Direto Complexo

June 14, 2017 | Autor: A. Martins Gomes | Categoría: Complexity
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Descripción

ISSN 1808-6470

THEMIS REVISTA DA ESMEC VOL. 10 - 2012

Publicação Oficial da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará – ESMEC

Themis | Fortaleza | v. 10 | 2012 | Publicação: 2014

Pede-se que acusem o recebimento deste volume. Rogamus ut acceptionem nunties. Se ruego acusar recibo dei presente numero. Con preghiera di accusare ricevuta dei presente numero. On prie de vouloir accuser reception de cette revue. Please acknowledge receipt of this exemplar. Bitte, den Empfang dieser Zeitchrift zu beschinigen. Oni peats konfirmi la ricevon.

THEMIS: Revista da ESMEC / Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará. Fortaleza. v.1, n.1, 1997 v. 10, 2014 Anual A partir do volume 9 com periodicidade anual.

ISSN 1808-6470

1. Doutrina. 2. Jurisprudência. I. Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará - ESMEC CDDir: 340.05

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Copyright © THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará Organizadores: Antonio Carlos Pinheiro Klein Filho Maria de Fátima Neves da Silva Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO CEARÁ. A reprodução, de qualquer parte desta publicação, será permitida desde que citada a obra. Reproduções para fins comerciais são proibidas. Disponível também em: http://www.tjce.jus.br Conselho Editorial Desa. Sérgia Maria Mendonça Miranda - Presidenta Des. Carlos Alberto Mendes Forte Des. Jucid Peixoto do Amaral Dr. Aluisio Gurgel do Amaral Júnior Dr. Francisco Martônio Pontes de Vasconcelos Editor Responsável Mailu de Oliveira Franco Alvarenga Revisão Gramatical e Metodológica Maria de Fátima Neves da Silva Arte da Capa, Diagramação e Editoração Hugo Leonardo Guedes Monteiro Impressão e Produção Departamento Editorial e Gráfico do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará Normalização Bibliotecária: Ismênia Souto de Araújo Andrade CRB-3/834 Divisão de Biblioteca do Departamento de Gestão de Documentos

Endereços Tribunal de Justiça do Estado do Ceará Centro Administrativo Governador Virgílio Távora Avenida General Afonso Albuquerque de Lima S/N Cambeba - Fortaleza - CE - CEP: 60.822-325 Fone: (85) 3207.7000 www.tjce.jus.br Email: [email protected] [email protected]

ESCOLA SUPERIOR DA MAGISTRATURA DO ESTADO DO CEARÁ Edifício Desembargador Júlio Carlos de Miranda Bezerra Rua Ramires Maranhão do Vale, nº 70, Água Fria CEP 60.811-670 - Fortaleza, Ceará, Brasil Telefone (85) 3492.9100/9114 e-mail: [email protected] www.tjce.jus.br/esmec

DIREÇÃO Desembargador Haroldo Correia de Oliveira Máximo COORDENAÇÃO Juiz Antonio Carlos Pinheiro Klein Filho EDITORA CHEFE Desembargadora Sérgia Maria Mendonça Miranda ORGANIZAÇÃO Antonio Carlos Pinheiro Klein Filho Maria de Fátima Neves da Silva REVISÃO Maria de Fátima Neves da Silva

CONSELHO EDITORIAL César Oliveira de Barros Leal – PPHD, UFSC; Dimas Macedo – Livre Docente, UVA; Fernando Luiz Ximenes Rocha, Me., UFC; Flávio José Moreira Gonçalves - Me., UFC; Francisco de Assis Filgueiras Mendes – Me., UFC; Francisco Luciano Lima Rodrigues – PPHD, Universidade de Lisboa; Hugo de Brito Machado – Dr., UFPE; José Filomeno de Moraes Filho – Livre Docente, UECE; Mário Parente Teófilo Neto – Me., UFC; Napoleão Nunes Maia Filho – Livre Docente, UVA; Valmir Pontes Filho – Me., PUC/SP.

CONSELHO CONSULTIVO Ademar Mendes Bezerra, Alberto Silva Franco, Antonio Carlos Pinheiro Klein Filho, Antônio de Pádua Ribeiro, César Asfor Rocha, Durval Aires Filho, Ernando Uchoa Lima, Haroldo Correia de Oliveira Máximo, João Byron de Figueiredo Frota, Marco Aurélio Farias de Mello, Paulo Bonavides, Silvio Braz Peixoto da Silva.

PARECERISTAS CONVIDADOS Me. Adriana Paiva Vasconcelos – PUC/SP Me. Amanda Queiroz Sierra - FAECE/FAFOR Me. Ana Cristina Batista Luz – Estácio/FIC Ms. Alisson do Valle Simeão - Faculdade Luciano Feijão/Sobral/CE Me. Emília Lopes – Centro Universitário Estácio- Fic do Ceará Esp. Juarez Gomes Nunes Júnior – Escola de Gestão Pública do Ceará (EGP) Me. Lidiane Moura Lopes – Universidade Federal do Pará (UFPA) Ms. Marcelo Leandro Pereira Lopes – Universidade Federal do Piauí Ms. Mário Parente Teófilo Neto – UNIFOR Me. Mércia Cardoso de Souza – UNIFOR Me. Wagneriana Lima Temoteo Camurça - UNIFOR Dr. Raimundo Hélio Leite - UFC

LINHA EDITORIAL A revista publicará artigos selecionados pelo sistema duplo cego, dentro da principal linha de pesquisa “Justiça, Gestão Pública e Direitos Humanos”, bem como artigos e ou monografias oriundos de concursos realizados pela ESMEC ou de interesse desta Escola.

Tiragem: 300 exemplares impressos 100 CD-ROM

COMPOSIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO CEARÁ Presidente Des. Luiz Gerardo de Pontes Brígido Vice-Presidente Des. Francisco Lincoln Araújo e Silva Corregedor Geral da Justiça Des. Francisco Sales Neto TRIBUNAL PLENO Des. Luiz Gerardo de Pontes Brígido - Presidente Des. Fernando Luiz Ximenes Rocha Des. Rômulo Moreira de Deus Desa. Maria Iracema Martins do Vale Des. Antônio Abelardo Benevides Moraes Des. Francisco de Assis Filgueira Mendes Des. Francisco Lincoln Araújo e Silva Des. Francisco Sales Neto Desa. Maria Nailde Pinheiro Nogueira Des. Haroldo Correia de Oliveira Máximo Des. Francisco Pedrosa Teixeira Desa. Vera Lúcia Correia Lima Des. Clécio Aguiar de Magalhães Des. Francisco Barbosa Filho Des. Paulo Camelo Timbó Des. Emanuel Leite Albuquerque Desa. Sérgia Maria Mendonça Miranda Des. Jucid Peixoto do Amaral Des. Paulo Francisco Banhos Ponte Desa. Francisca Adelineide Viana Des. Durval Aires Filho Des. Francisco Gladyson Pontes Des. Francisco Darival Beserra Primo Des. Francisco Bezerra Cavalcante Des. Inácio de Alencar Cortez Neto Des. Washington Luis Bezerra de Araújo Des. Carlos Alberto Mendes Forte

Des. Teodoro Silva Santos Des. Carlos Rodrigues Feitosa Desa. Maria Iraneide Moura Silva Des. Luiz Evaldo Gonçalves Leite Des. Francisco Gomes de Moura Desa. Maria Vilauba Fausto Lopes Desa. Maria Gladys Lima Vieira Desa. Lisete de Sousa Gadelha Des.Raimundo Nonato Silva Santos Des. Paulo Airton Albuquerque Filho Desa. Maria Edna Martins Des. Mário Parente Teófilo Neto Desa. Tereze Neumann Duarte Chaves Des. José Tarcílio Souza da Silva

RELAÇÃO DOS DIRETORES E COORDENADORES DA ESCOLA SUPERIOR DA MAGISTRATURA DO ESTADO DO CEARÁ (ESMEC) Diretor Atual: Des. Haroldo Correia de Oliveira Máximo Ex-Diretores: Des. Francisco Lincoln Araújo e Silva (2011-2012) Des. Raimundo Eymard Ribeiro de Amoreira (2009-2010) Des. João Byron de Figueiredo Frota (2007 - 2008) Des. Ademar Mendes Bezerra (2005-2006) Des. Francisco Hugo Alencar Furtado (2005) Des. José Claúdio Nogueira Carneiro (2003-2004) Desa. Gizela Nunes da Costa (2001-2002) Des. Raimundo Bastos de Oliveira (1999-2000) Des. Fernando Luiz Ximenes Rocha (1997-1998) Des. Francisco Haroldo Rodrigues de Albuquerque (1995-1996) Des. José Maria de Melo (1993-1994) Des. Ernani Barreira Porto (1991-1992) Des. Julio Carlos de Miranda Bezerra (1987-1990) Coordenador Atual: Juiz Antonio Carlos Pinheiro Klein Filho Ex-Coordenadores Juiz Emilio de Medeiros Viana (2011-2012) Juiz Durval Aires Filho (2009-2010) Juíza Sérgia Maria Mendonça Miranda (2009) Juiz Washington Luís Bezerra de Araújo (2007-2008) Juiz Haroldo Correia de Oliveira Máximo (2007) Juiz Marcelo Roseno de Oliveira (2006-2007) Juiz Roberto Jorge Feitosa de Carvalho (2005) Juiz Mantovanni Colares Cavalcante (2003-2004) Juiz Francisco Luciano Lima Rodrigues (2001-2002) Juiz Francisco de Assis Filgueira Mendes (1988-2000)

SUMÁRIO Direito Complexo: Sobre as Possibilidades de uma Epistemologia Complexa para a Ciência Jurídica ................................................................................................ 15/43 Anderson Martins Gomes

Uma Análise Crítica da Relativização da Coisa Julgada nas Lides Previdenciárias .................................................................................................................... 45/69 Artur Emílio de Carvalho Pinto

Willis Filho e o Estado de Direito ..................................................................... 71/83 Dimas Macedo

Do Crátilo de Platão ao Ideário de Frege: Uma Contribuição para a Hermenêutica Jurídica Atual ..................................................................................................... 85/101 Durval Aires Filho

Terrorismo e Direito ....................................................................................... 103/117 Gizela Nunes da Costa José Edmar da Silva Ribeiro

Construcionismo e Inovação Pedagógica: Uma Visão Crítica das Concepções de Papert sobre o uso da Tecnologia Computacional na Aprendizagem da Criança . ............................................................................................................ 119/138 José de Anchieta Silveira

Considerações Sobre o Direito Eleitoral Brasileiro .................................... 139/157 Júlio César Martins Filho

Reflexões Sobre a Atuação do CNJ na Relação com o Executivo e o Legislativo . ....................................................................................................... 159/174 Leonel Gois Lima Oliveira

A Usucapião Conjugal como Reconhecimento da Função Social da Propriedade e sua Recepção no Direito Comparado ........................................................ 175/213 Maria Marleide Maciel Queiroz

Da Necessidade de Proporcionalidade ......................................................... 215/239 Rafael Barros Pires

Diretas Já, no Poder Judiciário: A Democratização da Justiça .................. 241/257 Raimundo Nonato Silva Santos Pablo Freire Romão

A Concepção de Família em John Rawls e Hegel: Um Breve Cotejo a Partir dos Textos Justiça como Equidade e Princípios de Filosofia do Direito ......... 259/273 Ruama de Almeida Barreira Edilson Baltazar B. Júnior

O Valor do Depósito Prévio na Imissão Provisória na Posse na Desapropriação: Uma Visão do Instituto à Luz do Princípio da Supremacia do Interesse Público .............................................................................................................. 275/288 Saulo Gonçalves Santos

Sobre Reconvenção, Pedido Contraposto e Ações Dúplices no Novo Sistema de Processo Civil . ................................................................................................. 289/307 Telga Persivo Pontes de Andrade

A Releitura do Mandado de Injunção pelo Supremo Tribunal Federal ... 309/327 Karine Goiana Santos

Adoção: Operadores do Direito e Procedimentos ...................................... 329/384 Wanderval Tavares de Souza

Ditadura, Anistia, Memória e Perdão: A Batalha Entre os que não Querem Lembrar e os que não Podem Esquecer ....................................................... 385/399 Zuenir de Oliveira Neves

DIREITO COMPLEXO: SOBRE AS POSSIBILIDADES DE UMA EPISTEMOLOGIA COMPLEXA PARA A CIÊNCIA JURÍDICA Anderson Martins Gomes

Servidor público federal. Bacharel em Ciências da Computação pela Universidade Federal do Ceará (UFC); graduando do curso de Direito na mesma universidade. Membro do Grupo Transdisciplinar de Estudos Interinstitucionais (G-TEIA) e coordenador discente do Grupo Transdisciplinar de Estudos Interinstitucionais em Argumentação e Filosofia do Direito (G-TEIAFIL)

“Não há nada simples na natureza, só há o simplificado” (Gaston Bachelard). RESUMO: A ideologia do Direito como uma estrutura rígida de normas hierarquicamente compostas ainda impera nos autos. Isso vai na contramão das necessidades do mundo globalizado, transcultural e interconectado no qual vivemos. Tão notório é o fato de que a pirâmide há muito não nos atende, que a Justiça agoniza a cada golpe da hermenêutica matematizada ensinada na academia. Lá fora, a realidade nua e crua continua em seu infinito movimento de reinvenção, de transformação, inerte às tentativas de enclausurá-la em geometrias unidimensionais. Diante de tal impasse, só nos resta a alternativa de enfrentar a complexidade do real, buscando uma nova estrutura epistemológica que permita a ciência jurídica avançar e finalmente entrar no século XXI. Neste contexto, surge a Teoria da Complexidade, que busca uma compreensão de uma realidade plural, construída e reconstruída dinamicamente, a cada iteração de seus elementos constituintes. Palavras-Chave: Teoria da Complexidade, Epistemologia Jurídica, PósPositivismo, Transdisciplinaridade, Teoria dos Sistemas. ABSTRACT: The ideology of the Law as a rigid structure of hierarchically standards still reigns in legal cases, so oblivious to the needs of the current globalized world, cross-cultural and interconnected. As the pyramid does not meet us, the Justice agonizes every blow of hermeneutics mathematized taught at the academy. Outside, the stark reality is still in its infinite movement of reinvention, transformation, inert to attempted encloses it in one-dimensional geometries. Faced with this impasse, we are left with the alternative of facing the complexity of reality, seeking a new epistemological framework to allow legal science forward and finally enter the twenty-first century. 15

THEMIS Keywords: Complexity Theory, Transdisciplinarity, Systems Theory.

Legal

Epistemology,

Post-Positivism,

INTRODUÇÃO A consolidação do modelo clássico de ciência, no estudo do Direito, produziu um inegável avanço racional e sistemático dos institutos jurídicos. O chamado juspositivismo foi fundamental, no contexto do século XIX, para superação do jusnaturalismo como paradigma filosófico do Direito preponderante no ocidente. Todavia, o modelo formalista e autossuficiente aplicado por Kelsen na ciência do Direito possui limitações que se mostraram evidentes, na medida em que foi possível sua utilização por regimes autoritários de diversos matizes. Assim, o Segundo Pós-Guerra ensejou uma reaproximação entre Direito, ética, justiça, legitimidade; principalmente através do movimento neoconstitucionalista - que fomentou a normatividade dos princípios. O problema é que tal “reaproximação”, no mínimo, não está ocorrendo na velocidade necessária. Na verdade, podemos ser mais ousados (ou seria realistas?) e mesmo dizer que as perspectivas não são nada boas. Basta, para isso, observarmos que as iniciativas de efetivação de direitos vividas através de “declarações universais” sucumbem a interesses diversos. Servem mais como artefatos político-retóricos do que como garantias, realmente efetivas, dentro de um ordenamento jurídico. Nesse ponto, somos doutrinados a pensar que isso é um problema fundamentalmente político. Todavia, seria o Direito inerte à Política? É possível a Política sem o Direito? O pequeno exemplo acima foca nossa visão em um grande e problemático iceberg. Acima da linha d’água, a ponta nos demonstra um incômodo recorrente com o fracasso da autossuficiência do Direito; com sua “briga” com a Ética e com a Filosofia; com sua fragilidade frente ao acaso, ao inesperado, ao erro. Imersos, os outros 90%. E neles, a profunda necessidade de mudança. Mudança na forma de pensar, nas bases de nossa forma de fazer ciência, de enxergar o mundo. Essa necessidade de mudança da ciência jurídica é cada vez mais observada: A ciência jurídica foi amplamente influenciada pela lógica cartesiana, influência notada principalmente pelo legado juspositivista representado pelo pensamento kelseniano. No entanto, o modelo positivista de Direito não encontra mais, nos tempos atuais, recepção clara e evidente. Vivemos, assim, em um tempo denominado apenas de “pós-positivismo”. Nem jusnaturalismo, nem juspositivismo, o 16

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que parece restar é um vácuo de paradigma dominante denotando a necessidade de repensar a racionalidade da decisão judicial, para contemplar a complexidade dos problemas e conflitos que o Direito contemporâneo se propõe a resolver (PIRES, on line).

Passear brevemente por esse “grande e problemático iceberg”, sob as luzes da Teoria da Complexidade, é a intenção deste artigo. Os “10% de cima” são, obviamente, mais visíveis, relativamente de mais fácil exploração. Já a parte de baixo...essa exigirá muitos e diversos artigos ainda. Ouso dizer que, inevitavelmente, cada vez mais estudiosos se debruçarão sobre as ideias da Teoria da Complexidade, aplicando-as nos diversos prismas da realidade. 1 NOSSA CIÊNCIA A ciência ocidental moderna nasceu em meio ao turbilhão de transformações próprios do processo de desfazimento da sociedade feudal. Em tal contexto, a Igreja Católica sofreu o duro golpe da Reforma, que desencadeou a quebra do paradigma teocêntrico então vigente. “Num mundo fragmentado, sem um centro de referência, o pensamento ocidental agarra-se à razão como o último refúgio” (ZILLES, 2006, p. 126). Assim, coube à razão a função de reordenar o mundo, sendo a matemática o grande modelo de racionalismo. René Descartes iniciou, então, a “corrida pelo método”. A ideia era simples: um método “seguro” garantiria a verdade, evitando o erro - a maior preocupação dos modernos. “Método seguro” significa, nesse contexto, uma validação da ciência pela ciência. Ou seja, como a matemática era o alfabeto de Deus1 nada mais natural do que o fundamento de validade da ciência ser definido, em sentido estrito, pela própria ciência. Com tal matematização da vida, iniciou-se o empreendimento da verdade primeira. Caberia à ciência o papel de descobridora do “princípio do qual se deduzam todas as demais verdades” (idem, 2006, p. 143). O método garantiria, por ele mesmo, a validade daquele conhecimento. Essa autossuficiência influenciou diretamente diversas correntes teóricas que sucederam o cartesianismo - por exemplo, o positivismo de Comte. A confiança ilimitada nas luzes da razão constitui-se, pelo menos até a 2ª metade do século XX, numa mentalidade difusa, um estado de espírito comum a muitos pensadores. Deste estado de espírito nasceu a exigência de construir uma religião, uma moral e um direito dentro dos limites da razão pura. É a tentativa frustrada 17

THEMIS de reduzir o homem à razão instrumental, entronizando a deusa ‘Razão’. Reconhecer a importância indiscutível da razão certamente não significa endeusá-la (idem, 2006, p. 143).

O racionalismo extremado cartesiano generalizou-se como a forma padrão de se fazer ciência. Daí em diante, cada setor do conhecimento iniciou uma viagem solitária em busca de sua verdade. Com objeto e método rigorosamente definidos, iniciou-se um processo que culminaria com a hiperespecialização dos saberes. Poços profundos e incomunicáveis de conhecimento que não se interligam foram fomentados. Saber quase tudo sobre quase nada passou a ser a lei motriz nas universidades e centros de pesquisas. Neste ponto, saltam à minha mente as cenas do filme “Tempos Modernos”, de Chaplin. A referência, longe de ser desproposital, dá-se pela obsessão pela produtividade, tão bem caracterizada no filme. O fim - ou seja, o homem - transforma-se em meio, mesmo que isso seja eticamente questionável. Nessa “filosofia”, o mais importante é que os resultados sejam obtidos, não importando, muitas vezes, as consequências. 2

Da mesma forma que Chaplin apertava parafusos alienadamente quase que esquizofrenicamente - cada ramo da árvore Ciência procurou seu desenvolvimento autossuficiente e autovalidável, de maneira irresponsável, alheia às consequências. Partiu-se deliberadamente o todo em partes, colocou-se cada parte em linhas de produção, nas quais cientistas faziam seu trabalho sem a noção ética de suas implicações. Edgar Morin chama esse cenário epistemológico de “patologia do pensamento”: 18

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A antiga patologia do pensamento dava uma vida independente aos mitos e aos deuses que criava. A patologia moderna da mente está na hipersimplificação que não deixa ver a complexidade do real. A doença da teoria está no doutrinarismo e no dogmatismo, que fecham a teoria nela mesma e a enrijecem. A patologia da razão é a racionalização que encerra o real num sistema de ideias coerente, mas parcial e unilateral, e que não sabe que uma parte do real é irracionalizável, nem que a racionalidade tem por missão dialogar com o irracionalizável (MORIN, 2007, p. 15).

Chegamos, então, às primeiras atrações da “parte de cima do iceberg”: 1.1 A “não-reflexão”, a hipersimplificação e a superespecialização [...]sabemos cada vez mais que o progresso científico produz potencialidades tanto subjugadoras ou mortais quanto benéficas. Desde a longínqua Hiroxima, sabemos que a energia atômica significa potencialidade suicida para a humanidade; sabemos que, mesmo pacífica, ela comporta perigos não só biológicos, mas, também e sobretudo, sociais e políticos (MORIN, 2007, p. 18). 3

Pensem nas crianças mudas, telapáticas Pensem nas meninas cegas, inexatas Pensem nas mulheres rotas, alteradas Pensem nas feridas como rosas cálidas Mas só não se esqueça da rosa, da rosa Da rosa de Hiroxima, rosa hereditária A rosa radioativa estúpida e inválida A rosa com cirrose a anti-rosa atômica Sem cor sem perfume sem rosa, sem nada4

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THEMIS Proponho ao leitor um exercício simples: leia o poema acima, de nosso querido poetinha, ouvindo a mesma letra em forma de música5 e, simultaneamente, observe as imagens relacionadas aos famosos ataques às cidades de Hiroshima e Nagasaki, durante a 2ª Grande Guerra. O que eu quero com isso? Conexão! Conexão através da arte; arte que consegue, há milênios, unir pessoas em torno de sentimentos comuns. Isso é ciência? No sentido tradicional do termo, a resposta é um nítido NÃO. E aqui consigo o gancho ideal para explorarmos nossa primeira atração do frígido iceberg no qual resolvemos passear. A arte consegue, por vezes, sintetizar em uma imagem, em uma música, em um poema, incontáveis páginas de teorias racionais. A essência humana tem como alicerce múltiplos pilares, dos quais, apenas um deles é a razão. Estabelecer como critério de verdade última e incontestável o pilar racionalista, de maneira a priori, é, no mínimo, muito arriscado. O próprio exemplo histórico da bomba atômica - e suas potencialidades dicotômicas - nos remete à ideia de que a ciência, da forma como é feita hoje, nunca foi, nem será, um critério de explicação/ compreensão suficiente, em todos os casos. Mesmo se considerarmos a razão como o critério mais razoável, temos que nos perguntar sobre qual razão estamos falando. A ciência clássica - com toda sua pretensão de autovalidação - utiliza uma “razão fechada”, instrumental, que tenta, a todo custo, adaptar a realidade a ela. Ou seja, a ferramenta (razão) passa a ser o fim. Trazendo as ideias de Morin sobre o tema: Esta última [racionalização] é lógica fechada e desmentidora, que julga poder aplicar-se ao real; quando o real se recusa a aplicar-se a essa lógica, é negado ou então submetido a ferros para que obedeça: é o sistema do campo de concentração. A racionalização, apesar de desmentidora, tem os mesmos ingredientes que a razão. A única diferença é que a razão deve estar aberta e aceita, e reconhece, no universo, a presença do não racionalizável, ou seja, o desconhecido ou o mistério. Vimos - e, aliás, é um belo tema, salientado por Adorno e Horkheimer - desde o século 18, processos de autodestruição da razão. A razão enlouquece não por algum fator externo, mas por algum fator interno, e eu diria que a verdadeira racionalidade se manifesta na luta contra a racionalização (idem, 2007, p. 112).

A desvalorização dos saberes ditos “não-científicos” - como a arte e a filosofia, por exemplo - aliada com o uso da “razão fechada” ensejaram, então, o desenvolvimento de uma sociedade doente, que não consegue olhar para si mesma. Sem a reflexão, ficamos perdidos em meio à espiral negativa de problemas 20

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que caracteriza nosso mundo. Além disso - e esta talvez seja a consequência mais grave - aniquila-se o indivíduo, reservando-se a ele praticamente um único papel: o de consumidor. A própria ciência buscou se isolar desses outros saberes. Na verdade, isso se tornou condição sine qua non para o método científico. Com sua camada de valência totalmente preenchida, o saber científico intitulou-se autossuficiente e “dono” da verdade. Isolada, não pode se combinar com os outros elementos. Sem poder se combinar, acaba representando nossa realidade de uma maneira bastante limitada, reducionista. Enfim, sabemos que somos seres, indivíduos, sujeitos, e que essas realidades existenciais são centrais, não redutíveis. Enquanto na visão econocrática ou tecnocrática o fator humano é a pequena irracionalidade que tem de ser integrada para funcionalizar os rendimentos, é preciso integrar, pelo contrário, o fator econômico e técnico na realidade multidimensional, que é biossocioantropológica (ibidem).

Tal isolamento foi intensificado, no Pós-Guerra, pela sociedade tecnocrata e industrial que construímos. A polarização com o modelo soviético ensejou, cada vez mais, preocupações com a produtividade, com a eficiência, a qualquer custo. Assim, nosso mundo passou, cada vez mais e mais, a seguir uma única equação fundamental: Lucro = Ganhos - Gastos Sob a insígnia da liberdade, abre-se mão, desde a revolução burguesa, de quase tudo em função dessa equação. O que importa, no final das contas, é que a variável “Lucro” seja maximizada, custe o que custar. Se o novo carro fabricado pela minha companhia sai de Chicago em direção ao oeste a noventa quilômetros por hora, e o diferencial traseira trava, o carro bate e pega fogo com todo mundo dentro, minha empresa deve iniciar um recall? Pegue o número total de veículos na área (A) e multiplique pelo índice provável de defeitos (B), depois multiplique o resultado pelo custo médio de um acordo extrajudicial (C). A vezes B vezes C é igual a X. Isso é o que vai nos custar se não iniciarmos já o recall. 21

THEMIS Se X for maior do que custará para recolher o carro, faremos o recall e ninguém vai se machucar. Se X for menor do que custará para recolher o carro, então não faremos o recall. Em toda parte há uma carcaça de carro queimado esperando por mim. Sei onde estão todos os esqueletos. Esse é o meu trabalho[...] (PALAHNIUK, 2000, p. 29).

Infelizmente, cada vez mais e mais, a ciência é também dependente dessa mesma equação. Temos então um saber científico que, além de reducionista e pouco reflexivo, segue, cego e surdo, à lei do mercado; sendo utilizado, com todo seu potencial de transformação do mundo, como ferramenta “neutra” (ou seria mais adequado, para nós do Direito, utilizarmos o termo “pura”?) para todo tipo de propósito. Fechada em si mesma, a ciência fica desconectada com o mundo, distante da humanidade. Exemplos históricos dos riscos dessa falta de reflexão da ciência sobre sua própria condição no mundo são recorrentes; sendo que “as ameaças mais graves em que incorre a humanidade estão ligadas ao progresso cego e incontrolado do conhecimento” (MORIN, 2007, p. 9). Além do já citado caso da bomba atômica, podemos nos lembrar da fundamental questão ambiental. O modelo linear de exploração de nossos recursos - que “coincidentemente” evoluiu junto com a visão mecanicista de mundo - está nos levando a uma situação limite, na qual medidas enérgicas se fazem urgentes. O fenômeno da aceleração do aquecimento global enseja uma mudança drástica em toda nossa cadeia produtiva e consumidora. “Curiosamente” as soluções que vêm surgindo advêm, necessariamente, de pensamentos reformadores profundamente marcados pela transdisciplinaridade, pela multidimensionalidade... pela pluralidade. Salta à mente, também, o exemplo da engenharia genética - com suas inovações impressionantes acerca do mapeamento e manipulação dos genes. Sobre quais parâmetros deve a ciência embasar seu trabalho nessa área? A ciência deve ceder, de maneira inconteste, aos apelos daqueles que veem, nessas novas tecnologias, um mercado promissor de práticas eugênicas? Mais uma vez “curiosamente”, muitos dos maiores e melhores centros de pesquisa no mundo são privados. Ou seja, têm um dono que estabelece as diretrizes do trabalho ali desenvolvido, de acordo com sua conveniência. Nesse caso, em que se amparará o cientista que por, digamos, “convicções éticas”, negarse a desenvolver uma determinada técnica ou a continuar determinada pesquisa? 22

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Morin, submergindo no iceberg, nos alerta para essa relação de poder envolvendo a ciência e a sociedade: [...] os poderes criados pela atividade científica escapam totalmente aos próprios cientistas. Esse poder, em migalhas no nível da investigação, encontra-se reconcentrado no nível dos poderes econômicos e políticos. De certo modo, os cientistas produzem um poder sobre o qual não têm poder, mas que enfatiza instâncias já todo-poderosas, capazes de utilizar completamente as possibilidades de manipulação e de destruição provenientes do próprio desenvolvimento da ciência (MORIN, 2007, p. 16)

Permitam-me voltar à diversão na parte de cima de nosso gelado playground e focar a atenção, novamente, no problema da superespecialização do conhecimento; ou, como denomina Morin, “o problema da organização do conhecimento”. Retomando à metáfora com Chaplin, ao retalhar o conhecimento em diversas partes para serem colocadas na esteira da linha de produção, a ciência moderna, em sua vocação analítica, desmembrou-se continuamente em incontáveis ramos disjuntos. A produção da ciência, assim como nas fábricas de Henry Ford, aumentou consideravelmente. Todavia, o limite do crescimento disjunto logo se avizinhou, demonstrando que tal caminho levaria a uma “indústria do conhecimento” cega, muda e surda. O desenvolvimento disciplinar das ciências não traz unicamente as vantagens da divisão do trabalho (isto é, a contribuição das partes especializadas para a coerência de um todo organizador), mas também os inconvenientes da superespecialização: enclausuramento ou fragmentação do saber (ibidem).

Aqui cabe um contraponto baseado em uma referência histórica. No auge do iluminismo, as ditas “ciências da natureza” evoluíam a passos largos, com resultados objetivos incontestáveis. Assim, a grande evolução das ciências naturais, ensejou, naquele contexto, que o método “dividir para conquistar” fosse expandido para as ciências humanas. Porém, no século XX, as consequências dessa transposição metodológica ficaram aparentes: As ciências antropossociais adquirem todos os vícios da especialização sem nenhuma de suas vantagens. Os conceitos 23

THEMIS molares de homem, de indivíduo, de sociedade, que perpassam várias disciplinas, são de fato triturados ou dilacerados entre elas, sem poder ser reconstituídos pelas tentativas interdisciplinares (ibidem, p. 17).

Esse processo é tão real que Zilles aponta, pertinentemente, que, de alguma forma, o conhecimento fragmentário, parcial e redutor da ciência começa a ser contestado de uma maneira mais geral: As ciências modernas, com seus métodos analíticos, proporcionam ao homem um conhecimento fragmentado. Com isso o homem ocidental que, na modernidade, apostou na ciência como caminho para a solução de seus problemas, hoje desconfia não só das ciências mas da própria razão científica. Toma consciência não só de que o conhecimento científico não é o único válido mas também de que a razão humana não se reduz apenas à razão científica ou instrumental. Além disso o homem não é apenas razão. Por isso busca o sentido para sua existência em visões de síntese da filosofia ou da religião (ZILLES, 2006, p. 245).

Ainda em relação à especialização excessiva vivida pela ciência, Morin alerta-nos para a possibilidade, plenamente factível, de um “neo-obscurantismo” fomentado pela disjunção quase completa entre os ramos e formas de conhecimento: Não devemos eliminar a hipótese de um neo-obscurantismo generalizado, produzido pelo mesmo movimento das especializações, no qual o próprio especialista torna-se ignorante de tudo aquilo que não concerne a sua disciplina e o não-especialista renuncia prematuramente a toda possibilidade de refletir sobre o mundo, a vida, a sociedade, deixando esse cuidado aos cientistas, que não têm nem tempo, nem meios conceituais para tanto. Situação paradoxal, em que o desenvolvimento do conhecimento instaura a resignação à ignorância e o da ciência significa o crescimento da inconsciência (MORIN, 2007, p. 17).

2 A TEORIA DA COMPLEXIDADE Etimologicamente, “complexidade” significa “tecer em conjunto”. Assim, seguindo sua vocação etimológica, a chamada “Teoria da Complexidade” reúne 24

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várias teorias em torno de um mesmo arcabouço epistemológico: Teoria do Caos, Fractais, Teoria das Catástrofes, Lógica Fuzzy, dentre outras. Tal arcabouço enseja a superação da visão de mundo mecanicista clássica para uma visão sistêmica, interdependente e transdisciplinar: uma visão complexa. O professor Júlio Tôrres, eminente pesquisador da complexidade no Brasil, diz que, nessa “visão complexa de mundo, a realidade é, essencialmente, definida pelos relacionamentos e pelos processos” (TORRES, p. 7). O francês Edgar Morin é considerado por muitos o “pai da Teoria da Complexidade”, pois, “através da teoria da informação, da cibernética, da teoria dos sistemas, do conceito de auto-organização” (MORIN, 2007, p. 7), sintetiza em sua obra princípios e macro-conceitos que se aplicam aos diversos prismas teóricos do pensamento complexo. Assim, dado o escopo pretendido para este trabalho, passearemos nesta seção por essas bases epistemológicas, para, em seguida, sondar a aplicabilidade delas no Direito. O que é a complexidade? A um primeiro olhar, a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico (ibidem, p. 13).

Morin, de antemão, nos alerta para alguns “mal-entendidos” suscitados pelo estereótipo que se criou “popularmente”, no meio científico, acerca da Teoria da Complexidade. O primeiro mal-entendido consiste em conceber a complexidade como receita, como resposta, em vez de considerá-la como desafio e como uma motivação para pensar. Acreditamos que a complexidade deve ser um substituto eficaz da simplificação mas que, como a simplificação, vai permitir programar e esclarecer (MORIN, 2007, p. 176).

Ou seja, precisamos encarar a complexidade do real e construir as soluções respeitando os relacionamentos e processos inerentes aos diversos aspectos da realidade. A complexidade é um caminho, não uma receita pronta; é “uma palavra-problema e não uma palavra-solução” (MORIN, 2001, p. 6). 25

THEMIS Já o segundo mal-entendido... [...]consiste em confundir a complexidade com a completude. [...] a ambição da complexidade é prestar contas das articulações despedaçadas pelos cortes entre as disciplinas, entre categorias cognitivas e entre tipos de conhecimento. De fato, a aspiração à complexidade tende para o conhecimento multidimensional. Ela não quer dar todas as informações sobre um fenômeno estudado, mas respeitar suas dimensões. [...] ao aspirar a multidimensionalidade, o pensamento complexo comporta em seu interior um princípio de incompletude e de incerteza (MORIN, 2007, p. 176). O paradigma de complexidade não 'produz' nem 'determina' a inteligibilidade. Pode somente incitar a estratégia/inteligência do sujeito pesquisador a considerar a complexidade da questão estudada. Incita a distinguir e fazer comunicar em vez de isolar e de separar, a reconhecer os traços singulares, originais, históricos do fenômeno em vez de ligá-los pura e simplesmente unidade/ multiplicidade de toda a entidade em vez de a heterogeneizar em categorias separadas ou de a homogeineizar em indistinta totalidade. Incita a dar conta dos caracteres multidimensionais de toda realidade estudada (ibidem, p. 334). “A totalidade é a não verdade.” (Adorno)

Observa-se então que, por definição, a epistemologia da complexidade aspira à transdisciplinaridade, ao conhecimento multidimensional. Ou seja, prega o diálogo transversal e plural entre as especialidades, de forma a permitir um saber integrado, menos lacunar. Todavia, a Teoria da Complexidade não tem pretensões totalizantes, havendo, no pensamento complexo, a admissão da incompletude e da incerteza - sendo esse, inclusive, um de seus axiomas. O que, em uma “cabeça clássica”, pode parecer um problema, para o homo complexus tal previsão é mais do que natural. A incerteza faz parte do real, assim como a incompletude deriva de um universo em constante movimento e transformação. Em outras palavras: A reforma necessária do pensamento é aquela que gera um pensamento do contexto e do complexo. O pensamento contextual busca sempre a relação de inseparabilidade e as inter-retroações entre qualquer fenômeno e seu contexto, e deste com o contexto planetário. O complexo requer um pensamento que capte relações, inter-relações, implicações mútuas, fenômenos multidimensionais, 26

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realidades que são simultaneamente solidárias e conflitivas (como a própria democracia que é o sistema que se nutre de antagonismos e que simultaneamente os regula), que respeite a diversidade, ao mesmo tempo que a unidade, um pensamento organizador que conceba a relação recíproca entre todas as partes (MORIN, 2002, p. 19-20).

Outro ponto importante a ser lembrado é que a complexidade não nega o racionalismo simplificador cartesiano clássico. Apenas indica que ele não é suficiente, precisando, nesse aspecto, ser superado. Ou seja, há de se buscar novas visões de mundo que aceitem o real, que é complexo, aplicando-se a visão mecanicista onde lhe couber. Se o mundo exige de nós uma visão complexa, não há porque condenarmos o mundo, de forma arbitrária e impositiva, aos nossos velhos modelos mutilantes de pensamento. Morin fala em uma relativização da simplificação: [...] a simplificação é necessária, mas deve ser relativizada. Isto é, eu aceito a redução consciente de que ela é redução, e não a redução arrogante que acredita possuir a verdade simples, atrás da aparente multiplicidade e complexidade das coisas (MORIN, 12007, p. 102).

O “ponto por detrás do ponto” está em entendermos a complexidade como uma forma de pensamento “capaz de lidar com o real, de com ele dialogar e negociar” (ibidem, p. 6). Ou seja, não se trata de uma nova tentativa de dominação e controle do real - ambição moderna que persiste até os nossos dias - mas de, acima de tudo, nos integrarmos ao mundo, modificando-o e sendo modificados com consciência e, de certa forma, com mais naturalidade. O paradigma epistemológico de Morin baseia-se em uma visão sistêmica dos fenômenos, de forma a conceber uma nova ciência que se permita fluidez e liberdade para atuar na transdisciplinaridade, “no cinza”, nas interseções das partes, no limiar do todo. Além disso, nessa scienza nuova (ibidem, p. 50) método e teoria encontram-se entrelaçados, de forma que “teoria e método se confundem sempre, uma vez que paradoxos teoréticos deixam de ser problemas insuperáveis para tal metodologia, uma vez que integram a teoria” (GERALDO, s.d., p. 1). Ou seja, o método, por ser aberto, está em constante transformação, juntamente com a teoria. 27

THEMIS Na Teoria dos Sistemas, há a ideia de “sistema aberto”; através da qual define-se que qualquer tipo de sistema (físico ou vivo) tem sua existência e estrutura dependentes de uma alimentação externa, sendo que “no caso dos sistemas vivos, não apenas [a alimentação] material/energética, mas também organizacional/informacional” (MORIN, 2007, p. 21). Morin indica duas importantes consequências conclusivas da adoção dessa ideia pela Teoria da Complexidade: a primeira é que as leis de organização da vida não são de equilíbrio, mas de desequilíbrio, recuperado ou compensado, de dinamismo estabilizado. [...] A segunda consequência, talvez ainda maior, é que a inteligibilidade do sistema deve ser encontrada, não apenas no próprio sistema, mas também na sua relação com o meio ambiente, e que esta relação não é uma simples dependência, ela é constitutiva do sistema (ibidem, p. 22).

Assim, na Teoria da Complexidade, a compreensão de um sistema qualquer só se dá na presença de seu contexto, de seu meio ambiente. Esse é um conceito-chave, na medida em que propicia uma “reversão epistemológica” (ibidem, p. 23) que nos aproxima do paradoxo do real. Já no paradigma disjuntivo, a sina classificatória impulsiona a percepção de um sistema fechado. Aquilo que “não se encaixa” é considerado erro, irracionalidade que não deve ser considerada; ou - na alternativa mais adotada - é reduzido forçosamente a uma das categorias formalizadas. Por conseguinte, aos cisnes anômalos estão reservados dois destinos recorrentes: serem expulsos para terras longínquas ou, simplesmente, serem pintados de branco. Esse conceito de sistema aberto utilizado por Morin tem como um de seus pilares a diferença estabelecida por Von Neumann6 entre “máquina viva” (auto-organizadora) e “máquina artefato” (simplesmente organizada): Com efeito, a máquina artefato constitui-se de elementos extremamente confiáveis (um motor de carro, por exemplo, constitui-se de peças verificadas e constituídas de matéria a mais durável e resistente possível, em função do trabalho que devem fornecer). Entretanto, a máquina, em seu conjunto, é muito menos confiável que cada um de seus elementos tomados isoladamente. Com efeito, basta uma alteração num de seus constituintes para que o conjunto pare, entre em pane, e só possa ser reparado com a intervenção externa (o mecânico). 28

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Por outro lado, tudo se passa de outro modo com a máquina viva (auto-organizada). Seus componentes são muito pouco confiáveis: são moléculas que se degradam, muito rapidamente, e todos os órgãos são evidentemente constituídos destas moléculas; no mais, observa-se que num organismo as moléculas, como as células, morrem e se renovam, a tal ponto que um organismos resta idêntico a ele mesmo ainda que todos os seus constituintes se renovem. Há pois, ao contrário da máquina artificial, grande confiabilidade do conjunto e fraca confiabilidade dos constituintes (ibidem, p. 31).

Assim, há, nos sistemas vivos, uma essência auto-organizadora que une, de maneira inseparável, desorganização e organização, caos e ordem. Tal essência é tomada como contradição na lógica instrumental, porém, ordem e desordem estabelecem entre si uma relação recíproca de complementaridade. O caráter paradoxal dessa proposição nos demonstra “que a ordem das coisas vivas não é simples, nem diz respeito à lógica que aplicamos a todas as coisas mecânicas, mas postula uma lógica da complexidade” (ibidem, p. 32). Morin avança no conceito do sistema auto-organizador, acrescentandolhe mais um atributo, ao rebatizá-lo de sistema auto-eco-organizador. O morfema “eco” nos diz muito da natureza dos sistemas vivos, dado seu caráter de intenso relacionamento com o meio ambiente. Ou seja, ao contrário de um sistema artefato, o sistema auto-eco-organizador não é um fim em si mesmo, só podendo ser logicamente válido dentro de um contexto que o influencia e que é influenciado por ele. Há, pois, uma intensa “troca alimentícia” mútua entre os sistemas vivos e o meio ambiente que lhe sustenta. Com os conceitos trabalhados até aqui, já podemos evoluir para uma definição mais elaborada de complexidade. Complexidade é a estratégia contextual de combinação, por vezes incerta, dos elementos constituintes de um sistema auto-eco-organizado. Por “combinação” entenda-se a infinita possibilidade relacional entre unidades de um sistema. Dentre essas possibilidades de interação, necessariamente encontram-se a incerteza, o indeterminado, o aleatório. Daí a necessidade da estratégia para lidar com o “não-controlável”, em um determinado contexto. O sistema, por sua vez, não é um qualquer, é um sistema "auto-eco-organizado". Assim, por definição, o próprio contexto (ou ambiente) encontra-se, essencialmente, em interação casuística ou aleatória com o todo e, também, com suas partes. 29

THEMIS Morin nos elucida que o “problema teórico da complexidade” (ibidem, p. 35) é justamente o da possibilidade de entendimento da complexidade organizacional e lógica do real. Mais do que uma mera “renovação da concepção do objeto”, torna-se necessária uma “reversão das perspectivas epistemológicas do sujeito”, de forma a considerar “certa imprecisão e uma imprecisão certa, não apenas nos fenômenos, mas também nos conceitos” (ibidem, p. 36). Exemplifica o autor: Uma das conquistas preliminares no estudo do cérebro humano é a compreensão de que uma de suas superioridades sobre o computador é a de poder trabalhar com o insuficiente e o vago; é preciso, a partir de então, aceitar certa ambiguidade e uma ambiguidade precisa (na relação sujeito/objeto, ordem/desordem, auto-hetero-organização). É preciso reconhecer fenômenos, como liberdade ou criatividade, inexplicáveis fora do quadro complexo que é o único a permitir sua presença (grifei) (ibidem, p. 36).

2.1 Alguns macroconceitos (princípios da complexidade) Dado esse fundamental introito, passemos a analisar alguns princípios que, nos dizeres de Morin, “podem nos ajudar a pensar a complexidade” (ibidem, p. 73). Antes, um não menos fundamental “alerta complexo”: [...] devemos saber que, nas coisas mais importantes, os conceitos não se definem jamais por suas fronteiras, mas a partir de seu núcleo. É uma ideia anticartesiana, no sentido em que Descartes pensava que a distinção e a clareza eram caracteres intrínsecos da verdade de uma ideia. Tomemos o amor e a amizade. Pode-se reconhecer claramente em seu núcleo o amor e a amizade, mas há também a amizade amorosa, amores amigáveis. Há, pois, intermediários, mistos entre o amor e a amizade; não há uma fronteira clara. Não se deve jamais procurar definir por fronteiras as coisas importantes. As fronteiras são sempre fluidas, são sempre interferentes. Deve-se pois buscar definir o centro, e esta definição pede em geral macroconceitos (ibidem, p. 72).

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Desenhando:

Morin indica três princípios básicos da complexidade: dialogia, recursividade e o princípio hologramático. O primeiro identifica, no real, relações de divergência e convergência mútuas, de dualidade e unidade, de acordo e desacordo; o contraditório que se mostra necessário. “O princípio dialógico nos permite manter a dualidade no seio da unidade. Ele associa dois termos ao mesmo tempo complementares e antagônicos” (ibidem, p. 74). Exemplifiquemos, com a ajuda do epistemólogo francês: Tomemos o exemplo da organização viva. Ela nasce, sem dúvida, do encontro entre dois tipos de entidades químico-físicas, um tipo estável que pode se reproduzir e cuja estabilidade pode trazer em si uma memória tornando-se hereditária: o DNA, e de outro lado, aminoácidos, que formam proteínas de múltiplas formas, extremamente instáveis, que se degradam, mas se reconstituem sem cessar a partir de mensagens que emanam do DNA. Dito de outro modo, há duas lógicas: uma, a de uma proteína instável, que vive em contato com o meio, que permite a existência fenomênica, e outra que assegura a reprodução. Estes dois princípios não são simplesmente justapostos, eles são necessários um ao outro. O processo sexual produz indivíduos, os quais produzem o processo sexual. Os dois princípios, o da reprodução transindividual e o da existência individual hic et non, são complementares mas também antagônicos. Às vezes, nos espantamos de ver mamíferos comerem seus filhos e sacrificarem sua progenitura para sua própria sobrevivência. Nós mesmos podemos nos opor violentamente a nossa família e dar preferência a nosso interesse frente ao de nossos 31

THEMIS filhos ou nossos pais. Há uma dialógica entre estes dois princípios (ibidem, p. 73).

Já o princípio recursivo é aquele no qual, em um determinado sistema, produtos viram produtores daqueles que o produziram. Assim: [a recursividade é] uma ideia em ruptura com a ideia linear de causa/ efeito, de produto/produtor, de estrutura/superestrutura, já que tudo o que é produzido volta-se sobre o que o produz num ciclo ele mesmo autoconstitutivo, auto-organizador e autoprodutor(ibidem, p. 74).

Uma definição assim tão confusa clama por exemplos: imaginemos o reflexo qualquer de um espelho. Nesse caso, temos um reflexo (produto) causado linearmente pela luz de um objeto a frente do espelho (produtor). Experimentemos agora colocar tal espelho em frente a um segundo espelho. Nesse segundo caso, teremos reflexos recursivos causados em ambos espelhos. O primeiro reflete o segundo, que reflete o primeiro, que estava refletindo o segundo e assim por diante. Observem que a reflexão em cada espelho (produto) altera a reflexão do outro (produtor) sucessivamente. Ou seja, temos um ciclo, um sistema autoconstitutivo, auto-organizado e autoproduzido. Busquemos, agora, um outro exemplo de recursividade na matemática. Imaginemos uma série numérica natural, na qual os primeiros elementos sejam 0 e 1. A partir deles, construiremos a série baseada na seguinte regra recursiva: a partir do terceiro elemento, qualquer elemento é sempre o resultado da soma dos dois antecessores. Teremos então: 0 1 1 2 3 5 8 13 32

produtor produtor produto (0+1) e produtor produto (1+1) e produtor produto (1+2) e produtor produto (2+3) e produtor produto (3+5) e produtor produto (5+8) e produtor

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21 34 55 ...

produto (8+13) e produtor produto (13+21) e produtor produto (21+34) e produtor e assim recursivamente...

Observem que cada “componente” desse “sistema”, a partir do terceiro, é produto e produtor da série. Ou seja, a série como um todo é construída pelos seus itens que, por sua vez, são definidos por itens da própria série. Essa sequência numérica é conhecida como “Sequência de Fibonacci” (WIKIPEDIA, on line), tendo aplicação em diversas áreas, como na matemática, na computação, na Teoria dos Jogos e em análises do mercado financeiro. Chamemos Morin, mais uma vez, para nos dar exemplos de recursividade mais próximos do núcleo das ciências humanas: Temos o exemplo do indivíduo, da espécie e da reprodução. Nós, indivíduos, somos os produtores de um processo de reprodução que é anterior a nós. Mas uma vez que somos produtos, nos tornamos os produtores do processo que vai continuar. Esta ideia é válida também sociologicamente. A sociedade é produzida pelas interações entre indivíduos, mas a sociedade, uma vez produzida, retroage sobre os indivíduos e os produz. Se não houvesse a sociedade e sua cultura, uma linguagem, um saber adquirido, não seríamos indivíduos humanos. Ou seja, os indivíduos produzem a sociedade que produz os indivíduos. Somos ao mesmo tempo produtos e produtores (MORIN, 2007, p. 74).

Por fim, o princípio hologramático diz que “não apenas a parte está no todo, mas o todo está na parte” (ibidem, p. 74). Essa ideia vem desde Pascal, que afirmava não conceber o todo sem as partes, nem as partes sem o todo. No paradigma reducionista, o olhar se volta somente para a parte. No paradigma holista, o todo é o foco. Já o paradigma complexo vai além: reconhece, através de uma lógica recursiva, que o todo está na parte, assim como a parte está no todo. O exemplo mais imediato e didático desse princípio vem de nosso próprio corpo. Cada célula nossa (parte) possui informação genética de nosso corpo (todo). De maneira complexa, ao mesmo tempo, o nosso corpo organiza as células, atribuindo-lhes funções específicas, em consonância com o todo. 33

THEMIS Não custa nada lembrar que:

Assim, pode-se observar claramente a interrelação entre esses três princípios: o dialógico, o recursivo e o hologramático. Na mesma medida em que o todo sistêmico se compõe de partes que recursivamente o definem, há uma relação dialógica entre o todo sistematizador e a parte autônoma. Ou seja, há uma dialogia entre o holismo e o reducionismo disjuntivo clássico cartesiano, notória em diversas manifestações do real; sendo esse o principal terreno de atuação da Teoria da Complexidade. 3 A COMPLEXIDADE E O DIREITO A complexidade do real nos incita a buscar novos modelos teóricos. Daí a importância da Teoria da Complexidade e a imprescindível revisão epistemológica iminente em todas as áreas do conhecimento humano. Durante vários séculos, “o estabelecimento de relações epistemológicas baseadas em concepções dualistas(idealismo-empirismo e sujeito-objeto) trouxe mais problemas que soluções para nosso entendimento do mundo” (ABREU JÚNIOR, LAERTHE, 1996, p.145). O Direito, obviamente, não escapou desses paradigmas dualistas. Ao longo de sua história, alternaram-se como dominantes concepções cosmológicas, teológicas e antropológicas. Vimos a Teoria de Kelsen ter suas fragilidades “jogadas no ventilador”, em Nuremberg, para, em seguida, iniciar-se uma busca pós-positivista que ainda não teve cabo. “[...]a lição que fica da ruína das ideias do Círculo de Viena e do sonho axiomático de Hilbert é a renúncia à esperança 34

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louca de encontrar a certeza absoluta na verificação empírica e na verificação lógica” (MORIN, 2007, p. 230). O constitucionalismo moderno, por sua vez, é, sem dúvida, um grande avanço; porém, carece de uma sistemática que permita uma efetividade maior dos preceitos magnos. Novas bases jurídicas são necessárias, de forma a permitir uma hermenêutica que contemple a complexidade do real. A tendência tradicional dos juristas de fugir do encontro marcado com a metodologia científica e de tratar as ciências humanas através de uma abordagem secundarizada, geralmente remetida à história do próprio direito, instaurou uma fetichização do jurídico e levou a um desprezo pelos demais saberes não normatizantes. Esse afastamento do direito das demais ciências humanas, entretanto, fez o feitiço virar contra o feiticeiro, pois o jurista tem permanecido alijado dos embates científicos atuais e vem sendo pouco considerado quanto à sua própria ciência e arte, remetidas às técnicas de controle social, cuja real significância decorre apenas do poder concreto sobre a sociedade. Enquanto a vida flui a caminho do novo, o direito se opõe à transformação social em nome da segurança jurídica. (TRINDADE, 2009, p. 22). A esse respeito [do isolacionismo do Direito], a primeira coisa a chamar nossa atenção, quando procuramos estudar a relação entre o direito e as demais ciências sociais, é verificar o isolamento em que vivem hoje os juristas, enquanto cientistas do direito, praticamente de costas para tudo o que se passa no campo das outras ciências sociais. Qual a razão disto? Estamos quase certos de que essa atitude de distanciamento dos juristas em geral das demais ciências sociais decorre do modelo de ciência que adotamos, a chamada dogmática jurídica. Ela leva-nos a operar apenas com as normas jurídicas, desprezando a realidade histórico-social e os valores, que são os dois outros elementos integrantes do direito (ROCHA, 2009, p. 24).

Assim, uma grande e necessária contribuição da Teoria da Complexidade para o Direito está na aproximação deste com o real. A pragmática complexa implica, necessariamente, que o Direito desça de seu pedestal dogmático e se integre à humanidade, seguindo as bases de um pensar aberto, transdisciplinar, contextual, reflexivo, auto-eco-organizado; enfim, um pensar complexo. Para isso, várias são as “linhas de ataque” possíveis. A mais óbvia, talvez, seja a clara necessidade de uma ampla reforma no ensino do Direito, tendo em vista a natureza transdisciplinar do fenômeno jurídico. “Emendos” na grade 35

THEMIS curricular são constantemente feitos por meio de iniciativas interdisciplinares suscitadas pelo real complexo, que requisita soluções imediatas do saber jurídico. Por conseguinte, de maneira recorrente, foram incorporadas aos cursos de Direito, nos últimos anos, várias disciplinas que tentam fazer uma tímida ligação entre o jurídico “e o resto” – como, por exemplo, as disciplinas de psicologia jurídica, sociologia jurídica, antropologia jurídica etc. Seguindo-se a tradição cartesiana, tais iniciativas pedagógicas foram logo agrupadas em uma classe de nome pomposo: “disciplinas propedêuticas”. Mesmo que apenas uma pequena parcela dos alunos recém-ingressos efetivamente vá ao dicionário em busca de sinônimos, o significado empírico do termo propedêutico logo é assimilado por todos. E tal significado implanta a primeira de muitas más ideologias na cabeça dos juristas neófitos: se é propedêutica, é porque o “Direito de verdade” está por vir. Ou seja, às disciplinas introdutórias fica reservado estritamente o papel de coadjuvantes do saber jurídico. Assim também entende Jorge Trindade, analisando as relações entre Psicologia e Direito: (...)o que se pretende sublinhar é que a psicologia jurídica, mesmo gozando de maior popularidade nos últimos anos, continua a ser uma disciplina ainda por fazer. De nascimento experimental, a psicologia, inclusive a jurídica, tem resistido ao discurso jurídico, enquanto o direito, preso a uma hegemonia epistemológica, tem dificuldades em aceitá-la, fazendo apenas concessão para uma disciplina auxiliar. Assim, a Psicologia Jurídica restringiu-se à psicologia para o direito, permanecendo longe de qualquer interferência no processo dos fundamentos do direito, ou seja, da psicologia do direito, bem como afastada das questões psicológicas que intrinsecamente compõem o mundo normativo, ou seja, da psicologia no direito (grifei) (ibidem, 2009, p.28).

Basicamente, a mesma linha de raciocínio pode ser estendida para a sociologia, para a antropologia e, pasmem, até para a filosofia do direito. Ou seja, ainda persiste uma notória tendência de ensino exegeta da ciência jurídica, particularmente nas universidades brasileiras. É dada prioridade a um ensino, acima de tudo, técnico, voltado para profissionalização de meros operadores do Direito, meros decodificadores de leis, em detrimento a uma formação crítica que consiga compreender o Direito com o dinamismo e a transversalidade que lhe são inerentes. 36

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O citado dinamismo inato ao Direito merece, neste ponto, uma abordagem mais detalhada. Gabriel Joerke diz: A complexidade se direciona na possibilidade de perceber o indivíduo na sua multidimensionalidade, que envolve os princípios de incompletude e de incerteza, denotando um constante devir, uma construção. É nesse âmbito que o Direito pode/deve ser observado. Portanto, perceber o Direito de maneira simplista é uma abstração, haja vista as complexidades que ele encerra. É por isso que um ensino pautado nos moldes tradicionais nem sempre pode dar conta da multidimensionalidade e da multirreferencialidade do campo jurídico. Com vista à qualidade do ensino, em específico, aqui, o jurídico, volta-se para a preocupação em associá-lo à pesquisa (JOERKE, p. 4).

Logo, é inconcebível que o ensino jurídico continue reservando, precipuamente, ao Direito, o papel de mera técnica, de simples racionalidade instrumental. Tal movimento instrumentalista da ciência jurídica é tão real e persistente que causa uma preocupação recorrente relacionada à criação, no Brasil, de mestrados profissionais de Direito, em detrimento ao mestrado tradicional acadêmico com foco na pesquisa crítica. O professor Lenio Streck, inclusive, refletiu sobre o problema em artigo de válida leitura, do qual reproduzo o trecho abaixo: Ora, se as exigências e os requisitos devem ser os mesmos do mestrado acadêmico, qual seria a razão da polêmica? Por que então não insistirmos no aprimoramento do mestrado acadêmico? Por isso, a tese aqui exposta procura mostrar que o problema fulcral da crise do ensino do direito e da dogmática jurídica que instrumentaliza o direito é caudatária de um fenômeno que historicamente ignorou a relevante circunstância de que o direito não é uma mera técnica; o direito é, sim, um fenômeno complexo, porque possui – e nisso reside a “questão paradigmática“ – um acentuado grau de autonomia e um papel fortemente emancipador (STRECK, s.d., p. 18).

Tal inadequação da formação básica inexoravelmente cobra, mais cedo ou mais tarde, seu preço. Um exemplo claro disso é a dificuldade enfrentada pelos juízes no lidar com a realidade complexa inata ao seu trabalho: O primeiro paradigma a ser superado pelo Judiciário é o da formação do juiz. [...] As novas configurações econômicas, sociais e culturais 37

THEMIS demandam reformular radicalmente a formação inicial, em busca de ações integradas de educação ao longo da carreira. O local de trabalho do juiz deve ser convertido em verdadeira organização de aprendizagem. Não falta ao juiz conhecimento técnico, mas pode faltar uma visão pluridisciplinar. Seguramente, falta ao juiz brasileiro capacidade para administrar. Falece ao Judiciário como instituição o enfrentamento da gestão: função básica e necessária em todas as organizações modernas (NALINI, on line).

Dentre as mudanças possíveis nos cursos de Direito, pode-se pensar em um aumento considerável da carga horária reservada às disciplinas de natureza transdisciplinar, de forma a lhes reservar, na academia, o protagonismo que lhes é peculiar no mundo real. Outra medida razoável seria o incentivo institucional para que haja um maior intercâmbio de conhecimento entre o Direito e outros cursos, notadamente os da área de humanas, como, por exemplo, através do incentivo ao trânsito livre de alunos e professores entre as áreas do saber científico. Por fim, uma simples mudança na ordem das disciplinas de graduação, deslocando algumas matérias transdisciplinares para períodos mais avançados do curso, já fomentaria um melhor aproveitamento por parte dos alunos. Pois o avanço do conhecimento jurídico está intrinsecamente ligado à abertura da mente em relação às interrelações complexas entre as disciplinas. Conceber o Direito como um sistema aberto, em constante transformação, enseja, além da aqui já citada revolução curricular, mais uma quebra de paradigma: é necessário que seja garantida uma formação continuada das carreiras jurídicas, de forma a permitir uma permanente atualização dos profissionais da área. Assim, há de se estabelecer meios que tragam os chamados “operadores do Direito” para o constante debate sobre sua ciência. O direito resiste à mudança; resiste no fragmento, porque a mudança incomoda. A mudança exige permanente autoatualização e não se faz autoatualização. Conseqüentemente não se produz o novo. Não se faz, a rigor, nem mesmo hermenêutica e, conseqüentemente, não se faz ciência, nem filosofia. Na pseudo hermenêutica, altera-se o sentido da norma, dá-se a interpretação que o grupo dominante deseja. Se preciso, faz-se uma lei. Se essa lei é contrária à Lei maior, interpreta-se-a como coerente e harmônica com a Lei maior. Institui-se o Estado Legal em detrimento do Estado Constitucional (OLIMPIO FILHO, on line). 38

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Citei como “óbvia” a necessidade de mudanças paradigmáticas na educação jurídica, porém, preciso ressaltar que o óbvio não quer dizer menos importante. Nesse caso, a mudança epistemológica necessária ao Direito não poderia começar em outro lugar senão na academia. A academia, por essência, deve se preocupar muito mais em produzir o Direito do que reproduzir o Direito. Em vez de cópias, precisamos escrever novas páginas, sendo essa a fundamental missão institucional do ensino jurídico. Uma educação autêntica não pode privilegiar a abstracção no conhecimento. Ela deve ensinar a contextualizar, concretizar e globalizar. A educação transdisciplinar revaloriza o papel da intuição, do imaginário, da sensibilidade e do corpo na transmissão dos conhecimentos (UNESCO, art. 11, on line).

O fato de uma maior abertura transdisciplinar na formação dos juristas já ensejaria um movimento favorável a um Direito menos redutor e mais emancipador. Uma espiral positiva de novas teorias seria criada, de forma a permitir debates que hoje estão esvaziados e, de certa forma, inibidos, por conta das limitações do modelo cartesiano de fazer ciência. Assim, um alicerce complexo permitiria à ciência jurídica contestar certas categorias que, hoje em dia, de certa forma, são intocáveis. Uma delas diz respeito à lógica aristotélica como a base para a lógica jurídica. Uma das vertentes da Teoria da Complexidade tem como fundamento a lógica fuzzy (ou lógica difusa). Nela, tem-se a ideia de uma lógica dialética que permite a inclusão de um elemento em mais de um conjunto classificatório, ao mesmo tempo. Na ação transdisciplinar o agente atua no sentido integrativo da parte com o todo e com a totalidade, verticaliza o sentido de pertencimento ao Universo. A lógica do raciocínio transdisciplinar difere da lógica clássica, não é binária; é difusa. [...] A lógica clássica evita a contradição de um objeto ser e não ser, estar e não estar ao mesmo tempo em espaços diferentes, ao passo que a lógica difusa não aceita essa premissa, mas não a contraria; é interbinária, surge entre A e não-A; é interdimensional e não exclui o terceiro (OLIMPIO FILHO, on line). 39

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Em vez de conjuntos disjuntos compondo linearmente e hierarquicamente um todo, poderíamos ter transversalidades nas quais se permita uma visão sistêmica auto-eco-organizada de um ordenamento jurídico, por exemplo. Aliás, a própria denominação “ordenamento jurídico” poderia, dentro dessa perspectiva, mudar para “complexo jurídico”. Tal concepção seria muito mais promissora e ampla do que o tradicional e limitado ponto de vista holístico: Uma visão holística, por exemplo, de uma bicicleta significa ver a bicicleta como um todo funcional e compreender, em conformidade com isso, as interdependências das suas partes. Uma visão ecológica da bicicleta inclui isso, mas acrescenta-lhe a percepção de como a bicicleta está encaixada no seu ambiente - de onde vêm as matériasprimas que entram nela, como foi fabricada, como seu uso afeta o meio ambiente natural e a comunidade pela qual ela é usada, e assim por diante. Essa distinção entre "holístico" e "ecológico" é ainda mais importante quanto se fala sobre sistemas vivos, para os quais as conexões com o meio ambiente são muito mais vitais (CAPRA, 1999. p. 25).

Uma mudança paradigmática desse porte ocasionaria uma inevitável revisão na teoria da norma, de forma a contemplar o contexto como um de seus elementos essenciais. Assim, os critérios para solução de antinomias, por exemplo, ganhariam novo fôlego ao considerar a relação dialética entre o material e o formal. Os impactos seriam propagados, necessariamente, também, para a hermenêutica jurídica. Por conseguinte, fatalmente reveríamos o dogma da segurança jurídica sob outros olhares, de forma a fomentar uma confiança no conjunto do sistema jurídico (máquina viva) e não em partes isoladas desse (máquina artefato). Por ser complexo o universo, complexa é a vida. Por ser complexa a vida, complexa é a nossa sociedade. Por ser complexa a sociedade, inevitavelmente, complexo deve ser o Direito. Quanto mais complexo o Direito, mais próximo estaremos da Justiça. O efetivo Estado Constitucional se alcança pela ação transdisciplinar (OLIMPIO FILHO, op. cit.).

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O Direito é datado, espera o fato acontecer e o enquadra. Assim tem que ser, mas a interpretação deve ser flexível, evolutiva para fazer reinar harmonia do direito com a Justiça (idem). É preciso romper o imobilismo. O Direito é dinâmico; evolui. O Direito é permanente movimento em busca da justiça, que só se alcança pelo trans. E só se faz o trans pela transdisciplinaridade, que leva à complexidade (idem).

UM CONVITE Enfim, diversas limitações (dentre elas, a maioria minha) fazem com que o caráter deste trabalho seja meramente introdutório. Minha intenção principal, com este artigo, foi mostrar a amplitude das possibilidades da aplicação, na ciência jurídica, da Teoria da Complexidade. Parafraseando Morin, não há aqui - mesmo que isso fosse factível - nenhuma pretensão de completude ou descrição de uma "solução mágica para todos os problemas do universo". O Direito Complexo é, acima de tudo, um caminho a ser construído; sendo que, em muitas partes, teremos que "abrir a trilha", à moda dos mais tradicionais mateiros e desbravadores. Assim, transformo a tradicional seção "Conclusão" em um convite. Convite para que você revisite nosso gelado iceberg, explorando-o em busca de novas perspectivas, novos olhares, novas atitudes que permitam fazer do Direito o meio principal de obtenção da Justiça. A parceria do direito com a justiça não comporta separabilidade; constitui uma unidade, unidade que o formalismo separa. A separabilidade justiça-direito só é possível no fractal, onde na parte se vê o todo. No entanto, a mente cartesiana aprisiona o direito ao mundo das formas, ao rigor formal, e provoca o divórcio com a Justiça, impede que se faça o trans, que se alcance a complexidade e, conseqüentemente, que se faça justiça (idem).

Em tempos de internet, tal visita pode ser, inclusive, “virtualmente coletiva”. Através do site www.direitocomplexo.com.br, você poderá fazer comentários a este texto7, ter acesso a muitos outros, e, inclusive, entrar em contato com diversas pessoas que também enxergam na Teoria da Complexidade uma viável possibilidade de revisão teórica da epistemologia do Direito. 41

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REFERÊNCIAS ABREU Jr, LAERTHE. Conhecimento Transdisciplinar; cenário Epistemológico da Complexidade. Piracicaba: Unimep, 1996. CAPRA F. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 1999. FILHO, Olimpio Paulo. Ação Transdisciplinar. Disponível em: . Acesso em 28 abr. 2011. SOUZA, Ana de Fátima. A maior vantagem competitiva é a habilidade de aprender. Disponível em: . Acesso em: 12 mai. 2011. VYGOTSKI, L. S. A formação social da mente. 4 ed. Trad. José Cipolla Neto, Luis Silveira Menna Barreto e Solange Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O DIREITO ELEITORAL BRASILEIRO

Júlio César Martins Filho

Aluno do Curso de Pós-graduação Lato Sensu Especialização em Direito e Processo Eleitoral da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC); Servidor da 7ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Ceará

RESUMO: O direito eleitoral brasileiro, no que concerne à participação popular, só regulamenta o acesso aos cargos públicos da cúpula dos poderes Executivo e Legislativo, quais sejam, os cargos de prefeito, vice-prefeito, governador, vice-governador, presidente, vice-presidente, vereadores, deputados estaduais deputados federais e senadores. Defendemos, inclusive, que haja uma maior exigência na qualificação dos candidatos aos cargos eletivos, pois, a Carta Magna exige em seu parágrafo 4º do artigo 14, que o alistável seja alfabetizado. No que concerne à escolha dos membros do Poder Judiciário, no Brasil, apesar de ser um país democrático, o povo não participa desta escolha. Palavras-chave: Processo Eleitoral. Elegibilidade. Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Resoluções dos Tribunais Superiores. ABSTRACT: Brazilian electoral law, regarding public participation, only regulates the executive and legislative cupula´s branches access to public positions, namely, mayor´s, vice mayor, governor, vice governor, president, vice president, aldermen, state representatives and senators congressmen positions . A higher requirement regarding candidates for elective office qualification it is defended, therefore, Constitution´s article 4th, paragraph 4th requires the possible candidate to be literate. Regarding the Judiciary member´s, in Brazil, despite the fact of being a democratic country, people do not choose in this matter. Keywords: Electoral Process. Eligibility. Executive, Legislative and Judiciary. Superior Courts Resolution. INTRODUÇÃO Neste introdutório apresento, de permeio, algumas considerações importantes para o tema em estudo, que, no decorrer de um raciocínio lógico 139

THEMIS - jurídico iremos encontrar, sem nenhuma dificuldade as conclusão necessárias, que, nesta linha de raciocínio é indispensável, para se definir, ou melhor, apontarmos academicamente os resultados deste estudo, em especial ao instituto da inelegibilidade, no tocante ao critério da idade dos candidatos no Direito Eleitoral Brasileiro, arrimado na Constituição Federal, no Código Eleitoral, leis esparsas, e os normativos do TSE. 1 DIREITO ELEITORAL 1.1 Conceito O Direito Eleitoral dedica-se ao estudo das normas e procedimentos que organizam e disciplinam o funcionamento do sufrágio popular, de modo que se estabeleça o resultado final da vontade do povo e a atividade governamental, quer nas casas legislativas, quer no comando maior do poder executivo Municipal, Estadual e Federal. 1.2 Breve resumo histórico O nascimento do direito eleitoral no Brasil surgiu em meados de 1930. A Justiça Eleitoral apareceu como Órgão do Poder Judiciário sendo criada com a edição do Código Eleitoral (Decreto nº. 21.076, de 24/2/32), atendendo aos anseios dos revolucionários da sociedade democrática em 1930. Nesta época, o Brasil vivia uma fase de eleições viciadas no coronelismo e no voto de cabresto. Desta feita, o Código de 1932 representou um avanço em vários pontos, introduzindo o voto secreto, o voto feminino e o sistema de representação proporcional (que algumas correntes políticas, em detrimento do povo e dos pequenos partidos políticos, querem extirpar na chamada reforma política). O Tribunal Superior da Justiça Eleitoral, como era chamado, foi instalado em 20 de maio de 1932. A Justiça eleitoral atuou nas eleições da Assembleia Constituinte de 1933, 1,2 milhões de eleitores elegeram 214 constituintes, dentre os quais, a primeira parlamentar brasileira, Carlota Pereira Queiroz. Assim, a Constituição Federal de 16 de julho de 1934 contempla a Justiça Eleitoral, na mesma data em que o Presidente Getúlio Vargas é eleito indiretamente. A Carta Magna outorgada de 1937 extingue a Justiça Eleitoral, sendo recriada em 1945, pelo Presidente Getúlio Vargas. Após ser pressionado pelas 140

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classes dominantes, convoca novas eleições e edita o Decreto-Lei nº. 7.586. Fica, assim, restabelecida a Justiça Eleitoral, posteriormente contemplada na Carta Constitucional de 1946, sendo mantida pelos textos legais que lhe seguiram (Constituições de 1967, 1969 e 1988, e Códigos de 1950 e 1965 – atual). 1.3 O direito eleitoral e sua competência no Brasil A Constituição Federal de 1988, tendo reservado à União a competência privativa para legislar sobre o Direito Eleitoral, exige lei complementar para regular a distribuição de competência entre os vários órgãos jurisdicionais eleitorais. Então, a fixação da competência do juiz eleitoral, das juntas eleitorais, dos tribunais regionais e do Tribunal Superior é matéria reservada à legislação complementar, não cabendo a legislação ordinária regulamentá-la. O Código Eleitoral prevê a fixação da competência dos órgãos jurisdicionais eleitorais, por esta razão, ganhou status de lei complementar a partir da Constituição de 1988, desta forma, somente lei complementar poderá modificá-lo. O Código Eleitoral confere ao Juiz Eleitoral poder de polícia para adotar as providências que forem necessárias, para impedir ou fazer cessar, imediatamente, as práticas que atentem contra a boa ordem eleitoral, ou, ao processo eleitoral. 2 PROCESSO ELEITORAL 2.1 Código e o processo eleitoral Na sociedade democrática, a legitimidade governamental é baseada no consentimento do povo, sendo assim, a Justiça Eleitoral deve cuidar para que esse consentimento seja manifestado de forma livre, desprovido de qualquer ato fraudulento. De qualquer forma, no Código Eleitoral que se encontra insculpida as regras básicas de todo o processo eleitoral, desde o alistamento até a diplomação dos eleitos. O Compêndio Eleitoral não se esqueceu de organizar nossa Justiça Política, em todas as instâncias, quais sejam: o Tribunal Superior Eleitoral, os tribunais regionais, os juízes eleitorais e as juntas eleitorais, como órgão do Poder Judiciário, incumbindo-se de coordenar o processo eleitoral e dirimir os conflitos de interesses surgidos durante sufrágio popular. Por conseguinte, apesar da complexidade da nossa lei eleitoral, é preciso olhar o Código Eleitoral com 141

THEMIS acentuado cuidado, principalmente, porque o direito eleitoral, algumas vezes, é moldado pelo casuísmo, pura política de conveniência da classe social dominante, que no Brasil parece ser a mesma, mudando somente a roupagem, isto é, muda só o nome do partido dominante. Hoje, sem dúvida nenhuma, o Código Eleitoral acrescido da legislação não codificada é a mais recente conquista do processo eleitoral brasileiro, talvez, quem sabe, o mais importante instrumento jurídico que dispomos para enfrentar os desafios da disputa eleitoral, indubitavelmente essa legislação e a tecnologia que possuímos deverá ser copiado por outras nações, até mais evoluídas que o Brasil, mas, que não desenvolveram neste ramo, muitos permaneceram com o processo eletivo tradicional, o qual é processado mediante a cédula eleitoral não informatizada, diga-se de passagem, amanhã com certeza importarão esta legislação e nossa tecnologia. De qualquer forma, não se deve esquecer que a tradição legislativa, no Direito Eleitoral Brasileiro, sempre foi a edição de leis eleitorais para disciplinar o processo eleitoral em curso, ou seja, leis de vigência temporal. Passadas as eleições para as quais foram editadas, cessam sua vigência e outra há de ser elaborada para o próximo pleito. Tal prática sempre foi criticada pelos operadores do direito eleitoral, seja porque condenavam o casuísmo estampado nas referidas leis, moldadas segundo interesses dos que se encontravam no poder; seja porque tornava difícil, quase impossível, a formação de um pensamento perene em torno da matéria. Todavia, esse fato ocorre devido à falta de cultura política que envolve o povo brasileiro, que em tudo quer levar vantagem, sem se preocupar com o destino das classes menos favorecidas, ou com o preço que pagamos pela desigualdade social. Desta feita, a jurisprudência formada em um processo eleitoral, naquele contexto, praticamente não será utilizada no próximo pleito, porque outras serão as regras ditadas pela nova lei. Hoje, a chamada “Lei da Ficha Limpa” tem causado bastante inquietação no meio jurídico, pois, se de um lado a sociedade vibra com uma norma eficaz, clamando por um rolo compressor que soterre de vez os maus políticos, eis que, ela está saturada de ver tantos candidatos infiéis corrompendo o país. De outro lado, os operadores do direito não poderão desconsiderar o artigo 16 da Constituição Federal, que, para garantir a segurança jurídica do processo legislativo determina que a lei que alterar o processo eleitoral somente entrará em vigor na data de sua publicação, não podendo ser aplicada na eleição que ocorra até l (um) ano da 142

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data de sua vigência. Se analisarmos com prudência, concluímos que não houve alteração do processo eleitoral, apenas, criou-se mais um requisito necessário para o registro da candidatura. Sendo assim, me filio à corrente doutrinaria que entende que esta lei deve ter aplicação imediata. Mesmo porque este dispositivo legal trata de um requisito básico, para que se tenha acesso a qualquer cargo público. Com maior razão deve se exigir ficha limpa daqueles que ocuparão aos cargos eletivos. O fato do Supremo Tribunal Federal já haver se pronunciado decidindo que os dispositivos da “Lei da ficha limpa” não se aplicam as eleições de 2010, não impede que a discussão acadêmica continue, uma vez que o direito é dinâmico, assim sucede a sua evolução. Nas Eleições de 2006, também ocorreu uma situação idêntica, que foi o casuísmo da verticalização partidária no processo eletivo próximo pretérito, como a publicação da imprensa, insistentemente, nessa matéria, que não era assunto novo. Entretanto, a todo custo para favorecer a determinado grupo político dominante renovou-se a discussão na sociedade das regras, que, através de Emenda a Constituição Federal, foi aplicada nas eleições passadas. Cristalinamente, violou outras normas constitucionais já sedimentadas, neste particular, coube ao Tribunal Superior dirimir essa contenda. O artigo 16 da Constituição Federal determina como se deve proceder diante destes casos, segundo o mencionado dispositivo, tem-se que respeitar o princípio da anualidade, observe: “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até l (um) ano da data de sua vigência”. Concluímos que tal solução apresentada pelo STF, no caso em comento, não revela o exercício da função normativa primaria, por nada ter inovado no ordenamento jurídico eleitoral, não está diante da lei que altera o processo eleitoral, mas uma solução interpretativa da norma existente, portanto é ato normativo secundário, que encarta uma decisão jurídico-administrativa, ou melhor, tão-somente uma decisão Jurídica - política pacificadora emanada pela cúpula do poder judiciário. Outro fato que tem causado polêmica, nos dias de hoje, resultante do pleito eleitoral de 2010 é qual o suplente que assumirá a vaga deixada pelo eleito da coligação. Para aqueles que veem a coligação feita no processo eleitoral, tão somente, como o momento político de um grupo com fins meramente eleitoreiro, que, a união dos votos de todos os participantes coligados resultará na eleição do mais votado do grupo, em detrimento de candidatos de partidos diferentes, com 143

THEMIS mais votos, não coligados. Uma vez terminada a eleição e escolhido o candidato, findou qualquer compromisso político entre aqueles partidos. Sendo assim, a suplência será ocupada pelo suplente do partido que pertence o candidato eleito. Por outro lado, há aqueles que entendem que o processo da coligação resulta na união de ideias de partidos diferentes, visando ao bem social. Cada partido coligado mantém os seus princípios e diretrizes, mas, naquele momento político, os diversos candidatos partidários, dentro da coligação formam um só corpo, cada candidato é um membro com os mesmos direitos e obrigações, da mesma forma, que seu partido dentro da coligação. Neste caso, a suplência será ocupada pelo candidato seguinte na relação dos votados, indiferente a qual agremiação partidária pertença, eis que, coligar significa defender as mesmas ideias. Este é o entendimento dominante e mais abalizado, inclusive, defendido pelo STE. O oposto a este entendimento é artifício nebuloso utilizado por alguns partidos para dissimular interesses pessoais escusos de certas classes políticas dominantes. 2.2 O processo eleitoral nos tribunais de justiça É através de sufrágio entre os desembargadores que são escolhidos os maiores dirigentes do poder judiciário estadual, qual seja: o presidente, o vicepresidente e o corregedor geral. É de bom alvitre lembrar que são os membros do Poder Judiciário na esfera estadual ou federal, que constitucionalmente apresentam a última palavra sobre todos os questionamentos do país, seja envolvendo o interesse do legislativo, do executivo, ou do próprio judiciário. Na Lei Maior não há previsão de sufrágio popular para escolha dos membros do Poder Judiciário. O poder judiciário é o terceiro poder do estado sendo constituído de forma diferenciada do poder executivo e legislativo, que passam pelo sufrágio popular. Nos tribunais dos estados que resulta de previsão constitucional, trás em seu bojo constitutivo muito rigor ao cumprimento da lei e das formalidades, pois 4/5 de sua composição provem de juízes concursados. O 1/5 restante surge de um processo democrático de um sufrágio da classe jurídica do País, indicados pela OAB ou indicados pelo Ministério Público, ao final, sob a escolha do chefe do executivo, após aprovação pelo pleno dos tribunais estaduais. Os membros do Ministério Público e juízes, no primeiro grau de jurisdição, são todos provenientes de concurso público. Por outro lado, no 144

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segundo grau de jurisdição, encontram-se os juízes provindos do 1º grau de jurisdição, por antiguidade ou merecimento, critérios de escolha adotados nos Tribunais. No tocante à escolha dos membros do Ministério Público, promotores e procuradores de justiça para participar do processo de acesso aos Tribunais de Justiça, ocorre através de eleição entre eles, que resulta na indicação dos 06(seis) mais votados pelo colégio de procuradores, apresentando lista sêxtupla para o Tribunal de Justiça, o qual, através do colégio de desembargadores, escolhe e apresenta lista tripla ao chefe do poder executivo para indicação final, da mesma forma, ocorre para os advogados e defensores públicos, após eleição entre os membros da OAB, que apresentam a lista sêxtupla para apreciação do Tribunal de Justiça o qual através do pleno, da mesma que procedeu com os promotores de justiça, resulta listra tríplice para apresentação final ao governador do estado que faz a escolha derradeira. Sendo escolhido um representante do Ministério Público e, em outra vez, um representante da OAB. Este processo de escolha no Poder Judiciário é chamado de quinto constitucional. Como se observa, não há a participação popular, porém está legitimado pelas normas constitucionais vigentes e assegura a imparcialidade dos julgadores, bem como, a independência do Poder Judiciário. Resumindo, o quinto constitucional resulta da indicação final do governador do estado, alternadamente, de um representante do Ministério Público e de um representante da OAB, para o cargo de desembargador do Tribunal de Justiça na esfera estadual. 2.3 A limitação da idade para os cargos eletivos É de bom alvitre acrescentar que no direito eleitoral brasileiro as condições de elegibilidade, entre outras, se adquirem por etapas, por conta da idade mínima para nomeação aos cargos eletivos, qual seja, 18 anos para o mandato de vereador, 21 anos para prefeito e vice-prefeito, deputado federal, estadual ou distrital e juiz de paz; 30 anos para governador e vice-governador de estado e distrito federal; 35 anos para presidente e vice-presidente da república e senador, tudo, de conformidade com o art. 14, § 3º, VI, da Constituição Federal. Sendo assim, a Constituição Federal não estipulou idade máxima para o mandato nos cargos eletivos. O limite dos 70 anos que se encontra previsto na legislação é para a obrigatoriedade no tocante ao direito de votar, não de ser votado. Chamamos atenção para o exercício do serviço público nos poderes executivo, judiciário e legislativo, cuja aposentadoria do servidor público aos 70 145

THEMIS anos de idade é obrigatória. Vejamos como dispõe a Constituição Federal, em seu art. 14, parágrafo 3º, inciso VI, verbis: §3º – São condições de elegibilidade, na forma da lei: VI – a idade mínima de: a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da República e Senador; b) trinta anos para Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal; c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e Juiz de paz; d) dezoito anos para Vereador.

A limitação de idade, prevista no dispositivo acima, como condição sine qua non de elegibilidade, choca-se com o princípio constitucional da igualdade insculpido no caput do artigo 5º da mesma Constituição, qual seja: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.

Mas adiante, para poder garantir e preservar essa igualdade o legislador constituinte ratifica no inciso XLI, do mesmo artigo, o princípio da igualdade atribuindo pena, para quem praticar qualquer ato discriminatório, sic: “A lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos ‘e liberdades fundamentais”. Apreciando os dispositivos constitucionais acima transcritos, observase que são contraditórios entre si, pois, de um lado afirma que todos são iguais perante a lei e de outro lado, sem nenhuma justificativa, restringe o direito do cidadão de concorrer a certos cargos eletivos, pelo critério da idade. No passado, vigorava um entendimento de que o homem adquiria sua capacidade plena (habilidade para praticar todos os atos da vida civil), aos 21 anos de vida, de conformidade com o art. 9º da Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916, verbis: Art. 9 - aos 21 anos (vinte e um) anos completos acaba a menoridade, ficando habilitado o individuo para todos os atos da vida civil. Parágrafo primeiro - Cessará, para os menores, a incapacidade: I – por concessão do pai, ou, se for morto, da mãe, e por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver 18 (dezoito) anos cumpridos; 146

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II – pelo casamento; III – pelo exercício de emprego público efetivo; IV – pela colação de grau científico em curso de ensino superior; V – pelo estabelecimento civil ou comercial, com economia própria. Parágrafo segundo – Para efeito do alistamento e do sorteio militar cessará a incapacidade do menor que houver completado 18 (dezoito) anos de idade.

Mas, a legislação civil de hoje determina que a idade para obtenção desta capacidade seja 18 anos. Logo, nesta idade o homem e/ou a mulher adquirem a capacidade civil plena, para o exercício de todos direitos e a faculdade contrair obrigações, de conformidade com o artigo 5º, caput, da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, verbis: “Art. 5º - A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil”. Portanto, não há razão para limitar o acesso aos cargos eletivos, baseado no instituto da idade do candidato, como está insculpido no texto constitucional em art. 14, §3º inciso VI, acima transcrito. Se não existe um estudo cientifico abalizando o entendimento do legislador constituinte de 1988, o Código Civil de 2002 e a legislação do regime jurídico único reconhecem a capacidade plena dos maiores de 18 anos, eis que, estão habilitados para livremente contrair obrigações e adquirir direitos. Os demais ramos do direito, tais como, o comercial, o trabalhista, o administrativo entre outros, seguem a legislação civil, e, consideram os maiores de 18 anos com capacidade plena para o exercício de seus direitos e obrigações. O Direito Penal, que trata da responsabilidade criminal do indivíduo diante da sociedade, também reconhece a capacidade plena aos indivíduos com 18 anos, por outro lado, considera como atenuantes se na data do ato ilícito o infrator for menor de 21 anos ou ultrapassar 70 anos de vida. Aquela diferença da idade que havia no passado entre a capacidade civil e a responsabilidade penal, não mais existe na legislação vigente, que considera a idade de 18 anos como marco tanto para aquisição da capacidade civil plena, como para o instituto da responsabilidade penal. Ratifico este critério da idade é discriminatório, eis que, não mais qualifica ninguém. No passado era uma presunção juris tantun, esta previsão de condição de elegibilidade, pelo critério da idade, não trás nenhum benefício, para o processo eleitoral, muito menos, para o aprimoramento da sociedade brasileira. 147

THEMIS Essa previsão constitucional foi elaborada pelo constituinte pretérito, há época fazia sentido, representava uma realidade social, a inexperiência do jovem, as mulheres nem participavam dos processos políticos. Porém, esta não é a forma mais adequada hodiernamente, verifica-se que o constituinte de 1988, deixou passar em branco esta atualização. O legislador constituinte deveria ter sido mais objetivo ao exigir um nível de escolaridade mínima, como critério de condições de elegibilidade para os cargos eletivos (parágrafo 4º do art. 14 da Constituição, verbis: “são inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos”, esclarecendo, significa que são elegíveis os alfabetizados. Porém, o termo alfabetizado é um conceito subjetivo, que muitas vezes varia de acordo com o entendimento do avaliador. Exemplo vivo, recentemente correu no pleito eleitoral de 2010, com o caso do palhaço cearense Tiririca, o qual foi palco de muitas críticas e matérias sensacionalistas, pois, queriam impedir a diplomação do Deputado Federal, Tiririca eleito com 1,35 milhão de votos. Inclusive, puxou outros candidatos devido a sua expressiva votação, não vou me ater aos detalhes porque a esta matéria foi bastante discutida na imprensa, nacional. Mas o entendimento final do TSE foi no sentido de que o palhaço Tiririca atendia aos anseios da Lei eleitoral, logo era alfabetizado. Acrescente-se que o Ex-Presidente do nosso país, Luis Inácio Lula da Silva que não tinha curso de nível superior, mostrou-se à altura das demandas do cargo, obtendo reconhecimento internacional. Apesar de sabermos que se precisa de muitos anos de estudo e dedicação para a uma boa formação cultural, ela é árdua e requer muitos sacrifícios. Por outro lado, a liderança política às vezes vem do berço, ou, pode ser construída ao longo dos anos. Hoje, se quisermos mudar o futuro de nosso país, se faz necessário sair da utopia e encarar a realidade e trabalhar para se ver bons representantes políticos. A nosso ver, o legislador constituinte de 1988, deixou passar em branco a oportunidade de alterar este dispositivo constitucional impróprio, do critério da idade, e, deveria ter especificado objetivamente o significado de alfabetizado nos dias atuais. Entendemos que a definição de alfabetizado hodiernamente cabe ao Conselho Nacional de Educação. O cidadão para ser admitido no serviço público e executar as funções relevantes e imprescindíveis à administração pública, precisa ter 18 anos, no mínimo formação do nível médio e, por fim, ser aprovado em concurso público, dentro das vagas. É normal a procura do especialista para resolver os problemas 148

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pessoais, para ser um simples trabalhador de qualquer empresa privada ou mesmo em sociedades de economia mista, como é o caso Banco do Brasil, faz-se necessário, no mínimo, conhecimento de nível médio, seleção e aprovação em teste de conhecimento, entrevista entre outros, muitas vezes, para um serviço totalmente braçal. Quando se trata de serviços mais qualificados exigem-se cursos de formação especifica ou nível superior com especialização. Atualmente, a maioria dos concursos públicos é de nível superior. O candidato aprovado no concurso faz vários tipos de exame. Por conseguinte, maior rigor deve ser exigido para quem quer ocupar os maiores cargos públicos, que são os eletivos, o topo do poder executivo e legislativo. Por que são cargos que necessitam de um vasto conhecimento técnico e jurídico, razão pela qual se faz necessária a criação das assessorias. Diante das considerações apontadas, verificamos que poderíamos escolher melhores representantes do povo e gestores do patrimônio público, com mais capacidade administrativa, se fosse condição sine qua non, para o exercício do mandato político, ao invés do critério da idade, se utilizasse o critério da formação cultural especifica, que é imprescindível ao exercício da legislatura política do País, nos diversos cargos eletivos, tais como vereadores, deputados e senadores, prefeito, governador e Presidente da República. O legislador constituinte deveria convencionar a exigência uma formação especifica para ser representante do povo, como um curso de formação política, ministrado no próprio partido político, da mesma forma, exigir o mínimo de 1(um) anos de filiação partidária. Na grande curricular deveria constar as disciplina de direito, cidadania, administração e economia, nos cursos gratuitos e ministrado pelas universidades estaduais, como já existe no projeto piloto da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, através de sua escola de governo. Desta forma, não haveria discriminação, pois, todos teriam acesso. 2.4 A justiça eleitoral procedendo de ofício Precisamos reprisar que os juízes eleitorais podem e devem agir mesmo sem provocação do Ministério Público ou dos partidos políticos. Exerçam o poder de polícia com firmeza, rigor e tempestividade, pois é dessa atuação que depende a lisura de todo o processo eleitoral, se o juiz está atento e proíbe a prática de propaganda eleitoral irregular, por exemplo, estará cuidando para que não haja desequilíbrio de forças na campanha, fazendo observar o princípio da 149

THEMIS isonomia de oportunidades. Por outro lado, quanto mais tardia é a atuação da justiça eleitoral menos resultados produzem a medida adotada, principalmente quando o ilícito diz respeito à propaganda eleitoral. O poder de polícia será exercido pelos juízes eleitorais, quer nas eleições do legislativo ou do executivo em âmbito municipal, estadual ou federal. O alcance da norma eleitoral se confunde com a definição da competência da justiça eleitoral, que atinge atos de mera administração, coordena o processo eleitoral, serve para dirimir conflitos, ou, fiscalizar a atuação dos partidos, bem como, o controle das filiações partidárias. 2.5 As resoluções do TSE e sua força normativa Consoante já explicado anteriormente, à Justiça Eleitoral compete dirimir conflitos de interesses, atividade típica do Poder Judiciário, da mesma forma, coordenar o processo eleitoral, atividade típica do poder executivo. Esta atividade atípica do judiciário eleitoral lhe impõe uma situação diferenciada dos demais Órgãos do Poder Judiciário, qual seja agir de oficio. A coordenação do pleito eleitoral impõe ao juiz a atuação independentemente de qualquer provocação, do mesmo modo, que age o chefe do poder executivo na administração pública ao perceber a necessidade de sua intervenção, essa iniciativa faz parte do chamado exercício do poder de polícia. Esta é a peculiaridade da Justiça Eleitoral, além das soluções dos conflitos de interesses oriundos do pleito eleitoral, tem a competência para organizar e administrar o processo eleitoral acrescente-se a função de editar normas, regulamentos para as eleições. Assim, a Justiça Eleitoral exerce, no primeiro momento, uma atividade administrativa e fiscalizadora das eleições, no segundo instante, a função mediadora, por fim, a função de julgadora dos conflitos eleitorais, a atividade jurisdicional. Observando com acuidade a função normativa, tem previsão nos arts. 1º, § único e 23, IX, do Código Eleitoral, que autorizam o TSE a expedir instruções para a fiel execução e expedir as instruções que julgar convenientes à execução deste código, respectivamente, o qual se traduz nas resoluções administrativas para normatizar o processo eleitoral, com força de lei ordinária. Veja o entendimento no Recurso nº 1322, do Estado do Amazonas, acórdão nº. 636, de 09 de outubro de 1951. O TSE decidiu que as resoluções têm força de lei geral, a ofensa à sua letra expressa autoriza recurso especial, nos termos do art. 167, do Código Eleitoral (1950). Em 24 de abril de 1952, através 150

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do RESP nº1943, de Iraí, RS, relatoria do Ministro Pedro Paulo Pena Costa, fez expressar na indexação que a resolução tem característica de lei geral, de caráter obrigatório. As resoluções do TSE podem ser objeto de controle concentrado de constitucionalidade se gerarem descontinuidade com os textos constitucionais, na hipótese de desvio da função normativa, incluindo, para a restauração, a ação direta, nas formas do art. 102, I, “a”, da Constituição Federal. Na hierarquia das normas, a resolução apresenta-se como ato interior à lei, não podendo contrariála, nem restringir ou ampliar suas disposições; no que infringir ou extrapolar a lei é ato nulo (In Ac. Nº 167, RMS, 317ª Zona Eleitoral, Montes Claro, MG, relator Ministro Valdeman Zveiter). Indiscutível a competência do TSE para editar resoluções, objetivando a regulamentação de lei, como também de emprestarlhe o “sentido que as compatibilize com o sistema no qual se insere”, conforme entendimento do TRE mineiro, no Ac. 167, anteriormente mencionado. Quando edita uma resolução, o TSE exerce a atividade meramente administrativa, com a interpretação de textos que devem incidir no processo eleitoral, noutro instante, cria regras gerais e abstratas aplicáveis nos desfechos das contendas. Diferentemente dos demais órgãos do Poder Judiciário, à Justiça Eleitoral, ainda compete a função consultiva, reservada aos seus tribunais regionais e ao Tribunal Superior, exatamente porque exerce a função administrativa do processo de captação do sufrágio. O Código Eleitoral prevê ao Tribunal Superior: “art. 23 XII – responder, sobre matéria eleitoral as consultas que lhe forem feitas em tese por autoridade com jurisdição Federal ou Nacional de Partido Político”. Igual atribuição é dada aos tribunais regionais, como estabelecido no art. 30, VIII, do mesmo Código Eleitoral. Logo, percebe que o juiz eleitoral não tem competência para responder a consultas, pois, essa atividade é reservada tão somente aos TRES e ao TSE. O legislador em sua sabedoria reservou esta árdua missão somente aos Tribunais, por que são os juízes que individualmente julgam os processos, no exercício da judicatura o fazem de acordo com o livre convencimento. Por outro lado, se eles respondessem a uma consulta anteriormente, comprometeria o princípio do livre convencimento, pois, já teria sedimentado um juízo de valor antecipado, sendo assim, qualquer caso que chegasse para apreciação e julgamento daquele juiz seria tendencioso, desta feita, o mesmo já teria sumulado o seu convencimento, por via de consequência, a sentença já existiria antes do caso em concreto. Poderia ocorrer também que o juiz mudasse de 151

THEMIS opinião e neste caso a situação seria mais complicada, eis que, para a parte que efetuou a consulta o juiz ele estaria vinculado ao parecer exarado sobre a dita consulta jurídica, mesmo que pudessem surgir diversas possibilidades pelas quais justificasse o novo posicionamento do julgador. Por via de conseqüência, resultaria induvidosamente no descrédito do julgador, que na primeira instancia representa o Poder Judiciário. Quanto aos tribunais, a situação é diferente, porque se trata de um colegiado, portanto, vários juízes que estudam o direito, e o interpretam de modo diferente, mas o colegiado apresenta ao final um posicionamento por votação. Sendo assim, poderá mudar o entendimento sem comprometer o princípio do livre convencimento. É possível haver uma vinculação entre a consulta efetuada e o caso em concreto, mesmo assim, como se trata de uma decisão colegiada a consulta não fica vinculada, pois, basta mudar um dos membros que poderá mudar o entendimento do Tribunal, ou mesmo, sem mudar a constituição dos membros do Tribunal um julgador poderá mudar o seu entendimento jurídico, assim também poderá mudar o posicionamento do Tribunal. Diante destes fatos, não há como comprometer o princípio do livre convencimento dos julgadores, em se tratando de decisão colegiada quando da apreciação do caso em concreto. Importante frisar que a consulta a ser formulada por autoridade pública ou partido político ou quem de direito não pode versar sobre caso concreto, sob pena do Tribunal antecipar a solução jurídica de um caso concreto, antes do procedimento jurídico que se faz necessário. Por meio desse instrumento, o jurisdicionado toma conhecimento da posição a respeito da situação em tese submetida ao Tribunal para apreciação, isto possibilita aos candidatos e partidos políticos evitarem práticas que contrariem o entendimento da Justiça Eleitoral. Fato importante principalmente porque torna público assunto de interesse geral, mas, estes entendimentos não vinculam os Tribunais, que, mudam sua composição a cada dois anos, podendo mudar o seu entendimento. É assim que o direito eleitoral evolui no cotidiano. Ratifica-se, o próprio Código Eleitoral deu competência à justiça eleitoral para expedir normas que garantam a execução da legislação é o que se observa na leitura do parágrafo único do art. 1º, verbis: “O Tribunal Superior Eleitoral expedirá instruções para a sua fiel execução”. Esta função normativa também está cristalina no artigo 105 da Lei 9.504 de 1997, nos art. inciso, IX do art. 23, do Código Eleitoral, que autoriza o TSE a expedir resoluções para normatizar o processo eleitoral: “Expedir as instruções que julgar convenientes à execução deste Código”. 152

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O Código Eleitoral, em seu artigo 1º, deixa cristalina força normativa que ele tem para assegurar os direitos políticos e o processo eleitoral, verbis: Este Código contem normas destinadas a assegurar a organização e o exercício de direitos políticos precisamente os de votar e ser votado. Parágrafo único – O Tribunal Superior Eleitoral expedirá instruções para sua fiel execução. Art. 23 – Compete ainda privativamente o Tribunal Superior: - IX – expedir as instruções que julgar convenientes a execução deste Código.

A título de ilustração, repete-se o entendimento acordado no Tribunal Superior Eleitoral, qual seja essa função normativa foi objeto de exame pelo próprio TSE o qual decidiu: “A Resolução tem força de lei ordinária, conforme decidido por aquela Corte no Recurso nº. 1.943-RSTSE 13/16”. Também os T.R.Es editam resoluções, no mais das vezes de interesse da organização da justiça eleitoral estadual. Diante deste estudo, verifica-se que as resoluções editadas pelos T.R.Es têm força de lei, uma vez que se faz necessário na execução da atividade administrativa do judiciário local, no processo de cadastramento dos eleitores, editar resoluções para tornar viável a execução desta prestação de serviço a sociedade. Da mesma forma, como procede o poder executivo no cotidiano através das portarias, que em sentido amplo, têm força de lei. Assim são as resoluções editadas pelos T.R.Es. Acrescentemos as resoluções com aspectos jurídicos, aquelas não administrativas, as quais deverão ser observadas por todos. É de bom alvitre chamar atenção que às resoluções não podem ir contra as normas legislativas, contra a própria lei, uma vez que, violaria o princípio da competência legislativa das normas. A resolução não é lei (em sentido estrito), mas tem força de lei (lato sensu), não prevalecendo se vier afrontar a Lei. 3 PECULIARIDADES DA JUSTIÇA ELEITORAL BRASILEIRA A função do judiciário eleitoral, de cadastrar o eleitor e coordenar o processo eleitoral, como já foi dito anteriormente, é uma atividade administrativa, na qual se encontra o poder de polícia, o qual se traduz na responsabilidade da administração estatal de limitar o exercício de certos direitos individuais em prol do bem comum. 153

THEMIS Esta peculiaridade da Justiça Eleitoral, de atuar fazendo às vezes do poder executivo quando do cadastramento dos eleitores, na fiscalização desse cadastramento no próprio processo eleitoral, se justifica em razão da importância que é o processo eleitoral dentro do universo de suas filigranas o qual resultará no destino político administrativo da nação brasileira. Este desvio de função do judiciário eleitoral tem previsão Constitucional, pois, o legislador constituinte entendeu que só o poder judiciário teria a capacidade de organizá-lo e efetivá-lo, nos limites da lei, dento da imparcialidade, de forma correta, sem o chamado jeito brasileiro. A justiça coordena o processo eleitoral, os juízes têm o poder de polícia, a seu dispor, no exercício desse poder dever, eles atuam independentemente de provocação, sempre que for necessário para a boa ordem dos trabalhos, veja-se como dispõe o artigo 23, incisos XIV e XVIII e Art. 35, incisos I, IV, XVI, e XVII, do Código Eleitoral, que ao TSE, aos TRES e aos Juízes Eleitorais, em síntese compete: Fazer as diligências que julgar necessário a ordem e presteza do serviço eleitoral, tomar conhecimento das reclamações que lhe forem feitas verbalmente ou por escrito, reduzindo-se a termo e determinando as providências que cada caso exigir, providenciar para a solução das ocorrências que se verificou nas mesas receptoras e tomar todas as providências ao seu alcance para evitar os atos viciosos das eleições.

Deste modo, verificamos que a Justiça Eleitoral distingue-se dos demais órgãos do Poder Judiciário, não só pela tríplice função que lhe é exigida, como, a função administrativa, o poder de polícia, mas, ao mesmo tempo, a capacidade de dizer o direito no caso em concreto, por conseguinte isto ocorre, muitas vezes, pela coragem e determinação dos próprios juizes, que não podem se omitir de dizer o direito, a este feito cognominamos de princípio da autorreferência. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Direito Eleitoral é um ramo do direito público, daí o interesse maior de todos em sua normatização, bem como, na justa solução dos conflitos, que, pode resultar principalmente no destino político do Brasil. 154

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O Direito Eleitoral dedica-se ao estudo das normas e procedimentos que organizam e disciplinam o funcionamento do poder de sufrágio popular, para estabelecer o resultado final entre a vontade do povo e composição das Casas Legislativas, bem como, a indicação do chefe maior do Poder executivo, em qualquer das esferas, municipal, estadual ou federal. Logo, o direito eleitoral regula a capacidade eleitoral ativa e passiva do cidadão. A capacidade ativa se traduz no direito de votar, que é o mais importante exercício de cidadania, isto implica na disposição que tem o alistado de influir na formação dos poderes legislativo e executivo, entregando aos seus representantes eleitos o destino do município, do estado e do próprio País. Outrossim, pelo seu disciplinamento sabemos quem, dentre aqueles com capacidade eleitoral ativa, terá as condições exigidas por lei para poder inscreverse e concorrer a um cargo eletivo, o direito de ser votado, chamado por alguns doutrinadores de capacidade eleitoral passiva. Com estas considerações primárias verificamos a importância do Direito Eleitoral num Estado Democrático. A sociedade democrática e a legitimidade governamental sedimentamse no consentimento do povo. O Brasil é um país democrático e compete à Justiça Eleitoral o dever de cuidar para que o consentimento popular seja manifestado de forma livre, desprovida de qualquer ato fraudulento na escolha dos representantes das casas legislativas e dos chefes do Poder Executivo. O Poder Judiciário, que é o terceiro poder do estado independente e harmônico, é constituído de forma diferenciada dos demais poderes. O rigor em sua constituição o torna imparcial, espelhando a credibilidade que tem diante da sociedade brasileira, principalmente após a criação do Conselho Nacional de Justiça que funciona como elo entre o povo e o Poder Judiciário. A Constituição Federal de 1988 reservou à União a competência privativa para legislar sobre o Direito Eleitoral exigindo lei complementar para regular a distribuição de competência entre os vários órgãos jurisdicionais eleitorais. A fixação da competência do juiz eleitoral, das juntas eleitorais, dos tribunais regionais e do Tribunal Superior é matéria reservada à legislação complementar, não cabendo a legislação ordinária regulamentá-la. O Código Eleitoral prevê a fixação da competência dos Órgãos Jurisdicionais Eleitorais, por esta razão, ganhou status de lei complementar a partir da Constituição de 1988, desta forma, somente lei complementar poderá modificá-lo. No direito eleitoral brasileiro, as condições de elegibilidade se adquirem por etapas, principalmente por conta da idade mínima, para 155

THEMIS nomeação aos cargos públicos eletivos, conforme insculpido no art. 14, § 3º, VI, da Constituição Federal. Esta condição de elegibilidade pelo critério da escala de idades, entendemos como discriminatória, é uma presunção juris tantun de suposta imaturidade para certos cargos políticos, não trás nenhum benéfico para o processo eleitoral, ou, o aprimoramento da sociedade brasileira, e atenta contra o princípio constitucional da igualdade esculturado no caput do artigo 5º. da Lei Maior. Ao meu ver, o legislador constituinte deveria inserir na legislação como requisito para disputa aos cargos eletivos um curso de formação política, que fosse ministrado pelos próprios partidos político, da mesma forma, que se exige o mínimo de 1(um) ano de filiação partidária. Que na grande curricular deste curso estivesse presente as disciplinas de direito, cidadania, administração e economia. Estes cursos seriam ministrado de forma gratuita. Cabendo também ao estado incluir em suas universidades públicas, eis que, é assunto de interesse da coletividade. Atualmente, existe um projeto piloto da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, através de sua escola de governo. Desta forma, não haveria discriminação e todos terão acesso. Este é um critério mais justo, não é discriminatório, nem atenta contra os princípios constitucionais. Pois, prepara o cidadão culturalmente para o cargo desejado no processo eleitoral. Se assim fosse, com certeza teríamos representantes do povo mais qualificados, gestores do patrimônio público, com maior capacidade administrativa. A justiça eleitoral pode agir de oficio e as resoluções facilitam sobremodo o trabalho dos operadores do direito eleitoral, porque o TSE acaba consolidando nelas não só toda a legislação eleitoral em vigor como também sua jurisprudência mais recente e o resultado das consultas a ele dirigidas. São elas, por conseguinte, fonte segura para juízes, promotores advogados candidatos e partidos políticos, uma vez que a resolução do TSE interpreta a legislação em vigor, bem como, demonstra o pensamento da mais alta corte da justiça eleitoral, constituindo-se em importante instrumento de orientação a todos que lidam com o direito eleitoral. É bom lembrar que os TREs também editam resoluções, no mais das vezes de interesse da organização da justiça eleitoral estadual. As resoluções editadas pelos TREs têm força de lei, como é o caso, no processo de cadastramento dos eleitores. Os TREs editam resoluções para tornar viável a execução do serviço, da mesma forma que o poder executivo faz no dia a dia través das portarias, que em sentido amplo têm força de lei. Outrossim, acrescentamos que as resoluções 156

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com aspectos jurídicos, àquelas não administrativas, deverão ser cumpridas por todos. Apesar da força dada as resoluções dos tribunais, estas jamais podem ir contra as normas legislativas, do contrário, violariam o princípio da competência legislativa das normas. Nesta situação, não poderia prevalecer as resolução do TRES e do TSE, por afrontar a própria Constituição Federal. REFERÊNCIAS BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1993. CASTRO, Edson de Resende. Teoria e Prática do Direito Eleitoral, 2 ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2005. Constituição da República Federativa do Brasil. Câmara dos Deputados. Brasília: Centro de Documentação e Informação Coordenação de Publicações, 2001. FILHO, Napoleão Nunes Maia. Estudos Temáticos de Direito Constitucional. Fortaleza: Casa José de Alencar, Programa Eleitoral, 2000. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 1998. MELLO, Celso de .Voto na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.345-0. DF. Disponível em . Acesso em: 5 fev. 2011. RIBEIRO, Fávila. Direito Eleitoral, Rio de Janeiro: Forense, 1997. TRE/CE, Manual de Legislação Eleitoral e Partidária. Fortaleza. 2004.

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REFLEXÕES SOBRE A ATUAÇÃO DO CNJ NA RELAÇÃO COM O EXECUTIVO E O LEGISLATIVO Leonel Gois Lima Oliveira

Doutorando em Administração pela Escola Brasileira de Adminsitração Pública e de Empresa da Fundação Getúlio Vargas (EBAPE/FGV)

RESUMO: O CNJ foi criado com a finalidade de ser um órgão de controle administrativo e financeiro do Judiciário brasileiro. Porém evidencia-se um papel político para o órgão que interfere na relação com o Executivo e o Legislativo. Procura-se refletir sobre as recentes movimentações do CNJ no combate ao nepotismo, às restrições impostas para a cessão de servidores de outros Poderes atuando no Judiciário e à corrupção. Trata-se de um estudo exploratório que investiga os encaminhamentos das Metas 18 e 19 do Judiciário brasileiro para o ano de 2013. O acompanhamento preliminar demonstra os esforços realizados pelos tribunais para julgar todos os processos de improbidade administrativa e de crimes contra a administração pública. Palavras-Chave: Gestão do Judiciário; Freios e Contrapesos; Conselho Nacional de Justiça. ABSTRACT: The CNJ was created in order to be an organ of administrative and financial control of the Brazilian Judiciary. But it is evident a political role for the organ that interferes in the relationship with the Executive and Legislative branches. Attempt to reflect on the recent movements of the CNJ to combat the nepotism, the restrictions imposed for the assignment of the other Powers’ servers working in the Judiciary and the corruption. This is an exploratory study that investigates the referrals of Targets 18 and 19 of the Brazilian Judiciary for 2013. The preliminary monitoring demonstrates the efforts of courts to adjudicate all cases of the administrative misconduct and the crimes against the public administration. Keywords: Court Management; Checks and Balances; National Council of Justice.

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THEMIS INTRODUÇÃO O Judiciário brasileiro é visto habitualmente pela lentidão e demora excessiva na resolução dos conflitos, adicionando a percepção de elevados custos, a sensação de impunidade e a falta de transparência de suas atividades. O problema não é recente e tem sido evidenciado por pesquisas de opinião e, principalmente, pela imprensa de forma anedótica de que o Judiciário brasileiro não funciona de forma satisfatória para a sociedade (OAB, 2003; AMB, 2005). Perspectivas de mudanças quanto ao aumento do desempenho judicial vêm sendo evidenciadas após a introdução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pela Emenda Constitucional (EC) 45/2004 no Judiciário brasileiro. A resposta à sociedade foi dada com a criação de uma instituição, que seria de um nível hierárquico elevado, com o objetivo de realizar um controle administrativo e financeiro em todos os tribunais brasileiros, inclusive os tribunais superiores (Vieira & Pinheiro, 2008). O CNJ vem buscando elevar o desempenho dos tribunais ao longo de quase 10 anos de atuação por meio, por exemplo, de resoluções, recomendações e metas, mas os resultados ainda não são devidamente satisfatórios. Ressalta-se a ausência de estudos sobre o Judiciário. Nogueira (2011) revela que à Gestão do Judiciário representa menos de 1% dos estudos realizados nos principais eventos científicos e periódicos da área de Administração Pública no Brasil, conforme o levantamento realizado entre 1995 e 2008. Estudos posteriores também apresentam levantamento de artigos voltados para pesquisas empíricas sobre a Justiça na base da Scielo e de anais de eventos da área de ciências sociais (SADEK; OLIVEIRA, 2012) e voltados para o desempenho no Judiciário em bases de dados nacionais e internacionais (GOMES; GUIMARÃES, 2013). Ambos demonstram avanços no campo científico, mas reconhecem a necessidade de mais estudos nas áreas de Ciências Sociais e Administração Pública. Portanto, um olhar político da atuação do Conselho ainda não foi devidamente explorado pelos estudos que procurem relacionar as duas áreas de conhecimento. Poucos trabalhos podem ser identificados como, por exemplo, o de Fragale Filho (2010) que analisou a jurisprudência do CNJ envolvia o movimento associativo da magistratura como um dos litigantes (partes envolvidas). Outro estudo desenvolvido por Fragale Filho (2011) abordava o processo de indicação dos membros do CNJ como uma sinalização das futuras pautas de atuação do Conselho. 160

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Visualiza-se, portanto, um cenário ainda pouco explorado academicamente que consiste na atuação do CNJ e suas interferências em relação aos outros poderes. O presente estudo, a partir de um enfoque exploratório, procura trazer reflexões sobre as recentes manifestações do CNJ no combate à corrupção e pelo aumento da transparência no Judiciário. Tem como objetivo principal apresentar e discutir os dados recentes do CNJ no alcance das metas 18 e 19 para o Judiciário brasileiro no ano de 2013, bem como discutir suas implicações políticas na relação com os demais Poderes Constitucionais (Executivo e Legislativo). Parte-se da seguinte questão norteadora: como o papel administrativo do CNJ no Judiciário brasileiro tem ganhado aspectos políticos que interferem nas relações com o Executivo e o Legislativo? Procura-se responder ao questionamento por meio da demonstração de pequenos casos, além de propor novas direções para futuras pesquisas. Este trabalho está estruturado da seguinte forma: a seção 2 apresenta uma breve revisão da literatura enfocando os estudos sobre o Judiciário relacionado com os aspectos administrativos e políticos. A seção 3 apresenta os aspectos metodológicos adotados para a realização deste estudo. Seção 4 referese às análises, discussões dos casos de atuação do CNJ investigados e sobre as possíveis implicações políticas na relação entre o Executivo e o Legislativo. Por fim, são apresentadas as considerações finais e os encaminhamentos futuros para pesquisas na Seção 5. 1 BREVE REVISÃO DA LITERATURA SOBRE O JUDICIÁRIO Uma concepção mais politizada de atuação dos tribunais vem ganhando maior visibilidade no contexto latino americano de democracia em formação com o fim dos regimes militares. Os estudos procuram demonstrar o papel do Judiciário nas políticas públicas e na governabilidade destes regimes políticos, principalmente atuando como uma instituição de vetos e garantindo os novos direitos conquistados pela população (ANDREWS; MONTINOLA, 2004; ARANTES, 1997; CASTRO, 1997a, 1997b; CHAVEZ, 2004: FINKEL, 2004; GINSBURG, 2003; HELMKE, 2005; PRILLAMAN, 2000; RÍOS-FIGUEROA, 2007). Neste caso, seguem o argumento recorrente de que um Judiciário funciona adequadamente ao servir de contrapesos aos outros poderes governamentais, respeitando os princípios de separação entre os poderes e garantindo a proteção das minorias (MONTESQUIEU, 1962). Porém, o Judiciário necessita ser acionado 161

THEMIS para que possa atuar e servir de árbitro nos conflitos entre as instituições políticas. A questão é que a sua atuação não depende apenas da força dos tribunais, mas também dos padrões encontrados nas disputas políticas (TAYLOR, 2007). No contexto brasileiro, o Poder Judiciário passou a receber um grande aumento de demanda principalmente nas décadas de 1990 e 2000. A intensificação da procura pelos serviços judiciais foi um reflexo da ampliação da garantia de direitos fundamentais individuais e coletivo e à possibilidade de contestação da inconstitucionalidade das leis por novos atores, igualmente conferidas pela Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988). O Judiciário ganha um novo papel com a Constituição, sendo protagonista de uma oportunidade de ampliação de seu poder político, dado a ampliação da prestação de seus serviços. Além disso, foram visualizados dois movimentos simultâneos: de um lado, uma politização do Judiciário e, em reverso uma judicialização da política (ARANTES, 1997; RODOVALHO, 2012; SADEK, 1999; 2004; TAYLOR, 2008). Estudos recentes procuraram retratar alguns papeis de atuação do Judiciário nestas disputas políticas. Visualiza-se um modelo dicotômico no cenário político brasileiro. Um lado é apresentado por um modelo mais consensual, enquanto pelo outro lado verifica-se um posicionamento mais majoritário. Este demonstra que o controle das forças políticas encontra-se bastante centralizado e, portanto apresenta poucas dificuldades para a estabilidade do processo decisório e para eventuais mudanças de políticas publicas, reduzindo os seus eventuais custos. Enquanto o outro lado apresenta um processo decisório mais problemático e custoso pelo excesso de jogadores com poder de veto. Embora haja esta dicotomia de argumentos, o que se tem visto é um posicionamento mais balanceado pelas regras que envolvem a relação entre o Executivo e o Legislativo. Neste caso, a atuação dos agentes políticos seria resultado de um equilíbrio tênue entre a descentralização e a centralização do processo decisório. Pereira e Mueller (2003) exemplificam quando os partidos políticos são afetados nos dois contextos: primeiro com a descentralização por meio das regras eleitorais e do federalismo que representa certa vulnerabilidade dos agentes do Legislativo frente aos Tribunais Eleitorais. Contrapondo-se, a centralização ocorre quando os agentes atuam com os seus poderes legislativos em união com o Executivo na formulação do orçamento. Então os tribunais se veem mais vulneráveis, pois são afetados diretamente pela legislação que influencia os trâmites processuais, bem como possíveis restrições orçamentárias que venham a prejudicar seus 162

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interesses (RODOVALHO, 2012). Além destes aspectos, o Judiciário, também, é reconhecido como um local favorável para a contestação de políticas públicas, assim como as agências reguladoras ou burocracias específicas. Os tribunais preenchem um espaço de instância política, sendo instituições visualizadas para além de suas veracidades constitucionais ou legais (TAYLOR, 2007). Neste contexto, os magistrados e os tribunais entram no cenário político como agentes em potencial na interferência das políticas públicas. O principal papel evidenciado pelas pesquisas mais recentes consiste no poder de intervenção realizada pelo Judiciário federal ao inserir interesses minoritários na formulação destas políticas. Em alguns casos, representa a voz de minorias ou de interesses marginais frente aos objetivos propostos pelos Executivo ou Legislativo com suas políticas (TAYLOR, 2007; 2008; TAYLOR; DA ROS, 2008). Outros estudos procuram demonstrar a atuação dos tribunais e magistrados quando questionados pela inconstitucionalidade de determinados dispositivos legais, geralmente legislações propostas pelo Executivo. Os posicionamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) tendem a ser o principal objeto destas pesquisas, embora sejam vistos de forma relacionada às manifestações dadas pelos tribunais e pelos magistrados federais. No geral, verifica-se que o STF age buscando a governabilidade e mantendo uma boa relação com os outros poderes, principalmente evitando apresentar decisões com mérito e buscando frequentemente arquivar as demandas por falhas processuais (ARANTES, 1997; CASTRO, 1997b; OLIVEIRA, 2011; PACHECO, 2006; TAYLOR; DA ROS, 2008). Esta aparente timidez do STF é apontada por Taylor (2007) como uma situação atípica frente aos estudos realizados por Vanberg (2001) e Whittington (2003) baseados na teoria dos jogos. Os trabalhos consistem em modelar as relações entre o Legislativo e o Judiciário, demonstrando uma relação inversa entre o maior apoio público dado à atuação do tribunal com relação ao menor acatamento dele ao Legislativo, condicionado a um cenário de transparência. Por outro lado, se as legislações contestadas tiverem maior importância para os legisladores, os tribunais demonstram-se menos contrários a ela. Taylor (2007) acredita que, no caso brasileiro, o Judiciário preocupa-se mais com o relacionamento com o Executivo. Este sim poderia oferecer maiores punições do que o aparentemente fraco Legislativo brasileiro. Embora veja esta situação de forma interativa em que há um aprendizado constante entre os atores políticos e, em alguns casos, o Judiciário não seria tão tímido e submisso aos outros poderes. Mesmo assim, é interessante perceber as limitações encontradas e a necessidade de 163

THEMIS estudos mais amplos que enfocassem estas relações e eventuais disputas. Alguns avanços já podem ser encontrados em Taylor (2011) quando procura investigar a atuação da Justiça Federal e Eleitoral num processo de maior accountability no contexto brasileiro. São propostas reformas no Código Penal para um melhor enquadramento das irregularidades cometidas pelos políticos durante campanha e quando exercem seus cargos, por exemplo. Portanto, o combate à corrupção permitiria o aumento da efetividade de órgãos auxiliares como, por exemplo, a Polícia, o Ministério Público e outras burocracias. Estas instituições se veem limitadas com as regras atuais e ineficiências encontradas tanto na Justiça Federal como Eleitoral (TAYLOR; BURANELLI, 2007; TAYLOR, 2011). O Judiciário brasileiro passou a ser um ambiente de novas ideologias e práticas relacionadas à sua gestão com a criação do CNJ que surge com o objetivo de principal de realizar o controle administrativo e financeiro do Judiciário brasileiro (NOGUEIRA, 2010; RODOVALHO, 2012; VIEIRA; PINHEIRO, 2008). O CNJ age para melhorar o desempenho judicial trabalhando estrategicamente em desenvolvimento de sistemas de monitoramento e divulgação de dados sobre o Judiciário (CNJ, 2009a; DPJ, 2012a; 2012b). Visando à manutenção da independência e autonomia, o CNJ tem abordado questões polêmicas para o serviço público como, por exemplo, o combate ao nepotismo e à restrição da quantidade de servidores cedidos de outros poderes (CNJ, 2005; 2009b; 2010). 2 METODOLOGIA Trata-se de um estudo de caráter exploratório e natureza qualitativa que se utilizou do escopo metodológico da análise de documentos. Utilizou-se de documentos públicos, de caráter oficial, disponíveis no site do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF) como, por exemplo, resoluções, súmulas, relatórios e dados de acompanhamento do acervo processual. Também se realizou uma pesquisa em notícias de jornais, bem como do portal de notícias do próprio CNJ para exemplificar os casos apresentados. Segundo Spink (2004), os documentos de domínio público refletem duas práticas discursivas: como gênero de circulação, enquanto artefatos do sentido de tornar público (publicidade), e como conteúdo, em relação ao que está registrado. Na análise qualitativa das informações documentais coletadas, utilizouse da técnica da análise temática que se insere no conjunto das técnicas da análise de conteúdo (Bardin, 2011). Objetivou-se evidenciar os itens de significação a 164

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partir da descrição do corpus que foi construído, baseando-se nas unidades de codificações recortadas do conteúdo dos documentos compilados. Percorreramse as diferentes fases de análise: I) a pré-análise, II) a exploração do material e III) tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação. Conforme explica Bardin (2011), esse diálogo entendido à luz de categorias e informações contextuais variadas faz emergir a interpretação como elemento intrínseco ao processo de pesquisa. Procurou-se, principalmente, evidenciar os dados de acompanhamento das metas 18 e 19 estabelecidas para o Judiciário brasileiro no ano de 2013. As metas foram definidas no IV Encontro Nacional do Poder Judiciário no final de 2012. Trata-se do encontro em que se reúnem todos os presidentes e representantes dos Tribunais do país para decidir as metas a serem alcançadas nos próximos anos. A meta 18 tem como objetivo julgar, até o fim de 2013, os processos de improbidade administrativa e de crimes contra a administração pública distribuídos ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), à Justiça Federal e aos estados, até 31 de dezembro de 2011. Enquanto a meta 19 tem por objetivo o aperfeiçoamento e alimentação do Cadastro Nacional de Condenações Cíveis por ato de improbidade administrativo a ser realizado por meio de parcerias entre o CNJ, os Tribunais Estaduais (TJs), Federais (TRFs), Regionais Eleitorais (TREs) e de Contas (TCU, TCEs e TCMs). Os dados analisados estão atualizados até o dia 17 de junho de 2013 e publicados no site do CNJ (CNJ, 2013). 3 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS A princípio, é de se imaginar que o CNJ atue e interfira apenas no Judiciário. Porém as resoluções, as recomendações e os projetos geram impactos também nos outros poderes, mesmo que indiretamente. O primeiro caso mais emblemático foi o combate ao nepotismo iniciado pelo CNJ no Judiciário, mas que foi ampliado para os outros poderes, inclusive com a inibição da prática de nepotismo cruzado conforme manifestado pela Resolução n.º 7 do CNJ e pela Súmula Vinculante n.º 13 aprovada pelo Pleno do STF (CNJ, 2005; STF, 2008). O CNJ também interferiu na ampliação da jornada de trabalho de tribunais, o que vem acarretando dificuldades nos orçamentos de tribunais estaduais pela compensação pecuniária por mais horas de trabalho. A mesma resolução que amplia o horário de funcionamento dos tribunais, também restringe a requisição de servidores de prefeituras e de outros órgãos estaduais e 165

THEMIS federais (CNJ, 2009b). A justificativa para esta resolução consistia em aumentar os horários dos serviços prestados, unificando-os em todo o país. Até então, os tribunais tinham liberdade para regulamentar os horários de funcionamento e a carga horária de seus servidores, embora recebessem pressões por parte da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) quanto aos horários insuficientes de atendimento aos advogados. Porém, o aspecto mais político desta resolução consiste na restrição da quantidade de outros poderes realizando serviços judiciais. A questão principal consiste na manutenção da imparcialidade e independência do Judiciário no julgamento de ações que possam ir contra o interesse dos representantes do Executivo e do Legislativo. No entanto, a prática de cessão de servidores é muito comum nos tribunais estaduais, principalmente em comarcas do interior e mais distantes da capital. A ausência de servidores efetivos permite que o Executivo municipal ofereça servidores de seus quadros para atuar nas secretarias ou cartórios locais. A Corregedoria Nacional de Justiça vem procurando combater essa prática por meio de inspeções nos tribunais estaduais. O combate à corrupção ganhou uma maior atenção por parte do CNJ no ano de 2013. O estabelecimento das metas 18 e 19, para serem cumpridas pelos tribunais ainda em 2013, representa mais um caso de interferência do CNJ na relação com o Executivo e o Legislativo. A Figura 1 demonstra o acompanhamento do CNJ quanto ao cumprimento da meta 18 por cada um dos tribunais. O gráfico foi gerado com os dados do posicionamento até o dia 17 de junho de 2013. Os julgamentos das ações de improbidade administrativa e de crimes contra a administração pública podem gerar preocupações para os políticos envolvidos em irregularidades. Estes processos tendiam a não serem julgados com a devida celeridade depois que ficou estabelecida a lei da Ficha Limpa Lei complementar n. 135, de 4 de junho de 2010 (BRASIL, 2010). Ao serem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, os políticos se tornam inelegíveis pelo período de oito anos. Em seguida, se tem a Meta 19 que visa à construção e manutenção de um Cadastro Nacional de Condenações Cíveis por ato de improbidade administrativo. Desta forma, o CNJ procura diminuir a quantidade de processos pendentes nos tribunais, como sinaliza para uma ação conjunta, contando com a participação dos Tribunais Estaduais (TJs), dos Tribunais Regionais Federais (TRFs), dos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) e dos Tribunais de Contas da União, dos Estados e dos Munícipios (TCU, TCEs e TCMs). A proposta de um cadastro 166

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unificado visa restringir os casos em que políticos condenados mudam de domicílio eleitoral para terem a oportunidade de se candidatarem novamente. Uma tentativa de burlar a restrição imposta pela condenação. A participação do STJ quanto ao cumprimento das metas representa outro ponto de destaque. Tal fato procura evitar uma das principais críticas à Lei da Ficha Limpa que consiste em ir contra ao princípio da presunção de inocência (inciso LVII do art 5ª da Constituição Federal). Um político pode se tornar inelegível ao ser condenado por uma decisão de um colegiado de magistrados. Porém, pode recuperar os direitos políticos posteriormente, caso seja inocentado no STJ ou no STF. Figura 1: Acompanhamento do cumprimento da Meta 18 por tribunal.

Fonte: CNJ (2013).

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Esta movimentação recente do Judiciário, tendo o CNJ à frente, pode ser entendida como um mecanismo que aumenta o combate à corrupção. Verifica-se um aumento da efetividade proposta nos trabalhos de Taylor e Buranelli (2007) e de Taylor (2011). Os resultados apresentados na Figura 1 demonstram que, no geral, apenas 36,09% da meta foi cumprida e o levantamento foi feito quase na metade do ano de 2013. Todavia, verificam-se grandes avanços realizados pelos tribunais de justiça dos estados do Paraná, Sergipe, Amapá e Rondônia que estão acima do alvo definido para o mês de junho. Muito trabalho ainda precisa ser feito, principalmente para compreender os motivos que levam a alguns tribunais terem maior facilidade para o alcance da meta estabelecido. O volume processual pode ser um dos empecilhos, mas não necessariamente, pois o TJCE possui 413 processos e já foram julgados 249 (60,29%). Enquanto o TJPI possui um volume semelhante com 403 processos, mas julgou no mesmo período apenas 20 (4,96%). Outros aspectos certamente estão envolvidos, por exemplo, podem-se buscar explicações para o baixo volume de processos do TJRS que contém um acervo de apenas 202 processos a serem julgados. A instauração destes processos depende de uma atuação conjunta dos TCES com o Ministério Público. O estudo de Melo, Pereira e Figueiredo (2009) aponta um nível maior de atuação e independência do TCE do Rio Grande do Sul. Levantam-se indícios de que esta maior atuação possa gerar um maior controle, cuidado e receio por parte dos políticos deste Estado quanto ao envolvimento em irregularidades. O CNJ age diretamente no Judiciário, mas impacta indiretamente no Executivo e Legislativo. Por outro lado, o CNJ sofre restrições orçamentárias e dificuldades para atender às legislações de controle fiscal. A presidência do CNJ, por exemplo, procura alterar as suas despesas com pessoal por meio de resoluções, dado que um projeto de lei de 2009 continua aguardando votação no Congresso (Estadão, 2013). Esta situação corrobora o pensamento de Rodovalho (2012) quanto à vulnerabilidade do Judiciário na defesa de seus interesses e melhorias na prestação de serviços com relação a eventuais restrições impostas pelo Executivo e Legislativo. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente estudo representa um esforço inicial para trazer uma maior compreensão da atuação do CNJ no Judiciário brasileiro e os impactos destas 168

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ações no Executivo e no Legislativo. Inicialmente, procurou-se apresentar casos que promoveram interferência nas relações com os outros poderes. Foram apresentados brevemente os casos de combate ao nepotismo, o aumento da carga horária e as restrições impostas para a cessão de servidores de outros Poderes atuando no Judiciário, pela manutenção de uma maior independência. Objetivou-se, também, apresentar os dados que apontam o acompanhamento do CNJ quanto ao cumprimentas da meta 18 pelos tribunais para o ano de 2013. Demonstraram-se na Figura 1 os resultados obtidos pelos tribunais até a primeira metade do mês junho deste ano. Além disso, foram realizadas inferências preliminares quanto ao trabalho do CNJ para a plena validação da Ficha Limpa ao colocar meta de julgamento de processos para o STJ; quanto ao aumento de ferramentas de transparência; e quanto à identificação de fatores que diferenciam o tamanho do acervo processual dos tribunais e da efetividade no cumprimento das metas. Por outro lado, também foi destacado o uso de regulamentações internas por parte do CNJ como alternativa para possíveis restrições impostas pelo Executivo e Legislativo na aprovação de leis de interesse do Judiciário. Todos estes pontos podem ser apontados como ponto de partida para a realização de futuras pesquisas. Os pontos de reflexão propostos podem ser incorporados a modelos que buscam evidenciar um Judiciário mais célere e efetivo. As pesquisas poderão ser realizadas utilizando tanto métodos quantitativos como qualitativos, permitindo o encontro e confrontação de mais evidências. Um diálogo entre os estudos que abordem o Judiciário tanto o campo da Administração Pública como o das Ciências Política é necessário para um olhar diferenciado e mais próximo da realidade empírica. Espera-se ter contribuído para a maior integração desses campos de pesquisa. REFERÊNCIAS AMB – ASSOCIAÇÃO DE MAGISTRADOS BRASILEIROS (2005). Magistrados Brasileiros: caracterização e opiniões. 2005. Disponível em: . Acesso: 18 fev. 2013. ANDREWS, J. T.; MONTINOLA, G. R. Veto players and the rule of law in emerging democracies. Comparative Political Studies, vol. 37, n. 1, 2004, pp. 55-87. 169

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A USUCAPIÃO CONJUGAL COMO RECONHECIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E SUA RECEPÇÃO NO DIREITO COMPARADO Maria Marleide Maciel Queiroz

Juíza de Direito, Professora de graduação e pós-graduação. Doutoranda pela Universidade Museo Social da Argentina e Pós-doutoranda pela Universitá Degli Studi Di Messina, na Itália.

RESUMO: Este artigo objetiva uma reflexão sobre a usucapião conjugal, disciplinada pela Lei Brasileira nº 12.424, de 16 de junho de 2011, que veio inserir a letra A no artigo 1.240 do Código Civil Brasileiro. Pretende-se estabelecer a possibilidade da presença desse instituto nos ordenamentos jurídicos estrangeiros, que protegem também a propriedade como direito fundamental, assim como o princípio de proteção a dignidade da pessoa humana. Nesse contexto, o trabalho consiste em confrontar normas, institutos de ordenamentos constitucionais de Estados diferentes, para evidenciar suas semelhanças e dessemelhanças, e através do cotejo, extrair a evidência de semelhanças entre eles, a possibilitar a eficácia e validade de instituto igual (usucapião conjugal) em vários sistemas jurídicos internacionais. Para alcançarmos esse desiderato, recorremos a fontes influenciadoras de todos os ordenamentos jurídicos, quer seja o brasileiro ou os estrangeiros, isto é, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, na qual a propriedade é tutelada de forma explicita como direito fundamental, no mesmo nível de previsão de garantia, o da dignidade da pessoa humana. Palavras-chave: Propriedade, Usucapião Conjugal, Direitos Fundamentais. ABSTRACT: This article proposes a reflection on marital prescription, disciplined by Brazilian Law nº. 12.424, of June 16, 2011, that came to enter the letter A in the Article 1240 of the Civil Code. It is intended to establish the possibility of the presence of such an institute in foreign jurisdictions, which also protect the property as a fundamental right, and the principle of protecting the dignity of the human person. In this context, the work consists in confronting standards institutes of constitutional requirements of different States, to highlight their similarities and dissimilarities, and through collation, extract the evidence of similarities between them, to enable the effectiveness and validity of the same institute (marital adverse possession) in various international legal systems. To 175

THEMIS achieve this aim, we resort to influential sources of all jurisdictions, whether Brazilian or foreign, that is, the International Law of Human Rights, in which the property is subordinate to explicitly as a fundamental right on the same level prediction of warranty, the dignity of the human person. Keywords: Property, Spousal Adverse Possession, Fundamental Rights. INTRODUÇÃO A ideia de escrever sobre o tema Usucapião Conjugal, ocorreu em uma aula do Profº Carlos Clerc do Curso de Pós Doutorado - Università Degli Studi Di Messina, realizada em Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, Brasil, no qual o Eminente Professor se reportava sobre o Instituto da Propriedade. Afirmava sobre o quanto a existência da propriedade é imprescindível em todos os ordenamentos jurídicos, expondo sobre o seu conteúdo, assim como sobre alguns modelos jurídicos, especialmente àqueles que acompanhavam o Código Francês, não olvidando de mencionar o direito de propriedade dos países socialistas, abordando também a propriedade comunitária em alguns países da África. Naquela ocasião, mencionei que no nosso ordenamento jurídico brasileiro, nossos legisladores haviam, recentemente, criado a figura jurídica da aquisição da propriedade pelo desfazimento do casamento ou da união estável, intitulado por alguns doutrinadores brasileiros, como Usucapião Conjugal. Com muita surpresa, o ínsigne professor afirmou desconhecer no seu ordenamento jurídico pátrio tal espécie de usucapião, assim como não se recordava da existência de tal forma de aquisição prescritiva, em outro Ordenamento Jurídico. Levada pela inquietação jurídica de examinar alguns ordenamentos jurídicos, pesquisei sobre o assunto alguns, tais como o alemão, o francês, o português, o italiano, o suíço, o chileno, o espanhol e o colombiano. Como resultado da pesquisa, não encontramos nenhum instituto de Usucapião Conjugal nesses ordenamentos jurídicos, ou qualquer outro a sua semelhança. Em decorrência da inexistência de tal instituto, e sem enveredar sobre o estudo do mesmo perante o ordenamento jurídico brasileiro, resolvemos então escrever o presente trabalho, elaborando um estudo, não comparativo com outros ordenamentos jurídicos, porque só comparamos quanto existe, mas 176

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percorrer uma trilha da possibilidade da existência de tal instituto nos demais ordenamentos jurídicos, quando concluimos que o direito à propriedade é considerado como direito fundamental nesses ordenamentos jurídicos citados, assim como o é, no sistema jurídico brasileiro. Nesse contexto, seguimos o método da abordagem dedutiva, apresentando as principais teorias sobre a incidência dos direitos fundamentais nas relações entre particulares e destacamos a aceitação no Direito Comparado. Referimo-nos que as teorias partilham preocupações idênticas, ou seja, as ameaças aos direitos fundamentais provindas dos particulares, com os direitos sociais, com a necesssidade de limitação e controle dos poderes privados, com a igualdade de oportunidades e garantia das condições fáticas de livre exercício dos direitos fundamentais. Partimos da premissa que a extensão dos direitos fundamentais às relações privadas é indispensável no contexto de uma sociedade desigual, na qual a opressão pode advir não apenas do Estado. Dessa forma, o presente trabalho se justifica por questões de ordem jurídica e social uma vez que o tema merece ser conhecido, não só pelo ordenamento jurídico brasileiro, mas por outros sistemas jurídicos internacionais, levando-se em consideração que os direitos fundamentais são universalmente reconhecidos, em função da natureza humana, como o instrumental pelo qual as pessoas e a humanidade possam sobreviver e alcançar suas próprias realizações. 1 DIREITO FUNDAMENTAL E PROPRIEDADE A concepção do direito de propriedade e sua proteção como direito fundamental, ocorreu com a falência do Estado Absolutista, nos fins do século XVIII. Nesse contexto social, ocorreram as Declarações Fundamentais e Novas Ordens Constitucionais sob a égide da doutrina liberal, a exemplo da Constituição Francesa de 1793. Ainda nesse sentido a Declaração norte-americana (Bill of Rights), preconizou no artigo XVII que “todo cidadão tem o direito de possuir sua própria propriedade individual assim como em associação com outras pessoas. Ninguém será arbitrariamente desapossado de sua propriedade”1. Essa ideologia, que se baseia na liberdade plena e a igualdade absoluta entre os homens, refletiu diretamente sobre a definição do conceito de propriedade, levando o eminente tratadista francês Duguit, a afirmar que a mens legislatoris 177

THEMIS deste período voltou-se ao conceito romano de propriedade, na medida em que conferiu um poder exclusivo e absoluto ao proprietário (DUGUIT, 1923, §76, p.292). Diante dessa proteção conferida pelo Estado Liberal ao direito de propriedade, como um direito absoluto e sem limitações, a Convenção Internacional de 18.3.1793 decretou: “la peine de morte contre qui com que proposerait une loi agraire ou tout autre subversive des proprietés territoriales, commerciales et industrielles” (idem, p. 294). Nesse mesmo pensamento, o Código Napoleônico estatuía em seu artigo 544: “La propriété est le droit de jouir et de disposer des choses de la manière la plus absolue, porvu qu'on n'en fasse pas un usage prohibé par la loi et les règlements”. Cesari Salvi, ao comentar o artigo 29 da Constituição do Reino da Itália de 1865, afirmava que a propriedade seria decorrente de uma previsão do direito natural, sendo, assim, anterior ao pacto social firmado para permitir a concessão de poderes ao Estado (SALVI, 1994, p. 7). Essa concepção delimitava tão somente a forma de aquisição e proteção da propriedade, sem qualquer preocupação com sua função social. As transformações sociais e econômicas, que modificam, paulatinamente, o conceito de necessidade e utilidade pública, exigiram o enfraquecimento do abstencionismo do Estado (política do laissez-faire) e este é obrigatoriamente chamado a intervir, sob pena de se instalar a “comoção social”, pela ausência de serviços públicos, de caráter social ou cultural, tais como escolas, hospitais, água, luz, rede de esgoto, e já no século XX, o Estado assume um papel intervencionista (Welfare State), estabelecendo a função social da propriedade, reconhecendo-a, não só como garantia fundamental, porém, inserindo-a na ordem econômica, estabelecendo-a como instrumento de equilíbrio social. Nessa visão, o proprietário continua tendo a plenitude de sua propriedade, mas não de forma absoluta, podendo o Estado intervir. Assim é que a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, aprovada pela IX Conferência Internacional Americana, na Cidade de Bogotá, Colômbia, em 1948, anunciou em seu artigo XXIII: “Toda pessoa tem direito a propriedade privada correspondente as necessidades essenciais de uma vida decorosa, que contribua a manter a dignidade da pessoa e do lugar”. Ainda na esfera dos Direitos Humanos, especificamente do Direito Internacional dos Direitos Humanos, a propriedade é tutelada explicitamente, como se observa na Declaração de Direitos de Virgínia celebrada a 12 de 178

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junho de 1776, seção 6, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão aprovada nas sessões dos dias 20, 22, 24 e 26 de agosto de 1789, artigos 2º e 17, na Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada em Resolução da III Seção Ordinária da Assembleia Geral das Nações Unidas, a 10 de dezembro de 1948, art. XVII, no Protocolo Adicional nº 1 à Convenção sobre a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, aprovado a 20 de maio de 1952, art. 1º na Carta Encíclica Pacen in Terris, de 11 de abril de 1963, itens 21 e 22, na Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, adotada pela Resolução nº 2.106 da Assembleia Geral das Nações Unidas a 21 de dezembro de 1965, art. V, d), e na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica - adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos a 22 de novembro de 1969, art. 21. No direito brasileiro interno publicístico, a Constituição de 5 de outubro de 1988, art. 5º, XXIII, garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País o direito de propriedade que atenda a sua função social. No direito interno brasileiro privatístico, o Código Civil, art. 1.228, assegura ao proprietário os poderes fático-jurídicos de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reivindicá-los de quem quer que injustamente esteja com eles. O Jurista francês Duguit, em palestra proferida em Buenos Aires e traduzida por Carlos G. Posada, in Guillermo L. Allende, Panorama de Los Derechos Reales, Buenos Aires, desenvolveu o conceito de função social da propriedade, com muito acerto: Advertiréis com lo expuesto el fundamento de la nueva concepción de la propiedad. En las sociedades modernas, en las cuales há llegado a imperar la conciencia clara y profunda de la interdependencia social, así como la libertad es el deber para el indivíduo de emplear su actividad física, intelectual y moral en el desenvolvimiento de esa interdependencia, así la propiedad es para todo poseedor de una riqueza un deber, la obligación de orden objetivo, de emplear la riqueza que posee en mantener y aumentar la interdependencia social. Todo indivíduo tiene la obligación de cumplir en la sociedad una cierta función em razón directa del lugar que em ella ocupa. E cuanto a la propiedad, no es ya en el Derecho moderno el derecho intangible, absoluto, que el hombre que posee riqueza tiene sobre ella. Ella es y ella debe ser, es la condición indispensable de la prosperidad y la grandeza de las sociedades y las doctrinas colectivistas son una vuelta a la barbarie . Pero la propiedad no es un derecho; es una funcíon social. El propietario, es decir, el poseedor de una riqueza, 179

THEMIS tiena, por el hecho de poseer esta riqueza , una función social que cumplir; mientras cumpla o la cumple mal, si por ejemplo no cultiva la tierra, o deja arruinarse su casa, la intervención de los gobernantes es legítima para obligarle a cumplir su función social de propietario, que consiste en asegurar el empleo de las riquezas que posee conforme a su destino”(DUGUIT, 1967, p. 372 e 398).

No Ordenamento Jurídico Argentino, as maiores limitações ao direito de propriedade originam-se na esfera do direito administrativo, ex vi do Artigo 2.611 del Codigo Civil Argentino: “Art. 2611. Las restricciones impuestas al domínio privado sólo em el interés público, son regidas por el derecho administrativo”. Inobstante a existência, no ordenamento jurídico argentino, da limitação ao direito de propriedade, o Artigo 14 da Constitución Federal de La República Argentina, garante o direito de propriedade. Transcrevemos: Art. 14. Todos los habitantes de la Nación gozan de los siguientes derechos conforme a las leyes que reglamenten su ejercicio; a saber: de trabajar y ejercer toda indústria lícita; de navegar y comerciar; de peticionar a las autoridades; de entrar, permanecer, transitar y salir del territorio argentino; de publicar sus ideas por la prensa sin censura previa; de usar y disponer de su propiedad; de asociar-se con fines, de profesar libremente su culto; de enseñar y aprender. (grifos nossos).

A importância e a proteção ao direito de propriedade em nosso sistema podem ser captadas pela previsão do caput do art. 5º da CF de 1988, que reforça a previsão específica do inciso XXII. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estranageiros residentes no País a inviolabilidade do direito á vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (….)” (grifos nossos).

A lei fundamental alemã determina, expressamente, no artigo 14, II, que a propriedade obriga e deve atender aos reclames do bem estar geral da sociedade. “Das Eigentum ist ein umfassendes aber nicht ein schrankenloses Recht” (A propriedade representa um direito pleno, mas não ilimitado). (Trad. livre). 180

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verbis:

Por outro lado, o Código Civil Brasileiro dispõe no artigo 1.228, § 1º, Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

O Código Civil Italiano dispõe, nos artigos 832 e 834. Art. 832- Il proprietario ha diritto di godere e disporre delle cose in modo pieno ed esclusivo, entro i limiti e con l'osservanza degli obblighi stabiliti dall'ordinamento giuridico . Art. 834 Espropriazione per pubblico interesse Nessuno può essere privato in tutto o in parte dei beni di sua proprietà, se non per causa di pubblico interesse, legalmente dichiarata, e contro il pagamento di una giusta indennità (Costit. 42, 43). Le norme relative all'espropriazione per causa di pubblico interesse sono determinate da leggi speciali.

Essa Constituição, a Italiana, no artigo 42, trata do direito do proprietário. Art. 42 - A propriedade é pública ou privada.Os bens econômicos pertencem ao Estado, ou a entidades, ou a particulares.A propriedade privada é reconhecida e garantida pela lei, que determina as suas formas de aquisição, de posse e os limites, no intento de assegurar sua função social e de torná-la acessível a todos.A propridade privada pode ser, nos casos previstos pela lei e salvo indenização, expropriada por motivos de interesse geral. A lei estabelece as normas e os direitos da sucessão legítima e testamentária, e os direitos do Estado sobre as heranças.

A Lei Fundamental Alemã, ou Lei Fundamental de Bonn, dispõe no artigo 14: “Das Eigentum und das Erbrecht werden gewährleistet. Inhalt und Schranken werden durch die Gesetze bestimmt”. “Deve ser garantida a propriedade e a herança. Conteúdo e limites serão determinados pelas leis” (trad. livre). 181

THEMIS Assim, diante do tema a que nos propusemos discorrer fez-se necessário citar a função social da propriedade, reconhecida, atualmente, em quase todos os ordenamentos jurídicos, notadamente o do Brasil, Argentina, Italia e Alemanha, embora o conceito de função social da propriedade não seja criação do século XX, uma vez que a história narra, a exemplo com São Tomás de Aquino, que a função social da propriedade estava delineada no alcance do bem comum, no período do liberalismo é que enquadrou-se no uso pleno e irrestrito do particular (ARAÚJO, 2005, p. 48). Infere-se, pois, afirmar que é imprescindível a sua existência em todos os ordenamentos jurídicos, constituindo-se direito fundamental, e não pode ser eliminado ou alijado, tendo em vista que constitui garantia expressa e fundamental que se coaduna com a opção axiológica dos sistemas jurídicos acima citados, Brasil, Argentina, Itália e Alemanha. Respaldando a proteção à propriedade e ratificando ser direito fundamental, A Declaração Universal de Direitos Humanos aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, dispõe em seu artigo 17: “Toda pessoa tem direito a propriedade individual e coletiva. Ninguém será privado arbitrariamente de sua propriedade”. Vale ressaltar, que embora sem sua utilização e fruição particular, o direito de propriedade necessita de orientação social em sua fruição, pois a vida em sociedade impõe limites naturais ao poder de dispor. Daí, afimar-se que a propriedade não pode ser utilizada pelo seu titular como meio de prejudicar a esfera jurídica alheia. Esta utilização perniciosa inviabiliza a vida em sociedade e faz com que o domínio não cumpra sua utilidade e função particular e social . 2 A FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE A função social da posse se projeta pela usucapião, a reconhecer que a posse qualificada pelo elemento temporal cumpre papel social ao permitir a redistribuição da propriedade de forma originária. As raízes históricas da usucapião encontra-se no Direito Romano. Os romanos travavam lides acerca dos problemas advindos da incerteza do domínio, a levar uma mudança da situação fática em jurídica, passando a posse ser uma forma de aquisição da propriedade, desde que o seu titular a tivesse por certo decurso de tempo. O IUS CIVILE assim exigia. 182

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Discorrendo um pouco da história da usucapião, (ARAÚJO, 2005, p.38) classificou enumerando os períodos de evolução da usucapião, como sendo o período arcaíco, clássico, pós-clássico e período medieval. Segundo o autor citado, o período arcaíco é anterior à Lei das XII Tábuas, e fora disciplinado da seguinte forma: Usus auctoritas fundi biennium est, ceterarum rerum omnium annus est usus, ou seja, a usucapião de bens imóveis ocorreria no prazo de dois anos, já para os móveis o prazo seria redeuzido pela metade, isto é, um ano (usucapio est auten domini adeptio per continuationem possissionis anni vel bienni, rerum mobilium anni, immobilium bienni). Nesse período, a posse já não podia ser obtida mediante atos de violência, pois tal fato contrariava a natureza do instituto, tinha como fim eliminar a incerteza quanto ao titular do domínio. Em se tratando de bens móveis, a comprovação da posse se faria pela comprovação de objeto não furtado. A posse não poderia ser originada da violência, precriedade ou clandestinidade. Não se podia usucapir além de objetos roubados, os bens do tutelado, os bens incorpóreos e as zonas de limites entre prédios estabelecidos por lei. Detalhe importante nessa epóca, é que já havia a proibição do sujeito ativo da ação ser estrangeiro (peregrini). O cidadão romano poderia reivindicar a posse de sua propriedade caso a mesma estivesse em mãos de um estrangeiro. E com relação a bens móveis, a coisa (res) haveria de ter valor econômico. O período clássico se caracteriza pelo surgimento da longi temporis exceptio, também chamada de temporis praescriptio. Tal instituto que não era positivado, somente criação pretoriana, permitia a defesa da posse prolongada contra o proprietário, ou seja, a interposição da exceção protegia a posse contra a vindicação do proprietário do bem. Entretanto, exigia-se a presença de determinados requisitos, tais como o lapso temporal de 10 anos entre presentes e 20 anos entre ausentes. Não tinha como finalidade aquisição do domínio, tão somente a paralisação da reivindicação da propriedeade. Exigia-se, também o prenchimento do justo título e boa fé. Diferenciava-se da usucapião, uma vez que a excptio somente paralisava a reivindicação do dono do bem, enquanto que a susucapião tinha como finalidade a aquisição do título de proprietário. A era pós clássica notabilizou-se pela extinção do direito de vindicar do proprietário negligente. Ele não perdia a propriedade, somente o direito de reivindicar, caso permanecesse silente por 40 anos, depois reduzido para 30 anos. Outras alterações, foram realizada, já sob o império de Justiniano, no século VI, com a aceitação da praescriptio temporis como forma de aquisição voltada 183

THEMIS para os imóveis situados nos terrenos orientais, exigindo-se a boa fé e o justo título, com prazo de 10 anos entre presentes e 20 anos entre ausentes, a usucapio apenas persistiria como meio de aquisição da propriedade de bens móveis, com os mesmos requisitos e com prazo de 3 anos. No período medieval, o direito de propriedade sofreu modificações que refletiram diretamente junto à formação do ordenamento português. Ocorreu concentração da propriedade junto aos senhores feudais responsáveis pela proteção do feudo. Estes apenas exploravam pequena parcela da propriedade. Os moradores do feudo recebiam a detenção precária do solo e podiam se utilizar das terras mediante várias espécies de contraprestação. Surgia uma obrigação com formação de direitos reais e obrigacionais transitórios, de caráter vitalício sobre a área, como a enfiteuse. No entanto, a influência do Direito Romano, com a prescrição aquisitiva, levaram , a partir do século XIII, o direito privado luso, a descobrirem a prescrição aquisitiva de domínio, sendo a usucapião tratada nas ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas. 3 A USUCAPIÃO NO DIREITO COMPARADO Atualmente, é de suma importância quando da análise de um tema, estabelecer um estudo comparado com outros sistemas jurídicos, uma vez que o Direito Comparado é capaz de radicalizar a compreensão do fenômeno jurídico globalmente, produzindo um conhecimento crítico dos sistemas, procurando superar o formalismo positivista. É necessário salientar que o Direito Brasileiro é, em grande parte, originário de direito estrangeiro, algumas fortuitas - como a recepção do direito medieval português, outras provocadas, como a recepção de institutos e conceitos do direito norte-americano pela constituição de 1891, ou a recepção de modelos franceses e alemães no Código Civil de 1916, assim como influência do direito romano europeu. A saber, nosso direito público sofreu influências marcantes do modelo norte americano, especialmente no âmbito do Direito Constitucional. Já o Direito Privado Brasileiro inspirou-se no Direito francês e alemão. Em matéria de Direito Penal e Direito Processual, são marcantes as influências italiana e alemã. 184

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Citando (SGARBOSSA, 2008, p.17): O Direito Comparado ocupa-se, também, de fenômenos relativos à interação entre ordenamentos jurídicos diversos em aspectos que fogem ao domínio de outras áreas do saber jurídico, como, por exemplo, no que se refere ao fenômeno da circulação de modelos ou recepção de direito.

3.1 A Usucapião e o Código Civil Brasileiro O primeiro Código Civil Brasileiro, 1916, com origem nas ordenações portuguesas, previam três tipos de usucapião. A usucapião ordinária que se consumava em 3, 10 ou 20 anos. A usucapião (prescrição extraorodinária) que se exauria em 30 e 40 anos e finalmente a prescrição imemorial, que necessitava de comprovação de duas gerações para depor sobre o decuro dos 40 anos. A lei 2.437/1955 determinou alterações na usucapião do Código de 1916, notadamente com relação à prescrição aquisitiva, diminuindo o decurso do tempo, para 20 anos aquele que, por 20 anos, possuia como seu um imóvel, independentemente de justo título e boa fé e 10 anos, entre presentes, ou 15 anos entre ausentes aquele que possuisse como seu o imóvel, contínua e incontestamente, com justo título e boa fé. Reputavam-se presentes os moradores do mesmo Município e ausentes os que habitavam Município diverso. Atualmente, a Constituição da República Federativa do Brasil prevê duas hipóteses de usucapião especial, sendo uma urbana e outra rural. A usucapião de terrenos urbanos está prevista no artigo 183 e a referente à área rural encontra-se no artigo 191. O atual código Civil Brasileiro, de 2002, introduziu importantes alterações, no pertinente ao tempo da prescrição aquisitiva, diminuindo o decurso do tempo para a implementação da usucapião. O ordenamento jurídico brasileiro, acompanhando uma tendência moderna de outros ordenamentos jurídicos, além de encurtar o tempo para aquisição da propriedade pela usucapião, preocupou-se pela valorização social da posse ocupada pelo trabalho. Nesse sentido, escreveu (ARAÚJO, p.78): A opção pela valorização social da posse qualificada pelo trabalho e pela moradia demonstra a criação de tipos específicos que buscam nova conformação social do instituto, incluindo um abrandamento 185

THEMIS no rigor em relação ao terceiro de boa fé. A usucapião extraordinária (artigo 1.238 do CC brasileiro) ganhou novo prazo de 15 anos, sem distinção quanto à posse exercida entre ausentes ou presentes. O prazo ainda pode ser diminuído para 10 anos quando a posse for qualificada. Na usucapião ordinária os prazos também sofreram relevante diminuição. Esta hipótese está fundamentada na configuração da boa-fé, o que justifica a estabilização do direito de propriedade em menor tempo. O art. 1.242 do CC brasileiro abrandou o lapso temporal para 10 anos, com possibilidade de diminuição para a metade - ou seja, apenas 5 anos.

Em qualquer dos tipos da usucapião acima mencionada, é imprescindível a boa fé subjetiva e objetiva. A legislação brasileira também prevê a susucapião especial rural (art. 1.239 do Código Civil Brasileiro) e urbana (art. 1.240 do Código Civil Brasileiro). Admitem alguns doutrinadores brasileiros, que a modalidade de usucapião urbana sofreu alteração para a introdução de figura derivada para permitir a usucapião entre cônjuges, visando a proteger a entidade familiar. Essa modalidade constitui o núcleo central do presente trabalho e está prevista no artigo 1.240- A do Código Civil que abordaremos nos itens seguintes. 3.2 A Usucapião no Direito Alemão É de domínio público que os juristas alemães se destacaram pela reconstrução do Direito Privado no século XIX, espelhando-se nos institutos de Direito Romano. Tal reconstrução influenciou vários códigos do século XX, tendo em vista que a reforma foi necessária para a integração do Direito Alemão ao Direito Comunitário. Esse marco ocorreu no ano de 2001, alcançando a parte do direito das obrigações, a maior sofrida, desde o diploma de 1896. O tema da prescrição sofreu alteração na Parte Geral, inclusive com a previsão da prescrição reivindicatória. O § 195 do código alemão, estabelece um prazo de 03 anos para a usucapião ordinária, no anterior, esse prazo era de 30 anos. Reforça-se mais uma vez a tese do encurtamento dos prazos, nos ordenamentos jurídicos, para a prescrição aquisitiva da propriedade. Afirma (ARAÚJO, 2003, p. 80) que O BGB (Bürgerliches Gesertzbuch) estabelece nos artigos 903 usque 924 sobre o conteúdo da propriedade. Os artigos 900, 927 e 937 dispõem sobre a aquisição e perda da propriedade, regulando 186

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a matéria relativa à prescrição aquisitiva. Precisamente, o artigo 900 regula a usucapião para aquelas hipóteses em que a transcrição no registro é viciada pela causa do negócio jurídico. É que o titular do direito de propriedade que se mantém inerte por 30 anos e não contesta a inscrição do registro, o qual revela negócio viciado, perde a propriedade. Agora, para que tal fato ocorra é necessário que o interessado, o prescribente, interponha o pedido da usucapião, dispensados, nessa hipótese, a boa fé ou o justo título de aquisição válida. Melhor esclarecendo, a pessoa que está inscrita no registro como proprietária de um terreno, sem ter obtido a propriedade, adquire a propriedade se a inscrição tiver permanecido por mais de trinta anos e se conservou durante este período a posse como se dona fosse. O período de trinta anos se computa da mesma forma que a usucapião para adquirir bens móveis. O curso do prazo suspende-se quando é realizado um assento de contradição contra a exatidão da inscrição no Registro. Essa modalidade de usucapião pode ser comparada com a do ordenamento jurídico brasileiro, com previsão no artigo 1.242, parágrafo único do Código Civil Brasileiro. O artigo 937 do diploma alemão reza sobre a posse de coisa móvel, admitindo quem tem a posse de uma coisa móvel, como dono, durante 10 (dez) anos, adquire a propriedade. Exclui-se a usucapião se o adquirente não está de boa fé, ou se descobre que a coisa não era passível de apropriação. 3.3 Direito Francês Diferentemente do Código Civil Brasileiro e o da Alemanha, o Código Civil Francês, até 2008, sob a égide da lei 1975-596, de 9.7.1975, conferia tratamento unificado para a disciplina da posse e da prescrição. Essa unificação justificava-se, ainda como reflexo nas fontes romanas do período justinianeu, no qual a usucapio e praescriptio foram unificadas. Em 17 de junho de 2008, a citada lei foi modificada pela lei 2008-561, que dissociou o tratamento da prescrição extintiva no artigo 2.219 e no artigo 2.260. Na legislação francesa, assim como na brasileira, alemã, como regra geral, o principal elemento da usucapião é a posse com animus domini, o justo título e a boa fé. Ressalte-se a impossibilidade também da usucapião sobre bens públicos, bens inalienáveis e bens pertencentes ao patrimônio histórico e a propriedade literária. 187

THEMIS Diferentemente do Ordenamento Jurídico Brasileiro, a Corte de Cassação Francesa, reconhece a proteção da posse a bens imateriais. Nesse ordenamento jurídico (francês), o decurso do tempo ocorre em duas situações: a prescrição de 30 anos e a prescrição de 10 anos, ambas previstas no artigo 2.272 do Código Civil Francês. Na prescrição aquisitiva de 30 anos, bastam o tempo e a posse, já para a prescrição aquisitiva de 10 anos, o justo título e a boa fé são essenciais. Em se tratando de aquisição sobre bens móveis, o possuidor adquire instantanemanete a propriedade. Igualmente como no Direito Brasileiro, no Código Civil Francês, artigo 2.274, a boa fé sempre se presume, cabendo àquele que alega a má-fé prová-la. 3.4 Direito Português A legislação portuguesa dedica a Seção I, Capítulo VI disposições gerais a serem aplicadas à usucapião. O artigo 1.287 determina: a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.

Por sua vez, o artigo 1.288 reconhece a usucapião como modo de aquisição de propriedade, assim como a eficácia da sentença, que tem natureza declaratória. Essa legislação não reconhece o direito de usucapir, aos possuidores a título precário, ou seja, os possuidores diretos, a exceção achando-se invertido o título da posse. Inovação interessante com relação à usucapião, trouxe a lei 10.257/2001, prevendo a usucapião pelo compossuidor e determinar sua extensão aos demais compossuidores, em relação ao objeto da posse comum, possibilitando assim a usucapião coletiva. Essa modalidade de usucapião, inexiste no ordenamento jurídico brasileiro, assim como o alemão e o francês. Nesse ordenamento estão previstas três formas de usucapir bens imóveis, a saber: posse com justo título e registro, posse com registro de mera posse e posse sem registro. 188

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Quando existente a hipótese de posse com justo título e registro, é necessário a boa fé para que o lapso temporal seja de 10 anos, e caso o possuidor esteja de má-fé, o lapso temporal é aumentado para 15 anos. Existente somente o registro de mera posse, e não de título aquisitivo, a usucapião é possível em cinco anos, necessário, nesse caso, que a posse seja contínua e de boa fé. Essa modalidade de usucapir, de posse titulada com prazo especial, inexiste no sistema jurídico brasileiro. Para a situação de posse sem registro, o prazo será de 15 anos, se possuidor de boa fé e de 20 anos se for de má-fé. 3.5 O Direito Italiano O Código Civil Italiano, regula a matéria da usucapião, em seu livro Terceiro, intitulado “Della Proprietà, Sezione III”, em seus artigos 1.158 até o 1.167. A primeira parte disciplinada é sobre a usucapião de bens imóveis e direitos imobiliários, quando dispõe: “proprietà dei beni immobili e gli altri diritti reali di godimento sui beni medesimi si acquistano in virtù del possesso continuato per venti anni” (Codice Civile Italiano, 1988). Esse prazo de vinte anos, constitui a praescriptio longissimi temporis do sistema Italiano, uma vez que não existem prazos diferenciados, para a prescrição aquisitiva da propriedade e de outros direitos reais. Agora, na situação do possuidor ter adquirido a propriedade ou um direito real de outro proprietário putativo (a non domino), estando de boa-fé, o prazo será reduzido para 10 anos. Colui che acquista in buona fede (1.147) da chi non è proprietá un immobile, in forza di un titolo che sia idoneo a trasferire la proprietá e che sia stato debitamente trascritto (2.643 e seguinti), en compie l'usucapione in suo favore col decorso di dieci anni dalla data di trascrizione. La stessa dispozione si applica nel caso di acquisto degli altri diritti reali di godimento sopra un immobile.

Há previsão legal para a usucapião de pequena propriedade rural: Art. 1.159-bis “La proprietá dei fondi rustici con annessi fabbricati situati in continuato per quindici anni”. O procedimento desse tipo de usucapir é regulado pela lei 346, de 10.5.1976 (usucapione speciale per la piccola proprietá rurale). 189

THEMIS O prazo da usucapião da pequena propriedade rural no sistema italiano é o mesmo do sistema brasileiro. O Direito italiano traz a possibilidade da usucapião da universalidade de bens móveis, sem qualquer registro, se ausente a boa-fé o prazo será de 20 anos e prevista a boa-fé o prazo diminui para 10 anos. Caso o bem esteja registrado e tenha sido adquirido a non domino, com boa-fé, opera-se a prescrição em 3 anos; caso contrário, em 10 anos, previsão do artigo 1.160. 3.6 Direito Suíço O Código suíço prevê a usucapião ordinária como forma de aquisição da propriedade, exigindo-se a posse de boa-fé, durante dez anos, ininterruptamente e sem impugnação. A previsão encontra-se no art. 661, o qual estatui: “Se alguém, não justificadamente, no livro de imóveis, como proprietário, estiver inscrito, não mais poderá ser a sua propriedade impugnada depois que ele possui o prédio, de boa fé, durante dez anos, ininterruptamente e sem impugnação”. Essa modalidade exige o justo título [...] (apud ARAÚJO, 2005, p. 91). Por outro lado, no artigo 662, a prescrição imemorial vem determinada: Se alguém possuir um prédio, que não esteja inscrito no livro de imóveis, ininterruptamente e sem impugnação, durante trinta anos, como sua propriedade, poderá exigir seja ele inscrito como proprietário. Sob os mesmos pressupostos cabe este direito ao possuidor de um prédio cujo proprietário não está indicado no livro de imóveis ou que, no começo do prazo da prescrição de trinta anos, tinha morrido ou fora declarado desaparecido. (trad. livre).

No original, art. 661: les droits de celui qui a été inscrit san cause légitime au registre foncier comme propriétaire d'un immeuble en peuvent plus être contestés lorsqu'il a possédé l'immeuble de bonne foi, san interruption et paisiblement pendant 10(dix) ans (Livro Quarto do Código Civil Suíço). Art. 662. Celui qui a possédé pendant 30 (trente) ans sans interruption, paisiblement et comme propriétaire, un immeuble non immatriculé, peut en requérir l' inscription à titre de propriétaire. Le possesseur peut, sous les m~emes conditions, exercer le même 190

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droit á l'égard d'un immeuble dont le registre fincier en révèle pas le propriétaire ou dont le propriétaire était mort ou déclaré absent au début du délai de 30 (trente) ans.

3.7 Direito Argentino O legislador Argentino, seguindo o modelo francês, trata a perda e a aquisição de direitos reais e pessoais através do instituto da prescrição, em um mesmo título do Código Civil. Preleciona a sección tecera: “De la adquisición y perdida de los derechos reales y personales por el transcurso del tiempo”. Título I : “De la prescripión de las cosas y de las acciones en general” (Código Civil de La Nación Argentina, 2011). Art. 3.947. Los derechos reales y personales se adquieren y se pierden por la prescripción. La prescripción es un medio de adquirir un derecho, o de libertarse de una obligación por el transcurso del tiempo. Art. 3.948- La prescripción para adquirir, es un derecho por el cual el poseedor de una cosa inmueble, adquiere la propiedad de ella por la continuación de la posesión, durante el tiempo fijado por la ley.

Observa-se no dispositivo acima que o legislador não se reportou aos bens móveis, é que no Sistema Jurídico Argentino, a posse tem força de título para essa classe de bens. No artigo 3.999, vislumbra-se a forma do usucapião breve, o que corresponde no sistema jurídico brasileiro a nossa forma ordinária, em ambos os sistemas dependem de justo título e boa fé. Reza o art. 3.999: “El que adquiere un inmueble con buena fe y justo título prescribles la propiedad por la posesión continua de diez años”. Dentre os sistemas jurídicos pertinente a matéria analisada, somente o Sistema Jurídico Argentino delimita diversas formas de presunções legais de atos possessórios, ex vi do artigo 2.384: Son actos posesorios de cosas inmuebles: su cultura, percepción de frutos, su deslinde, la construción o reparación que en ellas se haga, y en general, su ocupación, de cualquier modo que se tenga, bastando hacerla en algunas de sus partes.

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THEMIS Igualmente ao sistema jurídico brasileiro, o argentino prevê a usucapião extraordinária, dispensando o justo título e boa-fé. Reza o art. 4.015 do Código Civil Argentino: Prescribiese también la propiedad de cosa inmuebles y demás derechos reales por la posesíon continua de veinte años, con ánimo de tener la cosa para sí, sin necesidad de título y buena fe por parte del poseedor, salvo lo dispuesto respecto a las servidumbres, para cuya prescripción se necesita título.

3.8 Direito Chileno Nesse ordenamento jurídico, o instituto da usucapião é regulado no capítulo destinado à prescrição, não no capítulo acerca aos direitos reais. Diferentemente dos demais ordenamentos acima citados, o chileno admite possibilidade de aplicacação da prescrição aquisitiva não só para o domínio de bens, assim como de outros direitos reais, exceto as servisões descontínuas não aparentes. Há previsão legal da usucapião ordinária, sendo de dois anos para os bens móveis e de cinco anos para os imóveis. A posse deverá ser regular e contínua. Para a susucapião extraordinária, nos casos em que o prescribente não seja possuidor regular, o prazo será de 10 anos. Nesse caso não há necessidade de justo título. Essas modalidades de usucapir estão previstas nos artigos 2.497, 2.505, 2.507, 2.509, 2.510, 2.511 e 2.512 do Código civil Chileno. 3.9 Direito Espanhol O Código Civil Espanhol prevê a usucapião ordinária, extraordinária e a sobre bens móveis. Para a usucapião ordinária, exige-se o justo título e a boa fé. Para o justo título impõem-se duas condições, a veracidade e a validade. Entende-se por validade a modalidade jurídica que o documento representa, tais como um contrato de compra e venda, uma doação, dação em pagamento. Por veracidade, a existência real do título. A usucapião ordinária está prevista no artigo 1.940 desse diploma legal. “Para la prescripción ordinária del dominio e demás derechos reales se necesita 192

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poseer las cosas con buena fe y justo título por el tiempo determinado en la ley”. Por sua vez, diz o artigo 1.957: “el dominio y demás derechos sobre bienes inmuebles se prescriben por la posesión durante diez años entre presentes y veinte entre ausentes, con buena fe y justo título” (Código Civil Espanhol). O artigo 1.959, regula a usucapião extraordinária, o prazo de prescrição aquisitiva é de 30 anos, sem exigência do justo título e boa fé. Preleciona o artigo: Se prescriben también el dominio y demás derechos reales sobre bienes inmuebles por su posesión no interrumpida durante treinta anõs, sin necesidad de título ni de buena fe, y sin distinción entre presentes y ausentes, salvo la excepción determinada en el artigo 539.

A usucapião de bens móveis ocorrem na forma ordinária e extraordinária. A usucapião de bens móveis ocorrerá com o prazo de três anos, chamada usucapião ordinária. A posse do bem móvel deve ser sem interrupção, com a necessidade da boa fé, porém não faz menção expressa à necessidade do justo título. Art. 1.955: “El dominio de los bienes muebles se prescribe por la posesíon no interrumpida de tres anõs con buena fe”. A usucapião de coisa móveis extraordinária, ocorre pela posse initerrupta do bem por seis anos, sem necessidade de boa fé ou justo título. Dispõe o artigo a segunda parte do artigo 1.955, “También se prescrible el dominio de las cosas muebles por la posesión no interrumpida de seis anõs, sin necesidad de ninguna otra condición”. 3.10 Direito Colombiano O ordenamento jurídico civil colombiano, no que se refere à aquisição da propriedade pela usucapião, regula unificadamente a prescrição aquisitiva e a extintiva, isto é, o direito de adquirir a propriedade pelo decurso do tempo, assim como a hipótese de se perder a propriedade pelo não exercício do direito pelo decurso de certo lapso temporal. No diploma colombiano, a usucapião pode ser exercida por ação ou exceção, assim como ser alegada por terceiros. Admite a usucapião de bens corpóreos, de raízes e móveis . Assim como o ordenamento chileno, admite a usucapião sobre direitos reais. Prevê a usucapião ordinária, a extraordinária e sobre bens móveis . 193

THEMIS O artigo 2.528 trata da usucapião ordinária, a exigir posse regular e ininterrupta, justo título e boa fé. Para essa modalidade de usucapir, recaindo sobre bens imóveis, o prazo é de cinco anos, tratando-se da usucapião ordinária sobre bens móveis, o prazo será de três anos. Na usucapião extraordinária, somente admitindo sobre imóveis, não se exige o justo título e a boa fé, somente a necessidade de posse regular. Nesse caso, o prazo será de 20 anos. Para outros direitos reais, as regras da declaração da usucapião são as mesmas, exceto ao direito de herança, cujo prazo fixo é de 30 anos e as servidões, que podem ser objeto de usucapião, no prazo de 10 anos. 4 USUCAPIÃO CONJUGAL PELA DESAFETIVIDADE Feito esse breve histórico acerca da origem da usucapião, e após discorrer sobre ele no direito estrangeiro, como o ordenamento jurídico alemão, francês, português, italiano, suíco, chileno, espanhol, colombiano pode-se afirmar que ao longo da história há o reconhecimento da função social da posse, a ultrapassar a ótica meramente patrimonial e a procurar visualizar a proteção à dignidade da pessoa humana, lhe dando o direito à propriedade, através da usucapião. Nessa toada, ao conceito de pessoa (ente: pessoa física e jurídica), inclui-se a família, cuja proteção no Brasil foi reconhecida pelo art. 9º da Lei 12.424/2011 que acrescentou o art. 1.240-A ao Código Civil, introduzindo a usucapião familiar, objeto central do tema do presente trabalho. Conforme podemos observar, ao longo do nosso trabalho, não vislumbramos nos ordenamentos jurídicos acima citados, nenhuma espécie de usucapião similar da codificada pela lei brasileira. O artigo 1.240- A, Código Civil, preleciona : Aquele que exercer, por dois anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até duzentos e cinquenta metros quadrados cuja propriedade divida com excônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. § 1º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. § 2º No registro do título do direito previsto no caput, sendo o autor da ação judicialmente considerado hipossuficiente, sobre os 194

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emolumentos do registrador não incidirão e nem serão acrescidos a quaisquer títulos taxas, custas e contribuição para o Estado ou Distrito Federal, carteira de previdência, fundo de custeio de atos gratuitos, fundos especiais do Tribunal de Justiça, bem como de associação de classe, criados ou que venham a ser criados sob qualquer título ou denominação.

Tem-se, portanto, que a usucuapião conjugal decorre do abandono de lar, por um dos cônjuges ou conviventes, pelo prazo mínimo de dois anos. Esse abandono do lar, caracteriza uma separação de fato, ainda que perdure o casamento ou a união estável, mantendo-se o vínculo familiar entre as partes. Nesse aporte, o Enunciado 499, jornada de Direito Civil2. A posição do ordenamento jurídico brasileiro, permitindo que um dos consortes ou conviventes venha a adquirir o imóvel que pertencia ao casal, se justifica pela ausência de afetividade decorrente do abandono do lar, cessando a convivência entre o casal. Efetivamente, trata-se de uma usucapião de meação, uma vez que o parceiro que ficou no imóvel, o abandonado, adquirirá a cota parte do outro em relação ao imóvel que servia de lar para o casal. Assim, a separação de fato, pelo abandono de um dos consortes ou conviventes, é o que se leva a comprovar a cessação da afetividade e, por conseguinte, a base de sustentação da relação de casamento ou de união estável. Por sua vez, aquele consorte ou convivente que, após a separação de fato, promove uma ação de divórcio (ou de dissolução de união estável) ou mesmo alguma outra medida judicial, não será alcançado pela fluência do prazo usucaptivo. É necessário frisar, que além do abandono do lar por um dos consortes ou conviventes, é necessária a presença dos demais requisitos, tais como, imóvel situado em zona urbana, com metragem não superior a 250 metros quadrados, finalidade de moradia na utilização do bem, inexistência de outra titularidade pelo usucapiente, seja de imóvel rural ou urbano, impossibilidade de reconhecimento desta especial categoria de usucapião, ao mesmo possuidor, mais de uma vez, lapso temporal de dois anos de abandono, o objeto da aquisição debe ser o imóvel residencial da propriedade comum do casal . O doutrinador brasileiro Cristiano Chaves, com relação à usucapião conjugal se reporta: 195

THEMIS A pretensão normativa é mais simbólica do que concreta. Não se pretende incentivar o requerimento da usucapião, mas ao contrário disso, colaborar para que as pesoas que se separam faticamente regulamentem, em definitivo, a sua situação, evitando deixar pendências jurídicas, econômicas e sociais, para além das pendências afetivas que foram deixadas pela erosão afetiva. Até porque parte que permanece no imóvel assume, sozinha, as obrigações pecuniárias que dele decorrem, como pagamento de tributos e despesas com a manutenção da coisa. Por isso, parece razoável que, havendo um abandono por tempo considerável (dois anos), ocorra a aquisição originária da meação da outra parte (FARIAS, 2013).

Aludido tipo de prescrição aquisitva, decorrente da existência de um casamento ou da união estável e simultaneamente da dissolução desse casamento ou união estável, recebeu o nome pelos nossos doutrinadores de Usucapião Conjugal, nós preferimos chamá-lo de Usucapião pela Desafetividade, uma vez que a ausência de afetividade decorrente do abandono de lar (cessando a convivência entre o casal ) justifica a posição do sistema jurídico, permitindo que um dos consortes, ou companheiros, venha a adquirir o imóvel que pertencia ao casal. De fato, em qualquer ordenamento jurídico, a conjugalidade, quer pelo casamento ou união estável, exige que os efeitos jurídicos estejam subordinados à reciprocidade afetiva. Diante dessa afirmativa, mister se faz a análise do referido instituto sob o enfoque das teorias sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas e sua recpção no direito comparado, a procurar descortinar como e em que medida se dá a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais e qual a eficácia desenvolvida pelas normas constitucionais e tratados internacionais consagradoras de direitos fundamentais na ordem jurídica privada. A doutrina acerca da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre privados, divide-se em quatro grandes orientações: a tese da recusa de eficácia, a tese da eficácia mediata ou indireta, a tese dos deveres de proteção e a tese da eficácia direta ou imediata. Examinaremos as principais teorias sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas.

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5 STATE ACTION (Recusa da eficácia) Essa teoria desenvolvida pela jurisprudência dos Estados Unidos, afirma que a Constituição e os direitos nela consagrados só vinculam, em princípio, os poderes públicos, ocorrendo a incidência dos direitos constitucionais no espaço privado quando o particular desempenhasse função típica do poder público, ou quando fosse possível vislumbrar, na sua conduta, uma substancial implicação do Estado. É própria da concepção do Estado Liberal. Defende a liberdade individual ampla, sendo a autonomia privada exercida livremente, sem interferência do poder público. Segundo SARMENTO (2006, p. 193 e 199), sobre a state action: […] apesar dos erráticos temperamentos que a jurisprudência lhe introduziu, não proporciona um tratamento adequado aos direitos fundamentais, diante do fato que os maiores perigos e ameaças a estes não provêm apenas do Estado, mas também de grupos, pessoas e organizações privados.

Aludida tese da recusa da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas está associada ao radical individualismo. Caracteriza a Constituição e a cultura jurídica em geral dos Estados Unidos. 6 TEORIA DA EFICÁCIA MEDIATA Essa teoria conhecida também por a teoria da eficácia horizontal mediata ou indireta dos direitos fundamentais foi desenvolvida originariamente na Alemanha, por Gunther Düring (NIPPERDEY, apud SARLET, 2000, p.147). Mencionada tese alcançou um papel importante na garantia dos direitos fundamentais no segundo pós guerra. De acordo com a tese da eficácia mediata, os direitos fundamentais não entram na esfera privada como direitos subjetivos, que possam ser chamados a partir da Constituição (FERRARINI, 2010, p. 27) “ (...) que esta teoria não reconhece que a Constituição investe os particulares em direitos subjetivos privados”. Isto significa que os direitos fundamentais seriam protegidos no campo privado por mecanismos próprios, e não através de instrumentos constitucionais, cabendo ao legislador privado a tarefa de mediar a aplicação dos direitos fundamentais sobre os particulares. 197

THEMIS Nesse diapasão, entende-se que a tese da eficácia mediata procura defender uma margem de liberdade de ação para os particulares, a evitar que por meio de um intervencionismo asfixiante ou de um igualitarismo extremo se afete o sentimento de liberdade. Perquerindo a idealização plena de tutela judicial dos direitos fundamentais, grande parte dos doutrinadores entende que a tese da eficácia mediata nega a possibilidade de aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas, porque exterminaria a autonomia da vontade. SARMENTO ( 2006, p.198) escreve: Essa teoria nega a possibilidade de aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas porque, segundo seus adeptos, esta incidência acabaria exterminando a autonomia da vontade, e desfigurando o Direito Privado, ao convertê-lo numa mera concretização do Direito Constitucional. 7 TEORIA DA EFICÁCIA DIRETA E IMEDIATA O Alemão Hans Carl Nipperdey desenvolveu essa teoria, sustentando a eficácia absoluta dos direitos fundamentais no âmbito do Direito Privado e das relações entre particulares (NIPPERDEY apud SARLET, 2000, p.147). Essa teoria defende que os direitos fundamentais não carecem de qualquer transformação para serem aplicadas no âmbito das relações jurídicoprivadas, a significar que os próprios sujeitos do direito privado, e não somente o Estado, são destinatários de direitos fundamentais, tanto dos direitos fundamentais enquanto direitos ssubjetivos quanto dos direitos fundamentais na condição de normas objetivas. De conformidade com a teoria, os direitos fundamentais podem ser diretamente chamados nas relações privadas precisamente pelo fato de que a ameça ou violação dos direitos fundamentais não são causadas apenas pelo Estado, mas também pelos poderes sociais e de particulares em geral. FERRARINI, citando SARLET:

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não se limitam à função precípua de serem direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público, mas, que além disso constituem decisões valorativas de natureza jurídico- objetiva da constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico (...)” (idem, p. 121).

Os adeptos da teoria da eficácia , direta pregam pela intervenção do Estado na correção da desigualdades socias e na limitação dos poderes privados. Afirmam que um dos papéis dos direitos fundamentis é a proteção da pessoa humana contra o poder, a constatação de que na sociedade contemporânea existem inúmeros outros polos de poder além do Estado, que podem igualmente oprimir o indivíduo, notadamente a relação entre particulares. Em sentido oposto, aos doutrinadores que defendem essa teoria concluem pela rejeição da teoria pelo fato de a mesma não distinguir as condições de vinculação de entidades públicas e privadas. Não resta dúvida que essa teoria é a prevalente na ordem jurídica brasileira, assim como tornou-se dominante em vários países. Levando-se em consideração que a sociedade brasileira é muita injusta e assimétrica, devido a fortes diferenças sociais, econômicos e culturais, justifica um reforço na tutela dos direitos fundamentais no Direito Privado, fazendo-se necessária a presença ativa do Estado também nas relações interprivadas, pois a agressão aos direitos fundamentais, no mais das vezes, pode ter origem nos detentores do poder social e econômico. Agora é preciso ressalvar que nem sempre é possível a incidência direta dos direitos individuais nas relações privadas, e que nem sempre se dá através do reconhecimento de um direito subjetivo de um particular em face do outro. Nessa visão é a lição de SARMENTO (apud BARROSO, 2006, p. 193 e 199) Na verdade, parece-nos que não é possível resumir todas as hipóteses de aplicação direta dos direitos individuais nas relações privadas à moldura, por vezes estreita, do direito subjetivo. O operador do direito não deve ser podado na sua criatividade, reconhecendose-lhe a possibilidde de, através dos mecanismos ou instrumentos que a situação concreta revelar como apropriados, proteger os bens jurídicos tutelados pelas normas garantidoras dos direitos fundamentais. 199

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Enfim, a teoria da eficácia imediata defende que os direitos fundamentaias não carecem de qualquer transformação para serem aplicadas no âmbito das relações jurídico-privadas. 8 A TEORIA DOS DEVERES DE PROTEÇÃO Estabelece essa teoria, que o aplicador do direito deve observar, à luz dos parâmetros da Constituição, se determinada composição feita pelo legislador é constitucionalmente aceitável. Está diretamente ligada com a teoria da eficácia mediata, assim com a tese da eficácia imediata. Só divergem quanto ao papel do juiz quando não há lei ordinária aplicável. Para a tese de eficácia imediata o julgador reconhecer o direito fundamental como direito subjetivo oponível em face de outro particular, já a tese da eficácia mediata, não aceita efeito suplementar das normas constitucionais. Essa teoria dos deveres de proteção reconhece que os direitos fundamentais criam efeitos jurídicos, não porque direitos subjetivos oponíveis a outros particulares, conforme estatui a teoria da eficácia imediata, porém, a partir do reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais de onde decorrem, para todos os poderes do Estado, especiais deveres de proteção . A teoria dos deveres de proteção , das acima citadas, é a mais complexa, uma vez que reconhecem a projeção dos efeitos jurídicos, não enquanto direitos subjetivos oponíveis a outros particulares, como diz a teoria da eficácia imediata, mas a partir do reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentaqis , dos quais decorrem, para todos os poderes do estado, especiais deveres, a permitir o Juiz, caso, o legislador não tenha cumprido adequadamente os seus deveres de legislar, que se recorra diretamente à norma constitucional na resolução entre particulares . Essa teoria é largarmente utilizada no Tribunal Constitucional Alemão, entretanto, a mesma crítica que se coloca contra a tese da eficácia mediata, se opõe contra a teoria dos deveres de proteção, no sentido de não conferir aos direitos fundamentais tutela adequada, já que tal proteção dependeria, a maioria das vezes da vontade incerta do legislador ordinário. 200

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9 A EFICÁCIA IMEDIATA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS NO DIREITO BRASILEIRO. O sistema de direitos fundamentais albergados na Constituição Brasileira tem caráter iminentemente social. A doutrina majoritária brasileira, tem-se posicionado pela eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais também nas relações entre particulares. Infere-se daí, que o posicionamento advém do modelo intervencionista e social da Constituição Brasileira, na visão dos direitos sociais e eeconômicos, da mesma forma da previsão de vários direitos direcionados aos particulares, a exemplo dos direitos trabalhistas. Além disso, a Constituição Brasileira tem como referência de República construir uma sociedade livre, justa e solidária, confirmando que o modelo constitucional brasileiro se afasta da visão liberal que o estado seria o único violador dos direitos fundamentais. Em razão da Constituição Brasileira, anunciar no artigo 5º, § 1º a imediata aplicabilidade das normas de direitos fundamentais é que a doutrina brasileira, também aceita a eficácia imediata nas relações entre particulares. É oportuno lembrar a lição de FACCHINI: Ao contrário da concepção liberal clássica, que vislumbrava na Constituição apenas um limite ao poder político, sem afetar as relações privadas, regidas pela legislação infraconstitucional, o constitucionalismo contemporâneo atribui à Constituição a função de modelar também as relações sociais e econômicas. Daí porque se defende que a Constituição deva ser aplicada diretamente, inclusive em relações interprivadas, ao menos sempre que a controvérsia de que se trata não possa ser resolvida com base na lei, seja por ser lacunosa, seja porque a lei oferece uma solução aparentemente injusta” (FACCHINI NETO, 2006, p.46-47).

Na verdade, a postura passiva que se estabelecia entre o Estado e o indivíduo não deve ser mais aceita, o Estado Democrático de Direito se confunde com a realização efetiva dos direitos fundamentais. Assim é mister a presença ativa do Estado nas relações interprivadas, a evitar a agressão aos direitos fundamentais aos detentores do poder social e econômico. 201

THEMIS Inobstante a aceitação da eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, não significa negar ou subestimar o efeito do alcance dos direitos fundamentais através da lei. 10 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS Após a análise das teorias que se reportam acerca da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas e a estabelecer a correlação da aquisição da propriedade, através do usucapião conjugal, como forma de proteção da família, ainda que seja pela desafetividade, pelo abandono de um dos cônjuges, necessitando o Poder Público intervir, para fazer valer outro direito fundamental que é a dignidade da pessoa humana, direito esse reconhecido em qualquer ordenamento jurídico, é que se pretendeu colocar o instituto protegido pela Lei Brasileira, Lei 12.424/11, de 16.06.2011 Usucapião conjugal, que também almeja como finalidade a efetivação do princípio da função social da propriedade, como modelo para todo os ordenamentos jurídico internacionais, como forma de proteção dos direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana , a família e o direito à propriedade. Nesse contexto, o Artigo 16.3. da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito a proteção da sociedade e do Estado”. (Declaração Universal de Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948). Com relação ao direito de propriedade, dispõe o artigo 17 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: 1. Toda pessoa tem direito a propriedade, individual e coletiva. 2. Ninguém será privado arbitrariamente de sua propriedade. 11 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA A raiz etimológica da palabra dignidade deriva do latim dignus e significa aquele que merece estima e honra. Aquele que é importante. Cada pessoa, guarda íntima relação com o conceito de dignidade, com referência ao seu querer, ao seu desejo de reconhecimento individual, como pessoa, com o seu valor intrínseco. O conceito de dignidade remonta no tempo. Para os gregos, a dignidade humana estava ligada à posição social ocupada pelo indivíduo na sociedade e 202

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não incluía constituía aspectos de igualdade, podendo ser retirada das pessoas.. No Cristianismo , o conceito se fortaleceu, e adquiriu a dimensão ocupada nos dias atuais, uma vez que a solidariedade, o amor ao próximo, da igualdade do homem em relação a Deus, determinaram, imposição de penas, se subtraídas. Na Idade Média, São Tomas de Aquino sustentou a concepção estoica e cristã da dignidade da pessoa humana, de um ser criado a imagem e semelhança de Deus, portanto, devendo ser respeitado como gente. Montesquieu analisa a vida humana em sociedade, tendo a liberdade como princípio para uma vida digna. “ Não basta haver tratado da liberdade política em sua relação com a Constituição; cumpre apresentá-la sob o ponto de vista da relação que ela mantém com o cidadão”. (MONTESQUIEU, 2007, p. 148). A revolução francesa e seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, consolidaram os princípios ligados aos direitos fundamentais, e por conseguinte a proteção à dignidade da pessoa humana. Encontramos em Immanuel Kant uma forte influência no conceito de dignidade da pessoa humana, quando este afirma que o homem é um fim em si mesmo, não uma função do Estado ou Nação, devendo estes estar organizados em benefício do indivíduo (KANT, 2003, p.58). A Organização das Nações Unidas teve um papel fundamental na concepção da dignidade da pessoa humana, afirmando que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, sendo dotados de razão e consciência e devem agir uns para com os outros num espírito de fraternidade. O princípio da dignidade da pessoa humana, reúne os valores fundamentais, norteia todos os ordenamentos jurídicos que se dizem democráticos, assegurando o Estado Democrático de Direito. A pessoa humana é a base da própria existência do estado democrático de direito e ao mesmo tempo fim permanente de todas as suas ações, devendo ser respeitada, tutelada e assegurada a possibilidade de concretização do desenvolvimento integral de suas potencialidades. O reconhecimento e proteção da dignidade da pessoa humana pelo direito resulta justamente de toda uma evolução do pensamento humano sobre o que significa este ser humano e a sua compreensão do que é ser pessoa e de quais os valores que lhe são inerentes, que influencia e determina o modo pelo qual o Direito reonhece e protege sua dignidade humana. 203

THEMIS A dignidade é uma qualidade intrínseca e indissociável do ser humano e a sua destruição implicaria a destruição do outro, sendo assim, a proteção e o respeito à dignidade da pessoa humana constitui meta permanente da humanidade, do Estado e do Direito. Há previsão na Carta Política Brasileira, de 1988, da constitucionalização do direito Privado, a necessitar de algumas vezes serem aplicadas diretamente normas constitucionais para a solução de questões de Direito Civil e também a necessidade de a lei civil ser aplicada a partir de uma interpretação nos termos da constituição em busca da harmonia e unidade do sistema jurídico. O princípio da dignidade da pessoa humana está presente em todos os textos normativos, brasileiros, notadamente no direito de família, devendo o aplicador reconhecer o seu individual valor para assegurar o desenvolvimento e o exercício de seus direitos intrínsecos em família. Ademais, a família representa o ponto de partida de todo o ser humano para alçançar outras relações afetivas. Esta não se expressa somente no modelo nuclear de pai, mãe e filho , mas nas várias estruturas e modelos, passando do singular ao plural, preeenchendo as diversas formas afetivas que vão se apresentando ao longo de existência humana, surgindo um poliformismo familiar, num modelo aberto, viva, intensa, verdadeira. A Constituição Portuguesa de 1976, em seu artigo 1º, estabeleceu o princípio da dignidade da pessoa humana e, na lição de José Joaquim Gomes Canotilho (CANOTILHO, 1999, p. 221), esse princípio, como base da república, significa o econhecimento do homo noumenon, isto é, da pessoa humana como limite e fundamento do domínio político da República e neste sentido, a República é uma organização política que serve ao homem, e não o contrário. O Constitucionalista renomado Paulo Benevides (BONAVIDES, 1996, p.195.) afirma que cumprida a tarefa da elaboração formal da Constituição, caberá à Sociedade, aos governantes, legisladores, juízes, aos cidadãos enfim, utilizando os mecanismos e ferramentas da Carta Política, escrever com atos de compreensão e argúcia interpretativa a Constituição viva, aquela que se aplica ao cotidiano na proteção dos direitos e na salvaguarda das franquias democráticas. Dessa forma, o princípio da dignidade da pessoa humana representa o reconhecimento de que o ser humano é dotado de razão, que o diferencia dos animais e, portanto , em função de sua racionalidade e dotado do livre arbítrio e da liberdade de escolhas, que devem se protegidas. 204

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Portanto, o ser humano é merecedor de proteção e de reconhecimento de sua dignidade e não pode ser tratado como objeto de interesses do Estado e da Sociedade. Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana visa a garantir a proteção ao ser humano não apenas para assegurar um tratamento humano e não degradante, porém nas situações em que a vulnerabilidade humana se manifestar, de sorte que terão procedência os direitos e as prerrogativas de determinados grupos, de uma maneira ou de outra, frágeis e que estão por exigir uma proteção especial da lei, como o caso das crianças e adolescente, idosos, deficientes físicos e os membros da família. 12 COMPENSAÇÃO DE AMPARO ALEMÃ O instituto da Compensação do Amparo (CA) surgiu pela primeira vez na Alemanhã em 1976. A idéia fundamental norteadora da concepção da Compensação de amparo, tinha como questão pacífica, o fato de que todos têm direito à sua própria aposentadoria por idade, atendendo-se ao direito do desenvolvimento da personalidade e da dignidade humana. Segundo Mirian de Abreu (2003, p. 667), pessoas não ativas em aquisição são excluídas dos sistemas previdenciários, com base na concepção de que somente aqueles que recebem salário participam dos mecanismos de proteção oferecidos pelo Estado social. Dentre os grupos mais atingidos por essa estrutura funcional, contam-se aqueles cônjuges que administram o lar, cuidam dos filhos e os educam em tempo parcial ou integral. O tempo gasto com os filhos e a administração do lar não é avaliado e mensurado economicamente.

Nesse mesmo sentido, cita o ex- presidente do Tribunal Constitucional Alemão, Profº Zeidler, (idem) que já em 1983 defendia o direito da mulher do lar a uma aposentadoria por idade, como se ela tivesse sido ativa profissionalmente por 20 ou 25 anos, com uma remuneração média. Isto porque ela teria contribuído para o contrato de gerações, equivalente ao de um homem ativo profissionalmente, que durante toda a sua vida profissional, pagou contribuições ao seguro social. A educação dos filhos não é um assunto privado, e sim uma proposta com custos necessariamente socializados. 205

THEMIS A Compensação de Amparo é uma realidade não só da Alemanha, mas em alguns países como Canadá, Holanda, suíça e os estados Unidos. O fundamento jurídico da Compensação de Amparo encontra-se no respeito aos Direitos Fundamentais, utilizando a aplicação do princípio da igualdade de oportunidades. A Compensação de amparo fisionomiza-se por ser um instituto nuclearmente privado. No sistema jurídico alemão, encontra-se positivado no Código Alemão, nos artigos 1.587, e seguintes. A compensação de Amparo exige de que sejam repartidas as previsões e as expectativas de aposentadoria entre os cônjuges de forma igual, por ocasião do divórcio. Quando o casamento é desfeito e o consorte que se dedicou ao lar, a criação e proteção dos filhos, ao se divorciar, é compensado com uma aposentadoria., paga, com as contribuições do outro cônjuge. O princípio equitativo é aplicado na medida em que tais pretensões de direito são adquiridas pelos dois cônjuges, independentemente do fato de um deles ter se dedicado à administração do lar, enquanto o outro se voltava integralmente ao exercício de uma atividade aquisitiva. A Compensação de Amparo tem por objetivo a criação de uma Segurança Social, um mundo melhor, aquele que vai ser por outras gerações construído, portanto, os filhos melhor orientados, pela total dedicação de um dos pais, irão construir um mundo mais pacífico, estabelecendo uma melhor segurança social. Por sua vez, caso haja o desfazimento desse casamento, aquele que dessa missão se ocupou, ter o direito de receber a sua aposentadoria. Trata-se de uma justiça prospectiva, e os imperativos dessa justiça, a proteger o cônjuge divorciado, na verdade é a concreção dos princípios dos ordenamentos jurídicos, dos Estados Democráticos de Direito, que se alicerçam nos princípios da igualdade, solidariedade e na proteção a dignidade da pessoa humana. CONSIDERAÇÕES FINAIS Afirma-se que em qualquer ordem jurídica e, por consequência nas áreas do Direito Privado, os direitos fundamentais como princípios e valores devem ser aplicados, ainda que mereçam adaptações, por, nas relações privadas, desfrutarem, os particulares, de uma autonomia de vontade. 206

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Admite-se a consagração numa ordem democrática, de que o indivíduo é essencialmente livre, constituindo-se essa liberdade em um direito fundamental. Esse princípio é, a um só tempo, moral e jurídico, uma vez que o seu alcance efetivo não deve se sobrepor aos demais direitos fundamentais, quando com ela em conflito. Melhor explicando, face ao grau de existência de desigualdades fáticas entre os envolvidos, mais intensa deverá ser a proteção ao direito fundamental em jogo e menor a tutela da autonomia privada. Nesse raciocínio é que se justifica o reforço à proteção dos direitos fundamentais dos particulares mais vulneráveis em face dos poderes privados. Assim, embora em relações privadas paritárias e equilibradas, o livre consentimento da pessoa não legitima lesões ao núcleo principal dos seus direitos fundamentais, nem tampouco à sua dignidade como pessoa humana, uma vez que são irrenunciáveis. Nesse debate, ensina Robert Alexy sobre o papel da ponderação no debate sobre a interpretação dos direitos fundamentais. De acordo com referido autor, quanto maior o grau de não satisfação, ou detrimento de um princípio, maior deve ser a importância de se satisfazer o outro.Essa regra ele denomina de lei da ponderação. Dessa forma, pode-se afirmar que o peso da autonomia privada, numa ponderação de interesses, varia não apenas de acordo com o grau de desigualdade na relação jurídica, mas também em função da natureza da questão examinada. No caso específico da Usucapião Conjugal, a par do reconhecimento do direito da propriedade como um direito fundamental, o abandono do lar pelo ex cônjuge ou ex companheiro, há dois anos, enseja ao ex companheiro ou ex cônjuge que dividia a propriedade, a aquisição do domínio integral. Esse direito (aquisição do domínio) vem a ser o reconhecimento da proteção da dimensão da ideia de dignidade da pessoa humana, que no caso, recebeu tratamento ultrajante pelo abandono, sem qualquer motivo, pelo ex cônjuge ou companheiro. Na realidade (a autonomia de vontade - direito de abandonar), posiciona-se numa posição a menor, uma vez que a proteção de dignidade da pessoa humana, resguardada pelo direito a propriedade, em contrapartida a moradia, mostra-se a maior. Nesse contexto, o direito à propriedade tem peso e valor coextensivos à dignidade da pessoa humana, uma das características dos princípios constitucionais conducentes à efetivação desses direitos fundamentais da pessoa pelos poderes intraestatais. 207

THEMIS Vale a lição de Daniel Sarmento (2006): nem todas as manifestações da autonomia privada desfrutam de proteção constitucional dotada da mesma intensidade. Por constituir um valor essencial do estado democrático e também por exprimir importante dimensão da idéia de dignidade da pessoa humana, quanto mais o bem envolvido na relação jurídica em discussão for considerado essencial para a vida humana, maior deverá ser a proteção do direito fundamental em jogo, e menor a tutela da autonomia privada.

Nessa toada, em que se garante o direito à propriedade no mesmo plano do direito à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança, motivos pelos quais ele tem peso e valor coextensivos à dignidade do ser humano, é que parece realista e não utópica, se refletir sobre a possibilidade de em outros ordenamentos jurídicos, da existência do instituto do usucapião conjugal, aos moldes do instituído pelo sistema jurídico brasileiro, uma vez que concluimos que o direito de aquisição à propriedade que antes pertencia ao casal, pelo cônjuge ou companheiro, que foi abandonado, é uma garantia à proteção à dignidade da pessoa humana. Pensamos assim, porque na hipótese da existência de valores coextensivos à dignidade da pessoa humana, os ordenamentos jurídicos citados também admitem esse peso e valor coextensivos, dessa forma, nessa conjectura, podemos fazer uma comparação jurídica, a partir do suposto da homogeneidade do objeto, sendo intuitivo e do senso comum que só se pode comparar aquilo que é comparável. Assim, pelo método comparativo sincrônico, no qual se compara elementos de ordens jurídicas da mesma época mas de lugares diferentes, é que diante das relações de semelhanças, no que pertine ao modo de aquisição da propriedade pela usucapião, nos ordenamentos jurídicos pesquisados, é que propomos a possibilidade nesses ordenamentos jurídicos (alemão, francês, português, italiano, suíço, argentino, chileno, espanhol, colombiano) de legislar sobre a Usucapião Conjugal, por nós intitulada Usucapião pela desafetividade. Em sendo certo que os ordenamentos jurídicos mencionados estabelecem como primazia a defesa da dignidade da pessoa humana porque estão inseridos nos direitos humanos, não se vislumbra nenhum óbice a esse tipo 208

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de aquisição de propriedade. Portanto, essa proposta surge em face do fenômeno da globalização, com base no princípio da cooperação, como alternativa à mitigação dos efeitos da crise sobre direitos conquistados e na solução de conflitos de importância mundial, ou seja, o alcance a proteção à dignidade da pessoa humana. Não importa em qual teoria sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas os países citados adotem, o essencial é o resultado da eficácia da teoria adotada, visando à proteção de direitos fundamentais. Ademais, é necessário viabilizar aplicação prática aos estudos, saindo do mundo da teoria e contribuindo de alguma forma à concretização efetiva dos direitos e garantias fundamentais, para que todos os ordenamentos jurídicos alcançem o seu objetivo, que é a pacificação social. Nesse diapasão da pacificação social, o ordenamento jurídico alemão criou o Instituto da Compensação de Amparo. De certo é a maior inovação do Direito de Família alemão, desde a introdução do Código Civil Alemão no início do século XX. A Compensação de Amparo como descrevemos no item, significa o ponto de interseção entre o Direito de Família e o Direito Social. Seu desenvolvimento é a consequência da formação de uma sociedade industrial, na qual a segurança social é garantida cada vez menos dentro da família, e quase sempre, preponderantemente, por meio do Estado ou de instituições especiais. Da mesma forma que na Alemanha se admite o instituto da Compensação de Amparo, ou seja, o cônjuge que durante o casamento exerceu unicamente a administração do lar, ter direito a uma aposentadoria pelo seu desfazimento, no Brasil, o cônjuge que foi abandonado adquire o direito de aquisição total da propriedade, pela usucapião. Assim, tomando como exemplo o sistema jurídico alemão, que já estabeleceu uma justiça prospectiva entre os cônjuges, admitindo a Compensação do Amparo, amparando especialmente aquele cônjuge que dedicou a sua vida a administração do lar, não vislumbro nenhum óbice de, também nesse ordenamento e em outros se admitir a usucapião conjugal, dentro da mesma visão da justiça prospectiva entre os cônjuges.

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THEMIS REFERÊNCIAS ABREU, Mírian de. Família no Direito Comparado. São Paulo: Livraria Del Rey, 2003. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Traduzido por Virgílio Afonso da Silva. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2009. ALMEIDA, Aluísio Alves. Princípios Gerais de Direito. Fortaleza: Premius Editora, 2007. ALVES, Vilson Rodrigues. Uso Nocivo da Propriedade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos, liberdades e garantias no âmbito das relações entre particulares. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org). Constituição, Direitos fundamentais e direito. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2006, p.273-300. ARAUJO, Fábio Caldas de. Usucapião. São Paulo. Malheiros, 2005. BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 3 ed. São Paulo, Saraiva, 1999. BARWINSKI, Sandra Lia Leda Bazzo Barwinski. A Mulher e o Direito. Curitiba: Artes e Textos, 2012. BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da Personalidade. São Paulo. Atlas, 2005. BONAVIDES, Paulo. A Constituição Aberta: temas políticos e constitucionais da atualidade, com ênfase no Federalismo das regiões. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 1996. CANARIS, Claus- Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. Traduzido por Petter naumann. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado, 2. ed., rev. amp. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2006, p. 225-46. 210

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NOTAS DE FIM 1 “Everyone has the right to own property alone as well in association of others. No one shall be arbitrarily deprived of his property”. 2 Enunciado 499, jornada de Direito Civil Brasileiro: “A modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades familiares, inclusive homoafetivas”.

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DA NECESSIDADE DE PROPORCIONALIDADE Rafael Barros Pires

Graduando em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Integrante do Grupo Transdisciplinar de Estudos Interinstitucionais em Argumentação e Filosofia do Direito (G-TEIAFIL). Coordenador-discente do Centro de Estudos em Direito Constitucional (CEDIC-UFC). Contato: [email protected].

RESUMO: A colisão de direitos fundamentais encontra no princípio da proporcionalidade o fundamento mais propício a garantir a existência harmônica e coerente entre os mais diversos princípios constitucionais. Entretanto, comumente este princípio é utilizado de forma meramente retórica, o que ocasiona seu esvaziamento de sentido, deixando de ser uma possibilidade de fundamento formal para nossa Constituição. O presente artigo busca evidenciar a necessidade de uma clara fundamentação teórica do princípio da proporcionalidade e a importância que a coerência de seu uso tem na busca por uma prestação jurisdicional mais equânime. Palavras-Chave: Proporcionalidade. Hermenêutica. Direito Constitucional. ABSTRACT: The collision of fundamental rights finds in the principle of proportionality a more propitious basis to guarantee the harmonic and coherent existence between the various constitutional principles. However, this principle is commonly used in a purely rhetorical way, which causes the emptying of its meaning, no longer being a possibility of formal fundament for our Constitution. This article seeks to highlight the need for a strong theoretical fundamentation of the principle of proportionality and the importance that the consistency of its use has in the search for a more equitable adjudication. Keywords: Proportionality. Hermeneutics. Constitutional law. INTRODUÇÃO O Constitucionalismo promoveu verdadeira reviravolta no modo de organização e estruturação dos sistemas jurídicos atuais, situando a Constituição no centro do ordenamento jurídico. Com a consolidação dos direitos fundamentais e o aparecimento de normas que não mais se enquadram no formato jurídico 215

THEMIS clássico de regras, experimentamos a necessidade de repensar os fundamentos teóricos do Direito, passando a enfrentar problemas de maior complexidade e sutileza na interpretação normativa. Esse novo paradigma de Direito tem como situação problemática central o choque entre princípios, que necessita de novos modos de raciocínio para ser solucionado, os quais não estão, ainda, consistentemente desenvolvidos, bem como os intérpretes não estão completamente adaptados a essas exigências. Nesse contexto, o uso do princípio da proporcionalidade, objeto deste estudo, para a resolução de tensões e para a harmonização dos princípios consagrados pela ordem constitucional, apresenta-se como alternativa procedimental que tem forte capacidade de concretização dos preceitos de justiça e traz alguns elementos que visam dotar as decisões de maior imparcialidade e possibilidade de verificação, o que daria a elas maior legitimidade. No entanto, apesar de ter tido grande fundamentação na aplicação do Direito Constitucional Alemão, seus desdobramentos encontram-se ainda confusos e imprecisos, principalmente no Brasil. Dessa forma, para verdadeiramente servir como ferramenta para uma possível solução justa para uma colisão de direitos fundamentais, o uso do princípio da proporcionalidade precisar ser o mais coerente e fundamentado. No entender de Glauco Barreira Magalhães Filho (2004, p. 205), o princípio da proporcionalidade se apresenta como fundamento formal da Constituição. Dentre as implicações do acolhimento da ideia deste princípio como alicerce constitucional está a importância de sua correta utilização, de modo a tornar possível a preservação dos direitos fundamentais e dos valores constitucionais de forma harmônica e justa. Desde que utilizado de maneira justificada, e não como mera arma retórica, o princípio da proporcionalidade apresenta-se como critério válido para propiciar uma garantia de segurança jurídica e justiça. 1 ORDEM CONSTITUCIONAL ATUAL A promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 representou um marco do constitucionalismo moderno em nosso país. A partir de então, passamos a viver em uma sociedade regulada por um ordenamento jurídico fundado num sistema aberto de regras e princípios, que elenca diversos direitos fundamentais, muitas vezes aparentemente incompatíveis entre si, mas que precisam coexistir em um mesmo ordenamento de maneira harmônica. 216

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Judicael Sudário de Pinho (2005, p. 23) destaca três feitos que a nova Constituição oportunizou em nossa realidade política: a redemocratização, as garantias constitucionais e o consequente alargamento do rol dos direitos individuais e a enunciação dos princípios constitucionais. Dessa maneira, inaugurou-se no ordenamento pátrio um sistema de princípios, que, não obstante seus mais de vinte anos de vigência, ainda encontra dificuldades para operar de maneira a concretizar seus valores. A transformação da concepção do ordenamento como um sistema de regras, para um sistema que apresenta em seu seio, também, princípios, parece superficial, mas não o é. Essa mudança significou mais do que a substituição de um conjunto de leis, representou também modificações em nossa maneira de pensar e entender o Direito, principalmente com relação ao modo como compreendemos a racionalidade jurídica. 2 UM NOVO PARADIGMA DE SISTEMA JURÍDICO A ciência jurídica foi amplamente influenciada pela lógica cartesiana e pelo racionalismo, influência notada principalmente pelo legado juspositivista representado pelo pensamento kelseniano. No entanto, o modelo positivista de Direito não encontra mais, nos tempos atuais, recepção clara e evidente. Vivemos, assim, em um tempo denominado apenas de “pós-positivismo”. Nem jusnaturalismo, nem juspositivismo, o que parece restar é um vácuo de paradigma dominante, denotando a necessidade de repensar a racionalidade da decisão judicial, para contemplar a complexidade dos problemas e conflitos que o Direito contemporâneo se propõe a resolver. Dentre as reflexões que se alinham a esses novos tempos, podemos destacar a de Edgar Morin, que concebe uma reforma do pensamento através da adoção de uma lógica da complexidade: A reforma necessária do pensamento é aquela que gera um pensamento do contexto e do complexo. O pensamento contextual busca sempre a relação de inseparabilidade e as inter-retroações entre qualquer fenômeno e seu contexto, e deste com o contexto planetário. O complexo requer um pensamento que capte relações, inter-relações, implicações mútuas, fenômenos multidimensionais, realidades que são simultaneamente solidárias e conflitivas (como a própria democracia que é o sistema que se nutre de antagonismos 217

THEMIS e que simultaneamente os regula), que respeite a diversidade, ao mesmo tempo que a unidade, um pensamento organizador que conceba a relação recíproca entre todas as partes (MORIN apud FERNANDES, 2010).

Notamos nesses novos paradigmas um alinhamento com o pensamento jurídico da atualidade no que diz respeito à Teoria dos Direitos Fundamentais. É essencial, para que seja possível um ordenamento baseado em uma unidade axiológica da Constituição, que os diversos valores consagrados pela sociedade nessa carta política sejam garantidos simultaneamente, coexistindo harmonicamente em um plano abstrato e sendo harmonizados através de uma fundamentação racional no plano concreto. Para isso, não se faz mais suficiente o uso de uma lógica cartesiana, silogística, é preciso cultivar-se um pensamento que leve em conta o contexto e o complexo, como os novos ordenamentos exigem. Portanto, a evolução do pensamento jurídico no que diz respeito à adoção de um sistema aberto de interpretação das normas jurídicas parece não estar sozinha no contexto global de mudanças tanto nas ciências, na filosofia, na cultura e na sociedade1. A complexidade das relações no mundo moderno insta a reconsiderações sobre a maneira como pensamos, vivemos e nos enxergamos. [...] os diversos modelos de racionalidade jurídica, em particular, e de racionalidade prática, em geral, que pretendem ser dotados de um alto grau de objetividade, não passam de ilusões obtidas ao custo de uma excessiva e inaceitável simplificação da complexidade da realidade prática e/ou normativa (GUERRA, 2007, p. 27).

A pretensão da ciência por neutralidade, precisão e exatidão deixa lugar para a aceitação de que sempre haverá uma margem de incerteza. Essa mudança gradativa de pensamento facilita o acolhimento das novas teorias que tentem diminuir essa margem, oferecendo, assim, maneiras mais equânimes de solucionar conflitos entre princípios constitucionais fundamentais. No entanto, as antigas concepções ainda se encontram arraigadas no ideário coletivo, o que cria resistências à adoção desses novos modos de fazer direito. 3 OS PRINCÍPIOS E A SEGURANÇA JURÍDICA Podemos observar esse fenômeno ao notarmos a difícil mudança do fazer interpretativo de um modelo que girava em torno da subsunção (um sistema 218

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fechado de regras) para um modelo que se desenvolve com base em normas com estrutura de princípios. Na verdade, a formulação de normas positivas dessa segunda espécie, representa uma tendência expressiva do legislador atual, especialmente o "legislador constituinte", a optar por normas mais flexíveis, que possam "resistir" às mudanças, cada vez mais rápidas, das sociedades contemporâneas. Tal modelo é, portanto, significativamente adequado à interpretação constitucional, o que torna bastante oportuna a sua adoção pela ciência jurídica brasileira, especialmente em face da Constituição atual conter um sem-número de normas com estrutura de princípios (GUERRA, 1996, p. 95).

A resistência a um sistema jurídico que contenha, além de regras, normas com estrutura de princípios dá-se em razão da concepção errônea de que a adoção desse novo modelo gerará insegurança jurídica, pois os juízes, intérpretes do Direito, avocariam um maior poder discricionário, tendo maior possibilidade de submeter as decisões judiciais ao seu arbítrio. À época em que prevalecia o modelo subsuntivo de interpretação, tinhase a ilusão de que a ciência jurídica poderia ser exata, mecânica e automática, sem influência do arbítrio de seus intérpretes. Dessa forma, imaginavam-se os ordenamentos jurídicos como capazes de conter todas as respostas para os fatos sociais, e, assim, tentava-se fazê-los os mais extensos e detalhados possíveis, para que bastasse ao juiz identificar a norma que contemplava aquela situação fática e aplicar seus mandamentos. Quanto às lacunas, o próprio ordenamento previa as maneiras de serem solucionadas, e às antinomias, aplicavam-se os critérios e metacritérios de resolução (hierarquia, cronologia e especialidade), garantindose, assim, a completude do ordenamento. O Velho Estado de Direito ou Estado Legalista foi caracterizado pelo culto à lei, dando origem ao princípio da legalidade, assentado numa ideologia segundo a qual os preceitos legais sempre protegeriam as liberdades e os direitos fundamentais da pessoa humana (fetichismo legal). Dessa forma, a existência da lei confundia-se com a proteção ao Direito (MAGALHÃES FILHO, p. 58).

Criava-se, então, a impressão errônea de que tal modelo traria como consequência segurança e precisão jurídica. Existia “a concepção de que os juízes não ‘criam’ direito, mas apenas ‘declaram-no’, pois as suas decisões, conteúdo 219

THEMIS (ou resultado) da aplicação da lei, apenas ‘explicitam’ o que está ‘latente’ no ordenamento jurídico” (GUERRA, ob. cit., p. 87). Os pensadores de então asseveravam que “o Direito Positivo [era] a vontade do Estado, e não [havia] fonte mais genuína do Direito do que a lei” (DMITRUK, 2004, p. 73). Dessa maneira, os juízes não possuíam “outra função além de deduzir, a partir de regras de Direito Positivo, a solução dos casos concretos” (idem, ibidem, loc. cit.). No entanto, o desenvolvimento dos estudos na filosofia, na hermenêutica, e, principalmente, a reviravolta pragmático-linguística, nos deram condições de concluir que, dentro deste modelo, a subjetividade estava presente, não se podendo garantir que as decisões judiciais correspondam exatamente à previsão do ordenamento, pois até essa é dificilmente identificada. E mais, perseguindo-se o aperfeiçoamento cego desse modelo, além de não se conseguir maior exatidão, expurga-se do Direito a busca por um ideal de justiça, já que se tiram de pauta as valorações realizadas pelos juízes. Os juízes sempre criaram as regras, nos casos de ambigüidade, vagueza, lacuna e antinomia. [...] com essa criatividade, justa ou injusta, a promessa de segurança jurídica simplesmente foi descumprida. Nunca houve, portanto, a previsibilidade do sistema de regras, pois isso exigiria que a linguagem humana fosse diferente do que ela, inevitavelmente, é. 2 (não publicado).

Dentre os principais defeitos do modelo subsuntivo encontramos: a impossibilidade, em um sistema fechado, de se regular todos os fatos da vida social, e mais, de se acompanhar as mudanças da dinâmica social; a presença de conceitos vagos e ambíguos, resultado de uma constatação de que a significação, que o signo linguístico recebe, depende do intérprete; o uso de critérios de interpretação aberta para a colmatação de lacunas, como a analogia e a equidade; a insuficiência dos critérios e metacritérios para a solução de conflitos entre normas; e a impossibilidade de neutralidade deles. Ao admitirmos esses defeitos, podemos buscar critérios válidos para tentar minimizá-los. No entanto, persistindo nessa busca de completude, previsibilidade e rigidez do sistema de regras, estaríamos encobrindo suas imperfeições e alargando as probabilidades de causar injustiças. O modelo de normas abertas, que positivem valores, aparece como resposta aos anseios de uma justiça equânime que guie o Direito. No entanto, a sedimentação da concepção de que o direito deve se desenvolver similarmente 220

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às ciências naturais, com objetividade e neutralidade, gera um preconceito e resistência a essa maneira de pensar o Direito, que, apesar de aparentar dar maior liberdade a seus intérpretes, busca de uma maneira mais clara e concreta evitar a arbitrariedade e o abuso de poder, sem, contanto, afastar-se da busca pelo justo. Neste sentido, Marcelo Lima Guerra afirma que “um sistema de princípios pode trazer uma sutil diferença e uma esperança real de existir alguma segurança jurídica, não, obviamente, no limitado sentido de previsibilidade total, mas no sentido de garantia de justiça”.3 (não publicado). Assim, observa-se nos sistemas jurídicos contemporâneos um recurso maciço às normas com estrutura de princípio, para dar maior dinamicidade aos ordenamentos, possibilitar respostas mais justas, garantindo os direitos fundamentais da pessoa humana, não por sua completude imediata, mas pelo seu uso concreto, que exige, assim, uma “nova metodologia jurídica, voltada para valores” (MAGALHÃES FILHO, p. 59). 4 SOLUCIONANDO COLISÕES DE PRINCÍPIOS As normas enunciadoras de direitos fundamentais apresentam uma estrutura de normas-princípios, fato que as coloca, em um plano abstrato, como tendo validade absoluta. Diferentemente das normas com estrutura de regras, suas aparentes contradições não ensejam o afastamento de uma delas do ordenamento jurídico, posto que são conflitantes apenas no plano concreto, momento que necessitam da intervenção do intérprete para valorar suas incidências. Prevalecer um princípio em um caso concreto, não implica em sua exclusão do ordenamento, pois, no plano abstrato, eles seguem em harmonia. O modelo interpretativo logicamente fechado tornaria, desde logo, um ordenamento jurídico que elenca princípios impraticável, pois, em qualquer ordenamento deste tipo, encontram-se normas (aparentemente) contraditórias, que enunciam pretensões incompatíveis à primeira vista. Entretanto, essa contradição é apenas aparente, pois os princípios, se entendidos como “mandamentos de otimização”4, não são normas que devem ser eficazes em sua totalidade, mas na maior medida possível. Dessa forma, a aplicabilidade das normas dependerá sempre das condições fáticas de cada caso concreto. Para tanto, as colisões entre princípios ensejam a utilização de um critério válido para solucioná-las, pois, sem este critério, ocorre exatamente o que receiam os mais conservadores, a submissão da decisão judicial ao arbítrio do juiz. 221

THEMIS Acima de tudo, todas as decisões devem ser motivadas, sendo esta uma exigência de qualquer Estado que se determine democrático e de Direito. Daí porque não ser aconselhável criarem-se regras a partir da aplicação de princípios em determinado caso concreto, pois é necessário que o juiz, ao se deparar com um novo caso, opere novo exercício de reflexão e busca de fundamentos: analisando minuciosamente o suporte fático do caso, sopesando os princípios imediatamente envolvidos e, ainda, todo o conteúdo valorativo da Constituição. A formulação de regras derivadas de colisões de princípios, como que precedentes fossem, obstaria o exercício mental de valoração específica de cada caso, de maneira a favorecer a aplicação errônea de soluções idênticas para casos, ainda que sutilmente, diferentes5. A colisão entre princípios não deve gerar regras, e só devem se repetir soluções se restar demonstrada, pelas vias exigidas, a igualdade de suporte fático e axiológico de ambos os casos através de uma justificação racional. Assim, garantir-se-ia a isonomia no processo judicial, posto que cada caso deveria ter uma decisão que se aplicasse unicamente a ele, levando em conta todas suas peculiaridades. Entretanto, para garantir que o sopesamento de princípios se efetuará de maneira coerente pelos diversos intérpretes, nas mais diversas situações fáticas e nas mais complexas colisões, é necessário que se elenque um critério de coesivo, que se recorra ao chamado “princípio dos princípios”: o princípio da proporcionalidade6. 5 A IDEIA DE PROPORCIONALIDADE O vocábulo “proporção” em seu uso comum, além de significar a relação das partes de um todo entre si ou entre cada uma delas e o todo, suscita a ideia de correta proporção ou de proporção que provoque um sentimento de harmonia. Em sua própria definição, proporção é a justa relação entre coisas (HOUAISS et all, 2009). Se refletirmos sobre algumas concepções que historicamente a ideia de justiça recebeu, podemos perceber que se encontra intrínseca a elas (e pressuposta) a ideia de proporcionalidade na medida em que se delimita como justo a atribuição de um valor a uma relação entre coisas. A definição adotada no Direito Romano, atribuída a Ulpiano, por exemplo, traz a formulação de “dar a cada um o que é seu”7. Na Grécia Antiga, 222

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fazia-se presente “as noções de métron, o padrão do justo, belo e bom, e de hybris, a extravagância dessa medida, fonte de sofrimento” (GUERRA FILHO, 2002, p. 83). Aristóteles, por sua vez, condensa essas noções em sua concepção de justiça como uma proporção tanto de distribuição (quando considera que encargos e recompensas são devidos, e.g., de maneira proporcional à classe social ocupada), quanto de retribuição (quando entende que uma recompensa, e.g., seria proporcional ao serviço prestado) (idem, ibidem). Esse segundo aspecto em muito se assemelha à chamada Lei de Talião, que pode ser simbolizada pela máxima “olho por olho, dente por dente”, mas que, mesmo na época em que era aplicada, dado a comum incompatibilidade entre o crime cometido e uma possível reparação idêntica, pode ser entendida como a exigência de uma punição proporcional ao dano. Essa proporcionalidade entre crime e pena, encontra-se, ainda, melhor fundamentada e humanizada na obra de Cesare Beccaria, que marca o início do direito penal moderno. Portanto, encontraremos, frequentemente, inerente à ideia de justiça, a noção de proporção entre quais direitos são devidos ao indivíduo e o universo de direitos, ou entre quais direitos são devidos a um indivíduo e quais são devidos a outro, de acordo com algum critério que valore seus traços particulares. Mesmo quando Kant enuncia o Direito como sendo o conjunto de condições mediante as quais a vontade de cada um pode coexistir com a vontade dos demais, segundo uma lei geral de liberdade, entende-se pressuposto que tal lei geral de liberdade, para compatibilizar as esferas de liberdade de cada indivíduo com as dos demais, estabeleça a relação justa entre suas extensões. Mais explicitamente observamos a proporcionalidade quando Dante Alighieri diz que direito “é uma proporção real e pessoal de homem para homem que, servida, serve a sociedade, e, corrompida, a corrompe” (ALIGHIERI apud MATOS, 2010, on line). A conclusão a que se chega nessa [...] tentativa de focalizar a ideia de proporção nos arquétipos do pensamento jurídico ocidental, é a de que essa praticamente se confunde com a própria ideia do ‘direito’, [...] materializada simbolicamente no equilibrium da balança que porta Thémis (GUERRA FILHO, p. 84).

Quando examinamos o uso de uma balança, notamos que sua função é comparar massas entre dois corpos, ou seja, dessa maneira, ela estabelece um critério válido e preciso para comparar dois objetos diferentes. Assim, ao colocarmos em um prato um corpo estranho, e em outro, corpos conhecidos, 223

THEMIS podemos precisar sua massa e compará-la a de outro. Pode-se, assim, entre dois corpos que aparentam ser completamente diferentes, demonstrar a igualdade de um de seus atributos, no caso, a massa. Figurativamente, seria isso o que ocorreria com os princípios na medida em que, por meio do sopesamento, define-se o quanto a realização de um princípio equivaleria, proporcionalmente, à realização de outro com o qual ele está em conflito. A balança se torna, portanto, um critério, um meio de avaliação, relação ou comparação, que simboliza o equilíbrio, a imparcialidade e a ponderação nos julgamentos8, exatamente o que se espera do princípio da proporcionalidade. Indo além, convém lembrar a “sinonímia e origem comum, na matemática, dos termos ‘razão’ (lat. ratio) e ‘proporção’ (lat. proportio)” (GUERRA FILHO, p. 177-178) o que nos faz entrever a importância que o princípio em estudo recebe para tornar possível uma racionalidade nas decisões judiciais, e na aplicação e construção do Direito como um todo. Na matemática, ainda, define-se uma proporção ou razão áurea, também conhecida como divina proporção, que está presente na natureza, no crescimento biológico de animais e vegetais, e é utilizada na arte, na arquitetura, no design e na música como uma representação do naturalmente belo e harmônico. Nesse sentido, podemos imaginar ser a proporcionalidade a razão áurea que se deve buscar para uma justa decisão judicial. Se aprofundarmos a abstração e pensarmos na proporcionalidade como um dos fatores necessários para uma real unidade axiológica do ordenamento jurídico, podemos compará-lo a um holograma, em que o menor ponto da imagem contém a quase totalidade da informação do objeto representado. Não apenas a parte está no todo, mas o todo está na parte. O princípio hologramático está presente no mundo biológico e no mundo sociológico. No mundo biológico, cada célula de nosso organismo contém a totalidade da informação genética deste organismo. A ideia pois do holograma vai além do reducionismo que só vê as partes e do holismo que só vê o todo. É um pouco a ideia formulada por Pascal: 'Não posso conceber o todo sem as partes e não posso conceber as partes sem o todo'. Esta ideia aparentemente paradoxal imobiliza o espírito linear. Mas, na lógica recursiva, sabe-se muito bem que o adquirido no conhecimento das partes volta-se sobre o todo. O que se aprende sobre as qualidades emergentes do todo, tudo que não existe sem organização, volta-se sobre as partes. Então pode-se enriquecer o conhecimento das partes pelo todo e do todo 224

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pelas partes, num mesmo movimento produtor de conhecimentos (MORIN, 20007, p. 74-75).

Com base nesse ideário, para podermos obter decisões judiciais que sejam reflexo do conjunto de valores encerrados na ordem jurídica constitucional, devemos ter uma constante que atravesse todo o ordenamento (âmbito abstrato) e todos os pontos da realidade em que ele incide (âmbito concreto), de modo que sejamos capazes de vislumbrar, tanto no plano teórico como no prático, características comuns que permeiem suas manifestações e juntas formem aquilo que podemos chamar de “princípio da proporcionalidade”. Somente por ele, teremos sucesso em reconstruir a racionalidade jurídica de forma a contemplar a complexidade suscitada por um sistema de princípios paradoxalmente conflitantes, mas harmônicos, pois que, equilibrados por esse verdadeiro “metaprincípio” que é a proporcionalidade. 6 PROPORCIONALIDADE: PRINCÍPIO OU REGRA? Seria, de fato, impensável uma solução para um conflito entre direitos fundamentais, devido à sua estrutura de normas-princípio, sem o estabelecimento de uma proporção de incidência entre eles, no entanto, essa definição da proporção em cada caso concreto deve responder a critérios claros e ser justificada, sob pena de ferir a própria concepção de Estado de Direito. Por essa razão, o princípio da proporcionalidade é enunciado por muitos não como princípio, mas como regra da proporcionalidade, pois se apresenta na forma de um processo a ser adotado na proferição de uma sentença. Nesse sentido, Virgílio Afonso da Silva (2002, p. 25) argumenta que o princípio da proporcionalidade não pode ser enquadrado como princípio, pois não entra em conflito com outros princípios e não produz efeitos em várias medidas (não pode ser ponderado). Indo além, sustenta que ele deve ser enquadrado como regra, pois a forma de aplicação da proporcionalidade e de suas sub-regras é a subsunção. Glauco Barreira Magalhães Filho (op. cit., p. 208) vai além, já que em seu entendimento o princípio da proporcionalidade tem uma natureza híbrida entre princípio e regra, pois que, apesar de ter estrutura de regra, com hipótese e consequência, não diz respeito a fatos, mas sim a uma colisão de valores. 225

THEMIS Além disso, parece-nos sensato o uso da expressão “princípio da proporcionalidade”, principalmente, se não tomarmos aqui a expressão “princípio” como em contraste à expressão “regra”, e sim em sua acepção comum, denotando, assim, seu aspecto fundamental, enquanto proposição elementar sobre a qual se apoiam os raciocínios efetivados para o sopesamento de normas jusfundamentais9. Para nós, acertada é a distinção operada por Willis Santiago Guerra Filho (passim), que se propôs a fundar uma Filosofia Processual do Direito, entendendo, assim, os ordenamentos modernos como compostos por princípios, regras e procedimentos. Dessa forma, o autor não enquadra o princípio da proporcionalidade como princípio, nem como regra, mas como procedimento10. 7 DA NECESSIDADE DE PROCEDIMENTALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO Willis Santiago Guerra Filho (op. cit., p. 75) define procedimentos como “séries de atos ordenados com a finalidade de propiciar a solução de questões cuja dificuldade e/ou importância requer uma extensão do lapso temporal, para que se considerem aspectos e implicações possíveis”. De maneira análoga ao que acontece com as regras, que necessitam de procedimentos (processos) especiais para sua aplicação, principalmente no que concerne à verificação da ocorrência de seu suporte fático, Willis Santiago Guerra Filho (idem, ibidem, loc. cit.) afirma categoricamente a necessidade do estabelecimento de um procedimento para a aplicação de princípios, “pois aí a discussão gira menos em torno de fatos do que de valores, o que requer um cuidado muito maior para se chegar a uma decisão fundamentada objetivamente”. Glauco Barreira Magalhães Filho (op. cit., p. 208) ressalta que para concretizar a unidade axiológica da Constituição “é necessária sua procedimentalização”. Conclui, então, “que o princípio da proporcionalidade, que é a norma regulamentadora da realização prática e unitária da Constituição, é o seu fundamento”. No esteio desses autores, entendemos ser essencial o estabelecimento de procedimentos válidos e que busquem certa medida de objetividade para criar condições de manutenção dos sistemas jurídicos atuais. Sem normas que se ocupem diretamente com a realização dos direitos materiais, determinando condições para que venham a ser aplicados concretamente (GUERRA FILHO, op. cit., p. 78), a força normativa dos direitos fundamentais acolhidos pelas Constituições torna-se inepta e, portanto, vazia de sentido. 226

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Com procedimentalização, entretanto, não queremos trazer a lume um sistema fechado, mecânico e automatizador. Pelo contrário, buscamos demonstrar a necessidade de conciliar o formal com o material de modo a permitir uma interpretação aberta, mas dentro de padrões objetivos e claros, que facilite a compreensão, comparação e análise das decisões judiciais. A objetividade que se fala aqui, porém, não é a imparcialidade, mas o autoconhecimento e a autocrítica11 que permita tomar consciência da subjetividade e da ideologia a que o intérprete se submete. Pois, atualmente, apesar de muitas vezes se recorrer ao “princípio da proporcionalidade” na fundamentação das decisões, este “princípio” termina por ser apenas uma alusão a uma noção subjetiva qualquer, de conteúdo variável, indeterminado e obscuro. O princípio da proporcionalidade, enquanto fundamento formal da Constituição, necessita de força normativa. Para isso, precisa aliar uma carga semântica clara a uma significação precisa, dentro de um modelo comum a que todos se submetam, constituindo-se, assim, método valorativo e princípio harmonizador para a ponderação de direitos fundamentais colidentes. 8 OS VÁRIOS “PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE” A grande dificuldade em se ter o princípio da proporcionalidade como fundamento prático na aplicação dos princípios constitucionais reside no seu pouco desenvolvimento e sedimentação no imaginário de nossos intérpretes e juristas. Apesar de ser densamente fundamentado, por exemplo, a partir da jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão, na doutrina de Robert Alexy, que já havia apontado a necessidade de uma teoria geral que evitasse que a ciência dos direitos fundamentais se tornasse uma ciência de jurisprudência constitucional (ALEXY apud PEREIRA, 2006) seu uso, pelo menos no Brasil, continua refém das concepções particulares dos órgãos jurisdicionais. Assim, comumente vemos ambiguidade e incoerência no uso desse princípio nas motivações das decisões judiciais. Pior ainda, observamos normalmente uma mera citação, como se a carga semântica que ele invocasse estivesse, de fato, consolidada no ideário coletivo. As decisões pátrias, por exemplo, citam recorrentemente o princípio da proporcionalidade, mas muitas vezes o confundem com o princípio da razoabilidade ou da proibição de excesso12, os quais não são sinônimos. Em 227

THEMIS algumas ementas, o STF fundamenta sua decisão identificando o princípio da proporcionalidade com o da proibição de excesso, no entanto, este último se apresenta apenas como um impedimento ao cometimento de absurdos pelo Estado, diferindo do princípio da proporcionalidade, que implica em outros desdobramentos teóricos. Além disso, se o princípio da proporcionalidade já foi identificado com a proibição de excesso, já o excedeu em muito quando preconiza, também, a proibição de insuficiência, ou seja, implica na não omissão do Estado. Em outras, ainda, simplesmente deixa-se implícita a ideia de proporcionalidade, sendo poucas as que se utilizam dele seguindo os preceitos teorizados pela doutrina. Dessa forma, as fundamentações, em vez de claras, tornam-se ambíguas, sendo o problema mais comum a confusão de proporcionalidade com razoabilidade13, o que reduz sua complexidade e significado, prejudicando, assim, a própria fundamentação racional da sentença judicial14. Razoabilidade não corresponde à proporcionalidade, mas aproximase mais da proibição de excesso quando, na verdade, é um princípio que afasta a irrazoabilidade15, ou seja, que veda a adoção de medidas extremas. Mesmo no âmbito doutrinário, o igualamento entre proporcionalidade e razoabilidade gera repercussões negativas e obsta sua estabilização teórica16. A regra da proporcionalidade, contudo, diferencia-se da razoabilidade não só pela sua origem, mas também pela sua estrutura. [...] Na forma desenvolvida pela jurisprudência constitucional alemã, tem ela uma estrutura racionalmente definida, com subelementos independentes – análise da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito – que são aplicados em uma ordem pré-definida, e que conferem à regra da proporcionalidade a individualidade que a diferencia, claramente, da mera exigência de razoabilidade (SILVA, Virgílio Afonso da. op. cit.,p. 29-30).

A razoabilidade tem sua importância no contexto aqui abordado, entretanto, não é suficiente para estabelecer um critério válido para legitimar as decisões judiciais, pois tem, ainda, uma esfera de influência muito reduzida para ser considerada fundamento formal da Constituição. Nesse sentido, a contribuição de Alexy para a fundamentação do princípio da proporcionalidade a engloba e absorve, vindo a casar com essa busca por um modelo que garanta critérios racionais dentro da prestação jurisdicional. 228

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9 A CONTRIBUIÇÃO DA DOUTRINA ALEMÃ O mérito que deve ser concedido à teoria de Alexy consiste em sua tentativa de dar maior racionalidade à atividade jurisdicional. Com relação ao princípio da proporcionalidade, Alexy, a partir da jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão, vai além da análise de sua aplicação corrente e cria uma ciência normativa no que diz respeito aos direitos fundamentais. O princípio da proporcionalidade em Alexy divide-se, então, em três subprincípios: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Existe uma configuração para cada um e uma ordem pré-definida, de modo a que funcionem como sucessivos filtros subsidiários, do mais amplo ao mais específico, tornando os processos mentais de percepção, conhecimento, juízo e raciocínio do intérprete e juiz mais organizados e concentrados. A análise da adequação, o primeiro filtro, corresponde ao exame da compatibilidade entre meios e fins, razão porque se assemelha ao princípio da razoabilidade (SILVA, 2002, p. 33). Aqui, analisa-se a medida em separado relacionando-a com seus objetivos, não levando em conta, ainda, os direitos fundamentais que ela possa vir a restringir. Nessa etapa de raciocínio, busca-se avaliar se a medida a ser tomada colabora com a realização de um objetivo a ser alcançado, só sendo a medida afastada no caso de não contribuir em nada para a realização de determinado objetivo (ibidem, p. 37). Caso contrário, a medida é adequada, mesmo que não seja a mais adequada, e, portanto, passa-se ao exame de sua necessidade. Nessa segunda etapa, dá-se uma análise comparativa para determinar se não existiria outro caminho, dentro do faticamente possível (GUERRA, 2003, p. 92), para a realização do objetivo visado com a mesma intensidade, mas que limitasse em menor medida, o direito fundamental atingido (SILVA, op. cit., p. 38). Dessa forma, torna-se imprescindível um esforço para analisar as diversas possibilidades alternativas de resolução da colisão e qual delas representaria menor restrição a direitos fundamentais. Na última etapa, só utilizada se a medida for considerada adequada e necessária, opera-se o verdadeiro exame de proporcionalidade com vistas a definir em que medida um princípio deve prevalecer no caso concreto. No caso, teremos “um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva” (idem, ibidem, p. 39). 229

THEMIS O que ocorre então é uma ponderação racional acerca da importância dos princípios colidentes e se o direito fundamental em que a medida restritiva de direitos se baseia é suficientemente importante para justificá-la. Assim, essa terceira etapa consiste na aplicação da Lei de Sopesamento de Alexy, por meio da Fórmula do Peso, em que se atribui pesos abstratos a cada um dos princípios conflitantes a partir de um raciocínio argumentativo. Além disso, a fórmula considera também em seu “cálculo” a interferência que a realização e a não realização de um princípio causa no outro e as evidências empíricas disponíveis para fundamentar essas considerações17. Com efeito, a elaboração da já famosa Fórmula do Peso permite enxergar, claramente, a possibilidade de se formular decisões racionais sobre o conflito entre princípios ou valores constitucionais, mesmo que se trate de uma racionalidade possível, não inteiramente idêntica à racionalidade própria das ciências descritivas (GUERRA, op. cit, p. 26-27).

A referida Fórmula do Peso consiste em uma metáfora matemática desenvolvida por Alexy para evidenciar de forma objetiva os principais pontos controversos em um raciocínio argumentativo para sopesar princípios. Não demonstraremos essa fórmula aqui porque ela foge aos objetivos do presente trabalho, contudo, devemos atentar para as consequências que tal fórmula traz para criar possibilidades de uma discussão racional sobre colisões entre princípios18. CONCLUSÃO O novo paradigma de direito inaugurado com o constitucionalismo moderno, que rendeu frutos na nova ordem constitucional inaugurada pela Constituição Brasileira de 1988, preconiza uma ordem jurídica baseada em princípios, o que acolhe novamente no campo da ciência jurídica a busca de valores como a justiça e a equidade. O ordenamento jurídico brasileiro, na medida em que explicita a exigência de fundamentação da decisão judicial para sua validade, procura garantir sentenças justas e equânimes, dado que resultantes de um raciocínio motivado pelos preceitos do pensamento jurídico moderno, mormente a ideia de proporcionalidade, o que supostamente propiciaria uma maior segurança jurídica em um sistema de normas de “textura aberta” (princípios). 230

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No entanto, percebe-se que, pelo fato de nossos tribunais ainda não terem internalizado e consolidado um padrão de aplicação do princípio da proporcionalidade, na realidade, seu uso transforma-se apenas em mero recurso retórico, uma verdadeira arma argumentativa a serviço de interesses específicos, de concepções particulares de direito ou de agendas de efetivação de direitos que nem sempre respeitam a ordem vigente ou são legitimados por ela. Tal utilização infundada do princípio da proporcionalidade, em vez de fornecer maior credibilidade às fundamentações das decisões judiciais, abre espaço para arbitrariedades e subjetivismo, visto que possibilita aos juristas aplicá-lo de acordo com a oportunidade. O citado princípio é utilizado, então, para justificar uma decisão já elaborada pelo subjetivismo do juiz, e não para, partindo da análise do caso concreto, elaborar uma fundamentação que culmine em uma solução do conflito pautada em um processo racional e coerente, atinente a uma unidade axiológica do ordenamento constitucional. Muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de, através deles, buscarem a justiça – ou o que entendem por justiça, passaram a negligenciar do seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta ‘euforia’ com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com os seus jargões grandiloqüentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, converteram-se em verdadeiras ‘varinhas de condão’: com eles, o julgador de plantão consegue fazer quase tudo o que quiser (SARMENTO, 2006, p. 200).

Assim, relaciona-se também essa discussão com o ativismo judicial tão polemizado atualmente. Não se pode dar poder aos órgãos judiciários de fiscalizar a esfera legislativa e executiva, se sua análise não se dará mediante critérios pré-estabelecidos e uniformes. Da mesma forma, pode-se questionar a revisão das decisões judiciais se não há um padrão claro a ser utilizado para criticar sentenças. O controle das atividades estatais para conformá-las aos princípios que compõem nosso ordenamento jurídico é essencial, porém perde sua legitimidade quando é instrumentalizado para atingir fins diversos aos que apregoa nossa Constituição. Portanto, sem obedecer a um procedimento objetivo, o órgão de interpretação constitucional padece também de legitimidade. Especialmente 231

THEMIS no Brasil, onde não há uma preponderância dos preceitos democráticos na composição dos órgãos jurisdicionais, deve haver uma preocupação em dar legitimidade às suas decisões, e uma maneira de se fazer isso é respeitando todos os valores que a Constituição democraticamente promulgada encerra, garantindo sua unidade axiológica e sua realização prática, por meio da fundamentação coerente de seus julgados. Dessa forma, não há possibilidade de se garantir verdadeiramente os direitos fundamentais consagrados pela Constituição sem o estabelecimento de um procedimento válido para tornar coerentes as decisões judiciais em matéria constitucional. Sem essa procedimentalização e a instituição de um fundamento formal para a Constituição, que dê condições de realização ao direito material que ela contém, estaremos diante de um ordenamento constitucional desprovido de eficácia e força normativa. A proposta de Alexy representa um avanço na regulação da atividade judicial, pois abre um caminho de busca de maior racionalidade nas decisões judiciais. Seguindo o modelo que ele propõe para o princípio da proporcionalidade, opera-se verdadeiro refino dos argumentos jurídicos. O princípio da proporcionalidade, então, tornar-se-ia um filtro pelo qual as colisões entre princípios deveriam passar. Assim, facilitar-se-ia a identificação dos pontos controversos a serem analisados para determinar o princípio preponderante. Ao chegar-se ao último filtro (proporcionalidade em sentido estrito), teríamos, ainda, um esboço teórico representado pela lei de sopesamento de Alexy, que oferece a possibilidade de se delinear a argumentação jurídica e sistematizá-la, propiciando um controle direto e enfocado da atividade jurisdicional. No entanto, o aspecto “matematizador” que a teoria de Alexy pode apresentar é mesmo apenas aparente. O valor de sua teoria e, principalmente, de sua lei de sopesamento, é o de fornecer um caminho claro a ser seguido, permeado por etapas racionais, cujos passos, entretanto, são dotados de espaços abertos e amplos destinados à preponderância da fundamentação argumentativa. A adoção por ele de uma forma de expressão matemática (“Fórmula” constituída de variáveis), inclusive com a atribuição de valores numéricos, quando de sua aplicação a um caso concreto, às variáveis que a integram é, simplesmente, metafórica, servindo como estratégia para tornar o mais clara e objetiva possível a referida discussão, evidenciando-lhes os tópicos que devem ser levados em consideração (GUERRA, 2007, p. 28). 232

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As etapas propostas por Alexy, se respeitadas, têm incríveis possibilidades de produzir sentenças mais justas, e outras considerações podem acrescentar valor à aplicação da proporcionalidade, como, por exemplo, a exigência de “legitimidade dos fins que a medida questionada pretende atingir”, (SILVA, 2002, p. 36) advinda do direito comunitário europeu, que é utilizada como uma etapa preliminar às de Alexy. No entanto, a discussão não se esgota, visto que resta, ainda, apurar o âmbito argumentativo, trabalhar a lógica que permeia o discurso jurídico para adequá-la às necessidades que se avolumam na atualidade. Diversos caminhos se apresentam e todos podem agregar conhecimento à atividade argumentativa. Alguns que aparentam somar grandes possibilidades de reformas positivas do pensamento jurídico são os relacionados à teoria da complexidade, pois muitos dos problemas enfrentados hoje na seara do direito se comunicam ou com a impossibilidade de pura objetividade e neutralidade e a insistência no reducionismo, ou com a descrença na verdade e no direito e aceitação das inconsistências das ações humanas. Se nos propomos a trabalhar com um ordenamento jurídico uno e coeso, mas repleto de tensões internas (portanto, complexo), temos que trabalhar com uma racionalidade que considere o todo e as partes conjuntamente e mutuamente, em função de sua complexidade e inter-fluência. Indo além, com uma racionalidade que tenha consciência e leve em conta que o ordenamento jurídico é também uma parte, na totalidade extremamente complexa das relações e valores humanos. Além disso, os intérpretes do direito devem se situar, enquanto sujeitos, como suscetíveis de influência de ideologia e emoções, não renegando sua subjetividade e individualidade e sim procurando conhecê-las e analisá-las, de maneira a minorar sua presença na composição das sentenças. Nesse sentido, não podemos mais nos contentar com teorizações que visam reduzir e simplificar a aplicação do direito, distanciando-o ainda mais da complexidade inerente às relações humanas, nem com o pragmatismo e o relativismo que procuram esvaziar o sentido de todas as discussões que buscam um “dever-ser”. Um mundo complexo necessita de soluções complexas. Os novos ordenamentos refletem esse desejo de se aproximar a esfera jurídica das vicissitudes da vida, buscando contemplar sua dinamicidade na infusão de equidade e justiça. Necessitam, entretanto, ainda de maior aperfeiçoamento para 233

THEMIS que possam ser acolhidos no imaginário coletivo, pois esbarram nos próprios limites que a racionalidade e o pensamento humanos encontram hoje. O princípio da proporcionalidade, no estágio em que se encontra sua fundamentação, ainda não é terreno firme para a concretização de uma equidade mínima no direito. Principalmente no constitucionalismo pátrio, a fundamentação e aplicação do princípio da proporcionalidade, que poderia ser um critério que garantisse justiça e legitimidade às sentenças judiciais, ainda apresentam-se pouco consolidadas. É preciso superar as tensões e superficialidades que permeiam a teoria constitucional brasileira, com sua mera importação de doutrina estrangeira e seu sincretismo metodológico falho. Não basta a adoção da teoria de Alexy, ou do uso do princípio da razoabilidade lato sensu, mais importante é a adoção de critérios claros e comuns, válidos para todo o ambiente constitucional pátrio, com vistas a obter segurança jurídica e, pelo menos, atenuar o uso das concepções doutrinárias como armas argumentativas. Apontamos a teoria de Alexy como propícia a trazer efeitos engrandecedores e enriquecedores ao fazer jurídico nacional, assim como as ideias de Morin. Porém, o que se evidencia como sendo o mais importante é que haja clareza e transparência nos posicionamentos adotados, ou que, no mínimo, comece-se a enxergar uma verdadeira busca pela uniformidade de paradigma, incessante e dialética, autoaperfeiçoadora. Sem isso, continuaremos diante de um cenário de insegurança jurídica (ainda que velado) e de um ambiente de afastamento da justiça, mesmo que os discursos indiquem o contrário. Entendemos que a ideia de proporcionalidade coaduna-se, especialmente, com o espírito de nossa Constituição e, assim, surge como um pressuposto para que ele se torne concreto, tornando-se a efetivação do princípio da proporcionalidade o norte que devemos seguir se almejamos, com efeito, criar uma sociedade onde se garantam direitos fundamentais de forma justa e equânime. REFERÊNCIAS BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2009. 234

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FILHO, Willis Santiago. Noção Essencial do Princípio da Proporcionalidade. Revista Ciência Jurídica, Belo Horizonte, n. 148, jul./ago. 2009, p. 174). 2 GUERRA, Marcelo Lima. Princípios Constitucionais e Segurança Jurídica. 2011. Artigo utilizado na disciplina Teoria do Direito da graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará no período de 2011.2, não publicado, p. 3. 3 GUERRA, Marcelo Lima. op. cit., p. 4. 4 Ideia desenvolvida por Robert Alexy (Cf. SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e Regras: Mitos e Equívocos Acerca de uma Distinção. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, n. 1, 2003, p. 610). 5 Conforme, nesse sentido, palestra realizada na VI Semana do Direito da Universidade Federal do Ceará, proferida pelo Prof. Dr. Virgílio Afonso da Silva, em 20.05.11.

6 Cf. MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e Unidade Axiológica da Constituição, p. 208. Cf. também GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Rcs, 2007, p. 79. 7 “Suum cuíque tribúere” (D., 1, 1, 10, 1). 8 Conforme acepções definidas em HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro; FRANCO, Francisco Manoel de Mello; INSTITUTO ANTONIO HOUAISS DE LEXICOGRAFIA E BANCO DE DADOS DA LÍNGUA PORTUGUESA. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 9 Nesse sentido: “o termo ‘princípio’ pretende conferir a importância devida ao conceito, isto é, à exigência de proporcionalidade” (SILVA, Virgílio Afonso da. op. cit., p. 26). 237

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10 O autor afirma que essa tripartição baseia-se na doutrina de Robert Alexy – Regel/Prinzipien/Prozedur Modell. (Cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago. A Filosofia do Direito, p. 81), já Virgílio Afonso da Silva, sustenta que divisão de Alexy não abrange a última categoria: “Alexy divide as normas jurídicas em duas categorias, as regras e os princípios” (SILVA, Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável, p. 25). Não nos interessa aqui a real distinção proposta por Alexy, mas parece-nos arrazoada a concepção enunciada por Willis Santiago Guerra Filho. 11 “O que é possível e desejável é produzir um intérprete consciente de suas circunstâncias: que tenha percepção da sua postura ideológica (autocrítica) e, na medida do possível, de suas neuroses e frustrações (autoconhecimento). E, assim, sua atuação não consistirá na manutenção inconsciente da distribuição de poder e riquezas na sociedade nem na projeção narcisística de seus desejos ocultos, complexos e culpas”. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2009. 12 Por exemplo, na jurisprudência do STF: “[...] O significado do princípio da proporcionalidade, visto sob a perspectiva da ‘proibição do excesso’ [...].” (HC 106442 MC / MS - MATO GROSSO DO SUL, em 30/11/2010). 13 Como bem evidencia Virgílio Afonso da Silva (SILVA, Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável, p. 27 et seq.). 14 Por exemplo, na jurisprudência do STF: “[...] hipótese na qual, à luz do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade [...]” (HC 76060 / SC SANTA CATARINA, em 31/03/1998 – grifo nosso). 15 Cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago apud SILVA, Virgílio Afonso da. op. cit., p. 29.

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16 Como aponta Virgílio Afonso da Silva em relação a Luís Roberto Barroso e Suzana Toledo de Barros (SILVA, Virgílio Afonso da. op. cit., p. 28). 17 Para um olhar aprofundado e objetivo da Lei de Sopesamento de Alexy: GUERRA, Marcelo Lima. A Proporcionalidade em Sentido Estrito e a “Fórmula do Peso” de Robert Alexy: Significância e Algumas Implicações, p. 29-30. Conferir também a ressalva feita ao uso da expressão “cálculo” pelo autor neste mesmo artigo. 18 “[...] com a “Fórmula do Peso” de Alexy tornam-se visíveis, por assim dizer, algumas implicações de sua teoria dos direitos fundamentais da máxima relevância para a prática jurídica, sobretudo no que diz com o controle de constitucionalidade e o limitado papel tanto do Legislador, como do próprio Supremo Tribunal Federal, em engendrar “soluções abstratas” e válidas em qualquer situação concreta, para conflitos de princípios ou valores constitucionais”. GUERRA, Marcelo Lima, op. cit., p. 27.

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DIRETAS JÁ, NO PODER JUDICIÁRIO: A DEMOCRATIZAÇÃO DA JUSTIÇA Raimundo Nonato Silva Santos

Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, integrante da 8ª Câmara Cível, graduado em Direito pela UFC, especialista em Direito Processual Civil pela UFC, mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela UNIMES.

Pablo Freire Romão

Acadêmico de Direito da UNIFOR, monitor da disciplina de Direito Processual Civil I pela UNIFOR.

RESUMO: A pesquisa que ora se mobiliza objetiva analisar a importância das eleições diretas para os cargos diretivos dos tribunais, assim como apresentar duas propostas de emenda à Constituição que buscam alterar a Carta Maior, com o fito de instaurar a ordem democrática no âmbito das cortes estaduais e federais. Quanto à metodologia, o estudo possui cunho bibliográfico, é puro e de natureza qualitativa. No tocante aos resultados, constatou-se que a democracia somente se consolidará no âmbito jurisdicional quando qualquer membro do pleno possa ser elegível, assim como quando todos os magistrados vinculados a uma determinada corte tenham o direito de votar, de modo que a aprovação dos projetos tornará a magistratura capaz de influenciar as deliberações acerca dos rumos do Judiciário, possibilitando um extenso e proveitoso debate, a ensejar uma administração democrática, transparente e alinhada aos preceitos republicanos da Constituição de 1988. Palavras-Chave: Poder Judiciário. Democracia. Eleições diretas. Emenda à Constituição. ABSTRACT: This research analyze the importance of direct elections for the executive positions of the courts, as well as present two proposals for amendment to the Constitution that seek to change the Carta Maior, with the aim to establish a democratic system on the state courts and federal courts. Regarding the methodology, the study has bibliographic nature, is pure and qualitative in nature. Regarding the results, it was found that democracy will be consolidated in the courts when any full member may be eligible, as well as all magistrates tied to a particular court have the right to vote, so that the project approval make the 241

THEMIS judiciary able to influence decisions about the direction of the judiciary, providing an extensive and fruitful discussion, give rise to a democratic, transparent and aligned with republicans provisions of the 1988 Constitution administration. Keywords: Judiciary. Democracy. Direct elections. Amendment to the Constitution INTRODUÇÃO A Constituição de 1988 foi promulgada com o fim de corroborar a repulsa à ordem instaurada pelo golpe militar de 1964. Deste modo, a Carta resulta de um poder constituinte originário, pois estabelece uma nova ordem jurídica, criando um novo Estado. Destarte, a democracia, desde 1988, detém posição central no texto constitucional, o que é confirmado pelo artigo primeiro da Carta Maior, quando este afirma, expressamente, que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Ressalta-se, contudo, que a democracia ainda não se faz presente na eleição dos administradores dos tribunais. Isto porque, no atual modelo, além de apenas os desembargadores há mais tempo na corte estarem aptos a disputar os cargos diretivos, tão somente os membros do tribunal pleno possuem a prerrogativa de votar, em detrimento dos demais juízes daquela jurisdição. Ocorre que, atualmente, é indispensável uma gestão participativa e democrática por parte dos tribunais. Assim, a cada gestão, a administração da Justiça é interrompida, de forma que o Judiciário sofre com a implantação de novos projetos, dado que, muitas vezes, há magistrados que desconhecem o orçamento público. Objetivando alterar tal sistemática, tramitam, no Congresso Nacional, duas Propostas de Emenda à Constituição (PEC), que buscam conferir a todos os magistrados o poder de escolher os administradores da Justiça no âmbito de sua jurisdição, analisando as propostas e os projetos de gestão, tornando todos os membros do Sodalício (desembargadores) habilitados a assumir os respectivos cargos. Neste diapasão, a partir da justificação destas duas PECs, o presente trabalho tenciona expor a importância das eleições diretas para os órgãos de direção dos tribunais, de modo que tal ato não deva ser uma questão interna corporis, podendo ser discutido e decidido por todos os magistrados, concorrendo para a instauração de um regime democrático integral nos Poderes da República. 242

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A metodologia utilizada na elaboração da presente pesquisa constitui-se em estudo desenvolvido por meio de investigação bibliográfica, pura, quanto à utilização de seus resultados, visto que detém a intenção de vislumbrar a realidade sem a modificação imediata dos fatos sociais, e de natureza qualitativa. RESULTADOS E DISCUSSÃO A Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN – LC n. 35/79) preceitua, em seu artigo 102, que os cargos de direção dos tribunais devem ser exercidos pelos desembargadores mais antigos da corte. Todavia, associar antiguidade à competência para gerir enseja o surgimento de dificuldades na realização da prática administrativa. Existe, portanto, um ciclo vicioso, porque já se tem conhecimento de que tão somente o transcurso do tempo, no exercício de cargo de desembargador, ocasiona a eleição do magistrado, independentemente de seus conhecimentos técnicos de gestão. É cediço que o tempo acarreta experiência, não necessariamente competência administrativa, posto que esta se adquire com o desenvolvimento de técnicas de gestão voltadas à melhora dos resultados da jurisdição. Não se exclui, assim, a possibilidade do desembargador eleito, além de ser um dos mais antigos na corte, ter grande aptidão administrativa. Ocorre que tal forma de deliberação, considerando a noção hierarquizada do Poder Judiciário pátrio, exclui o direito de voto dos magistrados de primeiro grau no processo de escolha e acarreta, na maioria das vezes, descaso dos dirigentes para com os juízes que atuam na primeira instância. Nesse sentido, importante destacar o que afirma Francisco Glauber Pessoa Alves (2012, p. 01): O exercício da democracia é das mais difíceis práticas políticosociais. Vivemos um tempo, por assim dizer, de intensificação de novas condutas que sejam mais aceitas pela sociedade, a partir da perspectiva de participação dos atores envolvidos no processo. O Judiciário não é diferente quanto a essa demanda, conquanto o tratamento que apresente seja diferenciado e, a nosso ver, ineficiente e ultrapassado. A rígida estrutura da carreira da magistratura tem cobrado seu preço: uma instituição hermética, hierárquica, pouco afeita às práticas democráticas (que muito mais surgem como fruto da ideia de alguns gestores do que da política institucional em tal sentido) e cujas mudanças vêm sempre a passos lentos, lento demais.

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THEMIS Juridicamente, tem-se que existe posicionamento, inclusive no âmbito Supremo Tribunal Federal, de que o artigo 102 da LOMAN não se coaduna com os preceitos da Constituição de 1988, sobretudo com o advento da Emenda Constitucional n. 45/2004, pois esta, mercê da autonomia administrativa e financeira dos tribunais, confere ao regimento interno das cortes a regência dos cargos de direção, prestigiando os princípios da igualdade, republicano, democrático e da eficiência administrativa. Mostra-se relevante, nesse contexto, as conclusões do Ministro Marco Aurélio, no julgamento da Reclamação n. 13.115-MC-AgR/RS, em 12.12.2012: (...) Presidente, venho insistindo e vou insistir um pouco mais, porque surge o dever de preservar a intangibilidade da Carta de 1988, que os tempos mudaram. Os ares constitucionais de 1988 e os atuais trouxeram à balha a autonomia administrativa e financeira dos tribunais. E, após se proclamar esses predicados, houve o silêncio total, na Carta de 1988, quanto à disciplina da direção dos tribunais. O silêncio mostrou-se eloquente. (…) O que gostaria era de explicar por que entendo que houve uma mudança normativa constitucional substancial. O que tínhamos na Carta de 1969, verdadeira Carta, considerada a Emenda Constitucional nº 1? Tínhamos que o parágrafo único do artigo 112, ao versar disposições preliminares, estabelecia: 'Art. 112. (…) Parágrafo único. Lei complementar denominada Lei Orgânica da Magistratura Nacional estabelecerá normas relativas à organização, ao funcionamento, à disciplina, às vantagens, aos direitos e aos deveres da magistratura, respeitadas as garantias e proibições previstas nesta Constituição ou dela decorrentes.' Mais do que isso. No artigo 115, inciso I, tínhamos a previsão da competência dos tribunais para eleger os presidentes e demais titulares de sua direção. E, então, repetia-se e havia por consequência o reflexo do parágrafo único do 112: 'Observado o disposto na Lei Orgânica da Magistratura Nacional.' Era o que versava, portanto, a Carta de 1969, a Emenda Constitucional nº 1, de 1969. O que ocorreu na Carta de 1988? Uma disciplina diametralmente oposta, que já não remete a regência da direção dos tribunais ao que estabelecido na Lei Orgânica da Magistratura. Leia-se no artigo 99: 'Art. 99. Ao Poder Judiciário – continuo acreditando piamente nesta cláusula – 'é assegurada autonomia administrativa e financeira.' No artigo 93, tem-se a previsão quanto aos princípios a serem 244

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levados em conta pela Lei Orgânica da Magistratura. E no rol – que, para mim, é exaustivo, como são os presentes na Carta de 1988, porque não é exemplificativa, é exaustiva – inexiste referência, como princípio a ser adotado pela Loman, à regência dos cargos de direção. Mais do que isso, Presidente. No artigo 96, inciso I, há alusão – como constava na Carta anterior, mas remetendo à anterior, de qualquer forma, à observância da Loman – à competência privativa dos tribunais de: 'a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;' A interpretação sistemática da Carta – segundo o ministro Sepúlveda Pertence –, da decaída e da atual, é conducente a concluir-se que esta última não submete mais à Loman a eleição dos dirigentes do tribunal. O silêncio mostra-se, como disse, eloquente. Não há, na Constituição de 1988, mais precisamente no artigo 96, inciso I – ao contrário do que ocorria na Carta anterior, no artigo 115, inciso I, que versava a eleição dos dirigentes dos tribunais –, a remessa ao que previsto na Loman. Por isso, sustentei, já no Plenário, que o artigo 102 da Loman não foi recepcionado pela Constituição de 1988, a não ser que partamos – e tanto vulnera a lei aquele que inclui, no campo de aplicação, hipótese não contemplada como o que exclui – para a mesclagem dos dois sistemas: o anterior, que remetia realmente, quanto à escolha dos dirigentes, à Loman, e o atual, que já não remete, é silente. E mais do que isso: não se tem, entre os princípios a serem observados quando da aprovação da nova Lei Orgânica da Magistratura, qualquer alusão, ao contrário do que ocorria na Carta de 1969, à regência da escolha dos dirigentes.

Quanto ao acórdão do julgado acima, este recebeu a seguinte ementa: JUDICIÁRIO – AUTONOMIA. Consoante disposto no artigo 99 da Carta de 1988, ao Poder Judiciário é assegurada autonomia administrativa e financeira. TRIBUNAIS – DIREÇÃO – REGÊNCIA. Ao contrário do versado no artigo 112 do Diploma Maior anterior – Emenda Constitucional nº 1, de 1969 –, o atual não remete mais à Lei Orgânica da Magistratura a regência da direção dos tribunais, ficando a disciplina a cargo do regimento interno. RECLAMAÇÃO – EFEITO TRANSCENDENTE. Reiterados são os pronunciamentos do Supremo no sentido de não se admitir, como base para pedido formulado em reclamação, o efeito transcendente. 245

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Importante destacar, ainda, que o Ministro Joaquim Barbosa, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.566/DF, julgada em 15.02.2007, também manifestou posicionamento no mesmo sentido, ao votar pela não recepção do artigo 102 da LOMAN: Todos partem do pressuposto, baseados na jurisprudência desta Corte, de que o art. 102 da Loman foi recepcionado pela Carta de 1988. Esse, sem dúvida alguma, é o posicionamento da Corte, reiterado em vários casos. Cito, por exemplo, o MS 20.911 (rel. min. Octavio Gallotti), a ADI 841-QO (rel. min. Carlos Velloso), a ADI 1.152-MC (rel. min. Celso de Mello), a ADI 1.385-MC (rel. min. Néri da Silveira), a ADI 1.422 (rel. Min. Ilmar Galvão), a ADI 2.370MC (rel. min. Sepúlveda Pertence) e a ADI 1.503 (rel. min. Maurício Corrêa). É preciso lembrar, no entanto, que todos esses casos foram julgados antes da promulgação da EC 45/2004, ao passo que a presente ação direta foi ajuizada quando a emenda já vigorava. Tal emenda, especificamente na nova redação que deu ao art. 93, XI, altera, a meu sentir, o juízo de que o art. 102 da Loman foi recepcionado pelo atual Texto Constitucional. Com efeito, assim prescreve a nova redação do inciso XI do art. 93 da Constituição federal: 'XI - nos tribunais com número superior a vinte e cinco julgadores, poderá ser constituído órgão especial, com o mínimo de onze e o máximo de vinte e cinco membros, para o exercício das atribuições administrativas e jurisdicionais delegadas da competência do tribunal pleno, provendo-se metade das vagas por antigüidade e a outra metade por eleição pelo tribunal pleno.' A inovação trazida pela EC 45/2004 reside justamente na expressa menção de que o órgão especial dos tribunais, quando constituído, será composto tanto segundo o critério da antigüidade como segundo o critério de eleição pelo tribunal pleno. Tomando-se em conta o regramento dado pela Loman à constituição do órgão pleno, de pronto se verifica que o único critério então existente para a composição do órgão especial era o da antigüidade. Com efeito, dispõe o art. 99 da Loman: 'Art. 99. Compõem o órgão especial a que se refere o parágrafo único do art. 16 o Presidente, o Vice-Presidente do Tribunal de Justiça e o Corregedor da Justiça, que exercerão nele iguais funções, os Desembargadores de maior antigüidade no cargo, respeitada a representação de advogados e membros do Ministério Público, e inadmitida a recusa do encargo.' 246

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Ao se ler o art. 99 acima transcrito em conjunto com o art. 102 da Loman, percebe-se que os cargos de presidente e vice-presidente do tribunal de justiça e de corregedor da Justiça, porquanto cargos de direção, somente podem ser preenchidos por desembargadores eleitos dentre os mais antigos, que, por sua vez, compõem o órgão especial. Com essas premissas, chega-se à conclusão de que, pela lógica da Loman, naqueles tribunais que possuem órgão especial, os ocupantes de cargos de direção terão de ser escolhidos, por eleição, dentre aqueles que já fazem parte do órgão especial. Ora, se assim é, a mudança trazida pela EC 45/2004 desvia-se da lógica incorporada pela Loman, ao admitir que fazem parte do órgão especial não apenas os mais antigos, mas também aqueles escolhidos dentre os pares em plenário. Alguém poderia cogitar que o art. 102 deveria continuar a ser interpretado como tendo sido recepcionado mesmo depois do advento da EC 45/2004, bastando, para isso, limitar aos mais antigos, dentro de um órgão especial, a possibilidade de serem eleitos para os cargos de direção. Tal abordagem, no entanto, parece-me, iria contra o sentido do novo art. 93, XI, que não faz nenhuma distinção entre os membros do órgão especial, sejam eles os mais antigos, sejam eles os eleitos. Noutras palavras, tal interpretação criaria um fator de discrímen que, para existir, necessitaria estar expresso no texto da Constituição federal. Ademais, o advento da EC/45 estabelece, a meu sentir, uma vinculação muito estreita entre o órgão especial e o plenário do tribunal. O novo inciso XI do art. 93 da CF/88 dispõe claramente que as atribuições administrativas e jurisdicionais exercidas pelo órgão especial são delegadas da competência do Pleno. Ora, na instituição de órgão especial por um tribunal está implícito que sobre qualquer dos membros do órgão pode recair a incumbência de dirigir o tribunal. A função de direção que exerce o órgão especial é mesmo elemento integrante da atividade administrativa delegada pelo Pleno. O critério de antiguidade não poderia desvirtuar esse elemento integrante. Tudo isso me leva a crer, ao menos no caso dos tribunais que contam com órgão especial, que a expressão 'dentre seus Juízes mais antigos', contida no art. 102 da Loman, não mais pode ser interpretado como tendo sido recepcionada pela Constituição federal. Ressalto, nesse sentido, que não considero recepcionado o art. 102 da Loman somente no que diz respeito à eleição para os cargos de direção dos desembargadores mais antigos. No resto, o citado art. 102 continua sendo aplicável, especialmente no que se refere à vedação de reeleição e à proibição de um mesmo desembargador ocupar cargos de direção por mais de quatro anos. 247

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No tocante aos precedentes do STF, ressalto, por último, a recente decisão liminar proferida pelo Ministro Ricardo Lewandowski, em 10.10.2013, nos autos do Mandado de Segurança nº 32451 MC/DF, cujo teor restabeleceu a eficácia, anteriormente suspensa por decisão do Conselho Nacional de Justiça, da Resolução n. 606/2013, do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do São Paulo, que conferiu a todos os Desembargadores do Tribunal, mediante inscrição, o direito de serem eleitos para os cargos de direção da corte paulista. A referida resolução detém o seguinte texto: O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, por seu Órgão Especial, no uso de suas atribuições, CONSIDERANDO a ementa no Ag. Reg. Med. Cautelar nº 13.115RS proc. nº STF, Rel. MIN. MARCO AURÉLIO, j. 12.12.12, assim redigida, na parte de interesse desta resolução: 'TRIBUNAIS – DIREÇÃO – REGÊNCIA. Ao contrário do versado no artigo 112 do diploma maior anterior – emenda constitucional nº 1 de 1969 - , o atual não remete mais à Lei Orgânica da Magistratura a regência da direção dos Tribunais, ficando a disciplina a cargo do Regimento Interno' CONSIDERANDO, nestes termos, a necessidade de disciplinar a realização de eleições para os cargos de direção e de cúpula do Tribunal; CONSIDERANDO o decidido nos autos do processo nº 308/2005, RESOLVE: Art. 1º - Para os cargos de direção, concorrem todos os Desembargadores do Tribunal, mediante inscrição, no prazo do art. 18 do Regimento Interno, vedada a inscrição simultânea para mais de um cargo. Art. 2º - Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. São Paulo, 07 de agosto de 2013. (a) IVAN RICARDO GARISIO SARTORI Presidente do Tribunal de Justiça

Ao proferir a referida decisão, preceituou o Min. Ricardo Lewandowski: Examinados os autos, verifico que foi levado ao conhecimento do CNJ a existência de dúvida razoável em julgado recente do Plenário do Supremo Tribunal Federal quanto à recepção do artigo 102 da LOMAN pelo ordenamento constitucional vigente - mormente 248

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após as mudanças introduzidas em seu texto pela EC 45/2004 -, além da ocorrência de conflito do mencionado dispositivo com a prerrogativa de autogoverno e autonomia administrativa conferidas aos tribunais pela Carta da República em seus artigos 96, I, a, e 99. (...) Isso porque, entendo, a discussão jurídica é de cunho eminentemente constitucional, havendo, inclusive, evidente conflito de disposições da Carta da República com as prescrições do controverso artigo 102 da LC 35/1979. Esse tema, como observado na inicial desta impetração, já se encontra judicializado no âmbito desta Corte (...) Diante de todo o exposto, em razão da proximidade da realização das eleições para os cargos diretivos do TJSP, a ser realizada em 4/12/2013, com base no artigo 7º, III, da Lei 12.016/2009, e sem prejuízo de um exame mais aprofundado da matéria por ocasião do julgamento de mérito deste writ, defiro o pedido de medida liminar para suspender os efeitos da decisão proferida pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça, nos autos do Pedido de Providências 0005039-51.2013.2.00.0000, ficando restabelecida, até o julgamento definitivo deste mandado de segurança, a eficácia da Resolução 606/2013 do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Visto tais precedentes, fica evidenciado que a controvérsia acerca da recepção – ou não – do artigo 102 da LOMAN ainda é objeto de discussão no STF, de modo que a Corte, no julgamento da Reclamação n. 13.115-MC-AgR/RS, sinalizou que a questão será analisada com maior profundidade oportunamente, restando afastado, num primeiro momento, o entendimento que indicava pela recepção do referido dispositivo. Ultrapassada essa controvérsia de natureza jurisdicional, tem-se que, no âmbito do Congresso Nacional, duas propostas de emenda constitucional pretendem instituir a eleição direta nos tribunais, quais sejam: a PEC n. 15/2012, proposta pelo Senador Vital do Rêgo, e a PEC n. 187/2012, subscrita pelo Deputado Federal Wellington Fagundes. Tais projetos objetivam conferir direito de voto para todos os juízes na escolha dos dirigentes das cortes, de modo a integrar o Judiciário ao regime democrático instaurado pela Constituição de 1988, o que, em última análise, culminará em fazer com que o jurisdicionado volte a confiar e a admirar a jurisdição. É tácita contradição conferir proteção aos princípios democráticos relativos a todos os cidadãos e, ao mesmo tempo, tutelar, no interior dos tribunais, uma submissão imposta, caracterizada muitas vezes por uma gestão 249

THEMIS centralizadora e arcaica, desprovida de caráter técnico. Se o Judiciário também possui a finalidade de garantir a democracia, viola o bom senso inexistir democracia em sua estrutura, que acaba sendo hierarquizada e distanciada da noção de República, uma vez que nulifica a vontade dos demais magistrados vinculados à corte. Novamente, faz-se de grande valia e procedência expor o pensamento do professor Francisco Glauber Pessoa Alves (2012. p. 02): Trata-se de prerrogativa inerente à dignidade do cargo que ocupamos. Sem exercitá-la não temos voz (somos juízes mudos), não termos olhos (somos juízes cegos), não temos ouvidos (somos juízes surdos), enfim, não temos identidade e não somos respeitados dentro de nossa própria instituição (somos juízes-servos).

Desta forma, percebe-se que, embora seja o guardião da democracia, o Judiciário está longe de possuir estrutura democrática, estando a dever no acompanhamento da evolução das demais instituições nacionais. A candidatura é restrita, devendo o desembargador estar entre os mais antigos da corte. Além do mais, na grande maioria dos casos, é eleito como presidente o membro mais antigo do Tribunal. Acerca do tema, preceitua Lenio Luiz Streck (2012, p. 11): O modelo tradicional, que privilegia a antiguidade, na contramão dos pressupostos republicanos, acaba impedindo a manifestação da meritocracia e da manifestação democrática da maioria. Esse modelo tradicional, do mesmo modo, não se coaduna com esse deslocamento (insisto, tectônico) do polo de tensão em direção ao Judiciário Brasileiro.

O atual processo eleitoral, portanto, não preza pela democracia, posto que retira a possibilidade de diversos outros desembargadores, que possam ter capacitação para ensejar um aperfeiçoamento do Judiciário, de exercerem órgãos diretivos. Nesta senda, leciona José Lúcio Munhoz (2008, p. 01): O processo eleitoral – aqui nada democrático – excluir da possibilidade de ser presidente do tribunal centenas de juízes que, certamente, teriam muito a contribuir para o aperfeiçoamento da instituição. Não havendo possibilidade de pluralidade de candidaturas, limitada aos mais antigos, o processo de escolhe é restrito e, assim, antidemocrático. Além disso, impede aspirações mais modernas na condução da administração da Justiça. 250

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Um outro agravante é que a quantidade de votantes também é limitada. Apesar de um tribunal gerir todos os recursos atinentes à jurisdição, no âmbito de sua competência, incluindo aqui a primeira e a segunda instância, o processo eleitoral dos administradores exclui os juízes de planície, no caso a maioria dos magistrados, cuja produtividade depende da forma de gestão adotada pela corte. Apenas os desembargadores do tribunal podem votar quando da escolha do presidente, do vice-presidente e do corregedor. E aqui reside uma outra contradição, no sentido de que, de forma escorreita, uma pessoa que não foi alfabetizada pode escolher o presidente da República, no entanto, não pode o juiz de primeiro grau votar em quem virá a administrar a corte. Recorre-se, mais uma vez, ao que leciona José Lúcio Munhoz (2008, p. 01): Ao conjuntos dos juízes é vedado o direito de escolher aquele que administrará o seu tribunal. O processo de escolha é limitado apenas e exclusivamente aos desembargadores integrantes do próprio tribunal, deixando-se de fora do processo de escolha milhares de magistrados. Num país onde acertadamente um analfabeto pode escolher o presidente da República, como elemento intrínseco da cidadania; ao juiz é vedado escolher aquele que presidirá seu tribunal, circunstância que fere qualquer princípio democrático ou da razoabilidade.

Ademais, salienta o mesmo autor (2008, p. 01) que “os juízes (…) podem condenar pessoas ou cassar direitos políticos de deputados, prefeitos, governadores; mas não possuem o simples direito de votar nos candidatos à presidência de seu próprio tribunal”. Essa inexistência de legitimidade ocasiona a concessão de direitos políticos tão somente a poucos integrantes do tribunal. Ocorre que os magistrados de primeiro grau objetivam repartir as responsabilidades com o futuro do Poder Judiciário, e não apenas ter o direito de se expressar. Os juízes são pilares de sustentação, conhecendo as necessidades e os anseios do Poder Judiciário, posto que, diariamente, enfrentam problemas, de modo que a participação deles detém o condão de adequar a atuação da corte aos impasses concretos da jurisdição. Diversos tribunais brasileiros abandonam a primeira instância, conferindo boas condições de trabalho apenas ao segundo grau; isso nada mais é do que um reflexo do processo eleitoral para a administração 251

THEMIS da corte, porque, em uma eleição direta, os juízes monocráticos terão como cobrar dos desembargadores eleitos, exigindo uma gestão voltada ao primeiro grau. No tocante ao tema, destaca o Senador Vital do Rêgo, na justificação da PEC n. 15/2012: A ausência de democracia interna é um elemento desencadeador de inúmeras distorções existentes na administração judiciária, a exemplo da falta de investimentos nos órgãos de primeiro grau, que formam a base da magistratura e que detém o maior número de processos para julgamento.

As PECs, anteriormente referidas, objetivam modificar o artigo 96 da Constituição de 1988, estabelecendo que todos os membros do Poder Judiciário (magistrados de primeiro e segundo graus), em votação direta e secreta, poderão eleger o presidente e o vice-presidente do tribunal, dentre os membros do tribunal pleno. Nesse ponto, cabe ressaltar que a maneira como se dá o processo eleitoral para órgãos diretivos no Judiciário não se constitui cláusula pétrea, ainda mais por esta não poder ser utilizada para impedir o progresso democrático de um Poder do Estado. Destaque-se, neste contexto, o que assevera Lenio Luiz Streck (2012, p. 11): Cláusulas pétreas existem como blindagem contra os predadores exógenos do direito (economia, moral e política) e para garantir que não haja retrocesso no processo social-democrático. Obviamente, não se poderia dizer que permitir que os juízes do Brasil – responsáveis pela condução das eleições parlamentares e majoritárias mais limpas do mundo – passem a ter direito a voto para os órgãos de cúpula do Poder Judiciário seja uma violação de cláusula de pedra.

Deste modo, as PECs buscam conferir uma nova redação às alíneas do inciso I do artigo 96 da Constituição de 1988, assim como acrescentar parágrafo único ao dispositivo, dispondo sobre a eleição dos órgãos diretivos dos Tribunais de 2º grau, a fim de possibilitar eleições diretas aos cargos de administração das cortes. Nesse ínterim, é relevante destacar o teor de ambos os projetos, nos termos que seguem: Proposta de emenda à Constituição nº 187/2012 Art. 96. Compete privativamente: I – aos tribunais 252

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a) eleger seus órgãos diretivos, por maioria absoluta e voto direto e secreto, dentre os membros do tribunal pleno, exceto os cargos de corregedoria, por todos os magistrados em atividade, de primeiro e segundo graus, da respectiva jurisdição, para um mandato de dois anos, permitida uma recondução; b) elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a criação, a competência, a composição e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos; c) redação da atual alínea b; d) redação da atual alínea c; e) redação da atual alínea d; f) redação da atual alínea e; g) redação da atual alínea f; Parágrafo único: Não se aplica ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais Regionais Eleitorais o disposto no inciso I, “a”, competindo-lhes eleger os seus órgãos diretivos na forma dos seus regimentos internos, observado o previsto no § 2º do artigo 120. Proposta de emenda à Constituição nº 15/2012 Art. 96. Compete privativamente: I – aos tribunais a) eleger seus órgãos diretivos, por maioria absoluta e voto direto e secreto, dentre os membros do tribunal pleno, exceto os cargos de corregedoria, por todos os magistrados vitalícios em atividade, de primeiro e segundo graus, da respectiva jurisdição, para um mandato de dois anos, permitida uma recondução e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a criação, a competência, a composição e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos; (...) Parágrafo único: O disposto no inciso I, alínea a, primeira parte, do caput não se aplica ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais Regionais Eleitorais competindo-lhe eleger os seus órgãos diretivos na forma dos seus regimentos internos, observado o previsto no parágrafo único do art. 119 e no § 2º do art. 120”.

Não se pode admitir que o Judiciário, guardião da ordem democrática, não possua instrumentos que estabeleçam a democracia dentro de sua estrutura. No atual sistema, pouquíssimos magistrados participam das eleições para os órgãos diretivos. No tocante aos elegíveis, existe um universo bem restrito de 253

THEMIS desembargadores, porque somente os antigos se legitimam, de modo que o processo eleitoral não passa da mera homologação de um nome. O engessamento do atual procedimento de escolha torna inviável a discussão e o debate acerca dos percalços administrativos enfrentados pela administração. As consequências do atual sistema de eleição são enfrentadas através da justificação da PEC n. 187/2012, de autoria do Deputado Wellington Fagundes: As consequências desse modelo são muitas: i) déficit de legitimidade dos dirigentes perante os demais membros do Poder, no caso os juízes de primeiro e segundo graus; ii) a ausência de qualquer projeto de governo do Judiciário que dê unidade de ação em todas as instâncias, resultando, no dizer do Ministro Ricardo Lewandowski, num macromodelo jurídico hierarquizado e “baseado na mera antiguidade, engendrando uma estrutura que inviabiliza qualquer interlocução entre a base e a cúpula do sistema”; iii) carência de compromissos institucionais, a medida que não há necessidade de contas sobre o que se pretende fazer na administração do Judiciário; iv) ausência de participação dos membros do Poder no planejamento estratégico, na elaboração dos orçamentos e na definição e execução dos planos de ação.

A eleição direta revela uma forma de inserir a gestão democrática no âmbito do Poder Judiciário. A democracia possibilita uma direção comprometida com os anseios dos jurisdicionados e com os resultados almejados pela instituição, de modo que a presidência da corte deixará de ser uma “gratificação” para aquele desembargador que se encontra nos últimos anos de atividade jurisdicional, passando a ser um momento em que se discute o futuro e os projetos do Judiciário. Em tempos de ordem democrática, instituída pela Constituição cidadã, não existe razão para se apegar ao texto da norma contida no artigo 102 da LOMAN, que diferencia um desembargador do outro e ofende a autogoverno conferido às cortes pela Carta Maior. Os magistrados não deixam de ser agentes políticos, tendo em vista que refletem órgãos de soberania, pois lhes são conferidas funções em nome do povo, a partir da competência advinda da Constituição da República, sendo paradoxal a possibilidade de um magistrado de primeiro grau afastar, no exercício da jurisdição, agentes políticos do poder e não possuir a “prerrogativa de voto” para a escolha de seus órgãos diretivos. 254

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A própria natureza jurídica da função jurisdicional, como parcela da soberania estatal, por si só legitima o magistrado, de qualquer instância, a votar e a participar do processo eleitoral no interior de sua estrutura organizacional. Vale ressaltar que a integração política dos juízes de primeiro grau acrescentará novos parâmetros de evolução no que se refere à administração da justiça, notadamente após a edição da Resolução n. 70, do Conselho Nacional de Justiça, que determina a participação dos juízes de primeiro grau na construção do planejamento estratégico dos tribunais. Salienta-se, ainda, que o Ministério Público já regulamentou a eleição direta de seus gestores, democratizando a instituição e permitindo que pessoas vocacionadas coloquem em prática seus conhecimentos sobre técnicas de gestão, o que não se alcança tão somente pela antiguidade do magistrado na corte. Aproximar a base da cúpula faz com que esta seja mais diligente no que tange às reivindicações daquelas, fortalecendo em muito a instituição. CONCLUSÃO Em caráter conclusivo, tem-se que o Poder Judiciário, em sua estrutura administrativa, é antidemocrático. Propiciar apenas aos desembargadores há mais tempo na corte a possibilidade de exercer um cargo de direção reduz a eficiência da gestão. A democracia somente se consolidará no âmbito jurisdicional quando qualquer membro do tribunal pleno possa ser elegível, assim como quando todos os magistrados vinculados a uma determinada corte tenham o direito de votar. Com a consagração do Estado Democrático de Direito, deve-se assegurar uma participação direta dos magistrados na eleição dos administradores de seus tribunais, de modo a possibilitar uma participação na trajetória da jurisdição. Ninguém melhor do que o julgador de primeiro grau para diagnosticar as necessidades da comarca destinatária de seu labor, em virtude de sua aproximação com as partes e com os advogados. Conclui-se, portanto, que os anseios dos tribunais decorrem da manifestação de seus membros, incluindo os magistrados de primeiro e segundo graus. Acredita-se que a aprovação das PECs tornará a magistratura capaz de influenciar nas deliberações acerca dos rumos do Judiciário, possibilitando um extenso e proveitoso debate, ensejando uma administração democrática, transparente e alinhada aos preceitos republicanos da Constituição de 1988. 255

THEMIS REFERÊNCIAS ALVES, Francisco Glauber Pessoa Alves. Todos os juízes devem ter direito a escolher direção. Disponível em: . Acesso em 12 mar 2014. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, Senado, 1988. _______. Lei Complementar nº 35/1979. Dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Disponível: . Acesso: 2 mar 2014. _______. Proposta de emenda à Constituição nº 15/2012. Disponível em: 1. Acesso em 12 mar 2014. _______. Proposta de emenda à Constituição nº 187//2012. Disponível em: . Acesso em 12 mar 2014. _______. Supremo Tribunal Federal – Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3566/DF. Relator originário: Ministro Joaquim Barbosa. Redator para o acórdão: Ministro César Peluso. Julgado em 15.02.2007. Tribunal Pleno. Disponível em: . Acesso em 12 mar 2014. _______. Supremo Tribunal Federal – Reclamação nº 13.115-MC/RS. Relator originário: Ministro Luiz Fux. Redator para o acórdão: Marco Aurélio. Julgado em 12.12.2012. Tribunal Pleno. Disponível em: . Acesso em 12 mar 2014. _______. Supremo Tribunal Federal – Medida Cautelar no Mandado de Segurança nº 32451 MC/DF. Relator : Ministro Ricardo Lewandowski. Julgado em 10.10.2013. Decisão monocrática. Disponível em: . Acesso em 12 mar 2014. MUNHOZ, José Lúcio. Judiciário defende, mas não aplica a democracia. Disponível em: . Acesso em 12 mar 2014. PEREIRA, Walter; BORGES, José Arthur Diniz. Diretas Já, uma evolução no Poder Judiciário. Disponível em : Acesso em 12 mar 2014. STRECK, Lenio Luiz. Diretas Já no Judiciário é ponto para a democracia. Disponível em: Acesso em 12 mar 2014.

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A CONCEPÇÃO DE FAMÍLIA EM JOHN RAWLS E HEGEL: UM BREVE COTEJO A PARTIR DOS TEXTOS JUSTIÇA COMO EQUIDADE E PRINCÍPIOS DE FILOSOFIA DO DIREITO Ruama de Almeida Barreira Licenciada em Filosofia pela UFC

Edilson Baltazar B. Júnior

Mestre e doutor em Sociologia pela UFC Professor ESMEC e FAMETRO

RESUMO: O artigo propõe mostrar aproximações e distanciamentos entre John Rawls e Hegel sobre a concepção de família, conforme aparece nas obras A justiça como equidade e Princípios de Filosofia do Direito. A busca pretende encontrar ecos no trabalho de Rawls, como um dos grandes filósofos da contemporaneidade, com o texto de um dos últimos filósofos sistêmicos. A escolha de Hegel para o diálogo justifica-se porque o filósofo alemão também abordou sobre a família no contexto da justiça, além de ser um crítico do imperativo categórico de Kant, de quem Rawls é tributário. Palavras-Chave: John Rawls. Hegel. Família. Justiça. ABSTRACT: This article proposes to show similarities and differences between John Rawls and Hegel's conception of the family, as it appears in the works Justice as fairness and Principles of Philosophy of Law. The search aims to find echoes in the work of Rawls, as one of the great philosophers of contemporary times, with one of the texts of the past philosophers systemic. The choice of Hegel for dialogue is justified because the German philosopher also touched on the family in the context of justice, besides being a critic of Kant's categorical imperative, that Rawls is tributary. Keywords: John Rawls. Hegel. Family. Justice. INTRODUÇÃO O objetivo deste trabalho é empreender um cotejo crítico sobre a concepção de família, conforme consta dos textos A justiça como equidade e Princípios de Filosofia do Direito de Hegel, como um exercício acadêmico, em que se discute a obra de dois grandes filósofos do Direito. 259

THEMIS Portanto, procurou-se elaborar uma análise em torno de tal temática e a partir da seguinte pergunta: quais as aproximações e distanciamentos na concepção de família na visão de John Rawls tendo a justiça como equidade e a percepção de Hegel no contexto de sua Filosofia do Direito? O tema da família no contexto da justiça e do direito é amplamente estudado, notadamente, nas abordagens referentes às sucessões; guarda dos filhos, quando da separação dos pais; a violência doméstica, especialmente contra a mulher; além das problemáticas típicas da criança e do adolescente. No âmbito do Poder Judiciário, muitas varas especializadas têm sido criadas para tratar de demandas judiciais oriundas da vida familiar. O espaço acadêmico brasileiro produziu diversos trabalhos tendo a obra de John Rawls como foco. Para ter uma ideia da multiplicidade de estudos, basta uma pesquisa1 rápida na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações do Ministério da Ciência e Tecnologia do Brasil, que serão encontrados mais de 80 (oitenta) teses e dissertações defendidas nas universidades brasileiras acerca do assunto, em especial sobre a abordagem da justiça como equidade ou mesmo a tangenciando. As obras sobre a Filosofia do Direito de Hegel são incontáveis. Entretanto, a análise da relação proposta é quase inexistente. Além dos dois livros básicos para o estudo, isto é, Justiça como equidade de Rawls e Princípios da Filosofia do Direito de Hegel, ressaltamos a dissertação de Mestrado em Filosofia Política de José Carlos Lopes Fernandes intitulada A justiça como equidade segundo John Rawls, que foi defendida, em 2010, junto ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal da Paraíba. Registramos também o artigo de Gondim e Rodrigues (2008) publicado na Revista Diversa com o título John Rawls e a justiça como equidade: algumas considerações. Agregamos a estes estudos alguns comentários sobre a Filosofia do Direito de Hegel, com destaque para o livro de Thadeu Weber cujo título é Hegel: liberdade, Estado e história além do livro de Norberto Bobbio intitulado Estudos sobre Hegel: direito, sociedade civil e Estado. Todos esses estudos constituem-se como fontes para o diálogo que será estabelecido ao longo deste artigo, além de possibilitar no entrecruzamento das temáticas a criação de novas trilhas de pesquisa. Os pesquisadores buscaram encontrar ecos no trabalho de Rawls, como um dos grandes filósofos da contemporaneidade, com o texto de um dos últimos 260

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filósofos sistêmicos. A escolha de Hegel para dialogar com Rawls se justifica porque o filósofo alemão também abordou sobre a família no contexto da justiça, além de ser um crítico do imperativo categórico kantiano, que é um dos filósofos que influenciou o pensamento rawlsiano. Entretanto, Rawls também bebe de fontes hegelianas como indica Habermas, um dos críticos do kantismo de Rawls, a acentuar que ele “preserva um discernimento que Hegel outrora fez prevalecer contra Kant: mandamentos morais não podem ser impingidos à história de vida de uma pessoa nem mesmo quando apelam a uma razão comum a todos nós ou a um sentido universal para a justiça” (HABERMAS apud GONDIM; RODRIGUES, 2008, p. 143). Também é importante frisar nessa justificativa, que o próprio Rawls, mesmo kantiano, recepciona as críticas de Hegel a Kant em alguns pontos de sua teoria da justiça como equidade ao declarar: Hegel certamente viu o profundo enraizamento social do povo dentro da estrutura estabelecida de suas instituições políticas e sociais. Neste ponto, realmente aprendemos com Hegel, já essa é uma das grandes contribuições (...) uma teoria da justiça segue Hegel nesse respeito quando toma a estrutura básica da sociedade como primeiro objeto da justiça. (RAWLS apud GONDIM; RODRIGUES, 2008, p. 145).

A metodologia seguida neste trabalho é aquilo que Ricouer (1994) denominou de hermenêutica de profundidade. Entretanto, o desenvolvimento deste método filosófico e social deveu-se a Thompson (1995), cuja concepção consiste na análise simbólica relacionada aos contextos e processos históricos específicos e socialmente estruturados, em que as formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas ou, em outras palavras, é o estudo da construção significativa e da contextualização das formas simbólicas. Esta hermenêutica de profundidade inclui uma análise sócio-histórica que, no caso dos trabalhos sobre Filosofia do Direito e justiça como equidade, mesmo que seus autores tivessem pretensões universais, ainda assim, os estudos foram produzidos em um contexto sócio-histórico, não estando, desse modo, isolados dos setores das sociedades em que foram escritos. Desde que o homem passou a viver em comunidades, a busca por justiça e direitos sempre esteve presente (ROULAND, 2008), assim a proposta de Rawls de justiça como equidade prioriza esta procura pelo justo quando define: 261

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Um sistema social justo define o âmbito do qual os indivíduos devem criar seus objetivos e servem de estrutura de direitos de oportunidade e meios de satisfação, dentro da qual e pela qual se pode procurar alcançar esses fins. A prioridade da justiça se explica, em parte, afirmando-se que os interesses que exigem violação da justiça não tem nenhum valor. Não tendo mérito absolutamente nenhum, não podem anular as exigências da justiça. (RAWLS apud FERNANDES, 2010, p. 11).

Rawls entende que “a justiça é a virtude primeira das instituições sociais, assim como a verdade é dos sistemas de pensamento” (RAWLS apud FERNANDES, 2010, p. 14). Hegel, por sua vez, não aborda sobre a justiça em si, mas as concepções de Filosofia do Direito, que estão inseridas no contexto da busca pela justiça. Hegel discute as liberdades, na procura da eticidade plena, que só se efetivará no Estado Moderno2, visto que tanto a família como a sociedade civil, por suas peculiaridades são incapazes de realizar. Para a compreensão da Justiça como equidade, Rawls constrói dois princípios de justiça, que mesmo em caráter provisório, tenta garantir a união entre liberdades individuais e igualdade social. Os princípios são: a) cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos; b) as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades; e, em segundo lugar, têm de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade (o princípio de diferença) (RAWLS, 2003, p. 60). Isto posto, veremos como tais princípios se aplicam à vida da família estabelecendo o diálogo, sobre a mesma temática, nos princípios de Filosofia do Direito de Hegel. 2 O DEBATE TEÓRICO Rawls admite que seu propósito ao comentar sobre a família, se restringe a mostrar que os princípios da justiça, como equidade, também se aplicam àquele núcleo social. Entretanto, deixa claro que não se propõe a detalhar as exigências dos referidos princípios. 262

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A família é apresentada por Rawls como a instituição básica da sociedade, pois fundamenta e ordena a produção e a reprodução, bem como possibilita que manifestações culturais sejam transmitidas entre gerações. Rawls concebe o ambiente social em que a família está inserida como sociedade política que se constitui por um esquema de cooperação duradouro. Assim, nessa história de longa duração3 desse modelo de sociedade concebido por Rawls, “o trabalho reprodutivo é um trabalho socialmente necessário” (2003, p. 230). Em tal modelo social se exige dos cidadãos um senso de justiça, bem como conteúdos políticos que deem sustentação às instituições políticas e sociais permeadas de justiça. Desta forma, segundo Rawls, a família ajuda a formar o cidadão quando: a) providencia de maneira razoável e eficaz a criação e o cuidado dos filhos, garantindo seu desenvolvimento moral e sua educação para a cultura mais ampla; b) gera filhos em número adequado para a manutenção de uma sociedade durável; c) realiza suas tarefas e não entra em conflito com outros valores políticos. Após essas apresentações iniciais, Rawls busca aplicar os princípios de justiça à família. Ele começa pelo princípio da diferença, cujo pressuposto se funda na autoridade moral e social dos pais. Tal princípio também é satisfatório, quando “aqueles com menos oportunidades podem aceitar mais facilmente as restrições que a família e outras condições sociais impõem” (RAWLS, 2003, p. 231). Rawls adverte ainda o equívoco de se pensar que os princípios de justiça não se apliquem à família, o que não garantiria uma justiça igualitária para todos os seus membros. Para justificar essa posição, o filósofo sintetiza: “os princípios de justiça política devem aplicar-se diretamente a essa estrutura, mas não devem aplicar-se diretamente à vida interna de muitas associações que dela fazem parte, a família entre outras” (RAWLS, 2003, p. 232). Rawls procura aprofundar a discussão dos princípios de justiça aplicados à família, estabelecendo aproximações entre ela e outros tipos de associações, como igrejas, universidades, associações profissionais ou científicas, empresas, sindicatos etc. Para justificar essa assertiva, Rawls toma como exemplo a hierarquia da Igreja Católica Romana. Para ele, a aplicação dos princípios da justiça ou outros princípios liberais “não exigem que o governo eclesiástico seja 263

THEMIS democrático” (RAWLS, 2003, p. 233), pois os membros do alto clero (bispos e cardeais) não carecem de ser eleitos ou mesmo os benefícios vinculados à hierarquia têm de satisfazer os princípios da diferença. Entretanto, Rawls esclarece que outros princípios da justiça política podem impor algumas restrições que venham afetar o governo eclesiástico. As igrejas não podem ser intolerantes para com os que abandonam a fé, pois agindo assim, feririam os princípios de justiça, visto que no Direito Público a apostasia e a heresia não são consideradas como atos delituosos. Rawls sublinha ainda, que mesmo não se aplicando os princípios da justiça às práticas internas das igrejas, “elas protegem os direitos e liberdades de seus membros por meio de restrições a que todas as igrejas e associações estão sujeitas” (RAWLS, 2003, p. 233). Rawls ao expor que, quando da aplicação dos princípios à família não há nada de peculiar em relação às outras associações, tal posição não é recepcionada por Hegel ao entender que a família difere da sociedade civil, quando pontua: O espírito moral objectivo4 imediato ou natural: a família. Esta substancialidade desvanece-se na perda da unidade, na divisão e no ponto de vista do relativo; torna-se então: sociedade civil, associação de membros, que são indivíduos independentes, numa universalidade formal, por meio das carências, por meio da constituição jurídica como instrumento de segurança da pessoa e de propriedade e por meio de uma regulamentação exterior para satisfazer as exigências particulares e colectivas. Este Estado exterior converge e reúne-se na constituição do Estado, que é o fim e a realidade em acto da substância universal e da vida pública nela consagrada (HEGEL, 1990, p. 159-160, grifos nossos).

Assim, no processo de efetivação da eticidade, que para Hegel se dará por meio do Estado, a família “é o espírito imediato ou natural”. Weber (1993) explica que essa posição hegeliana sobre a família a põe como “a primeira instituição social, na medida em que é a ‘ideia ética’ de um modo imediato, isto é, ainda não foi mediada. Por isso, é o campo da eticidade natural” (p.102). A sociedade civil aparece como a via intermediária entre a família e o Estado, mas em relação à realização da liberdade, ainda é um caminho parcial. Vejamos a própria diferenciação estabelecida por Hegel: É a família como todo substancial que começa por cumprir a proteção do indivíduo, tanto do ponto de vista dos meios e aptidões 264

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necessários para ganhar a sua parte da riqueza coletiva como do da subsistência e manutenção caso ele se mostre incapaz. Mas a sociedade civil quebra estes laços, aliena uns dos outros os membros da família e reconhece-os como pessoas independentes. No lugar da natureza inorgânica e do patrimônio onde o indivíduo obtinha a sua subsistência, coloca a sociedade civil o seu próprio terreno, e da sua contingência torna dependente a subsistência da família inteira. O indivíduo passa a ser filho da sociedade civil. Pode esta reclamá-lo, mas sobre ela adquire o indivíduo direitos. (HEGEL, 1990, p. 214).

Rawls reconhece que os princípios políticos não podem se aplicados de forma direta à família, porém poderá impor a ela algumas restrições, a fim de que direitos e liberdades sejam garantidos aos seus membros, bem como oportunidades equitativas. Neste aspecto, Rawls e Hegel5 comungam de posições aparentemente semelhantes ao conferirem aos membros do núcleo familiar como detentores de direitos, mas Hegel apresenta grandes ressalvas que serão apresentadas logo abaixo. Rawls, na busca dessa justiça equitativa, aglutina conceitos do âmbito familiar com termos referentes ao Estado. Ele agrega o conceito de esposa com o de cidadão, quando ensina que “as esposas são cidadãos da mesma maneira que seus maridos, todas elas têm os mesmos direitos e liberdades básicos e oportunidades equitativas que seus maridos” (RAWLS, 2003, p. 233). Hegel insere a família nos Princípios da Filosofia do Direito para informar que pela sua unidade interna não há como proceder a distinções de direitos individuais entre marido, esposa e filhos, como faz Rawls, visto que: A família se constitui como uma unidade de tal forma que o seu relacionamento interno não pode ser atingido pelo direito, a não ser que essa unidade corra o risco de ser aniquilada, ou seja, na medida, em que for incapaz de cumprir as tarefas a ela atribuídas. Ela deve ser tomada como “pessoa do direito”. A família é “uma só pessoa”, em vista da unidade interna que a constitui. Por isso é que, só no caso de dissolução, a ordem jurídica pode entrar como reguladora de procedimentos (WEBER, 1993, p. 103).

Rawls, um pouco adiante no seu texto, tenta distinguir a condição das pessoas como cidadãs e o pertencimento aos núcleos familiares e a outras associações, a partir do ponto de vista de cada uma delas. Assim, se aproxima de Hegel, quando reconhece:

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THEMIS Não iríamos querer que princípios políticos de justiça fossem aplicados diretamente à vida interna da família. Não é razoável pensar que como pais tenhamos de tratar nossos filhos de acordo com os princípios políticos. Nesse caso, esses princípios estão fora de lugar. É certo que os pais devem seguir alguma concepção de justiça (ou equidade) e ter o devido respeito para com cada um de seus filhos, mas, dentro de certos limites, isso é algo que não cabe aos princípios políticos prescrever. É claro que a proibição de abuso e tratamento negligente dos filhos e muitos outros pontos serão restrições que constituem uma parte vital do direito familiar. Mas, em certa medida, a sociedade tem de confiar na afeição e na boa vontade naturais dos pais (HEGEL, 2003, p. 234).

Ora, o vínculo afetivo ao qual destaca Rawls é o que impossibilita a aplicação dos princípios políticos de justiça ou simplesmente o direito como indica Hegel. O afeto ou amor são os meios imediatos e substanciais da relação familiar, que consoante Hegel, se constitui de dois momentos: a) por meio do amor, o indivíduo sai de sua subjetividade para buscar a completude, condição que “impede” a pessoa de agir independentemente e ficar circunscrita a si mesma; b) mediante o amor, a pessoa conquista a si mesma em outra, formando uma só pessoa. Há uma profunda alteridade, na medida em que o eu é objetivado no outro. É uma manifestação objetiva da vontade livre, a qual é necessária para o seu desdobramento. Em outras palavras, eu devo deixar de ser eu para ser o outro (WEBER, 1993, p. 103). Portanto, na constituição da família fundamentada no amor, conforme Hegel e Rawls há uma igualdade em relação às mulheres. Rawls ressalta ainda, que considerando a existência dos filhos, que serão os futuros cidadãos, há necessidade que os princípios de justiça sejam impostos à família para a garantia de seus direitos. Ele pondera que, quando da dissolução da família, mediante o divórcio, uma injustiça histórica tem sido cometida contra as mulheres, ou seja, elas ficam com os maiores encargos no cuidado e criação dos filhos. Rawls constata também que “essas injustiças pesam cruelmente sobre as mulheres, mas também sobre os filhos e tendem a minar a capacidade das crianças de adquirir as virtudes políticas exigidas dos futuros cidadãos num regime democrático viável” (RAWLS, 2003, p. 235). 266

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Portanto, na dissolução da família, por meio do divórcio, Rawls se prende à “repartição desproporcional” das tarefas destinadas às mulheres na criação dos filhos, bem como na possibilidade de bloqueio das crianças como futuros cidadãos atuantes num regime democrático. A preocupação de Rawls é legítima, porém o entendimento de Hegel, sobre a dissolução do núcleo familiar, tem outras vertentes. Segundo Hegel a família se dissolve de dois modos: natural e moral. O texto transcrito abaixo comprova isso: Provém a dissolução moral da família de que os filhos, ao assumirem a personalidade livre, ao atingirem a maioridade, são reconhecidos como pessoas jurídicas e tornam-se capazes, por outro lado, de livremente possuírem a sua propriedade particular e, por outro lado, de constituírem família, os filhos como chefes, as filhas como esposas. Nessa nova família passam eles a ter o seu destino substancial e, perante ela, recua a antiga família para a situação de origem e de ponto de partida, perdendo todo o caráter jurídico o laço abstracto da origem. Do ponto de vista da fortuna, a herança é o resultado da dissolução natural da família por morte dos pais, sobretudo por morte do pai. Consiste ela essencialmente na possessão particular de uma fortuna colectiva em si, possessão que, segundo os diferentes graus de parentesco e no estado de dispersão da sociedade civil que separa as famílias e as pessoas, é tanto mais indeterminada quanto mais perdido está o sentimento da unidade, pois cada casamento significa o abandono da situação familiar precedente e a fundação de uma nova autônoma família (HEGEL, 1990, p. 172, grifos nossos).

Em vista do exposto, percebe-se que enquanto o foco de Rawls é o divórcio e os encargos deixados à mulher no cuidado dos filhos, a preocupação hegeliana é patrimonial. O filósofo alemão também aventou a possibilidade da dissolução da família por meio da separação, pois “assim como não pode haver nenhuma coação, para que alguém se case, também não pode haver dispositivo legal que mantenha uma situação insustentável de hostilidades” (HEGEL apud WEBER, 1993, p. 111). Desta forma, a saída encontrada por Hegel foi o recurso da terceira autoridade moral: Como o casamento só é a primeira forma imediata da ideia moral objectiva, a sua realidade objectiva reside na intimidade da consciência e do sentimento subjectivos, e é aí que aparece o primeiro carácter contingente da sua existência. Assim como não pode haver coação que obrigue ao casamento, assim não há laço de 267

THEMIS direito positivo que possa manter reunidos dois indivíduos quando entre eles surgem sentimentos e acções opostas e hostis. No entanto, é necessário a autoridade moral de um terceiro para assegurar o direito do casamento, da substancialidade moral contra a simples verossimilhança de tais sentimentos e contra os acasos de uma simples impressão temporária. Distinguirá ela tais situações da alienação total e recíproca que é preciso verificar para que, só nesse caso, se pronuncie a ruptura do casamento (HEGEL, 1990, p. 172).

A ruptura do casamento, por meio da separação ou divórcio, tem caráter acidental, visto que para Hegel o matrimônio é monogâmico, heterossexual e indissolúvel. Assim, “embora se deva dificultar ao máximo a separação, nem sempre se pode evitá-la, dado que o casamento se baseia num sentimento subjetivo contingente” (WEBER, 1993, p. 111). Quando Rawls (2003) caminha para o final em suas considerações sobre a família, em Justiça como equidade, ele explicita uma de suas importantes influências filosóficas – o liberalismo político – para mostrar que esta corrente do pensamento não faz separação entre os “domínios do político ou do nãopolítico”. Esta ponderação de Rawls (2003) é para ressaltar que os princípios impõem “restrições essenciais à família e a todas as outras associações” (p.235). A propósito do liberalismo, em especial, o igualitarismo liberal, Oliveira (2003) aponta que se constituiu como uma das fontes do pensamento rawlsiano que mais recebeu críticas6, as quais podem ser resumidas dessa forma: Os modelos liberais como o de John Rawls tendem a conceber o indivíduo isolado da comunidade e de suas ideias correlatas de bem comum, tradição e contexto, tornando-o incapaz de assegurar a coesão e integração de um grupo social qualquer, menos ainda da sociedade como um todo, que sempre precede o indivíduo (OLIVEIRA, 2003, p. 22).

Esta também seria a crítica de Hegel, pois o seu entendimento filosófico se aproxima do comunitarista, pois a família forma e educa para autonomia particular. Quando chegam à sociedade civil, as pessoas se disponibilizam para substituir seus interesses privados pelos da coletividade, porém, ainda há um obstáculo, ou seja, o universal fica circunscrito ao particular, exigindo assim que o Estado surja como realidade efetiva plena da eticidade: 268

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O Estado, como realidade em acto da vontade substancial, realidade que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é o racional em si e para si: esta unidade substancial é um fim próprio absoluto, imóvel, nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e assim este último fim possui um direito soberano perante os indivíduos que em serem membros do Estado têm o seu mais elevado dever (HEGEL, 1990, p. 225).

Rawls (2003), ainda imerso no igualitarismo liberal, assinala que “os membros adultos das famílias e de outras associações são (...) cidadãos iguais” (p. 236). Assim, “nenhuma instituição ou associação em que estejam envolvidos pode violar seus direitos” (p. 236). Desta forma, nesse contexto de garantias de direitos aos membros adultos das famílias e de outras associações, Rawls (2003) apresenta o conceito de “domínio ou esfera” como sendo “o resultado ou produto da forma de aplicação dos princípios de justiça política diretamente à estrutura básica e indiretamente às associações dentro dela” (p. 236). Ainda pontua que o domínio ou esfera da vida são os espaços que recepcionam “os princípios que definem as liberdades básicas e as oportunidades equitativas iguais dos cidadãos” (p. 236). Rawls (2003) demonstra ser um defensor incansável dos direitos das mulheres ao lembrar que na divisão tradicional do trabalho doméstico, elas sempre ficaram em desvantagem, pois lhes coube o pesado encargo do cuidado e criação dos filhos. O filósofo americano pondera que para a existência do equilíbrio seria necessário que o marido dividisse as atividades com a esposa ou a compensasse pelo trabalho desigual. A divisão do trabalho doméstico não é uma preocupação do estudo de Hegel, muito embora ele indique que a criação e educação dos filhos é responsabilidade dos pais. Entretanto, como demonstram alguns estudiosos7, na etapa civilizatória vivida pelo filósofo alemão, os papeis domésticos eram destinados à mulher. Entretanto, Rawls reconhece que não cabe à filosofia política encontrar o melhor modo para a solução do desnível existente na divisão do trabalho familiar, porém assinala que: Uma proposta agora comum é que, como norma ou diretriz, a lei deva considerar que o trabalho da esposa na criação dos filhos (quando ela tem, esse encargo, o que ainda é comum) dá a ela o direito a uma parcela igual da renda que o marido ganha durante 269

THEMIS o casamento. Em caso de divórcio, ela deveria receber uma parcela igual do valor acrescido aos bens da família durante aquele período (2003, p. 236-237).

Esta parece ser uma solução polêmica. No caso do divórcio, há um empobrecimento de todos, pois os recursos e o patrimônio são divididos, assim parece óbvia a declaração de Rawls, quando adverte que: Parece intolerável que um marido possa deixar a família levando consigo sua capacidade de ganhar dinheiro e deixando esposa e filhos em situação bem menos vantajosa que antes. Forçados a prover o próprio sustento, sua posição econômica é muitas vezes precária. Uma sociedade que permite isso não se importa com as mulheres, menos ainda com a desigualdade, ou mesmo com suas crianças que são seu futuro (2003, p. 237).

CONSIDERAÇÕES FINAIS Da análise da concepção de família em Rawls, ainda se percebe que o conceito de cidadania ao qual se vincula se aproxima ao greco-romano, isto é, aquele indicativo da condição política da pessoa como detentora de direitos que podem decidir sobre a vida da cidade. Desta forma, a cidadania não é aplicada às crianças8, por exemplo. Esta condição mudou muito durante o século XX, em que ser cidadão ganhou uma conotação histórica, a qual confere a cada indivíduo, direitos civis (propriedade e igualdade perante a lei). Este artigo buscou apontar algumas semelhanças e diferenças na concepção de família em Rawls e Hegel com o olhar da justiça e do direito. Observa-se que há muitos distanciamentos entre os dois pensadores. Enquanto Rawls estabelece similaridades entre a família e associações da sociedade civil, Hegel aponta distinções. Para o filósofo alemão, a família é monogâmica e heterossexual, já o filósofo americano, para o debate da justiça como equidade, não leva em consideração as formas contemporâneas de reconfigurações familiares. Embora as fontes da concepção de direito de Rawls e Hegel sejam diferentes, eles comungam na condição que todos os membros da família são detentores de direitos, bem como que a união dos membros tem como base o amor. Na dissolução da família por meio do divórcio, Hegel vê como um mal necessário. Rawls se preocupa com os encargos deixados à mulher no cuidado e 270

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criação dos filhos, enquanto Hegel tem em mente o patrimônio familiar. Nisto há aproximações e distanciamentos. No divórcio, a família empobrece, portanto o patrimônio é também dissolvido (Hegel) e a capacidade laboral de manutenção do lar, proveniente do homem, é tirada do âmbito familiar conferido à mulher um duplo ônus – trabalho fora e dentro de casa (Rawls). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1981. BOBBIO, Norberto. Estudos sobre Hegel: direito, sociedade civil, Estado. São Paulo: Unesp e Brasiliense, 1989. BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Unesp, 1997. FERNANDES, José Carlos Lopes. A justiça como equidade segundo John Rawls. João Pessoa/PB, 2010, 78 p. Dissertação (Mestrado em Filosofia Política) – Universidade Federal da Paraíba. GONDIM, Elnôra; RODRIGUES, Osvaldino Marra. John Rawls e a justiça como equidade: algumas considerações. Revista Diversa, nº 2, p. 131-146, jul/dez 2008. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. Lisboa: Guimarães Editores, 1990. MARX, Karl Heinrich. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Lisboa: Editorial Presença, 1983. OLIVEIRA, Nythamar. Rawls. Coleção Filosofia Passo a Passo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. RAWLS, John. Justiça como equidade. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 271

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RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações: ensaios de Hermenêutica. Porto: Rés, 1994. ROULAND, Norbert. Nos confins do direito: antropologia jurídica na modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2008. THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995. WEBER, Thadeu. Hegel: Liberdade, Estado e História. Petrópolis: Vozes, 1993. NOTA DE FIM 1 A pesquisa na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações ocorreu em 28.12.2012. 2 Não é o objetivo de este trabalho discutir o conceito de Estado em Hegel, mas apenas lembrar que Marx tece algumas críticas à filosofia do direito de Hegel, notadamente, a concepção de Estado, quando sublinha que há o estabelecimento de uma antinomia não resolvida, ao asseverar que por um lado o Estado é uma necessidade externa e por outro é um fim imanente. (MARX, 1983, p. 9). 3 De acordo com Fernand Braudel, a História situa-se em três escalas: na superfície, uma história dos eventos inserida na curta duração (concepção positivista); a escala do meio revela uma história conjuntural, seguindo um ritmo mais lento; por fim, uma história estrutural, de longa duração, que põe em causa os séculos. Assim, a Nova História influenciada pelas ciências sociais, em especial do grupo de historiadores da Escola dos Annales, realizou uma reviravolta epistemológica no que se refere ao conceito de tempo histórico. A pesquisa historiográfica de longa duração consiste, portanto, num esforço de superação do evento e de seus corolários, isto é, a história contínua, progressiva e irreversível da realização de uma consciência humana capaz de uma reflexão total (BURKE, 1997).

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4 Como a edição de Princípios da Filosofia do Direito utilizada neste trabalho foi publicada em Portugal, pela Guimarães Editores, as citações mantêm as grafias das palavras como usadas na terra de Camões. 5 As fontes do direito em Rawls e Hegel são bem diferentes. O primeiro filiase ao kantismo concebendo uma forma de neocontratualismo (OLIVEIRA, 2003, p. 17), enquanto o segundo se inspira no jusnaturalismo, com dissoluções e realizações, como bem lembra Bobbio ao assinalar que “paradoxalmente, a filosofia do direito de Hegel, ao mesmo tempo em que se apresenta como negação de todos os sistemas de direito natural, é também o último e o mais perfeito sistema de direito natural”. (BOBBIO, 1989, p. 23). 6 Entre os comunitaristas que criticaram o liberalismo rawlsiano, Oliveira (2003, p. 22) alista: Michael Walzer, Alisdair MacIntyre, Charles Taylor e Michael Sandel. 7 Ariès (1981) é um desses estudiosos. 8 Para um aprofundamento sobre a história da criança, em especial, a partir da Idade Média recomendamos a leitura do livro História social da criança e da família de Ariès (1981).

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O VALOR DO DEPÓSITO PRÉVIO NA IMISSÃO PROVISÓRIA NA POSSE NA DESAPROPRIAÇÃO: UMA VISÃO DO INSTITUTO À LUZ DO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO Saulo Gonçalves Santos





Graduado em Direito pela Faculdade 7 de Setembro (FA7). Especialista em Direito Tributário pela Faculdade 7 de Setembro (FA7). Juiz de Direito do Estado do Ceará

RESUMO: Esse artigo se propõe a analisar a justiça na fixação do valor do depósito prévio para a imissão provisória na posse do bem em desapropriação, estudando, brevemente, os conceitos de propriedade, da sua função social e do Princípio da Supremacia do Interesse Publico frente ao particular. Far-se-á uma análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, culminando com alguns comentários sobre o julgamento do REsp n. 1185583/ SP, sob a sistemática dos recursos repetitivos, que pacificou o entendimento jurisprudencial. Palavras-Chave: Desapropriação. Imissão provisória na posse do bem. Depósito prévio. ABSTRACT: This article aims to analyze the justice in fixing the value of the deposit prior to provisionally regain possession of the property in expropriation, analyzing briefly the concepts of ownership, the social function of property and The supremacy of the Public over the particular. An analysis of the jurisprudence of the Supreme Court and Superior Court of Justice, culminating with some comments on the trial REsp n-Far. 1185583/SP, under the system of repetitive features, which crystallized the theme. Keywords: Expropriation. Provisional regain possession of the property. Previous deposit. INTRODUÇÃO O presente artigo tem a finalidade de analisar o instituto da desapropriação, como uma ferramenta instituída para efetivar o interesse público frente ao particular, abordando os seus conceitos, bem como perquirindo 275

THEMIS como a sua existência se fundamenta, considerando o direito de propriedade constitucionalmente assegurado. Nesta linha de raciocínio, far-se-á uma breve análise do que seria a função social da propriedade, na modernidade, estabelecendo-se os limites de até onde a noção deste conceito pode ser utilizada para invadir o direito individual do particular. Uma breve abordagem será feita, abordando o argumento/falácia de que o interesse público justifica, sempre, a mitigação do interesse particular, surgindo aqui a importância do Poder Judiciário para conter eventuais abusos praticados sob o manto de que se está efetivando o interesse da sociedade. Será dada ênfase à ideia de que o interesse público não pode ser legitimamente efetivado se não forem resguardados os direito e garantias fundamentais do cidadão. Prosseguindo, estudar-se-á o tema da imissão provisória da posse abordada no art. 15 do Decreto Lei 3.365/4, ponto este em que se chega ao ápice do confronto entre o interesse público e o particular em sede de desapropriação, visto que, sob a alegação de urgência, o Poder Público pode se imitir na posse do imóvel imediatamente, sob o condicionamento de um depósito prévio a ser estabelecido pelo Poder Judiciário. Destacar-se-á a evolução jurisprudencial sobre o assunto, desde a então consolidada tese de que a justa e prévia indenização só seria devida quando da transferência definitiva da propriedade; o entendimento previsto na súmula 652, Supremo Tribunal Federal; o depósito prévio com base em mera avaliação unilateral do ente expropriante; a necessidade/obrigatoriedade de uma prévia avaliação judicial para a imissão provisória na posse; e o atual entendimento que vem sendo consagrado pelo Superior Tribunal de Justiça, o qual, de maneira equânime, bem resolveu a disputa entre o direito do particular e o do ente público. A importância da análise do tema se deve ao fato de que o anterior entendimento que sufragava indenizações iníquas como válidas para o depósito prévio em imissão provisória acarreta(va) injustiças para os particulares, visto que a diferença entre o que havia sido previamente depositado e a indenização final seria paga por precatórios, mas a propriedade, de logo, já seria transferida para o Poder Público. Ademais, ao conseguir a imissão provisória na posse, na maioria das vezes, o expropriante demonstrava desinteresse em promover o regular 276

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andamento da ação de desapropriação, prejudicando o particular, que recebe o montante faltante por precatório, muita das vezes, sofrendo com a inadimplência do ente público. Pretende-se, pois, sem aniquilar a celeridade que uma imissão provisória na posse requer, demonstrar a importância de se resguardar o interesse do particular, evitando que efeitos danosos ao patrimônio do administrado sejam produzidos, missão esta a ser bem desempenhada pelo Poder Judiciário. 1 O DIREITO DE PROPRIEDADE, A FUNÇÃO SOCIAL E A DESAPROPRIAÇÃO A Constituição Federal de 1988 consagrou a proteção ao direito de propriedade, elevando esta prerrogativa ao nível de um direito constitucional individual, previsto no seu art. 5º, XXII. Ocorre que, demonstrando a opção política adotada pelo Constituinte de 1988, logo em seguida à norma supracitada, no inciso XXIII, o Texto Maior asseverou que a propriedade deverá atender a sua função social, esclarecendo que o interesse particular não pode se constituir num óbice para a efetivação do interesse público. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal trouxe alguns exemplos interessantes acerca do cotejo entre direito de propriedade e a sua função social, veja-se: O direito de propriedade não se revela absoluto. Está relativizado pela Carta da República – arts. 5º, XXII, XXIII e XXIV, e 184." (MS 25.284, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 17-6-2010, Plenário, DJE de 13-8-2010). Se a restrição ao direito de construir advinda da limitação administrativa causa aniquilamento da propriedade privada, resulta, em favor do proprietário, o direito à indenização. Todavia, o direito de edificar é relativo, dado que condicionado à função social da propriedade. Se as restrições decorrentes da limitação administrativa preexistiam à aquisição do terreno, assim já do conhecimento dos adquirentes, não podem estes, com base em tais restrições, pedir indenização ao Poder Público.” (RE 140.436, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 25-5-1999, Segunda Turma, DJ de 6-8-1999.) No mesmo sentido: AI 526.272-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 1º-2-2011, Segunda Turma, DJE de 222-2011). 277

THEMIS O proprietário do prédio vizinho não ostenta o direito de impedir que se realize edificação capaz de tolher a vista desfrutada a partir de seu imóvel, fundando-se, para isso, no direito de propriedade.” (RE 145.023, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 17-11-1992, Primeira Turma, DJ de 18-12-1992).

Dos julgados colacionados acima, o que se observa é uma preocupação do Supremo Tribunal em evitar um abuso de direito, quer seja do de propriedade, asseverando que este não é absoluto, quer seja do interesse público, prevendo, em caso de limitação administrativa, que eventual aniquilamento da propriedade se equipare a uma desapropriação, fazendo o proprietário direito a uma indenização equivalente ao prejuízo sofrido. Nelson Nery Júnior, ao comentar o art. 1.228 do Código Civil de 2002, destaca a importância do direito de propriedade ao o equiparar, em termos de eficácia jurídica e exigência de proteção dos direitos fundamentais, à liberdade, à segurança e a resistência à opressão, transparecendo que a proteção deste importante direito é extremamente importante para a manutenção da base da sociedade política (Nery, p. 1114, 2012). Este mesmo professor, desta feita lecionando acerca da função social, assevera que este postulado tem a natureza jurídica de um princípio de ordem pública, não podendo, por isto, ser derrogado por iniciativa das partes. Prossegue, citando o art. 2.035, parágrafo único do Código Civil, cujos termos são claros no sentido de que as convenções particulares não podem se sobrepor aos preceitos inerentes à função social da propriedade, o que destaca a sua relevância no cenário jurídico moderno, condicionando inclusive a iniciativa particular (Nery, p. 1115, 2012). A Norma Maior ainda previu, no art. 5º, XXIV, que a lei estabelecerá o procedimento para a desapropriação, por necessidade, utilidade pública ou interesse social, assegurada a justa e prévia indenização em dinheiro, salvo as exceções constitucionalmente previstas Essa atividade de promoção do bem estar coletivo, aqui debatida, será efetuada por intermédio da intervenção do estado na propriedade, a qual pode ser subdividida em intervenção supressiva e restritiva. Sobre o assunto, interessantes são os ensinamentos do professor José dos Santos Carvalho Filho: 278

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Essa intervenção, tornamos a frisar, pode ser categorizada em dois grupos: de um lado, a intervenção restritiva, através da qual o Poder Público retira algumas das faculdades relativas ao domínio, embora salvaguarde a propriedade em favor do dono; de outro, a intervenção supressiva, que gera a transferência da propriedade de seu dono para o Estado, acarretando, por conseguinte, a perda da propriedade. (…). Cabe-nos agora analisar a forma mais drástica de intervenção do Estado, ou seja, aquela que provoca a perda da propriedade. Essa forma é a desapropriação (Carvalho Filho, p. 773, 2009).

A desapropriação é o instrumento que o expropriante se utiliza para transferir a propriedade particular para o seu patrimônio, desde que para isso haja, no caso, necessidade/utilidade pública ou interesse social, assegurando-se, via de regra, a indenização compensatória ao administrado. Nesse sentido, o que se percebe da análise da Constituição Federal, da jurisprudência dos tribunais e da doutrina é que a moderação e a razoabilidade devem nortear a utilização da propriedade no mundo moderno, podendo eventualmente o particular ser privado totalmente de seu bem quando o interesse público o exigir, mas a proteção da propriedade aqui também valerá para o expropriante, devendo este demonstrar a necessidade/utilidade pública que legitimou sua atuação, promovendo a justa indenização ao administrado. 2 O PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PARTICULAR: A DEMOCRACIA E A DEFESA DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS O princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, base maior do Direito Administrativo, bem como dos seus instrumentos de atuação, neste caso mais especificamente a desapropriação, vem tendo o seu conteúdo revisto pela doutrina moderna, que vem remodelando a noção de Poder de Império, então justificado pelo postulado aqui tratado, uma vez que tal visão, algumas vezes, produz arbitrariedades não pretendidas pela senso comum da sociedade. Isso acontece quando o exercício da função administrativa é desvirtuada para efetivar as “razões de Estado”, o que ocorre quando os detentores do poder utilizam a máquina estatal para atingir os interesses particulares dos gestores, o que viola frontalmente a noção de Estado Democrático de Direito, bem como deixa de consagrar a necessária observância aos direitos fundamentais. 279

THEMIS Em suma, é a situação de fato em que, sob a alegação de se estar defendendo o bem estar coletivo, arbitrariedades são perpetradas, em detrimento do indefeso particular, que observa seu bem individual ser violado, sem justificativa plausível e sem nada poder fazer. O que esse novo entendimento de supremacia do interesse público frente ao particular prega é que a realização de um valor público nunca se dará na sua plenitude quando houver a produção de efeitos injustos e a violação de direitos fundamentais. Isto é afirmado, considerando que a Constituição Federal tem a proteção da dignidade da pessoa humana em seu núcleo, de modo que o interesse público não será público se violar bens fundamentais dos indivíduos, por exemplo. Portanto, ainda se observando os julgados do Supremo Tribunal Federal acima citados, o que os tribunais brasileiros não mais vêm sufragando, e isso também vem se aplicando à questão do depósito prévio na desapropriação para fins de imissão provisória na posse do bem, é que haja abusos, tanto na interpretação da supremacia do interesse público, quanto da noção que se deve ter de proteção do interesse particular. Os exageros para qualquer dos lados da balança produzirão injustiças e devem ser coibidos primeiramente pelo administrador público e, em último caso, pelo guardião da Democracia que é o Poder Judiciário. A razoabilidade e a proporcionalidade são sugeridas por alguns autores do Direito Administrativo como o melhor critério para resolver este impasse. Destaque-se, agora, a seguinte passagem do artigo científico de Isabelle de Baptista (p. 13) que bem sintetiza este tema: Em caso de colisão de interesses públicos primários voltados para a satisfação de uma meta coletiva e os interesses primários que sirvam para a garantia de um direito fundamental, Luís Roberto Barroso (2005, p. xvi-xvii) sugere que seja realizada uma ponderação com base na observância de dois parâmetros: a análise da razão pública e da dignidade da pessoa humana. O uso da razão pública “[...] consiste na busca por elementos constitucionais essenciais e em princípios consensuais de justiça, dentro de um ambiente de pluralismo político”. O princípio da dignidade da pessoa humana, por sua vez, pressupõe que o ser humano seja tratado como um fim em si mesmo e evita, por via de consequência, que “[...] seja reduzido à condição de meio para a realização de metas coletivas ou de metas individuais”. 280

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Dessa forma, se numa atuação estatal que visa alcançar uma meta coletiva, a dignidade da pessoa humana for desrespeitada, tal atuação deve ser evitada.

Portanto, entende-se que o professor Luís Roberto Barroso, citado por Isabelle de Baptista, foi bastante racional ao entender que um impasse entre um interesse público primário - ou seja, aquele cujo titular seja a própria sociedade e não uma pessoa jurídica de direito público - e um interesse particular fosse resolvido com base numa ponderação entre a razão pública que justificasse a adoção da medida e a dignidade da pessoa humana. De modo que a solução final não devesse ver o particular como um simples meio para a consecução do interesse público, sob pena de esse interesse, só por este tipo de atuação, já não ser mais tão público assim, visto que violador de direitos fundamentais, cuja proteção é a razão da existência de um Estado, em última análise. Ditas estas palavras sobre o postulado da supremacia do interesse público frente ao particular, passo a analisar a evolução da jurisprudência sobre o depósito prévio e a imissão provisória na posse do bem, na desapropriação. 3 O ARTIGO 15 DO DECRETO LEI N. 3.365/41 E A EVOLUÇÃO DE SUA INTEPRETAÇÃO PELOS TRIBUNAIS SUPERIORES O art. 5º, XXIV, Constituição Federal é claro ao dispor que a desapropriação por interesse social, necessidade ou utilidade publica se dará, via de regra, mediante prévia e justa indenização em dinheiro por parte do Expropriante. Ocorre que a legislação que trata da regra geral da desapropriação previu a figura da imissão provisória na posse do bem, de modo que o autor da ação desapropriatória já pode ter a posse do bem antes de finalizado o processo judicial. A disciplina deste tema veio estabelecida no art. 15 do Decreto Lei n. 3.365/41, confira-se: Art. 15. Se o expropriante alegar urgência e depositar quantia arbitrada de conformidade com o art. 685 do Código de Processo Civil, o juiz mandará imití-lo provisoriamente na posse dos bens; § 1º A imissão provisória poderá ser feita, independente da citação 281

THEMIS do réu, mediante o depósito: (Incluído pela Lei nº 2.786, de 1956); a) do preço oferecido, se êste fôr superior a 20 (vinte) vêzes o valor locativo, caso o imóvel esteja sujeito ao impôsto predial; (Incluída pela Lei nº 2.786, de 1956); b) da quantia correspondente a 20 (vinte) vêzes o valor locativo, estando o imóvel sujeito ao impôsto predial e sendo menor o preço oferecido; (Incluída pela Lei nº 2.786, de 1956); c) do valor cadastral do imóvel, para fins de lançamento do impôsto territorial, urbano ou rural, caso o referido valor tenha sido atualizado no ano fiscal imediatamente anterior; (Incluída pela Lei nº 2.786, de 1956); d) não tendo havido a atualização a que se refere o inciso c, o juiz fixará independente de avaliação, a importância do depósito, tendo em vista a época em que houver sido fixado originàlmente o valor cadastral e a valorização ou desvalorização posterior do imóvel. (Incluída pela Lei nº 2.786, de 1956); § 2º A alegação de urgência, que não poderá ser renovada, obrigará o expropriante a requerer a imissão provisória dentro do prazo improrrogável de 120 (cento e vinte) dias. (Incluído pela Lei nº 2.786, de 1956); § 3º Excedido o prazo fixado no parágrafo anterior não será concedida a imissão provisória. (Incluído pela Lei nº 2.786, de 1956); § 4o A imissão provisória na posse será registrada no registro de imóveis competente.

Analisando as particularidades deste artigo, o professor Leonardo Carneiro da Cunha (p. 682, 2011) afirmou que o Supremo Tribunal Federal sempre proclamou a constitucionalidade do dispositivo, considerando que o princípio da justa e prévia indenização em dinheiro se relacionaria com a imissão definitiva na posse, que decorreria da transferência final do bem, não se direcionando pois à imissão provisória na posse. Nesse sentido, destaque-se os seguintes julgados relatando o posicionamento então vigorante no Supremo: Subsiste, no regime da Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XXIV),a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal sob a égide das Cartas anteriores, ao assentar que só a perda da propriedade, no final da ação de desapropriação – e não a imissão provisória na posse do imóvel – está compreendida na garantia da justa e prévia indenização (STF – 1ª Turma RE 195.586/DF, rel. Min. Octavio Galloti, j. 12/3/1996, DJ de 26/4/1996) EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. 282

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DESAPROPRIAÇÃO. IMISSÃO PROVISÓRIA NA POSSE. EXIGÊNCIA DO PAGAMENTO PRÉVIO E INTEGRAL DA INDENIZAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 15 E PARÁGRAFOS DO DECRETO-LEI Nº 3.365/41. PRECEDENTE. 1. O Plenário desta Corte declarou a constitucionalidade do art. 15 e parágrafos do Decreto-lei nº 3.365/41 e afastou a exigência do pagamento prévio e integral da indenização, para ser deferida a imissão provisória na posse do bem expropriado. 2. Recurso Extraordinário conhecido e provido. (STF – RE RE 216964 / SP - SÃO PAULO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a): Min. MAURÍCIO CORRÊA Julgamento: 10/11/1997 Órgão Julgador: Segunda Turma) EMENTA: Ação de desapropriação. Imissão na posse. - A imissão na posse, quando há desapropriação, é sempre provisória. Assim, o § 1º e suas alíneas do artigo 15 do Decreto-Lei 3.365/41 é compatível com o princípio da justa e prévia indenização em dinheiro previsto no art. 5º, XXIV, da atual Constituição. Recurso extraordinário conhecido e provido. (STF - RE 176108 / SP - SÃO PAULO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO Relator(a) p/ Acórdão: Min. MOREIRA ALVES Julgamento: 12/06/1997 Órgão Julgador: Tribunal Pleno) (destaquei).

Deste modo, este entendimento, de certa forma, estava pacificado no Supremo Tribunal Federal, tendo provocado inclusive a edição da súmula n. 652 de sua jurisprudência dominante, cujo teor é o seguinte: “não contraria a Constituição o art. 15, parágrafo 1º, do Decreto-lei 3.365/1941 (Lei da Desapropriação por utilidade pública)”. Ocorre que, a decorrência desse entendimento inicial da Corte Maior – e é justamente aqui que surgem as duas versões do Princípio da Supremacia do Interesse Público Sobre o Particular – era de que, como a imissão provisória não exigia o depósito integral e não implicava em violação a justa e prévia indenização em dinheiro, o restante do dinheiro só seria pago posteriormente e pelo sistema de precatório. Passou a reinar uma contumaz inadimplência dos entes públicos, que deixavam de honrar os precatórios decorrentes de desapropriação, implicando no descrédito das instituições públicas e manifesto prejuízo ao particular. Confirmando que o pagamento do restante da indenização é realizada pelo sistema de precatório, veja-se o seguinte julgamento do Supremo Tribunal Federal: 283

THEMIS

Verificada a insuficiência do depósito prévio na desapropriação por utilidade pública, a diferença do valor depositado para imissão na posse deve ser feito por meio de precatório, na forma do art. 100 da CB/1988.” (RE 598.678-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 1º-12-2009, Segunda Turma, DJE de 18-12-2009.) No mesmo sentido: RE 739.454-AgR, rel. min. Cármen Lúcia, julgamento em 12-11-2013, Segunda Turma, DJE de 20-11-2013).

A ponderação entre o interesse público e o interesse particular, num caso concreto, pelo administrador, deve levar em consideração a razão pública existente – que no caso é a urgência na imissão provisória na posse para a realização de uma obra, por exemplo – e o princípio da dignidade da pessoa humana, implicando dizer que o particular não pode ser simplesmente entendido como um meio para realizar a obra, mas visto como um fim em si mesmo. Entretanto, em casos de valores iniciais que não atendiam à justa e prévia indenização e implicavam em inadimplência do pagamento da diferença pelo ente público, que se dá pelo sistema de precatório, uma razão pública consistente na realização de uma obra necessária para a população foi realizada em manifesto prejuízo ao administrado, que serviu apenas como um objeto para a conclusão do empreendimento. O Judiciário não pode chancelar este tipo de conduta, que viola o Princípio da Supremacia do Interesse Público visto na sua feição democrática, como meio para efetivar direitos e garantias fundamentais. Reagindo a este entendimento, o Superior Tribunal de Justiça passou a exigir a avaliação judicial prévia, com base no art. 14 do Decreto Lei n. 3.365/41, para impedir o calote por parte dos entes público, bem como o manifesto desinteresse no prosseguimento da ação que isso acarretava, visto que, uma vez conseguida a imissão prévia, o expropriante abandonava o processo, confiandose no entendimento de que o apossamento administrativo é irreversível e deve ser resolvido em perdas e danos. Vejam-se alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça que consagraram a exigência de avaliação judicial prévia como necessária para a imissão provisória na posse e não a mera avaliação unilateral do expropriante: ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. DESAPROPRIAÇÃO. IMISSÃO PROVISÓRIA NA POSSE. AVALIAÇÃO PRÉVIA. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 15 DO DECRETO-LEI N. 3.365/41. PRECEDENTES. 284

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1. O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que a imissão provisória em imóvel expropriando somente é possível mediante prévio depósito do valor apurado em avaliação judicial provisória, não havendo de ser substituída por mera avaliação efetuada por entidade particular. Ausência de violação do art. 15 do Decreto-Lei n. 3.365/41. 2. Recurso especial conhecido e não-provido. (STJ - REsp 181407 / SP; 25.04.2005, Min. João Otávio de Noronha). PROCESSUAL CIVIL - EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECURSO ESPECIAL - OBSCURIDADE - EXISTÊNCIA - DESAPROPRIAÇÃO - IMISSÃO NA POSSE - PERÍCIA PREQUESTIONAMENTO DE DISPOSITIVO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - INVIABILIDADE - PRECEDENTES. 1. A imissão provisória em imóvel expropriado, somente é possível mediante prévio depósito de valor apurado em avaliação judicial provisória. 2. Neste caso, tendo-se consumado a imissão provisória na posse sem o cumprimento do pressuposto da avaliação judicial prévia, corrige-se a falha, em nome do princípio constitucional da justa indenização, mediante a utilização de laudo elaborado por perito judicial do juízo, não importando que se dê em época posterior à imissão na posse, já realizada. 3. Se o egrégio Tribunal a quo converteu o julgamento em diligência, para que nova perícia fosse executada no juízo de origem, tendo em vista a constatação de omissões e inexatidões na primeira avaliação, o novo laudo deverá prevalecer para efeito de depósito judicial, no que se refere ao valor da terra nua. (...) 5. Embargos de declaração dos recorrentes acolhidos. Embargos de declaração da empresa parcialmente acolhidos. (STJ - EDcl no REsp 330179 / PR; Min. Denise Arruda; 15.03.2004). DESAPROPRIAÇÃO. IMISSÃO PROVISORIA NA POSSE. AVALIAÇÃO PREVIA. DECRETO-LEI NUM. 3.365/41, ART. 15, PAR. 1. I - CONFORME A JURISPRUDENCIA DESTA COLENDA CORTE, A IMISSÃO PROVISORIA EM IMOVEL EXPROPRIADO. SOMENTE E POSSIVEL MEDIANTE PREVIO DEPOSITO DE VALOR APURADO EM AVALIAÇÃO JUDICIAL PROVISORIA. PRECEDENTES. II - RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO. (STJ - REsp 97057 / MG; 18.11.1996; Min. José de Jesus Filho) (destaquei).

De certo modo, este novo entendimento serviu de acalento aos administrados prejudicados, porquanto resguardou a proteção ao patrimônio particular, sem impedir a realização de uma obra pública. 285

THEMIS Em alguns momentos, entretanto, o tempo para a realização da perícia poderia prejudicar efetivamente o interesse público, de modo que, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça lançou mão de um entendimento que bem adequou a razão pública ao princípio da dignidade da pessoa humana, revigorando a vigência do artigo 15, parágrafo 1º do Decreto Lei n. 3.365/41 quando os cadastros do Imposto Predial houverem sido atualizados no ano imediatamente anterior ao que se pretendia a imissão. A razão deste entendimento é lógica. Ora, se o ente público atualizou os valores de seus cadastros para a cobrança do imposto territorial no ano imediatamente anterior ao que se pretende a imissão provisória é sinal que o valor que está fixado é o correspondente à realidade do mercado ou, pelo menos, está muito próximo a isso, porquanto o Estado também está cobrando valores com base nessa tabela e não iria se prejudicar. Aqui, o Superior Tribunal de Justiça nada mais fez do que assegurar a plena aplicabilidade do que dispõe o art. 15, parágrafo 1º, “c”, do Decreto Lei n. 3.365/41, aplicando o melhor entendimento para o caso, pois equaciona muito bem a razão pública do expropriante com a dignidade da pessoa humana do particular, que não estará sendo utilizado como um simples instrumento para a concretização de fins públicos. A velocidade que se possa pretender para uma imissão provisória na posse de um bem não estará, aqui, prejudicando o particular. Esse posicionamento, regido com os mais elementares requintes de proporcionalidade, traz à tona a sensação de justiça e bom senso, assegurando a aplicação dos valores constantes dos cadastros públicos, desde que atualizados no ano imediatamente anterior. Caso essa atualização não tenha acontecido, com base no art. 14, decreto lei n. 3.365/41, uma avaliação judicial prévia se impõe para a imissão provisória na posse, resguardando também o interesse privado. Evidencie-se, a propósito, o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça: RECURSO ESPECIAL. REPETITIVO. ART. 543-C DO CPC. DESAPROPRIAÇÃO. IMISSÃO PROVISÓRIA NA POSSE. DEPÓSITO JUDICIAL. VALOR FIXADO PELO MUNICÍPIO OU VALOR CADASTRAL DO IMÓVEL (IMPOSTO TERRITORIAL URBANO OU RURAL) OU VALOR FIXADO EM PERÍCIA JUDICIAL. 286

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Diante do que dispõe o art. 15, § 1º, alíneas "a", "b", "c" e "d", do Decreto-Lei n. 3.365/1941, o depósito judicial do valor simplesmente apurado pelo corpo técnico do ente público, sendo inferior ao valor arbitrado por perito judicial e ao valor cadastral do imóvel, não viabiliza a imissão provisória na posse. - O valor cadastral do imóvel, vinculado ao imposto territorial rural ou urbano, somente pode ser adotado para satisfazer o requisito do depósito judicial se tiver "sido atualizado no ano fiscal imediatamente anterior" (art. 15, § 1º, alínea "c", do DecretoLei n. 3.365/1941). - Ausente a efetiva atualização ou a demonstração de que o valor cadastral do imóvel foi atualizado no ano fiscal imediatamente anterior à imissão provisória na posse, "o juiz fixará independente de avaliação, a importância do depósito, tendo em vista a época em que houver sido fixado originalmente o valor cadastral e a valorização ou desvalorização posterior do imóvel" (art. 15, § 1º, alínea "d", do Decreto-Lei n. 3.365/1941). - Revela-se necessário, no caso em debate, para efeito de viabilizar a imissão provisória na posse, que a municipalidade deposite o valor já obtido na perícia judicial provisória, na qual se buscou alcançar o valor mais atual do imóvel objeto da apropriação. Recurso especial improvido (STJ - REsp 1185583 / SP; 28.8.2012; Min. César Asfor Rocha) (destaquei).

Portanto, com esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça equacionou, com justiça, os interesses público e particular nesse tipo de questão de imissão provisória na posse em desapropriação e exigência do depósito prévio. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com este trabalho, pretendeu-se destacar o cuidado que o magistrado deve ter ao deferir uma imissão provisória na posse de bens, em caso de desapropriação. Esclareceu-se que a moderna visão do princípio da supremacia do interesse público frente ao particular não deve chancelar arbitrariedades, porquanto o interesse público somente estará sendo bem efetivado se defender direitos e garantias fundamentais, e não os violando. Nesse sentido, destacou-se o posicionamento inicial da jurisprudência de que o princípio da justa e prévia indenização não se aplicaria a imissão provisória na posse do bem, mas apenas a transferência definitiva da propriedade. 287

THEMIS Destacou-se o equívoco de tal entendimento, uma vez que ao ser imitido na posse do bem, considerando que o apossamento administrativo somente pode ser resolvido em perdas e danos, a posse, de fato, restou consolidada em poder do expropriante, ficando o particular desassistido, já que o restante da indenização somente será recebido por precatório. Evidenciou-se a viragem jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que, para a imissão provisória na posse do bem, seria exigida a avaliação judicial prévia, o que resguardaria o interesse particular. Por fim, mostrou-se o total acerto numa jurisprudência firmada pelo STJ em âmbito de julgamento de recurso especial pelo sistema de recursos repetitivos, no sentido de que se houvesse a atualização dos cadastros fiscais para a cobrança do imposto territorial no ano imediatamente anterior pelo ente público, o valor ali constante poderia ser utilizado para fins de imissão provisória na posse de bens, em caso de despropriação. Caso contrário, deveria o juiz determinar uma avaliação judicial prévia, protegendo o interesse particular. Esse posicionamento, segundo se pontuou, defendeu bem tanto a razão pública demonstrada na velocidade que muitas vezes se exige de uma imissão provisória na posse do bem, quanto o interesse patrimonial do administrado, chegando-se a um resultado final justo, proporcional e com bom senso. REFERÊNCIAS BAPTISTA, Isabelle de. Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado: uma análise à luz dos direitos fundamentais e do Estado Democrático de Direito. Revista TCEMG | jan.| fev.| mar| 2013| DOUTRINA. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo / José dos Santos Carvalho Filho – 21. ed. - Rio de Janeiro : Lumen Juris Editora, 2009. CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 9. ed. São Paulo: Dialética, 2011. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 9 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. 288

SOBRE RECONVENÇÃO, PEDIDO CONTRAPOSTO E AÇÕES DÚPLICES NO NOVO SISTEMA DE PROCESSO CIVIL Telga Persivo Pontes de Andrade

Advogada. Graduada em Direito pela FA7. Médica, graduada pala Universidade Federal do Ceará. Cirurgiã-dentista, graduada pala UFC. Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da UFC. Especialista em Biologia Molecular Aplicada ao Diagnóstico pela UFC. Mestre em Educação: concentração em Avaliação (UFC). Doutora em Educação: concentração em Currículo e Ensino (UFC). Aluna do Curso de Especialização em Direito Processual da FA7. Aluna do Curso de Especialização em Direito Processual Civil da UNIFOR. [email protected].

RESUMO: Objetiva-se analisar as três espécies de contra-ataque do réu insertas no ordenamento processual civil brasileiro: reconvenção, pedido contraposto e ações dúplices. Através de pesquisa bibliográfica qualitativa elencam-se as características basilares dos três supraditos institutos processuais. Estabelecemse semelhanças e dessemelhanças entre tais espécies processuais. Conclui-se que os três institutos são formas de contra-ataque do réu e a principal diferença entre reconvenção e pedido contraposto é meramente topográfica. Igualmente, não se admite a reconvenção quando o resultado prático colimado com sua propositura puder ser obtido através da contestação ou do pedido contraposto. Conclui-se ainda que no novo sistema de processo civil a reconvenção deverá ser substituída pelo pedido contraposto, objetivando imprimir maior celeridade ao processo. Tecem-se ponderações sobre os sobreditos institutos e o novo sistema de Processo Civil. Palavras-chave: Reconvenção. Pedido Contraposto. Ações Dúplices. Novo Sistema de Processo Civil. ABSTRACT: This  study  analyzes  the  three  species  of  defendant  counterattack inserted  in  the  Brazilian  Code  of  Civil  Procedure,  counterclaim, opposed application,  and duplicitous actions. Through the use of qualitative biographical research, were listed the fundamental characteristics of the three aforementioned procedural institutes. Similarities and dissimilarities between these procedural 289

THEMIS species are established. It was concluded that the three institutes are the ways of defendant counterattack; also, the  main  difference  between the  counterclaim and  opposed application  is merely  topographical.  Likewise, the counterclaims are not accepted when the expected practical result and its bringing suits can be obtained by the rejoinder or the opposed. In addition, it was concluded that in the new system of civil procedure counterclaims must be replaced by the opposed with the aim of granting celerity in the process. Reflections have been created about aforementioned institutes and the new system of Civil Procedure. Keywords:  Counterclaim.  Opposed, Duplicitous actions.  The new system of Civil Procedure. INTRODUÇÃO Numa ação de conhecimento, em decorrência de sua estrutura, o autor formula pedido (de natureza processual ou imediato e material ou mediato), em face do réu, competindo a esse simplesmente propugnar pela improcedência da ação e ensejando a prolação de uma sentença declaratória negativa. Nada obstante, às vezes a natureza da ação ou a própria lei, licencia o réu a proferir pedido mediato expresso, distinto do pedido estritamente processual que sói formular. Existem três institutos processuais, que ostentam essa característica de contra-ataque do réu, conquanto espécies distintas, quais sejam: a reconvenção, o pedido contraposto e as ações dúplices. Na preleção de Ovídio Baptista (2006, p.299) o processo civil desenvolvese sob a égide do princípio da bilateralidade da audiência (audiatur et altera pars), ou seja, pelo princípio dialético do contraditório. Por essa razão, proposta uma demanda pelo autor, o juiz determina a citação do réu, colocando-o em posição de poder defender-se, e instando-o a fazê-lo, sob pena de arcar com o ônus da defesa e restar submetido aos efeitos da sentença. Em regra, o réu só resiste, “seu pedido tende sempre à rejeição do pedido do autor” (Chiovenda, 1965, p.347), por conseguinte não formula pedido próprio, senão a improcedência da ação. A reconvenção é uma das possíveis defesas do réu caracterizada pelo contra-ataque e necessária em decorrência do caráter de defesa estática da contestação. 290

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O pedido contraposto é, assim como a reconvenção, uma espécie de demanda do réu contra o autor, com cabimento legal mais restrito e formulado na contestação. A duplicidade da ação consiste no fato do réu assumir uma posição ativa na relação processual, ao lhe ser permitido contestar, fazendo com que se confundam, no processo, as posições de autor e réu. A contestação exerce, nessas hipóteses, dupla função: viabiliza ao réu refutar a pretensão do autor e atacá-lo concomitantemente. Os três institutos, reconvenção, ações dúplices e pedido contraposto, guardam similitudes e dessemelhanças. Inobstante, não há na doutrina uma nítida preocupação em delimitar as características diferenciais e conceituais desses institutos, definindo-lhes minuciosamente suas naturezas jurídicas (Figueira Júnior, 1996, p.208). Por conseguinte, é importante delimitar-lhes os conceitos, visto existir ainda algum dissenso doutrinário e até jurisprudencial sobre alguns aspectos desses institutos. Do mesmo modo, são temas atualmente em pauta, vez que o novo sistema de Processo Civil projetado pretende extinguir a reconvenção e ampliar o âmbito de aplicação do pedido contraposto estendendo-o ao procedimento ordinário. 1 RECONVENÇÃO A reconvenção não é um instituto novo na legislação civil brasileira, pois que o Código de Processo Civil de 1939 - Decreto-Lei n. 1608, de 18 de setembro de 1939 – já trazia a reconvenção em seu texto legal, dentre as denominadas defesas do réu. A reconvenção não é ônus do réu é faculdade, e colima economia processual e eficiência do provimento jurisdicional. Observe-se que a revelia do réu na ação principal não o impede de ajuizar reconvenção (Nery Júnior, 2010, p. 613). Disciplinada nos arts. 315 a 318 do Código de Processo Civil vigente, a reconvenção, é um modo de exercício do direito de ação, bem como uma das possíveis respostas do réu (somente o réu pode reconvir), caracterizada pelo contra-ataque. Portanto, citado o réu para defender-se (nos termos do art. 213, CPC), no curso de um processo comum ordinário (art. 315 et seq.), caso pretenda deduzir algum pedido (em regra o réu não formula pedido mediato, somente 291

THEMIS resiste à pretensão do autor), deverá ajuizar ação autônoma de conhecimento (Alvim, 2010, p.807), a reconvenção (salvo em casos excetuados pela lei, exempli gratia, rito sumário e Juizados Especiais). Observe-se que mesmo julgada improcedente a pretensão condenatória do autor e declarada através de uma sentença declaratória negativa, esta não faz coisa julgada positiva em favor do réu. Decorre desse fato, a importância de reconvir. Somente ao deduzir pretensão, ou seja, mediante pedido, a coisa julgada se aperfeiçoa para o réu. Dessa forma, concluído o processo e prolatada a sentença, que lhe seja procedente, o réu obterá um título executivo judicial (nos moldes do art. 475-N, CPC). Em suma, sem pedido não se perfaz a coisa julgada, bem como sem determinação expressa do dever de adimplir obrigação não há executoriedade (Nery Júnior, 2010, p.610). Diversos doutrinadores coadunarem com Chiovenda e asseverarem que, em regra, o réu simplesmente resiste à pretensão do autor. Discorda, entretanto, Didier Júnior (2010, p. 508), e propugna que, conquanto peculiares, vários são os pedidos passíveis de serem formulados pelo réu em sua peça de defesa. Na sequência, elenca pelo menos seis tipos de pedidos, dos quais, um deles pertine ao tema aqui abordado, qual seja: pode o réu arguir pretensão dúplice nas ações dúplices, como ocorre nas ações meramente declaratórias. E aduz poder o réu formular, igualmente, pedido contraposto, nos casos permitidos por lei, no procedimento sumário e nos Juizados Especiais. Inobstante haja dissenso na doutrina, parte considerável dessa entende não ser possível a ampliação subjetiva do processo na reconvenção. Esta deve ser proposta contra autor ou autores originários da ação principal, defeso admissão de terceiros; da mesma forma somente o réu ou réus podem reconvir (Fornaciari, 1983, p. 93; Negrão, 1999, p. 372). Na alocução de Didier (2012, p. 527) a reconvenção é incidente processual, o qual amplia o objeto litigioso do processo, não obstante, não é processo incidente. Portanto, ao ensejar juízo negativo de admissibilidade, é rejeitada de plano, sem a oitiva do autor-reconvindo. Tal decisão, por ter caráter interlocutório, nos termos do art. 162, § 2º do CPC, é contrastável por agravo de instrumento, na conformidade do art. 522, caput, do mesmo diploma legal (Bueno, 2012, p.176). Caracteriza-se, igualmente a reconvenção pela cumulação objetiva ulterior de ações (Marinoni & Arenhart, 2008, p.146). Dessa forma, o processo 292

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é constituído pela ação principal e pela ação reconvencional. Contudo, na conformidade do art. 317, CPC, em virtude de ser a reconvenção uma ação autônoma, extinta a ação principal sem mérito (art. 267, CPC), ou desistindo de intentá-la o autor, nada obsta o prosseguimento da reconvenção (o inverso também é verdadeiro, se o réu-reconvinte desistir da reconvenção, a ação principal prosseguirá seu curso) (Theodoro Jr, 2000. P. 328). Na locução de Dinamarco a extinção da ação principal ou da reconvenção acarreta mera diminuição do objeto do processo, e não sua extinção (2009, p.511). Esse é um traço distintivo entre reconvenção e ação declaratória incidental. Esta, por ser fundada numa questão prejudicial de mérito (conceituada na parte inicial do art. 9º, CPC), guarda dependência com a ação principal, a qual, incidindo em quaisquer das hipóteses do art. 267, CPC ou dela havendo desistência, determinará a extinção da ação declaratória incidental. Na preleção de Moreira (2002, p.45), a ação declaratória incidental proposta pelo réu tem natureza de uma reconvenção meramente declaratória. Além de exigir-se o preenchimento das condições da ação e pressupostos processuais inerentes à propositura de qualquer ação, a reconvenção depreca pressupostos específicos, quais sejam: o juiz da ação principal precisa ter competência plena (em razão da matéria e/ou funcional), para poder conhecer da reconvenção (art. 109, CPC); os procedimentos das duas ações precisam ser compatíveis entre si; demanda existência de processo pendente; exige conexão (art. 103, CPC) entre a reconvenção e ação principal ou algum dos fundamentos da defesa (art. 315, caput). Inobstante, segundo doutrina de Barbosa Moreira (2002, p.45), a conexão do art. 103 e 315 supraditos são distintas. A conexão do art. 315 do CPC é dita instrumental e assenta-se no regime da instrução e no aproveitamento comum dos elementos probatórios. Restringe-se apenas a certa afinidade entre as demandas, não é uma conexão capaz de modificar a competência (Moreira, opere citato). Caso haja incompetência absoluta, não cabe remessa dos autos ao juiz competente (onde não tramita a ação principal) nem extinção do processo, o qual prossegue para exame da demanda principal (Didier, 2012, p.529). Na elocução sobre o tema conexão, explicita Alexandre Câmara (2012, p.340): “quando se trata de conexão entre a reconvenção e a defesa, não se poderia mesmo querer dar à conexão o sentido que lhe atribui o art. 103 do CPC, pelo simples fato de a contestação não ter causa de pedir ou pedido”. 293

THEMIS Quanto à arguição de incompetência relativa, o autor-reconvindo não pode opor exceção de incompetência, pois ele mesmo escolheu o juízo da ação principal e nos termos do art. 109, CPC, a competência para julgar a reconvenção pertence ao juiz da ação principal (Nery Júnior, 2010, p.618). O prazo da reconvenção é mesmo o prazo da resposta. Se contestar e não reconvir simultaneamente, haverá como consequência preclusão consumativa. Por conseguinte, no procedimento ordinário o prazo é de 15 dias (art. 297, CPC); nos procedimentos especiais, o prazo legal para resposta estabelecido em cada procedimento; para réus com procuradores diferentes, o prazo é duplicado (art. 191, CPC); para a Fazenda Pública e Ministério Público o prazo é quadruplicado (art. 188, CPC). A reconvenção, por ser uma ação de conhecimento, ou seja, voltada a uma sentença (Alvim, 2010, p.807) deve ser deduzida em peça autônoma de contestação (art. 299, CPC), sob a forma de petição inicial (arts. 282, 283, CPC). Jurisprudência e parte da doutrina propugnam pela sua admissibilidade, quando proposta em peça única, desde que os dois atos possam ser perfeitamente identificados (Passos, 2001, p. 160). É a primazia do princípio da instrumentalidade das formas (ínsito nos arts. 154, 244 e 249, § 2º, CPC), inspirado no brocardo francês pas de nullité sans grief. Conquanto tenha natureza de ação, na reconvenção o autor-reconvindo (polo passivo da ação) não é citado, é intimado e na pessoa de seu procurador (art. 316, CPC). Em princípio essa intimação produz todos os efeitos do art. 219, CPC, sem necessidade de procuração com poderes especiais (independente da exigência de previsão expressa do art. 38, CPC), pois a regra do art. 316 é mais específica. Outrossim, ainda por ter natureza jurídica de ação, a reconvenção comporta distribuição (art. 253, parágrafo único, CPC), e deve ser dirigida ao juiz da causa principal (dependência funcional sucessiva), o qual ordena ao distribuidor, que proceda ao registro e não à divisão normal de que trata o art. 252, CPC. O ato do juiz, que autoriza essa distribuição da causa por dependência é decisão interlocutória, impugnável por agravo. Igualmente, por tratar-se de ação de conhecimento, devendo ser conexa com a ação principal ou com o fundamento da defesa, descabe reconvenção em execução, pela inexistência de sentença de mérito sobre a lide nesse tipo de processo (Alvim, 2010, p. 807). Esse entendimento não é pacífico na doutrina. Pelo mesmo motivo é descabível a reconvenção na ação cautelar (Nery Júnior, 2010, p.611). 294

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No que tange às possessórias, a jurisprudência nega o cabimento de reconvenção nessas ações. Todavia, Nery Júnior (2010, p.612) entende ser cabível quando o pedido da reconvenção for distinto dos pedidos que já trazem em si duplicidade, quais sejam: o pedido de proteção possessória e o de indenização por perdas e danos do art. 922, CPC. Similarmente, aquilo que pode ser obtido com a simples contestação nas demais ações dúplices, veda a reconvenção, por inexistir interesse processual no ajuizamento da demanda reconvencional (Nery Júnior, 2010, p.614). Em contraponto, se o réu alegar cláusula compromissória, em preliminar de contestação e quiser, ao mesmo tempo, peticionar ao juiz que prolate sentença instituindo a arbitragem e condenando o autor em obrigação de fazer (na consonância do art. 7º da Lei de Arbitragem), poderá ajuizar reconvenção, vez que no caso em comento a contestação não tem caráter dúplice (Nery Júnior, 2010, p.612). Passos (1992, p.315) e Nery Júnior (2010, p. 612) admitem a possibilidade de reconvenção em sede de ação rescisória, desde que ambas colimem rescindir a mesma sentença ou acórdão. Conquanto o CPC se mantenha silente a esse respeito, a doutrina admite a reconventio reconventionis (Passos, 1992, p. 315; Miranda, 1993, p.167). Merece menção o parágrafo único do art. 315 do CPC, cujo teor versa sobre a substituição processual (espécie do gênero legitimação extraordinária estatuída no art. 6º, CPC). Esse dispositivo legal não é aplicável aos casos de representação (representante não é parte). O réu só pode reconvir em face do substituto processual, se seu pedido for alicerçado em pretensão que tenha em face do substituído e se o substituído tiver legitimação extraordinária passiva. Outrossim, se o réu for o substituto processual, só poderá reconvir se sua legitimação extraordinária o autorizar a postular (Didier Júnior, 2010, p.512513). Observe-se, do mesmo modo, que a Lei de Execuções Fiscais (Lei n. 6.830/80), em seu art. 16, § 3º, veda expressamente o uso da reconvenção nas ações de execução fiscal. No que concerne aos procedimentos especiais, se compatíveis os ritos da ação de procedimento especial com o processamento da reconvenção, esta última é perfeitamente admissível. Igualmente se houver conversão do procedimento especial para o rito comum ordinário. Ovídio Baptista (2006, p.309), embora assevere que o Código de 1973 não trata do tema, considera ser possível a propositura de reconvenção pelo 295

THEMIS denunciado em face do denunciante, em consonância com a doutrina italiana. Nery Júnior (2010, p.618) em similar entendimento, afiança que, observados os requisitos legais, o reconvindo pode utilizar-se dos institutos de intervenção de terceiros, em especial denunciação da lide e do chamamento ao processo. Faz, contudo, restrição em relação à nomeação à autoria, de vez que, a relação jurídica se estabeleceria entre o reconvinte e o terceiro, que não seria parte da ação principal. Por total incompatibilidade entre os procedimentos (Nery Júnior, 2010, p. 572), no rito sumário a reconvenção é inadmissível (mesmo após revogação do art. 315, parágrafo 2º, CPC, o qual proibia expressamente a reconvenção no procedimento sumário). Nos Juizados Especiais Cíveis (Lei n 9099/95), o art. 31, caput, veda expressamente a reconvenção; permitido, entretanto, o pedido contraposto. Em se tratando de cumulação de pedidos num mesmo processo, a reconvenção submete-se, em relação às despesas processuais, ao regime jurídico estatuído nos arts. 19 a 33 do Código de Processo Civil, por determinação expressa do artigo 34 do referido diploma legal (Bueno, 2012, p.177). Ressalte-se que na Justiça Federal a reconvenção não se sujeita ao pagamento de custas processuais. No âmbito estadual, cabe à lei estadual de cada ente federativo definir se caberá ou não tal pagamento (Didier, 2012, p.530). Ressalve-se ainda que, se a ação principal for de competência da Justiça Estadual, e a reconvenção de competência da Justiça Federal, incabível será a reconvenção, por força de pressuposto específico de admissibilidade. O art. 318 do CPC obsta o julgamento antecipado da lide, caso a ação principal e a reconvenção não estejam aptas a receber tal julgamento, vez que, por expressa determinação do dispositivo sobredito, as duas ações devem ser julgadas na mesma sentença (Nery Júnior, 2010, p.619). No que pertine ao ônus decorrente da sucumbência na reconvenção, independente do resultado da ação principal, fica essa a encargo daquele que sucumbe na reconvenção. Postas as características principais da reconvenção abordar-se-á o pedido contraposto e, sempre que possível, estabelecendo um paralelo com o instituto anteriormente tratado. 2 PEDIDO CONTRAPOSTO A demanda do réu em face do autor pode ser considerada gênero, o qual comporta duas espécies, a reconvenção e o pedido contraposto. Ambos os 296

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institutos caracterizam-se pela amplitude de cognição judicial que deprecam, bem como estão alicerçados no princípio da economia processual. Assis (2000, p. 14) confere ao pedido contraposto natureza essencialmente reconvencional, por configurar um mero pedido do réu formulado na contestação; arrazoa, entretanto, que o mesmo não é uma ação reconvencional. A doutrina elenca duas características básicas inerentes ao pedido contraposto, prescindir de peça autônoma para ser peticionado, pois é formulado na contestação e ter cabimento legal restrito (verbi gratia, ao rito sumário, aos Juizados Especiais e ações possessórias – art. 922, CPC). Como anteriormente asseverado, a jurisprudência tem admitido a apresentação da reconvenção e contestação em peça única (desde que nessa última haja inequívoco pedido reconvencional), por conseguinte, não pode mais ser considerado traço distintivo do pedido contraposto. No que concerne à amplitude de sua utilização, o novo sistema de Processo Civil projetado, se aprovado, pretende extinguir o instituto reconvenção, ampliando as hipóteses de cabimento do pedido contraposto. Na dicção de Didier (2012, p.532) tanto a reconvenção como o pedido contraposto são conceitos jurídicos-positivos, ou seja, demandam a análise do direito positivo, e seus significados variam de acordo com o momento históricosocial (Garrido, 2006, p. 125-138). Ainda na elocução de Didier (opus citatum) o aspecto peculiar, o qual permite distinguir-se a reconvenção do pedido contraposto é a limitação da cognição. Nos moldes do art. 315, CPC, a lei exige apenas conexão com a ação principal ou com os fundamentos da defesa para a apresentação da reconvenção, não impõe outras restrições. Em relação ao pedido contraposto o legislador é mais severo, pois restringe a causa de pedir remota, exigindo que se balize nos mesmos fatos da causa, ou ainda tipifica que pretensão poderá ser veiculada, como é o caso do art. 922, CPC das ações possessórias. Conclui o autor que pedido contraposto sem limitação cognitiva é reconvenção. Nery Júnior (2010, p.572), assevera ser o pedido contraposto uma forma restrita de reconvenção, cujo critério limitativo encontra-se estatuído no art. 278, parágrafo primeiro. Através do uso do pedido contraposto imprime-se maior celeridade ao processo e maior simplificação ao rito. Nas pegadas das três ondas renovatórias de Capelletti e Brian Garth (1988, passim), a Lei n. 9099/95, Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, 297

THEMIS objetivando facilitar e simplificar o acesso à Justiça adotou um procedimento informal, calcado na oralidade. Nesse contexto procedimental, a reconvenção é vedada (art. 31, Lei n. 9099/95), por total incompatibilidade com a celeridade imposta pela Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Preceitua o texto legal: Art. 31. Não se admitirá a reconvenção. É lícito ao réu, na contestação, formular pedido em seu favor, nos limites do art. 3º desta Lei, desde que fundado nos mesmos fatos que constituem objeto da controvérsia.

Conforme se depreende da exegese do supradito artigo, defesa a reconvenção, pode o réu formular pedido a seu favor, na contestação, tendo como um dos requesitos a adequação à competência do Juizado, por valor da causa e por matéria, sendo-lhe vedado utilizar-se de fatos novos, ou seja, o pedido fica limitado aos fatos narrados pelo autor na petição inicial. Saliente-se que, não se cria relação processual nova com o pedido contraposto, pois não existe ação nova. O pedido contraposto é apresentado na contestação. Diferentemente do que ocorre com a reconvenção, em virtude de não ter autonomia de ação, se houver desistência da ação pelo autor, o juiz não poderá se pronunciar sobre o pedido contraposto. Contudo, é necessário que se estabeleça característica diferencial entre o pedido contraposto, no âmbito do rito sumário (art. 275 e seguintes, CPC) e o pedido contraposto no procedimento dos Juizados Especiais (art. 17, parágrafo único e art. 31, ambos da Lei n. 9099/95). Infere-se do texto expresso do art. 17, parágrafo único da Lei dos Juizados Especiais que a apresentação do pedido contraposto dispensa a contestação formal: Art. 17. Comparecendo inicialmente ambas as partes, instaurar-se-á, desde logo, a sessão de conciliação, dispensados o registro prévio de pedido e a citação. Parágrafo único. Havendo pedidos contrapostos, poderá ser dispensada a contestação formal e ambos serão apreciados na mesma sentença (grifo nosso).

Incoerentemente, o art. 31 do mesmo diploma legal não ratifica tal dispensa, bem diversamente, estabelece que é lícito ao réu formular pedido em 298

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seu favor na contestação. Por conseguinte, o art. 31 supracitado não excetua a regra. Outra temática doutrinária controversa é a admissibilidade ou não de uma pessoa jurídica poder formular pedido contraposto perante os Juizados Especiais Cíveis. Aqueles que refutam essa possibilidade argumentam que se o artigo 8º da Lei n. 9909/95 veda que a pessoa jurídica seja parte nas ações propostas nos Juizados Especiais, não poderia, portanto, ter direito a um contra-ataque (Salomão, 1997, p.12). Em sentido inverso Frigini (2000, p.277) defende que a pessoa jurídica pode formular pedido contraposto nos Juizados Especiais. A corrente de doutrinadores que coadunam com Frigini, argumenta, arrazoada nas jurisprudências recentes, as quais o admite, inclusive se formulado por pessoas jurídicas consideradas de grande porte: PEDIDO CONTRAPOSTO NOS JUIZADOS ESPECIAIS – PESSOA JURÍDICA A Turma admitiu a formulação de pedido contraposto por pessoa jurídica em sede de Juizado Especial. Segundo a Relatora, o recorrente alegou o não cabimento do pedido contraposto visto que a empresa de grande porte não possui capacidade de demandar em sede de Juizados Especiais Cíveis. Nesse cenário, a Julgadora observou que o pedido contraposto é mera pretensão do réu deduzida no processo do autor, sem a instauração de uma relação processual nova, por isso, não se aplica à hipótese a vedação do art. 3º da LJE. Com efeito, a Magistrada afirmou que o artigo 31 da Lei 9.099/1995 preceitua os casos de admissibilidade do pedido contraposto, não havendo porque se restringir as hipóteses de cabimento, haja vista inexistirem fundamentos legais para a citada impossibilidade da pessoa jurídica de formular pedido contraposto em sede de Juizado Especial. Para os Julgadores, em nome da celeridade e economia processual, admite-se o pedido contraposto formulado pela ré, pois, mesmo que a pretensão da pessoa jurídica tivesse sido deduzida perante a justiça comum, como sustenta o recorrente, as ações conexas obrigatoriamente seriam reunidas e julgadas pelo Juizado Especial em razão da competência por prevenção. Dessa forma, o Colegiado concluiu que a empresa de grande porte é parte legítima para formular pedido contraposto nos Juizados Especiais (20120710139785ACJ, Relª. Juíza ISABEL PINTO. Data da Publicação 09/11/2012).

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THEMIS Houve uma mudança jurisprudencial drástica sobre o tema (observese que essa decisão, recentíssima, data de novembro de 2012), pois até pouco tempo, a maioria das decisões era contrária à admissão do pedido contraposto por pessoas jurídicas nos Juizados Especiais Cíveis. Embora haja essa tendência jurisprudencial, ainda é polêmica a questão em comento. Entretanto, esse entendimento adquiriu força desde que foi cristalizado no texto do Enunciado nº 31, durante o Encontro Nacional de Coordenadores de Juizados Especiais do Brasil, em novembro de 2011: “ENUNCIADO nº 31 - É admissível pedido contraposto no caso de ser a parte ré pessoa jurídica”. O referido Enunciado nº 31, antes de 2011, estatuía justamente o oposto, preconizando a inadmissibilidade desse instituto se manejado por pessoa jurídica nos Juizados Especiais Cíveis. Acredita-se que, se o único critério legal para a vedação de demandas nos Juizados é aquele estabelecido no art. 3º da Lei n. 9099/95, negar a formulação de pedido contraposto às pessoas jurídicas seria permitir ao intérprete, numa exegese restritiva, criar vedações inexistentes no texto legal. Além disso, se teleologicamente a Lei n. 9099/95 colima a simplicidade e celeridade processual, para subsumir-se a esses princípios deve ser admitido o pedido contraposto nesses casos. Ressalve-se que, em decorrência do momento de formulação do pedido contraposto ser o da resposta do réu, na contestação, se não exercido no lapso determinado por lei, enseja preclusão temporal. Por isso, já foi alvo de decisão jurisprudencial denegatória a formulação de pedido contraposto em razões de recurso: PEDIDO CONTRAPOSTO. INVOCAÇÃO EM RAZÕES DE RECURSO. VIA INADEQUADA. PRETENSÃO AFASTADA. É intempestivo o pedido contraposto nas razões de recurso. (Rec. 5/96 Pederneiras- SP. Colégio Recursal de Jaú SP, j. 21. 3. 1996, v. u., rel. Juiz Flávio Cunha da Silva).

Em suma, pedido contraposto é um instituto processual simples e vantajoso para imprimir celeridade ao processo. Sob a égide da economia processual deve (como também ocorre com a reconvenção) ser julgado juntamente com a demanda do autor da ação, no mesmo processo, e proferida numa mesma decisão. 300

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Na sequência, aborda-se a terceira espécie de contra-ataque do réu e sempre que necessário fazendo contraponto com as duas espécies anteriores.  3 AÇÕES DÚPLICES Em alguns casos, a natureza do direito material confere caráter dúplice ao pedido de tutela, ou seja, se o juiz julga improcedente a pretensão do autor, automaticamente atribui provimento jurisdicional ao réu. Para entender-se o porquê desse fato, importante se faz analisar algumas premissas. Primeiramente, a contestação é uma defesa estática, significando que o réu ao se defender não pode formular pedido, melhor explicitado, não pode ampliar o objeto do litígio ou Anspruch, a pretensão, o pedido, o mérito (Alvim, 2010, p. 430). Não pode ampliá-lo porque a contestação colima simplesmente elidir e neutralizar a pretensão do autor. Por conseguinte, não pode o réu trazer elementos novos para serem discutidos no Judiciário. Inobstante, quando a relação jurídica estabelecida entre autor e réu é sinalagmática, ela pode ensejar obrigações, a serem adimplidas, por ambas as partes. Nesses casos o direito do réu de além de se defender, contra-atacar não pode ser cerceado. Para esses casos o legislador criou o instituto da reconvenção. Todavia, há situações nas quais a reconvenção não é cabível por total incompatibilidade com o procedimento preconizado para a causa ou porque o réu na contestação parte de uma premissa ativa, fazendo com que as posições de autor e réu no processo se confundam – ambas as partes assumem concomitantemente a posição de autor e réu - (Nery Júnior, 2010, p.1219), nesses casos estabelecemse as ações dúplices. A duplicidade da ação (actio duplex) reside no fato de ser permitido ao réu ao contestar, adotar uma posição ativa no processo; nessas situações a contestação exerce dupla função, possibilita ao réu refutar a pretensão do autor e ao mesmo tempo contra-atacá-lo (Nery Júnior, 2010, p.1209). Segundo Alvim (2010, p.812), são hipóteses clássicas de ações dúplices, as possessórias (artigo 922 do CPC), a ação renovatória de locação (art. 72, caput, c/c art. 52, II da Lei n. 8. 245/91), a prestação de contas (art. 918), a consignação em pagamento (art. 899, § 2º, CPC), os embargos de terceiro e a liquidação de sentença, nas quais já existe autorização legal para formular pedido em sede de contestação. 301

THEMIS Em entendimento da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial nº 1.085.664 - DF (2008/0193684-0), julgado em 03/08/2010, e proferido pelo Ministro Relator Luis Felipe Salomão), ação de guarda de menor detém caráter dúplice, in verbis: 1. As ações dúplices são regidas por normas de direito material, e não por regras de direito processual. 2. Em ação de guarda de filho menor, tanto o pai como a mãe podem perfeitamente exercer de maneira simultânea o direito de ação, sendo que a improcedência do pedido do autor conduz à procedência do pedido de guarda à mãe, restando evidenciada, assim, a natureza dúplice da ação. Por conseguinte, em demandas dessa natureza, é lícito ao réu formular pedido contraposto, independentemente de reconvenção.

Além dos exemplos anteriormente narrados, no procedimento sumário, mais especificamente no art. 278, § 1º, CPC, o legislador conferiu caráter dúplice a essa norma, pois permite ao réu deduzir pedido na contestação, desde que fundado nos fatos trazidos pelo autor na exordial (Nery Júnior, 2010, p.570). No mesmo sentido Alexandre Câmara (1999, p.332). Caso seja a pretensão do réu alicerçada em fatos diversos dos arguidos pelo autor na petição inicial, demandará ação autônoma, conquanto conexa (nos termos do art. 105, CPC). Didier Júnior (2012, p. 189) atribui dois significados às ações dúplices: processual e material. Uma ação dúplice tem caráter processual, sempre que o procedimento permitir que o réu formule demanda contra o autor dentro da própria contestação, ou seja, nesse sentido, ação dúplice é sinônimo de pedido contraposto. Em sentido material, uma ação é dúplice, quando os litigantes assumem concomitantemente os dois polos da demanda, não se podendo falar em autor e réu. É a natureza da pretensão deduzida em Juízo que determina essa condição dos litigantes. Independente do polo ocupado na demanda, a discussão judicial atribuirá o bem da vida a um dos litigantes. A mera defesa do réu implica no exercício de pretensão (sem necessidade de pedido por parte do sujeito passivo), porquanto a sua pretensão já se encontra inserida no objeto do processo com a formulação do autor. São exemplos de ações dúplices de caráter material, segundo a classificação de Didier Júnior, todas as ações meramente declaratórias, visto 302

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que a decisão prolatada, obrigatoriamente, implicará na afirmação ou negação do direito que se quer ver declarado. Ressalte-se que, embora as ações meramente declaratórias sejam ações dúplices ou ambivalentes, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal (Súmula n. 258), o réu não pode reconvir para peticionar a negação do pedido do autor, mas pode fazê-lo para formular outra pretensão (Moreira, 2002, p. 45). Outra peculiaridade que merece destaque é que nas ações dúplices, a formulação de pedido é dispensada, visto que prolatada a sentença de improcedência, inevitavelmente, importará ao réu a obtenção do bem da vida objeto da demanda. CONCLUSÃO Os três institutos são formas de contra-ataque do réu. A reconvenção é um instituto distinto do pedido contraposto e da ação dúplice, pois depreca propositura de ação autônoma pelo réu, face ao autor, na forma de petição inicial e incidentalmente. Caracteriza-se, do mesmo modo, pela cumulação objetiva de ações, dessa forma, o processo é constituído pela ação principal e pela ação reconvencional. Embora ao pedido contraposto seja atribuída natureza reconvencional, os pressupostos específicos e os procedimentos da reconvenção e do pedido contraposto são diferentes. A diferença basilar entre reconvenção e pedido contraposto pode ser considerada meramente topográfica, dito de outra forma, a reconvenção é uma peça autônoma, extrínseca (conquanto conexa) à contestação e o pedido contraposto um tópico dentro da contestação. Ambos, reconvenção e pedido contraposto, modos de exercício do direito de ação, são necessários em virtude do caráter de defesa estática da contestação. No pedido contraposto há apenas uma relação processual, na reconvenção existem duas ações autônomas. Na prática, o caráter acessório do pedido contraposto simplifica o procedimento, diminui a necessidade da propositura de outra ação (requerida quando necessário reconvir), e imprime um pouco mais de celeridade ao processo. Observe-se que não se admite a reconvenção (baseando-se na carência de ação, por falta de interesse processual), quando o resultado prático colimado através da reconvenção, puder ser alcançado por meio da contestação (conforme 303

THEMIS ocorre nas ações dúplices) ou por intermédio do pedido contraposto (Didier, 2012, p.530). Em alguns casos a natureza do direito material confere caráter dúplice ao pedido de tutela, ou seja, se o juiz julgar improcedente a pretensão do autor, automaticamente atribuirá provimento jurisdicional ao réu. Por isso, quando a contestação do réu parte de uma premissa ativa, a reconvenção não é permitida. Igualmente é defesa a reconvenção, nos casos do rito sumário (segundo doutrina majoritária) e Juizados Especiais (art. 31, Lei n. 9099/95), por total incompatibilidade entre os procedimentos. Os ritos da ação principal e da reconvenção precisam ser compatíveis, porque ambas são processadas juntas, simultaneus processus (Nery, 2010, p.610), para que o juiz resolva-as numa mesma sentença (art. 318, CPC). No caso em comento aplica-se, por analogia o art. 292, § 1º, inciso III, CPC, o qual exige a compatibilidade dos ritos como requisito para a cumulação de pedidos (Didier, 2012, p.529). Ressalve-se que o novo sistema de Processo Civil projetado, com objetivo de adequar-se ao princípio da economia processual, prevê a extinção da reconvenção, como ação autônoma no procedimento ordinário (art. 315 a 318, do CPC vigente), sendo substituída pelo instituto denominado pedido contraposto (artigo 326, §§ 1º e 2º do Projeto de Lei n. 166/2010, com alterações do Relatóriogeral do Senado), atualmente adstrito ao rito sumário e Juizados Especiais. Se aprovado esse projeto do novo CPC, nos termos em que se encontra disciplinado, o pedido contraposto passará a ser manejado no procedimento ordinário. De forma similar, pode-se inferir do texto do artigo 326 do projeto do novo CPC que a natureza dúplice, da ação dúplice, passará a ser a regra geral. Além disso, o § 2º do supradito artigo confere autonomia ao pedido contraposto (análoga a autonomia que atualmente possui a reconvenção e adversa às disposições atuais para o pedido contraposto), ou seja, se a ação principal for extinta, o processo prosseguirá para que se julgue o pedido contraposto (on line, 2013). Contrariamente, entende Didier (2012, p. 532) que a reconvenção não será extinta no novo CPC, pois o regramento continuará o mesmo, e seu objeto não será nem ampliado nem restringido, portanto haverá apenas a mudança do nomen iuris do instituto reconvenção por pedido contraposto, instituto já existente, porém com significado diverso. Na prática forense, essa simplificação procedimental (a qual consagra a instrumentalidade processual), certamente, imprime maior economia ao processo, pela inexigibilidade de ação paralela à principal para formular pedido 304

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na contestação do procedimento ordinário, tendo como corolário um processo mais simples e, talvez, mais célere. REFERÊNCIAS ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. ASSIS, Arnoldo Camanho de. Juizados Especiais Cíveis: Pedido Contraposto Formulado por Pessoa Jurídica. Brasília: Revista dos Juizados Especiais: Doutrina e Jurisprudência, n.4, v.8, p. 13-16, jan/jun 2000.  BUENO, Cássio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil: procedimento comum: ordinário e sumário. São Paulo: Saraiva, 2012. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris,1999. _________. Lições de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: LUMEN, 2012. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor - SAFE, 1988. CHIOVENDA, Guiseppe. Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1965. DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. Salvador: JusPodivm, 2010. __________. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: JusPodivm, 2012. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, 2009. FIGUEIRA JR., Joel Dias. O Novo Procedimento Sumário. São Paulo: RT, 1996. 305

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A RELEITURA DO MANDADO DE INJUNÇÃO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Karine Goiana Santos

Bacharela em Direito pela Universidade de Fortaleza, Analista judiciária do TRE-CE, Aluna do curso de especialização em Direito e Processo Adminsitrativo da UNIFOR.

RESUMO: Até o advento da Constituição de 1988, não havia no ordenamento jurídico brasileiro um instrumento que pressionasse o poder público no sentido de elaborar normas que viabilizassem direitos assegurados na Constituição. Com essa missão, foi criado o instituto do Mandado de Injunção, consagrado no art. 5º, inciso LXXI, da Constituição Federal de 1988. Esse artigo tem por fim analisar a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no que tange aos efeitos do Mandado de Injunção, com destaque para um grande avanço no seu entendimento em relação à aplicação deste instrumento jurídico. A partir de 2007, após infrutíferas ações no sentido de comunicar ao poder legislativo da ausência de normas, passou o STF a efetivar o direito pendente de regulamentação por meio de suas decisões. Além disso, foram definidos outros objetivos específicos, a saber: identificar a origem desse remédio constitucional e as influências que possa ter recebido do direito alienígena, assim como sua trajetória no Congresso Constituinte até sua inserção na Carta Magna de 1988. Como procedimento metodológico, empregou-se exclusivamente a pesquisa do tipo bibliográfica. Ao final, chegou-se à conclusão de que é digno de reconhecimento o atual posicionamento do STF, no sentido de adotar a teoria concretista em suas decisões. Além disso, concluiu-se também que, entre as correntes concretistas, a individual intermediária se mostra como a mais prudente de todas. Palavras-chave: Controle de Constitucionalidade. Mandado de Injunção. Supremo Tribunal Federal. ABSTRACT: Prior to 1988 Constitution there was not in the brazilian legal system an instrument which pressured public power to develop laws which made possible protection to rights assured by the Constitution. The Writ of Injunction instrument was with this aim created, in art. 5º, LXXI, of 1988 Federal Constitution. This article intends to analyze Brazilian Supreme Court’s 309

THEMIS position related to the Writ of Injunction effects, specially in what concerns to the development of the comprehension related to its applicability. Since 2007, after some actions with the aim of communicating the legislative the lack of specific laws, the Supreme Court made effective the right which was to be still regulated. Besides that, other specific objectives were defined, such as: to identify the origin of this constitutional remedy and the influence that it might have received from foreign laws, as well as its course into the Constituent Congress, up to its appearance in 1988 Federal Constitution. As a methodological procedure, exclusively bibliographic research was applied. It was concluded that currently Supreme Court adopted the concrete theory in its decisions. It was found that among concrete theories, the individual intermediate one shows itself to be the most prudent of all. Keywords: Judicial Review. Writ of Injunction. Brazilian Supreme Court. INTRODUÇÃO Segundo a clássica teoria da tripartição dos poderes, cabe ao Legislativo a função de criar normas gerais e abstratas; ao Executivo, de resolver os problemas concretos e individualizados, de acordo com as leis; e ao Judiciário, de se pronunciar no caso concreto, resolvendo conflitos tanto entre particulares quanto entre esses e o Estado (SILVA, 2008, p. 108). Para evitar a supremacia de um dos poderes sobre os demais e manter a harmonia necessária entre eles, existe o sistema de freios e contrapesos, de acordo com o qual um poder interfere na atuação do outro, através de mecanismos eficazes de controle (SILVA, 2008, p. 110). A Constituição Federal consagrou como direito fundamental a impossibilidade da lei excluir lesão ou ameaça a direito da apreciação do Poder Judiciário (v. art. 5º, XXXV, CF). Contudo, muitos direitos constitucionalmente assegurados, como o direito de greve do servidor público e a aposentadoria especial, apesar de previstos constitucionalmente (v. arts. 37, VII, e 40, § 4º, CF) careciam de regulamentação, impossibilitando ao Judiciário apreciar demandas nesse sentido e de garantir a tutela desses interesses. O instrumento criado para suprir tal omissão legislativa é o mandado de injunção, que até 2007 tinha sua utilização mitigada diante da negligência do poder público em elaborar a norma regulamentadora, uma vez que prevalecia a posição não-concretista na jurisprudência do STF, segundo a qual o tribunal nem 310

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poderia “obrigar o legislativo a legislar”, nem tampouco atuar como “legislador positivo”. O Supremo Tribunal Federal, considerando a necessidade premente de uma prestação jurisdicional efetiva, passou a revisar seu posicionamento perante a eficácia do mandado de injunção, de forma a viabilizar uma tutela efetiva dos direitos fundamentais prejudicados pelo descaso legislativo. 1 O MANDADO DE INJUNÇÃO E SUA FORMULAÇÃO CONSTITUCIONAL: SUAS RAÍZES E PERSPECTIVAS Ao iniciar-se o estudo de um instituto, devem-se buscar suas origens para uma melhor compreensão de sua natureza e evolução. Entender as possíveis fontes estrangeiras deste instituto permite que se verifiquem os valores que nortearam os constituintes na sua formulação. Ademais, é relevante também percorrer sua trajetória, desde o Congresso Constituinte de 1988 até a redação final, como forma de conhecer seu processo de formação. 1.1 No Direito comparado 1.1.1 Direito português A Constituição Portuguesa prevê um instituto que se assemelha com a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (v. art. 283º, Constituição Portuguesa – on line), prevista no ordenamento jurídico pátrio. Trata-se de um instrumento que tem como objetivo dar conhecimento ao órgão legislativo competente da ausência de norma constitucional, a fim de que esta norma seja editada. Conforme Ackel Filho (1991, p. 115), não se refere a um caso específico, mas alcança a norma em tese, devendo esta ser elaborada e assim beneficiando a todos. 1.1.2 Direito italiano Na Itália, existe a ingiunzione na seara processual e a ingiunzione fiscale em matéria tributária. O objetivo desse instituto é obter uma decisão condenatória de forma mais simples que no processo ordinário. No caso dos 311

THEMIS créditos tributários, por exemplo, é uma forma de consegui-los sem recorrer ao título executivo. Assemelha-se à ação monitória no Direito brasileiro, não guardando maior proximidade com o mandado de injunção adotado na CF/88 (MACHADO, 2004, p. 53-54). 1.1.3 Direito francês A injunção francesa (injonction) refere-se a ordens dirigidas pelos magistrados àqueles que dificultarem o andamento do processo, tais como partes, advogados, auxiliares da justiça e até terceiros. Através desse instrumento, também podem-se cobrar pequenos créditos civis e comerciais dentro de um processo mais simples, tal como no Direito italiano, através do procedimento monitório (MACHADO, 2004, p. 54-55). 1.1.4 Direito alemão O Direito alemão, por sua vez, reconhece a verfassungsbeschwerde. Machado (2004, p. 55) explicita que este instituto é empregado quando o Tribunal Constitucional decide sobre a pretensão de ter sido o cidadão prejudicado pelo poder público em seus direitos fundamentais ou em direitos constitucionais, desde que não haja meio processual ordinário de proteção. A propósito, o Ministro Moreira Alves, em seu voto na Questão de Ordem no MI nº 107/DF (on line), ressaltou que a Corte Constitucional Alemã vem admitindo a utilização da verfassungsbeschwerde contra a omissão constitucional do Legislativo. 1.1.5 Direito anglo-americano A injunção no Direito inglês é ação de equidade (equity). Surgiu no século XIV e era utilizada quando faltava norma legal (statutes) para regular o direito no caso concreto (BULOS, 2009, p. 647). O writ of injunction no Direito norte-americano também tem como fundamento a chamada jurisdição de equidade. Aplica-se sempre quando a norma legal se mostra insuficiente ou incompleta para solucionar, com justiça, determinado caso (ACKEL FILHO, 1991, p. 113). 312

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1.2 No Congresso Constituinte da Constituição Federal de 1988 1.2.1 Propostas O atual mandado de injunção teve sua origem nas sugestões nºs 155-4 e 156-2 do Senador Virgílio Távora, em parceria com o Deputado Carlos Virgílio, que apresentaram duas propostas para o mandado de injunção na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988. Machado (2004, p. 147-150) apresenta os textos dessas sugestões ofertadas no Congresso Constituinte. Na Sugestão nº 155-4, propôs-se o mandado de injunção, originalmente, com a seguinte redação: Inclua-se no Capítulo dos Direitos e Garantias Constitucionais. ‘Art. Sempre que se caracterizar a inconstitucionalidade por omissão, conceder-se-á mandado de injunção, observado o rito processual estabelecido para o mandado de segurança.’ Justificação Visando efetivar a produção de direitos públicos subjetivos criados, de forma genérica, pela Constituição, os quais, se não implementados pelos poderes constituídos, mediante a edição de atos e normas integrativas da Carta Magna, ensejarão a inconstitucionalidade por omissão, submetemos à apreciação da Comissão Temática pertinente a previsão normativa do instituto processual que denominamos ‘mandado de injunção’, como garantia constitucional. [...]

Nossa sugestão normativa, a ser incluída nas Disposições Gerais e Transitórias, está vazada nos seguintes termos: ‘A não edição de atos ou normas pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, visando a implementar esta Constituição, implica a inconstitucionalidade por omissão.’ A essa previsão normativa nós aditamos a presente sugestão de norma constitucional que tem por escopo efetivá-la.

A Sugestão nº 156-2 dispunha o seguinte: Inclua-se no Título Disposições Gerais e Transitórias. ‘Art. A não-edição de atos ou normas pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, visando implementar esta Constituição, 313

THEMIS implica a inconstitucionalidade por omissão.’ Justificação [...] Refletindo essa preocupação com a não-implementação da Constituição – o que revela um descumprimento dos mandamentos constitucionais – e inspirando-nos no exemplo do Estatuto Maior português (art. 283), conferindo-lhe, porém, uma abrangência maior, submetemos à apreciação da Assembléia Nacional Constituinte sugestão de norma constitucional criando o instituto jurídico da “inconstitucionalidade por omissão”, voltado para a proteção dos direitos públicos subjetivos (ou expectativas de direito) de pessoas físicas ou jurídicas, criados de forma genérica pela Constituição e não implementados por inércia, quer do Poder Legislativo, quer do Poder Executivo, quer do Poder Judiciário. [...] Enveredando por esse raciocínio, oferecemos uma outra sugestão de norma constitucional, que a esta complementa e desta é desmembrada, porque diz respeito a outro Capítulo da Constituição, devendo, pois, ser encaminhada à apreciação da Comissão de Temática pertinente. Nessa sugestão de norma constitucional, fazemos incluir, no Capítulo ‘Dos Direitos e Garantias Constitucionais’, o artigo que transcrevemos infra: ‘Art. Sempre que se caracterizar a inconstitucionalidade por omissão, conceder-se-á mandado de injunção, observado o rito processual estabelecido para o mandado de segurança.’ Com essas iniciativas, pretendemos pôr fim à inércia dos poderes constituídos, que só prejudicam a sociedade, oferecendo o remédio jurídico-constitucional para coibi-la, qual seja o ‘mandado de injunção’.

Vistas as propostas de redação, convém analisar o processo de discussão destas propostas. 1.2.2 Discussão A origem do instituto brasileiro do mandado de injunção não é pacífica entre os doutrinadores. Alguns entendem que ele se originou a partir do juízo de equidade inglês (SILVA, 2008, p. 448), como já visto, havendo quem indique ainda a injunction norte-americana como raiz deste remédio constitucional, apesar de se reconhecer o caráter mais abrangente do instituto americano (ACKEL FILHO, 1991, p. 115). Em ambos os casos, é comum o fato de serem utilizados para 314

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solucionar o caso concreto ante a falta de norma legal, observando o mesmo intuito do mandado de injunção brasileiro. Outros defendem, como Carlos Mário da Silva Velloso e Adhemar Ferreira Maciel (MACHADO, 2004, p. 56), que ele teve inspiração no Direito português, uma vez que, expressamente, Virgílio Távora e Carlos Virgílio mencionam, em sua justificativa para inserção do instituto no texto constitucional, o art. 283º, nº 2, da Constituição Portuguesa (on line), que preceitua: “Quando o Tribunal Constitucional verificar a existência de inconstitucionalidade por omissão, dará disso conhecimento ao órgão legislativo competente”.Tal entendimento deve ser apreciado com cautela, pois este instituto mais se aproxima da ADIN por omissão do que do mandado de injunção. Há ainda os defensores, como Marcelo Duarte (MACHADO, 2004, p. 55), da proximidade do mandado de injunção com a verfassungsbeschwerde do Direito alemão, no que tange à salvaguarda dos direitos fundamentais do cidadão frente à inércia do poder público que lhe prejudique. Entretanto, Machado (2004, p. 56) afirma que o mandado de injunção e o instrumento alemão são institutos com contornos próprios, apesar de serem passíveis de utilização diante de situação de inércia legiferante. Do exposto, pode-se afirmar que não existe entendimento consolidado no que concerne à origem do mandado de injunção brasileiro. Da forma como esse remédio constitucional foi concebido, não existe nada igual no Direito alienígena. Contudo, a questão ainda é polêmica, haja vista que alguns doutrinadores atribuem aos direitos anglo-americano, como Diomar Ackel Filho (1991, p. 115), e português, como Adhemar Ferreira Maciel (MACHADO, 2004, p. 56), a fonte de inspiração para o writ em estudo, identificando entre eles algumas similaridades. 1.2.3 Redação Findos os trabalhos do Congresso Constituinte e com a promulgação da Constituição Federal de 1988, surgiu uma nova figura no Direito brasileiro, criada com o objetivo de dar efetividade às normas constitucionais: o mandado de Injunção, insculpido no art. 5º, inciso LXXI, da Carta Magna de 1988: “Concederse-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”. 315

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1.3 A acolhida do instituto no judiciário brasileiro Segundo Bulos (2009, p. 647), o mandado de injunção tem a natureza de uma ação civil, de caráter mandamental e procedimento específico, destinado a combater a “síndrome da inefetividade das constituições”. Extraem-se do texto constitucional dois requisitos para que se assegure a injunção: um direito garantido constitucionalmente e a impossibilidade de efetivá-lo, haja vista a inexistência de norma regulamentadora. O mandado será interposto pelo detentor do direito que se encontra impossibilitado de exercê-lo em face da omissão legislativa, em detrimento do órgão responsável pela edição da norma inexistente. Logo após a criação do mandado de injunção brasileiro, discutiu-se a auto-aplicabilidade do instituto, inclusive havendo quem levantasse a hipótese que se deveria usar um mandado de injunção para regulamentar o mandado de injunção. Na verdade, quando se trata de instrumento de tutela de direitos fundamentais, é conveniente que não se regule com precisão o modo de se proceder em juízo, uma vez que não deve possuir prévia programação normativa, já que deve estar pronto para enfrentar situações imprevisíveis (GUERRA FILHO, 2007, p. 164-165). A discussão sobre a autoaplicabilidade do instituto perdeu o sentido por força do art. 24, parágrafo único, da Lei nº 8.038/90, que dispõe: “No mandado de injunção e no habeas data, serão observadas, no que couber, as normas do mandado de segurança, enquanto não editada legislação específica”. Quanto ao procedimento do mandado de injunção, o STF já se manifestou sobre o assunto no MI-QO nº 107/DF (on line), decidindo que é norma autoaplicável, independentemente de edição de lei que o regulamente, em face do art. 5º, §1º, da CF, que determina que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Entende ainda a Suprema Corte que o mandado de injunção não comporta a concessão de medida liminar (v. MI nº 536/MG – on line), mas a doutrina diverge desta interpretação, haja vista a possibilidade de liminar no mandado de segurança. (BULOS, 2009, p. 652). Destaque-se, por oportuno, que é da competência do Supremo Tribunal Federal processar e julgar originariamente o mandado de injunção quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição do Presidente da República, 316

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do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Mesas de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da União, de um dos Tribunais Superiores, ou do próprio Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, “q”, da CF). Caberá também ao STF julgar em recurso ordinário o mandado de injunção decidido em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão (art. 102, II, “a”, da CF). Obedecendo ao princípio da simetria, cabe ao Superior Tribunal de Justiça processar e julgar originariamente o mandado de injunção quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição de órgão, entidade ou autoridade federal, da administração direta ou indireta, excetuados os casos de competência do Supremo Tribunal Federal e dos órgãos da Justiça Militar, da Justiça Eleitoral, da Justiça do Trabalho e da Justiça Federal (art. 105, I, “h”, da CF). 1.3.1 Expectativas e críticas O mandado de injunção foi recebido com largas expectativas pelos operadores do Direito, quando da promulgação da Constituição de 1988. Acreditava-se que esse instrumento jurídico novo seria utilizado para a garantia de direitos já previstos na Constituição, porém tidos como ineficazes, dada a ausência de sua regulamentação. Todavia, com o passar dos anos, tal percepção foi aviltada, passando a ser de descrédito e até de revolta, considerando as posições adotadas pelo STF, que tornaram ineficaz o instituto. Bulos (2009, p. 646) assim se expressou quanto ao mandado de injunção: “Transcorridos vários anos de vigência da Carta de Outubro, o mandado de injunção frustrou as inúmeras expectativas criadas ao seu derredor”. No que tange à questão da efetividade e abrangência do mandado de injunção, emergiram três correntes doutrinárias para solucionar essa divergência: a restritiva, a intermediária e a abrangente. A corrente restritiva diminui consideravelmente a incidência do mandado de injunção e é defendida por Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Este ressalta que o writ alcança tão-somente os direitos que possam advir da condição de nacional e de cidadão, isto é, entende que a norma constitucional especificou expressamente seu objeto (MACHADO, 2004, p. 70). 317

THEMIS A corrente intermediária é defendida por Celso Ribeiro Bastos e J. J. Calmon de Passos. Para essa linha de pensamento, a tutela do mandado de injunção somente alcança os direitos consagrados no Título II da Constituição (Direitos Individuais e Coletivos, Direitos Sociais, Direitos à Nacionalidade e Direitos Políticos) (MACHADO, 2004, p. 71). Já a corrente abrangente não limita o campo de incidência do mandado de injunção; pelo contrário, este deve ser interpretado da forma mais abrangente possível. Todos os direitos consagrados na Constituição merecem a tutela do mandado de injunção, desde que ausente norma reguladora desse direito. Daí conclui-se que somente as normas autoaplicáveis não estão sob a égide protetiva do mandado de injunção. Nesse diapasão, Machado (2004, p. 73) assevera: Ora, percebe-se que o legislador constituinte, ao utilizar as expressões nacionalidade, soberania e cidadania, assim o fez, ligando-as tãosomente ao termo prerrogativas. A conjunção aditiva e (ressaltada no parágrafo anterior) separa de um lado ‘DIREITOS E LIBERDADES’ e de outro ‘PRERROGATIVAS’. Foi um reforço de abrangência.

E leciona: “Seu objetivo, portanto, é assegurar o exercício de qualquer direito ou liberdade constitucional” (MACHADO, 2004, p. 73). É importante ressaltar que a corrente restritiva não encontra mais abrigo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. O STF mudou seu entendimento e vem adotando há bastante tempo a corrente abrangente (v. MI-QO nº 107/DF - on line). 2 A EFICÁCIA DO MANDADO DE INJUNÇÃO Um tema bastante controverso na doutrina e na jurisprudência diz respeito à eficácia da decisão proferida em mandado de injunção. Com a promulgação da Constituição Federal, formaram-se algumas correntes jurídicas a esse respeito. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, saindo de uma posição inicialmente tímida e pouco eficaz, vem mudando seu entendimento e adotando uma postura mais assertiva quanto aos efeitos do writ, a fim de que este tenha de fato consequências práticas. 318

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2.1 Posições acerca da eficácia da decisão no mandado de injunção Os efeitos do mandado de injunção são classificados em duas grandes correntes: a posição concretista e a posição não-concretista (MORAES, 2008, p. 175). Na posição concretista, o Poder Judiciário, através de uma ação de cognição constitutiva, declara a existência de uma omissão administrativa ou legislativa, e implementa o exercício do direito, liberdade ou prerrogativa, até que sobrevenha regulamentação do poder competente (MORAES, 2008, p. 175-176). Essa posição subdivide-se em duas espécies: concretista geral e concretista individual. (MORAES, 2008, p. 176). Na concretista geral, a decisão do Poder Judiciário terá efeito geral (eficácia erga omnes), possibilitando a concretização do exercício do direito a todos, até que a omissão seja suprida pelo poder competente (MORAES, 2008, p. 176). Na concretista individual, a decisão do Poder Judiciário terá efeito somente para o autor do mandado de injunção (eficácia inter partes), possibilitando o exercício do direito somente para aquele que compõe a relação processual (MORAES, 2008, p. 176). Essa posição concretista individual, ao seu turno, subdivide-se em duas espécies: concretista individual direta e concretista individual intermediária (MORAES, 2008, p. 176). Na concretista individual direta, o Poder Judiciário, ao julgar procedente o mandado de injunção, implementa imediatamente a eficácia da norma constitucional para o autor da ação (MORAES, 2008, p. 176). Os efeitos da decisão limitam-se às partes e ao processo. Por sua vez, na posição concretista individual intermediária, o Poder Judiciário, ao julgar procedente o mandado de injunção, dá ciência ao Poder Legislativo ou Executivo, fixando-lhe um prazo para a elaboração da norma regulamentadora. Se, após o término desse prazo, não houver nenhuma providência por parte do órgão omisso, o impetrante do writ passa a ter assegurado o seu direito (MORAES, 2008, p. 176-177). Por fim, na corrente não-concretista, o Poder Judiciário apenas reconhece formalmente a inércia do poder omisso e dá ciência a este da sua decisão para que edite a norma faltante (MORAES, 2008, p. 178). Fundamentada no princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF), essa corrente entende que não deverá 319

THEMIS o Poder Judiciário suprir a lacuna, nem tampouco obrigar o poder competente a legislar, apenas apontar a omissão, recomendando o seu suprimento. 2.2 Posições jurisprudenciais do STF A jurisprudência tradicional do STF acatava a teoria não-concretista, a qual defende que cabe ao Poder Judiciário apenas o reconhecimento formal da inércia legislativa. Esse entendimento predominou, majoritariamente, por muitos anos no âmbito da Suprema Corte (v. MI’s nºs 535-4/DF e 586-5/RJ - on line). Em consequência, somente se expedia comunicação ao órgão competente, para elaboração da norma inexistente, com a alegativa de não ingerência entre os poderes. Essa posição recebeu várias críticas no sentido de equiparar os efeitos do mandado de injunção ao da ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º, da CF), uma vez que se utilizava de dois instrumentos para cientificar o poder competente de sua inércia e de nenhum para efetivar o direito em questão. De maneira excepcional, o STF adotou também a teoria concretista individual intermediária. Exemplo disso está no julgamento do MI nº 232/RJ, rel. Ministro Moreira Alves, em 02/08/1991. Nessa ação, um centro de cultura pleiteou o direito previsto no art. 195, § 7º, da CF. Esse dispositivo autoriza, desde que atendidas às exigências previstas em lei, isenção de contribuição para a seguridade social às entidades beneficentes de assistência social. Como a norma regulamentadora não havia sido elaborada, o impetrante não podia exercer o seu direito, muito embora houvesse prazo constitucionalmente fixado para a edição da norma no art. 59 do ADCT. Diante disso, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, conheceu em parte o mandado de injunção, conforme jurisprudência transcrita abaixo: Mandado de injunção. - Legitimidade ativa da requerente para impetrar mandado de injunção por falta de regulamentação do disposto no par. 7. do artigo 195 da Constituição Federal. Ocorrencia, no caso, em face do disposto no artigo 59 do ADCT, de mora, por parte do Congresso, na regulamentação daquele preceito constitucional. Mandado de injunção conhecido, em parte, 320

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e, nessa parte, deferido para declarar-se o estado de mora em que se encontra o Congresso Nacional, a fim de que, no prazo de seis meses, adote ele as providencias legislativas que se impoem para o cumprimento da obrigação de legislar decorrente do artigo 195, par. 7., da Constituição, sob pena de, vencido esse prazo sem que essa obrigação se cumpra, passar o requerente a gozar da imunidade requerida. (on line)

Atualmente, o STF vem acolhendo a teoria concretista geral em suas decisões, como se verifica nas decisões dos MI nºs 670/ES (transcrito abaixo), 708/DF e 712/PA, referentes ao direito de greve dos servidores públicos civis: MANDADO DE INJUNÇÃO. GARANTIA FUNDAMENTAL (CF, ART. 5º, INCISO LXXI). DIREITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS (CF, ART. 37, INCISO VII). EVOLUÇÃO DO TEMA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). DEFINIÇÃO DOS PARÂMETROS DE COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL PARA APRECIAÇÃO NO ÂMBITO DA JUSTIÇA FEDERAL E DA JUSTIÇA ESTADUAL ATÉ A EDIÇÃO DA LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA PERTINENTE, NOS TERMOS DO ART. 37, VII, DA CF. EM OBSERVÂNCIA AOS DITAMES DA SEGURANÇA JURÍDICA E À EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL NA INTERPRETAÇÃO DA OMISSÃO LEGISLATIVA SOBRE O DIREITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS, FIXAÇÃO DO PRAZO DE 60 (SESSENTA) DIAS PARA QUE O CONGRESSO NACIONAL LEGISLE SOBRE A MATÉRIA. MANDADO DE INJUNÇÃO DEFERIDO PARA DETERMINAR A APLICAÇÃO DAS LEIS Nos 7.701/1988 E 7.783/1989. 1. SINAIS DE EVOLUÇÃO DA GARANTIA FUNDAMENTAL DO MANDADO DE INJUNÇÃO NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF) (on line)

Verifica-se, nesse julgado, a estipulação de prazo para que o Congresso Nacional legisle sobre matéria omissa, e a aplicação do disposto nas Leis nº 7.701/88 e 7.783/89, que tratam da greve no âmbito da iniciativa privada. O STF reconheceu que não se presta, quando se trata da apreciação de mandados de injunção, a emitir decisões desnutridas de eficácia. Observa-se também a teoria concretista individual direta em algumas decisões, como no MI nº 721/DF:

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THEMIS MANDADO DE INJUNÇÃO - NATUREZA. Conforme disposto no inciso LXXI do artigo 5º da Constituição Federal, concederse-á mandado de injunção quando necessário ao exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Há ação mandamental e não simplesmente declaratória de omissão. A carga de declaração não é objeto da impetração, mas premissa da ordem a ser formalizada. MANDADO DE INJUNÇÃO - DECISÃO - BALIZAS. Tratando-se de processo subjetivo, a decisão possui eficácia considerada a relação jurídica nele revelada. APOSENTADORIA - TRABALHO EM CONDIÇÕES ESPECIAIS - PREJUÍZO À SAÚDE DO SERVIDOR - INEXISTÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR - ARTIGO 40, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Inexistente a disciplina específica da aposentadoria especial do servidor, impõe-se a adoção, via pronunciamento judicial, daquela própria aos trabalhadores em geral - artigo 57, § 1º, da Lei nº 8.213/91 (on line).

No caso, como não se tratava de uma demanda coletiva, o direito foi efetivado apenas para o requerente, de forma temporária, até que seja editada a lei complementar prevista, estipulando as balizas do exercício do direito assegurado constitucionalmente. O STF considerou que a inércia do Legislativo desconfigurou o caráter instrumental, transformando-o em mandamental, inserindo o mandado de injunção no cenário jurídico-constitucional, com o fim de tornar exequível a Lei Maior, tal como apontado no voto do Ministro Marco Aurélio Mello, relator do presente caso (on line). 3 A MUDANÇA DE ORIENTAÇÃO DO STF QUANTO À EFICÁCIA DO MANDADO DE INJUNÇÃO E SEU CONTEXTO O sistema democrático brasileiro é baseado na harmonia e igualdade entre as funções executiva, legislativa e judiciária, as quais são desempenhadas precipuamente pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Com o escopo de manter a ordem e evitar excessos dos poderes no desempenho de suas funções, há previsão de um sistema de freios e contrapesos na própria Constituição, possibilitando uma interferência legítima de um poder sobre o outro (SILVA, 2008, p. 110). Dessa forma, há uma infiltração entre o aspecto político e a função jurisdicional, desde a nomeação dos membros que compõe a alta cúpula do 322

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Judiciário, feita pelo Executivo e corroborada pelo Legislativo, até decisões do Judiciário alterando a aplicação das leis. Destarte, verifica-se o fenômeno da judicialização da política (TATE; VALLINDER, 1995, p. 2 e 5). 3.1 A judicialização da política e o STF Entende-se por judicialização da política o processo de intervenção nos rumos políticos através de decisões judiciais. Para Torbjörn Vallinder: When we speak of the global expansion of judicial power, we refer to the infusion of judicial decision-making and of courtlike procedures into political arenas where they did not previously reside. To put it briefly, we refer to the ‘judicialization’ of politics (1995, p. 13).

A judicialização da política ocorre porque os tribunais são chamados a se pronunciar quanto a aspectos nos quais o funcionamento do Legislativo e do Executivo se mostra falho, insuficiente ou insatisfatório (TATE; VALLINDER, 1995, p. 15). O processo de judicialização da política no Brasil tem origem no fato dos constituintes terem confiado ao Supremo Tribunal Federal o controle abstrato da constitucionalidade das leis, mediante a provocação da chamada “comunidade de intérpretes da Constituição” (art. 103 da CF) (VIANNA; CARVALHO; MELO; BURGOS, 1999, p. 47). Assim, reconhecem-se no Brasil os requisitos para que se possa tratar de uma judicialização da política, quais sejam, conforme Tate (1995, p. 28-33): I – Um Regime Democrático; II – O Sistema de Separação de Poderes; III – Uma Política de Proteção de Direitos Fundamentais; IV – Grupos de Interesse com Acesso aos Tribunais; V – Acesso ao Judiciário pela Oposição Política; VI – Inefetividade das Instituições Majoritárias; VII – A Percepção das Instâncias Formadoras de Opinião das Limitações das Instituições de Produção de Políticas Públicas perante o Judiciário; VIII – A Delegação (voluntária ou involuntária) das Instituições Majoritárias para o Judiciário quanto à Tomada de Decisões. Ressalte-se também que a iniciativa dos intérpretes da Constituição, constante no recurso às ADIs (Ações Diretas de Inconstitucionalidades), estaria induzindo uma atitude mais favorável por parte do STF no que se refere à 323

THEMIS assunção de novos papéis. O Tribunal começa a migrar, silenciosamente, de uma posição de coadjuvante na produção legislativa do poder soberano para uma de ativo guardião da Carta Constitucional e dos direitos fundamentais da pessoa humana (VIANNA; CARVALHO; MELO; BURGOS, 1999, p. 53). 3.2 A nova orientação do STF na eficácia do mandado de injunção Do exame das citadas decisões, nota-se que o Supremo Tribunal Federal deu um novo ânimo ao instituto do mandado de injunção, passando efetivamente a adotar a teoria concretista, abandonando sua posição anterior (posição nãoconcretista). As palavras do Ministro Marco Aurélio no julgamento do MI nº 721/DF expressam a nova visão da Suprema Corte Brasileira: O instrumento previsto na Lei Maior, em decorrência de reclamações, consideradas as Constituições anteriores, nas quais direitos dependentes de regulamentação não eram passíveis de ser acionados, tem natureza mandamental e não simplesmente declaratória, no sentido da inércia legislativa. [...] Aliás, há de se conjugar o inciso LXXI do artigo 5º da Constituição Federal com o § 1º do citado artigo, a dispor que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais constantes da Constituição têm aplicação imediata. Iniludivelmente, buscou-se, com a inserção do mandado de injunção, no cenário jurídico constitucional, tornar concreta, tornar viva a Lei Maior, presentes direitos, liberdades e prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania (on line).

Entretanto, ainda não há consenso sobre o alcance da decisão proferida no mandado de injunção, ou seja, se será adotada a posição concretista individual direta (eficácia inter partes) ou a concretista geral (eficácia erga omnes). No MI nº 721/DF, relativo ao direito à aposentadoria especial do servidor público, foi consagrada a posição concretista individual direta, possibilitando o exercício do direito somente para o impetrante. Já nos julgamentos envolvendo a regulamentação do direito de greve do servidor público civil, consagrou-se a posição concretista geral, determinando-se a aplicação da lei de greve do setor privado a todo o setor público, e não apenas aos impetrantes.

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CONCLUSÃO Após verificar a insuficiência da posição não-concretista adotada para solucionar as demandas de injunção, segundo a qual apenas caberia a comunicação ao órgão competente do seu estado de mora, a fim de que edite a norma faltante, o Supremo Tribunal Federal, recentemente “oxigenado” por novas ideias, resolveu adotar a posição concretista quanto à eficácia do mandado de injunção, com o objetivo de conferir efetividade ao writ, que havia se tornado inócuo. Ora, se o mandado de injunção fosse tão-somente um meio de recomendação ao poder omisso, o direito afetado pela omissão continuaria desprovido de tutela, reduzido à letra morta, uma vez que, caso não se atendesse à comunicação do Judiciário, nenhuma consequência prática surgiria para o impetrante, uma vez que não se pode compelir o poder omisso a legislar. Além disso, advirta-se que a decisão da Suprema Corte em suprir a lacuna existente só terá validade durante a omissão legislativa. Tão logo seja criada norma regulamentadora, cessarão os efeitos daquela decisão para os casos futuros. Trata-se de regulação provisória do direito e, portanto, não se configura uma atividade verdadeiramente legiferante do Judiciário. Assim, vê-se que o STF, em nenhuma hipótese, cria direito novo, apenas considera autoaplicáveis normas que confiram um direito cujo exercício estava impedido pela ausência de ato regulamentador, o que se configura como uma grande conquista no que concerne à efetivação dos direitos constitucionalmente consagrados. Todavia, deve-se ter cautela quanto à formulação das decisões. Antes de qualquer atitude relativa à omissão legislativa, deve-se sempre abrir espaço ao poder competente para que desempenhe sua atribuição, assinalando-lhe prazo razoável para tanto. Somente após a constatação de sua desídia, vislumbra-se a possibilidade de se resolver a questão no caso concreto. Essa é a posição concretista individual intermediária, a mais prudente entre todas, pois, ao mesmo tempo em que mantém intacto o princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF), confere utilidade ao mandado de injunção, assegurando ainda a inafastabilidade do controle judicial (art. 5º, inciso XXXV, da CF). Por fim, registre-se que é merecedor de aplauso o novo entendimento do STF, possibilitando ao cidadão, o qual, muitas vezes, ficava à mercê da “boavontade” dos poderes estatais, o exercício pleno dos seus direitos constitucionais, obstaculizados pela contumaz inércia do Poder Público. 325

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REFERÊNCIAS ACKEL FILHO, Diomar. Writs Constitucionais: Habeas Corpus, Mandado de Segurança, Mandado de Injunção, Habeas Data. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem no Mandado de Injunção nº 107/DF. Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 21-09-1990, PP-09782. Disponível em: . Acesso em 27 dez. 2009. _______. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção nº 536/MG. Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 26-09-1997. Disponível em: . Acesso em 27 dez. 2009. _______. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção nº 535/DF. Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 26-09-1997. Disponível em: . Acesso em 27 dez. 2009. _______. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção nº 586/RJ. Rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 01-07-2003. Disponível em: . Acesso em 27 dez. 2009. _______. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção nº 232/RJ. Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 27-03-1992, PP-03800. Disponível em: . Acesso em 27 dez. 2009. _______. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção nº 670/ES. Rel. Min. Maurício Corrêa, Dje-206 de 31-10-2008. Disponível em: . Acesso em 27 dez. 2009. 326

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_______. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção nº 721/DF. Rel. Min. Marco Aurélio, Dje-152 de 30-11-2007, DJ de 30-11-2007, PP-00029. Disponível em: . Acesso em 27 dez. 2009. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processos Constitucionais e Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: RCS, 2007. MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. Mandado de Injunção: Um Instrumento de Efetividade da Constituição. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2004. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008. PORTUGAL. Tribunal Constitucional. Constituição da República Portuguesa. Disponível em . Acesso em 27 dez. 2009. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. TATE, Chester Neal; VALLINDER, Torbjörn. The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palacios Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann. A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

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ADOÇÃO: OPERADORES DO DIREITO E PROCEDIMENTOS Wanderval Tavares de Souza

Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Bacharel em Direito - 2008. Aprovado Exame da OAB - 2009-1. Graduando em Pedagogia. Especialização em Análise de Sistemas. Pós graduado em Administração Judiciária.

RESUMO: Reflexão a respeito da adoção, seu conceito como medida sócioprotetiva, seu papel no contexto das relações familiares e sociais. A constatação da adoção como fato universal da perda de importância da paternidadematernidade biológica em face da paternidade-maternidade social. A tendência do deslocamento do grau de importância da consanguinidade e do patrimônio em face da relevância dos aspectos emocionais e afetivos, decisivos na formação da criança e do adolescente. A tarefa da sociedade, através dos seus operadores do direito, mediante postura proativa em assimilar as implicações do fenômeno, com vistas a promover esforços cooperativos visando aperfeiçoar o instituto da adoção, através da legalização de ações e da sistematização dos procedimentos, em consonância com os conteúdos fundamentalizantes contidos na legislação pátria, nos princípios constitucionais e notadamente nos tratados internacionais assinados pela República Federativa do Brasil. Palavras-chave: Adoção. Operadores do Direito. Procedimentos. Regulação Normativa. ABSTRACT: Discussion about the adoption, its concept as socio-protective measure, its role in the context of family and social relationships. The findings of fact of the universal adoption as loss of importance of biological parenthood in the face of social parenthood. The tendency of displacement of the degree of importance of kinship and heritage in the face of the relevance of emotional and affective aspects decisive in the formation of children and adolescents. The task of society, through its law enforcement officers through proactive stance to absorb the implications of the phenomenon, in order to promote cooperative efforts to improve the institution of adoption, through legalization of shares and systematization of procedures, in line with fundamentalizantes content contained in legislation homeland, especially in constitutional principles and international treaties signed the Federative Republic of Brazil. Keywords: Adoption. Law operators. Procedures. Normative regulation.

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THEMIS INTRODUÇÃO A adoção é um instrumento antigo, provavelmente de ordem religiosa, onde os entes vivos deveriam cultuar os antepassados, a fim de se manterem por estes protegidos. Desta forma, acreditavam superar os vínculos familiares e adotar os vínculos religiosos. Estudos demonstram que o tema foi contemplado na fase pré-romana, disciplinada no Código de Hamurabi (1718-1686 a.C.), no qual o adotado educado sob as expensas do adotante, não poderia retornar ao lar de origem. Todavia, se o adotante tivesse posteriormente um filho natural, caberia ao adotado indenização, baseada nos pressupostos de justiça vigentes na Babilônia e na Assíria – prestações iguais e recíprocas. No Código de Manu e no de Hamurabi havia a possibilidade de o marido poder gerar filhos com outra, caso a sua mulher não tivesse ou pudesse gerá-los. Para os que se filiam ao criacionismo, a Bíblia Sagrada revela que Raquel, esposa de Jacó, não podendo engravidar, pediu a Jacó que tivesse filhos com a sua escrava Bilha, pois de Raquel também o seriam. Estes fatos corroboram que a adoção surgiu de cunho religioso, baseado na crença de que a preservação de uma família estaria vinculada à existência de descendentes e neste caso de descendentes varões. Desde o Direito Romano, a adoção era o último recurso de perpetuação de culto doméstico e familiar, ou seja, um último recurso para evitar a desgraça de não ter descendentes. Após a Revolução Francesa, com o Código Napoleônico, a adoção conheceu um significado semelhante ao dos dias de hoje, inserida na legislação civil. A Convenção de Haia defendeu o direito à adoção tendo, em caráter prioritário, as medidas adequadas para permitir a manutenção da criança em sua família biológica, reconhecendo a necessidade de prever medidas para garantir o interesse maior da criança, o respeito aos seus direitos fundamentais, garantindo, subsidiariamente, que a mesma seja colocada em família substituta em seu país de origem ou fora dele. O Brasil, em matéria de direito da infância e juventude, antecipou-se às normas internacionais, promovendo um novo direito: A Política da Proteção Integral, adotando um novo primado constitucional, inspirada na Declaração Universal dos Direitos da Criança – ONU, de 1959, ao promover a inserção no 330

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texto da Carta Política da Nação, baseado no interesse superior da criança e na sua posição de sujeito de direitos, especialmente por ser pessoa em condição excepcional e peculiar de desenvolvimento, sujeito de direitos elencados na ordem constitucional na categoria dos direitos fundamentais ao exercício da vida e da cidadania, em face da família, da sociedade e do Estado, assegurados mediante a garantia de imodificabilidade, portanto cláusula pétrea, a teor do artigo 5º, parágrafos 1º, 2º e 3º. O presente trabalho tem o objetivo de demonstrar uma visão integradora das regras vigentes, evitando o conflito de leis quanto à aplicação do instituto jurídico e estabelecer o papel dos operadores do novo direito, em relação aos sujeitos da adoção, conforme pressupostos insculpidos na Lei 8.069/90 e nas determinações da Convenção de Haia, inserida no ordenamento jurídico pátrio pelo Decreto nº 3.174/99 e do artigo 5º da Constituição Federal. Elencar o perfil e o papel de cada um dos principais atores do instituto jurídico “adoção” de acordo com a nova ordem mundial na matéria preconizada pela Convenção de Haia, de 1993, aplicável ao Brasil, nos termos do Decreto nº 3.174. Determinar, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, quais os procedimentos por este regulados, como também a aplicação subsidiária das normas gerais pertinentes ao Direito Processual. Evidenciar o novo papel das Comissões Estaduais de Adoção, agora como autoridades estaduais e autoridade central, em consonância com o princípio federativo, em respeito às prescrições cominadas aos países signatários e entidades credenciadas, nos termos da Convenção de Haia, com vistas a implementar as condições pactuadas, as atribuições e as atividades como qualificação e cadastro de pretendentes. Exaltar o objetivo do instituto da adoção, cujo dever é garantir a igualdade entre os filhos adotivos e biológicos havidos ou não na constância do casamento e proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação, como um dos direitos consagrados na Constituição Federal, art. 227, parágrafo 6º, e como tal qual foi transcrito para o art. 20 do ECA, de forma a corroborar os princípios previstos na Constituição Federal e nos acordos e convenções internacionais sobre o tema. A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente determinam os direitos e deveres na sociedade conjugal que devem ser exercidos em igualdade de condições pelo homem e pela mulher, levando-se em conta o 331

THEMIS conceito de poder familiar, assegurando a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, o livre acesso à justiça, que através da autoridade judiciária competente, promoverá a solução específica a cada caso, a fim de garantir às crianças e aos adolescentes o pleno gozo de todos os direitos, oportunidades e facilidades, fundamentais ao desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade inerentes à pessoa humana. No que pertine ao exercício, perda e suspensão de direitos, os artifícios legais insculpidos no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Constituição Federal devem garantir os instrumentos jurídicos e procedimentais para a superação da impossibilidade de se prosseguir a convivência junto à família biológica, tendo em vista que aos pais, primeiramente, incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes proporcionar as condições de desenvolvimento de suas potencialidades físicas, emocionais e intelectuais, resguardando sempre que possível os laços de parentesco e afeto, pois a falta ou a carência de recursos materiais não será motivação para a perda ou suspensão do poder familiar, o que se daria somente se respeitados o contraditório e a ampla defesa garantidos na Carta Magna. A adoção é um ato pelo qual alguém aceita um estranho na qualidade de filho legítimo como se biológico o fosse, mediante vínculo civil, e no sentido mais amplo, a adoção, além de razões e atos legais busca o equilíbrio social e humanitário entre as normas, e numa visão moderna a finalidade da adoção consiste no fato de dar à criança uma família como o meio mais adequado para atender as suas necessidades de integração social, criando, quanto a sua natureza jurídica, uma relação de paternidade e filiação parecidas com as legítimas, mediante uma intervenção da tutela jurisdicional pública. A Convenção de Haia defendeu o direito à adoção tendo em caráter prioritário as medidas adequadas para permitir a manutenção da criança em sua família biológica, reconhecendo a necessidade de prever medidas para garantir que sejam feitas no interesse maior da criança, no respeito aos seus direitos fundamentais, garantindo as mediadas necessárias para que a mesma seja colocada em família substituta em país fora de seu de origem. No Brasil, o direito da infância e juventude foi adequado perfeitamente às essas normas doutrinárias internacionais, tendo como base documentos que serviam como propostas a mudanças, constituindo argumentos de peso junto à atual Carta Política da Nação, demonstrando a principal preocupação com interesse superior da criança e sua posição como sujeito de direitos, procurando 332

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aferir se a aplicação da legislação nacional está em consonância com os princípios internacionais; se os princípios constitucionais sobre a temática estão sendo enfatizados e colocados em prática; se o papel dos operadores do Direito está claramente definido ou se ainda carece maior regulamentação; se o modelo aplicável no âmbito interno está compatível com os princípios insculpidos nos acordos e convenções dos quais o Brasil seja signatário. Com advento da Constituição Federal de 1988 e da lei nº 8.069/90 Estatuto da Criança e do Adolescente - supunha-se a revogação implícita das regras pretéritas e que vigoraria a partir de então no sistema brasileiro de adoção uma única adoção: a plena. Uma análise mais acurada demonstra que a adoção pelo Código Civil persiste, apesar de bastante fragilizada e não correspondendo mais à realidade dos dispositivos menoristas nacionais e internacionais. A adoção é prevista no Capítulo V do Título V do Livro I da Parte especial - Direito de Família, artigos 368 usque 378 do Código Civil Brasileiro, continua vigendo para o nascituro ou para os maiores de 18 anos, uma vez que a Lei nº 8.069/90 destina-se apenas às crianças (0-12 anos) e aos adolescentes (1218 anos), de acordo com seus artigos 1º e 2º. O Estatuto da Criança e do Adolescente representa um espelho das orientações advindas da Convenção Internacional dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas que veio preencher os anseios da sociedade brasileira e mundial, e baniu o princípio da imparcialidade no Direito do Menor e na aplicação do novo direito são necessários envolvimento e engajamento pessoal em defesa do interesse da criança, superando a concepção menorista. O Código de Menores teve plena vigência e aplicabilidade. Seu art. 5º o traduzia: “Na aplicação desta lei, a proteção aos interesses do menor sobrelevará qualquer outro bem ou interesse juridicamente tutelado”. Embora se demore a admitir, as leis existentes não constituem o problema, que reside - isto sim - na incorreta aplicação dos dispositivos específicos. Para a devida compreensão da adoção, faz-se necessária uma interpretação sistemática e teleológica, como situar a adoção prevista nos artigos 39 a 52 do ECA diretamente relacionada com o direito à convivência familiar e comunitária, prevista nos artigos 19 a 27 do ECA, com a família substituta, prevista nos artigos 28 a 32, com o procedimento para a colocação em família substituta, artigos 165 a 170, e com a questão da perda do poder familiar, art.155 a 163. 333

THEMIS A adoção, no Estatuto da Criança e do Adolescente, tem como finalidade exclusiva fornecer proteção integral à criança e ao adolescente. Nessa modalidade de adoção, perpetuar o culto e a tradição e o nome da família adotante, ou ainda atender ao desejo de casais sem filhos, passou a ser um efeito da adoção e não a sua razão de ser, pois não mais se concebe uma adoção sem garantir-lhe as relações de parentesco inerentes. 1 ADOÇÃO A doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente introduziu no ordenamento jurídico pátrio o direito à convivência familiar e comunitária como um dos direitos fundamentais a serem resguardados com absoluta prioridade pela família, pela sociedade e pelo Estado, portanto, a adoção é medida excepcional que exterioriza a percepção da consciência humana em proporcionar às crianças desamparadas e desprovidas de família, direitos e dignidade. 1.1 Conceitos elementares No sentido mais amplo, a adoção, além de razões e atos legais, busca o equilíbrio social e humanitário entre as normas, cuja finalidade tomou vários rumos de acordo com o movimento histórico. Clóvis Beviláqua (1954), em seu comentário a respeito da adoção, afirmou que a adoção é o ato civil pelo qual alguém aceita um estranho na qualidade de filho e mais, que as leis pátrias ainda não tinham regulado a matéria, nem definido os seus contornos. Ressaltava o benefício da ação, do ponto de vista individual e social, pois dava filhos a quem não os tinha por natureza, desenvolvia os sentimentos afetivos, dando aos filhos privados de arrimo, meios e capacidades de aperfeiçoamento moral, intelectual e social. A adoção é um caminho de sacrifícios e responsabilidades, pois diferentemente da gravidez, geradora da maternidade biológica, envolverá os adotantes em uma relação artificial de paternidade e filiação, resultando numa dependência sócio-natural, especialmente porque a natureza não dá à mãe biológica a possibilidade de acariciar em seu regaço um rebento, mas a mãe adotante deverá fazê-lo, ainda que sua escolha recaia sobre uma criança ou adolescente sem as perfeitas condições de saúde física e mental, assim como dar às crianças desamparadas, semelhante tratamento dado às crianças biologicamente 334

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concebidas, reconhecidas como sujeitos de direitos e não como desamparados, desprovidos de família e de condições dignas de sobrevivência. A adoção é a materialização da dignidade da pessoa humana, um reconhecimento da convivência dos seres em harmonia, com direito à vida, à liberdade, à honra, como valores predominantes na formação da estrutura sócio-cultural de cada um, que se faz merecedor destas condições do Estado e da sociedade, exigindo um complexo de medidas protetivas e assecuratórias dos direitos da pessoa, a fim de evitar a degradação das condições mínimas para a existência de uma vida saudável. A Constituição da República Federativa do Brasil erigiu a adoção à condição de um instrumento de política pública, tutelando interesses particulares da criança e do adolescente, sendo prevalente a manifestação de vontade dos interessados, seja pela jurisdição voluntária ou contenciosa, submetidos à função jurisdicional decorrente do comando constitucional, comprometida com as garantias subjetivas e objetivas próprias da tutela estatal. Os direitos e garantias assegurados à adoção são mais que as garantias processuais fundamentais à invocação da tutela jurisdicional, corolários do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, onde se possa alegar, propor e produzir provas, enfim a intervenção capaz de influir na formação da convicção do juiz, mas também, a distinção que cada ser se faz merecedor da consideração dos seus pares, democratizando as vantagens da globalização, que elevou todos à condição de cidadãos mundiais, afinal as crianças de hoje serão os velhos do amanhã. A adoção é um instrumento que exterioriza a percepção da consciência crítica do ser humano em relação aos fenômenos que nos cercam, limitada por contingências sociais, a respeito dos cidadãos em condições especiais e excepcionais de desenvolvimento, que buscam encontrar a sua vocação em função dos padrões rígidos estabelecidos pela sociedade, rigidez que não é compreendida e aceita facilmente pelas crianças e adolescentes. A adoção é forma de proteção à criança e ao adolescente, pois todos nascem destinados a receber carinho, afeto, merecedores de ter uma criação e educação no seio de uma família, consoante determina o art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente: Art. 19 Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família, e, excepcionalmente, em família 335

THEMIS substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.

Infere-se daí, portanto, que a colocação da criança e do adolescente em família substituta, é medida excepcional, pois a regra é a convivência no seio da família natural. 1.2 Determinações legais e regulamentares A constitucionalização e a normatização do instituto da adoção têm o condão de atender precipuamente à doutrina da proteção integral, através de processo e procedimento próprios, respeitadas as garantias processuais, tudo em prol do interesse superior da criança e do adolescente. A promulgação da Constituição de 1988 determinou a obrigatoriedade da intervenção jurisdicional, em obediência à igualdade dos pretendentes e em respeito à doutrina da proteção integral, consequentemente, alterando o paradigma de atender primeiramente aos interesses dos pretendentes, para atender primordialmente ao melhor interesse da criança e do adolescente, com base em regras de ordem pública, portanto, o ato de adoção é uma intervenção judicial, uma tutela jurisdicional justa e efetiva, por imposição. Alguns doutrinadores afirmam que a inexistência de procedimento específico traz prejuízo à celeridade que o instituto requer, todavia, cotejando a legislação vigente, afere-se perfeitamente que os instrumentos legais são suficientes, juntamente com a garantia da estrutura familiar adotante, que proporcione os recursos adequados ao adotado, senão seriam prejudicados exatamente as crianças e os adolescentes, em nítida desvantagem sócioeconômica. Os operadores do Direito devem partir da premissa que os direitos subjetivos da criança e do adolescente foram densificados na nova ordem constitucional, elevados à condição de direitos fundamentais, sedimentados em um elenco de medidas e garantias, sem exclusão de outros direitos e garantias decorrentes do regime de princípios nela adotados e de tratados internacionais de que o Brasil seja parte integrante, a teor do §2º do artigo 5º, do art. 60, §4º, inciso IV e do artigo 227, caput, da Constituição Federal, reproduzindo princípios 336

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contidos na Convenção das Nações Unidas sobre os direitos da Criança de 20/11/1989, na qual os Estados partes declaram-se: Convencidos de que a família como elemento básico da sociedade e meio natural para o crescimento e o bem-estar de todos os seus membros e em particular das crianças, deve receber a proteção e assistência necessária para poder assumir plenamente suas responsabilidades na comunidade.

A Constituição Federal declara que entre os diversos direitos estão a convivência familiar e comunitária, como também o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente - afirma que toda criança e adolescente tem o direto de ser criado e educado no seio de sua família, apenas excepcionalmente, em família substituta. Desse ponto de vista é possível inferir que nem a Constituição Federal, nem o Estatuto da Criança e do Adolescente vincularam um conceito ou modelo absoluto de família natural como forma indispensável à concretização dos direitos subjetivos, mas os diplomas legais mencionam o direito que a criança tem de ser criada e educada pela sua família, e a obrigação de se dar assistência e proteção para que a família cumpra o seu mister. O conceito de família aparenta superar o contexto histórico em função da diversidade de organizações familiares existentes na complexa plêiade social, aceitando outros modelos de família chefiada pela mulher, pelo homem, descasados, com membros de gerações distintas, casais de relações homo afetivas, embora a Constituição Federal, artigo 226, §3º e 5º, e o Código Civil, artigos 1.514, 1.565 e 1.567, prevejam a proteção do Estado para as famílias formadas por homem e mulher. A importância do conceito adequado pode receber reparo em função do contexto e da diversidade sociocultural brasileira, de sorte que o foco da questão seja centralizado em uma estrutura que favoreça a concretização dos princípios constitucionais e legais. A colocação em família substituta: guarda, tutela, adoção - somente ocorrerá mediante procedimento judicial, verificada a existência de risco para a criança e o adolescente, tendo em consideração que a falta de recursos econômico-financeiros, art. 23, caput da Lei nº 8.069/90, não é motivo suficiente para aventar a possibilidade de adoção ou a perda ou a suspensão do poder familiar, os quais serão decretados judicialmente, obedecidos o devido processo 337

THEMIS legal, nas ocasiões e casos estritamente previstos legalmente e na situação de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações de sustento, guarda, educação e determinações judiciais, conforme infere-se dos artigos 28 usque 32 do Estatuto da Criança e do Adolescente: A adoção nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA é sempre judicial, atribuída ao juiz no exercício da atividade jurisdicional nos juizados especializados, a competência para a verificação da condição de adotabilidade, art. 30 da Lei nº 8.069/90, e através das Comissões Estaduais Judiciárias de Adoção – CEJAIs, para a medida excepcional de colocação em família substituta estrangeiro, art. 31 da Lei nº 8.069/90, neste caso, a Convenção de Haia, admite em seu artigo 6º, item 2, para o estado federativo, com unidades autônomas, a designação de uma autoridade central para cada unidade, à semelhança do que determina o ECA em seu art. 52 da Lei nº 8.069/90 e parágrafo único. A adoção nacional somente será deferida se fundamentada em motivos legítimos, apresentar reais vantagens para o adotando, art. 43 da Lei nº 8.069/90, e a adoção internacional, for precedida da verificação de que a modalidade atende ao superior interesse da criança, que o adotando, as pessoas, autoridades e instituições tenham sido informadas e orientadas a respeito do seu consentimento, sobre a ruptura dos vínculos jurídicos entre a criança e a sua família de origem, a inexistência de compensação ou pagamento e indução, conforme art. 4 da Convenção de Haia. O direito à convivência familiar junto à família natural no Estatuto da Criança e do Adolescente assumiu proporção tal que, não mais tolera as práticas antigas como a falta ou carência de recursos materiais como motivação para a decretação da perda ou suspensão do poder familiar, nos termos dos art. 23, caput e art. 129, inciso X da Lei nº 8.069/9, demonstrando que restaram revogadas as disposições contidas nos art. 21 a 23 do Código de Menores, tendo em vista que o princípio da proteção integral, norteador da nova ordem jurídica, prefere uma série de medidas preventivas destinadas aos pais, às crianças e aos adolescentes, objetivando a manutenção dos vínculos familiares e comunitários à aplicação do instrumento da adoção, na forma do art. 39 da Lei nº 8.069/99. A Convenção de Haia promulgada pelo Decreto nº 3.087/99, em seu preâmbulo, reconhece que para o desenvolvimento harmonioso da personalidade da criança e do adolescente, é fundamental que se dê no seio familiar, e prossegue recordando que cada país deverá tomar as medidas necessárias à manutenção 338

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da criança em uma família em seu país de origem, e não sendo possível, que, a concessão de uma adoção somente deva ser adotada se realmente apresentar a vantagem de dar à criança e ao adolescente uma família permanente em outro país, em respeito às práticas em matéria de adoção e colocação familiar, contidas na Resolução da Assembleia Geral da ONU nº 41/85, de 03 de dezembro de 1986, e aos princípios insculpidos na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 20 de novembro de 1989, que trata dos princípios sociais e jurídicos aplicáveis à proteção e ao bem-estar das crianças. O instrumento da adoção poderá decorrer da aplicação de medida protetiva, isolada ou cumulativa, substituível a qualquer tempo, quando os direitos reconhecidos legalmente forem ameaçados ou violados nas hipóteses de ação ou omissão da sociedade, do Estado ou dos pais, nos termos dos art. 98, incisos I, II, III; art. 99; art. 100; art. 101, inciso VIII; art. 129, incisos VIII e X, desde que não sejam aplicáveis preferencialmente as medidas que mantenham os vínculos familiares e comunitários. A concessão de uma adoção foi cercada de dispositivos protetivos tendo em vista que o poder familiar, utilizando o jargão politicamente adequado, em vez de pátrio poder, não mais pode ser considerado objeto de livre disposição dos pais ou responsáveis, por ser na verdade um conjunto de deveres dos pais para com os filhos, na forma do art. 22 da Lei 8.069/90 e porque as crianças e os adolescentes foram reconhecidos como sujeitos de direitos com direito fundamental à convivência familiar e comunitária, de caráter personalíssimo, inalienável e irrenunciável, cabendo a todos o dever de impedir qualquer ameaça ou violação, nos termos do art. 70 da Lei 8.069/90. A renúncia ou a desistência ao conjunto deveres dos pais em relação aos filhos não pode ser considerada motivação suficiente para a destituição ou suspensão do poder familiar, ao contrário poderá mesmo configurar crime tipificado nos artigos 244 usque 247 da Lei nº 2.848/40 - Código Penal Brasileiro. Neste sentido, o pedido de colocação em família substituta, na modalidade de adoção, se manifestado pelos pais, processar-se-á mediante procedimento específico, respeitados o contraditório e as determinações dos artigos 24 e 155 a 163 da Lei 8.060/90, circunscritos à disposição legal de que toda criança e adolescente tem o direito de ser criado e educado no seio da sua família, conforme art. 19 da Lei 8.069/90 c/c art. 227 da Constituição Federal, perante a autoridade judiciária competente, que adotará as providências prescritas nos artigos 165 a 170, e especialmente o contido nos parágrafos únicos 339

THEMIS dos artigos 166 e 169 da Lei 8.069/90 e acaso deferida a adoção, esta se constituirá mediante sentença judicial com inscrição no registro civil, de caráter irrevogável, produzindo seus jurídicos efeitos a partir do trânsito em julgado, consoante prescrito nos artigos 46 a 48 da Lei 8.069/90. 2 DOS OPERADORES DO DIREITO O advento da doutrina de proteção integral promoveu a superação do paradigma menorista, reservando aos operadores do direito a tarefa de efetivar os direitos fundamentais da criança e do adolescente, onde é cabível reconhecer que a prática é o melhor caminho para a teoria. 2.1 Do Juiz A tarefa de operacionalizar os direitos infanto-juvenis coloca em evidência a atividade do juiz, ressaltando a agilidade processual pretendida pelo Estatuto e a possibilidade de julgar ações civis públicas contra órgãos da Administração Pública, entre outras. A vigência da Constituição Federal, a partir de 05 de outubro de 1988, a ratificação pelo Congresso Nacional da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, através do Decreto Legislativo nº 28, de 14 de setembro de 1990, introduziu-se no ordenamento jurídico brasileiro uma nova doutrina, denominada “Doutrina Sócio-Jurídica da Proteção Integral”, a qual foi regulamentada através da Lei nº 8.069, 13 de julho de 1990, nominada de Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, arts. 3º e 4º, em respeito à nova ordem internacional e à nova ordem constitucional, art. 227, transformou o ordenamento jurídico, tratado de menorista, em algo especial, pois passou a considerar a criança e o adolescente não como objetos do direito e sim como sujeitos de direito. ECA. Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. 340

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Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade à convivência familiar e comunitária. C.F. Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A transformação do paradigma, ao introduzir a nova ordem no sistema jurídico, passou a exigir um reordenamento de todo o Sistema de Justiça da Infância e da Juventude, que leva em consideração os princípios constitucionais da inafastabilidade de apreciação do Poder Judiciário, do devido processo legal e da ampla defesa e do contraditório. A acessibilidade ao Sistema de Justiça da Infância e Adolescência vem delimitada no Estatuto da Criança e do Adolescente, nos termos dos artigos 142 usque 144, observando a gratuidade, a representação e assistência necessárias, na forma legal, a vedação de divulgação de atos judiciais que digam respeito à criança e ao adolescente. Para a implementação dos procedimentos exigidos na legislação, foram realizados diversos cursos de capacitação para todos os atores envolvidos neste novo sistema de justiça, para que fosse compreendida a nova doutrina e principalmente para a conscientização de que nas folhas de papel dos processos, existem vidas humanas, e a solução de cada caso demanda segurança e brevidade. A autoridade competente para presidir os processos de adoção internacional é o juiz da Vara da Infância e da Juventude ou o juiz que exerça essa função na forma da lei de Organização Judiciária local, nos termos do art. 146 - ECA. A determinação da competência dar-se-á, pelo local onde residam os pais ou responsáveis pela criança, ou, na falta deles, no local onde se encontre a criança ou adolescente, a autoridade competente será aquela da comarca onde se encontre a criança ou adolescente, conforme art.147 - ECA. 341

THEMIS

Art. 147. A competência será determinada: I- pelo domicílio dos pais ou responsável; II - pelo lugar onde se encontre a criança ou adolescente, à falta dos pais ou responsável;

A determinação expressa da competência da Justiça da Infância e da Juventude para conhecer de pedidos de adoção e seus incidentes estabelece de forma definitiva a importância e a relevância do tema, consoante art.148, inciso III do Estatuto da Criança e do Adolescente. A competência do juiz para conhecer dos pedidos de adoção é uma simples decorrência de sua competência maior: zelar pelo bem-estar físico, moral, intelectual, pela integridade da criança ou adolescente que se encontra com seus direitos ameaçados ou violados, tanto que não haveria na prática a necessidade de um pedido, se fosse observado o princípio da proteção integral, uma vez constatado que os direitos reconhecidos legalmente estejam ameaçados ou violados, ocasião em que seriam cabíveis medidas primeiramente, que visem à manutenção e o fortalecimento dos laços familiares e comunitários, a orientação, apoio e acompanhamento temporários, a inclusão em programas assistenciais comunitários ou oficiais, para só então, se restarem inviabilizadas, proceder-se à colocação em família substituta. Considerando as evidências, o que se observa é a existência de crianças em situação de risco, por abandono ou por inexistência de pais ou familiares, encaminhadas aos abrigos, onde aguardarão a provocação do Poder Judiciário, pelos interessados na guarda ou na adoção. A simples constatação de existência de ações decorrentes de irregularidades em entidades de atendimento, o reconhecimento de ação, omissão ou abuso do estado, da sociedade ou dos pais ou responsável, já coloca em evidência a figura do Juiz da Vara da infância e da Juventude, para cumprimento do disposto nos artigos 98 do Estatuto da Criança e do Adolescente e 227 da Constituição Federal. A concepção moderna de Estado Democrático pressupõe a garantia de igualdade de acesso à justiça em geral, mediante um processo justo e imparcial, assegurando igualdade real, ou seja, além do simples ingresso em juízo, de sorte que as oportunidades de participação sejam efetiva e definitivamente adequadas às partes no processo, pois a participação em igualdade de oportunidades é uma decorrência substancial do pleno exercício da cidadania. 342

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Modernamente, a compreensão do que é o acesso ao Judiciário é muito mais do que a provocação do Poder Judiciário, sendo mais conveniente afirmar que o acesso à Justiça, dentro do novo ordenamento jurídico, é o direito a buscar a tutela jurisdicional estatal, é obter o acesso à ordem jurídica compatível com a realidade social, devidamente adequada com recursos materiais, humanos, comprometidos com a efetivação de direitos. O juiz contemporâneo garante que o provimento jurisdicional será compatível com os valores sociais vigentes, relativizando o antagonismo e afastando as interferências à correta aplicação do direito. O juiz é além de uma pessoa natural, um cidadão que se submete a um processo seletivo, portanto, um valor humano reconhecido e aprovado pelo meio social, que deve precipuamente conhecer as técnicas jurídicas, mas também conhecer os valores sociais, os anseios humanos, suas dificuldades, desigualdades e problemas estruturais, visando dar a correta aplicação da tutela jurisdicional, na busca da concretização dos direitos e garantias dos cidadãos. O juiz recebe os anseios e os antagonismos da sociedade via processo, um instrumento adequado para a exposição dos motivos, dos questionamentos, ou seja, é a provocação que demove a inércia do julgador, que através do procedimento, persegue a verdade e a promoção da pacificação social, objetivo principal da prestação da atividade jurisdicional Ao juiz incumbe a competência da observância ao devido processo legal, insculpido na Carta Magna, portanto indispensável para que as partes possam em igualdade de condições, serem admitidas a participar do processo, onde sejam tratadas com igualdade, não se omitindo dessa participação o próprio juiz na condução do processo e no correto julgamento da causa. O princípio da igualdade é medida justa e supera o conceito formal do reconhecimento igualitário legal, buscando verdadeiramente a assimetria das desigualdades, com o fito de corrigi-las, em obediência ao paradigma constitucional inserto no art. 5º, caput, inciso I, “todos são iguais perante a lei”, elevado ao condão de objetivo fundamental, visando à superação e a redução das desigualdades sociais, impondo, portanto, que aos poderes constituídos, o asseguramento da simetria de tratamento aos indivíduos, procurando efetivamente dar às partes um direito justo e eficaz. O princípio da igualdade impõe ao julgador, na qualidade de detentor de uma parcela do poder do Estado, a responsabilidade de estabelecer a 343

THEMIS igualização das partes, conferindo-lhes idênticas oportunidades, impedindo que as desigualdades imperem, como também, fortalecendo o princípio da imparcialidade, eis porque o julgador sintonizado com os fins sociais e jurídicos do processo é imparcial, todavia, jamais deverá estar neutro, aliás, o apego ao formalismo e à burocracia coloca a figura do juiz na contramão das tendências modernas da doutrina processual, que não admite o formalismo da dogmática tradicional. Neste sentido, ensina Marcus Orione Gonçalves Correia, (1999, p. 24) tratando da questão da igualdade processual: No que concerne à necessidade, para que exista realmente due process of law, de um juiz imparcial e independente, verifique-se o seguinte: atualmente, vem-se requerendo do juiz que este deixe de ser, um mero convidado de pedra do processo. Aliás, em contraposição à figura do juiz dos tempos do liberalismo, que conduzia o processo sem intervir de forma alguma – em consonância com a própria noção liberal da ausência de intervenção do Estado -, vem emergindo hodiernamente a figura dos poderes assistenciais do magistrado. Os poderes assistenciais do juiz defluem, em prestígio à noção de justiça material (em contraposição à mera idéia de justiça formal), de um princípio por alguns admitido – que não vem expresso na Constituição -, conhecido como princípio da paridade das armas. Segundo desdobramento deste último princípio é indispensável, para a própria garantia da igualdade das partes no processo, que em situações de desigualdade, o juiz atue conduzindo o processo e assistindo o mais frágil na relação jurídica deduzida em juízo.

O princípio da isonomia, na opinião de Ada Pellegrini Grinover, tem dimensão estática e dinâmica. A dimensão estática quando a lei anota a igualdade de todos perante a lei de modo formal, recusando o legislador à existência da desigualdade e a dinâmica, quando o Estado assume o compromisso de constatar as desigualdades e criar mecanismos para supri-las, realizando a igualdade. O juiz contemporâneo não deve visualizar o princípio da isonomia apenas do ponto de vista formalista, mas deve promover o equilíbrio da relação processual, concretizando a efetivação das oportunidades sempre que contemplar a exsurgência de desigualdades inter-partes, quanto às alegativas e capacidade probante, ou seja, compete ao Juiz dar tratamento adequado na medida das desigualdades, dando efetividade ao princípio, pois a sua atuação é proativa sem, contudo comprometer o princípio da imparcialidade. 344

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A respeito do princípio da imparcialidade, é relevante destacar que toda atitude do juiz deve e merece cautela interpretativa, pois até mesmo a inércia do juiz em face de uma desigualdade processual, pode acarretar reflexos no resultado do julgamento, razão pela qual o juiz é exposto à censura da parcialidade seja por ter agido ou por ter quedado inerte, visto que tanto uma como outra atitude podem favorecer ou prejudicar cada parte no processo. Então se o que interessa é a efetivação da tutela jurisdicional e o principal interessado é o juiz, que se faça e se busque a justiça em obediência à ordem jurídica, sem que a vontade do juiz interfira no resultado do julgamento, tendo em vista que compete ao juiz a direção do processo, intervindo na manutenção do equilíbrio da relação processual, promovendo a entrega da tutela jurisdicional a quem de direito, com a certeza de ter alcançado a justiça buscada no processo, visto que o desequilíbrio compromete a Justiça como instituição. Para Rui Portanova, (1999, p. 79) o próprio símbolo da justiça merece ser revisto: Tradicionalmente a imparcialidade é representada por uma mulher com olhos vendados e com uma espada numa mão e a balança equilibrada noutra. Contudo, não há que negar, é temeridade dar uma espada a quem está de olhos vendados. Ademais, como visto no princípio jurídico, muitas vezes a balança está desequilibrada. Logo, o mais correto é manter os olhos da Justiça bem abertos para ver as desigualdades e igualá-las.

A propósito, imparcialidade e independência são capacidades inseparáveis da figura do juiz, afigurando-se até como um conteúdo intrínseco, pois o juiz não deve ter interesse no objeto processual e muito menos promover o favorecimento de uma parte em detrimento da outra, mas deve ter sim interesse em promover a efetivação da prestação da tutela jurisdicional através de uma sentença justa, comprometida com os valores sociais e os interesses envolvidos, dentro da legalidade. O juiz deve ter o exato sentimento e a sensibilidade de que qualquer atitude que viole a imparcialidade, até mesmo a inércia, pode favorecer indevidamente uma das partes tornando-a mais forte, o que pressupõe desigualdade processual, então, em obediência ao princípio da isonomia, caberá ao julgador restabelecer a igualização da relação processual. Para um processo atingir o seu desiderato, sem disparidade de condições, convém assegurar pelos meios necessários, o efetivo contraditório, princípio 345

THEMIS que evidencia a igualdade de condições e efetiva defesa dos direitos às partes processuais, tendo em vista que o direito processual é publicista por natureza e impõe ao juiz um papel ativo, próprio da sua função social, devendo estimular o contraditório, suprindo as deficiências das partes, superando as desigualdades, pois o diálogo processual, apresentado na forma de ação e oposição, é o verdadeiro retrato do contraditório. O contraditório se concretiza quando o julgador toma conhecimento de uma lide e determina a fase instrutória, buscando a apuração dos fatos em função da aplicação do direito material, sem se preocupar se réu ou autor será vitorioso, mas envidar esforços para que a ordem jurídica justa proporcione oportunidades iguais às partes, motivando, por imposição constitucional, as suas decisões. Art. 125 – Cpc. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe: I- assegurar às partes igualdade de tratamento; II-velar pela rápida solução do litígio; [...] Art. 126 – O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando leacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. Art. 93 – C.F. [...] IX- todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.

Através do contraditório exsurge a virtude do poder instrutório, na busca da completa apuração dos fatos, como também evidencia a consciência do julgador, quando determina a produção de provas, sem, contudo poder determinar a qual das partes a verdade beneficiará, demonstrando a realização da atividade jurisdicional plena e eficaz, eqüidistante das partes, mas não dos fatos, garantindo que os problemas sociais, culturais, econômicos, não interfiram negativamente no equilíbrio processual, mas ao contrário, proporcione uma solução justa e efetiva do processo. 346

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Neste sentido preleciona Marinoni (2000, p. 102): O princípio do contraditório, por ser informado pelo princípio da igualdade substancial, na verdade é fortalecido pela participação ativa do julgador, já que não bastam oportunidades iguais àqueles que são desiguais. Se não existe paridade de armas, de nada adianta igualdade de oportunidades, ou um mero contraditório formal. Na ideologia do Estado social, o juiz é obrigado a participar do processo, não estando autorizado a desconsiderar as desigualdades sociais que o próprio Estado visa a eliminar. Na realidade, o juiz imparcial de ontem é justamente o juiz parcial de hoje.

A crença da sociedade na jurisdição provida pelo estado depende da consciência, da responsabilidade e da capacidade que o juiz tem em romper com a dogmática conservadora, em acompanhar a evolução sócio-cultural com a adaptabilidade compatível com a modernidade. A participação do juiz da infância e adolescência não deve ser restrita a assistir a exposição do caso em petições formalistas, de maneira passiva, conformada e baseada em critérios pontuais e individuais, mas deve ser potencializada pela fenomenologia do interesse público, superando os axiomas legalistas com fulcro na dinâmica sócio-cultural. 2.1.2 Das atribuições específicas do juiz O juiz de Direito pode, de ofício, promover o afastamento provisório ou definitivo dos Conselheiros Tutelares, com o objetivo principal de adotar as medidas que entender por bem aplicar, avocando, para si, a resolução de casos concretos cuja atribuição e competência são dos Conselhos Tutelares, todavia, isto pode acarretar em um desvirtuamento da atribuição judicial e no enfraquecimento e usurpação das funções dos Conselhos Tutelares. O juiz de Direito pode comunicar fatos ao Ministério Público, para que este promova a defesa dos interesses e dos direitos da criança e do adolescente, pois a colocação em família substituta como uma das medidas específicas de proteção é aplicável à criança e ao adolescente, independentemente, dentre as hipóteses legais previstas no sistema garantias dos direitos da criança e do adolescente. O juiz poderá ainda adotar, na hipótese legal prevista no art. 262 do Estatuto da Criança e do Adolescente, enquanto não instalados os Conselhos 347

THEMIS Tutelares ou nos casos de afastamento provisório ou definitivo de Conselheiros Tutelares titulares e suplentes que resulte em número inferior ao exigido legalmente para funcionamento do respectivo Conselho Tutelar (art. 132, do Estatuto), através do poder de cautela, as medidas legais para o asseguramento dos direitos da criança e do adolescente, posteriormente comunicando tais fatos ao Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente e ao Ministério Público para adoção das medidas legais visando à recomposição do Conselho Tutelar. Esta providência de natureza administrativa do magistrado poderia apresentar-se revestida de função jurisdicional, pois utiliza o mesmo sistema recursal e pode fazer coisa julgada material. Entretanto, o simples descumprimento da determinação de natureza administrativa poderá levar a um procedimento judicial e o órgão judicante estaria eivado de parcialidade, pois se quedou em uma função legislativa ou regulamentadora autônoma, ao fixar normas gerais, nos termos do art. 149 do ECA, violando os princípios norteadores da imparcialidade, do devido processo legal, mas o legislador pátrio preventivamente inseriu no parágrafo 2º do art. 149 do ECA, de que a adoção de medidas desta natureza, deverão ser fundamentadas, vedadas as de caráter geral, afinal a função jurisdicional é revestida do caráter de resolução de conflitos e não de fiscalização. O juiz de infância e adolescência exerce jurisdição de natureza especial, proeminente na relação processual, baseada no princípio da proteção integral consagrado no Estatuto da Criança e do Adolescente, proclamado logo em seu artigo 1º, obrigando-o a desconsiderar o princípio da inércia da jurisdição e atuar de ofício e excepcionalmente aguardar a provocação, pois a evidência de ofensa a direitos da criança e do adolescente deve ser objeto de sua atuação, independentemente da provocação de qualquer órgão externo ou interno ao Poder Judiciário. Esta realidade fica evidente nos casos do art. 191 do ECA, na apuração de irregularidades em entidade governamental e não governamental o procedimento respectivo terá início por representação do Ministério Público ou do Conselho Tutelar ou mediante portaria da autoridade judiciária, ou seja, portaria do Juiz de Infância e Juventude. Por outro lado, se o artigo 194 do ECA enumera um rol não taxativo das formas de início dos procedimentos para imposição de penalidade administrativa, como a representação do Ministério Público, do Conselho Tutelar e o auto de 348

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infração elaborado por servidor efetivo ou voluntário credenciado da justiça da infância e juventude, é lógico, concluir que se o servidor pode iniciar determinado procedimento, também o pode o magistrado, mercê da vontade do legislador, pois do contrário seria negar ao superior hierárquico tal iniciativa, clarificando o clássico quem pode o mais, também pode o menos. 2.2 Do Ministério Público O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, onde é o representante da sociedade, agindo com independência em relação a qualquer autoridade ou poder, devendo obediência somente à Constituição e às leis. O Ministério Público executa suas ações institucionais tanto na esfera administrativa, expedindo, por exemplo: notificações e recomendações a autoridades públicas, quanto na esfera judicial, ao mover processos criminais e cíveis. A Constituição Federal de 1988 incluiu, em capítulo próprio, o Ministério Público, como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, conforme dita o art.127 da CF: “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. A atuação do Ministério Público no Estatuto da Criança e do Adolescente foi grandemente ampliada, sendo possível se constatar a relevância das novas funções pela competência a ele conferida pelo art. 201. [...] III - promover e acompanhar as ações de alimentos e os procedimentos de suspensão e destituição do pátrio poder, nomeação e remoção de tutores, curadores e guardiães, bem como oficiar em todos os demais procedimentos da competência da Justiça da Infância e da Juventude; [...] V - promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos interesses individuais, difusos ou coletivos relativos à infância e à adolescência, inclusive os definidos no art. 220, § 3, inciso II, da Constituição Federal; VI - instaurar procedimentos administrativos e, para instruí-los: 349

THEMIS a) expedir notificações para colher depoimentos ou esclarecimentos e, em caso de não-comparecimento injustificado, requisitar condução coercitiva, inclusive pela polícia civil ou militar; b) requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades municipais, estaduais e federais, da administração direta ou indireta, bem como promover inspeções e diligências investigatórias; c) requisitar informações e documentos a particulares e instituições privadas; VII - instaurar sindicâncias, requisitar diligências investigatórias e determinar a instauração de inquérito policial, para apuração de ilícitos ou infrações às normas de proteção à infância e à juventude; VIII - zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis; IX - impetrar mandado de segurança, de injunção e habeas corpus, em qualquer juízo, instância ou tribunal, na defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis afetos à criança e ao adolescente; X - representar ao juízo visando à aplicação de penalidade por infrações cometidas contra as normas de proteção à infância e à juventude, sem prejuízo da promoção da responsabilidade civil e penal do infrator, quando cabível; XI - inspecionar as entidades públicas e particulares de atendimento e os programas de que trata esta Lei, adotando de pronto as medidas administrativas ou judiciais necessárias à remoção de irregularidades porventura verificadas; [...] § 1 - A legitimação do Ministério Público para as ações cíveis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo dispuserem a constituição e esta Lei. § 2 - As atribuições constantes deste artigo não excluem outras, desde que compatíveis com a finalidade do Ministério Público. § 3 - O representante do Ministério Público, no exercício de suas funções, terá livre acesso a todo local onde se encontre criança ou adolescente. [...] § 5 - Para o exercício da atribuição de que trata o inciso VIII deste artigo, poderá o representante do Ministério Público: a) reduzir a termo as declarações do reclamante, instaurando o competente procedimento, sob sua presidência; b) entender-se diretamente com a pessoa ou autoridade reclamada, em dia, local e horário previamente notificados ou acertados; c) efetuar recomendações visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública afetos à criança e ao adolescente, fixando prazo razoável para sua perfeita adequação. 350

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Ao Ministério Público compete acionar a Justiça da Infância e da Juventude, visando colocar as conquistas da Constituição e do ECA para funcionar em favor da população infanto-juvenil vilipendiada. O Ministério Público tem o poder e o dever de estimular os pretendentes à adoção, a refletir sobre a sua real motivação, investigando se suas intenções estão eivadas por razões como a esterilidade masculina, a infertilidade feminina, a solidão, pois a adoção em si mesma não é solução nem para os pretendentes nem para os adotandos, mas é determinante na construção do desenvolvimento harmônico e saudável da criança e do adolescente, observados principalmente os seus interesses fundamentais. O Ministério Público exerce relevante função quanto a garantir a plena eficácia do art. 7º do ECA, pelo qual a criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. No que tange à adoção internacional, além de viabilizar que a criança permaneça viva até que seja entregue aos adotantes para estágio de convivência, deve o representante do Ministério Público se pronunciar sobre todos os atos do processo, sob pena de nulidade do feito, que poderá ser declarada, de ofício, pelo juiz ou a requerimento de qualquer interessado. O art. 202 do ECA determina que nos processos e procedimentos em que não for parte, o Ministério Público atuará obrigatoriamente na defesa dos direitos e interesses de que cuida a Lei nº 8.069/90, quando terá vista dos autos depois das partes, podendo juntar documentos e requerer diligências, usando os recursos cabíveis. Ao Ministério Público cabe a adoção das medidas legais para que a Lei Federal sob nº 8.069, de 13 de julho de 1990 seja respeitada, inclusive, responsabilizando conselheiros tutelares que deixarem de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, e até mesmo pugnando pelo afastamento de titulares e de suplentes que porventura venham assumir provisoriamente titularidades, todavia, lhe é defeso determinar atribuições ao Conselho Tutelar ou aos seus membros em conjunto ou separadamente, muito menos responsabilizálos civil e ou criminalmente por desatenderem determinações indevidas de atribuições, tendo em vista a ausência de fundamentação para validação destas atribuições. 351

THEMIS O Ministério Público deve velar preventivamente para que os procedimentos legais e normativos sejam obedecidos, informando aos pretendentes as causas e os efeitos da adoção, pois foi incumbido pela nova ordem constitucional, dentro do princípio da prioridade absoluta, da proteção e promoção dos interesses difusos e coletivos, especialmente na área da infância e juventude, materializando-se, por exemplo, na verificação das crianças e adolescentes em situação de abandono ou de risco, para então, ajuizar a competente ação para destituição de pátrio poder, combatendo a burocracia e as exigências descabidas, com o fito de promover a proteção integral, e em último caso, a adoção. O Ministério Público no exercício do seu mister serve-se do Estatuto da Criança e do Adolescente para assegurar os direitos fundamentais mercê da nossa cultura em exigir uma lei para concretização dos direitos garantidos na Constituição, como se fosse absolutamente necessário reafirmar os direitos infirmados na Lei Maior e assegurar a sua aplicabilidade aos seus destinatários, mas a realidade adverte que passamos da fase proclamativa e entramos na era da concretização dos direitos, no dizer de Norberto Bobbio mencionado por Carlos Nelson Coutinho, (1992, p. 25). Ao operador do direito incumbe a missão de se acostar à realidade social, ultrapassando a concepção cultural jurídica clássica e promovendo o respeito aos direitos fundamentais, assegurando o exercício pessoal de direitos subjetivos, como a legitimidade para a ação e o direito de petição, dentre outros. A criança e o adolescente estão em condição especial de desenvolvimento, razão pela qual são considerados titulares de interesses juridicamente protegidos, cuja concretização e efetivação em função de seu caráter público, demandam uma defesa de maneira insofismável pelo Ministério Público, encarregado pela Constituição Federal de zelar pelos interesses sociais e individuais indisponíveis, o que impende o interesse individual da criança ou adolescente, compreendido no direito positivo sintonizado com a consciência de respeito ao valor da criança e do adolescente, objetos do movimento de transformação social e garantia de um futuro promissor para as novas gerações. A ação do Ministério Público na defesa dos direitos da criança e do adolescente está longe de ser uma militância, mas é visível o denodo e a abnegação dos membros da instituição no exercício de suas atribuições voltadas à busca da educação no momento e local adequados, na defesa contra trabalhos penosos, na inserção em programas sociais de ajuda e apoio às famílias, evidenciando que a 352

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concretização dos direitos da infância e da adolescência tem encontrado grande respaldo nas iniciativas do Ministério Público. A legitimação do Ministério Público para a defesa dos interesses individuais, difusos ou coletivos, relativos à criança e ao adolescente encontra supedâneo disposto no artigo 201, inciso V, do Estatuto da Criança e do Adolescente, inclusive para a defesa, em juízo, dos direitos individuais, pois lhe compete textualmente promover o inquérito civil e ação civil pública para a proteção destes direitos, inclusive os definidos no art. 220, § 3º, inciso II, da Constituição Federal, demonstrando que o legislador bem definiu e identificou a natureza do direito material envolvido, ao indicar como incumbência do Ministério Público, afinal o direito da criança e do adolescente é naturalmente indisponível. Certamente e felizmente, o legislador assumiu que um interesse de tal categoria pertence tanto à individualidade quanto à coletividade, basicamente por estar inserido na doutrina da proteção integral, que visa construir uma sociedade livre, justa e solidária, mas principalmente por que não se imiscuiu na questiúncula da representatividade ou da assistência, na defesa dos interesses individuais homogêneos, coletivos ou difusos, mas tratou de atender ao anseio e ao interesse da sociedade, reservando ao Ministério Público a atribuição e a legitimidade para a defesa dos interesses da criança e do adolescente, exatamente por serem indisponíveis, portanto, merecedores de todas as atenções. A defesa dos direitos da criança e do adolescente está jungida ao princípio da proteção integral e dentro do sistema de garantias de interesses sócio-individuais, coletivos ou difusos terá a tutela jurisdicional manejada através da ação competente, formulada pelo órgão que tem a qualidade e a legitimidade para a tutela do interesse dependente de concretização e, nestas condições, é entendimento pacífico que esta legitimação para a provocação da tutela jurisdicional decorre do interesse público para a consecução do bem público e do sujeito processual, nos termos do disposto no artigo 201, inciso V, do Estatuto da Criança e do Adolescente e nas determinações constitucionais insertas no inciso III e do § 1º do artigo 129, relativo às matérias, competência e legitimidade do Ministério Público. Ademais, a legitimação do Ministério Público é uma forma de garantia de acesso à justiça, visando à proteção do interesse material e justifica-se pela natureza do direito envolvido, pela condição especial de sua titularidade e finalmente pela vigência e eficácia plena do comando no ordenamento jurídico, pois os direitos envolvidos merecem atenção especial da sociedade. 353

THEMIS O Ministério Público quando não for parte, atuará obrigatoriamente, como fiscal da lei, na defesa dos direitos e interesses da criança e do adolescente, conforme dispõem os artigos 200 e 202 do ECA, devendo ter vista dos autos depois das partes, cabendo-lhe juntar documentos, requerer diligências e fazer uso de todos os recursos admitidos em direito, manifestar fundamentadamente, nos termos do art. 205 do ECA, devendo ainda, ser intimado pessoalmente, consoante art. 203 do ECA, portanto, a falta de sua intervenção gera nulidade absoluta, declarada de oficio pela autoridade judicial ou a requerimento de qualquer interessado, conforme art. 204 do ECA. 2.3 Do advogado O advogado é indispensável à administração da justiça, nos termos dos artigos 5º, inciso LXII e 133 da Constituição Federal, e no exercício do seu míster exerce função social ao prestar um serviço público, buscando na sua postulação uma decisão compatível com os interesses do seu constituinte, sendo inviolável nos seus atos e manifestações, desde que formuladas nos limites legais. A atuação do advogado deve fundar-se no cumprimento da Constituição Federal e no respeito à lei, promovendo a interpretação legal colimada aos fins sociais e às exigências do bem comum, de sorte que o seu constituinte tenha o devido amparo na consecução dos legítimos interesses, tendo em vista que o direito é um meio de mitigar as desigualdades e buscar a solução justa. O Código de Processo Civil, no seu artigo 36, determina a representação em juízo por advogado legalmente habilitado, embora admita a auto-postulação, desde que tenha habilitação legal. A criança e o adolescente, segundo o artigo 15 do ECA, são sujeitos de direitos em condição especial de desenvolvimento, cabendo a todos velar pela sua dignidade, assegurando que estejam a salvo qualquer tratamento desumano, degradante ou vexatório, nos termos do art. 19 do ECA, devendo ser educado e criado no seio de sua família, admitida excepcionalmente a colocação em família substituta, neste particular, a perda ou a suspensão do poder familiar só poderão ser decretadas mediante procedimento judicial. O Estatuto estabelece nos artigos 110 e 111, que são assegurados à criança e ao Adolescente algumas garantias processuais, como a citação, a igualdade processual, o contraditório e a ampla defesa, a defesa técnica por advogado, a assistência judiciária gratuita e integral e o direito de ser ouvido pela autoridade competente. 354

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O ECA, porém, adotou o princípio da obrigatoriedade da presença do advogado nos procedimentos relativos à prática de ato infracional por criança ou adolescente e, nos demais procedimentos, faculta à criança, ao adolescente, aos seus pais ou responsáveis intervir no feito através de advogado constituído. O entendimento de alguns operadores do direito dá conta de que o art. 166, do Estatuto da Criança e do Adolescente, prevê a dispensa de intervenção de advogado em caso de colocação de criança em família substituta, quando os pais da criança forem falecidos, tiverem sido destituídos ou suspensos do pátrio poder, ou houverem aderido expressamente ao pedido de colocação em família substituta, portanto, o pedido de colocação em família substituta poderá ser formulado diretamente em juízo, em petição assinada pelos próprios requerentes, facultativa, nessas hipóteses, a presença de advogado, uma vez que a lei indica poderá. Este entendimento pode não ser razoável, pois a atuação do advogado não se choca com os interesses da criança ou adolescente, sujeito passivo da medida pleiteada, pelo contrário, a presença de advogado é benéfica, tendo em vista não haver mal-ferimento aos princípios processuais como a celeridade, nem a constituição de advogado pode representar uma exigência de custo econômico desnecessário às partes, vez que o parágrafo único do art. 206 do Estatuto, prevê a prestação de assistência judiciária integral e gratuita aos que dela necessitarem. A faculdade de dispensa de constituição de advogado só seria justificável se produzisse alguma vantagem ou facilidade no trabalho da assistência judiciária, sobrecarregada, mas neste diapasão também se poderia facultar a participação do Ministério Público, restando essencial apenas a participação do juiz como essencial ao processo, o que é impensável. Evidentemente que o princípio da proteção integral, preconizado na Constituição e no ECA, influencia sobremaneira a importância da defesa técnica em questões que envolvam direitos da criança e do adolescente, basta entender e compreender o comando do art. 207 do ECA, que não admite a ausência de defensor quando esteja sob exame ato infracional atribuído a criança ou adolescente, competindo ao juiz, de ofício, nomear defensor ou substituto, razão pela qual impende também admitir a presença do defensor nos casos de adoção. No Estado do Ceará adotou-se a postura de permitir a representação pelo advogado quando através da Resolução 01/2000, de 27 de dezembro de 2000, a CEJAI – Comissão Estadual de Adoção Internacional, designada Autoridade Central Administrativa Estadual – ACAE, nos termos do art. 4º do 355

THEMIS Decreto 3.174/99, de 16 de setembro de 1999, considerando o que preceituam o inciso V, do art. 2º, do Decreto 3.174/99, e a Portaria 14/2000, da Autoridade Central Administrativa Federal – Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça decidiu em seu art. 3º, inciso III, exigir que os pedidos de cadastramento de adotantes estrangeiros e de adoções internacionais somente sejam formulados por entidades credenciadas, sem prejuízo da eventual representação por advogado. Tratando-se de pedido de habilitação à adoção, efetuado por estrangeiros, é facultativa a intervenção do advogado, todavia, se o procedimento afeiçoarse ao contraditório, torna-se obrigatória a intervenção, nos termos da cláusula oitava, da Resolução 03/2001, do Conselho de Autoridades Centrais Brasileiras. 2.4 Da Polícia Federal A entrada em vigor da Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, concluída em Haia, em 29 de maio de 1993, aprovada pelo Decreto Legislativo n.º 1, de 14 de janeiro de 1999, e promulgada pelo Decreto n.º 3.087, de 21 de junho de 1999, no ordenamento jurídico brasileiro, trouxe novas atribuições para várias instituições, órgãos e poderes públicos. A implementação dos preceitos insculpidos na Convenção de Haia promoveu um incremento das adoções internacionais, levando à necessidade de maior controle de entrada e saída de pessoas no território nacional, provocando a ação da Polícia Federal a criar mecanismos de análise documental e demais exigências que perfectibilizem a expedição do competente passaporte para o adotando. A criança adotada por casal estrangeiro requer uma documentação específica para saída do seu país de origem, como certidão de nascimento do adotado e certidão de nascimento original cancelada, sentença de deferimento da adoção, alvará judicial autorizando a Polícia Federal a expedir o passaporte, A Convenção da Assembleia Geral da ONU, de 23.11.89, no art.35, determinou ser competência da Justiça de cada Estado inibir e coibir o tráfico, a venda, o comércio internacional de crianças. A Convenção passou a vigorar no Brasil em 23.10.90. Dessa forma, foi também determinada a competência da Polícia Federal para a realização de inquéritos e investigações nessa área. 356

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A adoção internacional transitada em julgado não carece de mais controles, todavia, como fiscal da lei, é papel do representante do Ministério Público durante o trâmite processual, verificar o cumprimento das exigências legais e da aplicação da Lei. A previsão específica do art. 85 da Lei nº 8.069/90, determina que a Polícia Federal exija alvará  judicial para emissão de passaporte em nome do adotado, uma vez que viajará ao exterior com seus pais estrangeiros, o que se dará somente após concluída a adoção. A Convenção sobre os Direitos da Criança celebrada em Genebra e ratificada pelo Decreto n.° 99.710, em novembro de 1990 e a Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, concluída em Haia, em 29 de maio de 1993, promulgada pelo Decreto n° 3.087, de 21 de junho de 1999, obriga o Brasil a prevenir e reprimir os ilícitos envolvendo adoção internacional e transferência ilegal de crianças e adolescentes brasileiros para o exterior, o que levou o país a instituir no âmbito do Departamento de Polícia Federal o cadastramento das entidades nacionais e estrangeiras que atuam em adoção internacional de crianças ou adolescentes brasileiros, como requisito obrigatório para funcionamento no Brasil. Toda a documentação requerida deverá ser apresentada em idioma local, devidamente autenticada no consulado brasileiro do país de origem, acompanhada de tradução para o idioma português feita por tradutor público juramentado, segundo o art.51, § 3° do Estatuto da Criança e do Adolescente. Considera-se efetivado o cadastro quando a DPMAF/CCP/DPF registrar o formulário de requerimento de cadastramento em sistema próprio e expedir o certificado de cadastramento, que terá validade de 1 (um) ano, tomando por base a data de sua expedição. O modelo do certificado de cadastramento de entidades nacionais e estrangeiras que atuam em adoções internacionais de crianças e adolescentes brasileiros, os respectivos formulários de requerimento, os critérios e procedimentos para aplicação das normas pertinentes foram estabelecidos e fixados na Portaria nº. 815/99 - DG/DPF, de 28 de julho de 1999. A certificação de cadastramento servirá de prova junto à Autoridade Central Administrativa Federal – Ministério da Justiça, para fins de credenciamento, conforme instruções estabelecidas na Portaria nº 1055/2000DG/DPF, de 06 de outubro de 2000, atestando nos termos da Lei Complementar nº 89, de 18 de fevereiro de 1997, regulamentada pelo Decreto nº 2.381, de 12 357

THEMIS de novembro de 1997, que a entidade está devidamente cadastrada na DPMAR/ CGCP/DPF, devendo proceder ao credenciamento junto à Autoridade Central Administrativa Federal, em obediência ao Art. 7º, do Decreto 2.381, estabelecendo que as empresas instaladas ou que vierem a se instalar no país, para realizarem atividades de transporte marítimo, aé­reo e terrestre internacional, bem como as entidades, escritórios ou prepostos, nacionais e estrangeiros, que atuam ou vierem a atuar em adoções de crianças ou adolescentes, ficam obrigadas a cadastramento e vistoria anual a cargo do Departamento de Policia Federal. A entidade cadastrada deverá requerer renovação de seu cadastro, nos 30 (trinta) dias, imediatamente anteriores ao vencimento do certificado, em requerimento próprio, instruído com cópia do certificado vencendo e comprovante do recolhimento da respectiva taxa. O representante legal da entidade que atua em adoções internacionais, para realizar quaisquer atos junto ao Departamento de Polícia Federal, deverá apresentar documentação comprobatória ou procuração por instrumento público, demonstrando que possui poderes amplos para agir e responder pela instituição, obrigando-se, ainda, a encaminhar mensalmente relatório nominal das crianças adotadas no Brasil. A Polícia Federal, através da sua Delegacia Marítima, Aeroportuária e Fronteiras, deverá colaborar com a Divisão Consular do Ministério das Relações Exteriores (MRE), a fim de proceder à coleta de dados relativos à habilitação para adoção internacional e obtenção de vistos consulares por casais estrangeiros, candidatos à adoção, promoverá a difusão desses dados às respectivas unidades do DPF, em cuja circunscrição dar-se-á a adoção, onde se solicitado, investigarse-á os atos precedentes ao trâmite judicial do processo de adoção, para confirmar a regularidade e legalidade desses atos, interagindo, em apoio, com a respectiva Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional. (nova redação conf. Port. 1055/2000 –DG/DPF). Compete ainda à Polícia Federal acompanhar as adoções internacionais, promovendo os relatórios sigilosos em sistema próprio e comunicando à Autoridade Central Administrativa Federal e à Divisão Consular e de Assistência a Brasileiros no Exterior do Ministério das Relações Exteriores, todas as adoções efetivadas, inclusive o número do respectivo passaporte expedido em nome do adotado. Para o cumprimento do seu dever de polícia, o Estado Brasileiro, imiscuído pelas idéias neo-liberalizantes, criou através da Lei Complementar 358

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nº 89, de 06 de outubro de 2000, o FUNAPOL – Fundo para o Aparelhamento e Operacionalização das atividades-fim da Polícia Federal, instituindo as taxas fixadas em Unidade Fiscal de Referência (Ufir), cujo fato gerador é a expedição de certificado de cadastramento de entidades nacionais e estrangeiras que atuam em adoções internacionais de crianças e adolescentes, conforme inteligência do art. 2º, inciso X, da citada lei complementar. Por fim, nos termos do art. 5º. Inciso IV e parágrafo único, do Decreto nº 3.174, de 16 de setembro de 1999, foi assegurada a participação de um representante do Departamento de Polícia Federal no Conselho das Autoridades Centrais Brasileiras, cujo objetivo é avaliar semestralmente os trabalhos efetuados e traçar políticas e linhas de ação comuns, visando o efetivo cumprimento, pelo Brasil, das responsabilidades decorrentes da ratificação da Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional. 2.5 Dos Organismos credenciados A Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, concluída em Haia em 29 de maio de 1993, aprovada pelo Decreto Legislativo n.º 1, de 14 de janeiro de 1999, e promulgada pelo Decreto n.º 3.087, de 21 de junho de 1999, reconhece que para o desenvolvimento harmonioso de sua personalidade, a criança e o adolescente devem ser criados no seio familiar, todavia, entende que na impossibilidade, a adoção pode representar a um meio de dar-lhe uma família, com especial atenção ao interesse superior da criança e com o devido respeito aos seus direitos fundamentais, como forma de prevenir os riscos inerentes ao abandono e aos maus-tratos. A entrada em vigor, para o Brasil, da Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, desnudou para a sociedade brasileira a existência de entidades, organismos, Ong’s, que trabalham ou prestam serviços e apoio à causa da infância e da adolescência, no âmbito do território nacional. Evidentemente que já estavam executando suas atividades desde outrora, todavia, doravante, todo o ordenamento jurídico, inclusive, e principalmente, a Convenção de Haia, colocou a obrigatoriedade de controle e adequação da atuação destes organismos, razão pela qual se iniciou o seu credenciamento, para tanto foi necessário definir a forma de atuação, a responsabilidade pela atribuição do credenciamento, enfim, determinar publicamente o que, quando, onde e quem estaria submetido a essa regulamentação. 359

THEMIS A atuação das entidades de adoção credenciadas deve garantir que a doutrina jurídica de proteção integral à infância e à adolescência será devidamente observada em face dos princípios da excepcionalidade da adoção e da primazia do vínculo familiar, sem exclusão da proteção judicial de outros interesses individuais, difusos ou coletivos, próprios da infância e da adolescência, nos termos da constituição e da legislação pertinente. A participação dos organismos credenciados na política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente dar-se-á através de ações governamentais e não-governamentais, segundo os termos do art. 86 a 97 da Lei nº 8.069/90, mediante a criação de programas e fundos específicos, geridos de forma integrada operacionalmente, visando o planejamento e a execução das ações destinadas à proteção e especialmente à colocação familiar, consoante inteligência do art. 90, inciso III, da Lei nº 8.069/90, demonstrando o acerto do legislador ao reconhecer o seu mérito, cedendo-lhes espaço de atuação na política de atendimento da criança e do adolescente. A Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção estabelece em seu artigo 7º o princípio da colaboração e da cooperação entre as autoridades e participantes do processo, visando assegurar a proteção das crianças e adolescentes, e assegurar o alcance dos demais objetivos da Convenção. A obtenção e a conservação do status de organismo credenciado, nos termos dos artigos 10 e 11 da Convenção de Haia se dará mediante a demonstração da aptidão no cumprimento das tarefas que lhe forem confiadas, desde que na sua atuação se dê dentro das condições e dos limites fixados pelas autoridades competentes no território de atuação, assim como seus dirigentes e administradores sejam qualificados e íntegros, com formação ou experiência para atuação na área de adoção. Os organismos credenciados e seus dirigentes estarão permanentemente submetidos à supervisão das autoridades competentes no território do Estado de atuação e seus nomes e endereços serão objeto de controle e informação ao Bureau Permanente da Conferência de Haia de Direito Internacional Privado, nos termos dos artigos 12 e 13 da Convenção de Haia. As funções atribuídas pela Convenção de Haia às autoridades no país de acolhida e no país de origem da criança poderão ser objeto de autorização ou delegação aos organismos credenciados, nos limites legais permitidos e sob o controle das autoridades competentes em cada Estado, desde que satisfaçam 360

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as exigências de integridade moral, de competência profissional, experiência e responsabilidade exigidas para atuação em questões de adoção de crianças e adolescentes, conforme artigo 22 da Convenção de Haia. Os organismos credenciados, seus dirigentes, administradores e empregados não poderão receber remuneração desproporcional em relação aos seus serviços prestados, todavia, não poderão obter vantagens materiais indevidas em razão de sua intervenção em uma adoção. Somente se admitirá a cobrança e o pagamento de custas, despesas e honorários profissionais razoáveis de pessoas que efetivamente tenham intervindo na adoção, consoante art. 32 da Convenção de Haia. O credenciamento dos organismos que pretendem atuar ou continuar atuando em matéria de adoção no território nacional é requisito obrigatório para efetuar quaisquer procedimentos junto às Autoridades Centrais dos Estados Federados e do Distrito Federal, art. 1º, parágrafo único da Port. 14 de 27 de julho de 2000. O credenciamento das organizações que atuam na cooperação em adoção internacional será expedido por meio de Portaria do Secretário de Estado dos Direitos Humanos, depois de observados os pareceres da Coordenação Geral de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação, da Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça; da Divisão de Assistência Consular, do Ministério das Relações Exteriores e da Divisão de Polícia Marítima, Aeroportuária e de Fronteiras, do Departamento de Polícia Federal. O certificado de cadastramento expedido pela Divisão de Polícia Marítima Aeroportuária e de Fronteiras, do Departamento de Polícia Federal não autoriza qualquer organização a atuar em adoção internacional no Estado brasileiro, sendo necessário o credenciamento junto à autoridade central administrativa federal. Para ser credenciada, a organização que atua em adoção internacional no Estado brasileiro deverá estar devidamente credenciada pela autoridade central de seu país de origem, ter solicitado à Coordenação Geral de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação, da Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça, autorização para funcionamento no Brasil, para fins de reconhecimento da personalidade jurídica às organizações estrangeiras, na forma Decreto Lei n.º 4.657, de 4 de setembro de 1942, e estar de posse do registro assecuratório de caráter administrativo federal na órbita policial de investigação, obtido junto ao Departamento de Polícia Federal, nos termos da Portaria n º 815/99, DG/DPF, de 28 de julho de 1999. 361

THEMIS O descumprimento de qualquer uma das instruções implicará no descredenciamento da organização que atua em adoção internacional no Estado brasileiro. O objetivo dos organismos credenciados é colaborar e cooperar com as autoridades competentes no território nacional a dar fiel, integral e efetivo cumprimento às obrigações impostas pela Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção. Através do Decreto 5.491, de 18 de julho de 2005, o assunto foi regulamentado em linhas gerais, instituindo o credenciamento de todos os organismos nacionais e estrangeiros que atuam em adoção no território brasileiro ou em outros países, definindo os conceitos formais, a forma obrigatória de credenciamento, cadastramento, registro, a forma de atuação, os requisitos para os seus dirigentes, a forma de fiscalização e controle de suas atividades, restringindo o credenciamento aos organismos oriundos de países signatários da Convenção de Haia. 2.6 Das Cejas e Cejais A regra é a criança e o adolescente serem criados e educados no seio da sua família, assegurando-lhe a convivência familiar e comunitária em ambiente saudável. A legislação cogente admite, excepcionalmente, a colocação em família substituta, quando esgotados os meios e as condições, ainda assim, mediante procedimento contraditório, seja a medida decretada pela autoridade judicial. A doutrina da proteção integral sedimentou a condição de fundamentais aos direitos subjetivos da criança e do adolescente, impondo nova compreensão, esforços e materialização dos operadores do direito, das instituições e dos poderes constituídos a respeito dos instrumentos de exigibilidade, garantia e exercício legítimo destes direitos, em sintonia com os anseios da sociedade brasileira. O sistema de justiça deve superar o paradigma tradicional e ater-se à solução dos conflitos jurídicos de interesses, mas por outro lado deve interagir com os demais organismos sociais e instituições, adequando a sua atuação de maneira integrativa, especialmente no campo de incidência do Estatuto da Criança e do Adolescente, através de ações reordenadas para a efetivação dos princípios da proteção integral, respeitando os limites de atribuições e competências interdisciplinares e interinstitucionais. 362

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A adoção tem sido utilizada como um bálsamo para os problemas sociais mundiais, mas ainda assim, tem sido uma esperança para milhares de crianças pelo mundo, sendo certo que a legislação em vários países, tem buscado promover o instituto sem, contudo, permitir a sua desvirtualização, sendo tema preponderante nos fóruns das Nações Unidas, onde se busca a prática comum em atitudes e comportamentos. Hodiernamente, afirma-se que a colocação de uma criança em família substituta é no caso brasileiro, uma operação intrincada, burocrática, leniente, inviabilizando o interesse de possíveis adotantes pelo enfado e pela desconfiança nos mecanismos de controle. Efetivamente não ocorre na realidade desta forma, nem de maneira tão lenta. Há sim, mecanismos legais, porém descomplicados e as regras processuais são bastante claras, embora se admita até um excesso regulamentador, mas garante segurança e certeza aos envolvidos. A previsão legal do Estatuto da Criança e do Adolescente menciona que o pedido de adoção formulado por estrangeiro residente ou domiciliado no país é, nos termos do artigo 31, uma modalidade ou medida excepcional, podendo ser condicionada ao estudo prévio e análise de uma comissão estadual judiciária de adoção, segundo o art. 52 do ECA, para o fornecimento do laudo de habilitação, que servirá para instruir o processo de adoção perante o Juízo competente. O ECA, buscando não vulnerabilizar o princípio federativo, empregou o termo comissão estadual, pois cada CEJA ou CEJAI representa uma unidade federativa, mas também as qualificou de judiciárias, na medida em que expressou a vontade constitucional de reservar ao Poder Judiciário o seu respectivo espaço, em consonância com a tripartição dos poderes, com independência e harmonia de ação. A CF reservou, através do inciso XV, do art. 24, a competência concorrente dos entes federativos para legislar em matéria de proteção à infância e à adolescência, portanto, foram as CEJAS/CEJAIS instituídas segundo as normas de organização judiciária dos estados, consoante o artigo 125, também da CF. Criticas surgem a respeito da criação dessas comissões, confabulando a respeito da faculdade legal, quando o artigo 52 do ECA menciona que “poderá” ser a adoção internacional objeto de estudo prévio e análise, todavia o detalhe textual “fornecerá” é inolvidável, posto que se a legislação atribuiu uma competência, esta é indeclinável, intransferível, portanto, obrigatória. 363

THEMIS As CEJAS e CEJAIS são instrumentos do Poder Público na observação da legalidade e dos procedimentos, garantidoras do sentimento comum quanto à operacionalização das adoções, sejam nacionais ou internacionais, estas sim, objeto de hesitação da maioria dos operadores do direito, sob a o azo de objetivos escusos e do acumpliciamento. Todavia, apenas aqueles que convivem com os filhos da indigência, que conhecem as suas dificuldades e seu sofrimento, sabem que a adoção é como um altar iluminado à espera das preces mudas e dos lamentos da humanidade, e neste espaço social comparece as CEJAS/CEJAIS, com a sua segurança jurídica, a prestar um serviço público da maior relevância, no exercício de suas atribuições regimentais e legais, buscando soluções compatíveis com o problema das adoções, orientando e atendendo os interessados, analisando, checando, conferindo, emitindo os pareceres competentes para efetivar a adoção. Para o desempenho de suas atribuições, as CEJAS/CEJAIS foram dotadas de competência para organizar e manter atualizado o cadastro de pretendentes nacionais e estrangeiros e de crianças declaradas em situação de risco pessoal ou social, que não estejam em lar substituto, para uso de todas as comarcas, no âmbito de sua jurisdição, avaliando e certificando os pretendentes a adoção. A competência alcança temas como a divulgação de projetos de adoção, esclarecimentos de suas finalidades, velando para que o instituto da adoção seja em benefício dos adotandos, bem como promove acordos e ajustes com outras instituições especializadas de reconhecida idoneidade para a cooperação e colaboração na formalização de adoções e seu respectivo controle. A Convenção de Haia, em seu artigo 6º, estabeleceu que cada estado contratante, entenda-se cada país signatário, designará uma autoridade encarregada do cumprimento das obrigações decorrentes da Convenção, todavia, o Brasil é uma unidade federativa, composta por vários estados federados, cada estado federado possui a sua comissão de adoção, então teríamos um aparente conflito, mas o item 2, do mesmo artigo 6º, da Convenção, flexibilizou o texto, determinando que no país onde funcionar o sistema federativo, ou seja, com unidades autônomas, uma autoridade centralizadora, poderá ser designada, investida de competência e atribuições para fazer a confluência e a cooperação. 2.7 Do Cinj No Estado do Ceará, os articuladores do Sistema de Justiça da Infância e da Juventude vislumbraram que a Doutrina Jurídica da Proteção Integral além de 364

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provocar reflexos diretos na implementação do novo paradigma doutrinário, nos procedimentos e nas decisões, demanda a necessidade de orientação quanto ao ordenamento do conteúdo doutrinário aos magistrados, membros do Ministério Público, advogados, defensores públicos, demonstrando a carência de um órgão disseminador dos conteúdos. Neste diapasão foi criado o CINJ - Conselho Judiciário para Infância e Juventude, composto pelo Presidente do TJCE, pelo Vice-Presidente do TJCE, pelo Corregedor Geral de Justiça, pelo Presidente da CEJAI e pelo Procurador Geral de Justiça, cuja missão principal é a proposição de política de atuação do Judiciário Cearense na esfera de Infância e Juventude, destacando-se dentre as suas atribuições: a uniformização de normas e procedimentos, a sistematização de ações fiscalizadoras de natureza pedagógico-correicional, as campanhas de esclarecimento à sociedade, o reaparelhamento e modernização dos Juizados da Infância e Juventude, a promoção de intercâmbio técnico com organismos congêneres nacionais, internacionais, públicos e privados, estudar a viabilidade de regionalização dos Juizados da Infância e Juventude e implantar programas de capacitação de magistrados e servidores. O Conselho contará com o apoio de um Núcleo Executivo formado por Juízes com atuação na área de infância e juventude, bem como psicólogos, assistentes sociais e orientadores educacionais, formando um grupo interdisciplinar com o objetivo de auxiliar as decisões dos magistrados através de um perfil contextualizado das questões. 2.8 Da Autoridade Central Administrativa Estadual - Acae A criação da Autoridade Administrativa Estadual é uma consequência necessária para a adequação das CEJAS e CEJAIS às formalidades da Convenção de Haia. O Decreto 3.174, de 16 de setembro de 1999, designou-as como Autoridades Centrais no âmbito dos Estados federados e do Distrito Federal, competindo-lhes exercer as atribuições operacionais e procedimentais determinadas pelas respectivas leis de organização judiciária e normas locais, excluídas as de natureza administrativa a cargo da Autoridade Central Federal. Art. 4º - Ficam designadas como Autoridades Centrais no âmbito dos Estados federados e do Distrito Federal as Comissões Estaduais Judiciárias de Adoção, previstas no art. 52 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, ou os órgãos análogos com distinta nomenclatura, aos 365

THEMIS quais compete exercer as atribuições operacionais e procedimentais que não se incluam naquelas de natureza administrativa a cargo da Autoridade Central Federal, respeitadas as determinações das respectivas leis de organização judiciária e normas locais que a instituíram. Parágrafo único. As competências das Autoridades Centrais dos Estados federados e do Distrito Federal serão exercidas pela Autoridade Central Federal, quando no respectivo ente federado inexistir Comissão Estadual Judiciária de Adoção ou órgão com atribuições análogas.

2.9 Da Autoridade Central Administrativa Federal - Acaf A vigência da Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional concluída em Haia, em 29 de maio de 1993, aprovada pelo Decreto Legislativo n.º 1, de 14 de janeiro de 1999, e promulgada pelo Decreto n.º 3.087, de 21 de junho de 1999, levou o Brasil a adotar novos mecanismos para dar cumprimento às obrigações impostas pela Convenção. A designação da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça, por meio do Decreto n.º 3.174, de 16 de setembro de 1999, como Autoridade Central Administrativa Federal, encarregou-a de dar cumprimento às obrigações impostas pela Convenção, atribuindo-lhe a competência pra representar os interesses do Estado brasileiro na preservação dos direitos e das garantias individuais das crianças e dos adolescentes. Cumpre-lhe estabelecer a cooperação com as Autoridades Centrais dos Estados estrangeiros contratantes da Convenção e promover ações de cooperação técnica e colaboração entre as Autoridades Centrais dos Estados federados brasileiros e do Distrito Federal, a fim de assegurar a proteção das crianças e alcançar os demais objetivos da convenção, estabelecer as políticas e linhas de ação do Programa Nacional de Cooperação em Adoção Internacional, instituído pelo Artigo 3o do Decreto nº 3.174, de 16 de setembro de 1999, acompanhando a execução e observando as linhas de ação e diretrizes previstas no ECA. Cabe também à Autoridade Central Administrativa Federal, promover o credenciamento dos organismos que atuem em adoção internacional no Estado Brasileiro, verificando seu credenciamento junto ao país de origem e junto ao Bureau Permanente da Conferência de Haia de Direito Internacional Privado. 366

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Compete à Autoridade Central gerenciar os bancos de dados de pretendentes nacionais e estrangeiros e de crianças e adolescentes disponíveis para adoção, visando ao fornecimento de dados estatísticos para análise das Autoridades Centrais de cada Estado Federado, do Ministério das Relações Exteriores e da Polícia Federal, especialmente para controle de localização e registro de brasileiros no exterior. Compete também à Autoridade Central tomar em conjunto com as Autoridades Centrais dos Estados federados e do Distrito Federal, diretamente ou com a colaboração de outras autoridades públicas, todas as medidas apropriadas para prevenir benefícios materiais induzidos por ocasião de uma adoção e para impedir quaisquer práticas contrárias aos objetivos da Convenção mencionada neste Decreto. A Convenção de Haia, em seu artigo 6º, informa que cada país signatário designará uma Autoridade Central que ficará encarregada de dar cumprimento às obrigações impostas pela Convenção, contudo, se em determinado país, vigorar mais de um sistema jurídico ou sistema federativo, cujas unidades tenham autonomia, deve, então, designar uma autoridade para unidade e neste caso, deverá criar uma autoridade centralizadora, a quem serão dirigidas todas as comunicações pertinentes à operacionalização dos procedimentos recomendados pela Convenção de Haia. Art. 6 – 1. Cada Estado Contratante designará uma Autoridade Central encarregada de dar cumprimento às obrigações impostas pela presente Convenção. 2. Um Estado federal, um Estado no qual vigoram diversos sistemas jurídicos ou um Estado com unidades territoriais autônomas poderá designar mais de uma Autoridade Central e especificar o âmbito territorial ou pessoal de suas funções. O Estado que fizer uso dessa faculdade designará a Autoridade Central à qual poderá ser dirigida toda a comunicação para sua transmissão à Autoridade Central competente dentro desse Estado.

2.10 Do Conselho de Autoridades Centrais Brasileiras Ao envolver várias Autoridades Centrais Brasileiras, entendeu-se necessária a composição de um conselho com o objetivo de dar o cumprimento adequado, pelo Brasil, das responsabilidades assumidas por força da ratificação da Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional. 367

THEMIS O Conselho é órgão político deliberativo, cujo objetivo é traçar políticas e linhas de ação comuns, objetivando o cumprimento adequado, pelo Brasil, das responsabilidades assumidas por força da ratificação da Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, assim como avaliar periodicamente os trabalhos efetuados pelas Autoridades Centrais dos Estados Federados e do Distrito Federal. Pela inteligência do art. 5º do Decreto presidencial nº 3.174, de 16 de setembro de 1999, foi criado o Conselho das Autoridades Centrais Brasileira, composto e presidido pela Autoridade Central Federal, por um representante de cada Autoridade Central dos Estados federados e do Distrito Federal, um representante do Ministério das Relações Exteriores e um representante do Departamento de Polícia Federal. Sua finalidade é garantir o interesse superior da criança e do adolescente brasileiros quanto à sua adotabilidade internacional, observando a Doutrina Jurídica de Proteção Integral consubstanciada no artigo 227 e incisos da Constituição Federal, na Convenção das Nações Unidas sobre Direitos da Criança, de 20 de novembro de 1989, na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, e na Convenção Relativa à Proteção das Crianças e a Cooperação em Matéria de Adoção Internacional - Convenção de Haia, de 29 de maio de 1993. O Conselho tem atribuição de se articular com as Autoridades Centrais dos Estados Federados e do Distrito Federal e entidades de adoção credenciadas para acompanhar a aplicação da Convenção da Haia nos Estados Federados e no Distrito Federal, planejar e apoiar eventos e campanhas educativas que mobilizem e articulem a sociedade em torno da doutrina jurídica de proteção integral, com o fito de garantir que a doutrina jurídica de proteção integral à infância e à adolescência observe os princípios da excepcionalidade da adoção e da primazia do vínculo familiar. O Conselho deve verificar se as adoções de crianças e adolescentes brasileiros por adotantes de Estados Contratantes observam com prioridade o princípio do interesse superior da criança, para prevenir irregularidades como o tráfico, o sequestro, a venda de crianças e os benefícios materiais induzidos por ocasião de uma adoção, impedindo práticas contrárias aos objetivos da Convenção da Haia. O Conselho das Autoridades Centrais Brasileiras reunir-se-á semestralmente para avaliar os trabalhos efetuados no período e traçar políticas 368

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e linhas de ação comuns, objetivando o cumprimento adequado pelo Brasil das responsabilidades assumidas por força da ratificação da Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional. O Conselho das Autoridades Centrais Brasileiras em sua primeira reunião em maio de 2000, em Cuiabá, deliberou que as Autoridades Centrais Estaduais devem manter nos cadastros de pretendentes estrangeiros à adoção, oriundos de Países que ainda não ratificaram a Convenção, primeiro por que a Convenção de Viena, da qual o Brasil é signatário, informa que os Tratados e Convenções têm efeitos apenas inter-partes, não alcançando a terceiros Países, e no entendimento do Supremo Tribunal Federal, as Convenções são hierarquicamente equivalentes a uma Lei Ordinária, segundo, por que inexiste lei vedando adoções internacionais de crianças brasileiras por estrangeiros oriundos de países não ratificantes da Convenção de Haia. O Conselho recomendou a adoção de regras esclarecedoras do princípio da subsidiariedade que asseguram preferências aos brasileiros em relação aos pretendentes oriundos de países que ratificaram a Convenção, que por sua vez também têm preferência sobre candidatos vindos de países que não a ratificaram, ao tempo em que sugere que as Autoridades Centrais Estaduais priorizem também a uniformização dos documentos instrutórios dos pedidos de habilitação, sempre que possível aceitando pleitos formulados através de cópias autenticadas, exigindo a sua apresentação no original, quando necessário, apensa por ocasião do pedido formal de adoção. O Conselho recomendou a prioridade na instalação e implantação, em todo o território do respectivo estado, do módulo III, INFOADOTE, do Projeto Sistema de Informações para a Infância e Adolescência, de forma a integrar e centralizar dados de todo o País na Autoridade Central Federal. Foi sugerido que a convocação de pretendentes se faça exclusivamente através da Autoridade Central do respectivo Estado do juízo natural da adoção, perante a Autoridade Central do País de acolhimento, sem prejuízo da concomitante comunicação ao representante local do organismo credenciado, em modelo que contemple o máximo de informações sobre o adotando, como exigido no art. 16, inciso I, alínea a, da Convenção. Recomendou também a celebração de Convênios com as congêneres de outros estados, ampliando o uso do sistema INFOADOTE e gerando mais alternativas para que as crianças em condições de serem adotadas permaneçam no Brasil, colocando-as em família substituta brasileira. 369

THEMIS

2.11 Dos Conselhos Tutelares O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, não subordinado, nem vinculado ao Ministério Publico ou ao Poder Judiciário, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos por lei, possibilidade de participação direta da sociedade civil, através de seus diversos segmentos, na resolução das questões particularmente inerentes aos direitos das crianças e dos adolescentes, isto é, daqueles que se constituem, por suas subjetividades, na matéria prima da sociedade brasileira. O atendimento de crianças e adolescentes e suas respectivas famílias é efetuado primeira e prioritariamente pelos Conselhos Tutelares, todavia, não lhes foi atribuída competência de caráter não jurisdicional, que permitisse a aplicação da medida protetiva de colocação em família substituta prevista no art.101, inciso VIII da Lei nº 8.069/90, bem como outras que importassem no rompimento da convivência parental, previstas no art.129, incisos VIII, IX e X do mesmo Diploma Legal, pois estas são de competência exclusiva da autoridade judiciária. Restou assim o Conselho Tutelar incumbido da função de defensor intransigente da manutenção da criança ou adolescente em sua família natural ou de origem, não sendo lícita ao órgão a tomada de qualquer iniciativa em sentido contrário, ainda que para tal finalidade seja procurado ou provocado pelos próprios pais da criança e/ou adolescente. A forma de atuação e atribuições dos Conselhos Tutelares será estabelecida por legislação municipal, que disporá sobre local, dia e horário de seu funcionamento, a eventual remuneração de seus membros – nos termos do art. 134, da Lei Federal sob nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Nos termos do art. 136 do ECA, dentre as atribuições do Conselho Tutelar destacam-se: o atendimento e encaminhamento dos casos de violação de direitos da crianças e adolescentes, a requisição de serviços aos órgãos governamentais e não-governamentais de atendimento, a prerrogativa de petição ao Ministério Público quando não for atendido em suas requisições, inclusive 370

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quanto à competente ação civil pública, além da fiscalização das entidades de atendimento e a formulação de propostas e projetos que reduzam a exposição da população infanto-juvenil à situação de risco pessoal e social. 2.11.1 Da competência dos Conselhos Tutelares O Conselho Tutelar possui competência e autonomia específica legalmente estabelecida para, em cooperação técnica com os Poderes Públicos constituídos, formular estratégias e diretrizes. Para evitar desmandos, há a possibilidade de revisão judicial das deliberações adotadas pelo Conselho Tutelar, nos termos do art. 137, da Lei Federal sob nº 8.069, de 13 de julho de 1993, inclusive a intervenção judicial, se provocada. Ao Ministério Público cabe a adoção das medidas legais para que a Lei Federal sob nº 8.069, de 13 de julho de 1990 seja respeitada, inclusive, responsabilizando Conselheiros Tutelares que deixarem de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, e, até mesmo propugnando pelo afastamento de titulares – e de suplentes que porventura venham assumir provisoriamente titularidades –, mas, jamais, poderá determinar “atribuições” ao Conselho Tutelar, como a qualquer um de seus membros, e, muito menos responsabilizá-los civil e ou criminalmente por desatenderem determinações indevidas de “atribuições”, haja vista que tais “atribuições” não possuem validade formal, pois não atendem aos ditames legais de criação por legislação. O Conselho Tutelar tem atribuição administrativa destinada pela sua competência para a resolução das hipóteses previstas nos artigos 98 e 105, nos termos do inc. I, do art. 136, todos da Lei Federal sob nº 8.069, de 13 de julho de 1990, tendo então, competência específica para abrigar crianças autoras de atos infracionais, enquanto medida específica de proteção, em entidades especializadas. 2.11.2 Atuação dos Conselhos Tutelares As deliberações do Conselho Tutelar, que funcionam democraticamente, asseguram as liberdades substanciais, enquanto direitos fundamentais da criança e do adolescente, decorrentes da opção política do Constituinte de 1987/88, corolário da autodeterminação dos povos e reflexo da soberania popular. 371

THEMIS Por outro lado, o artigo 138 do Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleceu identidade das regras para a determinação da competência jurisdicional com as aplicáveis aos Conselhos Tutelares, tendo como parâmetros os mesmos critérios legais para a definição do âmbito de competência daqueles Conselhos, como as regras de conexão, continência e prevenção, todavia, os Conselhos Tutelares não são órgãos jurisdicionais. Evidente que não se admite a omissão no cumprimento das atribuições legais por parte dos Conselheiros ou do Conselho Tutelar, mas nestes casos, os inúmeros legitimados poderão provocar a adoção de medidas legais para que o Conselheiro e o próprio Conselho Tutelar cumpram as suas atribuições legalmente definidas, inclusive, mediante afastamento de Conselheiros omissos ou lenientes. As deliberações do Conselho Tutelar, nos termos do art. 137 do ECA, somente poderão ser revistas pela autoridade judiciária a pedido de quem seja legitimamente interessado, tendo em vista que o juiz de Direito não pode agir de ofício, substituindo-se ao Conselho Tutelar, uma vez que só atua no âmbito da relação jurídica processual estabelecida, resguardada a competência estabelecida no art. 149 do ECA, impondo-se o respeito às deliberações colegiadas do Conselho Tutelar e ao autocontrole democrático. O Conselho Tutelar é uma conquista social sob a égide do regime democrático e como órgão deliberativo, sua atuação deve ser colegiada, onde as medidas a serem adotadas serão primeiramente debatidas e aplicadas pelo Conselho como resultado do consenso da maioria dos seus membros, o que se presume não haver necessidade de unanimidade em termos de suas deliberações. O Conselho Tutelar legalmente constituído como instituição pública e sócio-política possui atribuições legalmente definidas que lhe permitem não só a aplicação de medidas legais insertas no art. 136, incs. I a III, do Estatuto, como também, de maneira autônoma e independente de qualquer provocação, representar tanto ao Ministério Público, nos termos do art. 136, inc. IV, como ao Poder Judiciário, ex vi do art. 136, inc. V, do Estatuto. A ocorrência de desatendimento dos ditames do disposto no art. 131, não autoriza a nenhuma instituição pública substituir-se ao Conselho Tutelar e nem determinar atribuições, salvo na hipótese específica, prevista no art. 262, da Lei Federal sob nº 8.069, de 13 de julho de 1990, ou, nos casos de afastamento de Conselheiros que inviabilizem a própria constituição e funcionamento regular 372

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do Conselho, com cinco membros, segundo o art. 132 do Estatuto, quando, então as atribuições ao Conselho serão exercidas pela autoridade judiciária, a quem não é facultada como medida rotineira, com o fim de avocar a resolução dos casos concretos de competência dos Conselhos Tutelares. Para a revisão das deliberações adotadas pelo Conselho Tutelar, para o afastamento de Conselheiros Tutelares, a autoridade judiciária agirá se devidamente provocada, promovendo a paz social, através da relação jurídica processual, mediante observância da ampla defesa e do contraditório, consectários do primado constitucional do devido processo legal. Nessas situações, após adotar as medidas inadiáveis cabíveis e aplicáveis nos casos excepcionais, a exemplo das medidas específicas de abrigamento ou a colocação em família substituta, classificadas de medidas protetivas aplicáveis à criança e ao adolescente, nas hipóteses legais, comunicado competente deve ser enviado ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, responsável pelo processo para a escolha dos membros do Conselho Tutelar, e ao Ministério Público, para fiscalização do fiel cumprimento da lei. Ao Conselho Tutelar incumbe zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças, seja quando houverem se envolvido em ato infracional ou se encontrarem em situação de risco, para tanto, necessita de adequação estrutural para o efetivo atendimento das novas funções estatais legal e legitimamente instituídas. A autonomia de atuação é um imperativo do estado democrático de direito para a plenitude da existência do Conselho Tutelar, que através de sua representatividade legítima e direta dos vários segmentos sociais, dota de eficácia as deliberações colegiadas emanadas do Conselho Tutelar. 3 DOS PROCEDIMENTOS Os primeiros regramentos relativos à matéria da adoção foram encontrados em Atenas e determinavam os requisitos, formalidade e efeitos do instituto da adoção. Era como um ato solene, no qual o magistrado que presenciava a adoção formalizava-a, o que a partir de então vedava o retorno do adotado à família natural, exceto se deixasse com a família adotiva um filho natural. No momento contemporâneo, as garantias processuais são direitos fundamentais concretizados nos procedimentos relativos ao processo legal, à 373

THEMIS ampla defesa técnica com meios adequados, e ao contraditório, de acordo com a Lei 8.069/90, de 13.07.1990. A mudança do paradigma da Doutrina da Proteção Integral disciplina que as garantias do Direito da Criança e do Adolescente, subordinam-se à ordem Constitucional e à lei específica, o ECA. A participação dos segmentos da sociedade na discussão sobre o assunto resultou em uma demanda por transparência e fiscalização nos processos de habilitação e concessão de adoção, principalmente por se concluir que o processo de adoção deve ser adequado, coerente, dotado de mecanismos eficientes, que revelem o propósito decente, humano e digno, de sorte que os interessados vislumbrem nos procedimentos o verdadeiro espírito da Convenção de Haia. A interatividade com o tema e com as equipes das Comissões Estaduais de Adoção (Cejas/Cejais) revelaram uma diversidade de procedimentos, documentos e rotinas próprias para gerenciar o tema da adoção, insculpida nos regimentos internos de cada Comissão, embora todas estivessem sob a égide de uma única fonte regulamentadora, ou seja, a Lei 8.069/90 – ECA. A partir de 1998, aflorou a demanda por uma convergência quanto às exigências, procedimentos e rotinas, mantendo a confiabilidade e a segurança concernentes, de sorte que as adoções sejam levadas a termo, sem levantar ilações sobre a ética, sobre a real intenção dos pretendentes, conformando os instrumentos disponíveis às necessidades de colocação da criança e do adolescente em família substituta, seja nacional ou estrangeira, tendo em vista a regularidade e a legalidade, sem olvidar que o tempo é fator preponderante na satisfação do anseio social pela maternidade/paternidade não biológicas, já que estamos tratando de adoção. Os estudos levados a efeito por este concludente, em grupos de trabalho, então na qualidade de Assessor Técnico da CEJAI – Ce, conforme se depreende no quadro abaixo e nos fluxograma operacionais anexos, demonstraram que as Comissões Estaduais, agora Autoridades Estaduais, por força do disposto no art. 4º do Decreto 3.174, de 16 de setembro de 1999, embora embasadas na sua compreensão legal, aferiam em rol documental e procedimentos distintos, a qualificação para a habilitação dos pretendentes à adoção:

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ROL DE DOCUMENTOS EXIGIDOS PARA HABILITAÇÃO À ADOÇÃO

AL BA CE MA PB PE RN SE

Estudo psicossocial

C

O O O

C

C

C

O

Autorização p/adoção por órgão competente do país de origem

C

O O O

-

C

-

O

Atestado de idoneidade

-

-

O

-

-

C

-

-

Atestado de sanidade física e mental

C

O O

-

C

O O O

Atestado de antecedentes criminais

C

O O

-

C

C

O O

Certidão de casamento

C

-

C

-

C

C

-

C

Certidão de estado civil

-

C

-

-

-

-

-

-

Certidão de nascimento

C

C

C

-

C

C

-

C

Passaportes

C

C

C

-

C

C

-

C

Comprovante de renda

C

-

C

-

-

C

-

O

Atestado de residência

C

O

C

-

-

C

-

O

Fotografias - ambiente residencial, trabalho, parentes, amigos

O O O

-

O O

-

O

Fotografias dos adotantes tamanho 5 x 7 dos adotantes

-

O

-

-

-

-

-

-

Legislação sobre adoção no país de origem e tradução

C

C

C

C

C

-

C

C

Prova de vigência da lei de adoção no país de origem

-

C

-

C

-

-

C

C

Procuração – constituição de advogado

O O O

-

O O O O

Requerimento para habilitação fornecido pela própria CEJAI

-

-

-

-

O O

-

-

Declaração que a adoção é gratuita no Brasil fornecida p/CEJAI

-

O

-

-

O O

-

O

Declaração de próprio punho que a adoção é gratuita no Brasil

C

-

-

-

-

-

O

-

Autorização do país de origem para adotar criança brasileira

-

O

-

-

-

-

O O

-

O

-

-

-

-

-

-

O

-

-

-

-

-

Declaração que o certificado de habilitação tem validade de 1 ano e poderá ser reexaminada pelo Juizado da Infância Declaração que os adotantes não poderão fazer contato com os pais da criança ou com quem detenha a guarda

-

Legenda: C – cópia O - original - não exigido 375

THEMIS

No âmbito específico da Cejai – CE, esta diversidade documental tinha o seguinte rol de exigências: a) estudo social e psicológico feito em instituição oficial governamental ou credenciado junto ao governo, b) atestado de idoneidade, c) atestado de sanidade física e mental, d) autorização e/ou consentimento do órgão competente do país de origem para adoção de uma criança estrangeira, e) atestado de antecedentes criminais f) certidão de casamento e/ou nascimento, g) passaportes h) comprovante de renda salarial, i) atestado de residência, j) legislação sobre adoção no país, l) carta de apresentação e recomendação. A legislação vigente, art. 51 da Lei 8.069/90, ECA, exige apenas os seguintes documentos: a) documento expedido pela autoridade competente do respectivo domicílio, de estar o candidato devidamente habilitado à adoção, consoante as leis do seu país, b) estudo psicossocial, elaborado por agência especializada e credenciada no país de origem, c) legislação estrangeira sobre adoção, com prova de sua vigência A diversidade de rotinas procedimentais decorre inicialmente da adaptação local das regras às peculiaridades no plano interno de cada uma das unidades federativas e principalmente da ausência de uma coordenação nacional específica, com vistas à uniformização de regras e procedimentos, mas sem levar a uma padronização que viria a ser a absoluta igualdade entre todas as Comissões de Adoção, algo inexequível e impensável, mas uma estrutura mínima comum a todos, e outra mais permissiva quanto às necessidades locais, alcançando não só os aspectos jurídicos e procedimentais, como também as questões operacionais e análises técnica psicológica e social. Exsurge daí, a demanda pelo estabelecimento de pontos mínimos para a definição dos critérios e dos procedimentos a serem cumpridos na apreciação de pleitos relacionados à adoção no Brasil, tendo em vista as inovações advindas da Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, baseada na sistematização normativa internacional, na Constituição Federal e nas normas processuais contidas no Código de Processo Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente, submetendo, na prática, as adoções a um procedimento administrativo previamente à fase judicial, cuja tarefa incumbe às CEJAS, em consonância com a doutrina da proteção integral. A estratégia metodológica para unificação procedimental e documental foi exaurir através de discussões objetivas no plano teórico, as práticas de então e através do método comparativo, conformar e implementar a uniformização 376

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procedimental que melhor se aplique à realidade das Comissões Estaduais Judiciárias de Adoção, agora Autoridades Centrais Estaduais, respeitando a perspectiva inserta no art. 5º, §2º da Constituição, sobre os direitos e garantias, sem excluir outros decorrentes do regime e dos princípios adotados ou decorrentes de tratados internacionais que o Brasil seja parte, observando ainda o princípio da subsidiariedade das adoções internacionais, por força dos artigos 19 e 31 da Lei n. 8.069/90 e artigo 4, letra “b” da Convenção de Haia. A proposta de uniformização documental restou conformada que os documentos seriam tratados entre: Imprescindíveis: a) documento expedido pela autoridade competente do respectivo domicílio, informando estar devidamente habilitado à adoção, consoante as leis do seu país (art. 51, §1º do ECA), b) estudo psicossocial, elaborado por agência especializada e credenciada no país de origem, c) legislação estrangeira sobre adoção, com prova de vigência (art. 51, §2º do ECA); e Facultativos: a) cópias do passaporte, b) atestado de sanidade física e mental, c) atestado de antecedentes criminais, d) certidões de nascimento e/ou casamento, e) comprovante de renda salarial, f) atestado de residência, g) carta de recomendação, h) declaração sobre conhecimento das regras sobre adoção no Brasil, i) fotografias. A proposta de uniformização procedimental estabeleceu que devidamente habilitado e inscrito no Cadastro de Candidatos à adoção, o pretendente cumpre os requisitos para iniciar sua petição junto ao Juízo da Comarca, cabendo ao Ministério Público solicitar a vinculação de uma criança ao processo, o que será feito pelo juiz, respeitando a ordem cronológica no Cadastro de Crianças disponíveis para adoção, bem como a ordem de precedência do Cadastro de Candidatos, segundo uma escala de prioridades e compromisso de garantir ao adotando, os direitos de cidadania plena no país de destino. A propositura para a uniformização dos procedimentos das Comissões foi objeto de discussão e restou aprovada nos dispositivos das Resoluções de Nº 001/2000 e de Nº 002/2000 do Conselho de Autoridades Centrais, tendo por princípio o respeito à autonomia de cada ente federativo, com vistas a efetivar um novo paradigma para assegurar o cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, tendo em vista que o ato da adoção é orientado à resolução do problema da criança, sendo incompatível com a possibilidade de escolha prévia de uma criança por parte do adotante. O escólio regulamentar sugerido informa que candidato estrangeiro residente ou domiciliado fora do país, cumprirá obrigatoriamente estágio de 377

THEMIS convivência em território nacional, devidamente acompanhado por assistente social, de 15 dias para o adotando menor de 2 anos, e de 30 dias para adotando maior de 2 anos, porém, tratando-se de adotando maior de 12 anos, será obrigatório o consentimento do mesmo, sob pena de nulidade do processo, ao mesmo tempo em que nenhuma criança ou adolescente nascido em território nacional poderá sair do país em companhia de estrangeiro residente ou domiciliado no exterior, cabendo ao adotante requerer ao Presidente da CEJAI-CE, a devida autorização para emissão do passaporte. Para atingir a plenitude dos efeitos previstos na sequência procedimental, a tarefa do Juiz será examinar e perquirir se o requerente reúne concretamente as condições ideais para assumir e criar o adotando, apontando a sua decisão mediante sentença que constitui a adoção, que ao mesmo tempo extingue a relação jurídica anterior e o poder familiar, estabelece uma nova relação perfeita e irrevogável, devendo ser inscrita no registro civil, nos termos dos artigos 47 e 48 do ECA. A adoção atribui ao adotando a condição de filho legítimo no que se refere aos direitos e deveres, inclusive sucessórios, extinguindo qualquer vínculo anterior com os pais e parentes, exceto os traduzidos por impedimentos matrimoniais, nos termos do art. 41 do ECA. A adoção por estrangeiros terá por inspiração o ditame constitucional, inscrito no caput do art. 5º, que dispensa tratamento igualitário aos brasileiros e estrangeiros residentes no país, mas o art. 227, §5º remete à lei ordinária, o ECA, nos seus artigos 31, 46, §2º e 51, os casos e condições para a efetivação da adoção por estrangeiro, que expressamente distingue o estrangeiro residente ou domiciliado fora do país, e por fim, a Convenção de Haia, no seu artigo 2º, que fixa como critério para a aplicação da Convenção o domicílio do adotante e do adotando. A Autoridade Estadual que conceder a habilitação para a adoção deverá emitir o Certificado de Conformidade e a Declaração de Consentimento em consonância com o disposto no art. 23 da Convenção de Haia e na Resolução 01/2000 da CEJAI-CE, em formulários específicos que deverão acompanhar toda a documentação do adotando, por ocasião de sua saída do país, mantendo registros em arquivos. Para o arquivamento dos dados, recomenda-se a utilização do SIPIA - Sistema de Informações para a Infância e Adolescência, que gerencia dados e trata informações cadastrais de pretendentes, de crianças adotáveis, de 378

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entidades credenciadas, de Conselhos Tutelares, Abrigos, acompanhamento de fluxo de processos de decretação/suspensão do poder família, de dispensa de cadastramento e de consentimento, com vistas a subsidiar ações, políticas e programas governamentais e não governamentais relacionados com a causa da criança e do adolescente, cuja gestão cabe à Autoridade Central Federal, designada nos termos do art. 6º da Convenção de Haia, através do Decreto nº 3.174, de 16 de setembro de 1999. CONCLUSÃO A adoção significa reconhecer a criança como um ser em situação especial de desenvolvimento, merecedor da proteção da família, da sociedade e do Estado, devido as suas características de imaturidade e vulnerabilidade. Os princípios jurídicos e sociais concebidos pela Convenção de Haia e pelo ECA provocam um novo posicionamento frente à problemática da infância e da juventude, ao doutrinar a Filosofia da Proteção Integral, prestada com absoluta prioridade através do direito à saúde, à vida, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, a fim de evitar a negligência, a discriminação, a exploração, a violência, a crueldade e a opressão. Claro está que os direitos foram postergados por motivos vários, dentre eles a incapacidade sócio-econômica familiar para criar os filhos, a impossibilidade de reivindicação dos seus direitos, a inconsciência da supremacia dos direitos coletivos sobre os individuais, a baixa participação da comunidade no exercício dos seus direitos de cidadania e o desaparelhamento institucional privado e estatal para prevenção, proteção e assistência. A conjunção dos fatores acima pode direcionar o segmento social dos cidadãos do futuro, pois ainda estão em franco desenvolvimento, cuja característica peculiar é a incapacidade e impossibilidade de prover com meios próprios o atendimento de suas necessidades básicas, a precocemente ingressarem na vida adulta, assumindo tarefas incompatíveis com sua faixa etária, servindo de mão de obra barata, sendo estigmatizados, usados e marginalizados, além de eventualmente ter conduta ilícita. Ao Estado compete realizar uma atividade de planejamento para reduzir a miséria, aplicando um plano de integração social, destinando verbas para as necessidades básicas da população, tais quais: moradia, saúde, alimentação e 379

THEMIS educação, gerando condições de ocupação e renda, ao passo que a sociedade deve colaborar e exigir do Estado o cumprimento dessa meta. O Estatuto da Criança e do Adolescente determina aos pais o dever de sustentar, guardar e dar educação aos filhos menores, estabelecendo que a falta de recursos materiais não seja motivo suficiente para a perda ou suspensão do pátrio poder ou poder familiar, como também, que a criança ou adolescente será mantido em sua família de origem, a qual deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio. A sociedade, as autoridades competentes e a imprensa devem ter a prudência ao criticar a adoção internacional, sob pena de rotulá-la de ilegalidades, tendo em vista que esse comportamento, além de representar uma irresponsabilidade, configura calúnia, crime tipificado em nossa legislação penal, colocando em risco o direito da criança abandonada ou órfã, de ter um lar e uma família, mesmo que seja no exterior. A adoção, seja nacional, seja internacional, inclui-se na realidade mundial do contexto das novas famílias e neste diapasão, o Brasil compõe o bloco de países do Terceiro Mundo, onde a infância ainda não é inteiramente respeitada e o direito e o dever do exercício do poder familiar fazem parte apenas de previsão do texto frio da Constituição e da Lei nº 8.069/90, todavia, é um ato jurídico revestido dos rigores legais, devendo ser incentivada a sua prática, contudo, convém desmistificar a imagem de ilegalidade que usualmente rotulam este ato humano. As instituições públicas devem assumir com determinação suas atribuições sócio-políticas, de maneira permanente e autônoma, direcionando as atenções especialmente do Poder Judiciário, através do juiz de Direito para conhecer dos pedidos que visem à preservação da integridade física, moral e intelectual da criança e do adolescente, cujos direitos encontram-se ameaçados ou violados, observando o princípio da proteção integral, com vistas à manutenção e o fortalecimento dos laços familiares e comunitários, a orientação, apoio, acompanhamento e assistência, para só então, se restarem inviabilizadas, admitir a colocação em família substituta. A crença da sociedade depende da consciência e da capacidade que o juiz da infância e adolescência tem para assistir a exposição dos casos, superando os axiomas legalistas com base na dinâmica sócio-cultural compatível com a modernidade. 380

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A criança e o adolescente, sujeitos de direitos, em condição especial de desenvolvimento, são titulares de interesses juridicamente protegidos, cuja concretização e efetivação em função de seu caráter público demandam uma defesa de maneira insofismável pelo Ministério Público, encarregado constitucionalmente de zelar pelos interesses sociais e individuais indisponíveis, o que compreende o interesse individual da criança ou adolescente, incluso no direito positivo sintonizado com a consciência de respeito ao valor da criança e do adolescente, objetos do movimento de transformação social e garantia de um futuro promissor para as novas gerações. Ao formular a Doutrina da Proteção Integral, certamente o legislador assumiu que um interesse de categoria individual afeta o interesse da coletividade, visando construir uma sociedade livre, justa e solidária, baseada principalmente na defesa dos interesses individuais homogêneos, coletivos ou difusos, atendendo não só aos anseios, mas aos interesses indisponíveis da sociedade. A Convenção de Haia oferece garantias que melhor atendem ao prevalente interesse da criança e do adolescente, como a recepção automática da sentença em adoções realizadas de acordo com as suas disposições, objetivo maior da Doutrina da Proteção Integral que inspira toda a normativa pátria na matéria infanto-juvenil, deve-se privilegiar, não sendo possível a colocação em família substituta nacional, as adoções internacionais oriundas dos países ratificantes. O diagnóstico das funções operacionais e legais dos operadores do Direito é um desafio, e ao mesmo tempo uma esperança no pragmatismo da sistematização e da uniformização documental e procedimental a ser observada por todas as Comissões Estaduais de Adoção, tendente a validar e incorporar definitivamente os conceitos da Doutrina da Proteção Integral, na prática do tratamento eficaz da questão da criança e do adolescente. A criação da figura da Autoridade Estadual, mercê de uma exigência da Convenção de Haia, por força do disposto no Decreto 3.174/1999, será exercida pela CEJAI – CE, a quem cabe dinamizar as ações do poder público, relativas à questão da criança e do adolescente em parceria com a sociedade civil, reverte a estrutura centralizadora, de maneira que a formulação de políticas, a fiscalização e gestão dos recursos sejam transferidos para os municípios, que são em última análise a base territorial da sociedade. A perenização das informações e ações na área de proteção dos direitos da criança e do adolescente e adoção, outrora uma previsão apenas do ECA, agora 381

THEMIS uma determinação da Resolução nº 54, de 29 de abril de 2008 do CNJ - Conselho Nacional de Justiça, deve ser operacionalizada com a utilização do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), sistema destinado a unificar e compartilhar dados relacionados às crianças e adolescentes em condições de serem adotadas e das pessoas dispostas a adotar. A utilização dos recursos infotecnológicos proporciona aos operadores do Direito e aos interessados na adoção a cruzar dados de todo o território nacional, produzindo resultados práticos, a exemplo do caso citado na reportagem veiculada na p. 12, Caderno Cidade do Diário do Nordeste, edição de 07 de novembro de 2008, na qual um casal de Goiânia obteve a adoção de uma criança de Fortaleza, demonstrando a convergência da eficiência e da efetividade no trato da questão da adoção. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. A condição humana. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. BEVILAQUA, Clóvis; BEVILAQUA, Achilles. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Rio de Janeiro: Paulo de Azevedo, 1954. V. II. BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano - compaixão pela terra. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1999. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. 33 ed. São Paulo: Saraiva, 2004. _______, Lei Federal sob nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. 5 ed. Brasília: Senado Federal, 2005. 382

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_______. Ministério da Justiça. Resolução n° 2. Regimento Interno das Autoridades Centrais Brasileiras. D.O.U. N° 134-E de 13/07/2000. Seção I. _______. DECRETO 3.174. Designa Autoridade Central. Diário Oficial da União n° 179 de 17/09/1999, seção I, p. 273. _______. DECRETO 3.087. Promulga Convenção de Haia. D.O.U. n° 117 de 22/06/1999. CADEMARTORI, Sérgio Urquhart de. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. CEJAI/PE. Adoção em Pernambuco. Recife: Comissão Estadual Judiciária de Adoção, 1996. CEJAI/PA. Adoção no Pará. Belém: Tribunal de Justiça do Estado do Pará, 2005. CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Teoria geral do processo. São Paulo: Saraiva, 1999. COSTA, Gizela Nunes. Adoção Internacional: Procedimentos. Fortaleza: Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, 2004. FIGUEIREDO, Luiz Carlos de Barros. Justiça da Infância e da Juventude. 2. ed. Recife, 1998. FURTADO, Francisco Hugo Alencar. As Comissões Estaduais Judiciárias de Adoção e a Autoridade Central. Fortaleza: Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. 1997. GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual: de acordo com a Constituição de 1988. São Paulo. Forense Universitária, 1990. LEITE, José Ferreira. Adoção em Mato Grosso. Cuiabá: Corregedoria Geral da Justiça, 1997. 383

THEMIS LOPES, João Batista. A prova no direito processual civil. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. LUCON, Paulo Henrique dos. Garantia do tratamento paritário das partes. In: CRUZ E TUCCI, José Rogério. Garantias constitucionais do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 132-150. MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2000. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2006. PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. RAMIDOFF, Mário Luiz. Vara de adolescentes infratores. Disponível em: Acesso em: 17 out. 2005. TJMG. Regulamentos, Normas e Procedimentos de Adoção. Belo Horizonte: Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, 2002. WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna: participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988.

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DITADURA, ANISTIA, MEMÓRIA E PERDÃO: A BATALHA ENTRE OS QUE NÃO QUEREM LEMBRAR E OS QUE NÃO PODEM ESQUECER Zuenir de Oliveira Neves

Especialista em Direito Público pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (ANAMAGES) em convênio com o UniCentro Newton Paiva (MG); especialista em Direito Processual Civil pelo Centro de Atualização em Direito (CAD) e Universidade Gama Filho (UGF); especialista em Direito Constitucional pelo Instituto de Educação Continuada – IEC PUC Minas; mestrando em Teoria do Direito pela PUC Minas; bolsista FAPEMIG; [email protected]

RESUMO: O presente artigo visa ao estudo das repercussões trazidas pelo advento do instituto da anistia, previsto na lei 6683/79, sobre a capacidade da sociedade brasileira na superação do passado traumático e violento que a ditadura militar representou; à análise dos reflexos dos entendimentos exarados pelos organismos internacionais e autoridades brasileiras, mormente o STF; à consideração sobre as contribuições que o Direito pode trazer, apesar de suas limitações, para a recuperação da memória manipulada e impedida pelos institutos ditatoriais de acesso ao passado e de perdão; a aproximação entre memória coletiva e memória individual, no intuito de enriquecimento de uma “memória social”; a dívida que o Estado mantém com a sociedade civil no que tange à proteção dos direitos humanos e a ilegitimidade da extensão da anistia, realizada pelo STF, aos agentes estatais que praticaram crimes contra os direitos humanos. Palavras-Chave: Ditadura. Anistia. Memória. Perdão. Direitos Humanos. ABSTRACT: This paper aims to study the impacts brought by the advent of the institute of amnesty, present in the law 6683/79, on the Brazilian society’s capacity to overcome the violent and traumatic past that the military dictatorship represented; to analyze the reflections of the understandings drawn up by the international organisms and Brazilian authorities, especially the Supreme Court; to consider the contributions that the Law can bring, despite its limitations, to the recovery of the memory manipulated and prevented by the dictatorial institutes from accessing the past and the forgiveness; the approach between collective memory and individual memory, in order to strengthen a “social memory”; the debt in which the State is to society, when it has to do with human rights 385

THEMIS protection, and the illegitimacy of the amnesty extension, held by the Supreme Court, to the official agents who committed crimes against human rights. Keywords: Dictatorship. Amnesty. Memory. Forgiveness. Human Rights. CONSIDERAÇÕES INICIAIS O fim da ditadura militar não representou a exoneração do Estado em relação à obrigação de dar satisfação às vítimas e seus familiares sobre os massacres ocorridos nos anos de chumbo. Pelo contrário, uma dívida moral com a sociedade civil ainda persiste. Nos últimos anos, o Brasil tem sido palco de diversas ações judiciais relacionadas à ditadura militar. Versam elas sobre objetos vários, que vão desde indenizações até a abertura dos arquivos. O regime ditatorial brasileiro iniciou-se, oficialmente, com o golpe de 31 de março de 1964, pelo qual os militares, alegando ameaça comunista capaz de colocar em risco a segurança nacional, afastaram do poder o então Presidente da República, João Goulart. Seu fim, ou pelo menos, seu fim declarado, ocorreu em 1985, ano em que Tancredo de Almeida Neves foi empossado presidente pelo colégio eleitoral. Segundo se sabe, o argumento de periclitância da segurança nacional, utilizado pelos militares para sua ascensão ao poder, remontou ao apoio que as lutas armadas possivelmente vinham recebendo de Cuba - fortemente influenciada pelo governo soviético de Nikita Khrushchev - desde o início dos anos 1960, no governo Jânio Quadros. O período militar foi caracterizado por inúmeras atrocidades perpetradas contra os direitos humanos, truculências estas levadas a efeito por uma série infindável de atos institucionais - em verdade, dezessete -, cujos assuntos tratados eram diversos, indo desde a suspensão dos direitos políticos e garantias constitucionais a, até mesmo, penas de banimento aplicáveis àqueles concebidos como ‘perigosos’ à segurança nacional, e de morte, nos casos de guerra externa, psicológica adversa, revolucionária ou subversiva. Em meio a essa confusão, veículos de comunicação foram censurados, universidades foram fechadas – a Universidade Federal de Minas Gerais, por exemplo – e invadidas – como foi o caso da Universidade Federal de Brasília -; instituições sindicais sofreram intervenção federal; o próprio Poder Judiciário foi manipulado em seus julgamentos pelo Poder Executivo; cidadãos considerados 386

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subversivos foram indiciados, presos sem ordem judicial e até expulsos do país, tendo suas famílias inteiras vigiadas; civis desapareceram; trabalhadores e estudantes foram espancados e mortos, etc. Ainda hoje, a sociedade brasileira padece dos efeitos desencadeados pela arbitrariedade do regime. Famílias inteiras ainda esperam por notícias dos corpos de seus familiares, bem como por indenizações que as instituições estatais insistem em denegar. Em não obtendo o respaldo necessário do Estado brasileiro, muitas dessas famílias têm recorrido aos organismos internacionais de direitos humanos, no sentido de conseguir o apoio moral e financeiro que não tiveram aqui. No último ano mesmo, uma condenação proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) responsabilizou o Estado brasileiro pelo desaparecimento de dezenas de pessoas durante a guerrilha do Araguaia, que se estendeu durante três dos longos vinte e um anos que caracterizaram o período ditatorial. Interessa, aqui, entretanto, o estudo breve do instituto da anistia, previsto na lei 6683/79, seus efeitos sobre o imaginário e sobre a capacidade da sociedade brasileira na superação do passado traumático que a ditadura militar representou, as repercussões dos entendimentos exarados pelos organismos internacionais e autoridades brasileiras, mormente o STF, e, ainda, as contribuições que o Direito pode trazer para a recuperação da memória manipulada e impedida. 1 A OEA, O STF E A LEI DA ANISTIA No ano passado, o Estado Brasileiro foi surpreendido pelo julgamento proferido pelo STF nos autos da ADPF nº 153, proposta pela OAB, que suscitou dúvida sobre a extensão ou não do disposto no primeiro parágrafo do artigo 1º da lei 6683/79 (Lei da Anistia) aos agentes estatais que praticaram crimes de variadas espécies. Em atendimento ao caput, que estende a anistia aos crimes conexos aos políticos, esse parágrafo define como ‘conexos’ aqueles ‘de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política’. Na ocasião, a Corte Suprema exarou o entendimento, segundo o qual os agentes estatais que cometeram crimes entre 1964 e 1985 teriam sido realmente anistiados pela citada lei. Os efeitos jurídicos de tal julgado traduziram-se no impedimento a quaisquer instaurações de inquéritos e/ou ajuizamentos de ações contra aqueles que torturaram e mataram. 387

THEMIS Os fundamentos da decisão do Supremo foram múltiplos: ausência de ofensa legislativa à dignidade humana, incompetência judiciária para a revisão e revogação da lei, impossibilidade de revisão retroativa da história, inexistência de controvérsia jurídica, dentre outros, por sua vez, contrários aos votos minoritários de Carlos Ayres Britto e Ricardo Lewandovski. A decisão do STF despertou a atenção da comunidade jurídica sobretudo a internacional -, que, lastreando-se em várias razões, reagiu, dizendo que os crimes praticados pelos agentes estatais não eram conexos aos ditos crimes políticos. A idéia central, portanto, desses juristas, seria a punição dos agentes responsáveis por tais delitos. Para a OEA (Organização dos Estados Americanos), a Lei de Anistia destoa dos princípios constantes da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica - do qual o Brasil é signatário desde 1998 -, porque viola o direito de acesso à informação, previsto no seu artigo 13, dificultando, dessa forma, a busca da justiça às vítimas e aos respectivos familiares. Sendo assim, segundo a OEA, o Brasil deve punir, de acordo com a Constituição vigente, os agentes que perpetraram os crimes e, da mesma forma, revisar a decisão emanada pelo STF, sem deixar, ainda, de proceder à busca dos corpos, indenizando as famílias e lhes fornecendo o devido acompanhamento psicológico. Para Nelson Jobim, então Ministro da Defesa, à época da decisão da OEA, esta podia não ter nenhum efeito prático, considerando a independência do STF e a soberania do país. Há quem entenda que, por mais que não se estenda a anistia àqueles que torturaram, a efetivação das punições dependeria do enfrentamento de questões jurídicas internas sérias, a exemplo da irretroatividade penal maléfica, e, principalmente, da prescrição. Sobre este ponto, por exemplo, é sabido que, na conformidade do ordenamento jurídico pátrio, o prazo prescricional é de, no máximo, vinte anos, considerando-se a inexistência, até o presente momento, de qualquer assinatura ou ratificação da Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade por parte do Estado brasileiro. O fato, entretanto, é que, no plano jurídico, a anistia correspondeu a um absurdo sem tamanho, tanto no que tange aos torturadores, quanto aos opositores do regime. 388

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A anistia dos torturadores foi um ato nulo, na mesma medida em que o foram todos os outros atos perpetrados pelos militares durante o regime de exceção, desde aqueles que mantiveram as eleições proporcionais, seguidos da revogação do ato institucional nº 5, no ano de 1978, até os que antecederam o movimento em prol das eleições diretas. Esse vício decorreu da própria ilegitimidade de origem daquele governo, que se instaurou mediante um golpe de Estado que negou todo o conceito de cidadania construído sob os auspícios da então Constituição de 1946, que assegurava uma série de direitos individuais e políticos. Diga-se de passagem, atos nulos não se convalescem. Segundo Pedro Estevam Serrano: Governos que se imponham pelo arbítrio, através de processos autoritários de escolha dos governantes, são ilegítimos. Quando tais governos praticam violências atentatórias às liberdades públicas, tais como tortura e homicídio de opositores, praticam crimes de Estado. Em verdade, atos de terrorismo de Estado, pois tais atos de violência, além de suprimir os opositores afetados, buscam instaurar o terror na vida política, trazendo a toda a sociedade o medo de se manifestar criticamente ao governo. (SERRANO, 2010).

E mais, à época do regime, as condutas violentas dos militares, praticadas nos “porões da ditadura”, já eram, em si mesmas, crimes comuns, tanto no plano interno, quanto no internacional, pois o sistema jurídico brasileiro não coadunava com o sumiço, a detenção ilegal, a tortura e a morte injustificada de pessoas. Sem contar que, desde 1957, o país já havia ratificado a Convenção de Genebra de 1949, documento internacional que impunha punições aos crimes de tortura. Ademais, necessário se torna ressaltar a ausência da alegada conexão de crimes, constante do primeiro parágrafo do artigo 1º da lei 6683/79, porque, para haver conexão, os delitos políticos e comuns teriam de ser praticados pelas mesmas pessoas, no caso, os opositores ao regime. Havia, entretanto, crimes que foram praticados por pessoas diversas – servidores estatais -, e que, além disso, eram comuns (homicídio, tortura, violência sexual, dentre outros). Importante dizer, também, que, se a anistia dos militares não valeu pelo simples fato de ter consistido numa autoanistia - antes de abandonarem o poder, os próprios militares se exoneraram da responsabilidade por seus atos -, a dos opositores ao regime ditatorial também não fazia sentido. 389

THEMIS Isso porque a manifestação da opinião em prol da defesa das liberdades públicas havia muito que não era crime, mas tão somente uma forma de resistência a qualquer espécie de opressão, inclusive as advindas do Estado. A nação brasileira já havia experimentado os absurdos perpetrados pelo Estado Novo. Por detrás desses conflitos jurídicos envolvendo questões técnicas se esconde uma tensão existente entre quem não quer se lembrar da ditadura e quem não pode dela se esquecer. Mais do que complexos tumultos jurídicos, os infelizes posicionamentos das autoridades brasileiras, muitos deles motivados por questões políticas, têm trazido transtornos que merecem, aqui, alguma atenção. Cabe, contudo, uma abordagem acerca do que realmente significou a anistia no contexto do regime ditatorial e em que sentido ela contribuiu para a manipulação e o impedimento da memória do povo brasileiro. 2 ANISTIA, MANIPULAÇÃO E IMPEDIMENTO DA MEMÓRIA: a questão da reconciliação com o passado Baseando-se no que foi exposto no ponto anterior, poder-se-ia dizer que a anistia representou o ponto mais alto de uma brincadeira real com a democracia brasileira, levada a efeito por um governo ilegítimo, que, ao criar um conceito juridicamente insustentável de conexão de crimes, no intuito de assegurar a impunidade dos crimes de Estado, finalmente impôs à sociedade brasileira uma amnésia coletiva. Amnésia imposta, porque, na medida em que se deu sob a argumentação de que o cenário de confrontos, de tumultos políticos do período militar, necessitava ser contido, representou um esquecimento comandado e infligido à memória. Esquecimentos impostos não são salutares ao perdão real (RICOEUR, 2007). Este, significando uma atitude de reconciliação com o passado, precisa do exercício da memória. Pois é através desta que se resgata o pretérito, possibilita-se a identificação do que foi rompido e perdido, compreende-se o rompimento e a perda e, finalmente, adquirem-se as condições necessárias à superação do trauma gerado pela separação daquilo por que se tinha apreço, no caso, a liberdade. O exercício da memória oportuniza, enfim, a convalescença gradual da dor e da tristeza geradas pela perda do objeto de desejo. A imposição do esquecimento, oculta nos argumentos dos anistiadores, segundo os quais os anos de chumbo representariam uma página virada na 390

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história, significou, portanto, a negativa das possibilidades de reconciliação do povo com o seu passado, através do impedimento do exercício da memória, e, ao mesmo tempo, a instauração de um estado não de luto, mas de melancolia. Esse estado necessita, entretanto, ser transposto pela via de um processo de reconciliação gradativa com o tempo pretérito. Sobre o esquecimento imposto à memória pela a anistia e seus efeitos sobre o perdão real, escreve Ricoeur: (...) Primeiro, ela põe um fim a graves desordens políticas que afetam a paz civil – guerras civis, episódios revolucionários, mudanças violentas de regimes políticos -, violência que a anistia, presumidamente, interrompe. Além dessas circunstâncias extraordinárias, a anistia distingue-se pela instância que a instaura: o Parlamento, hoje em dia, na França. Considerada quanto ao seu conteúdo, ela visa a uma categoria de delitos e crimes cometidos por ambas as partes durante o período de sedição. Nesse sentido, ela opera como um tipo de prescrição seletiva e pontual que deixa fora de seu campo certas categorias de delinqüentes. Mas a anistia, enquanto esquecimento institucional, toca nas próprias raízes do político e, através deste, na relação mais profunda e mais dissimulada com um passado declarado proibido. A proximidade mais que fonética, e até mesmo semântica, entre anistia e amnésia aponta para a existência de um pacto secreto com a denegação de memória que, como veremos mais adiante, na verdade a afasta do perdão após ter proposto sua simulação (RICOEUR, 2007, p.460).

Dessa forma, talvez se torne mais adequado dizer, com Ricoeur (2007), que, no caso brasileiro, a anistia tenha sido mais útil do que justa. Útil e não justa, porque ela impôs uma imagem de unidade em detrimento de uma memória que passou a se ver destituída dos exemplos que utilizaria para elaborar publicamente, e por via do dissenso, um futuro diferenciado do passado opressor. A anistia, definitivamente, contribuiu para o impedimento e a manipulação da memória de um povo. As expressões freudianas, “luto” e “melancolia”, das quais Ricouer (2007) se apropriou para elaboração de sua obra “A memória, a história, o esquecimento”, representam seu intento filosófico de analisar formas patológicas que, embora de natureza eminentemente individual, teriam migrado para o plano coletivo. Haveria, nesse sentido, modalidades de esquecimento negativas, das quais se valeriam determinadas sociedades para rejeitarem lembranças relacionadas a traumas coletivos. 391

THEMIS Apesar de ambos implicarem a dor no desligamento do objeto de desejo, o luto e a melancolia diferenciam-se pelo fato de que, pelo primeiro, superase a dor de uma perda através da própria compreensão do rompimento que ela causou, enquanto que a última se expressa pela sensação de vazio do ego e pelo sentimento de impotência na superação de um trauma específico. Sobre a convalescença no processo de luto, ensina-nos Adriana Pollet que: A parte perceptível deste processo se caracteriza, inicialmente, pela repetida rememoração da perda sempre acompanhada do sentimento de tristeza e de choro, após o que a pessoa acaba se consolando. Evoluindo, o processo passa a ser de rememoração de cenas  agradáveis e desagradáveis, nem sempre seguidas de tristeza e choro, mas sempre com a consolação final. Kaplan (1997) segue comentando que é um processo sempre lento, longo e acompanhado de graus variáveis de falta de interesse pelo mundo exterior (tristeza), que vão diminuindo conforme o processo avança. O processo vai gradualmente se extinguindo com desaparecimento da tristeza, do choro e instalação da consolação e volta do interesse pelo mundo exterior. No final, a pessoa perdida passa a ser apenas uma lembrança, o sentimento de tristeza desaparece e a vida afetiva retoma seu curso voltando a ser possível novas ligações afetivas (POLLET, 2010).

Pelo que se percebe, o luto representa o processo natural e paulatino de desligamento da dor e de toda forma de ressentimento relacionada com o fato de não mais se ter alguém ou aquilo de que se gosta. A melancolia, a seu turno, significa a disposição patológica desenvolvida em função de se ter a consciência da perda de algo ou alguém, mas de não se saber o que desse algo ou desse alguém foi perdido. Aplicadas ao plano coletivo, as ideias acima expostas implicam na consideração de que a sociedade brasileira ainda não foi capaz de superar os efeitos traumáticos gerados pelo passado ditatorial, uma vez que, embora intua que algo na sua história se rompeu e se perdeu, tem sido impedida, desde a anistia, por setores do Estado de, não só, compreender o que exatamente foi rompido e perdido nessa história, como de perdoar o ocorrido. Por tais razões, um sentimento de vazio e de impotência persiste face à impressão de que a recorrência compulsiva a esse passado é incapaz de superar o trauma que ele gerou. 392

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Curiosamente, essa não-libertação é marcada pela inacessibilidade ao próprio trauma inconsciente, que, no entanto, passa a ser rememorado em forma de ação repetitiva. Há, assim, alguma expressão do que foi reprimido, mas tal não se dá em forma de lembrança, e sim de hábito. Esse impedimento da memória não equivale ao esquecimento do fato no qual se deu a repressão, mas, pelo contrário, à sua revivescência em forma de melancolia, ocasionada pela não reconciliação com o tempo pretérito. Diante desse surto melancólico, faz-se mais do que necessária a tarefa coletiva de reconstrução da memória nacional, através do confronto com o passado traumático, para que, em se lembrando dele, possa-se lograr o seu esquecimento, exercendo, enfim, o perdão da dívida que restou. Importa à nação a reconciliação com o passado, o seu reencontro, para que, uma vez consciente e entendida sobre ele, possa, pelo perdão, livrar-se dos traumas gerados pelos desmandos ocorridos no período ditatorial e se colocar em condições de construir criticamente outro futuro. No processo de perdoar, liga-se o passado pela memória, desligando-o pelo perdão e comprometendo-se com o futuro. Ao livrar-se de uma obsessão cega pelo passado, o perdão permite essa abertura para um amanhã que tem que ser capaz de se libertar das faltas e assegurar sempre um novo recomeço para a história; dentro, é claro, de um tempo pretérito reconciliado consigo mesmo. Desligarse pelo perdão, diante dessa perspectiva, não significa simplesmente esquecer, fugir da lembrança, do luto. Pelo contrário, o desligamento é a lembrança trabalhada, o luto trabalhado (COSTA JÚNIOR et al., 2009, p.19).

É no confronto com o tempo pretérito, que surgem as possibilidades de esquecimento não dos fatos, mas da dívida. 2.1 Como promover a reconciliação com o passado? 2.1.1 O Direito não pode, sozinho, promover a irrupção da justa memória Uma das formas de instrumentalizar esse confronto e de auxiliar o alcance do perdão/esquecimento da dívida que o Estado tem para com a sociedade seria a abertura dos arquivos ditatoriais, bem como a oitiva das vítimas, testemunhas e acusados em sessões públicas, assegurados, logicamente, 393

THEMIS os princípios constitucionais do Devido Processo Legal, da Ampla Defesa e do Contraditório. Por outro lado, torna-se duvidosa a visão estritamente jurídica de alguns juristas, como Costa Junior e outros (2009), segundo os quais a remoção, pelos órgãos internacionais, dos obstáculos oferecidos pela lei de anistia à responsabilização dos torturadores, e a consequente instituição de processos para puni-los, seriam aptas à irrupção certeira de uma justa memória capaz de possibilitar a superação das insistentes lembranças do passado traumático. Mesmo antes de o STF atestar a constitucionalidade da lei de anistia, esses autores já viam na instituição do devido processo legal para apuração das faltas cometidas a forma de cumprimento desse mister. Isto é, seria tarefa do Direito a instituição da memória compartilhada enquanto base de construção da coletividade. Dessa forma, o julgamento criminal dos autores dos delitos exerceria papel definitivo no processo do perdão, e, enfim de reconciliação da sociedade brasileira com o seu passado, porque ele possibilitaria “a constituição da justa distância entre o delito que desencadeia a cólera da vítima e da sociedade, e a punição aplicada pela instituição judiciária” (COSTA JÚNIOR et al., 2009, p. 22). O papel do processo no ato de perdoar é descrito, abaixo, por Costa Junior e outros: O processo atuaria como uma separação, um recuo, uma mediatidade, na medida em que introduz uma mediação entre justiça e perdão, operando um trabalho progressivo de reconhecimento recíproco dos protagonistas. Através dele, a vítima, logo de início é reconhecida como tal e, este reconhecimento público da injustiça que a atinge, possibilita, de certa forma, a recuperação da sua dignidade e autoestima, significando o seu primeiro ato do trabalho de luto. Este reconhecimento opera também do lado do réu: ao assumir sua falta e pedindo perdão, ele se coloca em situação de obtê-lo. Em seguida, é preciso que a sociedade, que lhe intenta este processo, reconheça-o como um ser racional e moral, e não como um monstro infrahumano (COSTA JÚNIOR et al., 2009, p. 22).

Entende-se, entretanto, que, embora os processos judiciais ofereçam o espaço para o diálogo fundamental à democracia, a reconstrução da memória não pode se restringir a eles. Deve ela passar, concomitantemente, por uma 394

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variedade de canais sociais, como as relações cotidianas da sociedade civil e setores científicos diversos, que não os jurídicos, como a história, a antropologia, etc. Não se trata o Direito, portanto, do aparato suficiente à identificação do que se rompeu e se perdeu na História do Brasil. Mesmo porque foi sempre e justamente por intermédio das formas jurídicas que as relações de poder criaram e reforçaram as suas próprias verdades nas sociedades que nutriam a crença de que seriam exclusivamente as instituições do Direito que propiciariam a ‘liberdade prometida’. Tal fato confirma a tese de Foucault (2008), segundo quem a verdade decorre de relações de poder que lançam mão das instituições jurídicas para se perpetuarem. Os institutos jurídicos, malgrado ainda sejam de extrema necessidade e correspondam a uma forma importante para a viabilização dos ideais democráticos, ainda veiculam uma lógica específica de produção da prova, e, portanto, de elaboração de uma versão da verdade fortemente direcionada ao atendimento de interesses. Nesse sentido, apesar de importantes, são eles insuficientes, quando não prejudiciais à viabilização do acesso ao trauma social inconsciente e à eliminação da revivescência melancólica do fato traumático. O uso exclusivo do Direito é insuficiente e pode ser até maléfico à proposição do caminho para a superação da sensação de vazio do ego e do sentimento de impotência para superar o trauma. Enfim, a utilização exclusiva dos institutos jurídicos na reconstrução da memória pode ser danosa ao alcance do perdão e reconciliação da sociedade com o seu tempo pretérito. Dessa maneira, não seria o caso de se dispensar as formas jurídicas, mas, pelo contrário, de valorizá-las, sem deixar, contudo, de ver-lhes os interesses ocultos e os limites de sua eficácia face aos propósitos de reconstrução do passado. Ou seja, trata-se do caso de se refletir sobre a relevância atribuída ao Direito na viabilização da elaboração da justa memória, bem como sobre os interesses que ele esconde. 2.1.2 A irrupção da justa memória: Direito, memória coletiva e memória individual Considerando-se que a elaboração da memória se faz também por outras formas que não as estritamente jurídicas, talvez, mais do que se falar em elaboração de uma memória coletiva, seja igualmente válido se promover, em concomitância com o auxílio crítico do Direito, a aproximação entre memória 395

THEMIS coletiva e memória individual, no intuito de enriquecimento de uma “memória social”. A memória coletiva, por suas características – segundo Halbwachs - de normatividade, simbolismo e anacronia, oculta violência, pois tanto valoriza uma história que rechaça testemunhos pessoais e os taxa de “subjetivistas e fictícios demais para serem institucionalizados” (HALBWACHS apud CRUZEIRO, 2009), quanto estima comemorações que representam manipulações políticas. A memória individual, por outro lado, valoriza os detalhes dos acontecimentos, os pequenos relatos, as alterações históricas e cotidianas de comportamento, o diálogo e o reconhecimento e a expressão do silêncio e da repressão que a macro-história ocultou. Ao se aceitar acriticamente uma versão selecionada e institucionalizada dos fatos, torna-se desmemoriado, porque se manifesta, ao mesmo tempo, desinteresse por outras versões que a individualidade dos relatos tem a oferecer. Abraçam-se, assim, os pressupostos ideológicos e políticos de legitimação do poder, tidos como inquestionáveis, mas que, na realidade, neutralizam as contradições em sacrifício da busca da verdade. Segundo Maria Manuela Cruzeiro: A noção proposta de Memória Social pretende, assim, reduzir a distância entre memória individual e memória colectiva, reconhecendo por um lado a responsabilidade da sociedade civil, em resgatar memórias silenciadas ou reprimidas, mas não esquecendo, por outro, o papel do historiador. Procurando adequar os relatos das memórias individuais à veracidade histórica, ele cumpre a dupla tarefa de vigilância crítica e de fidelidade ao passado. Objecto de manipulações frequentes (de ordem política e ideológica) a memória individual e colectiva passa assim a integrar o território do historiador, através dos temas do recalque, do luto, do silêncio, do esquecimento. Enfim, da própria temporalidade, ou seja: da relação do presente da memória de um acontecimento com o passado histórico desse acontecimento (CRUZEIRO, 2009).

Como se pode notar, é preciso dar ênfase ao papel não só do Direito, mas do historiador e demais personagens sociais na busca dos relatos individuais, sem desconsiderar o da sociedade civil. O enriquecimento da ‘memória social’ envolve “a conquista da legitimidade histórica das memórias dos que não podem esquecer” (CRUZEIRO, 2009), através de uma luta contra as omissões 396

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perpetradas por um modelo de Estado historicamente manipulador que não deseja ser importunado. É importante que se busquem os relatos individuais das vítimas, testemunhas e acusados e não se relegue a reconstrução da memória do país ao Estado que sempre manipulou. Pois, como aduz Bobbio (1992, p. 116), “é melhor uma liberdade sempre em perigo, mas expansiva, do que uma liberdade protegida, mas incapaz de se desenvolver”. Essa luta, conforme se concebe, não pode ocorrer sem se levar em conta mudanças comportamentais cotidianas indispensáveis, que envolvam a participação dialógica e o interesse de todos no que já se passou e no que se passa no espaço público, num ambiente de reconhecimento recíproco. Como bem assinala Maria Manuela Cruzeiro (2009), “a memória é uma batalha. A batalha de sempre entre os que não querem lembrar e os que não podem esquecer”. CONCLUSÃO Infelizmente, quando se lembra da negligência histórica e conjunta das autoridades brasileiras no que se refere, não só à apuração das verdades do regime ditatorial, como também à responsabilização pelos crimes perpetrados e à transparência, dá-se conta de que tais posturas, que já se estendem por um período médio de mais de trinta anos, constituem atentado ao direito de todos os brasileiros à justa memória, ao direito de se inteirar dos fatos e de integrá-los à própria história. Ora, fosse a insistência na constitucionalidade da Lei 6.883/79 uma posição isolada do Supremo Tribunal Federal, talvez não se dissesse que ela se tratou de uma ratificação desmesurada da violação aos direitos humanos. Mas, no bojo dos acontecimentos históricos, verifica-se que ela correspondeu a mais um dos inúmeros comportamentos impeditivos da memória, assim como o é o exemplo da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.077, ainda não julgada pelo STF, pela qual o Ministério Público Federal pede a abertura dos arquivos da ditadura. Por tal posicionamento, não se franqueou ao povo uma importante forma – no caso, o processo judicial - de acesso ao passado e de sua reconstrução, bem como se lhe impediu uma maneira de ingresso na edificação partilhada de um presente e um futuro diferentes. Tratou-se de uma conduta estatal que foi de encontro ao ideal com o qual a República se comprometeu no processo de 397

THEMIS transição, qual seja, a consolidação dos princípios democráticos e a defesa dos direitos individuais e coletivos dos cidadãos. Afinal, será que esses senhores do Estado podem mesmo manipular o direito que tem a nação de compreender e de se reconcilia com o seu próprio passado? Se realmente se vive numa sociedade democrática, não seria o caso de serem possibilitadas as mínimas vias destinadas ao melhor entendimento sobre o ocorrido, para que, enfim, se tenha condições de construir criticamente de forma partilhada um presente e um futuro diferentes? Ou será que a sociedade brasileira terá de se sujeitar indefinidamente a uma aristocracia que se confunde com o Direito e a expõe ao risco de reviver uma arbitrariedade que, definitivamente, ela não deseja? A propósito da condenação do Brasil, em nível internacional, no caso Araguaia, apesar da vergonha a que se sujeitou a nação brasileira, ao presenciar organismos internacionais fazendo por ela o que ela própria ainda não teve a coragem de fazer, vê-se como positiva a afirmação que vem sendo realizada pelos órgãos do Poder Executivo, como a Secretaria Especial de Direitos Humanos e o Ministério das Relações Exteriores. Segundo esses órgãos, “o governo brasileiro vai cumprir "sem hesitação", a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA)” (VANNUCHI apud MENDES, 2010), promovendo a investigação e a localização dos restos mortais das vítimas e a responsabilização dos culpados. Na verdade, na condição de cidadão, torce-se para que sejam possibilitados àqueles calados pela ditadura o direito à voz e à exposição de uma narrativa diferente da manipuladora que se conhece, uma narrativa que seja capaz de reconstruir os fatos de forma diversa. Espera-se também que haja alguma responsabilização daqueles que praticaram os crimes contra os direitos humanos no período ditatorial, desde que preservado o contraditório necessário e fundamental à democracia1. Pois, se se quer justiça, é preciso estar atento às regras internas ao Estado Democrático de Direito, reelaborando racionalmente os impulsos de justiça. Tal é a função do Direito. REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. 240 p. 398

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COSTA JÚNIOR. Responsabilização, julgamento e ditadura no Brasil: o perdão pode curar? Disponivel em: Acesso em 07 jan. 2011 CRUZEIRO, Maria Manuela. Memória individual/memória colectiva: conflito e  negociação. Disponível em: Acesso em 28 dez. 2010. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2009. 158 p. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 26. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. POLLET, Adriane. Luto. Disponível em: Acesso em 04 jan. 2011. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora UNICAMP, 2007. 536 p. SERRANO, Pedro Estevam. A Lei de Anistia e o terrorismo de Estado. Disponível em: Acesso em 07 jan. 2011. MENDES, Vannildo. O Estadão, São Paulo, 15 dez. 2010. Disponível em: Acesso em 08 jan. 2011. NOTA DE FIM 1 E, por falar nisso, já que, com a sentença proferida no caso Araguaia, o Brasil tem mesmo de indenizar as vítimas e familiares, espera-se que Estado atenda ao artigo 37, § 6º da CR/88, ajuizando ação regressiva contra aqueles agentes estatais que torturaram, estupraram, mataram pessoas e ocultaram cadáveres.

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Esta obra foi composta em Minion Pro e impresso em papel 24 kg. Impressão e acabamento no Departamento Editorial e Gráfico Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, em Fortaleza/CE, setembro de 2014.

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