DO RELACIONAMENTO COM A HONESTIDADE

June 30, 2017 | Autor: Jorge Leal | Categoría: Methodology, Painting, Drawing, Work Ethic, Thinking Through Practice, Thinking Through Drawing
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DO RELACIONAMENTO COM A HONESTIDADE

Na exposição Without Drawing a Day Is Lost, que apresentei na Mute em Lisboa (entre Fevereiro e Março de 2015), mostrei cerca de 22 anos de diários gráficos. A opção de montagem consistiu em montar cerca de 80 cadernos abertos numa determinada página presos à parede por 4 escápulas. Esta opção curatorial não previa o manuseamento por considerar que, desse modo, se introduzia um desgaste material imprevisível e desnecessário para além de uma interacção que anularia a escolha dos desenhos apresentados. Durante e após a exposição perguntaram-me se os cadernos estavam realmente preenchidos com desenhos em todas as folhas. O conceito de falsidade associado à possibilidade de que a exposição dos diários gráficos pudesse constituir uma encenação é-me repulsivo. Seria desonesto propor a exibição de diários que não correspondessem a uma forma de verdade, neste caso, do meu modo de operar, ou seja, o do meu relacionamento íntimo com o acto de desenhar. Ao perguntarem-me se os cadernos estavam cheios assumiam a possibilidade de que o âmbito da acção da arte fosse a da encenação e da falsidade. Isto para mim é paradoxal uma vez que assumo o meu trabalho como uma relação de verdade, quer na relação com os temas que selecciono e trabalho, quer no modo como os apresento. Um diário gráfico é um registo honesto à partida; falseá-lo constituiria um paradoxo.

Esta minha relação com a honestidade está presente igualmente no abandono do projector digital como ferramenta de mediação entre a imagem de partida e a pintura. Estou consciente da tradição histórica de ajudas ópticas como método de trabalho, no entanto, pareceu-me útil abandonar esta prática por me ajudar a ter um resultado final menos padronizado. Desagradava-me igualmente a ideia de perder as capacidades de representação através da observação directa e estar dependente de um mediador que ia, lentamente, tornando-me manualmente menos hábil. Cruzo-me diariamente com pessoas que não conhecem o modo de produção de uma pintura ou desenho, que dão créditos imerecidos a trabalhos que são pouco mais do que versões de imagens preexistentes copiadas a partir de uma projecção. Por estes motivos alterei, ao longo dos últimos anos, o processo e o meu próprio trabalho. Neste momento, interessa-me a possibilidade de introdução de incorrecções como forma de humanização do trabalho e comunicação visual franca com o público. Isto tornou-se possível ao trazer para o campo da pintura os diferentes tipos de ocorrências presentes nos diários gráficos: desenhos sumários e incorrectos, apontamentos incompletos, registos ocasionais, frases escritas como projectos improváveis ou confissões que têm o 1

potencial de funcionar como públicas. A pintura transformou-se em desenho, privilegiando a presença da linha em detrimento da cor, de modo a poder incorporar directamente o trabalho dos diários gráficos, que antes eram privados e estéreis porque não viviam para além deles próprios. O processo tornou-se orgânico em todas as suas fases uma vez que deixou de haver uma separação conceptual entre elas. Tudo passa a ser desenho independentemente do suporte ou material, numa transparência absoluta.

A honestidade reside também em integrar no trabalho os temas que me interessam quotidianamente fora da acção artística. Estou cada vez mais interessado em fazer a ponte entre a vida e a arte, de modo a que o observador se sinta participante dessa minha tentativa de comunicar a um nível pessoal e visual. Tenho-me apercebido que há um conjunto de temas que tenho tratado e que continuarão a fazer parte do meu projecto artístico: animais e plantas, paisagem, espaços e arquitecturas e o que se passou nesses territórios privados, sexo e pornografia, ausência de narrativa, corpos em repouso, reflexos e sombras, texto e palavra, vinho e comida. Nesse sentido todo o meu trabalho se tem tornado progressivamente biográfico mesmo quando os temas não descrevem eventos pessoais. O facto de escolher determinada imagem para trabalhar define a minha intenção de tornar essa imagem integrante do meu percurso pessoal e profissional. A acção artística consiste em encontrar uma verdade individual que faça sentido como estratégia de trabalho. Ser honesto na apresentação do trabalho como demonstração de respeito para quem vê é importante na relação duradoura que se pretende estabelecer com uma audiência que se ambiciona crescente. Ser artista implica ser responsável pelo legado material e intelectual disponibilizado tendo em conta a possível assimilação e apropriação pelos outros.

A honestidade do trabalho de um artista está intimamente relacionada com a sinceridade e a autocrítica. Sempre que destruo um trabalho estou a exercer o meu dever ético de apenas permitir, mesmo que com falhas, que os melhores sobrevivam. O facto de fazer essa selecção torna mais elástica a minha capacidade de autoavaliação e de entendimento do valor artístico de cada trabalho. Este processo de higienização do conjunto do meu trabalho ocorreu progressivamente e é dinâmico, uma vez que actua na produção actual do atelier e revisita periodicamente trabalhos do acervo, no sentido de confirmar as decisões anteriores. Ouvir o que me dizem sobre o meu trabalho ajuda-me a corrigir e confirmar as minhas opções. A autoria só tem interesse se for suficientemente permeável a sugestões exteriores, uma vez que apenas desse modo se encontra um sentido para o trabalho que se faz. Não me refiro 2

aqui a querer agradar a todo o custo a todos os públicos, refiro-me antes a uma relação ambivalente entre aceitação e recusa de informação trocada com quem visita o atelier ou as exposições. Esta colaboração informal depende de um equilíbrio entre a minha receptividade crítica e o respeito pela validade das opiniões de terceiros. A minha feroz independência e obstinação é capaz de encontrar nas contribuições dos outros uma clarificação para determinados problemas que, de outro modo, demorariam anos a resolver.

Quando uma exposição é apresentada, apenas o trabalho interessa. Não há texto ou outro tipo de legitimação que salvem um trabalho desonesto. O acto de expor importa, porque nos retira o conforto do atelier e nos permite ver o trabalho num contexto que lhe expõe as fragilidades e o seu valor intrínseco. O trabalho no espaço de uma galeria, museu ou casa de coleccionador assume o seu papel de objecto concentrador de atenção e tem de sobreviver a essa centralização do olhar. Ao longo do tempo tem de manter essa capacidade de captar a atenção, de se renovar a cada vez que é observado. A importância de um trabalho é evidenciada pela sua longevidade, pela sua capacidade de continuar a atrair o olhar. Esse é o verdadeiro teste de um trabalho: manter-se vivo e continuar a gerar curiosidade sobre a sua proposta. Isto apenas é conseguido com um trabalho que materialize uma postura de honestidade pessoal e com o que acontece no atelier. Esse é o desafio ético que tento superar todos os dias.

Jorge Leal Lisboa, Setembro de 2015

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