Direito moderno entre consenso e dissenso: a reconstrução habermasiana da legitimidade consensual do direito positivo da sociedade pós-tradicional

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DIREITO MODERNO ENTRE CONSENSO E DISSENSO A RECONSTRUÇÃO HABERMASIANA DA LEGITIMIDADE CONSENSUAL DO DIREITO POSITIVO DA SOCIEDADE PÓS-TRADICIONAL IVAN RODRIGUES1

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INTRODUÇÃO Não é incomum2 surpreender críticas à teoria habermasiana segundo as quais Habermas

teria cometido um erro crasso ao fazer tudo girar em torno do consenso. Tais críticas atacam o consensualismo supostamente forte de Habermas normalmente levantando alguma variante da seguinte objeção: Em lugar de consensos abrangentes, vige na sociedade moderna um dissenso transversal tão lancinante que ocasiona uma fragmentação prolífica de visões de mundo, estilos de vida e concepções do bom. Portanto, em lugar de sólidos consensos embasadores da vida cotidiana, encontram-se, por toda parte, divergências, desacordos e discrepâncias que a permeiam e não podem ser reprimidos e eliminados porque isso seria tão opressivo quanto inalcançável. Dessa forma, o ataque ao suposto consensualismo forte de Habermas é feito em dois fronts, a saber, o front do opressivo (a) e o front do inalcançável (b): (a) A existência de dissensos éticos (a respeito do pertencimento cultural e da realização da personalidade) está intrinsecamente ligada à afirmação da autonomia humana: os dissensos éticos devem ser preservados porque eles refletem a capacidade humana de autorrealização e 1

Para visualizar a trajetória acadêmica do articulista: http://lattes.cnpq.br/3085919257774539. Para enviar-lhe mensagem eletrônica: [email protected]. 2 Exemplo notável entre nós é: NEVES, Marcelo. Do consenso ao dissenso: o estado democrático de direito a partir e além de Habermas. In: SOUZA, Jessé. Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001, p. 111-163. Exemplos marcantes de além-mar são: o pós-modernismo de Jean-François Lyotard e o agonismo de Chantal Mouffe. Apresentações ao mesmo tempo claras e críticas dos insights políticos de Lyotard e Mouffe contra o consensualismo habermasiano, respectivamente, são: FAIRFIELD, Paul. Habermas, Lyotard and political discourse. Reason papers, v. 19, 1994, p. 58-80; MIGUEL, Luis Felipe. Consenso e conflito na teoria democrática: para além do agonismo. Lua nova, n. 92, 2014, p. 13-43. Para Lyotard (lido por Fairfield), “‘progresso’ no debate político [...] não consiste em produzir deduções ‘válidas’ ou gerar consensos, mas exatamente em derrubar consensos e desestabilizar nossas práticas políticas. Em vez de privilegiar o consenso, Lyotard sugere que quanto mais inventivo nosso movimento for, menos provável será gerar concordância, ‘precisamente porque ele muda as regras do jogo no qual o consenso se baseava’. Progresso político consiste ou em inventar novos movimentos em jogos velhos, refinando e alterando regras estabelecidas, ou em inventar novos jogos” (p. 60). Para Mouffe (lida por Miguel), Habermas enfraquece o político, “guarda um forte componente antipolítico, com a nostalgia de uma comunidade harmônica que o confronto próprio das disputas políticas (e cuja manifestação aberta é uma das características da democracia) não permitiria que florescesse”. Ele omite a centralidade dos conflitos de interesses e, em seu lugar, coloca a centralidade do consenso: os conflitos de interesses aparecem só como “um mal a ser extirpado” (p. 25) por acordos racionais.

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autodesenvolvimento; suprimi-los seria, em última análise, ilegitimamente bloquear a legítima pretensão dos diversos indivíduos e das diversas formas de vida de configurarem e afirmarem sua própria identidade, sua própria singularidade; (b) Não é possível alcançar um “consenso 100%”, um consenso total, justamente porque o dissenso é ineliminável: jamais deixarão de emergir as opiniões dissonantes, as objeções, as impugnações, os contra-argumentos, os pontos de vista destoantes. Parece que é inseparável da autenticidade humana a fértil capacidade de objetar, desviar-se, formar outros de si mesmo. Habermas, portanto, erraria grosseiramente ao propugnar que tudo orbitasse em torno de consensos. Como poderia ser assim se dissentir é ínsito à autonomia (a) e incontornável (b)? Habermas, no entanto, não resvala nesse erro rombudo porque, em primeiro lugar, não despreza nem ignora que o pluralismo ético, a diversidade de identidades, a multiplicidade do singular, corresponde a uma estrutura axial da sociedade moderna; porque, em segundo lugar, não propugna que todos os diversos indivíduos e todas as diversas formas de vida entrem em concordância estrita sobre a solução de todos os problemas que os afetem. Noutras palavras, Habermas está plenamente de acordo com as críticas (a) e (b) e, na verdade, toma-as como a base de seu “consensualismo brando”. Assim, (a) e (b) não traduzem, a rigor, “críticas” contra Habermas, mas pontos de partida que Habermas, ele próprio, assume consistentemente em seu fazer teórico. Por conseguinte, tomar (a) e (b) como se fossem “críticas” a Habermas equivale a atacar não Habermas, mas algum espantalho dele. Este artigo assume a tarefa preliminar de apresentar interpretativamente as linhas gerais do consensualismo elaborado pelo atual estágio do quadro teórico habermasiano. Essa tarefa é indispensável para que o coração argumentativo deste artigo seja atingido: uma argumentação sustentadora da tese de que, na teoria discursiva do direito moderno, Habermas compreende o direito moderno como intrinsecamente dependente do consenso racionalmente construído por todos os agentes afetados, o que não significa, porém, que, para Habermas, o direito moderno exija de seus destinatários uma afinação estreita entre seus diversos panos de fundo culturais. A pergunta capital que este artigo pretende responder é: segundo Habermas, como seria possível a um ordenamento jurídico positivo na sociedade moderna, marcada pelo pluralismo cultural, nutrir-se primordialmente do entendimento geral e estabelecer sua legitimidade sobre uma concordância sólida entre seus atingidos? A resposta aqui formulada é: o direito moderno não é imune ao questionamento de sua aceitabilidade racional e só pode preencher o altíssimo ônus de alimentar em seus implicados a presunção relativamente estável de sua aceitabilidade racional se for moldado a partir dos direitos humanos e (re)criado democraticamente. Tanto os direitos humanos como a democracia, por seu turno, conectam-se, interna e construtivamente,

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ao pluralismo cultural, cuja vulneração repressora pelo direito moderno denunciaria, portanto, um desenvolvimento patológico dele mesmo. Tanto sociológica como normativamente, não é possível que o direito moderno mantenha sua legitimidade caso seja desmascarado como uma supervisão truculenta da autorrealização expressiva dos agentes, como uma gaiola férrea para a capacidade humana de ramificar plurissignificativamente o ideal da vida boa, o ideal de uma forma de viver que conduza à plena satisfação do brio pessoal.

2.

SOBRE HABERMAS SOBRE (DES)ENTENDIMENTO INTERSUBJETIVO Se há, no pensamento habermasiano, uma ênfase no consenso, ela só se manifesta sob a

forma de um “consensualismo enfraquecido” segundo o qual mesmo uma pretensão que tenha sido sustentada com um argumento que se revelou o melhor sob determinadas circunstâncias epistêmicas e que, por isso, requer reconhecimento racional por parte de todos os afetados não está imune à força subversiva da razão. Tal pretensão pode ser, a qualquer momento depois de ter sido considerada como racionalmente fundada, rejeitada como inválida diante de um novo contra-argumento que seja levantado por qualquer interessado. Se exsurge um consenso “C” em torno de uma pretensão “P”, “C” é estabelecido apenas provisoriamente e é insitamente precário. “C” somente se sustenta enquanto não for produzido um contra-argumento capaz de racionalmente demonstrar a invalidade de “P”: logo que algum concernido formule uma objeção que derrote racionalmente o argumento que fundamenta “P”, “C” desaparecerá, pois perderá sua única base, a qual era a aceitabilidade racional de “P”. Para Habermas, portanto, um consenso somente é justificável enquanto a pretensão que ele endossa puder ser sustentada com um argumento não refutado. Todo consenso está, logo, permanentemente aberto à revisão e, pois, sujeito à dissolução (porquanto qualquer argumento é falível e passível de superação). Assim como os sujeitos estão incessantemente capacitados e autorizados a questionar a validade das práticas sociais que os interpelam, assim também os consensos estão perenemente fadados ao fracasso. Uma pretensão pode apresentar-se, dentro de certas condições históricas e sociais de aprendizagem, como racionalmente imbatível, mas uma transformação nessas condições pode provocar a derrocada de tal pretensão, a partir do levantamento de um contra-argumento crítico. O consensualismo habermasiano, portanto, não é “forte”. Um consenso só pode surgir a partir de um contexto estruturalmente dissensual e jamais pode apagar, de uma vez por todas, a possibilidade de dissenso: ao invés disso, o consensualismo habermasiano parte da assunção

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contextualista da “inevitabilidade do desentendimento endêmico”3. O consenso não assassina, portanto, o dissenso; antes, o consenso (formado racionalmente) apenas reclama que os atores sociais convenham na aceitabilidade racional de uma pretensão que ainda não foi evidenciada racionalmente como inválida: apenas reclama que os atores sociais reconheçam que, apesar de subsistir um dissenso subjacente, determinada pretensão deve ser acatada e respeitada porque o argumento que a embasa ainda não foi desbancado por nenhum contra-argumento. Para que os discordantes façam prevalecer racionalmente sua própria opinião, eles têm de desincumbirse do ônus de explicitar argumentativamente que os motivos que sustentam a pretensão com a qual discordam são racionalmente inaceitáveis diante dos motivos que sustentam a pretensão deles. O ponto fulcral de Habermas é que, caso pretendamos agir racionalmente em sociedade, não poderemos deixar de acatar e respeitar uma pretensão contra que não somos capazes, por enquanto, de levantar um contra-argumento que refute o argumento que embasa tal pretensão, por mais que discordemos dela. Caso aspiremos a fazer prevalecer nossa própria pretensão de modo racional, haverá apenas uma saída para não mais acatarmos e respeitarmos a pretensão contra que nos insurgimos: erguer um contra-argumento melhor que o argumento sustentador da pretensão que repelimos. E a única instância racionalmente autorizada para imparcialmente avaliar se nosso contra-argumento é melhor corresponde ao tribunal intersubjetivo de todos os envolvidos no problema a ser solucionado: devemos, então, expor nosso contra-argumento ao crivo da análise atual e da eventual contraposição de todos os envolvidos; apenas eles podem decidir se nosso contra-argumento mina a aceitabilidade racional do argumento embasador da pretensão atacada. O dissenso permanece latentemente inscrito no consenso e pode tornar-se claro logo que for esclarecida a irracionalidade da pretensão provisoriamente admitida como racional através do consenso. Por conseguinte, o consensualismo habermasiano corresponde só à consideração de que, se desejássemos agir racionalmente em sociedade, as soluções para nossos problemas comuns seriam unicamente aquelas que não pudessem ser, por enquanto, argumentativamente apontadas como inválidas, ainda que não concordássemos genuinamente, “no fundo de nosso coração”, com elas – e desde que, por enquanto, não pudéssemos, apesar de nossa divergência profunda quanto a elas, sublevar-nos racionalmente contra elas a tal ponto que desvelássemos sua invalidade.

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HABERMAS, Jürgen. On law and disagreement. Some comments on “interpretive pluralism”. Ratio Juris, v. 16, n. 2, 2003, p. 194.

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Não acatar e não respeitar uma pretensão que não estamos capacitados, por enquanto, a superar racionalmente, uma pretensão, assim, que conta com uma base racional não destruída, mas sólida (por enquanto), seria abandonar a ação racional em sociedade. O entendimento que buscamos mediante o “agir comunicativo” (e é isto que distingue o agir comunicativo: ele é destinado só a alcançar entendimentos mútuos entre os atores sociais que sejam racionalmente construídos, racionalmente acatáveis e racionalmente dissolúveis por eles mesmos) não se confunde com uma adesão “de corpo, alma e espírito” a uma opinião que argumentativamente se provou a melhor entre as opiniões concorrentes4. O agir comunicativo, portanto, não se destina a “converter” divergentes a uma opinião, a fazer divergentes “crerem contritamente” que certa opinião (com que eles não concordavam, ou que eles desconheciam) é a melhor. O agir comunicativo somente se destina a, no meio do dissenso e com o dissenso, proporcionar uma base estável o suficiente para manter a cooperação intersubjetiva e catalisar a integração social. Essa base comunicativa está sempre sujeita à mudança, mas uma mudança de base comunicativa só ocorre com uma viravolta argumentativa, isto é, com o levantamento de um contra-argumento que vença racionalmente a pretensão até então prevalecente. Quando, pois, um ator social está comprometido a agir comunicativamente, ele não está comprometido a eventualmente ter de abandonar sua opinião, mas só a eventualmente ter de admitir que sua opinião careceria de uma fundamentação racional melhor e, ao mesmo tempo, que a opinião de outrem poderia apresentar, pelo menos por enquanto, uma fundamentação racional melhor que a sua e, por isso, ter de ser provisoriamente acatada e respeitada como a melhor disponível. O agir comunicativo requer, portanto, uma imparcialidade localizada numa plataforma acima da plataforma dos dissensos. Ele pressupõe que é possível alguém apaixonadamente se atrelar a uma opinião, mas não apresentar nenhum motivo (por que assume essa opinião) que fosse apto a ser visto como racionalmente aceitável por todos os implicados. É, com efeito, possível que alguém nutra por uma opinião uma roxa benquerença e seja impávido advogado dela, mas não ofereça nenhuma justificação capaz de passar no teste da intersubjetividade: a exposição ao exame e à objeção dos outros. O agir comunicativo requer, porém, que qualquer 4

Essa cisão entre o reconhecimento da momentânea insuperabilidade epistêmica de uma opinião, por um lado, e a conservação de uma resistente discordância latente em relação a tal opinião (discordância que, contudo, não é capaz de expressar-se com razões superadoras), por outro lado, torna-se ainda mais drástica no quadro dos procedimentos democráticos. É que tais procedimentos não podem ser temporalmente irrestritos e, pois, têm de ser concluídos com o voto majoritário: “O voto goza, por enquanto, a presunção de aceitabilidade racional, sem impor, com isso, sobre a minoria qualquer mudança de mente. Enquanto a maioria obtém o que quer por ter sua vontade efetuada, a minoria retém a oportunidade de mudar, na próxima rodada, uma opinião que prevaleceu até agora” (HABERMAS, Jürgen. On law and disagreement. Some comments on “interpretive pluralism”. Ratio Juris, v. 16, n. 2, 2003, p. 192).

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um que tenha uma opinião produza uma justificação dela e, caso sua justificação não passe no teste da intersubjetividade, não continue a “ostentar” a opinião avaliada como não justificável. Ele não terá de apagar definitivamente a opinião, mas só terá de arquivá-la temporariamente: se vier a compor outra justificação para ela, ele poderá voltar a brandi-la ao mesmo tempo em que submete a nova justificação ao teste da intersubjetividade. O agir comunicativo reclama, logo, um autodescentramento por parte de quem pretende agir esclarecido pela razão. Não se trata de “renunciar a si mesmo”: quem está disposto a agir comunicativamente não tem de cultivar a virtude da abnegação. Trata-se só de discernir que a razão nem sempre estará do seu lado, que a razão pode estar do lado de lá. Porém, é provável que alguém que fosse um egoísta implacável (incapaz de admitir estar errado porque maquina lograr vantagens através de seus erros) ou um orgulhoso irredutível (incapaz de suportar seus próprios fracassos) encontrasse dificuldades extremas para agir comunicativamente porque se distanciar de seus próprios horizontes (a fim de permitir a fusão deles com outros horizontes) poderia ir na contramão de seu egoísmo ou orgulho. Além disso, o consensualismo habermasiano não é antitético ao pluralismo cultural. Na medida em que todo consenso pressupõe dissenso, a diversidade de autocompreensões éticas é ineliminável: não pode ser eliminada mesmo quando é necessário resolver controvérsias éticas entre diferentes formas de vida e, portanto, chegar a um consenso ético. Se não há dúvida de que há controvérsias éticas (impasses entre diferentes formas de vida a respeito de problemas comuns), então só há duas possibilidades de ir adiante: fechar os olhos para as controvérsias éticas e fazer de conta que elas não têm importância, ou, em vez disso, tentar solucioná-las. Habermas sustenta que as controvérsias éticas devem ser tentativamente solucionadas. Como, para ele, nenhuma solução para problemas intersubjetivos pode escapar ao crivo do tribunal da razão intersubjetiva, não se pode solucionar nenhuma controvérsia ética a não ser através de um consenso racionalmente formado, inclusivo de todos os atingidos. Na medida em que os representantes das diferentes formas de vida confrontam suas opiniões mutuamente e requerem uns dos outros a justificação do que defendem, eles são constrangidos a saírem de seus pontos de partida unilaterais, colocando francamente à prova a admissibilidade racional plurilateral de suas opiniões. Se eles apenas declarassem suas opiniões, não seria possível um consenso racional: além dessa declaração, eles são solicitados a colocarem em cima da mesa as justificações subjacentes. Em cima da mesa, sob o olhar problematizador de todos, elas são avaliadas e separadas umas das outras: aquelas que desfalecem em face dos primeiros contraargumentos levantados não podem ir à fase seguinte; aquelas que subsistem a eles são guiadas à fase seguinte, na qual a atenção é concentrada sobre elas, novos contra-argumentos são

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produzidos e algumas delas não lhes resistem. Esse movimento incessante de exposição de opiniões e das respectivas justificações ao teste da intersubjetividade prossegue até que a melhor opinião seja encontrada: a melhor opinião será aquela cuja justificação não desmorone pelo abalo de objeções atiradas, quer dizer, não seja derrotada por elas. A melhor opinião é só aquela cuja justificação, dentro dos limites atuais do contexto epistêmico da discussão, não é sujeitada à refutação. A melhor opinião não é infalível, tão somente ela ainda não faliu. Como esse tipo de consenso (descrito acima) só aparece como solução (o único tipo de solução tolerável) para problemas intersubjetivos, parece carecer de sentido sustentar que o consensualismo habermasiano desnaturaria o pluralismo ético em geleia. Consensos éticos só são indispensáveis para impasses éticos entre formas de vida diferentes: aquém e além desses impasses, toda forma de vida pode autoafirmar-se sem nenhuma supervisão, pasteurização e colonização. Mesmo quando tais impasses emergem, a resolução deles não pode ser, segundo Habermas, contaminada por manipulação e coerção. A formação racional de consensos éticos só pode ser válida caso ela não seja transida pelo engano e pela violência; um consenso ético, em última análise, só é válido se sua elaboração foi plenamente livre, se apenas a coação sem coação do melhor argumento (daquele argumento que não foi, por enquanto, abatido) moldou o resultado. Um consenso ético, para Habermas, corresponde, pois, a uma fusão de horizontes na qual eles não são suprimidos, mas, antes, enriquecem-se mutuamente. Em resumo, o consensualismo adotado pela teoria habermasiana pode ser caracterizado como: (a)

Racionalista, na medida em que só devem ser levados a sério os consensos que,

ao invés de ancorarem em motivos irracionais e surgirem de manobras irracionais, baseiam-se em uma justificação racionalmente procedida, que satisfaz as condições ineludíveis da “razão destranscendentalizada” (encarnada nos jogos discursivos de linguagem, localizados histórica e socialmente) e coroa o melhor argumento. Esse racionalismo não importa que não entram na formação de consensos catalisadores “não puramente racionais” (emoções, interesses, crenças dogmáticas, imaginários, enquadramentos preconceituosos), mas apenas que, sendo possível e realisticamente inegável que a formação de consensos seja atravessados por tais catalisadores, estes são, não obstante, expostos à radiação clarificadora do tribunal da razão intersubjetiva e, portanto, são esquadrinháveis, criticáveis e derrotáveis; (b)

Cético (mas não derrotista, descrente da possibilidade de avaliar racionalmente

a validade de pretensões erguidas), pois não observa o argumento coroado como o melhor em determinadas circunstâncias como um argumento definitivamente válido e, portanto, imune às

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modificações de circunstâncias e às aquisições de aprendizagem que tais modificações podem implicar. Nenhum consenso racionalmente construído é, assim, sedimentado com um cimento definitivo, mas pode ser posteriormente revisto, desalinhado e dissolvido de um ponto de vista racional, pois a razão corresponde a um processo incessante de aprendizagem tanto inteligente (capacitado a detectar fracassos e tentar superá-los) quanto crítica (apto a questionar, até onde for necessário, a aceitabilidade de pretensões); (c)

Procedimentalista, porquanto não enfatiza o produto do consenso, o argumento

coroado como o melhor, mas focaliza os pressupostos procedimentais incontornáveis que uma justificação deve guardar para não ser um ritual meramente enganoso, um simplório truque de ilusão ótica. De um procedimento racionalmente articulado podem derivar vários resultados, o que depende não da maleabilidade e da incerteza do procedimento, mas da limitação cognitiva e da filtragem selecionadora dos argumentos substanciais que são empregados, de fato, para a alimentação do procedimento. Noutras palavras: o que reveste um consenso de aceitabilidade racional e lhe guarnece de credibilidade geral é a atualização dos pressupostos procedimentais incontornáveis do discurso racional5; (d)

Universalista, levando em conta que a formação racional do melhor argumento

possível em determinadas circunstâncias históricas e sociais não prescinde da inclusão de toda contribuição pertinente e de todo agente afetado. Não pode emergir um consenso aceitável do ponto de vista da racionalidade dos agentes por ele impactados se suas vozes são amordaçadas e silenciadas na construção dele. Por isso, um consenso só se sustenta racionalmente enquanto outras contribuições efetivadas por um agente envolvido, em primeiro lugar, não são barradas no limiar do jogo discursivo e, em segundo lugar, não alteram o último resultado de tal jogo; (e)

Igualitário, considerando que todos os participantes devem fruir iguais direitos

de participação, de modo que o procedimento discursivo horizontaliza os desníveis externos à constituição procedimental do discurso (desigualdades econômicas, distanciamentos culturais, tensões entre papéis sociais). Alguém que apresente uma riqueza monumental, uma formação cultural paradigmática ou uma posição social proeminente não logra privilégios participativos no discurso simplesmente por isso;

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Habermas resume, assim, tais pressupostos: “(a) publicidade e inclusão: ninguém que possa prestar uma contribuição relevante quanto a uma pretensão de validade controversa deve ser excluído; (b) igual legitimidade comunicativa: todos têm a mesma chance de expressar-se sobre a questão discutida; (c) ausência de artifício e ilusão: os participantes devem querer dier o que eles dizem; e (d) ausência de coerção: a comunicação deve ser livre de restrições que impedem que o melhor argumento entre em jogo e determine o resultado da discussão” (HABERMAS, Jürgen. Kommunikatives Handeln und detranszendentalisierte Vernunft. Stuttgart: Reclam, 2001, S. 45).

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(f)

Eticamente neutro, o que significa que não se deixa encaixar geneticamente em

nenhuma contextualidade cultural substantivamente localizada, estando, inobstante, projetado para levar procedimentalmente a sério contribuições e participantes de quaisquer procedências culturais específicas. Por conseguinte, por um lado, o consensualismo habermasiano pretende alçar-se a um nível metaético no sentido de não redutível a uma eticidade particular qualquer; apesar disso, o consensualismo habermasiano pode ser visto como filiado a um pano de fundo ético generalíssimo cuja pedra angular é a valorização da razão como “luz para a autonomia”. Por outro lado, o consensualismo habermasiano propugna fornecer a toda eticidade particular uma arena propícia ao diálogo intercultural franco, honesto, pacífico, livre e igualitário, arena que requer dos interlocutores apenas uma contrapartida: compromisso com a racionalidade.

3.

ENTRE ACEITAÇÃO SOCIAL E ACEITABILIDADE RACIONAL: A FACE DE JANO DO DIREITO MODERNO O que, entretanto, o “consensualismo moderado” de Habermas teria a ver com o direito?

Noutras palavras: a teoria habermasiana do agir comunicativo proveria algum esclarecimento acerca do direito? A primeira parte de uma resposta a essa pergunta seria: o direito conecta-se insitamente à presença e à ausência de consenso, ele é impensável sem referência a consensos basilares. A modificabilidade dele é o signo de que sua estabilidade é permeável ao (mas não colocada em xeque pelo) dissenso; a segurança que ele engendra apoia-se na compatibilização interpessoal de planos pessoais de ação que é obtida em consensos abrangentes; a falência dele em fazer-se observar, mesmo em face do funcionamento regular de seu aparato coercitivo, é congruente a sua desafinação com consensos emergentes e subversivos de velhos; ao desmoronamento dele subjaz o espedaçamento de consensos débeis. A intuição básica do convencionalismo jurídico é certa: um sistema jurídico é uma criação convencional de uma comunidade jurídica, emerge do engenho pragmático e da concordância mútua dos agentes a ele sujeitos, depende da dupla capacidade deles de inteligentemente perseguir soluções para os problemas comuns e concluir racionalmente os debates em torno dessas soluções (com entendimentos recíprocos). A segunda parte dessa resposta seria: a teoria habermasiana do agir comunicativo expõe o direito como uma instituição ambivalente, com duas faces complementares. De um lado, ele diferenciou-se sistemicamente, incorporando uma lógica funcional: para desempenhar a tarefa imprescindível (a uma sociedade hipercomplexa) de sedimentar expectativas generalizadas de comportamento, o direito desentranha-se do substrato intersubjetivo do viver espontâneo, que é intrinsecamente incapaz de propiciar a conformação de um direito eficientemente redutor da

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medonha complexidade social. De outro lado, o direito não se desarraigou totalmente do viver mundano, do pano de fundo de comunicações interpessoais cotidianas: o direito é impregnado perenemente por práticas estabilizadas e problematizações reflexivas do mundo vivido; assim, ele é imediatamente impactado pelos saberes culturais forjados no mundo vivido, pelas ordens sociais nele legitimadas e pelas identidades pessoais nele reconhecidas. Na verdade, o direito, ele mesmo, é uma ordem social erigida a partir do mundo vivido, composta por normas gerais e abstratas, coercíveis, cuja legitimação é tecida com a malha simbólica agregadora do mundo vivido: com consensos valorativos. Como todo consenso valorativo é essencialmente precário, plenamente exposto ao risco de esfacelar-se sob o martelo da razão intersubjetiva, o direito é, ao mesmo tempo e paradoxalmente, um catalisador do risco de dissenso: ele não elimina esse risco, ele apenas o despista por um instante, possivelmente pagando por isso o altíssimo preço de adensá-lo. Tal resposta gira, portanto, em torno da legitimidade do direito: ele adquire legitimidade unicamente sobre a base de “placas tectônicas” consensuais que podem abalar-se, provocando perturbações e deflagrando reformas e até rupturas drásticas. Assim, o consenso é o penhor da legitimidade do direito. É que o direito não pode desligar-se da aprovação nem da reprovação de seus destinatários: ele não transcende a capacidade deles de requerer e atribuir razões, essa capacidade não é bloqueada pelo direito porque simplesmente não há muralhas inexpugnáveis em face dessa capacidade, não há nada para além da justificabilidade, insuscetível da carência de justificação. Não há no direito uma blindagem contra problematizações, embora, ao mesmo tempo, o direito não seja facilmente acuado por elas. Ainda que um ordenamento jurídico seja medonhamente hostil a desvios comportamentais e desafios argumentativos, a autoridade dele (endurecida por sua truculência) não pode, por muito tempo, esquivar-se da questionabilidade; quando, aliás, um ordenamento jurídico só responde com ferro e fogo aos questionamentos de sua legitimidade, é altamente provável que esses questionamentos se exasperem, aumentando o ressoar de seu apelo na esfera pública e a mobilização de seus apoiadores na sociedade civil. A conexão ínsita entre direito e consenso, na teoria habermasiana do agir comunicativo, reside, em última análise, em que, enquanto fazer humano, o direito não deixa de ser um fazer reflexivo, permanentemente submetido ao fórum competente para julgar todo fazer humano: a razão intersubjetiva. Segundo Lafont, “tal ideia captura dois aspectos correlativos da noção de autonomia, a saber, que forçar alguém a agir contra sua própria razão é errado e, portanto, que a correção das normas não pode quedar além da possível concordância racional dos sujeitos a elas”. A razão intersubjetiva aparece, então, como a redenção da autonomia de agentes, é nela que eles colocam à prova se as normas que os vinculam podem ser reconhecidas como normas

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que eles esclarecidamente estabeleceriam para si mesmos: “pretender que uma norma ‘poderia contar com concordância’ denota que ela não contém nenhum traço que poderia impossibilitar qualquer pessoa racional de endossá-la”6. O direito está internamente conectado ao consenso, em última instância, porque está internamente conectado à autonomia humana – porque não é possível evitar que os agentes impactados por uma norma jurídica assumam a perspectiva, que é conducente, ao mesmo tempo, à problematização e ao entendimento, de seus autores. O que está em jogo na tese de que a legitimidade do direito é consensualmente fundada, tanto quanto é aberta ao dissenso, é, em última análise, a autonomia dos sujeitos ao direito. Se uma ordem jurídica pode valer independentemente do consentimento das pessoas cuja conduta ela afeta (com uma coercitividade altamente organizada e só dificilmente escapável), então ela está fora do controle delas e elas são heteronomamente guiadas. Não é qualquer aval, todavia, que torna legítima uma norma jurídica e torna autônomas as pessoas nela implicadas. Um aval produzido mediante ameaça, força bruta, engano, desconhecimento, vantagem indevida, cega superstição, terror, mera simpatia, partidarismo – um aval obtido ou dado irreflexivamente, ou seja, não filtrado pela razão não é um aval assegurador da autonomia. Assim como para Kant, para Habermas, exclusivamente o esclarecimento racional é gerador de autonomia: com ele, é possível indagar “Por que devo adotar o comportamento ordenado, por que devo não adotar o comportamento proibido, por que posso adotar o comportamento permitido por certa regra de direito?”. Levantar essa indagação corresponde a perfurar a couraça autoritária que envolve o direito até o ponto em que seu corpo nu é atingido: até o ponto em que a pretensão de validade da regra de direito colocada em questão é exposta. Nesse ponto, o direito que emerge defronte ao indagador é descarregado momentaneamente de sua autoridade fática, sua coercitividade é provisoriamente deflacionada, é sobre sua presumida correção que se concentra a curiosidade penetrante do indagador. Consoante Habermas, no entanto, a reflexividade do direito é frugal, não corresponde a um ímpeto indomável de autossolapamento, não o mantém ininterruptamente a meio passo da autoderrogação. A reflexividade do direito é moderada porque ele não é a encarnação da razão intersubjetiva, mas, antes, é um alívio à fúria justificadora dela. O direito cumpre a função de eximir (temporariamente) os destinatários do direito do ônus de sacar uma justificação sempre que fossem indagados por que agiram de um modo, não de outro modo: o direito permite que o indagado responda só que agiu “legalmente”, em consonância exterior com normas jurídicas

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LAFONT, Cristina. Agreement and consent in Kant and Habermas: can Kantian constructivism be fruitful for democratic theory? The philosophical forum, v. 43, n. 3, 2012, p. 277-295. As duas citações são da p. 277 e da p. 278 respectivamente.

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vigentes, não tendo se desviado dos comportamentos nelas prescritos. O direito não exige que seus destinatários ajam por dever, mas apenas conforme o dever. Assim, o direito: (a)

Poupa a seus destinatários tempo e conhecimento, na medida em que requer só

que eles aleguem a observância da “lei” para respaldarem seus comportamentos ante outrem e não reclama que eles suportem todos os dispêndios temporais necessários a patentear que seus comportamentos são “sensatos”, sequer que eles dominem todos os acervos informacionais de que seus comportamentos dependem para se demonstrarem “razoáveis”. Por exemplo, sob um sistema jurídico que abriga positivamente a estigmatização, a exclusão e a opressão de negros, um garçom que se negasse a servir um cliente negro poderia respaldar seu comportamento por meio da rápida e superficial alegação de que “a lei proíbe que negros frequentem restaurantes acessíveis só a brancos”. O garçom não seria constrangido, nesse nível de discussão, a investir tempo no empreendimento (arriscado e não lucrativo) de respaldar a aceitabilidade racional de seu comportamento; (b)

Propicia que seus destinatários usem de sagacidade para realizar seus planos de

vida e perseguir suas metas de felicidade (ou seja, que eles prossigam autocentrados, guiados por suas autocompreensões, atados a sua prudência), sem terem de subordinar constantemente seus objetivos pessoais à deferência alheia. Noutras palavras, o direito propicia aos indivíduos a proteção imprescindível ao império das conveniências privadas e dos interesses particulares. Por exemplo, sob um sistema jurídico que permite irrestritamente ao esposo castigar a esposa, nenhum homem teria de, a princípio, justificar (diante de vizinhos, amigos e parentes) por que a mulher com quem é casado esconde olhos arroxeados e sanguíneos detrás de óculos escuros; (c)

Não exige de seus destinatários que observem a “lei” motivados unicamente de

um ponto de vista descentrado, desinteressado, moral. Na verdade, não importa para o direito com quais motivos interiores alguém o observa, importa-lhe apenas se se comporta tal como a “lei” prescreve. Por exemplo, sob um sistema jurídico que incentiva denunciar à polícia o gay, para que seu perfil sexual degenerado seja confirmado e energicamente punido, o denunciante não seria indagado a respeito de sua motivação interior, não importaria para a polícia se o que o instiga a denunciar é a inveja, a emulação, a desforra, o ódio, o medo, a devoção, tudo que a polícia levaria em conta seria só a base legal que o autoriza a proceder à denúncia. O direito proporciona, então, um descarregamento argumentativo provisório aos sujeitos a ele. Esse descarregamento é somente provisório porque “o sentido prescritivo de ‘ordenado’ ou ‘proibido’ está conectado com o sentido epistêmico de ‘justificado’ ou ‘injustificado’”7. É, 7

HABERMAS, Jürgen. Truth and justification. Translated by Barbara Fultner. Cambridge: The MIT Press, 2003, p. 238.

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portanto, por isto que toda norma jurídica carece de autorização cognitiva e, caso não supra tal carência, perde sua própria autoridade prática: a autoridade prática de uma norma jurídica não pode nutrir-se senão da autorização cognitiva provida por razões publicamente não derrotadas dentro da comunidade jurídica. A autoridade prática do direito, por conseguinte, não substitui a autorização cognitiva que os sujeitos a ele lhe podem conferir e, portanto, depende de que o direito seja racionalmente aceitável por seus obrigados: A peculiar realização da positivação da ordem jurídica consiste em deslocar problemas de fundamentação e, pois, descarregar a aplicação técnica do direito, em vastas extensões, de problemas de fundamentação, mas não em eliminar a problemática da fundamentação: precisamente a estrutura pós-tradicional da consciência jurídica converte a problemática da justificação em uma questão de princípio, que é removida para os princípios, mas, com isso, não desaparece 8.

Segundo Habermas, o que para o direito torna a justificação estruturalmente necessária é os direitos fundamentais e a soberania popular. Os direitos fundamentais são protegidos na constituição como expressões da autocompreensão dos cidadãos acerca de sua “autonomia”; a soberania popular, por um lado, é pressuposta pelos direitos fundamentais de participação (os quais são concernentes à “autonomia pública” dos cidadãos) e, por outro lado, é indispensável ao desdobramento legislativo dos direitos fundamentais in totum na e além da constituição. A criação democrática do direito, em última análise, é a fortaleza garantidora da legitimidade do direito: nela está pressuposta a vigência de direitos fundamentais que assegurem a “autonomia privada” dos cidadãos, com a qual eles podem participar politicamente sem o medo da ameaça de interferências institucionais arbitrárias nas condições basilares de sua individualidade; com ela, além disso, o direito disponível não se converte em sistema fora do controle dos cidadãos e só remotamente influenciável por eles. Que o direito seja democraticamente criado impede a transmudação dele em uma matriz programadora do comportamento de agentes e cujo circuito operacional lhes seria, no pior dos mundos, intransparente e, no melhor, “observável” (estaria dentro do escopo de seu conhecimento), porém fechado a uma reprogramação crítica por parte deles. A catalogação de direitos fundamentais na constituição depende da concordância mútua sobre quais são os direitos fundamentais que os cidadãos igualmente conferem uns aos outros: não há nenhum catálogo pré-estabelecido por uma divindade, não há nenhum catálogo inscrito na alma humana, não há nenhum catálogo suspenso nas nuvens que eles simplesmente devem baixar e implantar. Além disso, chegar até aquela concordância mútua não pode ser procedido

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HABERMAS, Jürgen. Theorie des kommunikativen Handelns. B. 1. 2. Aufl. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1982, S. 354.

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com qualquer artifício: apenas é admissível decidir quais são os direitos fundamentais através de um procedimento inclusivo, no qual cada cidadão seja igualmente legitimado a participar e possa participar sem nenhuma ocultação, sem nenhuma manipulação, sem nenhuma coerção – mediante discursos práticos moralmente (isto é, imparcialmente) referidos. O estabelecimento de direitos fundamentais só pode, portanto, ser democraticamente procedido: são os cidadãos, eles mesmos, os únicos legitimados a conferir direitos fundamentais uns aos outros. Como uma ordem jurídica constitui, em última análise, um desdobramento comunitário, moralmente orientado e democraticamente procedido de um sistema de direitos fundamentais constitucionalmente articulado, então a soberania popular enquanto autolegislação assume o lugar axial de coração propulsionador da circulação social do poder gerado pelo entendimento racional entre cidadãos igualmente livres. A seguir, apresenta-se uma clarificação de como as duas fontes primordiais da legitimidade consensual (estruturalmente porosa à criatividade e ao potencial construtivo do dissenso) do direito, a saber, direitos fundamentais e democracia, são intrinsecamente conectadas ao pluralismo cultural e, pois, como o fortalecem normativamente e levam a sério sociologicamente.

3.1. A relação cooriginária entre direitos fundamentais e pluralismo cultural na sociedade moderna É mediante a atribuição mútua de direitos fundamentais (democraticamente efetuada em discursos práticos marcados por pretensões universais e igualitárias) que os cidadãos realizam proteções e estímulos jurídicos de sua diversidade cultural: da formatação desacorrentada das identidades pessoais e comunitárias, do desdobramento não supervisionado e não manipulado de projetos individuais, histórias particulares, diretrizes grupais, pactos coletivos em relação a condições comuns de vivência exitosa. Na medida em que os direitos fundamentais traduzem, em linguagem jurídica, direitos morais (ou moralmente enraizados na dignidade humana), eles não estabelecem senão especificações densificadoras da consideração recíproca dos cidadãos como igualmente livres9, isto é, como insuscetíveis a tratamentos arbitrariamente desiguais e a 9

“A experiência da dignidade humana violada tem uma função de descoberta – por exemplo, em face de insuportáveis condições sociais de vida e da marginalização de classes sociais empobrecidas; em face do tratamento desigual de mulheres e homens nos postos de trabalho, da discriminação de estrangeiros, de minorias culturais, linguísticas, religiosas, étnicas; também em face do sofrimento de jovens mulheres de famílias de imigrantes que têm de libertar-se da violência de códigos de honra tradicionais; ou em face da expulsão brutal de imigrantes ilegais e dos que pleiteiam asilo. À luz de desafios históricos, outros aspectos semânticos da dignidade humana são, em cada momento, atualizados; esses traços da dignidade humana especificados por diversos motivos podem, então, conduzir tanto a uma extração mais profunda do conteúdo normativo de direitos fundamentais [já] garantidos, quanto à descoberta e construção de novos direitos fundamentais” (HABERMAS, Jürgen. Das Konzept der Menschenwürde und die realistische Utopie der Meenschenrechte. In: __________. Zur Verfassung Europas: ein Essay. Berlin: Suhrkamp, 2011, S. 18).

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interferências injustificáveis na determinação da vontade subjetiva. Eles não conduzem, então, a uma estandardização jurídica das diversas manifestações culturais ou a um empobrecimento jurídico dos vários acervos culturais. Antes, eles proveem as condições jurídicas necessárias a que nenhuma constelação cultural seja: (a) tratada como periférica, menor, infame, aberrante, herética, bárbara – de alguma forma, desvalorizada, repelida, não reconhecida; (b) perseguida, ameaçada, combatida, vedada – em geral, afetada com pura violência. O simples fato do pluralismo cultural não garante, por si só, que as diversas realizações culturais serão reconhecidas e respeitadas por seus vários representantes; logo elas não podem restar totalmente expostas à facticidade pluricultural, sob pena de, com isso, serem relegadas à depreciação simbólica e à sabotagem material (até mesmo à eliminação física daqueles que as cultivam). Dos atritos entre quadros culturais profundamente arraigados, não é impossível que derivem embates exacerbados e até mesmo impregnados de atrocidade. O reconhecimento e o respeito do outro cultural só são plenos quando perpassam e impulsionam a vivência cotidiana e suas teias diversificadas de relações espontâneas, mas eles requerem simultaneamente que o dispositivo jurídico da comunidade política intervenha em qualquer espaço social em que seja indispensável introduzir condições comportamentalmente eficazes de tolerância e justiça entre interlocutores culturalmente divorciados, mas politicamente conjugados. A linguagem jurídica faz-se, em última análise, imprescindível para assegurar regras equitativas para o jogo político entre “separados que moram juntos”, ou seja, impor fundações transversalmente aceitáveis de configuração vinculante da coexistência entre subculturas espontâneas de uma cultura política geral. É, antes de tudo, através dos direitos fundamentais (como direitos morais absorvidos no projeto constitucional da comunidade política) que tais fundações são lançadas: eles moldam, nesse sentido, as estruturas basilares dos âmbitos privados e públicos de exercício legítimo da autonomia e, nisso, mobilizam uma eficientemente concatenada organização administrativa de canalização da coerção acumulada pelo estado contra violações da autonomia, garantindo aos cidadãos liberdade de escolha na modelação de seus pertencimentos culturais e sua identidade singularizadora. Não apenas o aspecto negativo (de defesa contra o estado e os particulares) dos direitos fundamentais, mas também seu aspecto ativo (de participação na formação da opinião pública e da vontade coletiva) e seu aspecto positivo (de provisão, principalmente por parte do estado, de prestações materiais e alterações nas regras orientadoras de esquemas distributivos de bens e oportunidades) nutrem a função protetiva e promotora que os direitos fundamentais prestam à diversidade cultural. De um ponto de vista negativo, os direitos fundamentais operam como diques que impedem o avanço nefando do estado e dos particulares contra as cosmovisões que

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acolhem, as exteriorizações do universo interior que elaboram, as crenças que subscrevem, os gostos que cultivam, as teorias que perfilham, a formação que constroem, as carreiras a que se dedicam – em geral, os direitos fundamentais operam, assim, como muralhas contra agressões às autocompreensões que os agentes urdem e infundem em seu interpretar o mundo e seu agir em face do mundo. De um ponto de vista ativo, os direitos fundamentais exercem a função de garantias da possibilidade de influir na tomada de decisões coletivas acerca de questões éticas, de modo que soluções políticas para problemas comuns de vida boa sejam articuladas sobre a base de autoentendimentos dialogais e esclarecidos entre os afetados. E, de um ponto de vista positivo, os direitos fundamentais desempenham o papel de satisfação de condições materiais vitais, desmontando mecanismos opressivos, retificando distorções medonhas do acesso justo a posições sociais, proporcionando recursos e canais suplementares de assistência e fomento a grupos culturais explorados e subalternizados. Os direitos fundamentais, dessa forma, pressupõem que cada uma (sem discriminações) das múltiplas constelações culturais desenvolva-se sem minar o próprio pluralismo cultural e, portanto, sem violar os direitos fundamentais, que o protegem e estimulam juridicamente. Na relação entre direitos fundamentais e pluralismo cultural, não impera, todavia, uma hierarquia normativa segundo a qual aqueles apresentariam primazia normativa sobre este ou vice-versa. Em lugar disso, a relação entre direitos fundamentais e pluralismo cultural corresponde a uma exigência mútua de princípios igualmente valiosos. Se nenhuma tradição (ou nenhuma prática particular de excelência existencial e autorrealização expressiva) pode ser exposta ao estigma, à exploração, à repressão, ao desrespeito, então vale moralmente (e, portanto, universalmente) o dever de abster-se de violar qualquer prática ética cultivada por alguém; ao mesmo tempo, é moral e universalmente válido o direito de perfilhar qualquer prática ética que não propugne e conduza à violação das práticas éticas adotadas por outrem. Assim, conclui-se ser moralmente lícito devotar-se a qualquer tradição e alimentar qualquer compreensão de vida feliz desde que isso não provoque agressão à autonomia ética de outros agentes. Em última análise, conclui-se ser moralmente lícita a autoafirmação ética tolerante, quer dizer, todo agente possui respaldo moral para compor livremente a própria identidade cultural desde que, nisso, respeite todos os demais pertencimentos culturais, à medida que eles apareçam como “errados” de seu ponto de vista particular, mas não sejam censuráveis com base em razões imparciais: [...] pessoas tolerantes reconhecem que suas objeções éticas são boas dentro de seus limites, mas que elas não são suficientes para justificar uma rejeição moral de pontos de vista de outrem como intoleráveis. Enquanto uma objeção ética é uma objeção que pode ser rejeitada através do critério da reciprocidade e, assim, leva a uma ‘discordância razoável’, uma rejeição moral é baseada em razões que outros

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não podem rejeitar mútua e geralmente. Os limites da tolerância, portanto, são alcançados quando um partido tenta dominar outros fazendo de suas visões [moralmente] rejeitáveis a norma geral 10.

É plausível, por conseguinte, a inferência de que há um direito humano à autoafirmação livre, um direito humano a não ser injustificavelmente turbado na construção do próprio perfil ético. Habermas aponta, logo, para um direito universal e igual de singularizar-se eticamente: “Todo indivíduo apresenta o mesmo direito de desenvolver e manter sua identidade naquelas mesmas formas de vida intersubjetivamente comungadas e tradições das quais primeiramente emerge e nas quais foi formado no curso da infância e da adolescência”11. Não se trata, porém, de um direito inarredavelmente aninhado na moralidade, mas de um direito moral suscetível à formalização legal. Ele pode ser constitucionalizado como um direito fundamental específico, mas também pode ser constitucionalmente garantido através da convergência de vários outros direitos fundamentais, tais como as liberdades de pensamento, crença, expressão, assembleia, trabalho, científica, artística. A primeira hipótese é confirmada na constituição alemã, na qual o art. 2, 1, confere a todo indivíduo “o direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade”. A segunda hipótese corresponde ao caso da constituição americana, cujo Bill of Rights atribui direitos fundamentais que concorrem para a asseguração jurídica da livre busca da felicidade. Toda democracia constitucional apresenta um sólido penhor constitucional daqueles requisitos indispensáveis a que qualquer indivíduo se sinta não só privadamente protegido, mas também publicamente amparado para, sem receio e autoconfiantemente, tomar as rédeas da delineação de sua identidade culturalmente carregada: esses requisitos são juridificados diretamente sob a forma robusta de direitos fundamentais. Habermas defende a tese de que os direitos fundamentais que juridicamente sustentam a autonomia de pertencimento ético consistem em direitos individuais com primazia sobre bens coletivos, porquanto “direitos coletivos, circunscrevendo identidades coletivas, podem tornarse perigosos ou mesmo ilegítimos quando violam direitos individuais básicos (e.g., os direitos de filhas de imigrantes turcos na Alemanha, se elas são, devido à tradição mulçumana de suas famílias, impedidas de participar em certos âmbitos da educação pública)”12. Por conseguinte, Habermas conduz às últimas consequências a interconexão interna entre direitos fundamentais e pluralismo cultural: o indivíduo é interpretado por Habermas como a instância radicalíssima 10

FORST, Rainer. The limits of toleration. Constellations, v. 11, n. 3, 2004, p. 318. HABERMAS, Jürgen. Multiculturalism and the liberal state. Stanford Law Review, v. 47, n. 5, 1995, p. 850-851. 12 HABERMAS, Jürgen. Multiculturalism and the liberal state. Stanford Law Review, v. 47, n. 5, 1995, p. 850. 11

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da opulenta fragmentação ética na sociedade moderna, o que sublinha que esta é tão criativa e polissêmica e, ademais, deve ser tão espontânea e desobstruída que não é moralmente possível sonegar ao indivíduo o controle reflexivo sobre os enquadramentos éticos que o interpelam. O indivíduo encarna, de fato, o nível mais lancinante do estilhaçamento de eticidades partilhadas geralmente na sociedade pré-moderna: enquanto constitutivamente guarnecido de autonomia, o indivíduo é capaz de criticamente desatrelar-se dos fardos tradicionais que se sobrepõem em seus horizontes formativos, é capaz de (re)construir as orientações éticas para a realização dos projetos biográficos e dos planos prudentes que concebe e persegue. À capacidade individual, inflamada na sociedade moderna, de delinear e esforçar-se por efetivar constelações possíveis de vida satisfatória, liga-se a exigência normativa de que o indivíduo não seja podado em suas atualizações éticas, exigência originariamente moral que é juridicamente vertida na linguagem veemente dos direitos fundamentais.

3.2. A necessária relação complementar entre pluralismo cultural e democracia na sociedade moderna Que entre a pluralidade de práticas éticas que caracteriza a sociedade moderna e o ideal da soberania popular haja um nexo de necessária complementaridade pode ser averiguado em dois planos: no plano sociológico e no plano normativo. Em ambos os planos, revela-se que: a democracia e o pluralismo cultural pressupõem-se reciprocamente na sociedade moderna, não podendo um ser realizado sem a simultânea realização do outro, não podendo um ser frustrado sem a concomitante frustração do outro. No plano sociológico, democracia e pluralismo cultural são funcionalmente inseparáveis na sociedade moderna na medida em que cada um propicia ao outro a satisfação de condições imprescindíveis de constituição e reprodução fáticas. A democracia, por um lado, corresponde a uma orientação modeladora das instituições políticas cuja ausência seria letalmente nefanda ao pluralismo cultural, pois a conservação do pluralismo cultural depende inevitavelmente da instanciação democrática da tolerância e da justiça entre as divergentes perspectivas culturais. Sem a asseguração política de que uma particular prática cultural não será rejeitada com base simplesmente em seu caráter heterodoxo, isto é, no mero fato de desviar-se dos predominantes padrões de vida feliz e, assim, ser observada como errada do ponto de vista de tais padrões, a diversidade cultural não pode florescer: o diverso seria, então, sempre visto como indigno de consideração, merecedor de expurgação. Além disso, sem a garantia política de que o diverso, sendo mais do que só “transigentemente suportado”, não será submetido à opressão – ou seja, sem que a tolerância não se reduza a uma absorção insidiosa, uma cooptação que, ante o olho,

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parece insuspeita, mas que é latentemente repleta de senões e poréns que expõem o “tolerado” a limitações arbitrárias que podem ser sistematicamente degradantes –, a diversidade cultural, em última análise, se desnaturaria em dominação cultural e apartheid ético. Essas duas demandas políticas do pluralismo cultural (as quais podem ser resumidas em uma demanda por inclusão imparcial e equitativa) só podem ser preenchidas em comunidades políticas estruturadas democraticamente. É que apenas as estruturas democráticas são capazes de proporcionar que as decisões coletivamente vinculantes sejam tomadas deliberativamente, isto é, a partir da inclusão de todos os agentes afetados e de todas as contribuições pertinentes. Sendo a formação da opinião pública e da vontade coletiva inesgotavelmente permeável (sem reservas unilateralmente seletivas) à diversidade de constelações culturais, a democracia não é concebível sequer concretizável (ante o pano de fundo cultural da comunidade política) senão como uma rede de canais que capta as diversas visões éticas do projeto global de vida boa e as reconduz a uma arena de acareação argumentativa em que as diferentes opiniões são testadas, reformuladas e justificadas até o ponto em que uma opinião racionalmente cogente (porquanto resistente às objeções urdidas) se sobressai e reclama que os participantes convenham em que ela é a melhor opinião até então proposta. Assim, é inerente à democracia deliberativa acolher toda versão ética de uma solução geralmente desejável para um problema comum, mas não só isso: é também inerente à democracia deliberativa propiciar que apenas as posições éticas que, transcendendo dialogicamente seus encurtamentos autistas, seu centramento unilateral, sejam capazes de conquistar a admissão racional de todos os outros representantes de posições éticas discordantes quanto a sua generalizabilidade comunitária; elas seriam generalizáveis para toda a comunidade política, portanto, somente na medida em que pudessem lograr racionalmente o consenso geral. O pluralismo cultural, por outro lado, representa um requisito substancial da formatação democrática do poder político, pois uma democracia degeneraria na medida em que anuísse a uma perspectiva cultural qualquer subjugar outras perspectivas culturais. Só pode constituir-se como democracia uma comunidade política que oferece a todos os agentes filiados a qualquer prática cultural igual acesso ao debate formador das decisões políticas e iguais direitos de nele participar. Além disso, não pode contar como uma democracia uma comunidade política cujas instituições decisivas não sejam eticamente neutras, mas, antes, sejam marcadas pela assunção de um horizonte ético particular. Soberania popular não significa, portanto, como propugnava Rousseau, a soberania de uma coletividade eticamente compacta, a soberania da vontade geral de cidadãos que compartilham um único horizonte cultural; soberania popular, antes, traduz a soberania racional dos consensos baseados nos melhores argumentos acerca da definição das

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soluções legítimas para os impasses coletivos: esses consensos não emergem de opiniões com as mesmas raízes culturais, mas de opiniões enraizadas em solos culturais diversos que podem ser agudamente estranhos entre si. Tais consensos não podem ser forjados violentamente, não podem amordaçar as vozes dissonantes, sequer reprimir o reavivamento dos desentendimentos sobre os posicionamentos éticos gerais (já) estabelecidos da comunidade política. No plano normativo, o pluralismo cultural deixa de ser observado como um fato dado e estático e, ao mesmo tempo, passa a ser compreendido como uma perene construção dinâmica articulada por horizontes valorativos e fusões de horizontes valorativos, uma construção cujos pilares consistem tanto na insuprimível capacidade humana de forjar, amealhar, legar, trocar e avaliar tesouros simbólicos como na exigência racional de que tal capacidade não seja vedada, sequer cerceada. O pluralismo cultural, assim, passa a ser interpretado como a autonomia para adotar e deixar de adotar, expressar e transmitir, ressignificar e criticar qualquer prática ética, requerendo-se que ela seja respeitosamente reconciliável com a mesma autonomia de todos os outros, não infligindo interferências arbitrárias sobre a autorrealização ética alheia. Em última análise, o pluralismo cultural, normativamente relido, equivale à pretensão de conformar, sem perturbação injustificável e no seio de um mundo vivido prolificamente cindido em diferentes acervos culturais, a própria identidade ética. Essa pretensão só pode ser levada a sério se seus requisitos intersubjetivos básicos – a saber, a ausência de ingerência racionalmente inaceitável e a integração espontânea das diversas constelações culturais – são efetivados. Tais requisitos, por sua vez, apenas podem ser satisfatoriamente preenchidos dentro de um arcabouço político democraticamente estruturado. É que, em primeiro lugar, exclusivamente a democracia alimenta-se indispensavelmente do poder comunicativo, ou seja, do poder racionalmente respaldado que emana dos processos reflexivos de formação includente da opinião pública e da vontade coletiva. Noutras palavras: a democracia está indissoluvelmente enraizada no mundo vivido e prospecta-lhe os potenciais de realização da autonomia humana, transportando-os até os circuitos centrais do poder oficial e proporcionando-lhes penetrar, reajustar e controlar os endurecidos cinturões burocráticos da maquinaria estatal. Assim, a democracia extrai do mundo vivido fontes de legitimação para os âmbitos tendencialmente engaioladores da dominação política estatalmente aparelhada, exerce o papel de inverter a lógica do engaiolamento, convertendo os braços estatais em garantias das iguais liberdades que os cidadãos se atribuem mutuamente. A organização democrática, então, equivale ao terreno político imprescindível à efetivação dos direitos fundamentais conferidos constitucionalmente: ela os semeia dentro dos próprios solos (impenetráveis de outra maneira) dos quartéis-generais de governo e administração pública. Dessa forma, o estado de direito só

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pode constituir um estado de proteção dos direitos humanos, os quais não são reduzidos a um dique de contenção perante as investidas predadoras do estado; antes, os direitos humanos são inseridos na própria conformação do estado, o qual somente se legitima na medida em que os salvaguarda. A soberania do estado de direito, portanto, não se justifica senão à proporção que se alimenta da força incondicionalmente vinculante dos direitos humanos, os quais devem ser constitucionalmente condensados e paulatinamente desdobrados em um ordenamento jurídico positivo democraticamente construído. Traduzindo a mediação política indispensável para que os direitos humanos sejam gravados em uma constituição e desenvolvidos legalmente e, além disso, para que eles domestiquem juridicamente o exercício da violência estatal, a democracia, ao mesmo tempo, traduz a mediação política indispensável para que as várias formas de vida, os vários recortes éticos, sejam mutuamente protegidos contra o desrespeito. Em segundo lugar, unicamente a democracia é apta a possibilitar que, a partir de dentro do caleidoscópio de visões culturais mutuamente tão engatadas quanto desfocadas, sem que se sobreponha violentamente uma particular visão sobre as demais, multilateralmente se construa uma paisagem integrada. Em uma moldura política democrática, quando surgem controvérsias culturais sobre questões comuns, quando os agentes se desentendem quanto a ser uma medida certa ou errada com base em padrões culturais diferentes, então o único modelo de gestão do desentendimento que se mostra legítimo é aquele que aposta só na aptidão dos procedimentos deliberativos para a orientação do resgate de um entendimento geralmente aceitável. Somente os procedimentos deliberativos representam uma estratégia (sem estratagemas imperialistas) a ser adotada para alcançar um entendimento intercultural, ou seja, um entendimento que não é supracultural porque não é culturalmente esvaziado (já que não é possível adotar uma posição desnuda de todo carregamento cultural), sequer é supercultural porque não se reduz ao triunfo coercivo de uma cultura sobre as demais. Trata-se de um entendimento que é amadurecido no diálogo entre as diversas visões culturais através de tentativas multilaterais de convencimento racional dos outros acerca da generalizabilidade das próprias opiniões. Ao assumirem o ponto de vista requerido por uma tentativa de explicitar as razões pelas quais a própria opinião não é meramente unilateral, mas pode ser generalizada comunitariamente, os interlocutores mesmos se “constrangem” a refletir acerca das limitações de suas opiniões, a readaptá-las e, caso não o façam satisfatoriamente, a suspendê-las temporariamente ou até abandoná-las definitivamente em face do esclarecimento de que elas não podem contar com a adesão racional dos parceiros. Somente a democracia está em condições de levar politicamente a sério que desentendimentos entre parceiros políticos culturalmente divergentes só podem ser reconciliados por intermédio de discussões racionalmente guiadas e, pois, livres e construtoras da autonomia pública deles.

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A democracia, por sua vez, é necessariamente complementada pelo pluralismo cultural, no plano normativo, em virtude de que ela não pressupõe uma “homogeneização cultural” dos cidadãos, mas, em lugar disso, pressupõe uma interconexão inquebrantável entre a autonomia privada e a autonomia pública dos cidadãos que, no final do dia, dota-lhes de uma autorização recíproca para a autoafirmação desagrilhoada e a constituição não reprimida das identidades pessoais e interpessoais. Dessa autorização recíproca, a democracia haure um respaldo capital de sua legitimidade: é na medida em que intrinsecamente comporta essa autorização que pode a democracia ser vista pelos cidadãos como terreno político propício ao autodesenvolvimento livre de interferências caprichosas e restrições opressivas. É baseado nisso que Habermas critica o republicanismo rousseauniano por elaborar uma “fusão de cidadania e cultura nacional [que] conduz a uma interpretação ‘monocromática’ dos direitos civis que é insensível às diferenças culturais” e, assim, à “discriminação contra modos de vida diferentes”. Em lugar de uma compactação cultural que a democracia, para Rousseau, (re)produziria, Habermas “desconecta a mobilização da solidariedade cívica da nacionalidade ética e a radicaliza em direção a uma solidariedade entre ‘outros’” 13. Habermas defende, pois, a tese de que a democracia constitui uma cultura política geral que não vulnera as subculturas particulares que espontaneamente coexistem dentro da comunidade política. A cultura política geral é essencialmente uma cultura de tolerância e justiça que forma o substrato ético contra o qual múltiplas alteridades recíprocas podem conviver construtivamente (isto é, sem violência, medo, manipulação, aviltamento, autocentramento, impermeabilidade e indiferença).

4.

CONCLUSÃO Com a clarificação de que os direitos fundamentais e a soberania popular (ressignificada

deliberativamente) são os princípios basilares da legitimação do direito moderno, clarifica-se, ao mesmo tempo, que o direito moderno essencialmente se funda na incessante (re)construção de consensos (procedimentalmente esvaziados de arbitrariedades irracionais) sobre pretensões normativas presumivelmente válidas. Tal clarificação, Habermas lapidarmente a formulou no princípio democrático, segundo o qual: “somente podem reivindicar legitimidade os estatutos que podem ser respaldados pela anuência de todos os cidadãos em um processo discursivo de legislação que, por sua vez, foi legalmente constituído”14. Em meio ao embate entre múltiplos pontos de vista culturalmente condicionados, a anuência democrática só pode ser formada por 13

HABERMAS, Jürgen. Equal treatment of cultures and the limits of postmodern liberalism. Translated by Jeffrey Flynn. The Journal of Political Philosophy, v. 13, n. 1 2005, p. 3. 14 HABERMAS, Jürgen. Between facts and norms: contributions to a discourse theory of law and democracy. Translation by William Rehg. Cambridge: The MIT Press, 1996, p. 110.

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intermédio da adoção, por todos os participantes, do ponto de vista reflexivo da racionalidade comunicativa, o qual conduz a uma solidariedade integradora entre parceiros autônomos, mas não introspectivamente absortos nem egoistamente autistas. Se, porém, os participantes não se orientarem no processo discursivo senão por uma compenetração inapelável de que seu ponto de vista é absoluto e está bloqueado contra objeções, não se pode alcançar uma anuência geral nem se pode, na verdade, realizar um diálogo racional. Essa atitude é, de partida, irracional e, portanto, incompatível com a formação democrática da opinião pública e da vontade coletiva: “Pelo menos dentro da moldura institucional da democracia, ninguém pode reivindicar acesso privilegiado à verdade das questões constitucionais ou legislativas”15. Esse princípio procedimentalmente racional de resolução de questões políticas e criação de intervenções jurídicas nos impasses sociais – o princípio democrático – deriva diretamente do princípio discursivo (princípio D), o qual equivale à exigência ineludível de que “somente são válidas aquelas normas de ação com as quais todas as pessoas possivelmente concernidas poderiam concordar como participantes em discursos racionais”16. Portanto, o direito positivo, criado democraticamente, está plantado no solo inescapável da restauração dos entendimentos coletivos sobre soluções controversas para problemas comuns mediante os vínculos inefáveis, mas consistentes, que o discurso articula: trata-se dos vínculos da racionalidade reflexiva, que não é subjetivamente ensimesmada, pois só é colocada em movimento intersubjetivamente, ou seja, pelos esforços argumentativos de todos os agentes impactados em direção a um resultado sólido, não destroçado por objeções, aceitável genericamente porque racionalmente ileso (por enquanto). Como tudo que parece racionalmente sólido sob determinadas circunstâncias pode desmanchar-se sob circunstâncias diferentes, o direito positivo queda permanentemente diante da barra da avaliação intersubjetiva de sua correção (só por algum momento presumível). Em termos éticos, isso significa precisamente que qualquer entendimento formado sobre a suposta generalizabilidade de uma perspectiva ética particular a respeito de um problema comum não é jamais observada como definitivamente acertada, ou seja, generalizável, mas está submetida à dinâmica democrática da inafastável revisabilidade racional de qualquer decisão tomada, de modo que pode ser, a qualquer instante, impugnada e colocada de lado como parcial, inapta a representar o presumivelmente melhor para todos. Além disso, os direitos fundamentais (inevitavelmente atados à soberania popular) estão em estreita comunicação com o pluralismo cultural. O nexo entre ambos traduz uma recíproca 15

HABERMAS, Jürgen. On law and disagreement. Some comments on “interpretive pluralism”. Ratio Juris, v. 16, n. 2, 2003, p. 189. 16 HABERMAS, Jürgen. Between facts and norms: contributions to a discourse theory of law and democracy. Translation by William Rehg. Cambridge: The MIT Press, 1996, p. 107.

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alimentação tão intensa que Habermas apresenta a conclusão de que: “Por um lado, a ideia de iguais liberdades individuais para todos satisfaz o critério moral do universalismo igualitário, que demanda igual respeito e consideração a cada um. Por outro, essa ideia preenche o critério ético do individualismo, segundo o qual cada pessoa tem de ter o direito de conduzir sua vida conforme suas próprias preferências e convicções”. Em última instância, Habermas resume tal entrelaçamento indissolúvel entre direitos fundamentais e pluralismo ético da seguinte forma: “o individualismo ético é o significado essencial do universalismo igualitário, que prospecta a substância do direito moderno da moralidade pós-convencional”17. Isso significa que, segundo Habermas, os direitos fundamentais (que são formalizações jurídicas, em nível constitucional, das especificações historicamente situadas da dignidade humana da perspectiva universalistaigualitária) garantem a possibilidade de o indivíduo configurar autonomamente sua identidade ética, de um lado, e correspondem a exigências morais de um pluralismo ético integrável com consistência e razoabilidade, de outro. Assim, Habermas descortina claramente sua concepção de que direitos fundamentais e pluralismo cultural são os dois lados da mesma medalha.

17

HABERMAS, Jürgen. Equal treatment of cultures and the limits of postmodern liberalism. Translated by Jeffrey Flynn. The Journal of Political Philosophy, v. 13, n. 1 2005, p. 1.

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