonnenfeld completando a equipe dirigente, comecei a pensar na minha sucessão. Logo no primeiro semestre de 1980 ocorreria o Campeonato Estadual Interclubes por Equipes e eu tive a ideia de convidar o Luís Bronstein para defender nossa Equipe “A”. De imediato com o convite vieram dois problemas: o Luís Bronstein não era o que se chama amador do xadrez, não iria jogar de graça. Conversou comigo e explicou que estando praticamente exilado no Rio de Janeiro, sobrevivia dando aulas, jogando torneios, simultâneas e palestras, enfim, o xadrez como profissão, pediu uma ajuda financeira como contrapartida. Concordei com ele e apresentei o problema a Claude Fisch, a Sonnenfeld e também ao Bruce Kover, que discordou. Naturalmente a coisa vazou, causando incômodo, pois alguns achavam que isso era o mesmo que profissionalizar o xadrez. Mas não era não, ao contrário, mostrei que muitos casos idênticos ocorriam (e ocorrem até hoje) no xadrez brasileiro. Fiz valer o cargo de Presidente do CXG e defendi a causa de Bronstein com unhas e dentes. Depois houve um princípio de ciúme por parte de jogadores clássicos do time “A”, que iriam perder posições na equipe. Vencidos esses obstáculos, oficializei o convite e fizemos o registro da Equipe “A” na Federação, com Luís Bronstein no 1º Tabuleiro. Depois eu, o Claude Fisch, o Diretor Tesoureiro, que sempre colaborava financeiramente (embora nunca tivesse jogado xadrez!), e outros, fizemos uma vaquinha informal e levantamos a bolsa exigida por Bronstein. A Equipe “A” do CXG que conquistou o Campeonato Interclubes do Rio de Janeiro de 1980, como dito acima, estava assim constituída: 1º Tabuleiro – MI Luís Bronstein, 2º Tabuleiro - Carlos Eduardo Gouveia, BiCampeão Brasileiro de 1975/1987, 3º Tabuleiro - Herman Belém e 4º Tabuleiro - Luís Loureiro, Essa é uma equipe imbatível, digna de Olimpíada! A grande e emocionante final foi contra a forte equipe do Tijuca Tênis Clube, que até então estava invicta. A vitória se consolidou no Primeiro Tabuleiro, com Luís Bronstein fazendo 100% dos pontos disputados.

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☼☼☼☼ Nota: Estava completando este texto quando soube, com tristeza, da notícia de falecimento do MI Luís Marcos Bronstein, em Buenos Aires, no dia 08/01/2014. Bronstein nasceu em Córdoba no dia 02/06/1946, era quatro anos mais novo do que eu, portanto muito jovem ainda. O jornalista e enxadrista Waldemar Costa publicou o fato na Seção Efemérides de sua página na internet (www.wsc.jor.br): 8/1/2014 – Em Buenos Aires (Argentina), morre o Mestre Internacional Luís Bronstein. Ele nasceu em Córdoba (Argentina) em 2/6/1946. Bronstein participou da equipe da Argentina em três Olimpíadas de Mundiais de Xadrez: Haifa (1976), Buenos Aires (1978) e Lucerna (1982). Foi campeão do Torneio Aberto Internacional de Mar del Plata em 1983. Luís Bronstein morou no Rio de Janeiro nas décadas de 1970 e 1980. Nesse período foi campeão pela equipe do Clube de Xadrez Guanabara no Interclubes do Rio de Janeiro (FEXERJ) em 1980.

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Mecking, Mecking, Mecking

Eu e Henrique Mecking

Enquanto Mecking morou no Rio de Janeiro tive alguns encontros com ele. Fiz duas entrevistas, uma em Ipanema outra no Leblon, no condomínio conhecido como Selva de Pedra, que foram publicadas nas revistas espanholas Jaque e Ajedrez 6000. Eu sempre ia acompanhado de amigos a esses encontros – no Leblon, por exemplo, estava o José Soares Másculo e mais outro colega que não lembro – talvez Luismar Brito. Em ambas as entrevistas eu reparei – mas não escrevi – que a preparação técnica de Mecking era precária. O apartamento semivazio, uma mesa cheia de revistas de xadrez, russas, alemãs, inglesas, outra mesa com o tabuleiro, água, algumas frutas. Mecking trabalhava cerca de oito horas por dia sozinho. Quanto a isso ele me confidenciou que no Brasil não tinha jogador qualificado para treinamento ao nível dele – era melhor trabalhar sozinho do que ter a companhia de enxadristas medíocres – no que concordei. Justamente essa ausência de apoio, que os deslumbrados com seu talento não enxergaram, é que terminaria por levá-lo à derrocada. Certo eu dia estava participando do Campeonato por Equipes “B” do Rio de Janeiro. O torneio era na sede do Flamengo no Morro da Viúva e Mecking, que tinha arranjado o patrocínio do clube rubro-negro, apareceu por lá. Cumprimentei-o, batemos aquele papo leve, circulamos pelos tabuleiros com partidas em andamento. Pouco tempo depois ele veio se despedir de mim: – Vou embora. Assistir a essas partidas me dá dor de cabeça.

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Imaginei que Mecking tinha razão, não se tratava de esnobismo. Isso porque era impossível a ele deixar de ver as partidas sob a ótica de um GM, ao passo que ali disputavam diversas categorias de amadores. Ficar analisando e assistindo a milhares de capivaradas assim de supetão, simultaneamente, como uma avalanche – fala sério! É pra dar dor de cabeça mesmo. Quando assisti ao Interzonal de Petrópolis ainda era um capivara desconhecido, mas no Interzonal do Rio de Janeiro (no Copacabana Palace), eu já era um capivara mais ou menos conhecido. Mas com relação à Mecking isso não adiantou – quase não o vi em Copacabana, meu trabalho com a organização era duro. Só o vi mesmo quando ele se apresentou à imprensa, acompanhado do médico, Dr. Jorge Lemos, para comunicar o abandono do Interzonal. Foi um rebuliço geral, uma loucura! Jornalistas de todo o mundo cercando Jorge Lemos, Mecking completamente absorto, com cara de doente mesmo. Uma coisa em favor de Jorge Lemos, em que pese às excentricidades e o diagnóstico que foi obrigado a assinar, é que ele no dia seguinte è retirada do Mecking praticamente desmentia tudo. Em manchete “Mequinho preocupa médico”, uma conversa entreouvida de Jorge Lemos com amigos enxadristas, foi publicada pelos repórteres indiscretos. “Precisamos salvar Mequinho. Ele é um gênio e os gênios levam 100 anos para surgir. É preciso que alguém de seu relacionamento lhe mostre a importância de se dedicar a um tratamento, se abrir e deixar de ser arredio e fechado, para se transformar numa pessoa normal. Embora seja um gênio no xadrez, como pessoa é quase um fracasso, um rapaz cheio de problemas, os quais procura mascarar no misticismo”.

Jorge Lemos invade um pouco a vida pessoal de Mecking, o que iria provocar uma reação deste, mas finaliza seu pensamento com uma observação lúcida: “Mequinho não pode continuar se enganando, pois com o passar do tempo agrava o choque com a realidade e esse choque pode levá-lo à esquizofrenia”. Por ser esse assunto por demais batido e sepultado, não irei me estender muito, mas reproduzo o depoimento de um amigo de Mecking no começo da carreira, Ricardo Fróes.

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“Tive o privilégio de ser amigo de um gênio dos grandes: Henrique da Costa Mecking, o Mequinho, fenômeno do xadrez que sucumbiu vítima de sua total incapacidade para lidar com as coisas mais simples da vida. Além de amigo, fui assessor informal durante algum tempo. Mequinho vivia xadrez, mas tinha “inveja” de uma vida “normal” de um garoto de 18 anos como a minha. Suas obrigações e obsessões enxadrísticas não lhe deixavam tempo para isso. “Um dia Mequinho resolveu, contra meus conselhos, entregar suas economias a um argentino indicado como mago das finanças. O resultado foi catastrófico: o sujeito sumiu com tudo. Mequinho teve que vender o apartamento do Leblon por não ter como pagá-lo. Daí para a pane total foi um pulo. Com o sistema nervoso abalado, foi definhando física e mentalmente, passando a abandonar e desistir de participar em torneios. “Mas foi quando algum “luminar” da medicina diagnosticou que ele tinha miastenia gravis que foi tudo pro brejo. Era evidente que seu mal era puramente psicológico, mas Mequinho precisava de uma desculpa que não denunciasse a sua fraqueza emocional e resolveu “adotar” a miastenia como explicação mais nobre sobre seu estado”. (http://toma-mais-uma.blogspot.com.br/)

Fiz questão de reproduzir o testemunho de Ricardo Fróes, porque finalmente encontrei alguém que tem o meu ponto de vista: Mecking jamais teve miastenia gravis – e esse fato deveria ser motivo de alegria para ele – por não estar doente. No entanto, desde aquele dia fatídico de 26/09/1979, Mecking optou por aceitar-se doente e desse momento em diante sua vida mudou de perspectiva: hoje, em 2015, 36 anos depois de ter sido diagnosticado ele continua doente. É triste constatar, mas, após esse longo período, nem Mecking nem ninguém se dispôs a mudar esse panorama – é motivo para pensar que talvez Mecking esteja ganhando mais dinheiro com a doença do que com o talento que Deus lhe deu para ser um dos maiores jogadores de xadrez do mundo. O problema de Mecking era muito mais complexo do que se imaginava: ele foi vítima de desamparo psicológico. Desde criança ele fez sua carreira sozinho. Alguém alguma vez viu a família de Mecking com ele? O pai que o acompanhava por obrigação não tinha tato nenhum para as relações que o xadrez exigia. Quando veio para o Rio de Janeiro, pediu ajuda às autoridades, ao Ministério da Educação e Esportes, Confederação Brasileira de Xadrez, Federações, mas não conseguiu nada – todo mundo tirou o corpo fora.

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Portanto, nenhum médico poderia diagnosticar miastenia gravis em doze horas, como ocorreu com Jorge Lemos com relação à Mecking – se o fez foi debaixo de muita pressão. Ainda mais que na véspera do diagnóstico Lincoln Lucena, Diretor Geral do Interzonal, antes da rodada iniciar, (partida Mecking - Smejkal) declarou à imprensa que “Ele [Mecking] até agora não fez nenhum pedido e está muito tranquilo”. Na página do Hospital Albert Einstein, de São Paulo, vê-se que diagnosticar miastenia não é tão simples assim: “O diagnóstico da miastenia gravis baseia-se em critérios clínicos, ou seja, história compatível, além de testes laboratoriais e resposta positiva aos medicamentos anticolinesterásicos, que agem nos receptores neuromusculares prevenindo a deterioração da substância acetilcolina e levando à melhora da força. Testes mais específicos também podem ser solicitados, como exame de sangue que pesquisa a presença de anticorpos responsáveis por essa condição. Para afastar a possibilidade de outras doenças e definir o diagnóstico com precisão, os médicos irão analisar ainda a resposta neurofisiológica da pessoa”.

O que Henrique Mecking precisou na época nunca teve nem nunca terá no Brasil. Milhares de estudantes e gênios saem do Brasil pela porta dos fundos porque não têm apoio oficial ou particular. Em outro lugar deste livro já comentei sobre Simone Lemos, filha do Dr. Jorge Lemos, ambos meus amigos de família. Ela antes dos 15 anos já era poliglota, fez concurso e foi estudar na universidade flutuante, o “SS Seawise University” (Mundo Campus Afloat), do magnata chinês Tung Chao Yung. Depois se mudou para os USA, onde constituiu família, e – que eu saiba – jamais retornou para o Brasil, a não ser para fazer o inventário dos bens do pai, que tinha falecido. A situação de Mecking vazou para a imprensa internacional. A Revista Jaque teve informações diretamente de Brasília. A Nota da Redação publicada pela Jaque é de provável autoria de José Maria Gonzalez, diretor da mesma: HENRIQUE COSTA MECKING INSATISFEITO – De Brasília nos chega a notícia de que o famoso jogador brasileiro GM Henrique Mecking foi recebido em audiência de uma hora pelo Ministro da Educação Ney Braga. Os motivos dessa entrevista foram pedir ajuda ao Ministério da Educação e fazer numerosas acusações à Confederação Brasileira de Xadrez, sem esperar o resultado do recurso que tem em trâmite no Conselho Nacional de Desportos.

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Mecking Entregou ao Ministro um volumoso pacote de documentos para “provar” que as eleições da atual diretoria da Confederação Brasileira de Xadrez foram ilegais. Ao terminar Mecking declarou à imprensa: “Não tenho intenção de competir, quando meus inimigos são os próprios brasileiros que estão na CBX, que me expulsam e me sabotam durante as competições”. Nota da Redação: Até aqui a notícia é transcrita da Agência O GLOBO. Como é nosso costume, não tiramos nem colocamos nada, porém seria lamentável nos encontrar com outro “caso FISCHER” que em nada beneficia o Xadrez”.

Centenas de leitores se manifestaram enviando cartas à Jaque, que sempre foi uma revista de prestígio no mundo do xadrez. Entre a correspondência havia uma nota de Ronald Câmara, então vice-presidente da CBX, repercutindo as reclamações de Mecking: “donde el Dr. Cámara aclara con singular dureza las „irregularidades‟ de Mequinho en los últimos años. Dice, entre otras cosas: Realmente Mequinho va haciendo una campaña sistemática contra los actuales dirigentes de la CBX y él tiene toda la razón para expresarse de esa forma. Aparte de ser, desde el punto de vista técnico, el mejor ajedrecista nacional, es también un sagaz mercenário, que trata de obtener, por todos los médios, incluso los más inexclusables, ventajas para si, encontrando en la actual dirección de la CBX una barrera para sus pretensiones”.

Aquela história que “roupa suja se lava em casa” é papo furado. Ademais, como é sabido, o Cartola sempre tem razão...

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Mequinho - Poluga

A delegação brasileira que acompanhava Henrique Mecking no fundamental jogo contra Lev Polugaevsky, pelo Campeonato Mundial, estava formada por Luiz Tavares da Silva e Abaeté Valverde. Luiz Tavares contratou como “Segundo” o GM italiano Sergio Mariotti (2455 - 13º no Interzonal de Manila), que foi dispensado logo depois, por incompatibilidade com Mequinho, tendo sido substituído pelo jovem GM espanhol Juan Manuel Bellón, que tinha se tornado amigo de Mecking. Lev Polugaevsky tinha dois “Segundos” na delegação – Vitaly Tseshkovsky (2600 - 4º no Interzonal de Manila) e Vladimir Bagirov (2482), que fazia parte da equipe de treinadores de Garri Kasparov. O chefe da comitiva era o poderoso Victor Baturinsky, um capivara infiltrado para ser cartola, vice-presidente da Federação de Xadrez da URSS, chefe das delegações na maioria dos eventos, macaco velho enfim, que além de tudo era Coronel da KGB! Meus amigos, uma delegação desse porte tem só um objetivo: vencer a qualquer custo. Outro sinal da mutreta: logo no começo a Delegação Soviética desqualificou Alex Crisovan como juiz principal, por ele não ser Árbitro Internacional. A FIDE aceitou a reclamação e nomeou o AI Hans Suri para dirigir o match. No entanto, Hans Suri não tinha condições de arbitrar o match por estar atuando como juiz em outra competição. Diante do impasse houve uma reunião entre Baturinsky e Crisovan, representando a FIDE, sem a presença de representante do Brasil, chegando-se ao acordo que o match começaria sob a arbitragem de Crisovan, mas teria como árbitro oficial Hans Suri. O match começou e continuou assim até o final, figurando o tal Hans Suri como um fantoche, árbitro fantasma. De qualquer modo, o Comitê Organizador – presidido por Fugi Fuchs, estava confiante no sucesso da organização e a cidade de Lucerna se

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preparou para receber uma multidão de turistas que viriam assistir ao “mais sensacional desafio desde o match Fischer-Spassky pelo Campeonato Mundial em 1972 – O novo duelo entre o Ocidente e o Oriente” – como foi largamente anunciado pela imprensa. Conforme Bellón conta em seu artigo na Revista Jaque (exibida na íntegra ao fim deste volume), o garfo oficial ocorreu assim: “Está perto de terminar o controle de tempo para a jogada 40. Mecking tem clara vantagem, porém está com a seta levantada: tudo se limitava a passar o controle do tempo e a vitória dificilmente escaparia. Parece que, por essa circunstância, Polugaevsky estava muito nervoso – melhor pensar assim – e colocava as peças mal centralizadas na casa, o que obrigou Mecking a recorrer algumas vezes ao “j‟adoube”, arrumando com ajuda da caneta a peça no devido lugar – sempre usando seu próprio tempo”. “Em certo momento, quando caberia a Mecking fazer a jogada, ainda com a seta levantada, o soviético estende os dois braços e olha para o árbitro [como que reclamando] e a este não ocorre outra coisa senão dirigir a palavra a Mecking – que continua com a seta levantada e o relógio andando – para falar num mal inglês “You lost” – o que quer dizer “Você perdeu”. “Mecking naturalmente ficou atônito com aquilo, não sabia o que se passava nem o que fazer. Ficou nervoso e cometeu um erro e outro mais em seguida, completamente desconcentrado – passando, em consequência, de uma posição vantajosa para outra completamente perdida!” “Passado o controle do tempo, começou uma discussão e o árbitro alegou que quis dizer “Last time” em vez de “You lost”, tendo em vista que não falava inglês corretamente. Desculpas pra lá, desculpas pra cá, a partida foi suspensa com Mecking em posição inferior que depois se transformou em derrota. Não sei até que ponto está facultado ao árbitro falar com o jogador que tem a vez do lance, ainda mais quando se encontra com a seta levantada”. “Repito que esta foi a única partida que não terminou empatada e por isso cabe aqui se fazer uma pergunta: é justo que Mecking tenha sido eliminado do Torneio de Candidatos por uma derrota nas circunstâncias acima relatadas?” “O senhor Crisovan, volto a dizer, que nasceu na Hungria, [e não é Árbitro Internacional] perturbou Mecking no momento decisivo da partida para ajudar Polugaevsky ou por desconhecer o Regulamento? Armaram para Mecking uma guerra de nervos fazendo as coisas que sabiam que o perturbam durante o jogo?”

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Assim Bellón sentiu e descreveu o momento para a Revista Jaque. Mas não foi só ele: toda a imprensa publicou no dia seguinte, as mesmas ocorrências! Todo o noticiário dos jornais questionava também a situação estranha da partida e a atitude da arbitragem. Eis um resumo do que se noticiou em Lucerna e nas revistas especializadas: O match Mecking - Polugaevsky “A segunda partida do match entre Mecking e Polugaevsky já começou complicada. O primeiro jogo tinha sido muito nervoso, mas chegou-se ao empate e seria normal que a cabeça dos jogadores se acalmasse um pouco, mas não foi assim. A partida foi adiada por duas vezes: Mecking sentiu „dores estomacais‟ [conhecida no Cachambi como cagaço] e Polugaevsky teve que extirpar um dolorido abscesso das costas, que precisaria operar depois”. “Não é fácil saber exatamente o que aconteceu nesta partida (e nas posteriores), mas o que se seguiu deve ser tomado como um grão de areia. Mecking teve posições vencedoras três vezes: 23. f4, 24. f4 e 40. Txd4, mas estava também com problemas de tempo. Próximo ao fim do controle de tempo (lance 40), Polugaevsky começou a colocar as peças na borda das casas, obrigando a Mecking reposicionar as peças corretamente, usando a expressão j'adoube”. “Polugaevsky reclamou ao árbitro Crisovan que Mecking estava tocando as peças de modo irregular e Mecking recebeu uma advertência de Crisovan com a seta do relógio levantada e o seu tempo correndo. As palavras ditas por Crisovan [que não falava inglês fluente] foram "last time" (última vez) [que Mecking poderia arrumar a peça], mas Mecking entendeu como "you lost" (você perdeu) e não soube como reagir”.

Mecking – Polugaevsky 2ª Partida

23. f4

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40. Txd4 “A partida foi suspensa, com as desculpas de Crisovan, mas Mecking estava em posição inferior por causa de seu último movimento (42. Rf1)”.

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Bellón & Mecking

Depois disso tudo alguém ainda duvida que Mecking tenha sido garfado no match contra Polugaevsky? Pois foi sim, não resta dúvida. Ocorre, como se viu, que as „autoridades‟ brasileiras não deram um pio nem um pum de apoio a Mecking. Ele se queixou em muitas entrevistas. Foi a Brasília falar com o Ministro da Educação Ney Braga e voltou de mãos vazias. Não tinha uma pessoa de proeminência ao lado dele no match que enfrentou Polugaevsky. A CBX, então, nem se fala! Já por ocasião do Torneio de San Antonio em 1972, jogando contra Petrossian, Mecking estava em apuro de tempo e o macaco velho batia com o pé na perna da mesa, sacudindo as peças e todo o tabuleiro – tirando a concentração necessária ao jogo. E Petrossian agiu assim durante toda a partida, conforme Mecking declarou em entrevista à Jaque. Quando os russos se referiam a Mecking tratavam de cunhá-lo de problemático, instável e outras bobagens. Interessava aos outros GM cunhar Mecking de „instável‟, justamente para que suas reclamações caíssem no vazio e a ameaça à hegemonia soviética no xadrez se prolongasse mais um pouco. Mas as atitudes antiéticas de Petrossian tinham antecedentes: em 1971 no match contra Robert Hübner [que, segundo vi no Interzonal do Rio de Janeiro, era meio estourado] os problemas levantados chegaram a um impasse. O GM alemão – que era mais doidão do que Mecking – simplesmente abandonou a competição, embora o match nem tivesse chegado à metade, devido às catimbas e atitudes irregulares de Petrossian. Nenhum árbitro tinha coragem de repreender ou punir o russo pela postura antiesportiva – como punir um Campeão Mundial? Tigran Petrossian deu trabalho também a Fischer e ao ex-compatriota Viktor Korchnoi. É como eu disse aqui mesmo em nota neste livro: no xadrez não existem anjos.

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Não se trata de cavoucar o passado de maneira infrutífera, sem razão. Tudo que se refere a Henrique Mecking antes do Interzonal do Rio de Janeiro é importante para conhecer de fato o que ocasionou o colapso que ele teve e redundou no abandono da competição. Mecking àquela altura era imbatível, verdadeira ameaça à hegemonia soviética no xadrez. Convém relembrar que naquele tempo o xadrez soviético não era dirigido por uma Federação de Xadrez e sim pelo membro da KGB Viktor Baturinsky. Portanto, Mecking e Bellón tinham razão em se queixar: a única partida que Mecking perdeu contra Polugaevsky foi um tremendo garfo. Ou mais claramente: um roubo extra tabuleiro. Bellón, é claro, alivia a cara da equipe russa que cercava Polugaevsky, como se também não fosse responsável pelas catimbas que fizeram a Mecking. Se Bellón fosse agressivo e verdadeiro – como Ricardo Calvo – decerto teria sua carreira prejudicada. Juan Manuel Bellón, que foi convocado às pressas para dar assessoria a Mecking, narra com detalhes as pilantragens de Polugaevsky e sua equipe de técnicos, assessores e segundos. Anos depois seria Fischer a reclamar, mas com esperteza – ele usou das mesmas artimanhas e catimbas para tumultuar o match com Spassky e funcionou! Tudo começou com a escolha de um árbitro desqualificado. Esse fato comprova que Mecking tinha razão em procurar apoio de peso das autoridades brasileiras. Seria o mínimo necessário para enfrentar a forte influência das autoridades soviéticas no território do xadrez naqueles tempos, em que mantiveram hegemonia durante muitos anos. Para saber tudo isso desfrute o artigo de Juan Manuel Bellón intitulado “Venció Polugaevsky, pero... NO VI PERDER A MECKING – El árbitro – sin título internacional – principal protagonista”.

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Quase epílogo Afinal, o que aconteceu com a trajetória de Henrique Mecking, o maior jogador de xadrez do Brasil – verdadeiro Campeão Mundial – foi de responsabilidade desses governantes e dirigentes. Dezenas de anos depois a coisa continua da mesma maneira, embora com outras nuances. Tirando o futebol (máfia criminosa assimilada pelo governo), as „autoridades‟ estão cagando e andando para o atleta brasileiro – o enxadrista em particular. Em sendo assim, são milhares de gênios, atletas e jogadores excepcionais cujo talento é morto no nascedouro. Mecking jamais recuperou o nível de jogo, nunca alguém ofereceu meios qualificados para que pudesse readquirir seu potencial, nenhuma ajuda nem contribuição foi dada por quem quer que seja, a CBX silenciou, assim ele nunca pôde se reafirmar como grande enxadrista. As ofertas acessíveis foram mais voltadas para milagres do que para a realidade e como Jesus anda muito ocupado com outras coisas, também o deixou de lado... É preciso que os atuais jogadores – e os jovens que começam a jogar xadrez hoje – conheçam essa história e busquem entender o porquê da derrocada de um gênio como Mecking. Leiam também as notícias que saíram na Revista Jaque vindas de outras fontes, a acusação de Mecking aos dirigentes do MEC e da CBX, a defesa da própria CBX, a análise dos jornais. Saibam também como José Mª González – grande conhecedor dos bastidores do xadrez – defendeu, com garra de brasileiro, o caso em favor de Mecking: ele sabia do que se tratava... Tá tudo aqui! A grande maioria dos atuais MI e GM brasileiros cresceram sabendo dessas mutretas, das sujeiras que se escondem nos bastidores do xadrez, e existem em todos os níveis. Eles aprenderam a não confiar nas autoridades federais, estaduais e municipais, muito menos nos dirigentes das Federações e Confederações. Protegem o talento das deformidades e têm a carreira profissional mais ou menos equilibrada. Procuram evitar serem picados pela muriçoca do poder e se transformem em Cartola (como ocorre a alguns) e passem a cometer as mesmas violências de que foram vítimas.

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Dossiê Mecking

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As dívidas do esquecimento

Com Claude Fisch no CXG

O nosso xadrez vive de reclamação, de falsa mendicância, como a imagem do Brasil de outrora, que passava ao mundo um estado de miserabilidade para pechinchar esmolas. Guardadas as proporções, vivemos no xadrez a mesma situação de outros esportes: dirigentes que reclamam, reclamam, em vez de exercitar a criatividade procurando os inúmeros recursos que existem para valorizar o nosso xadrez. O dirigente do xadrez, desde os clubes, as federações e confederações, merece ter e ser tratado com mais respeito, mais visão profissional. Enquanto o diretivo for tratado como amador, enquanto a direção da entidade for a segunda ou terceira opção profissional, enquanto o empreendedor não invadir a administração das entidades, o xadrez, será para sempre pobre, sem valor, atividade secundária. Aqui eu ofereço minha singela homenagem, pequena, mas de coração, ao dirigente, jogador, colaborador, que fez do xadrez a segunda opção de vida, mesmo tendo que enfrentar a tudo e a todos – principalmente os conflitos familiares – aquilo que mais dói no ser humano. Vontade não falta, mas querer não é poder. Gostaria muito de falar de todas as pessoas que conheci e fiz amizade através do xadrez. Teria que relembrar de Claude Fisch, dono de uma das maiores coleções de livros de xadrez do Brasil – que me introduziu na Diretoria do Clube de Xadrez Guanabara. O Claude era francês ou de origem francesa, tinha cerca de 1,90m de altura, esbelto, fala macia como a voz dos anjos. Um apaziguador e fautor das coisas corretas.

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Claude Fisch morou no Flamengo, naquele espigão que tem na confluência da Avenida Ruy Barbosa e Morro da Viúva, uma das poucas vezes em que estive lá fui testemunha de desavença familiar, coisa comum. Mas depois Claude resolveu sair dali e mais tarde se mudar em definitivo para Brasília onde moravam seus pais. Sendo a discrição em pessoa, Claude sumiu de circulação, pelo menos para mim. Meu último contato com ele foi justamente para me conseguir uma cópia da partida Alekhine ½–½ Bogoljubow, que usei no artigo sobre o conto Schachnovelle, de Stefan Zweig. Naqueles tempos, sem internet, só Claude Fisch mesmo poderia me conseguir essa informação, como de fato aconteceu. Dias depois do pedido, recebi pelo correio fotocópia de uma versão da partida em espanhol, comentada por um mestre argentino. Atualmente não mais consegui fazer contato com o Fisch, mas vi que seu sobrenome anda já dando renome a alguns artistas da Capital Federal. Quantos mais eu teria que lembrar? Muitos, muitos, muitos, muitos. Dr. Luciano Belém e seu filho Herman; Darcy Lima (pai) e o chato do filho – hoje GM; Djalma Caiaffa, uma doçura de pessoa que parecia ficar chateado ao vencer o adversário; Henry Levinspuhl, um furacão de cabelos desgrenhados, para quem perder um ping era motivo para disputar duelos mortais; João Batista Cúrcio – que se autoproclamava o jogador mais forte de Niterói (devido ao peso pesado que era), além de ser alegre e brincalhão, sempre disposto a um papo; Norma Snitkowsky, que acolheu e deu suporte ao MI Luís Bronstein no Rio de Janeiro; Vince Toth, inventor, produtor e distribuidor do melhor relógio de xadrez brasileiro – pai do Piteko (como Jorge Lemos apelidou o Peter). Tem também o Carlos Eduardo Gouveia, sempre conversando e ensinando – analista emérito; José Cristóvão Kubrusly, um Mestre e PhD em muitas coisas; Jerônimo Pimenta, que sumiu do Clube de Xadrez Guanabara e bandeou para a ALEX; Luís Loureiro, não sei onde anda e, pior, teve a ousadia de negar meu pedido de amizade do Facebook; Marcos Roland, que também se mudou para Brasília, onde publicou uma revista de xadrez; Roberto Stelling – herdeiro do Félix Sonnenfeld em defesa do problema brasileiro; Michel Bessler, violinista, spalla da OSB e fundador

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do Quarteto Bessler-Reis, que gravou todos os Quartetos de Cordas de Heitor Villa-Lobos (eu tenho!); Oliveiros Litrento, escritor de belos romances nordestinos; tinha o Maestro e Compositor Ermano Soares de Sá; os veteranos Dr. Carlos Vinhas, Enguelberto Berlingozzo e Roberto Porto da Silveira; o Zélio Bernardino, engenheiro, com quem joguei várias partidas e veio a ser um Mr. Pizza. Como se vê, uma mistura de três ou quatro gerações do xadrez brasileiro convivendo num só espaço – o CXG! É muita gente pra pouca cabeça... A essas lembranças se junta outro magote de pessoas daqui e de fora do Rio de Janeiro, espalhadas pelo Brasil. O catarinense Adaucto Nóbrega, hoje dono de uma das maiores bases de partidas do mundo; André Cajal, Antonio Rocha, Auriberto Ticianelli, Dirk Dagoberto, como eu colecionador de selos de xadrez; Eduardo e Marco Asfora, Francisco Trois, Hélder Câmara, sobrinho, não o Arcebispo; Herbert de Carvalho, Hermann Claudius van Riemsdjik, que onde estiver me dará a alegria de vir trocar um abraço amigo. Conheci também Lincoln Lucena, que um dia sonhou ser presidente da FIDE; Luismar Brito, Campeão de Gamão nos USA; Máximo Macedo, que transmitiu o vírus do xadrez para seus garotos; Otacílio Veloso, Rubens Filguth, Vitório Chemin, Alberto Mascarenhas, Eduardo Limp, Eunice de Aquino. Outro que considero um Mestre é Hilton Rios, que só não conseguiu a titulação devido à forma irregular com que participa dos torneios. Mas, certo dia, no tempo em que eu estava hospedado com minha irmã na Rua Djalma Ulrich, às 10hs da manhã encontrei o Hilton em Copacabana tomando umas e outras. Atravessei a Barata Ribeiro para cumprimentá-lo. Fiquei surpreso quando ele recusou a mão e me disse: – Porra Salomão, você largou o Guanabara arrasado, roubou tudo, até o telefone! Fiquei espantado e em silêncio. Pensei bem: não era hora de arrumar discussão alguma. Apenas debitei essa fala à má qualidade da cerveja

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brasileira depois que virou Ambev e à minha incapacidade de fazer inimigos. Mas ainda consegui responder a Hilton que era (e sou) um cara pobre – como o próprio clube é pobre. Disse-lhe também que o telefone do CXG é o mesmo há mais de 50 anos, portanto não fora roubado nem por mim nem mais ninguém. Ademais, só deixei a presidência do CXG após a posse da Diretoria que iria me suceder, presidida por Antonio Carlos Gomes Siqueira, sócio do clube, enxadrista e cheff (na época era um dos sócios do Restaurante Mandrake, em Botafogo). Foi uma acusação injusta, mas alguns dias depois eu estaria cumprimentando Hilton Rios num dos torneios em que ele participou... E devo falar, e muito, do maior amigo de todos (junto com Waldemar Costa, Claude Fisch e Félix Sonnenfeld), o veteraníssimo, Friedrich Alfred Salamon, que assinou a minha carteirinha da Federação de Xadrez do Rio de Janeiro! Encontrei o Salamon no Clube Municipal, nos abraçamos, eu disse: – Pôxa, pensei que já íamos fazer o Memorial Friedrich Salamon! Ele riu e respondeu: – Eu é que ainda vou participar do Memorial Salomão Rovedo... Que tenhamos muitos memoriais é o que desejo, caro Friedrich. Falando do Salamon relembro um fato que me ocorreu, coisa assim do outro mundo, que jamais imaginaria acontecer. Certa vez andei com um dente siso me incomodando (depois de velho ter dor de dente é dose!). Fui a uma clínica dentária na Av. Nª Sª Copacabana. Uma doutora, vestida com uma bata alvíssima, trazendo a minha ficha nas mãos veio me examinar: Dra. Maria Luiza, uma senhora de cabelos brancos, simpática, sorridente. – Sabe Sr. Salomão, o meu marido também é Salomão. Mas o nome dele se escreve Salamon, não como o seu.

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Quem senta em cadeira de dentista sabe que isso é conversa para esquecer a agulhada, os boticões, o ruído terrorista da broca! Conversa vai, conversa vem – meu siso foi condenado à morte. Dra. Luiza, com base nessa psicologia, continuava conversando enquanto eu horrorizado encarava o boticão. Porque meu marido é isso, meu marido é aquilo. Ela me contou também como eles se conheceram: – Meu marido havia morrido e o Salamon tinha ficado viúvo recentemente, e nós sempre fomos muito amigos. Assim, de repente tivemos a mesma ideia: por que a gente não se casa e vamos viver juntos? Pronto! Simples assim... Se fossem os jovens de hoje teriam dito: – Por que a gente não fica? E foi assim que eles ficaram, de modo singelo como deve ser a vida, tão genuína como deve ser a felicidade. Depois a Dra. Maria Luiza comentou: – A princípio, eu não sabia das manias que o Salamon tem: depois descobri que ele é metido nesse negócio de xadrez, sabe aquele jogo, ele é Diretor, Jogador, Juiz – essas coisas... Afastei os apetrechos da boca e falei: – Péra lá, Dra. Maria Luiza, o seu marido NÃO É o Friedrich Alfred Salamon, É? Êita mundo pequeno! O próprio! Poizé, quero relembrar de tantos nomes e mais os novos amigos que chegam agora, tem até um pernambucano chamado Velimirović. Nunca contei a ele, mas eu conheci o original Dragoljub Velimirović, representante da Yugoslávia no Interzonal do Rio de Janeiro, de quem era e sou fã, por reconhecer nele o verdadeiro artista do xadrez, uma fera, tanto pelo vigor no ataque, quanto pela beleza dos sacrifícios. Eu costumo comparar Drago Velimirović com outro combinador insuperável: o austríaco Rudolf Spielmann, conhecido no seu tempo como “o mestre do ataque” e autor do livro “A arte do sacrifício”, que viria a

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falecer no ano em que eu e Dragoljub Velimirović nascemos – somos de 1942. Drago Velimirović tem a minha idade, mas faleceu em 2014, ainda jovem. Lembro também o Haroldo Cunha, Hermes Amílcar, José Thiago Mangini – que tentou me criticar porque não selecionava partidas brasileiras para a Revista Jaque (na verdade eu enviava os boletins dos torneios e eles faziam a seleção); Márcio Miranda, Márcio Baeta, Ricardo Mercadante, Ricardo Teixeira, Sadi Dumont, Oliveira Maia – é um mundo sem fim! A todos esses citados e não citados, aos lembrados e aos esquecidos, a todos que ainda vejo de vez em quando – declaro que foi para mim um prazer ter convivido, seja por alguns minutos ou por mais tempo, em frações repartidas da vida cotidiana, unidos por essa coisa chamada jogo de xadrez. PS: É também possível que algum “esquecimento” resulte daquela triagem mental que Stefan Zweig explica na frase: “Tudo o que se esquece de nossa própria vida, na verdade já estava condenado, por um instinto interior, a ser esquecido”.

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REVISTAS & BOLETINS

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Eu e a Revista Jaque

Jaque nº 1

O número 1 da revista Jaque saiu no mês de janeiro de 1971. Editada na cidade de San Sebastián, país Basco, por José Maria González, logo se tornou uma das mais populares da Espanha, tornando-se depois mundialmente reconhecida. José Mª González, como aparece nas páginas da revista, além de editor era também redator e repórter, atividades que dividia com a arbitragem internacional e com a empresa do ramo de joalheria “Joyas y Perlas Majórica”. Era um empresário que tinha como paixão maior o xadrez, o que causava certo descompasso entre ele e os familiares, demais sócios na joalheria. Isso porque José Mª González não perdia um torneio de grande dimensão, um match importante: arrumava as malas e partia, mandando depois artigos e informações detalhadas sobre o acontecimento. Muitas vezes ele próprio seria o patrocinador de eventos de magnitude, como os torneios internacionais de San Sebastián. Essa constante ebulição o tornava amigo íntimo, tanto de dirigentes quanto de Mestres e GM, muitos dos quais não se recusavam a mandar partidas comentadas, coisa de dar inveja a muitas publicações ditas especializadas. As páginas da revista nº 50 (1976) registra a presença dos GM Florin Gheorghiu, Lubomir Kawalek, Miguel Najdorf, Alberic O‟Kelly, Oscar Panno, Tigran Petrosian, Miguel Ángel Quinteros, Vasili Smyslov, Arturo Pomar, José Manuel Bellón, Miguel Czerniak, Joaquim Durão, Antonio Medina, Román Torán, Ricardo Calvo – todo um elenco que arrola as maiores figuras da época.

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Será do MI Ricardo Calvo (1943-2002), o retrato de seu grande amigo José Mª Gonzalez, que copiarei da coluna “Notas Bibliográficas de Inforchess Nº 9”, assinada pelo MI Raúl Ocampo. Para tornar o texto mais rico, Ocampo, primeiro, descreve a figura valente de Ricardo Calvo: “Mestre Internacional, historiador e polemista, Ricardo Calvo viveu só 58 anos. Faleceu em Madri, em 2002, depois de demorada enfermidade [câncer no esôfago]. Nascido em Alicante, Calvo participou de várias Olimpíadas: Havana 1966, Lugano 1968, Siegen 1970, Nice 1974 e Buenos Aires 1978. Durante vários anos colaborou na revista Jaque. Autor de vários livros, como o intitulado "O poema Escacs de d'amor", sobre o xadrez na Valência do século XV. Nos últimos dias trabalhava na preparação de seis livros para a "Enciclopédia da História do Xadrez". Assim diz seu obituário. Porém falemos de seu livro “A outra História do Xadrez” e na sua introdução está uma melhor descrição, “interposita persona”: “Nesta hora que volto a escrever, desta vez para um suplemento de JAQUE voltado a colecionadores, me atinge com violência a lembrança de José Maria González (1925-1985), o cativante e entusiasta criador da revista. Órfão antes da guerra civil, ele foi acolhido por um relojoeiro com quem aprendeu os golpes, o trabalho e, talvez como fuga interior, o jogo de xadrez. Nos anos 40 emigrou para Caracas, e passou a primeira noite percorrendo a pé a cidade para encontrar instalações adequadas para uma relojoaria. Acabou, depois do trabalho de muitos anos, tendo várias joalherias”. “Mas sua gema preferida era o xadrez, e quando regressou a San Sebastián fundou a revista, que logo iria se converter na única referência independente para contar o que se passava em nosso mundinho. Recordo suas incessantes viagens pelos torneios, porque com ou sem motivo, tinha essa agitação viageira que o impedia de permanecer mais de três dias no mesmo lugar. Tenho visto essa síndrome em outros feridos na infância. Na sociedade gastronômica „donostiarra‟ [san-sebastiana] à qual pertencia, o apelidaram, de modo sarcástico, “siempre a tope”. “González não teve uma vida familiar feliz, porém como era honrado, enfrentou de imediato a corrupções dos dirigentes de xadrez. O esforço solitário resultou superior a suas forças e no

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último ano de sua vida despiram-se as ilusões de viver, com insultos, difamações e telefonaços ameaçadores, dos mesmos dirigentes, uma vociferante matilha que ele havia denunciado. Morreu após uma pneumonia, negando-se a respirar cada vez que pretendiam desintubá-lo. Os médicos do hospital não explicaram as causas”. “Dá trabalho entender ainda hoje como a coletividade enxadrística pôde consentir e tolerar durante tantos anos com sua passividade, frivolidade ou cumplicidade interessada, tantos desmandos, iguais aos que González combatia sem ajuda. Enquanto agora que passamos a página dos pesadelos anteriores, desejo que os primeiros traços desta escrita sejam dirigidos à memória emocionada daquele amigo”. “Como desta história recente prefiro não falar, o tema destas divagações colecionáveis virá a ser a história antiga do xadrez. O caminho que segui me foi indicado por Yuri Averbach: ao ver que tomei partido das denúncias e críticas de González, sentiu que minha carreira como jogador iria ficar definitivamente malbaratada, e me disse o seguinte: “Olhe. Comigo se passou o mesmo no sistema estalinista e optei por me refugiar na investigação da História do Xadrez. Aconselho que aproveite minha experiência, porque deste mundo não se pode eliminar os dirigentes e como retaliação eles irão sabotar sua participação nos torneios e sua projeção internacional”. “Essas palavras tiveram efeito decisivo no meu destino biográfico e por ele irei seguindo as veredas de minha aventura pessoal no terreno, até então desconhecido para mim, da História do Xadrez”. http://www.inforchess.com/columnis/Ocampo/biblio09.htm

Que monstros de caráter são José Maria Gonzalez e Ricardo Calvo! Exemplares! Mas a história continua. Ricardo Calvo teve uma polêmica com a FIDE, quando escreveu artigos denunciando as „falhas morais‟ (leiase: corrupção) na política de xadrez. Em assembleia de 1987, por 72 votos a favor, duas abstenções e um voto contra [como teria votado o a CBX sob a presidência de Sérgio Farias?], Ricardo Calvo foi condenado e declarado persona non grata pela FIDE, por ter escrito um polêmico artigo na revista New in Chess. De acordo com a FIDE, o artigo é um “ataque racial aos latino-americanos”.

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O diário ABC Deportes, Miércoles, 2-12-1987, noticiou a ocorrência, como se deu na Assembleia Geral da FIDE: “Houve duas sanções propostas pelo Comitê Central. Uma de três anos ao GM Quinteros, por ter jogado na África do Sul, o que está proibido, devido à situação política existente no citado país. A segunda, apresentada por uma Comissão Especial, formada pelo MI Arnold Denker (USA), o MI Manuel Aaron (Índia) e [Jorge Enrique] Molina (Colômbia), [Reitor da Universidade de Bogotá e Presidente da Federação Colombiana de Xadrez], se refere a um protesto da Federação Argentina, provocado por uma carta escrita pelo MI espanhol Ricardo Calvo. A penalidade proposta pela citada Comissão foi rechaçada pela Assembleia Geral por não existir legislação na FIDE sobre sanções, exceto no que se refere à África do Sul. Na Assembleia, em acordo aprovado por 72 votos a favor, um contra e duas abstenções, foi aprovada ontem no fim da sessão, uma Resolução nos seguintes termos: “A Assembleia Geral condena as irregularidades, admitidas pelo MI Calvo, no insultante e difamatório texto de sua carta publicada em „News in Chess‟, que considera prejudicial à reputação do xadrez. A Assembleia Geral declara o MI Calvo “persona non grata”. Ficou expressamente estabelecido que isso não o impedirá de participar das competições da FIDE. Foi-lhe oferecida, em seguida, a possibilidade de ser ouvido, caso tenha alguma circunstância atenuante. No quarto item, se concordou dar total publicidade ao referido Acordo e que na citada revista holandesa se publique o texto completo desta Resolução da FIDE. Recomendou-se ao Conselho Executivo que estude “se existe alguma ação legal a tomar sobre a carta em questão e que considere fazer as alterações necessárias ao Estatuto, para que seja possível agir no futuro contra esse tipo de ocorrência”. “Havia proposta da Comissão para que o MI Calvo fosse proibido de participar das competições da FIDE, por cinco anos, porém vários delegados se opuseram, por não existir legislação a respeito, ajustouse, pela maioria indicada antes, por firmar a citada Resolução”. Em resposta, Calvo escreveu uma carta aberta à FIDE intitulada “Sobre a natureza da Legitimidade da FIDE”, na qual ele contesta aquela decisão: “(...) a condenação de um jogador de xadrez com base em quaisquer ideias políticas é em si uma monstruosidade intelectual e jurídica

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(...). Sim, qualquer Hitler, Stalin, Pol-Pot, Mao, Saddam ou Ilyumzhinov tem o direito, se quiser, de participar de um torneio de xadrez. Esta é a verdadeira grandeza do nosso jogo, um refúgio espiritual muito acima da política suja da vida cotidiana em qualquer país”. Ora, a história continua e se repete como comédia (ou tragicomédia). Ricardo Calvo meteu o pau em muitos dirigentes, inclusive Ilyumzhinov, Presidente da FIDE. Depois disso se voltou para a História do Xadrez, sábio conselho de Yuri Averbach. Em 1999 levantando as origens do xadrez europeu publicou ensaio “El poema Escacs d’amor”, cujas pesquisas levaram-no a deslocar as raízes do xadrez moderno para a Valência medieval. A descoberta, avalizada com inúmeras provas, correu mundo e as atenções do xadrez se voltaram para Valência. Esse poema já havia sido mencionado de forma fragmentária, mas foi Ricardo Calvo que o decodificou no plano poético, no plano alegórico e no enxadrístico, concluindo que o nascimento do xadrez moderno ocorreu num círculo literário de Valência, entre 1470 e 1490. Pois não é que em 25 de março de 2013, em Valência, é inaugurada a sala “Valência, origem do xadrez moderno, 1475”? Eis a notícia, que está no site: “O ato inaugural, sóbrio e modelo em sua abordagem, contou com a presença de autoridades de primeira ordem em seus domínios, que deram certificado de luxo ao evento. Uma mesa composta por Kirsan Ilyumzhinov, presidente da FIDE (Federação Internacional de Xadrez); Ali Nihat Yazici, vice-presidente da FIDE; Javier Ochoa, presidente da Federação Portuguesa de Xadrez; Francisco Cavernas, presidente da Federação de Xadrez da C. V.; Cristóvão Grau, vereador do Desporto e Juventude da câmara Municipal de Valência e José Antonio Garzón, pesquisador e responsável pelos conteúdos históricos da nova sala”. http://www.origenvalencianodelajedrez.com

Isso é ou não é – sem tirar nem pôr – o xadrez da vida, a que se referia o mestre Olício Gadia? Aproveitaram-se da atuação do obstinado enfant terrible Calvo em busca da ética e agora o Estado utiliza sua descoberta para fins turísticos, culturais e outros, com ganhos financeiros ilimitados. Será que eles pensaram em dar a alguma sala – pelo menos – o nome de Ricardo Calvo? Fica a sugestão.

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A minha permanência como colaborador da revista Jaque foi entre os anos 1976 a 1982. Nos últimos anos, a situação se complicou porque fui me meter em outras coisas, extrapolando o cargo de colaborador. Vendo meu nome na revista, diversos amigos do xadrez me procuraram para fazer assinatura. A princípio chutei a bola para a revista, mas o que ocorreu é que a Jaque fazia a assinatura, remetia a revista, o assinante transferia o valor ao meu banco, me obrigando a fazer a remessa para a Jaque. Muito cômodo, né? Mas não para mim. No começo, até que tudo correu bem, mas em seguida fui chamado ao Banco Central – depois à Receita Federal – para justificar o motivo de tantas remessas para o exterior. Expliquei que se tratava de assinatura de revista de xadrez, etc. Eu estava plenamente dentro da lei, pois tudo isso está previsto nas normas do Banco Central. Entretanto, por se tratar de pessoa física, havia um limite de US$ 300 mensais para fazer remessas com essa qualificação (assinatura de revista). Quando começou a renovação das assinaturas, transmiti logo aos assinantes e à Jaque essa situação. Ficou acertado que a partir de então, os próprios assinantes fariam a remessa. Ocorre que muitos deles não tinham tempo para tratar disso pessoalmente. Alguns me pediram, outros cancelaram a assinatura. Foi um rolo! É possível que nessa época José Maria González já estivesse passando o comando da revista para os sucessores (ele viria a falecer em 1985 de pneumonia), pois recebi da Jaque uma carta ameaçadora, assinada por um desconhecido, falando em dívidas, cobrança judicial com advogados e tudo mais. Pensei logo: lá vem aporrinhação. Respondi que já tinha explicado, em carta a José Maria González, a situação das remessas, mas repeti tudo de novo. Esclareci as dificuldades tidas com o Banco Central (conforme carta anteriormente enviada direto ao chefão José Mª González – cuja cópia foi anexada), afirmando que aqui tínhamos também advogados para contestar qualquer ação. Junto com a carta enviei cópias de todas as remessas bancárias já feitas. Enquanto isso havia uma defasagem entre os US$ 300 que eu enviava e a quantidade de assinantes que aumentava sempre. A Jaque incrementou suas vendas com acréscimo de mais de 400 novos assinantes na América Latina! Era demais para mim, que nunca tive essa pretensão. Continuei fazendo algumas remessas mensais, até chegar a um cálculo aproximado do que tinha ficado para trás e dei o caso por encerrado. Depois disso não veio mais nenhuma correspondência de lá. Agora, escrevendo essas lembranças, de repente me ocorreu que jamais

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recebera um centavo sequer pelos serviços prestados durante os 6 (seis) anos de colaboração, nem um muchas gracias por ter conseguido para a revista Jaque número expressivo de novos assinantes. Poderia ter levantado esse argumento, mas não o fiz. Quer dizer, aturei o fato de que fui impelido a uma situação inesperada, que não estava entre os objetivos que ansiava, quando enviei meu primeiro artigo em 1976... A Jaque mudou de mãos e de cidade: em Madri sobreviveu por dez anos sob a direção de Leontxo Garcia (1991-2001). Lá pelas tantas se transferiu para Valência, que depois da descoberta histórica divulgada por Ricardo Calvo, quer porque quer ser a capital mundial do xadrez. A revista foi parar em mãos do MI Yago Gallach Pérez e uma circular aos leitores, serviu de epitáfio para a Jaque: “Estimado assinante: Muito possivelmente – e o digo com enorme pena – o exemplar de Jaque nº 665-666 (publicado em julho de 2012) será a última revista que vocês irão ler sob o selo de El peón espía, a empresa que meu irmão Nacho e eu fundamos em 2009 para retomar a publicação da legendária Jaque. Yago Gallach Pérez”. Entramos de novo no xadrez da vida do Mestre Gadia. A fila anda. Foi uma fase na qual eu também tive que mudar de emprego, mais trabalho, mais responsabilidades, filhos, toda uma nova realidade: e o tempo para o xadrez escasseou. Está reproduzida ao fim deste trabalho uma seleção de quase tudo que a Revista Jaque publicou a respeito do xadrez no Brasil. Estava agora bem distante o dia em que vi publicada a primeira colaboração para a revista e meu nome começou nas publicações e artigos da Jaque ao lado de nomes famosos e também de Ronald Câmara, colaborador da revista no Brasil. Ronald Câmara fez uma excelente cobertura do Campeonato Brasileiro realizado em São Luis (MA). Quando meu nome foi divulgado no expediente da Jaque, em certo dia encontrei-me com o Waldemar Costa e ele me diz: – O Ronald Câmara me telefonou de Recife querendo saber quem é esse tal Salomão Rovedo. – Era eu, oras!

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Revista Ajedrez 6000

No ano de 1975 conheci a revista chamada Ajedrez Canário, editada pela Caja Insular de Ahorros de Gran Canária, entidade bancária de poupança popular, similar à nossa Caixa Econômica. A partir do número duplo 58-59 (Maio-Junho 1976) a revista passou a se denominar Ajedrez 6000, mudança, ao que parece, feita por exigência da entidade bancária que a patrocinava. A mudança foi anunciada no Editorial do número 57 de abril de 1976: “Por que Ajedrez 6000? Certo ar futurista infunde esse nome uma nova projeção para o futuro. A semelhança com uma famosa caderneta de crédito das Caixas de Poupança Confederadas, expressa o vínculo com uma entidade bancária tradicionalmente protetora do xadrez em todas as províncias espanholas”. Tamanho investimento se explica com um só nome: Pedro Lezcano, diretor da publicação, ele mesmo alto funcionário da Caja Insular de Ahorros. Pedro Lezcano, catalão de nascença – foi um nome de evidência na arte e cultura canarina, poeta, escritor, desenhista, cientista – aos cinco anos de idade aprendeu a jogar xadrez e ainda jovem frequentou o Clube de Xadrez de Barcelona, enfrentando e vencendo os marmanjos. Para que o empreendimento da Ajedrez 6000 não tivesse risco de fracasso, Pedro Lezcano contratou para Diretores Técnicos da revista o Bicampeão Espanhol FM Fernando Visier e o GM dinamarquês Bent Larsen.

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O número inaugural dessa transição coincidiu com a realização do V Gran Torneo Internacional Ciudad de Las Palmas, cujo vencedor foi o GM Efim Geller. Na foto da capa está o próprio Geller jogando uma grande simultânea ao ar livre para crianças e alunos da Capital da Comunidade Autônoma de Canárias. No interior se publica extensa reportagem sobre o torneio, rodada a rodada, partidas comentadas, salões de palestras – um verdadeiro festival de xadrez. Efim Geller fez 10,5 pts/15, seguido por Bent Larsen, 10 pts, Robert Byrne e Robert Hübner com 9,5, Lajos Portisch, Vitaly Czeskovsky e Florin Gheorghiu com 9 pts. Um torneio de peso. O primeiro artigo que mandei para Ajedrez 6000 foi o que vai aqui, intitulado Mecking, despues de Filipinas. Como dá pra notar, Henrique Mecking havia vencido o Interzonal de Manila e era notícia no mundo do xadrez. O artigo saiu originalmente em espanhol, mas fiz a tradução aqui. ☼☼☼☼☼ Mecking, depois de Filipinas Por Salomão Rovedo Revista Ajedrez 6000 Nº 60 - Setembro 1976 Numa demonstração antes só dedicada aos jogadores de futebol, numerosos torcedores e dirigentes brasileiros recepcionaram o GM Henrique Mecking em sua chegada ao Rio de Janeiro, depois de cumprir excelente jornada vencendo o Interzonal de Filipinas, rumo ao título máximo, o Campeonato Mundial de Xadrez. Entre as manchetes e perguntas dos jornalistas, conseguimos algumas apreciações importantes de Mecking: “Apesar de algumas opiniões em contrário, todos consideravam o Interzonal de Filipinas como o mais forte. Tive um bom início na competição fazendo 9 pontos em 11 partidas, depois 10,5 em 13 – já convertido em favorito. A concessão de empates ao final para garantir a classificação é normal. A minha falha na partida com Spassky resultou de alguns erros infantis... Ademais, ainda me esperavam umas boas vitórias, ao contrário de Spassky, que estava tendo uma débil campanha. Subitamente me dei conta que estava numa posição totalmente perdida. Porém logo a conficnça voltou e tudo correu bem”. Mecking teve como maiores rivais a Lev Polugaevsky e Vlastimil Hort. Os outro dois tidos como favoritos, Liubomir Liubojevic e Boris Spassky logo se descolaram das primeiras posições e não foram problemas. “Agora penso em descansar bastante, gozar as delícia das praias do Rio de Janeiro e depois continuar o treinamento. Minha vontade é ver confirmadas as declarações de Karpov, no sentido de que, se eu vencesse em Filipinas,

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certamente seria o desafiante. Agora, que as novas autoridades do xadrez brasileiro me fizeram essa recepção, me conforta o apoio e a tranquilidade necessários para prosseguir”. Eu fui portador de um convite para que Mecking jogasse o match em Las Palmas. Sua palavra é de esperança: “De minha parte são grandes as possibilidades. Deixei ali bons amigos. Não terá problemas se as conversações se encaminharem promissoras. As felicitações que recebi de Don Juan Marrero (*) foram um grande estímulo”. Em seu primeiro mês no Brasil, Mecking tem dado simultâneas e recebido muitos convites para eventos. Os jornais e as emissoras de TV noticiam suas atividades. Só agora o Brasil se dá conta que tem um dos maiores enxadristas do mundo. E já tem desde os treze anos de idade!... (*) Juan Marrero Portugués, Diretor da Caja Insular de Ahorros de Canárias, grande incentivador do xadrez canarino.

☼☼☼☼☼ Adeus a Bent Larsen Procurando notícias sobre o que teria ocorrido com a Revista Ajedrez 6000 quase nada obtive. Mas na página http://ajedrezlapalma.com/ encontrei aquilo que a gente nunca procura. Era a notícia “Adios a Bent Larsen”, assinada por Isidro Cruz, em 14 de setembro de 2010, na seção “Actualidad”, publicava o falecimento do GM dinamarquês, que tinha morado por muitos anos nas Ilhas Canárias e foi o principal Diretor da Revista Ajedrez 6000. Falando de Larsen, Isidro Cruz diz: “La mayoría de los medios lo relacionan con la ciudad Canaria de Las Palmas, donde fijó su residencia y dejó una importante huella o como dice Leontxo García en EL PAIS, del domingo 12 de Septiembre: “Larsen fue uno de los jugadores más brillantes y combativos del siglo XX, y convirtió a Las Palmas de Gran Canaria, donde residió varios años, en una de las capitales del ajedrez mundial”. Por este motivo el ajedrez Canario siempre estará en deuda con él. Descanse en Paz”.

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Revista Caissa

Caissa nº 1

EDITORIAL DE WALDEMAR COSTA

COM A PROTEÇÃO DA DEUSA O xadrez tem ascendência indiana. A mitologia da Índia atribui ao brâmane Sissa a invenção do jogo, a pedido do Rajá Balhait. O fato pode ser lenda, mas é aceito pela maioria dos adeptos. Da Índia o xadrez chegou à Pérsia. Os conquistadores árabes o aprenderam com os persas e, durante o tempo das Cruzadas, o introduziram na Europa. Lá, floresceu e, nos dias de hoje, é o principal esporte de alguns países. No Século XVI o poeta e filósofo italiano Marcus Hieronymus Vida escreveu um poema em latim: Scacchia Ludus. Na sua obra criou a lendária Deusa Caissa, que muitos pensam ser originária da Índia. Vida diz que Caissa é uma ninfa e deusa protetora do jogo de xadrez. Em 1772, o inglês Sir William Jones publicou o poema Caissa tornando-o popular nos meios enxadrísticos. Estamos, com bastante simplicidade, lançando a Revista Caissa. Mas com sua proteção pretendemos progredir. Nossa missão é informar tudo o que acontece no xadrez brasileiro. Facilitar sua atual ascensão e promover uma integração nacional. Ano I

abril de 1978

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EXPEDIENTE CAISSA – REVISTA BRASILEIRA DE XADREZ LTDA. Sede: Av. Churchill, 109 sala 101 – Rio de Janeiro Reg. no Cartório de Pessoas Jurídicas: Nº 49.473 Editor: Waldemar Costa – Reg. Jorn. Prof. Nº 12.399 ASSESSORES: Lina Costa (Administração), Ronald Câmara (FIDE), Helenita Hoffmann (Rel. Públicas), J. B. Cúrcio (CBX), Claude Fisch (Pesquisa) e Jair Motta (Fotografia). COLABORADORES: J. T. Mangini (RJ), F. Salamon (RJ), Salomão Rovedo (RJ), Maia Vinagre (RJ), F. Sonnenfeld (RJ), C. Serrão (RJ), J. Lemos (RJ), J. C. Almeida Soares (RJ), Sérgio Mendonça (RJ), R. Waeger (RJ), Luís Cabral (RJ), Cícero Braga (SP), Júlio Gazola (RS), J. R. Pimenta (MG), Máximo Macedo (RN), Eduardo Asfora (PE), Jorge Kotzias (SC) e Gerd Giebel (SC).

Quando Waldemar Costa fundou a Revista Caissa (1978), como se viu, me botou como colaborador. Eu ajudei no que pude, mas o trabalho respeitável mesmo foi dele, Waldemar Costa, que conseguiu em manter a revista ativa por quatro anos heroicamente, sem apoio financeiro de ninguém. O primeiro número de Caissa trazia as seguintes matérias: Editorial, de Waldemar Costa Open da Esaf, por Helenita Hoffmann Informativo do CXG, por Claude Fisch O Brasil no tabuleiro – noticiário diverso Partidas selecionadas e comentadas por José Thiago Mangini Xadrez Postal, por Maia Vinagre O romântico xadrez de ontem, escrevia J. C. de Almeida Soares Coluna de Luciano Nilo de Andrade Anedotário enxadrístico por Adaílton Chiaradia, de Itajubá-MG, compilação de histórias de xadrez de vários autores. Em Passant, noticiário coletivo e informativo internacional Henrique Maia Vinagre, decano do xadrez brasileiro, nasceu em Barra do Piraí (RJ) e morava em Niterói onde faleceu no ano de 2005 aos 90 anos. Foi treze vezes Campeão do Estado do Rio de Janeiro (1927,

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1938, 1940, 1942, 1943, 1947, 1951, 1952, 1954, 1964, 1965, 1966 e 1970). Após a fusão dos Estados do Rio de Janeiro e Guanabara (1974), o evento passou a se chamar Campeonato de Xadrez do Interior, para manter a independência do Campeonato Estadual. Deixando de lado as partidas ao vivo, Maia Vinagre passou a se dedicar ao xadrez postal. Tornou-se o primeiro Campeão Brasileiro de Xadrez Postal ao vencer o TBI-I promovido pelo CXEB, presidido por Ubirajara Barroso (BA). Certo dia ele telefonou a Waldemar Costa pedindo para desobrigá-lo de escrever a coluna. Waldemar me falou: – Está faltando alguém para tratar de Xadrez Postal, você não quer escrever a coluna? A bomba caiu no meu colo, mas eu segurei firme. Xadrez Postal era o patinho feio da revista, ninguém queria – eu topei. Primeiro comecei assinando “Interino”, na expectativa de que Maia Vinagre se animasse a escrever. Um dia, antes de assumir de vez a coluna de Xadrez Postal peguei a barca, atravessei a baía e fui visitá-lo em Niterói. Em ritual de “passar o bastão” ele se mostrou afável e alegre por se livrar do fardo: quem lê coluna de xadrez, ainda mais de xadrez postal? Fiquei com um cantinho escondido na última página, mas nem por isso deixei de escrever todos os meses. A minha participação divulgando o Xadrez Postal está reproduzida em alguns artigos que consegui recuperar, nas páginas que se seguirão ao texto.

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Flashes do Interzonal Durante todo o Interzonal do Rio de Janeiro 1979, Waldemar Costa manteve a Caissa repleta de informações e noticiário especializado, do qual muitos correspondentes estrangeiros se aproveitavam. Além disso, tinha uma coluna de curiosidades, de flashes, pequenas ocorrências extra torneio, que o próprio Waldemar Costa redigia com a colaboração de alguns „informantes‟... Numa dessas publicações releio a notícia abaixo, que me trouxe algumas recordações: “Logo no início do torneio, dia imediato do abandono do GMI brasileiro Henrique Mecking, o árbitro-geral, o inglês Harry Golombek, ficou muito espantado, e não entendeu nada, quando um rapaz muito alto e gordo invadiu o recinto onde os jogadores disputam as partidas e disse ser o substituto de Mequinho. Tratava-se de Eduardo Maroun, que há muito tempo pegou a mania que é um GMI”. “Depois de ser convidado a se retirar do recinto, Maroun, muito sério e convicto do que fala, explicou ser um dos maiores jogadores do mundo, possuindo jogo perfeito e rating muito alto. Seu sonho é encontrar o Bobby Fischer, a fim de saber quem é o melhor. Maroun já jogou xadrez e ficou completamente descontrolado de tanto se aprofundar nos estudos da universidade”. Eu conheci o Eduardo Maroun e joguei algumas partidas com ele. Lembro-me de que ele participou de alguns torneios internos do CXG. Era um garotão afável, grandalhão, mas meio desconjuntado do normal. Não tinha acessos de violência, apesar da aparência grandalhona. Eu o compreendia e era a mim que escolhia para jogar partidas amistosas. Era um gigante da Patagônia... Arrisco a dizer que teria sido como o Mecking – talvez até no talento – mas acabou derrotado pela imaginação, igual a muitos outros esquisitos que a gente conhece no mundo do xadrez. Esse fato ocorrido, tanto com Maroun quanto com o Mecking, me fez recuar de tomar uma decisão a respeito do meu filho Omar. Explico: lá pelos oito anos de idade ele já tinha aprendido os fundamentos do xadrez e se divertia jogando ping nas muitas vezes que o levei ao CXG. O Luis Loureiro, observando que ele “levava jeito” me disse: – Olha aí, Salomão. Tá na hora de botar o garoto para estudar... Conhecendo a história de Carlos Torre, Paul Morphy, Bob Fischer e muitos outros, me fez refletir sobre a sugestão de Loureiro. Com medo de que acontecesse a meu filho algo assim parecido ao que ocorreu a Mecking,

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com o Maroun – e ainda ocorre a tantas crianças que a gente encontra, quando o aprendizado do xadrez violenta os labirintos da mente, levando as pessoas a caminhos inimagináveis – não levei adiante a ideia. Quem saberá o que teria acontecido?

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Idel Becker e a revista Caissa

Idel Becker

Em um desses artigos comentei sobre os livros necessários a todos os enxadristas, inclusive de xadrez postal. Referi principalmente aos livros “Xadrez Básico”, do MN Orfeu Gilberto D‟Agostini (1922-1995), colunista de xadrez do Diário de São Paulo por mais de 30 anos! Esse livro (lançado em 1954 e atualíssimo), é indispensável para quem quer ter as noções básicas de xadrez. Quando fiz uma viagem ao Pantanal de Matogrosso fui de trem (viagem de 12 horas), acompanhado de um tabuleiro de xadrez imantado, li e estudei o livro inteirinho (se alguém comentar “não adiantou nada”, leva porrada!). As outras referências eram sobre os livros “Manual de Xadrez” (1948) e “Aberturas e Armadilhas no Xadrez” (1969), ambos do professor Idel Becker. Fiquei impressionado com o número de edições desses três volumes, de linguagem simples, por isso mesmo explicativa, de modo a facilitar a compreensão de quem se inicia no xadrez. O “Manual de Xadrez” desde a sua primeira edição em 1948 até hoje está no catálogo da Editora Nobel. O professor Idel Becker também escreveu livros didáticos, um Manual de Espanhol e escrevia colunas de xadrez em jornais paulistanos. Poucos dias depois que a revista Caissa saiu com o artigo, recebi uma carta do professor Idel Becker. “Fiquei estupefato”, disse ele. E discorreu sobre a surpresa que teve ao ler o artigo, também por causa da relevância que eu tinha dado ao livro – coisa que ninguém ainda tinha feito. Foi o início de uma amizade com troca de correspondência contínua. Em reunião da Diretoria do CXG sugeri a realização de um torneio em homenagem a Idel Becker, de pronto aceita. Ato contínuo, informei ao professor, que ficou entusiasmado.

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Pois no dia da primeira rodada do Torneio Homenagem a Idel Becker, quem aparece na porta? O próprio, um velhinho sorridente, simpático. Fez um breve discurso agradecendo a homenagem, tirou fotos, trouxe alguns exemplares de seus livros para serem ofertados, com autógrafo, juntos com a premiação. Foi muito emocionante. A paixão de Idel Becker pelo xadrez se estendia ao problema e ao solucionismo, tendo vencido vários torneios de solução. Sabendo disso escrevi um conto, meio policial meio xadrezístico, dedicado a ele. Chamase “Mate às Cinco”, uma pequena história policial, em que a cena do crime tem um tabuleiro de xadrez, com as peças mostrando a posição de um problema de B. G. Laws. O diagrama formado na cena do crime, uma anotação errada do nome, Laws para Lawyer (Advogado), são as pistas deixadas pela vítima que encaminharão o detetive para solucionar o crime. O Problema era de mate em 5 (#5), eu mudei a ortografia para “mate às 5”, referindo o horário do crime... Era um diagrama simétrico, uma das vertentes muito usadas pelo B. G. Laws – acho que preferia problemas de mate em dois. Infelizmente não consegui achar o conto, que tem o diagrama do problema estampado, com as indicações e os caminhos para a solução da composição. Anda perdido nalgum canto da minha lixeira intelectual, já que aqui em casa ninguém gosta da mania de escrever que carrego como cruz. Mas um dia entre o professor Idel Becker e eu aconteceu um desastre que viria contaminar seriamente a nossa amizade. Ocorre que eu também publicava um jornalzinho de poesia chamado “Po/r/eta” – título que ninguém conseguia interpretar: – é Porta? É Poeta? É Porreta/Poerta? É Poreta? Acontece que um dia fui datilografar a palavra Poeta e o dedo escapuliu e bateu no „r‟, que é vizinho ao „e‟, e batizei o bicho assim com esse nome esquisito... Dediquei um dos números do “Po/r/eta” para divulgar o livro “Poesia Palestina de Combate”. Na introdução fiz referência ao massacre de Sabra e Chatila, campos de refugiados palestinos mantidos no Líbano, sob a tutela do exército israelense, comandado por Ariel Shalon. Mais de 4.500 civis desarmados, crianças, mulheres, adolescentes, idosos, foram vítimas de genocídio, “oficialmente” de parte da milícia cristã libanesa, mas na verdade o crime foi estimulado, permitido e acoitado pelo exército israelense. Esse crime permanece impune até hoje: o Tribunal Internacional sempre faz vista grossa para Israel, USA e Coalizões...

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Bom, um desses exemplares do “Po/r/eta” foi parar nas mãos do professor Idel Becker e ele ficou bravo comigo. Escreveu uma carta me dando um esporro em regra e nunca mais respondeu minha correspondência. É uma pena, mas são terríveis as peças que a religião, a política, coisas imateriais, interraciais, enfim, pregam em nós pobres humanos aspirantes a humanistas – como éramos eu e o professor Idel Becker. O calor da refrega nos faz esquecer que tudo isso passa – é a grandeza de cada um que permanece. O professor Idel Becker muito me ajudou nos artigos que escrevia em espanhol, foi um grande homem que tive o privilégio de conhecer. Mas, eu não tinha a mínima idéia que o professor Idel Becker, embora judeu (ele costumava dizer-me que tinha origem japonesa, por causa do nome – Hideo), fosse reagir tão drasticamente. Tampouco foi a intenção do artigo que escrevi generalizar. Era um caso específico, do qual não me omitirei em tempo algum, mas, enfim, é a vida. O professor Idel Becker nasceu em 1910 e faleceu em São Paulo, a 12 de junho de 1994, considerado o dia do enxadrista.

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“A prática de xadrez postal, basicamente, não pode prescindir de publicações sobre o tema: livros, revistas, boletins. Essa é justamente uma área abandonada pelos editores brasileiros, não se sabe por qual maldita razão, já que livros e revistas de xadrez vendem bastante. Em princípio creio que sobrevive no meio editorial (e em consequência no meio consumidor) aquela má fama que tem os produtos nacionais: “o que é brasileiro não presta”. Contrariando tudo isso, por esforço único de seu autor, diga-se de passagem, os livros “Aberturas e armadilhas no xadrez” e “Manual de xadrez”, vêm sendo seguidamente reeditados, estando ambos em 9ª e 15ª edição (!), respectivamente.¹ E quem é o autor desses livros? Algum GMI? Algum MI? Algum Mestre Nacional ou ex-campeão Brasileiro? Não. O professor Idel Becker é apenas um aficionado do xadrez, um apaixonado pela arte de Caissa que, apesar de ocupar um lugar secundário em seu modus vivendi, certamente trouxe-lhe mais paixões do que quaisquer outras atividades (e são tantas!). O Professor Idel Becker é filólogo e catedrático na USP e tem um currículo literário e científico abrangente. No xadrez, mantém constante contato com mestres e aficionados de diversos países. Tem uma biblioteca enxadrística ambicionada e desejada por muitos, e prima por manter suas “meninas dos olhos” [os livros acima citados] permanentemente atualizadas a cada nova edição. Assim é que recentemente o Professor Idel Becker lançou, em apêndice à 15ª edição do seu “Manual de Xadrez”, o opúsculo “Defesa Indiana do Rei – Uma partida que a morte interrompeu” ² com comentários especiais dos GMI Miguel Najdorf e Lothar Schmid, do MI Herman Claudius van Riemsdijk e transcrições de mais 18 autores. Uma apresentação gráfica primorosa, como habitualmente ocorre com os trabalhos do Professor Idel Becker, completa a qualidade dessa obra.

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Quem gosta de fugir dos escaques para uma leitura amena pode solicitar-lhe a remessa de “Humor e Humorismo”, coletânea de poesia satírica, saída há algum tempo, mas que continua atualíssima. O endereço do Professor Idel Becker é: Rua General Vitorino Monteiro – CEP 05053 – São Paulo, SP”. ¹ Não sei se a Editora Nobel continua publicando esses dois títulos. A última informação que obtive é que em 2002 o “Manual de Xadrez” estava em sua 22ª edição e “Aberturas” teve a sua 16ª edição publicada no ano de 1995. A datação dos livros, no entanto, é apenas um dos dados que as editoras sonegam, escondendo também as novas edições sob o título “Reimpressão”. ² Trata-se de uma partida jogada por seu filho Eduardo Becker, também aficionado do xadrez postal, morto prematuramente. A partida referida estava em andamento quando foi interrompida pela sua morte trágica. Antes de publicar o opúsculo em memória do filho, o Professor Idel Becker pediu a alguns amigos – aos quais se uniam Miguel Najdorf, Lothar Schmid e Herman Claudius van Riemsdijk, entre outros – que fizessem a análise comentada da partida. A perda do filho abalou profundamente a vida de Idel Becker que, ao que parece, já estava viúvo na época. Essa dor ficou expressa na dedicatória constante a partir da 15ª edição de “Manual de Xadrez”, de 1990 (Reimpressão de 2004): “À memória de meu amado e inesquecível filho Eduardo Becker, a quem tanto devo, que era meu orgulho, minha luz e meu amparo, morto em 21 de outubro de 1976, aos 25 anos de idade”.

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Iconografia

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PUBLICAÇÕES DA REVISTA CAISSA

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BOLETINS DO CLUBE DE XADREZ GUANABARA

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