Direito, justiça e media - Tópicos de sociologia

July 24, 2017 | Autor: Helena Machado | Categoría: Sociology, Law, Justice, Media
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Helena Machado Filipe Santos

DIREITO, JUSTIÇA E MÉDIA Tópicos de Sociologia

Edições Afrontamento

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Direito, Justiça e Média – Tópicos de Sociologia Helena Machado e Filipe Santos © 2010 Edições Afrontamento

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?????????????????? Edições Afrontamento / Rua Costa Cabral, 859 / 4200-225 Porto www.edicoesafrontamento.pt / [email protected]

Colecção Nº de edição ISBN Depósito legal Impressão e acabamento

Biblioteca das Ciências Sociais / Sociologia / ?? ???? 978-972-36-????-? ??????/08 Rainho & Neves Lda. / Santa Maria da Feira [email protected] ??????????? de 2010

ÍNDICE

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Nota prévia A análise sociológica do direito e da justiça: uma proposta integradora O nascimento da sociologia do direito e da justiça

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PARTE I: DIREITO, JUSTIÇA E SOCIEDADE Capítulo 1: A perspectiva dos precursores da sociologia 1. As causas sociais da criação das leis e o papel da justiça na sociedade – Os contributos de Montesquieu e Tocqueville 1.1. Montesquieu e as relações entre sociedade, direito positivo e direito natural 1.2. Tocqueville e o papel das instituições jurídico-legais nas instituições democráticas 1.2.1. Causas da democracia liberal 1.2.2. O papel das leis na democracia liberal norte-americana 1.2.3. As virtudes do sistema de julgamento com jurados 1.3. Contributos dos precursores para a sociologia do direito e da justiça

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Capítulo 2: A perspectiva dos clássicos da sociologia 1. O direito como instrumento de dominação de classe e do Estado – O contributo de Karl Marx 1.1. Karl Marx e a visão do direito e do crime na sociedade capitalista 1.1.1. Contradições da vida económica e material 1.1.2. O direito e a justiça como ideologia 1.1.3. O crime na sociedade capitalista 1.2. Contributos do marxismo para a sociologia do direito e da justiça 2. O direito como forma de organização social – O contributo de Émile Durkheim 2.1. Sociologia e direito em Émile Durkheim 2.1.1. O facto social e o facto jurídico 2.1.2. A solidariedade social e as normas jurídicas 2.1.3. A noção de crime

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2.1.4. Anomia, direito e solidariedade 2.1.5. Funções sociais da pena 2.2. Contributos de Émile Durkheim para o debate da justiça restaurativa 3. O direito como modo de estabelecimento do poder legítimo e da dominação – O contributo de Max Weber 3.1. A sociologia do direito e da justiça de Max Weber como sociologia da dominação 3.1.1. A racionalização do Estado e do direito nas sociedades modernas 3.1.2. Legitimidade e dominação racional 3.2. Contributos de Max Weber para a sociologia do direito e da justiça Capítulo 3: A perspectiva de autores contemporâneos 1. Sistema cultural e ordem social – O contributo de Talcott Parsons 1.1. Talcott Parsons e o papel do direito e da justiça no sistema social 1.1.1. A função do direito e da justiça no equilíbrio social 2. A teoria dos sistemas e o direito da sociedade – O contributo de Niklas Luhmann 2.1. Niklas Luhmann e a tese do direito da sociedade 2.1.1. A ruptura com a sociologia do direito «tradicional» 2.1.2. O direito como subsistema do sistema social e a teoria da comunicação 2.1.3. O fechamento operativo do subsistema do direito 2.1.4. As interacções entre o sistema jurídico e as relações sociais 2.1.5. A justiça como fórmula de contingência 3. Flexibilidade e autopoiese do direito – O contributo de Gunther Teubner 3.1. Gunther Teubner e a juridificação das sociedades actuais 4. O direito e a moral secularizada – O contributo de Jürgen Habermas 4.1. Jürgen Habermas e o direito, a comunicação e secularização da moral 4.1.1. A teoria da acção comunicativa e a esfera pública 4.1.2. O papel do direito nas sociedades modernas 4.1.3. A justiça como moral secularizada 5. A sociologia do campo jurídico – O contributo de Pierre Bourdieu 5.1. Pierre Bourdieu e o campo jurídico 5.1.1. O direito como consagração da ordem estabelecida 5.1.2. O campo jurídico como espaço de concorrência 6. A justiça em acção – O contributo da etnometodologia 6.1.1. Etnometodologia e a «justiça em acção»

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PARTE II: JUSTIÇA, MÉDIA E SOCIEDADE Capítulo 4: A pluralidade do jurídico 1. A pluralidade jurídica, pirâmide de litigiosidade e o acesso à justiça – O contributo de Boaventura de Sousa Santos 1.1. A pluralidade jurídica 1.2. Cultura jurídica e pirâmide da litigiosidade 1.2.1. O acesso à justiça

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Capítulo 5: Média, crime e justiça 1. A mediatização da justiça e a construção de representações sociais 1.1. A visibilidade da justiça e as funções concorrentes dos média

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1.1.1. Critérios de noticiabilidade 1.2. Representações da justiça 1.2.1. Disjunções entre justiça e média 1.3. Julgamentos mediáticos 1.3.1. A visibilidade da crise e a crise da visibilidade 1.3.2. Os impactos dos julgamentos mediáticos 1.4. Média, justiça e cidadania

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Bibliografia

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QUADROS

Factores de emergência da sociologia do direito e da justiça Contributos dos precursores da Sociologia Direito, ideologia e classe segundo Karl Marx Relações sociedade-solidariedade-direito segundo Durkheim Dominação racional-legal e burocracia segundo Max Weber Sistema cultural e ordem social segundo Talcott Parsons Codificação e programação do direito segundo Niklas Luhmann Direito como autopoiese segundo Gunther Teubner Justiça, esfera pública e democracia segundo Jürgen Habermas Relações entre a sociedade, o Estado e o campo jurídico segundo Bourdieu Perspectiva etnometodológica da justiça Mapa de estrutura-acção das sociedades capitalistas no espaço mundial Pluralidade de ordens jurídicas segundo Boaventura de Sousa Santos O acesso à justiça e a construção de representações dos tribunais

N O TA P R É V I A

Esta é uma publicação de cariz científico-pedagógico, que pode interessar a estudantes e professores, mas também a investigadores, profissionais forenses, jornalistas e qualquer cidadão empenhado em compreender as interacções entre o direito, a justiça, os média e a sociedade. Trata-se de um livro que ambiciona facultar instrumentos de análise e reflexão acessíveis a públicos diversificados e que vão de encontro a alguns dos desafios que nos apresentam as sociedades actuais, crescentemente confrontadas com os problemas do acesso à justiça, mas também com a morosidade e ineficiência do sistema judicial e sobretudo as dificuldades de relacionamento entre tribunais e meios de comunicação social. Pretendemos assim deixar um contributo para o aprofundamento da compreensão das relações entre o direito, a justiça e a sociedade e dos modos como os média se apresentam na contemporaneidade como um «novo» espaço na pluralidade jurídica. Os conteúdos apresentados neste livro resultam das actividades de investigação desenvolvidas no projecto Justiça, média e cidadania (ref. FCOMP-01-0124-FEDER-007554), financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior) e desenrolado entre 2007 e 2010 no Núcleo de Estudos do Estado, do Direito e da Administração do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. O referido estudo tomou como objecto de análise as configurações das tensões geradas pelas relações entre os meios de comunicação social e os actores judiciários e as respectivas repercussões na esfera pública e na cidadania. Desse estudo resultaram tópicos de reflexão teórica e de análise empírica que foram convertidos para os conteúdos científico-pedagógicos apresentados e desenvolvidos neste livro: nos primeiros três capítulos aprofunda-se a temática das relações entre o direito, a justiça e a sociedade a partir do ponto de vista de autores precursores, de clássicos e de contemporâneos da sociologia. Nos capítulos quarto e quinto procede-se a uma sistematização de estratégias de análise teórico-empírica das interacções entre a justiça, os média e os cidadãos, partindo da discussão de conceitos como pluralidade jurídica e acesso à justiça, e

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focando temas como a visibilidade mediática da justiça, o papel dos meios de comunicação social na construção de representações sociais sobre a justiça e as modalidades de interacção e de disjunção entre a justiça e os média. Os autores apresentam nesta obra uma reflexão conjunta, actualizada, articulada e complementada, que resulta de textos produzidos no âmbito de trabalhos académicos inéditos (Machado, 2009; Santos, 2009), também estes devedores dos resultados da investigação realizada no âmbito do projecto Justiça, média e cidadania. Foram vários os contributos que tornaram possível a redacção deste livro. Gostaríamos assim de prestar os nossos agradecimentos às seguintes instituições e pessoas: Ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, por acolher o estudo Justiça, média e cidadania. Em particular, a Boaventura de Sousa Santos, pelo estímulo e apoio institucional; e ao João Paulo Dias pela inexcedível colaboração na gestão administrativa das tarefas do referido projecto. À editora Afrontamento, por acreditar no interesse desta publicação. À Fundação para a Ciência e a Tecnologia, pelo apoio financeiro facultado. À Susana Silva a ao Manuel Carlos Silva pela disponibilidade para uma leitura crítica de diferentes partes desta publicação. À Universidade do Minho, pela concessão a Helena Machado de um período de licença sabática de seis meses, no ano lectivo 2009-2010, que foi fundamental para preparar esta publicação.

A ANÁLISE SOCIOLÓGICA DO DIREITO E DA JUSTIÇA: UMA PROPOSTA INTEGRADORA A abordagem dos sentidos sociológicos da justiça significa encarar a justiça não como um simples ideário concretizado nas disposições do direito, mas como um conjunto de relações sociais pelas quais determinados grupos sociais ou indivíduos constroem uma determinada visão de justiça, numa sociedade espacial e historicamente situada. Será esta a abordagem adoptada neste livro. Numa primeira parte, intitulada «Direito, justiça e sociedade», expomos e discutimos várias correntes sociológicas que trataram, em termos gerais, as relações do direito e da justiça com a sociedade, focando as abordagens dos precursores, dos clássicos e de autores contemporâneos da sociologia. Numa segunda parte desta publicação, intitulada «Justiça, média e cidadania», analisamos a particularidade das relações da justiça com os meios de comunicação social, na medida em que estes são, talvez, o mais importante veículo de produção e reprodução da realidade social e colectiva nas sociedades contemporâneas (Durham e Kellner, 2001). A representação mais comum da justiça pode ser ilustrada pelo símbolo criado pelo direito romano e materializado numa estátua, com os olhos vendados, visando enunciar como valores máximos que «todos são iguais perante a lei» e «todos têm iguais garantias legais», ou ainda, «todos têm iguais direitos».

Nota prévia

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O termo justiça denota, ao mesmo tempo, legalidade e igualdade, pelo que tanto é justo aquele que cumpre a lei (justiça em sentido geral) quanto aquele que realiza a justiça (justiça em sentido estrito). Neste sentido, perspectiva-se a justiça como um prosseguir de certo modo intáctil, em que não há fronteiras claramente delimitadas entre justiça e moral. A justiça é, ela própria, uma ideia moral, «a regra dos nossos direitos e dos nossos deveres», que evoca o respeito devido a todos os indivíduos porque são pessoas morais iguais em dignidade, sejam quais foram as desigualdades aparentes ou reais que possam diferenciá-las. Emergindo de uma ideia moral, preocupou-nos, desde logo, como temática transversal que acompanha este livro e as diversas perspectivas apresentadas, a questão da construção e representações colectivas da justiça através dos média e o modo como estes se articulam com os tribunais. A justiça não se reduz ao forense, antes engloba a participação no bem comum através da igualdade de direitos e de deveres do cidadão. Na perspectiva da sociologia, a justiça é um tema presente em áreas que focam a desigualdade e a exclusão social, nas quais o sociólogo frequentemente invoca determinado modelo de justiça pelo qual propõe que outros avaliem a justiça e a igualdade de um sistema social específico. Os modelos abstractos de justiça podem ser vários e o termo justiça pode ter diversos significados, embora o seu cerne comum possa ser a busca da igualdade e do que, em termos abstractos, podemos considerar como «o que é correcto [justo]». Os estudos de «justiça distributiva» prendem-se explicitamente com a questão da igualdade, referindo-se à repartição de bens escassos, como a riqueza ou o acesso à saúde, à educação e à participação política. Já justiça em termos técnicos refere-se aos meios pelos quais as partes resolvem os seus conflitos. Há ainda a clássica distinção entre «justiça formal» e «justiça substantiva», amplamente trabalhada por vários autores da sociologia, entre os quais se destaca Max Weber (1984 [1919-1922]), na sua famosa discussão do fenómeno da burocracia nas sociedades capitalistas. Enquanto o conceito de justiça formal invoca o princípio legalista da igualdade perante a lei, enfatizando o facto que as circunstâncias particulares das partes apenas ganham relevância nos termos definidos pela lei; o conceito de justiça substantiva analisa a distância entre a esfera legal e os valores sociais imbricados nos elementos concretos dos casos particulares (Maynard e Manzo, 1997). Lembramos aqui a definição dos «três sentidos sociológicos» da justiça, proposta por Jacques Commaille (1995: 10), em obra intitulada O espírito sociológico das leis (L’esprit sociologique des lois), numa referência renovada ao emblemático estudo pioneiro de um dos precursores da sociologia do direito, Montesquieu, e a sua obra O espírito das leis (De l´esprit des lois) (1803): a justiça como (i) símbolo de como a sociedade representa os seus valores e normas; (ii) símbolo de imposição de autoridade (jurídica, mas também moral e política); (iii) representação do estatuto social do direito e seu papel, ao longo da história, na construção da legitimidade do poder político. Uma abordagem sociológica tradicional da justiça procede a uma análise pelo interior do sistema jurídico-legal, debruçando-se sobre o discurso da lei, a doutrina, a jurisprudên-

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cia e os debates jurídicos. Ou então adopta uma análise pelo exterior, tentando perceber, por exemplo, as desigualdades no acesso à justiça ou as representações que os cidadãos têm dos tribunais, onde os média desempenham um importante papel. Esta polarização na abordagem das relações entre justiça e sociedade é ilustrada num debate que encontra duas principais tendências, ainda que com diferentes variações: a abordagem centrada no direito e a abordagem centrada na sociedade. A primeira tendência que encontramos na sociologia da justiça define o direito (enquanto sistema de normas de conduta imposto por um conjunto de instituições para regular as relações) como variável independente, pela qual o direito recebe influências da sociedade, mas transforma-as de acordo com os seus processos próprios e autónomos. A segunda orientação teórico-empírica interpreta o direito como variável dependente, nos termos da qual este acompanha e incorpora os valores sociais e os padrões de conduta constituídos na sociedade. O olhar sociológico que propomos aqui ambiciona superar essa dicotomia entre o olhar de dentro e o olhar de fora da justiça, assumindo que o sociólogo não pode nem negligenciar o jurídico, nem submeter-se ao papel do leigo em algum grau «intruso» e «ignorante». A justiça, assim como o próprio direito, formam parte integrante da sociedade, não obstante todas as ilusões criadas pelo processo de autonomização do direito e pela formação de um corpo de profissionais especializado – os «notáveis da beca» que projectam a ideologia do «direito dos juristas». Não se trata de simplesmente estabelecer a relação entre «justiça e sociedade», sob a forma de uma análise da evolução da influência das práticas sociais e a administração da justiça e vice-versa. O sociólogo é um especialista do social que poderá ousar tentar perceber o direito e a justiça como uma acção colectiva na qual intervêm produtores de lei, aplicadores da lei, actores sociais envolvidos directa e indirectamente no sistema judicial e as representações sociais da justiça que circulam nos tribunais, nos meios de comunicação social e no quotidiano dos cidadãos comuns, mas também junto das vítimas, condenados e inocentados pela justiça. Defendemos aqui uma abordagem que permita ultrapassar as perspectivas que ora minimalizam o jurídico ora o maximalizam; mas que também englobe actores muitas vezes esquecidos, seja porque não produzem nem aplicam leis, seja porque foram condenados pelos tribunais, ou porque simplesmente nunca se envolveram no aparelho de justiça estatal. Esta perspectiva preconiza a abertura a um novo espaço de produção de justiça: os média – na medida em que constituem a principal fonte de informação para aqueles cujos trajectos não se cruzaram com a justiça institucional e a via privilegiada de representação pública e legitimação do poder, jurídico e político. Assinalamos a necessidade de proceder a uma abordagem sociológica que encare o jurídico como poder, que constrange ou intenta constranger comportamentos e regular orientações colectivas. Não descuramos que o discurso e a prática jurídica assumem um papel central na sociedade e que se apresentam como garantia dos princípios e valores básicos da ordem social. O direito e a sua aplicação (a chamada administração da justiça) invoca assim mecanismos de reprodução social e de imposição da autoridade – o que o sociólogo Pierre

Nota prévia

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Bourdieu chamaria «dominação simbólica» e «violência legítima», sempre assente na retórica da «universalidade» (Bourdieu, 1989). Mas também reconhecemos a necessidade de contemplar os processos sociais interactivos que criam a construção social da justiça alicerçada num modelo de análise dinâmico e conflitual, no contexto do qual assume particular importância a capacidade que os indivíduos têm de codificar e de descodificar as suas acções, mas também as mensagens mediáticas, participando na própria construção da realidade social (Hall, 1973). Se o aparelho jurídico-legal controla (e hierarquiza os indivíduos) pela atribuição de sentido e significado, os alvos destes processos classificatórios reagem à regulação e controlo sociais. Trata-se, enfim, de perceber as interacções sociais, as representações, os modos de estruturação social e de legitimação presentes na construção social e política do direito e da justiça nas sociedades actuais, focando com particular interesse as consequências dos seus encontros e desencontros com os média.

O NASCIMENTO DA SOCIOLOGIA DO DIREITO E DA JUSTIÇA As origens da sociologia do direito e da justiça confundem-se com as da sociologia propriamente dita, tornando pertinente a análise do interesse que alguns dos precursores da sociologia dispensaram aos temas jurídicos. Neste livro começamos por atender aos contributos específicos de Montesquieu e de Tocqueville (capítulo 1) para, de seguida, considerar as abordagens da justiça desenvolvidas por autores clássicos da sociologia, seguindo a ordem cronológica de nascimento – Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber (capítulo 2). A atenção que alguns dos precursores e fundadores da sociologia devotaram ao direito, às leis e ao poder judiciário pode justificar-se de dois modos: por um lado, pelo facto da dimensão normativa e reguladora do direito e do aparelho de justiça poder ser entendida como central à consolidação de um Estado moderno e como pilar do desenvolvimento das sociedades industriais; por outro lado, no século XIX e início do século XX, as fronteiras disciplinares entre a sociologia e o direito não estavam ainda suficientemente consolidadas. Ao longo do século XIX, temos já um conjunto de cientistas sociais interessados no direito e na justiça. Ressalta neste período a relevância que o direito assume nas sociedades modernas e o facto de séculos de produção intelectual se terem debruçado sobre o fenómeno jurídico, cristalizando-se em disciplinas como a filosofia do direito, a dogmática jurídica e a história do direito. Apesar das indubitáveis diferenças ideológicas e teórico-metodológicas entre os vários autores tidos como clássicos da sociologia, o cerne comum das suas abordagens permite destrinçar vários aspectos da complexa articulação entre a sociedade e a justiça, ou se quisermos, potencia a consolidação do olhar sociológico em diversos ângulos: desde a abordagem do direito e da justiça como fenómeno coercitivo e regulador das condutas humanas, à perspectiva que encara as leis e os tribunais como um fenómeno de poder e dominação (de classe ou de determinados indivíduos que se impõem pela lei, costume e carisma).

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É interessante notar que a abordagem do direito e da justiça surgiu no processo de constituição da sociologia como disciplina, e pela mão dos autores considerados fundadores da mesma: Karl Marx (1818-1883), Émile Durkheim (1859-1917) e Max Weber (1864-1920). A reflexão sobre o papel do direito e da justiça nas sociedades modernas foi utilizada como um meio de ilustrar as preocupações teóricas dos clássicos da sociologia: seja sob a forma de indicador privilegiado dos modos de organização social, como refere Émile Durkheim (1984a [1893]), dos modos de estabelecimento do poder legítimo e da dominação como descreve Max Weber (1988b [1919-1922]) ou como instrumento de dominação de classe e do Estado, condenado a desaparecer, como prevê Karl Marx (1990 [1867]). Estes teóricos do social do século XIX procuraram compreender a relação do direito e da justiça com a complexidade da vida social, proporcionando um contributo importante para um diálogo mais aberto entre as áreas disciplinares da sociologia e do direito. Tratou-se de uma oportunidade, a nosso ver, incipientemente desenvolvida pelas teorias sociológicas do século XX e mesmo do início do século XXI, verificando-se ainda hoje um relativo desinteresse da sociologia pelas questões da justiça e do direito. Salientam Rojo e Azevedo que «Em verdade, foi apenas em meados dos anos 1980 que os sociólogos começaram a reconciliar-se com a tradição dos precursores e dos fundadores» (2005: 23). Eugen Ehrlich (1862-1922), jurista e sociólogo austríaco, pode ser considerado fundador da sociologia do direito e da justiça, por ter sido o primeiro autor a escrever um livro especificamente sobre os princípios basilares de uma abordagem sociológica do direito, publicado em língua alemã, no ano de 1913, intitulado Fundamentos da sociologia do direito (Grundlegung der Soziologie des Rechts) (Ehrlich, 1913). Crítico do positivismo jurídico, postura teórica que não admite a existência de direito fora do direito positivo, reduzindo todo o direito à ordem estabelecida, identificando o direito positivo com o direito estatal, seja ele legislado ou jurisprudencial, Ehrlich vai adoptar como objecto da sociologia do direito o «direito vivo» e a «criação judiciária do direito» (Ehrlich, 1913). O primeiro representa as normas sociais que regulam a vida quotidiana, geralmente prevenindo ou resolvendo conflitos que não chegam aos tribunais. O segundo refere-se àquele direito criado pela organização judiciária, que representa a normatividade concreta da decisão do juiz, distinguindo-se da normatividade abstracta da lei. A sociologia do direito e da justiça, no seu sentido pleno, ou seja, como ramo especializado da sociologia geral, que utiliza métodos de investigação empírica e teorização específica para o estudo dessas áreas da vida em sociedade, só terá surgido na segunda metade do século XX. No período pós-segunda guerra mundial, sociólogos como Talcott Parsons (1951, 1954) e Niklas Luhmann (1983a, 1983b, 2004), Garfinkel (1967) e mais recentemente Gunther Teubner (1993), Jürgen Habermas (1992, 1996) e Pierre Bourdieu (1986, 1989) conferiram um novo alento à disciplina. Este conjunto de perspectivas teóricas será tratado no capítulo 3 deste livro. Boaventura de Sousa Santos (1994) distingue as condições teóricas e as condições sociais que possibilitaram o progresso deste ramo especializado da sociologia. Em relação às condições teóricas, salienta três: (i) o desenvolvimento da sociologia das organizações, que passou

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a contemplar um interesse específico pela organização judiciária e pelos tribunais; (ii) a expansão da ciência política que impulsionou os estudos sobre os tribunais como instâncias de poder político; (iii) o alargamento dos estudos da antropologia do direito e da etnologia jurídica, centrados na abordagem dos litígios e dos seus mecanismos de prevenção e resolução, desviando a atenção das normas e focando mais os graus diferentes de formalização do jurídico (Santos, 1994: 141-61).

Factores de emergência da sociologia do direito e da justiça

Direito

Dimensão científica

Administração da Justiça

Permeabilidade disciplinar (direito/moral/ética/ filosofia/sociologia) Emergência da Sociologia como ciência

Dimensão sócio-institucional Estado Moderno

Dimensão analítica

Sociedade Industrial

Regulação e coerção das condutas humanas Fenómeno de poder e dominação

Uma das condições sociais para o nascimento e consolidação da sociologia do direito e da justiça identificada por Sousa Santos (Santos, 1994: 141-61; Santos et al., 1996: 22-35), reporta-se às lutas e movimentos sociais que visaram aprofundar o conteúdo democrático dos regimes políticos saídos do pós-segunda guerra mundial, e que tiveram como consequência o facto que «a igualdade dos cidadãos perante a lei passou a ser confrontada com a desigualdade da lei perante os cidadãos, uma confrontação que em breve se transformou num vasto campo de análise sociológica e de inovação social centrado na questão do acesso diferencial ao direito e à justiça por parte das diferentes classes e estratos sociais» (Santos, 1994: 144). A segunda condição social que consolidou o interesse da sociologia pelos tribunais derivou da eclosão da chamada «crise da justiça», iniciada na década de sessenta do século XX e alimentada pela expansão do Estado-providência (e subsequente expansão de direitos sociais) e pela emergência de novos direitos, doravante potencialmente transformáveis em conflitos jurídicos. A recessão económica da década de setenta do século passado agravou a crise da administração da justiça, em boa medida pela redução progressiva dos recursos

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financeiros do Estado e pela crescente visibilidade social dos tribunais, ampliada por via da acção dos média. Novos e velhos temas relacionados com a administração da justiça tornam-se assim objecto de interesse para a sociologia actual, tais como a administração da justiça, a organização dos tribunais, os processos de formação e recrutamento dos magistrados, as motivações das sentenças, as ideologias políticas e profissionais dos vários sectores da administração da justiça, os custos e a morosidade da justiça (Santos, 1994: 145). As abordagens sociológicas actuais do direito e da justiça rebatem a ideia de que o Estado seja o único produtor de direito e de justiça, surgindo os média nas sociedades contemporâneas como uma relevante fonte de reforço e actualização da normatividade social. A pluralidade jurídica e judicial das sociedades é hoje uma realidade reconhecida e amplamente estudada. Este livro partilha desta ideia, de que importa reconhecer que outras ordens normativas que não a oficial e estatal podem funcionar como modelos de justiça e mostrarem-se mais adequadas a determinados contextos e grupos sociais específicos. No capítulo 4 desenvolvemos a ideia da «pluralidade do jurídico», propondo uma nova fenomenologia no estudo da justiça que reconheça que não só o jurídico não se reduz ao direito estatal e aos tribunais, como a principal fonte de poder e de controlo social não se reduz ao poder do Estado e à justiça formal. A partir do mapa de estruturação-acção proposto por Boaventura de Sousa Santos (Santos, 2000), abordamos o conceito de pluralidade jurídica, propondo nesse contexto a possibilidade da existência de um outro espaço estrutural – o «espaço dos média». Nas últimas décadas, o que designamos por «espaço dos média» tem vindo a consolidar-se enquanto estrutura socialmente relevante no sentido da produção e reprodução de direito, poder e senso comum. Na sequência dessa exposição, analisamos o conceito de pirâmide de litigiosidade, a questão do acesso à justiça e as representações sociais da justiça. O capítulo 5 desenvolve uma abordagem do conceito de pluralidade jurídica em articulação com a emergência dos média enquanto veículo privilegiado de ordem normativa não formal e não estatal. Na medida em que os média se constituem frequentemente como face representativa e visível do poder (Ericson et al., 1991; McQuail, 2005: 8), e enquanto base de representações e avaliações da justiça para os cidadãos, é possível perspectivar os meios de comunicação social pelo poder de que dispõem relativamente à selecção, enquadramento e discurso, e como participantes activos de uma pluralidade jurídica co-construtora do direito e da justiça no âmbito alargado da sociedade. Serão explorados alguns tópicos ligados às relações e interacções entre os média e a justiça. Os processos e critérios de produção jornalística, assim como as diferenças nas lógicas discursivas e de acção entre justiça e média, afiguram-se relevantes com o propósito de enquadrar os potenciais efeitos e impactos para os cidadãos. De modo a transformar este livro em uma ferramenta útil do ponto de vista pedagógico, adoptámos como estrutura geral de cada secção a indicação de uma síntese de objectivos relativamente a cada um dos tópicos tratados; seguida de uma descrição, exposição e discussão de conteúdos; e finalizando com uma proposta de actividade de reflexão que pode ser realizada pelo leitor ou em grupos de debate e que permitem a aplicação dos enunciados teóricos a exemplos práticos, familiares a estudantes, a professores, a especialistas do direito e do jornalismo e ao público em geral.

PA R T E 1 Direito, Justiça e Sociedade

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CAPÍTULO

A perspectiva dos precursores da sociologia

1. AS CAUSAS SOCIAIS DA CRIAÇÃO DAS LEIS E O PAPEL DA JUSTIÇA NA SOCIEDADE – OS CONTRIBUTOS DE MONTESQUIEU E TOCQUEVILLE Este capítulo visa: – reconhecer as causas sociais da criação das leis, em contraponto às teorias jusnaturalistas do direito; – explanar a abordagem empiricista e positivista de Montesquieu ilustrada na procura de um modelo explicativo para a diversidade de costumes e leis e definição de tipos e princípios de leis; – assimilar o papel que Montesquieu aponta à justiça no equilíbrio de poderes na sociedade e o destaque conferido à neutralidade do juiz, como elementos do ideário moderno do sistema judicial; – compreender a articulação estabelecida por Tocqueville entre confiança e participação pública e legitimidade da instância jurídico-legal; – desenvolver a tese da instituição do julgamento por jurados como fonte de educação cívica e participação democrática; – expor criticamente as vantagens apontadas pelos defensores da participação popular na administração da justiça; – relacionar o actual papel dos média com os factores sociais, políticos e culturais emergentes na análise dos precursores acerca das leis das sociedades.

1.1. Montesquieu e as relações entre sociedade, direito positivo e direito natural O período Iluminista foi pródigo em reflexões sobre as articulações entre a sociedade, as leis e o crime. Neste quadro destaca-se na ciência política Montesquieu (1689-1755), escritor e filósofo francês, considerado por alguns o fundador da sociologia do direito e o

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«primeiro a fazer obra sociológica» (Mendras, 1979: 9). É autor da obra O espírito das leis (De l´esprit des lois, 1803), o primeiro trabalho importante de sociologia do direito – para muitos a primeira grande obra sociológica tout court (Rojo e Azevedo, 2005). Nesta obra Montesquieu desenvolve uma reflexão inovadora para o seu tempo sobre o direito positivo (a lei do legislador) e sobre as suas relações com o direito natural (a lei universalmente válida da razão). Este «novo espírito» consistia em procurar identificar as relações que as leis podem ter com as condições climáticas e geográficas, os tipos de vida, a religião, o comércio e os costumes. Além disso, discute as relações que as leis podem ter entre si e como se articulam com a intenção do legislador. Por outras palavras, Montesquieu intenta relacionar o direito e as leis com o contexto político, social, económico e cultural, assim como com o ambiente físico e geográfico, produzindo o que Rojo e Azevedo (2005: 17) consideram «ser já uma sociologia do direito, só que revestida com a linguagem do século XVIII», materializada numa visão empírica e relativista do direito. No prefácio da obra O espírito das leis Montesquieu define a sua metodologia para a abordagem das relações entre o direito e a sociedade, reclamando uma visão empiricista e positivista, ao arrepio das teorias jusnaturalistas do direito. Este posicionamento pressupõe que as leis próprias de cada sociedade são determinadas por certas causas, sem que se tenha sempre consciência das mesmas: «Examinei em primeiro lugar os homens, e vi que, nessa infinita diversidade de leis e de costumes, eles não eram conduzidos exclusivamente por suas fantasias» (Montesquieu in Aron, 1987: 23).

Montesquieu propõe deste modo um modelo explicativo para a diversidade de costumes e leis, que permita, por um lado, compreender as causas e a evolução das leis em sociedade e, por outro, definir tipos e princípios de leis. Para tal entende ser necessário isolar do conjunto de leis da sociedade as causas particulares, intermédias e universais que, por sua vez, faculte também destacar os tipos de leis que expliquem todas as situações, desde a diversidade até à universalidade de princípios: «Coloquei os princípios, e vi os casos particulares se enquadrarem como que por si mesmos (…) e vi cada lei particular associada com uma outra lei, ou dependendo de uma outra mais geral» (Montesquieu in Aron, 1987: 23).

O autor considera que as sociedades se formam por influência de causas naturais, mas que as causas «morais» (ou sociais, como por exemplo, a influência do legislador) podem combater os efeitos negativos do clima, em direcção a um processo civilizacional. Procura compreender as regras que a sociedade impõe e como estas se relacionam com as condutas dos indivíduos e a estrutura geral do meio social, acreditando que a diversidade e a relatividade das sociedades e culturas humanas resultam dos impactos diferenciados produzidos pelo clima e a natureza do solo, o comércio e a moeda, a densidade da população, os hábitos e costumes, e a religião. Na formação do que chama «o espírito geral de uma nação» reco-

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nhece não só o papel do legislador como também a pluralidade de causas que diferenciam uma sociedade e a sua cultura e leis, embora ao longo do devir histórico e social, umas causas ganhem predominância sobre as outras: «Várias coisas governam os homens: o clima, a religião, as leis, as máximas do governo, os exemplos das coisas passadas, os costumes, os hábitos; disso resulta um espírito geral» (Montesquieu in Aron, 1987: 43).

Montesquieu divide as causas da formação do espírito geral de uma nação em fenómenos naturais (clima e solo) e em fenómenos sociais (em que um dos elementos são precisamente as leis). Acrescenta que nas sociedades arcaicas o domínio das causas materiais é mais evidente do que nas sociedades ditas civilizadas («A natureza e o clima dominam, de modo quase exclusivo, a vida dos selvagens», Montesquieu in Aron, 1987: 43). Elabora ainda uma importante distinção no âmbito das regras de comportamento e de regulação social existentes na sociedade, distinguindo entre leis (o que é decretado pelo Estado) e costumes e hábitos (o que é imposto pela sociedade sob a forma de imperativos interiorizados e de maneiras habituais de agir): «Costumes (moeurs) e hábitos (manières) são usos que as leis não estabelecem, não puderam ou não quiseram estabelecer. A diferença entre as leis e os costumes é que as primeiras regulam mais as acções do cidadão e os costumes regulam mais as acções do homem. Costumes e hábitos diferem no sentido de que os costumes regulam mais a conduta interior e os hábitos a exterior» (Montesquieu in Aron, 1987: 39).

Montesquieu pretende não só identificar as causas das leis positivas como também criar critérios universais que fundamentem juízos de valor ou morais relativamente às instituições sociais. Ou seja, e de acordo com Aron (1987), o projecto sociológico de Montesquieu consiste em explicar a diversidade de leis positivas em função de causas múltiplas, mas também «conservar o direito de julgar essa diversidade» (Aron, 1987: 50) ou ainda «encontrar uma filosofia que lhe permita combinar a explicação determinista das particularidades sociais com julgamentos morais e filosóficos que sejam universalmente válidos» (Aron, 1987: 51). Apresenta também uma abordagem do papel do legislador, pelo qual Montesquieu entende que deve contrabalançar, pelas leis humanas, as influências directas e espontâneas dos fenómenos naturais. Por esse motivo um dos capítulos de O espírito das leis (capítulo 5 do livro XIV) se intitula «De como os maus legisladores são os que favorecem os vícios do clima e os bons são os que se opuseram a ele» (in Aron, 1987: 62). Na sua teoria política, Montesquieu propõe uma distinção entre as leis do espírito e as leis da natureza, estabelecendo uma hierarquia das leis que concebe do seguinte modo: (i) as leis de Deus, que expressam o desejo do Criador e a ordem natural do universo, bem como a submissão da natureza do universo e dos seres humanos a uma finalidade divina. Possuem uma finalidade transcendental, ou seja, não pertencem ao homem e não podem ser questionadas

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pelo homem; (ii) as leis do mundo físico, leis essas de natureza causal e necessária que não podem ser violadas; (iii) as leis que organizam as sociedades e que podem depender da vontade humana ou de factores externos como o clima e a localização geográfica. «Todos os seres têm as suas leis; a Divindade tem suas leis; o mundo material tem as suas leis; as inteligências superiores ao homem têm as suas leis; os animais têm as suas leis; o homem tem as suas leis» (Montesquieu in Aron, 1987: 50).

A autoridade sobre a lei divina está, por princípio, distante do entendimento humano, o que significa que não cabe ao homem compreender a essência da vontade de Deus, apenas lhe cabe a obediência. Já a autoridade sobre as leis que regem a vida em sociedade e a organização política está subordinada à natureza do governo, podendo estar concentrada na mão de poucos ou nas mãos de muitos. Enquanto o mundo material é regido por leis invariáveis que não podem ser modificadas, as leis do mundo social podem ser violadas, enquanto expressão e prova da liberdade humana. O espírito das leis representa uma verdadeira crítica à sociedade francesa do seu tempo, defendendo o equilíbrio de poderes sociais com base num modelo de sociedade aristocrática, tornando-se mais tarde uma fonte importante das doutrinas constitucionais liberais que repousam na separação dos poderes legislativo, executivo e judiciário. Na perspectiva de Montesquieu, uma das dimensões necessárias para a moderação do poder consiste no exercício da justiça de modo a impedir excessos de poder tanto da parte do rei como do povo. Nesse sentido, Montesquieu defende duas coisas: por um lado, o equilíbrio de poderes no quadro de uma diferenciação social que permita à nobreza ser apenas julgada pelos seus pares; por outro lado, assegurando uma separação dos poderes executivo, legislativo e judicial. O modelo de sociedade aristocrática que defende assenta, entre outros aspectos, na convicção de que os nobres devem ser julgados em tribunais especiais, constituídos unicamente por aristocratas: «Os grandes estão sempre expostos à inveja; e se fossem julgados pelo povo poderiam correr perigo, sem o privilégio que tem o mais modesto dos cidadãos num Estado livre, o de ser julgado pelos seus pares. É preciso portanto que os nobres respondam àquela parte do corpo legislativo que é composta de nobres, e não perante os tribunais ordinários da nação» (Montesquieu in Aron, 1987: 34).

Além da formulação aristocrática da doutrina proposta por Montesquieu, o autor sustenta a tese da cooperação dos poderes políticos, defendendo que nenhum poder pode ser ilimitado. O poder executivo seria exercido pelo rei, que assumiria as responsabilidades pela condução política e administrativa do Estado. O poder legislativo, ou também poder de representação, exerceria o poder de expressar os desejos dos súbditos junto do monarca e de examinar em que medida as leis são correctamente aplicadas pelo poder executivo. Ambos os poderes assegurariam que nenhum deles excedesse as suas prerrogativas. Ao poder judiciário cabe-

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ria apenas o papel de intérprete da lei, devendo ter o mínimo possível de iniciativa, por não representar nenhum grupo social, pois não é um poder que emane de pessoas, mas das leis. «O poder de julgar, tão terrível entre os homens, se torna, por assim dizer, invisível e nulo, porque não está ligado a nenhuma profissão ou a qualquer grupo da sociedade (…) o que se teme é a magistratura não os magistrados» (Montesquieu in Aron, 1987: 34).

Para Montesquieu a submissão das convicções pessoais dos magistrados ao texto legal seria uma das garantias de estabilidade política, pois a decisão jurídica poderia ser sempre previsível a partir do conhecimento das leis. Por fim, saliente-se que Montesquieu desempenhou um papel pioneiro na preocupação com o sentido «educador» da pena, tema bastante caro aos pensadores iluministas. Distingue entre leis civis, leis penais e leis que regulam o regime político, mas interessa-se sobretudo pelas leis penais e nesse âmbito proclamava que o bom legislador empenha-se na prevenção do delito, e não se limita, simplesmente, a castigar. Pode-se afirmar que o autor inaugura o sentido reeducador da pena e preocupa-se em classificar os crimes consoante o bem jurídico atingido. Vários aspectos da argumentação que encontramos em Montesquieu sobre a importância das leis na formação do espírito geral de uma nação e nos processos de formação dos comportamentos e da moral, e em relação ao ideal de ressocialização do criminoso como forma de manutenção da ordem social pela atribuição de uma pena, são hoje retomados nos debates sobre os sentidos e as funções das penas e as reformas das organizações prisionais, muitas vezes agregadas no sentido mais amplo da ideia de «reinserção social». O contributo de Montesquieu situa-se, sobretudo, na necessidade que a sua obra invoca de construir uma abordagem que dê conta da pluralidade de causas que produzem efeitos na construção e evolução das leis em sociedade; como estas surgem estreitamente dependentes da natureza do regime político; de que modo as leis dos homens podem construir alguma previsibilidade similar às leis do mundo físico, ainda que sob a constante ameaça dos imprevistos da acção humana; e quais os princípios e funções do legislador na formação dos comportamentos e do que genericamente designa por «espírito de uma nação». O espírito geral de uma nação pode ser considerado o equivalente à cultura em sentido antropológico e sociológico, enquanto conjunto de relações sociais que uma determinada colectividade vai construindo ao longo do tempo, em resultado de uma pluralidade de influências. Na formação do que Montesquieu designa por «espírito geral de uma nação», poder-se-ia identificar, para os dias de hoje, o poder dos média como parte da pluralidade de influências, actuando inclusivamente ao nível da selecção das causas socialmente predominantes. Isto é algo que Montesquieu não poderia ter previsto na sua época, mas que, juntamente com o poder da ciência e da tecnologia, surge como parte do jogo do equilíbrio de poderes (Ehrhard, 2009: 261). Ainda a propósito da separação ou equilíbrio dos poderes preconizada por Montesquieu, e pensando nas sociedades actuais, podemos reflectir sobre o papel dos média no poder exe-

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cutivo, legislativo e judicial. Os média podem actuar como escrutinadores ou limitadores dos excessos dos poderes tradicionais e, ao fazê-lo, constituir-se como «quarto poder». Um poder que, no contexto particular da justiça, procura contra-balançar o poder judicial, já de si relativamente fraco (Hamilton, 1802 [1788]: 210), pressionando o seu exercício através da visibilidade e escrutínio público. Todavia, segundo Manuel Castells (1997), os média não são um «quarto poder» em si mesmos, mas antes o palco de conflitos políticos e arena de escândalos, isto é, a via intermédia através da qual os diferentes grupos sociais travam as suas batalhas. O poder dos média deriva da capacidade fundamental de influenciar e moldar as consciências (Castells, 1997: 396; Couldry e Curran, 2003: 3), actuando assim como «equilibrador» dos poderes.

1.2. Tocqueville e o papel das instituições jurídico-legais nas instituições democráticas Alexis de Tocqueville (1805-1859) procura na sua obra fundamental A democracia na América (La démocratie en Amérique, 1835) explicar os fundamentos e funcionamento da democracia liberal nos Estados Unidos da América dos anos trinta do século XIX, apontando as virtudes e defeitos desse regime político e debruçando-se explicitamente sobre o papel do direito, da lei e da justiça nesse fenómeno. Enviado, em 1831, para os Estados Unidos da América pelo governo francês, juntamente com Gustave de Beaumont, ambos aristocratas franceses, para estudar o sistema prisional americano, Tocqueville dedica-se a tomar notas não só sobre as prisões, mas sobre todos os aspectos da sociedade norte-americana, incluindo a sua economia e o seu sistema político. Na perspectiva do autor, o sistema democrático nos Estados Unidos da América tem algumas particularidades de que resulta um envolvimento ímpar dos cidadãos no governo do país. Não obstante Tocqueville nunca ter apresentado uma definição de «democracia», parece empregar o conceito para se referir a um tipo de sociedade assente na igualdade e equidade sociais, ou seja, uma colectividade em que não há diferenças sociais à nascença que necessariamente se perpetuem. Considera que a igualdade de oportunidades, ou melhor dizendo, a possibilidade que aparentemente todos têm nos Estados Unidos de realizar uma ascensão na hierarquia social, influencia de modo determinante a sociedade norte-americana, conferindo uma determinada direcção ao espírito público e um certo conteúdo às leis; ao mesmo tempo que influi nos comportamentos de governantes e de governados. «Entre os novos objectos que, durante a minha estada nos Estados Unidos, chamaram a minha atenção, nada me despertou tanto interesse como a igualdade de oportunidades. Prontamente descobri a influência prodigiosa que esse facto exerce no progresso de uma sociedade; conferindo ao espírito público uma determinada orientação, uma certa forma às leis; aos governantes novas máximas e hábitos muito particulares aos governados» (Tocqueville, 1835: 8 [vol. I], tradução dos autores).

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Encontramos em Tocqueville uma visão optimista da democracia nos Estados Unidos da América, hoje facilmente criticável, que perspectiva o princípio da necessidade da igualdade de oportunidades como cerne da construção de uma democracia liberal, como se existisse uma espécie de «funcionamento automático» de recompensas justas pelo talento e esforço de cada um (Laurin-Frenette, 1985: 154-60). Entendendo que as profissões e honras sociais devem ser acessíveis a todos, Tocqueville defende que numa sociedade democrática predomina a mobilidade social e cada indivíduo tem a perspectiva de ascender na hierarquia social. Daí que a ideia de progresso seja endémica à sociedade democrática. Precursor das teorias da meritocracia, Tocqueville defende que, enquanto numa sociedade na qual domina o poder da aristocracia, o indivíduo vê a sua condição predeterminada pelo nascimento, numa sociedade democrática preconiza-se a igualdade social, pela escolarização, pelo trabalho e mérito individual. «Na América, a maioria dos ricos começou por ser pobre; porque todos os ociosos foram, na sua juventude, pessoas ocupadas; daqui resulta que quando poderíamos adquirir o gosto pelos estudos, não temos tempo para o fazer; e quando adquirimos tempo para estudar, já não temos o gosto» (Tocqueville, 1835: 55 [vol. I], tradução dos autores).

Provavelmente confrontado com a persistência da pobreza mesmo em sociedades democráticas, o autor apresenta uma justificação para a permanência da desigualdade, ao defender que a única desigualdade permanente e facultada desde a nascença é a desigualdade intelectual – conferida por Deus – que se vai reflectir numa desigual capacidade para aproveitar as oportunidades oferecidas a todos no seio da sociedade democrática liberal: «A desigualdade intelectual vem directamente de Deus, e o homem não pode impedir que esta se mantenha. Mas como temos defendido, pelo menos podemos assegurar que embora as inteligências sejam desiguais, de acordo com a vontade do Criador, pelo menos possam encontrar à sua disposição meios iguais» (Tocqueville, 1835: 55 [vol. I], tradução dos autores).

Esta perspectiva entusiasta da sociedade norte-americana, assente no que hoje designaríamos por ideologia da meritocracia (Laurin-Frenette, 1985), valeu-lhe várias críticas (Gargan, 1963) por parecer ter ignorado a extensa pobreza urbana e as desigualdades provocadas pela escravatura. A visão optimista da democracia liberal nos Estados Unidos estende-se às virtualidades que aponta ao sistema de justiça e leis deste país. No âmbito deste livro interessa-nos, sobretudo, a análise que Tocqueville elaborou dedicada às particularidades do sistema jurídico-legal nesse país, que iremos expor nas seguintes secções deste capítulo. O autor vê nas leis e no modo de administração da justiça uma das causas principais do sucesso sem precedentes da democracia liberal, teoria que explicaremos de seguida.

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1.2.1. Causas da democracia liberal Tocqueville procura no primeiro tomo da obra A democracia na América (1835) explicar as causas que tornam a democracia americana liberal, enumerando três tipos de factores que apresentam alguma similitude com as causas da formação do espírito geral de uma nação preconizadas por Montesquieu: (i) a situação acidental e particular em que se encontra a sociedade americana; (ii) as leis; (iii) os hábitos e costumes. «Defendi que todas as causas que concorrem para manter a república democrática nos Estados Unidos se reduzem a três: a situação específica e acidental que a Providência atribuiu aos Americanos constitui a primeira; a segunda provém das leis; a terceira baseia-se nos hábitos e costumes» (Tocqueville, 1835: 120 [vol. II], tradução dos autores).

No que se refere à «situação particular e acidental dos americanos», o autor tem em mente a localização geográfica, a qual acredita que por si potencia a ocorrência de determinados fenómenos sociais, nomeadamente a imigração da Europa e a ausência de Estados vizinhos que apresentassem risco militar e que obrigassem a um considerável dispêndio de recursos e energia em obrigações diplomáticas. «Os Americanos não têm vizinhos, e consequentemente não têm a temer grandes guerras, crise financeira e devastações da conquista; não têm necessidade de pesados impostos, nem de grandes exércitos e grandes generais» (Tocqueville, 1835: 120 [vol. II], tradução dos autores).

A ampla extensão territorial dos Estados Unidos da América favoreceu também, na perspectiva do autor, o acesso igualitário à terra, o que veio a impedir a formação de uma aristocracia. Isto, conjugado com o perfil moral e profissional dos primeiros imigrantes – puritanismo assente nos valores da liberdade e da igualdade e apetência pelas actividades industriais e comerciais – veio criar condições excepcionais para o desenvolvimento de uma sociedade avançada do ponto de vista tecnológico e civilizacional. «O emigrante da Europa chega a um país ainda meio povoado, no qual faltam braços para a indústria; facilmente se torna trabalhador; o seu filho vai procurar fortuna num país com territórios vazios, e torna-se um proprietário rico. O primeiro acumula capital que o segundo vai valorizar, e não há miséria nem para o estrangeiro nem para o nativo» (Tocqueville, 1835: 124 [vol. II], tradução dos autores).

Contudo, mais importante do que a situação geográfica e histórica dos Estados Unidos para a formação de uma democracia liberal, Tocqueville considera serem as leis, designadamente, em três aspectos: (i) a particularidade dos Estados Unidos disporem de um sistema federativo; (ii) as instituições comunitárias que moderam eventuais tendências para o despotismo da parte do poder central; (iii) a existência de um sistema jurídico que fomenta a aplicação das leis no sentido de promover a igualdade de oportunidades para todos.

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No seguinte extracto, Tocqueville enaltece as vantagens da Constituição federativa: por um lado, o Estado é suficientemente extenso para reunir os recursos e a força necessários à manutenção da segurança e da ordem pública; e por outro lado, é suficientemente pequeno para se adaptar às diferentes circunstâncias dos contextos locais. «Três coisas em conjunto contribuem mais do que todas as outras para manter a república democrática no Novo Mundo: A primeira é a forma federal adoptada pelos Americanos, que permite à União associar o poder de uma grande república à segurança de uma pequena. A segunda causa encontro-a nas instituições comunitárias que moderam o despotismo da maioria, ao mesmo tempo que conferem ao povo o gosto pela liberdade e a arte de ser livre. A terceira causa encontra-se no poder judiciário. Já mostrei como os tribunais servem para corrigir os desvios da democracia, e como, sem jamais parar os movimentos da maioria, eles conseguem desacelerá-los e encaminhá-los» (Tocqueville, 1835: 129 [vol. II], tradução dos autores).

Em relação ao espírito das leis norte-americanas, o autor refere a importância que estas conferem à salvaguarda das liberdades, nomeadamente a liberdade de associação que favorece a criação de organizações de voluntários – cidadãos que se reúnem para discutir questões pragmáticas relacionadas com o bem-estar da sua comunidade local. «O habitante da Nova Inglaterra integra-se na sua comunidade pois esta é forte e independente; ele interessa-se porque participa na sua direcção; ele ama-a porque não se queixa da sua sorte; ele deposita nela a sua ambição e o seu futuro; ele envolve-se em todos os incidentes da vida comunitária: nessa esfera restrita que está ao seu alcance, ele tenta governar a sociedade; ele habitua-se a formas sem as quais a liberdade apenas procede por revoluções, as quais penetram no seu espírito, incutem o gosto pela ordem, compreendem a harmonia dos poderes e reúnem enfim ideias claras e práticas sobre a natureza dos seus deveres e sobre o entendimento dos seus direitos» (Tocqueville, 1835: 72 [vol. I], tradução dos autores).

Por fim, a principal causa da formação de uma democracia liberal são os costumes e os hábitos dos americanos que, no entendimento de Tocqueville, souberam unir o espírito da religião ao espírito da liberdade: «Na América, é a religião que ilumina; é a observância das leis divinas que conduz o homem à liberdade» (Tocqueville, 1835: 44 [vol. I], tradução dos autores). Defende assim que o carácter particular da civilização anglo-americana é produto de dois elementos perfeitamente distintos – a religião e a liberdade – mas que se combinam «maravilhosamente»: a religião vê na liberdade civil o exercício das capacidades mais nobres do homem e a liberdade política vê na religião a fundamentação divina dos direitos que proclama. O autor entende que nas sociedades democráticas é fundamental a criação de uma moral inscrita nas consciências individuais, que não resulte do medo da punição mas do desejo de contribuir para o bem da comunidade. Articula-se assim a disciplina moral (moti-

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vada pela religião) com a educação cívica, que estimula o cidadão norte-americano interessar-se por assuntos públicos e enveredar por comportamentos de «auto-governo» (resolução de assuntos colectivos a partir do nível da comunidade). Tocqueville encontra nas características especiais do modelo de administração da justiça norte-americano as mais evidentes oportunidades de exercício adequado da disciplina moral, de consolidação e actualização da educação cívica e de participação visível e directa do cidadão na protecção da comunidade. 1.2.2. O papel das leis na democracia liberal norte-americana Não obstante o optimismo revelado na descrição do sistema de hierarquia social assente na meritocracia, Tocqueville não traça um quadro totalmente idealizado da sociedade norte-americana. O autor sustenta que, tal como noutras nações, as leis da democracia americana apresentam defeitos, são incompletas e muitas vezes violam os direitos adquiridos. No entanto, uma questão central permanece: por que é que a democracia americana se mantém e prospera? Para elaborar uma resposta, o autor propõe que na análise das leis se proceda a uma distinção cuidadosa entre dois elementos: o objectivo da lei (o que chama «vontade absoluta») e a forma como as leis caminham para esse objectivo (que designa por «dimensão relativa da lei»). E cita um exemplo: se o intuito do legislador é favorecer os interesses de um grupo restrito de pessoas e as disposições contidas nessa lei permitem atingir o objectivo traçado, num curto espaço de tempo e despendendo o mínimo de esforço, dir-se-á que a lei está bem feita, mas que se trata de uma má lei, pois a sua aplicação contém vários perigos (Tocqueville, 1835: 71 [vol. II]). Já em democracia as leis tendem na sua generalidade a emanar da vontade da maioria dos cidadãos, mas mesmo assim pode acontecer que uma lei produzida no contexto deste regime político apresente um interesse contrário a essa vontade absoluta de traduzir o desejo da maioria. Tocqueville enfatiza o facto de que uma nação para prosperar necessita de governantes virtuosos e talentosos, mas mais do que isso, importa que os governantes não apresentem interesses contrários à massa dos governados, «Porque, nesse caso, as virtudes poderiam ser quase inúteis e os talentos funestos» (Tocqueville, 1835: 73 [vol. II], tradução dos autores). E prossegue nessa linha de raciocínio, salientando que as vantagens da democracia, que no caso dos Estados Unidos assentam no princípio da ampla participação do povo na feitura das leis, residem em ter como objectivo absoluto favorecer o bem-estar do maior número possível de indivíduos (considerando irreal pensar que se vai satisfazer todos e em igual medida): «Qual é então a vantagem da democracia? A vantagem real não é, como disseram, favorecer a prosperidade de todos, mas somente preconizar o bem-estar do maior número possível de pessoas» (Tocqueville, 1835: 73 [vol. II], tradução dos autores).

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O autor coloca a tónica da legitimidade do poder judiciário no facto de a sociedade norte-americana promover a participação pública na concepção das leis, o que evita que o povo encare a instância judiciária como um «inimigo natural», como acontece em outros países. Pelo contrário, o povo norte-americano parece revelar uma grande confiança nas leis, encara-as como resultado de um contrato social de que também ele é membro activo, circunstâncias essas que facilitam a aceitação e submissão à ordem jurídico-legal: «Por muito infeliz que seja a lei, o habitante dos Estados Unidos submete-se a esta facilmente, não apenas por encarar a lei como resultado do trabalho de muitos, mas também como do seu próprio labor; ele considera-a do ponto de vista de um contrato do qual ele fará parte» (Tocqueville, 1835: 81 [vol. II], tradução dos autores).

Um dos aspectos centrais da justiça nos Estados Unidos é o sistema de jurado – conjunto de cidadãos escolhidos ao acaso para participar/auxiliar no acto de julgar –, ao qual Tocqueville dedica, como veremos de seguida, boa parte da segunda parte da sua obra A democracia na América (1835), começando por definir o jurado como um sistema de soberania do povo e reflectindo sobre os efeitos produzidos por esse sistema na formação do «espírito nacional», nos modos de actuação de magistrados e no espírito do legislador. Aponta ainda como vantagem de instituição de julgamentos por jurados o facto de a participação no acto de julgar constituir uma importante fonte de educação cívica e moral. 1.2.3. As virtudes do sistema de julgamento com jurados Tocqueville defende que o sistema de jurados é simultaneamente uma instituição judiciária e uma instituição política (Tocqueville, 1835: 112 [vol. II]). Uma das vantagens que vê na instituição do sistema de jurados é a redução do número de juízes. Na sua perspectiva, a classe da magistratura deve ser reduzida ao mínimo, na medida em que entende que um juiz deve reunir qualidades extraordinárias que dificilmente encontramos no homem comum e muito menos num grande número de pessoas: «Porque um grande magistrado não pode ser um homem comum» (Tocqueville, 1835: 113 [vol. II). Defende que uma boa administração da justiça exige juízes com qualidades humanas extra-ordinárias e extremamente sabedores de leis e bons conhecedores de jurisprudência: «Prefiro deixar a decisão de um processo a jurados ignorantes dirigidos por um magistrado competente, do que deixá-la a juízes que tenham um conhecimento incompleto da jurisprudência e das leis» (Tocqueville, 1835: 113 [vol. II], tradução dos autores).

O autor começa por clarificar que uma das características dos jurados americanos é o seu carácter democrático, ou seja, a classe de origem dos jurados é diversificada – ao contrário do que acontecia na Inglaterra do seu tempo, em que os jurados eram aristocratas –,

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tendo como objectivo representar todas as pessoas. Refere Tocqueville que os jurados ilustram exemplarmente o dogma da soberania do povo: «O sistema de jurados, tal qual este existe na América, parece-me uma consequência directa e extrema do dogma da soberania do povo e do voto universal» (Tocqueville, 1835: 114 [vol. II], tradução dos autores).

A instituição de um jurado democrático significa também participação pública e educação cívica. A possibilidade que o cidadão comum tem de participar activamente na administração da justiça faz com que (i) o indivíduo possa assimilar uma parte dos hábitos do espírito de julgar, sendo assim educado para o respeito pela igualdade e pela liberdade; (ii) ensina que todos os cidadãos têm deveres a cumprir para com a sociedade, desenvolvendo a motivação para o contributo para o bem comum e combatendo o egoísmo individual; (iii) oferece um contexto gratuito de aprendizagem dos direitos de cidadania e das leis. Estas vantagens da participação dos cidadãos no sistema de justiça são explanadas no seguinte extracto, concluindo o autor que o sistema de julgamento com júri em matéria cível é o factor principal da formação no povo norte-americano daquilo que considera ser «uma inteligência prática e bom senso político»: «O sistema de jurados serve de modo incrível para formar a capacidade de julgar e para aumentar as luzes naturais do povo. Esta é, do meu ponto de vista, a grande vantagem da existência de julgamento com júri. Podemos considerar este sistema como uma escola gratuita e sempre aberta, onde cada membro do júri vem instruir-se sobre os seus direitos, onde ele comunica diariamente com membros mais instruídos e esclarecidos das classes superiores, onde as leis lhe são ensinadas de modo prático e lhe são apresentadas de forma ao alcance da sua inteligência através dos esforços dos advogados, dos pareceres do juiz e das próprias paixões das partes. Penso que devemos sobretudo atribuir inteligência prática e bom senso político aos Americanos devido à já longa utilização que estes fazem do sistema de jurados em matéria cível» (Tocqueville, 1835: 116 [vol. II], tradução dos autores).

O envolvimento do cidadão comum na administração da justiça americana apresenta diferentes níveis e graus de participação, consoante o tipo de julgamento em que participa – de âmbito criminal ou cível. Sendo o direito penal um direito de protecção dos bens fundamentais da comunidade, em nome do qual a justiça tem de esclarecer o crime e perseguir e punir o criminoso (Dias, 1993), o tribunal por júri assume elevada visibilidade e importância no âmbito dos processos-crime. Afirma Tocqueville que, em contexto de aplicação do direito penal, partilha-se o objectivo comum de representação do poder da comunidade e da validade da norma penal, expressa pela vontade da maioria. Na visão do autor isto acontece, em boa medida, devido à simplicidade dos factos, em princípio facilmente acessíveis à compreensão do leigo e pelo facto do direito penal ser movido pelo interesse público:

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«Nos processos criminais, nos quais a sociedade luta contra um homem, os jurados são conduzidos a encarar o juiz como um instrumento passivo do poder social, e desconfiam da sua opinião. Além do mais, os processos criminais baseiam-se em factos simples que o bom senso pode facilmente avaliar. No campo do direito penal, os jurados e o juiz são iguais» (Tocqueville, 1835: 117 [vol. II], tradução dos autores).

Nos processos judiciais cíveis o papel do juiz assume contornos de «árbitro» alegadamente desvinculado dos interesses das partes. Ganha aqui predominância o papel do juiz, que é quem orienta e instrui os jurados face aos procedimentos judiciais, ganhando com isso o respeito destes. «O juiz aparece como um árbitro desinteressado das paixões das partes. Os jurados encaram-no com confiança e escutam-no com respeito, porque nesta matéria a inteligência do juiz supera a sua. É ele quem expõe os vários argumentos que fatigam a memória do júri, é ele quem lhes dá a mão e os conduz através dos meandros do processo; é ele quem circunscreve o ponto de vista da verdade e ensina a resposta que estes devem produzir face à questão da lei. A influência do juiz sobre os jurados é praticamente ilimitada» (Tocqueville, 1835: 117 [vol. II], tradução dos autores).

Analisando o poder social do juiz americano – que classifica como «poder moral» – por comparação com o juiz no sistema judicial francês, Tocqueville termina a sua reflexão sobre a justiça americana afirmando que, ao contrário do que se possa supor, um sistema de julgamento por jurados só aparentemente produz um «juiz passivo», que vê reduzido o seu poder pela participação activa do cidadão comum no julgamento. Na medida em que o autor acredita que o envolvimento de indivíduos leigos no sistema judiciário potencia uma maior consciência e educação cívicas, afirma-se convicto de que o uso recorrente de jurados favorece o reconhecimento da legitimidade da instância judiciária em geral, e do poder do juiz em particular. Em sistemas jurídicos de common law, assentes em procedimentos de tipo adversarial, admite-se o julgamento por jurados e confere-se uma importância crucial da actuação das partes ao nível da produção de provas, actuando o juiz como árbitro relativamente ao que é aceite e o que é rejeitado. Nos sistemas continentais em que domina o processo «inquisitório» (geralmente no âmbito criminal e em processos cíveis em que estão presentes interesses públicos), o juiz tem um papel predominante na condução do julgamento e na apreciação da prova, protagonizando os interrogatórios e decidindo quais são as provas aceites em julgamento. A diferença fundamental é que enquanto num sistema adversarial há lugar a um confronto entre duas versões dos factos com a finalidade de resolução do litígio, no sistema inquisitorial a função do tribunal é «apurar a verdade» (Crombag, 2003). Segundo Damaˇska (1986 in Crombag, 2003: 24), tratam-se essencialmente de duas concepções distintas do Estado e dos seus objectivos. Entre um Estado que proporciona aos seus cidadãos um espaço para resolver as suas disputas, adjudicando nestes a capacidade de gerirem os seus conflitos, e um Estado que projecta sobre os cidadãos as suas leis e concepções de vida em sociedade.

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Direito, Justiça e Média – Tópicos de Sociologia

Tocqueville conclui a sua análise das particularidades da justiça americana, que como já referimos, encara como uma das causas do sucesso da democracia liberal nos Estados Unidos, explanando as três características principais do poder judicial (Tocqueville, 1835: 104-5 [vol. I]), que de resto encontramos ainda em vigor na contemporaneidade: (i) o sistema de justiça serve de árbitro e a sua intervenção justifica-se para encontrar soluções para conflitos (entre o Estado e o cidadão ou entre cidadãos); (ii) os tribunais pronunciam-se sobre casos concretos e não sobre princípios gerais; (iii) o poder judicial só age se convocado, tendo por isso uma natureza passiva, por exemplo, exercita acção se um crime é denunciado, mas por si mesmo não toma a iniciativa de perseguir criminosos.

1.3. Contributos dos precursores para a sociologia do direito e da justiça Na história da filosofia jurídico-política, aparecem pelo menos três versões fundamentais das teorias jusnaturalistas do direito, também elas com suas variantes: (i) a de uma lei estabelecida por vontade da divindade e por esta revelada aos homens; (ii) a de uma lei «natural» em sentido estrito, fisicamente co-natural a todos os seres animados à guisa de instinto; (iii) a de uma lei ditada pela razão, específica, portanto, do homem que a encontra autonomamente dentro de si. Na análise que realizam do papel do direito na sociedade os contributos de Montesquieu e de Tocqueville vieram pôr em causa os principais postulados das teorias jusnaturalistas, ao alargarem o estudo do jurídico a factores sociais, políticos e culturais que podem estar na origem da criação das leis. Neste sentido encontramos aqui os fundamentos da sociologia do direito e da justiça. Mais, é também possível encontrar os fundamentos relativos à emergência dos média como componente relevante nas sociedades contemporâneas na constelação de factores sociais, políticos e culturais na origem da criação e transformação das leis. Assim, pode dizer-se que os precursores, ao alargar o estudo do jurídico a factores outros que não os jusnaturalistas, abriram também o campo de análise à influência dos média na justiça. Montesquieu preconiza o exercício da justiça e a separação dos poderes executivo, legislativo e judicial como factores necessários com vista a impedir os excessos do poder. O autor concebe o poder judicial como algo de transcendente, na medida em que as suas prerrogativas não são adscritas a qualquer indivíduo ou grupo social e, desse modo, mais preparado para moderar os outros poderes. Actualmente, podemos pensar a comunicação social como factor adicional e informal de equilíbrio dos poderes, inclusive do poder judicial, assente na prerrogativa da defesa do interesse público, e que actuará ao nível da denúncia pública de actos percepcionados como desviantes em relação à moral colectiva ou às próprias leis. Na visão excessivamente optimista que Tocqueville apresenta da democracia norte-americana, a ordem social deve assegurar que seja o indivíduo o único responsável pela sua sorte. Do mesmo modo, o aparelho de justiça deve promover a igualdade e equidade, tornando-se juiz e leigos (jurados) similares, como co-representantes do poder da comunidade e da vontade da maioria. Há que notar que os julgamentos com jurados, cujas virtualidades são exal-

A perspectiva dos precursores da sociologia

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tadas por Tocqueville, não são exclusivos dos sistemas adversariais. Embora menos frequentes e sujeitos a algumas condicionantes, os julgamentos com jurados também se verificam nos sistemas inquisitoriais, eventualmente em casos com maior visibilidade mediática. Assim, o maior envolvimento e participação dos cidadãos na administração da justiça e na vida pública convoca o interesse e a relevância que os média podem desempenhar na construção da opinião e vontade do público e os próprios efeitos e influência que podem produzir na administração da justiça. Apesar dos potenciais perigos da imprensa livre identificados por Tocqueville relativamente à inflamação das paixões do público, o autor considera a imprensa livre uma garantia dos cidadãos contra os abusos de poder do Estado, particularmente quando a justiça não tem possibilidade de o fazer (Tocqueville, 1835: 16 [vol. II). No capítulo III de A democracia na América (1835), dedicado à liberdade de imprensa nos Estados Unidos da América, Tocqueville argumenta que a liberdade de imprensa não afecta apenas as opiniões políticas, mas que a sua influência se estende a todo o tipo de opiniões, modificando costumes e leis. Para o autor, em França como nos Estados Unidos da América, a imprensa constitui um poder particular, dotado de capacidade para o bem e para o mal, mas sem o qual nem a liberdade poderia subsistir, nem a ordem pública poderia ser mantida contra sua vontade (Tocqueville, 1835: 18 [vol. II]). Deste modo, a influência dos média constitui-se como um tema de interesse na sociologia do direito e da justiça. Não só pelo papel moderador dos poderes instituídos, mas também pela capacidade de centralizar os debates públicos e moldar as consciências. As preocupações com os efeitos dos média na administração da justiça têm-se reflectido particularmente nos estudos de avaliação da sua influência nas decisões dos jurados e de outros actores judiciais ou, inclusive, nos processos legislativos (Chermak e Weiss, 1997; Hans e Dee, 1991). Contributos dos precursores da Sociologia

Montesquieu

Tocqueville

Crítica às teorias Meritocracia Liberdade e igualdade Julgamento por jurados Cultura cívica

jusnaturalistas do Direito Factores de

Causas naturais (clima, relevo, posição geopolítica) Causas morais e sociais (comércio, população, religião, costumes)

criação das leis Fundamento do sucesso da democracia liberal nos EUA

Espírito geral de uma nação

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Direito, Justiça e Média – Tópicos de Sociologia

Actividade de reflexão e debate: Tendo como ponto de partida a tese de Tocqueville sobre o sistema de jurados como forma de educação cívica e participação pública, considere as vantagens e desvantagens do uso deste sistema em julgamento judicial, atendendo a casos marcantes na justiça portuguesa. Procure problematizar qual o grau de potencial influência dos média sobre os jurados e os seus efeitos na opinião pública.

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CAPÍTULO

A perspectiva dos clássicos da sociologia

1. O DIREITO COMO INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO DE CLASSE E DO ESTADO – O CONTRIBUTO DE KARL MARX Esta secção visa: – articular o papel do direito e da justiça com o conceito de contradições na vida económica e material e o conceito de ideologia; – reconhecer a dupla condição do jurídico como consequência da infraestrutura económica e meio de tomada de consciência das contradições da vida económica e material; – analisar o papel do direito na regulação das relações de produção e como instrumento de dominação classista; – compreender a assumpção teórica de que o direito não está acima da sociedade, mas é sim formado e moldado pelas condições concretas de produção material da existência humana, condições essas historicamente determinadas; – explanar criticamente a tese da existência de uma ideologia de classe assente, entre outros princípios básicos, na defesa da propriedade privada e na liberdade de concorrência e na ideia de que a justiça se constitui como árbitro imparcial; – relacionar o papel dos média na produção simbólica de legitimação das classes dominantes.

1.1. Karl Marx e a visão do direito e do crime na sociedade capitalista O legado de Karl Marx (1818-1883) representa um dos eixos teóricos mais relevantes na abordagem sociológica do direito e do crime e, por isso, traz-nos contributos fundamentais para a análise da justiça enquanto instância de interpretação e de aplicação dos preceitos jurídico-legais. Em boa parte de seus escritos sobre o Estado e sobre as relações de produção, poderíamos encontrar alguns dos elementos básicos de uma sociologia do

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Direito, Justiça e Média – Tópicos de Sociologia

direito e da justiça, mas também as sementes da Teoria Crítica. Esta estende-se aos estudos sobre comunicação e média. A abordagem marxista tem-se revelado assaz profícua, designadamente ao proporcionar análises a partir de temas e conceitos como a «ideologia», a «comodificação», a «hegemonia», a «reificação» e as «classes sociais» (Artz e Kamalipour, 2003; Mosco, 2009; Artz et al., 2006). No âmbito da Teoria Crítica, destaca-se a Escola de Frankfurt, com Max Horkheimer e Theodor Adorno (1947) e Herbert Marcuse (1964), como empreendedores de um projecto de crítica da «indústria cultural», pelo qual procuram fundir categorias marxistas com categorias da sociedade de massas (Gurevitch et al., 1982: 42). A visão mais corrente do legado de Karl Marx para a sociologia do direito e da justiça assenta na ideia de que o direito representaria um dos elementos da superestrutura ou instância político-ideológica (juntamente com o Estado, as ideias religiosas, morais e estético-artísticas). O direito, assim como outros factores políticos e ideológicos, manteria uma certa autonomia e capacidade de retorno sobre a economia (Althusser, 1972) e até poderia ser dominante em certas sociedades e em certas circunstâncias, mas seria determinado, pela infra-estrutura ou base técnico-económica, constituída pelas forças produtivas e pelas relações de produção. De acordo com a teoria económica de Marx desenvolvida em várias das suas obras (1974 [1859], 1975 [1849], 1990 [1867], 2004 [1865]) e outras em co-autoria com Friedrich Engels (1845-46; 1975 [1846]; 1997 [1848]), as forças produtivas são constituídas pelos meios de produção – capitais, terras, matérias-primas, ferramentas e equipamentos –, pelos métodos e técnicas de utilização e pela força de trabalho. As relações de produção formariam o conjunto de relações desenvolvidas entre os homens com vista à produção. A ideia de que o direito é principalmente um instrumento ao serviço daqueles que detêm o controlo sobre os meios de produção é a nosso ver demasiado simplista e redutora da abordagem que Marx elabora sobre o direito (e o crime) nas sociedades capitalistas. Passaremos a explicar o papel do direito e do sistema de justiça na perspectiva de Karl Marx, atendendo a dois elementos essenciais da sua abordagem crítica: (i) o conceito de contradições na vida económica e material; (ii) o conceito de ideologia. 1.1.1. Contradições da vida económica e material Para Karl Marx e o seu protector e colaborador Friedrich Engels (1820-1895), o principal motor da vida económica, política e social reside nos princípios da contradição e mudança da vida material e económica. No Manifesto do partido comunista (Marx e Engels, 1997 [1848]), os autores referem a colossalidade das forças de produção nascidas da revolução industrial, por meio da energia dos processos de exploração e dominação da burguesia empenhada em potenciar o sistema tecnológico disponível aplicado à produção. «A burguesia, na sua dominação de classe de um escasso século, criou forças de produção mais massivas e mais colossais do que todas as gerações passadas juntas. Subjugação das forças da Natureza, maquinaria, aplicação da química à indústria e à lavoura,

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navegação a vapor, caminhos-de-ferro, telégrafos eléctricos, arroteamento de continentes inteiros, navegabilidade dos rios, populações inteiras feitas saltar do chão – que século anterior teve ao menos um pressentimento de que estas forças de produção estavam adormecidas no seio do trabalho social?» (Marx e Engels, 1997 [1848]: 5).

As forças produtivas próprias do sistema capitalista foram geradas na sociedade feudal. Mas a partir do momento em que as relações de propriedade da sociedade feudal deixaram de corresponder a essas forças produtivas, tiveram que ser abandonadas e substituídas por outro tipo de relações sociais, agora caracterizadas pela livre concorrência e dominação política e económica da burguesia, que terão que ser legitimadas por uma alteração das leis: «Num certo estádio do desenvolvimento destes meios de produção e de intercâmbio, as relações em que a sociedade feudal produzia e trocava, a organização feudal da agricultura e da manufactura – numa palavra, as relações de propriedade feudais deixaram de corresponder às forças produtivas já desenvolvidas. Tolhiam a produção, em vez de a fomentarem. Transformaram-se em outros tantos grilhões. Tinham de ser rompidas e foram rompidas. Para o seu lugar entrou a livre concorrência, com a constituição social e política a ela adequada, com a dominação económica e política da classe burguesa» (Marx e Engels, 1997 [1848]: 5).

As alterações da base económica só ganharam força e legitimidade, e só podem atingir o seu objectivo primordial – aumentar a produção –, com a alteração da legislação, ou seja, «com a constituição social e política a ela adequada», o que equaciona a assumpção vulgarizada do puro determinismo económico que é atribuído a Karl Marx no que se refere ao papel determinante da economia sobre o direito. Consideremos a dupla condição do jurídico que surge na abordagem de Marx: (i) é a consequência da infraestrutura económica; (ii) é o meio de tomada de consciência das contradições da vida económica e material. O autor entende que a estrutura económica da sociedade constitui a base real sobre a qual se forma a superestrutura jurídica. «O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura económica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social» (Marx, 1974 [1859]: prefácio).

Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em conflito com as relações de produção existentes ou, o que não é senão a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais se desenvolveram até ali: «De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se convertem em obstáculos a elas. E se abre, assim, uma época de revolução social» (Marx, 1974 [1859]: prefácio).

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Direito, Justiça e Média – Tópicos de Sociologia

Mas alerta também para outra função do aparelho jurídico-legal, geralmente menos conhecida e debatida em meio académico, e que consiste em ser também um instrumento pelo qual os homens tomam consciência dos conflitos incessantes entre as forças produtivas e as relações de produção: «É preciso distinguir sempre entre as mudanças materiais ocorridas nas condições económicas de produção e que podem ser apreciadas com a exactidão própria das ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, numa palavra, as formas ideológicas em que os homens adquirem consciência desse conflito e lutam para resolvê-lo» (Marx, 1974 [1859]: prefácio).

O materialismo histórico constitui uma das componentes fundamentais do método marxista «que consiste em conceber o mundo e a sociedade como um conjunto de fenómenos naturais e sociais, enquanto aspectos da matéria em movimento, matéria e movimento aliás indissociáveis entre si, na medida em que o movimento é o modo de ser da matéria» (Silva, 2002: 234). Por outras palavras, a matéria forma o elemento primordial, determinando o espírito ou a consciência social e regulando o devir, na medida em que estes resultam sempre da contradição existente entre as forças produtivas e as relações de produção: «é necessário explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito existente entre as forças produtivas sociais e as relações de produção» (Marx, 1974 [1859]: prefácio). De acordo com a tese desenvolvida em o Manifesto do partido comunista, as contradições da sociedade capitalista são essencialmente duas: (i) a contradição entre as forças e as relações de produção, pela qual a burguesia cria incessantemente meios de produção mais poderosos, mas sem que as relações de propriedade e a distribuição das rendas se transformem ao mesmo ritmo; (ii) o regime capitalista produz cada vez mais, mas esse aumento da riqueza surge a par e passo com o aumento ainda maior da miséria. A revelação destas contradições fundamentais da sociedade capitalista surge espelhada em dois dos extractos mais conhecidos desse texto que correu o mundo ocidental: «A sociedade burguesa moderna, que desencadeou meios tão poderosos de produção e de intercâmbio, assemelha-se ao feiticeiro que já não consegue dominar as forças subterrâneas que invocara» (Marx e Engels, 1997 [1849]: 5). «O operário moderno, em vez de se elevar com o progresso da indústria, afunda-se cada vez mais abaixo das condições da sua própria classe. O operário torna-se num indigente [Pauper] e o pauperismo [Pauperismus] desenvolve-se ainda mais depressa do que a população e a riqueza» (Marx e Engels, 1997 [1849]: 9).

Marx antevê que a colisão da sociedade capitalista irá fomentar o curso do desenvolvimento do proletariado, o que apenas ganhará forma numa sociedade socialista que, como explicaremos mais à frente, terá como característica o facto de o aparelho jurídico-legal

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representar os interesses da classe trabalhadora. Só nesta fase do devir histórico se fará verdadeiramente justiça, no sentido desta significar «igualdade para todos». Essa contradição sustenta o incessante devir histórico, movido pelas leis da tese-antítese-síntese, raciocínio esse que encontramos explanado de um modo particularmente claro na seguinte passagem do prefácio à obra Contribuição para a crítica da economia política (Marx, 1974 [1859]): «Nenhuma formação social desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela contém, e jamais aparecem relações de produção novas e mais altas antes de amadurecerem no seio da própria sociedade antiga as condições materiais para a sua existência» (Marx, 1974 [1859]: prefácio).

Significa isto que, de acordo com o método sustentado pelo materialismo histórico, cada formação social concreta pode conhecer a coexistência de pelo menos dois modos de produção, sendo um deles dominante. Mas o desenvolvimento das forças produtivas acaba por colidir com as relações de produção, ou seja, os desenvolvimentos técnico-económicos acabam por pressionar à mudança na superestrutura – mormente no aparelho jurídico e no regime de propriedade (expressão jurídica das relações de produção). A classe dominante em cada formação social concreta obtém o controlo dos meios de produção materiais mas também dos meios político-ideológicos, com vista a controlar as classes subordinadas. Numa sociedade capitalista, a classe dominante é a burguesia, que detém a posse e propriedade dos meios técnico-económicos industriais. A acompanhar esta base económica, conhecemos um quadro legislativo que favorece a competição, nomeadamente pelo favorecimento do regime da propriedade privada. Mas esta sociedade contém, em si mesma, os germes da sua própria destruição, na medida em que, enquanto a produção é social, a apropriação do produto é privada. O excesso de sobreprodução, o excesso de indústria e o excesso de comércio, ao mesmo tempo que expropriou produtores independentes (artesãos e camponeses) e gerou os proletários, tornou os operários modernos cada vez mais pobres. A revolta destes, expressa nas organizações sindicais, amplia cada vez mais a sua união, tornando-se com isto «evidente que a burguesia é incapaz de continuar a ser por muito mais tempo a classe dominante da sociedade e a impor à sociedade como lei reguladora as condições de vida da sua classe» (Marx e Engels, 1997 [1848]: 9, sublinhado nosso). A queda da burguesia – que nas palavras de Marx e de Engels (1997 [1848]) produziu, sobretudo, o seu próprio coveiro, o proletariado – é inevitável. No prefácio do primeiro volume de O capital (1990 [1867]), obra em que Marx se propõe desenvolver os princípios teóricos e metodológicos enunciados em Contribuição para a crítica da economia política (1974 [1859]), após um interregno de quase vinte anos motivado por doença, anuncia que «o fim último desta obra é descobrir a lei económica do movimento da sociedade moderna» (Marx, 1974 [1859]: prefácio). Nesta perspectiva, enfatiza a transição e substituição do modo de produção capitalista por um outro, o que implica transformação social, de ordem quantitativa e qualitativa:

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«Mesmo nas classes sociais dominantes começa a despontar o pressentimento de que a sociedade actual, muito longe de ser um cristal sólido, é um organismo susceptível de mudança e em permanente processo de transformação» (Marx, 1990 [1867]: s/p).

Do mesmo modo que é inevitável a queda da burguesia, na perspectiva de Marx é certa a vitória do proletariado que será, indubitavelmente, acompanhada por uma transformação da base económica e da superestrutura ideológica e política. 1.1.2. O direito e a justiça como ideologia Marx atribui atenção ao papel do direito na sociedade de dois modos, motivo pelo qual no primeiro volume de O capital (1990 [1867]) concede um lugar tão importante à história, ao conteúdo e aos resultados da legislação inglesa sobre as grandes fábricas: (i) ao propor-se estudar principalmente o modo de produção capitalista e as relações de produção e de troca que lhes correspondem, analisa necessariamente o papel do direito na regulação das relações de produção; (ii) ao abordar o papel transformador do direito, e embora considere que a revolução tem como base primordial a classe dominada, perspectiva que a pressão para a alteração da estrutura jurídica se fará sentir para acomodar uma nova formação social caracterizada pela vitória do proletariado1. A evolução futura do capitalismo e a sua autodestruição conduzirá a uma transformação da superestrutura de forma a acomodar no aparelho jurídico-legal os interesses do operariado: «Na Inglaterra, a marcha da agitação social é bem visível para todos; num dado momento, esta agitação há-de ter necessariamente a sua repercussão no continente. Então revestirá formas mais ou menos brutais ou humanas, consoante o grau de desenvolvimento da classe dos trabalhadores. Independentemente de motivos mais altos, o próprio interesse ordenará então às classes dominantes que removam todos os obstáculos legais que possam impedir o desenvolvimento da classe operária» (Marx, 1990 [1867]: s/p, sublinhado nosso).

(1) No âmbito desta obra não é nosso objectivo apresentar detalhadamente toda a riquíssima análise que Karl Marx, também em co-autoria com Friedrich Engels, elaborou do papel do direito na sociedade (Marx e Engels, 1845-1846; Marx e Engels, 1975; Marx e Engels, 1997 [1848]). Mas vários exemplos históricos serviram para desenvolver o argumento de que a legislação serve os interesses da classe dominante. Um dos casos históricos que foi objecto de análise pelos autores foi o da Liga contra as leis dos cereais – organização da burguesia industrial inglesa, fundada em 1838 por Cobden e Bright, fabricantes de Manchester. As chamadas leis dos cereais, que tinham como objectivo limitar ou proibir a importação de cereais, foram introduzidas na Inglaterra em benefício da grande burguesia industrial e agrária. Apresentando a exigência da total liberdade de comércio, a Liga pretendia a abolição das leis dos cereais com o objectivo de reduzir os salários dos operários e enfraquecer as posições políticas e económicas da aristocracia agrária. Em resultado desta luta as leis dos cereais foram revogadas em 1846, o que significava a vitória da burguesia industrial sobre a aristocracia agrária.

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Um pequeno texto pouco conhecido de autoria de Karl Marx publicado no jornal Der Vorbote (O precursor), em Outubro de 1869, intitulado «Sobre o direito de herança em face dos contratos e da propriedade privada» descreve de modo particularmente enfático os elementos que, na perspectiva do autor, caracterizam o direito burguês, aquele que domina na sociedade capitalista. Serve-se do exemplo das leis da herança para descrever o processo de desenvolvimento da legislação burguesa, pela qual os homens estabelecem entre si relações tais, que ancorando-se na propriedade privada, se transformam em mecanismos de exploração, pelos quais o proprietário se apropria do trabalho dos outros sem retribuir devidamente e, mais tarde, pelo direito sucessório, alguém recebe o poder de vir a fazer o mesmo. «Pois, a terra confere ao proprietário vivo o poder de atribuir a si próprio os frutos do trabalho de outros, sob o título de renda fundiária, sem a prestação de um valor equivalente. O capital concede-lhe o poder de fazer o mesmo, sob o título de juros e lucro. A propriedade de títulos de valores do Estado outorga-lhe o poder de, mesmo sem trabalhar, poder viver dos frutos do trabalho alheio etc. A herança não gera esse poder de transferência dos frutos do trabalho de uma pessoa para o bolso de outra. Ela tem a ver apenas com a troca de pessoas que exercem esse poder» (Marx, 1869: s/p).

Na análise que faz do direito de herança, Karl Marx sintetiza exemplarmente a assumpção de que o direito revela dois elementos fundamentais para a análise da sociedade capitalista: por um lado, as leis da herança são uma consequência jurídica de uma organização jurídica particular – o capitalismo, assente na propriedade privada dos meios de produção; por outro lado, o direito pode servir princípios de emancipação, se a classe dominante for obrigada a prescindir de parte dos seus interesses em favor dos dominados. Enquanto instrumento de dominação e de exploração, o direito serve os interesses dos proprietários. No caso do direito de herança essa instrumentalização pela classe dominante verifica-se pelo facto de que a dominação passa de um elemento da classe dominante para o seu sucessor, membro da mesma classe: «O direito de herança possui apenas importância social na medida em que deixa para o herdeiro o poder exercido pelo falecido durante o tempo em que viveu, nomeadamente: o poder de atribuir a si mesmo, por meio da propriedade do de cuius, os frutos do trabalho alheio» (Marx, 1869: s/p).

O potencial emancipatório do direito é também considerado por Karl Marx, embora se distancie da perspectiva de alguns que acharam que se poderia transformar a sociedade pela supressão do direito de herança. O autor aponta o que considera serem os erros do passado (referindo-se aos «apóstolos de Saint-Simon»), considerando que se confundiu causa com efeito. Isto porque Marx entende que o motor da transformação da sociedade não reside na instância jurídica propriamente dita, ou noutra dimensão da superestrutura político-ideológica, mas sim na base económica:

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Direito, Justiça e Média – Tópicos de Sociologia

«Proclamar a supressão do direito de herança enquanto ponto de partida da revolução social significaria apenas desviar a classe trabalhadora do verdadeiro centro de atenção da sociedade contemporânea. Do mesmo modo, seria algo inteiramente banal pretender suprimir as leis sobre os contratos, concluídos entre comprador e vendedor, enquanto subsistir a actual situação de troca de mercadorias. Isso seria teoricamente errado e praticamente reaccionário» (Marx, 1869: s/p).

A partir do momento em que a estrutura económica se transforme – passando da propriedade privada para a propriedade colectiva – as leis da herança desaparecerão naturalmente, e com isto verificar-se-á a «abolição das instituições que concedem a algumas pessoas, durante o seu tempo de vida, o poder económico de atribuir a si mesmas os frutos do trabalho de muitas outras» (Marx, 1869: s/p). Defendendo ser insuficiente e errado abolir as leis da herança, pois isso corresponderia a tentar alterar o curso natural da história, Karl Marx considera que, no entanto, são admissíveis medidas transitórias sobre o direito de herança, que venham a facilitar futuramente a implementação da propriedade colectiva. Examina a possibilidade de virem a ser acatados dois tipos de medidas, nomeadamente a aplicação de impostos sobre a herança a favor da emancipação social dos oprimidos e um maior controlo sobre os direitos sucessórios: «No que concerne à herança, essas medidas transitórias podem ser apenas as seguintes: a) ampliação dos impostos sobre a herança que já existem em muitos Estados e aplicação dos fundos assim obtidos para o objectivo da emancipação social; b) limitação do direito testamentário à herança, porque este, diferentemente do direito não-testamentário à herança ou do direito de família à herança, surge como uma exageração arbitrária e supersticiosa dos fundamentos da própria propriedade privada» (Marx, 1869: s/p).

A teoria marxista vê o direito como produto de forças económicas, simbolizando a instauração das contradições sociais resultantes do desenvolvimento da produção e da satisfação de necessidades, por meio de atribuição particular de oportunidades desiguais, que proporcionam e protegem a propriedade e a herança. Dessa forma, se a totalidade do direito está construída tendo como modelo os interesses dos proprietários, a necessária modificação do direito só ocorrerá por meio de revolução. No decorrer do desenvolvimento social seria possível uma socialização da propriedade, trocando o direito ligado a interesses (classistas) pela racionalidade e por interesses a favor de toda a colectividade. Não há dúvida que um dos objectivos de Marx é analisar o funcionamento do capitalismo e prever a sua evolução futura. Por outras palavras, almeja compreender e explicar a sociedade industrial e científica do século XIX, mas também prever o seu devir necessário. No âmbito dos objectivos que orientam este livro, interessa-nos focar o papel que Marx atribui ao direito na formação social, discutindo doravante esta ideia sob o ponto de vista da assumpção teórica de que o direito e a justiça espelham uma ideologia de classe, ou nas palavras do próprio autor, em co-autoria com Engels:

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«As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante» (Marx e Engels, 1845-46: s/p).

Na classe dominante Marx e Engels identificam dois grupos, no seio do que designam a divisão social do trabalho: de um lado os mentores do espiritual, o grupo dos pensadores da classe dominante, entre os quais se encontram os intelectuais e os próprios legisladores, que consideram ser «fazedores de ilusões»; de outro lado, os empreendedores do material, os membros verdadeiramente activos, com menos tempo para criar ilusões e ideias: «No seio desta classe uma parte surge como os pensadores desta classe (os ideólogos conceptivos activos da mesma, os quais fazem da formação da ilusão desta classe sobre si própria a sua principal fonte de sustento), ao passo que os outros têm uma atitude mais passiva e receptiva em relação a estas ideias e ilusões, pois que na realidade são eles os membros activos desta classe e têm menos tempo para criar ilusões e ideias sobre si próprios» (Marx e Engels, 1845-46: s/p).

Como veremos, a função ideológica do direito na perspectiva de Marx consiste em projectar os interesses da classe detentora de propriedade. Numa sociedade como a capitalista, marcada pela desigualdade no acesso à fonte principal de riqueza – a propriedade do solo, da terra e demais meios de produção – o direito vem justificar perante a maioria, que mais não tem que a sua capacidade de trabalho, o direito de propriedade e de herança que está nas mãos dos detentores dos meios de produção. A ideologia resulta das relações sociais de produção e surge como legitimadora dos privilégios de alguns, sob a forma «filosófica» da universalidade e generalidade do direito. Trata-se assim de entender a ideologia, como faz notar Manuel Carlos Silva, «como produto da mente humana, que em parte revela e em parte oculta, deforma ou inverte a estruturação das relações sociais» (Silva, 2002: 197). Na teoria geral da sociedade que Marx desenvolve – o materialismo histórico e dialéctico – é elaborada uma distinção entre infraestrutura e superestrutura e, consequentemente, entre a realidade social e a consciência. Na perspectiva do autor, não é a consciência que determina a realidade, mas é a realidade que determina a consciência. Daí que seja necessário explicar a maneira de pensar dos homens pelas relações sociais nas quais estão integrados. «O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral. Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência» (Marx, 1974 [1859]: prefácio).

Como elemento da instância ideológico-política, o direito materializa por escrito (na lei) e por acções (na aplicação da lei) a consciência social. Em simultâneo, a forma do direito e a sua evolução pode ser explicada pela transformação das relações sociais: «Ao mudar a base económica, revoluciona-se, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura erigida sobre ela» (Marx, 1974 [1859]: prefácio).

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Retiramos da teoria de Marx um ensinamento precioso para a fundação dos princípios da sociologia do direito e da justiça: a ideia do que o direito não está acima da sociedade, mas é sim formado e moldado pelas condições materiais da vida concreta das pessoas. «Tanto as relações jurídicas como as formas de Estado não podem ser compreendidas por si mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito humano, mas se baseiam, pelo contrário, nas condições materiais de vida cujo conjunto Hegel resume, seguindo o precedente dos ingleses e franceses do século XVIII, sob o nome de “sociedade civil”, e que a anatomia da sociedade civil precisa ser procurada na economia política» (Marx, 1974 [1859]: prefácio).

Como o direito e o Estado não se podem colocar acima das condições concretas de produção material da existência humana, condições essas historicamente determinadas, o direito será sempre, como toda a filosofia que pretende regulamentar a convivência social, produto do seu tempo e da sociedade. Assim, o aparelho jurídico-legal é um aparato capaz de se adaptar às formas de produzir e de viver de cada sociedade, em cada momento histórico. A classe burguesa moldou um direito, um Estado e um sistema de justiça que veicula os seus interesses e legitima o seu poder, assente, entre outros princípios básicos, na propriedade privada, mas veiculando uma ideologia que proclama a igualdade jurídica dos cidadãos e a liberdade de concorrência, a ideia de que a justiça é um árbitro imparcial e de que o direito se reduz à lei, ou seja, ao direito do Estado. O juiz limita-se a aplicar a lei e as relações de produção transformam-se em conceitos presentes na legislação e na jurisprudência. O Estado representa os interesses comuns dos indivíduos da classe dominante, assim como todas as instituições estatais, criando a ilusão de se fundarem na vontade livre da maioria. Esta ideia surge explicitada na seguinte passagem da secção «Relação do Estado e do direito com a propriedade» (capítulo I de A ideologia alemã) que Marx escreveu em 1845-46, em co-autoria com Engels: «Como o Estado é a forma em que os indivíduos de uma classe dominante fazem valer os seus interesses comuns e se condensa toda a sociedade civil de uma época, segue-se que todas as instituições comuns são mediadas pelo Estado, adquirem uma forma política. Daí a ilusão de que a lei assentaria na vontade, e para mais na vontade dissociada da sua base real, na vontade livre. Do mesmo modo o direito é, por seu turno, reduzido à lei» (Marx e Engels, 1845-46: s/p).

Considera Marx que o direito da propriedade privada do solo e da terra tem sido camuflado, ao longo dos tempos, pela ideologia do «direito natural», que procura dissimular a apropriação indevida dos recursos e a profunda desigualdade que esta produz. O direito configura-se assim como um instrumento ideológico que, entre outras funções, perpetua o acesso desigual à propriedade, fonte originária de formas de desigualdade social que assentam na apropriação privada dos recursos:

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«Sem pretender discutir aqui todos os argumentos que são esgrimidos pelos defensores da propriedade privada do solo e da terra – i.e. por juristas, filósofos e economistas políticos – cumprirá apenas constatar, de início, que estes dissimulam o facto originário da conquista, sob o manto do “direito Natural”» (Marx, 1868: s/p).

Fica então claro que as classes dominantes criam leis que procuram justificar o seu poder e produzem ideólogos, fazedores de ilusões, que transmitem a ideia que as leis enunciam a vontade da maioria, o que não corresponde à realidade: «No curso da história, os conquistadores procuram conferir, por meio de leis, por eles mesmos promulgadas, um certo reconhecimento social ao seu direito de Posse que emerge originariamente da violência. Por fim, aparece o filósofo e declara que essas leis contam com o consentimento geral da sociedade» (Marx, 1868: s/p).

Por força do desenvolvimento técnico e económico da sociedade surgirá futuramente a necessidade de nacionalizar o solo e a terra, pelo que a retórica do direito natural e universal da propriedade privada deixará de ganhar justificação aos olhos da maioria. Daí que numa sociedade socialista o direito tenha que se adaptar à nova realidade, imposta por um novo estádio do desenvolvimento da história: «Verificamos que o desenvolvimento económico da sociedade, o crescimento e a concentração da população, a necessidade do trabalho colectivo e organizado (…) fazem da nacionalização do solo e da terra cada vez mais uma “necessidade social”, ao passo que tornam impossível a emergência de qualquer género de palavreado vazio sobre os direitos de propriedade. Mudanças ditadas por uma necessidade social abrem, cedo ou tarde, o seu caminho. Caso tenham-se tornado uma urgente exigência da sociedade, têm de ser satisfeitas, sendo que a legislação será sempre forçada a elas se adaptar» (Marx, 1868: s/p).

E o autor prossegue o seu raciocínio, reclamando para o direito a função revolucionária que permitirá a efectivação da verdadeira justiça: o acesso de todos à propriedade, que lhes foi indevidamente usurpado por uma minoria: «Se a conquista gerou um direito Natural de poucos, os muitos precisam apenas reunir forças suficientes, para adquirir o direito Natural à Reconquista daquilo que lhes foi tomado» (Marx, 1868: s/p). Em algum momento da história, as condições materiais de vida e as relações sociais que delas derivam e que encontramos na sociedade capitalista, entram em conflito com o aparelho jurídico-legal que lhes dá substância. Na visão de Marx, quando chegar esse momento histórico, ou mudam as leis e o Estado, ou bloqueia o desenvolvimento da sociedade e de formas de enquadramento e legitimação do desenvolvimento das forças produtivas. Por outras palavras, o curso da história desenvolve-se até chegar a um momento em que as relações sócio-jurídicas se convertem em obstáculos à evolução técnica e económica. Apesar do elemento decisivo que impulsiona as alterações legislativas ser a base económica, o sistema jurídico-legal permanece uma das arenas privilegiadas da luta de classes.

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Este conflito não surge directamente espelhado na organização judicial ou nas doutrinas jurídicas mas reflecte a necessidade constante de elaborar leis que aparentem deter coerência interna e universalidade, e cujo componente doutrinário se adapte continuamente às mudanças das circunstâncias da vida económica. Se numa sociedade capitalista o Estado, a legislação e a justiça existem em oposição aos interesses da maioria, numa sociedade em que se nacionalize a propriedade do solo e da terra desaparecerão as diferenças de classe e de privilégios. Muitos autores vêem nesta visão da sociedade futura a profecia de que também o Estado e o direito desaparecerão (Aron, 1987: 138). Não partilhando dessa interpretação dos escritos de Marx, entendemos que o autor vê no direito e no aparelho judiciário o potencial de representar os interesses da maioria, o que levará, não à eliminação do Estado, mas a uma profunda transformação do que tem sido, ao longo dos séculos, a essência da sua existência. Parece-nos ser esse o sentido das últimas frases redigidas por Marx em Acerca da nacionalização do solo e da terra (1868): «A nacionalização do solo e da terra acarretará uma completa mudança nas relações, havidas entre trabalho e capital (…) Apenas então, desaparecerão as diferenças de classes e os privilégios, juntamente com a base económica, a partir da qual emergem, transformando-se a sociedade em uma associação de produtores “livres”. Viver do trabalho de outras pessoas, tornar-se-á uma questão do passado! Então, não haverá nem um Governo e nem um Estado que existam eles próprios em oposição à sociedade!» (Marx, 1868: s/p).

1.1.3. O crime na sociedade capitalista Karl Marx não tratou directamente da questão da justiça e a abordagem que faz do direito surge essencialmente pulverizada ao longo da sua obra, assumindo poucas vezes o estatuto de objecto de interesse em si mesmo. Para os objectivos deste livro importa apresentar, além da função do direito na sociedade capitalista de reprodução e de legitimação ideológica do poder, e do seu potencial revolucionário na transformação para o socialismo, as considerações tecidas pelo autor em torno do fenómeno criminal, como um dos pontos nevrálgicos da justiça, tanto no século XIX como nos dias de hoje. Em consonância com o que o materialismo histórico defende, o autor centra a explicação da ocorrência do crime na natureza da sociedade capitalista, acreditando na redução sistemática do crime ou no seu desaparecimento depois de instaurado o socialismo e subsequente redução ou eliminação da desigualdade na distribuição da riqueza e consolidação da estabilidade económica. Não obstante a importância da visão do crime apresentada por Marx, ao longo da sua vasta obra a temática do fenómeno criminal não assume particular relevância. Assim, apenas destacamos os trabalhos do autor nos quais o crime é explicitamente referido e que são os seguintes:

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– Em A ideologia alemã (1845-46) Marx critica os dogmas do consenso da ideologia burguesa, incorporada nas instâncias de controlo social; – No artigo «O “Estado-modelo” da Bélgica?», publicado na revista Nova Gazeta Renana (1848) Marx e Engels estabelecem os princípios do determinismo economicista na abordagem do crime (in Dias e Andrade, 1997: 29); – No artigo «Pena de morte?», publicado no jornal New York Daily Telegraph (1853), Marx nega a legitimidade da pena de morte como instrumento de prevenção geral, defendendo o direito do criminoso ao cumprimento de uma pena (in Dias e Andrade, 1997: 29); – No artigo «População, crime e pobreza?», publicado no New York Daily Telegraph (1858) Marx baseia-se na análise das estatísticas oficiais do crime para defender o carácter selectivo das instâncias de controlo social (in Dias e Andrade, 1997: 29). Na perspectiva marxista, o crime é um fenómeno social normal na sociedade capitalista, por advir da exploração do homem e das consequências daí decorrentes: miséria, desmoralização, isolamento, individualismo e guerras constantes em busca do lucro. Esta visão caracteriza-se por privilegiar o papel do sistema económico tanto no plano da distribuição diferencial da criminalidade, como na génese e especificidade da produção das leis criminais, decorrente da evolução histórica das estruturas económicas e dos conflitos sociais. Deste pressuposto básico advém a crença de que numa sociedade socialista, sem classes, o crime deixará de existir. A ancoragem no sistema económico, revelada pela teoria marxista do crime, leva a acentuar o carácter classista tanto da produção de leis como da sua aplicação. Nesta perspectiva, o direito é um instrumento dos grupos detentores de poder e serve para sancionar e criminalizar as condutas dos grupos destituídos de propriedade, em particular aquelas condutas susceptíveis de pôr em causa os interesses dos grupos sociais dominantes. A ideia de que o aparelho judiciário resiste à criminalização dos poderosos tem sido debatida por autores contemporâneos na abordagem do modo como os média podem explorar esse fenómeno como forma de denunciar as desigualdades na área da justiça. Contudo, os média tendem a contribuir para a criação de um imaginário público relativo ao crime e aos «criminosos» tipicamente associado ao homem jovem, negro e desempregado (Surette, 1998: 69), através da sobre-representação de crimes violentos e das suas vítimas. Por contraste, os chamados crimes de colarinho-branco não são, geralmente, tão proeminentes e tendem a ser muito mais ambíguos em termos morais, a vitimização é difusa, são de resolução lenta e os processos judiciais nem sempre terminam de modo conclusivo (Greer, 2007; Cavender e Mulcahy, 1998). Actualmente, para além das funções de reprodução e legitimação ideológica do poder nas sociedades capitalistas (Ericson et al., 1991), as representações do direito e do crime por via mediática têm vindo a ser objecto de comodificação nos meios de comunicação social. Por um lado, o fenómeno criminal enquanto produto mediático proporciona a satisfação de imperativos económicos privados. Por outro lado, a massificação de representações do

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crime pode actuar também enquanto veículo ideológico dos interesses, quer do Estado, quer da parte de privados que capitalizam com as oportunidades de mercado criadas pela geração de sentimentos de insegurança nas populações (Jewkes, 2004).

1.2. Contributos do marxismo para a sociologia do direito e da justiça A primeira obra publicada sob influência da teoria de Marx no que concerne à abordagem do direito, da justiça e do crime terá sido o trabalho de William Bonger, num livro intitulado Criminalidade e condições económicas (Criminality and economic conditions, 1916 in Vold et al., 2002: 253-4). O argumento principal desenvolvido pelo autor é que o sistema capitalista, por assentar no individualismo e na competitividade, alimenta o egoísmo dos indivíduos. Constatando que o sistema de justiça pune sobretudo os pobres, explica tal facto argumentando que o sistema jurídico-penal está mais atento e responde com maior dureza aos actos de «ganância» (greed) dos desapossados de meios materiais, ao mesmo tempo que apoia e cria oportunidades legais para os ricos satisfazerem a sua vontade de acumulação do capital. Mas foi sobretudo a partir da década de setenta do século XX que se assistiu a uma revitalização e revisão crítica da teoria marxista aplicada aos estudos do direito e da administração da justiça (Spitzer, 1983: 104), nomeadamente ao nível das teorias da criminologia radical, da criminologia económica, de algumas correntes do estruturalismo e do culturalismo e, mais recentemente, de algumas vertentes do feminismo e das denominadas teorias pós-modernas, estas últimas interessadas nas relações de poder expressas na linguagem utilizada no direito e nos tribunais (Vold et al., 2002: 248-9). Vários autores reexaminaram a teoria marxista do direito e da justiça, em particular explorando o papel da política, da ideologia e da história. Salientam-se algumas condições que possibilitaram um renovado interesse pela abordagem marxista do direito, a que assistimos sobretudo a partir da década de setenta do século XX, de acordo com análise proposta por Spitzer (1983): (i) a «crise» do direito e do judiciário sentido desde finais da década de sessenta do século XX; (ii) a exaustão do modelo da «integração normativa» na sociologia (Hunt, 1981) e do «liberalismo legalista» no pensamento jurídico e na jurisprudência (Klare, 1979); (iii) o maior interesse pelo jurídico e por outros elementos da «superestrutura» no quadro do marxismo europeu dos anos setenta (Althusser, 1972; Poulantzas, 1978); (iv) o crescente desenvolvimento dos estudos do crime em relação com factores económicos e políticos, levados a cabo principalmente pela denominada «criminologia radical» (Taylor et al., 1973; Quinney, 1974); (v) a expansão da análise das relações entre o direito e a mudança social assente na análise da punição e sua transformação histórica (Foucault, 1977). Alguns pontos comuns ao conjunto de teorias marxistas do direito e da justiça que se desenvolveram nos anos setenta do século XX apoiam-se, de acordo com Vold et al. (2002: 254), em três pressupostos principais: (i) o aparelho de justiça e a criminalização das acti-

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vidades dos pobres criam e consolidam desigualdades de classe; (ii) os indivíduos sancionados pela justiça são principalmente os pobres acusados de praticarem crime, e estes enveredam em actividades criminosas como se estas representassem uma espécie de «revolução», pela qual os desapossados praticam o crime como forma de contestarem o sistema capitalista; (iii) a justiça projecta uma instrumentalização de classe, na medida em que a aplicação do direito serve os interesses das classes dominantes. De acordo com alguns autores (p. ex., Block e Chambliss, 1981) a tese marxista tradicional revela-se monolítica e simplista, sobretudo pela ênfase que confere ao determinismo económico, à abordagem instrumentalista que opera como se a classe dominante fosse uma elite unida e monolítica, e à visão que os actos criminosos são uma resposta política às condições de opressão e exploração. Abordamos de seguida alguns traços que se destacam nestas diferentes teorias do direito e da justiça, de inspiração marxista, sendo nosso intuito principal alertar o leitor para os diferentes campos de investigação empírica que estes estudos apontam, concretamente a partir da assumpção teórica da tese marxista das desigualdades de poder, embora distanciando-se muitas delas da abordagem essencialmente economicista, na medida em que o marxismo ortodoxo faz corresponder as relações de poder à propriedade dos meios de produção. A abordagem crítica marxista do crime e da justiça que se configura nos anos setenta do século XX representa sobretudo uma tentativa de relacionar o crime e a criminalização dos comportamentos com a economia política das sociedades, reivindicando a necessidade de empreender estudos comparativos em termos históricos e culturais (Greenberg, 1976). Block e Chambliss (1981) acentuam a ideia de que cada sistema económico-político encerra em si contradições fundamentais que não podem ser resolvidas sem que a estrutura fundamental de poder da sociedade se modifique. O crime é uma resposta racional a essas contradições (Block e Chambliss, 1981: 23-5) e o problema das políticas de controlo da criminalidade e do aparelho de justiça é que lidam com os sintomas sem mudarem a forças económico-políticas que produzem esses efeitos. A criminologia radical assume-se expressamente como uma criminologia marxista, encabeçada por autores como Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young (Taylor et al., 1973), William Chambliss e Robert Seidman (1971) e Richard Quinney (1977). Em Portugal, a criminologia neomarxista conheceu expressão desde a década de setenta, nomeadamente por Sousa Santos (1977, 1979). A criminologia marxista radical apresenta-se como teoria crítica da ordem jurídico-penal opressiva do capitalismo, conferindo ampla importância à reflexão sobre a definição do objecto e do papel do investigador no âmbito da abordagem do crime e dos aparelhos de controlo social. Os autores marxistas ambicionam descortinar os pressupostos de reprodução de poder e de privilégio das classes dominantes que o direito e o sistema penal espelham. Do mesmo modo, defende-se o distanciamento do investigador em relação ao Estado e aos aparelhos de controlo social, preconizando que as instituições devam ser escrutinadas pelos cientistas sociais, em vez de serem instâncias empregadoras ou financiadoras dos

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estudos do crime e da justiça. São elucidativas desta perspectiva as seguintes palavras do criminologista marxista Tony Platt: «Precisamos de uma definição de crime que espelhe a realidade dum sistema legal que assenta no poder e no privilégio. Aceitar a definição legal é aceitar a ficção da neutralidade do direito (…) O Estado e o aparelho jurídico, em vez de dirigirem a nossa investigação devem, pelo contrário, converter-se em tópicos centrais de investigação, como instituições criminógenas, implicadas em corrupção, fraude, genocídio» (Platt in Taylor et al., 1975: 103, tradução dos autores).

Sintetizando, a criminologia radical apresenta-se como uma sociologia crítica que procura rebater o mito da sociologia como ciência axiologicamente neutra, compreendendo e explicando a ampla discussão conferida ao estatuto profissional do sociólogo, mormente o seu posicionamento face às esferas do poder. Seguindo a proposta de Spitzer (1983: 107), duas das mais importantes teorias revisionistas do marxismo são o estruturalismo e o culturalismo, representadas, nomeadamente, por Louis Althusser (1918-1990) em França e por Edward Palmer Thompson (1924-1993) no Reino Unido. Ambas as perspectivas, ainda que distintas, tentaram ultrapassar a vertente mais economicista do marxismo, e superar «a metáfora da base-superestrutura» (Spitzer, 1983: 107), propondo uma redefinição das relações entre as estruturas, os indivíduos e o direito. Uma das pedras de toque da abordagem estruturalista, nomeadamente a que é desenvolvida por Althusser, radica na ideia da «relativa autonomia do direito». O autor (1972: 99-100) sugere que o direito, juntamente com outros elementos da superestrutura – tais como a estética, a filosofia, a ciência –, tem a sua própria história, detendo alguma autonomia e independência relativas face ao sistema económico. O direito é, na perspectiva de Althusser, um dos elementos do «aparelho ideológico do Estado», considerando a ideologia a relação imaginária, transformada em práticas, reproduzindo as relações de produção vigentes. Ou seja, o direito representa a reprodução do poder burguês, isto é, a exploração capitalista. Por sua vez, a dominação burguesa só se estabiliza pela autonomia dos aparelhos (de produção e reprodução) isolados, o que não significa que o direito não dependa em última instância do sistema económico, apenas detém uma autonomia relativa. «O aparelho ideológico do Estado, que define o Estado como uma força de repressão e de intervenção “em nome dos interesses das classes dominantes” na luta de classe conduzida pela burguesia e seus aliados contra o proletariado, é certamente o Estado, e com toda a certeza define a sua “função” essencial» (Althusser, 1971: s/p, tradução dos autores).

O mito do Estado, como entidade incorporada pelos cidadãos e como instituição acima da sociedade, aparece, também no estruturalismo marxista de Althusser sob a forma de «a

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instituição além das classes e soberana» (Althusser, 1971: s/p, tradução dos autores) e contém um aparelho repressivo (polícia, prisões e tribunais) e vários aparelhos ideológicos (entre os quais, o aparelho jurídico). Aluno de Althusser, Nicos Poulantzas (1936-1979) foi outro dos autores importantes do marxismo estruturalista para a abordagem sociológica do direito e da justiça, afastando-se da concepção monolítica do Estado que Althusser defende, ao considerar que o aparelho jurídico não se destina só a aplicar sanções, mas também cria direitos reais para os dominados, ou seja, o direito contém um potencial activo e criativo, mesmo que esses direitos sejam ilusórios e não sejam, muitas vezes, efectivados na prática: «A Lei não engana e oculta apenas (…) nem se limita a reprimir as pessoas ao compelir ou proibir as suas acções. Também organiza e sanciona certos direitos reais das classes dominadas (apesar de, obviamente, estes direitos se encontrarem investidos pela ideologia dominante e constituírem correspondência na prática às suas formas jurídicas)» (Poulantzas, 1982: 190, tradução dos autores).

Outras das preocupações dos teóricos marxistas do direito e da justiça é analisar as articulações entre os desígnios de protecção da propriedade desenvolvidos pela sociedade capitalista e a ocorrência do crime. Assim, a desigual distribuição da riqueza potencia as acções de tentativa de acumulação da capital do modo mais célere possível: de modo legal ou ilegal, como será o caso dos criminosos. Tudo isto num contexto em que o enquadramento legal, na perspectiva deste grupo de autores, projecta uma excessiva protecção da propriedade, que deste modo vai de encontro aos interesses das classes proprietárias. Em termos de construção de objectos empíricos, a abordagem marxista do direito, do crime e da justiça apresenta um legado que se alimenta sobretudo da ideia da articulação entre as desigualdades (sobretudo económicas) produzidas pelo capitalismo e o crime e criminalização das actividades dos pobres pelas instâncias judiciárias. Seja por serem economicamente marginais ou por ameaçarem a economia ou o bem-estar dos ricos. Refira-se a título de exemplo os estudos levados a cabo por Loïc Wacquant (2000, 2007), que mostram que o capitalismo agressivo não só criou amplas malhas de exclusão e desemprego, como converteu o sistema penitenciário numa indústria. O sistema de justiça norte-americano é particularmente duro com aqueles que o autor denomina «os excluídos da sociedade de consumo», explicando a sobrelotação das prisões nos E. U.A. pela tentativa de «controlar as populações incómodas (…) cujo espectro assombra os média e alimenta uma florescente indústria cultural do medo dos pobres» (Wacquant, 2007: 987). Nesta indústria cultural o crime é explorado pelos média como um produto lucrativo, comodificando imagens de violência e transgressão para o consumo privado das massas (Jewkes, 2004: 54). Assim, os média actuam como veículo dos interesses ideológicos das classes dominantes, promovendo o que Ray Surette designa como um dos paradoxos das relações entre os média e a justiça e que resulta do efeito cumulativo das imagens que retratam o sistema de justiça de modo negativo e ineficaz, mas que conduzem à disseminação de discursos públicos que apelam ao aumento em número das forças de segurança, à

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construção de mais prisões e à adjudicação de mais meios financeiros para o sistema de justiça (Surette, 1998: 21). Quer isto dizer que os média contribuem para a construção pública do «problema» do crime disponibilizando-o como produto de entretenimento às audiências. Em justaposição, surgem argumentos e soluções para o «problema», frequentemente em moldes que não fazem mais do que promover os interesses das classes dominantes e dos interesses associados à indústria da segurança.

Direito, ideologia e classe segundo Karl Marx

Instituição do direito burguês pelo direito emancipatório

Instrumento de dominação classista

Ideologia

Direito Justiça Potencial revolucionário

Reflexo dos conflitos entre forças produtivas e relações de produção

Infra-estrutura económica

Actividade de reflexão e debate: Casos de investigação criminal altamente mediatizados alimentam uma indústria ávida de novas mercadorias mediáticas. Considere a abordagem proposta por Marx da sobreposição ideológica dos interesses das classes dominantes, para reflectir, apresentando exemplos empíricos, sobre a mediação da comunicação social nas relações entre os cidadãos e a justiça.

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2. O DIREITO COMO FORMA DE ORGANIZAÇÃO SOCIAL – O CONTRIBUTO DE ÉMILE DURKHEIM Esta secção visa: – identificar o papel do direito como indicador privilegiado dos padrões de solidariedade social; – localizar os modos pelos quais a justiça pode decompor os conflitos sociais, maximizar a integração social e o bem comum; – captar os diferentes estádios de desenvolvimento das sociedades, reconhecendo a prevalência dos diferentes tipos de direito nas diferentes comunidades sócio-histórico e geograficamente diferenciadas; – compreender as dimensões da vida moderna pelas quais a regulamentação da vida atinge um determinado grau de consolidação e precisão, que se cristaliza na norma jurídica; – descrever os princípios do método sociológico e aplicá-los ao estudo das manifestações sociais dos factos jurídicos; – aplicar os conceitos de anomia, solidariedade e coesão social na discussão do papel dos média nos processos de construção da moral definidora da ordem e do consenso público.

2.1. Sociologia e direito em Émile Durkheim Émile Durkheim (1859-1917) desenvolveu um papel pioneiro e fundamental na sociologia do direito francesa. Na revista L’Année Sociologique, publicação fundada por Durkheim e por ele dirigida durante muitos anos, sempre se reservou um lugar especial à crítica das obras de direito. Como refere Albuquerque, «O objectivo principal de uma sociologia do direito em Durkheim é perceber a relação entre as regras morais e a elaboração lógica das leis escritas, bem como estudar empiricamente as diversas instituições e representações jurídicas» (Albuquerque, 2004: 108). A teoria do social desenvolvida por Émile Durkheim está situada no contexto da III República Francesa (1871-1914), período de fortes mudanças sociais, políticas, económicas e tecnológicas. Os impactos económicos e sociais da industrialização e a mudança de regime político após o fim do governo autoritário de Bonaparte (1851-1870) e da Comuna de Paris (1870) despoletavam conflitos, lutas de classe, e as antigas instituições – políticas, religiosas e familiares – pareciam não conseguir manter o consenso social. Nesta altura emergia a noção de Estado laico, que o governo francês procurava fazer assentar numa reforma moral baseada na educação e capaz de substituir a tradicional moral religiosa, agora em crise. A realidade da sociedade francesa da época será objecto de reflexão da parte de Durkheim, podendo-se situar na aula inaugural de sociologia da Universidade de Bourdeaux, em 18882, (2) Émile Durkheim é nomeado professor de pedagogia e ciência social na Faculdade de Letras da Universidade de Bourdeaux, em 1887.

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o início da consolidação do projecto de construção da sociologia como uma ciência da sociedade e como uma área de conhecimento específico, em ruptura com a metafísica. Com o intuito de analisar e esclarecer alguns aspectos da reflexão de Durkheim sobre as relações entre o direito e a sociedade, procederemos a uma abordagem deste importante texto, fundamental para entender os princípios fundadores daquele que é geralmente considerado «pai da sociologia». Formado em direito e economia, este pensador francês no Curso de ciência social. Lição de abertura (Durkheim, 1888) começa por identificar as contribuições dessas duas ciências (assim como da filosofia) para o processo de construção da nova ciência do social – a sociologia. Esta ideia é desenvolvida com o intuito de demarcar a especificidade do pensamento sociológico, «uma ciência nascida recentemente e que ainda tem um reduzido número de princípios definitivamente estabelecidos» (Durkheim, 1888: 3, tradução dos autores). Para o autor, os economistas foram os primeiros a descobrir as leis de funcionamento da sociedade, elaborando deste modo uma ruptura com as ideias filosóficas do livre arbítrio, da contingência e da arbitrariedade dos fenómenos sociais: «Os economistas foram os primeiros a proclamar que as leis sociais são tão necessárias como as leis da física, e a fazer desse axioma a base de uma ciência» (Durkheim, 1888: 5-6, tradução dos autores). Este avanço da economia na descoberta de leis «sociais» é considerado fundamental para a consolidação da economia como ciência, tão necessário como a descoberta das leis universais da física. Ou seja, na perspectiva de Durkheim o conhecimento científico equivale a descobrir leis para os fenómenos, sejam estes naturais ou sociais: «todos os fenómenos naturais evoluem de acordo com as leis. Se as sociedades estão na natureza, elas devem também obedecer a essa lei geral que resulta da ciência» (Durkheim, 1888: 6-7, tradução dos autores). Do mesmo modo, o modelo da física serve de parâmetro para o modo de fazer ciência: partindo da observação concreta dos fenómenos particulares para a formulação de leis universais. Durkheim reconhece as limitações do estudo da sociedade proporcionado pelos economistas, na medida em que estes estudam o indivíduo genérico, preso às leis do mercado e descontextualizado do seu tempo histórico, da nação, da família e do grupo profissional. O estudo científico da sociedade exige um olhar novo, que atente à realidade sui generis que extravasa o simples somatório dos indivíduos. A sociedade é um objecto de estudo científico novo e complexo, formado pela linguagem, crenças religiosas compartilhadas, símbolos colectivos, códigos morais, normas do direito, costumes e tradições passadas de geração em geração: «A vida colectiva, no entanto, não é uma simples imagem ampliada da vida individual. Ela apresenta características próprias que as induções da psicologia, por si mesmas, não conseguem prever. Os costumes, as prescrições do direito e a moral seriam impossíveis se o homem não fosse capaz de adquirir hábitos: estes são, portanto, algo distinto dos hábitos individuais» (Durkheim, 1888: 9, tradução dos autores).

A sociologia poderá trazer contributos profícuos para as outras ciências e Durkheim considera que essa disciplina será útil para os estudantes de filosofia, de história e de direito.

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O estudo da moral a partir de critérios objectivos de observação sociológica e não do «dever ser» da ética filosófica seria a principal contribuição da sociologia para os estudantes de filosofia. Para a história, o principal contributo seria a do método científico de observação da realidade, embora o historiador não procure formular leis sociais necessárias e universais como o sociólogo. Para o direito, o contributo fundamental da sociologia seria romper com a ideia da pura exegese do direito, mostrando que a sociedade é a matriz constitutiva do direito. Se o ponto de partida sociológico é que a liberdade individual se acha sempre de algum modo limitada pela coerção social (leis, normas, costumes) – «A liberdade individual encontra-se todos os dias e em todos os lugares limitada pelos constrangimentos sociais, sob a forma dos costumes, hábitos, leis e regras» (Durkheim, 1888: 15, tradução dos autores), torna-se importante mostrar ao estudante do direito que as instituições jurídicas e as leis se formam sob a pressão das necessidades da sociedade. Na seguinte passagem de Curso de ciência social. Lição de abertura (1888), o autor esclarece a importância da sociologia para o jurista ou estudante de direito, ao mesmo tempo que define o método de estudo sociológico dos fenómenos jurídicos: (i) necessidade de captação da intenção do legislador na análise dos textos jurídicos, evitando tomar a letra pelo espírito da lei e reconhecendo que a vontade do legislador nasce da sociedade; (ii) necessidade de reconhecimento de que o direito nasce e consolida-se pela via da pressão das necessidades sociais; (iii) necessidade de enquadrar no contexto histórico e social a formação das grandes instituições jurídicas como a família, a propriedade, o contrato, identificando as suas causas e perspectivando a sua evolução futura: «Temos, portanto, que ensinar ao aluno como o direito é formado sob a pressão das necessidades sociais, como ele se fixa pouco a pouco, os graus de cristalização pelos quais passa sucessivamente, como se transforma. É necessário mostrar ao estudante como nascem as grandes instituições jurídicas, como a família, a propriedade, o contrato, quais são as causas, como estas variam, como provavelmente virão a variar no futuro. Deste modo, o estudante não verá nas fórmulas jurídicas apenas exemplos de sentenças, uma espécie de oráculos cujo sentido, por vezes misterioso, é necessário adivinhar» (Durkheim, 1888: 23-4, tradução dos autores).

2.1.1. O facto social e o facto jurídico O objectivo principal de Durkheim nos dois primeiros livros da sua produção sociológica – A divisão do trabalho social (1984a [1893]) e As regras do método sociológico (1984b [1895]) – é definir com clareza o objecto de estudo da sociologia e o método positivo de observação dos factos sociais. Em primeiro lugar, é preciso abordar os factos sociais como «coisas», e para isto «é preciso substituir o facto interior, que nos escapa, pelo facto exterior, que o simboliza, e estudar o primeiro através do segundo» (Durkheim, 1984b [1895]: 80). A clarificação que o autor faz dos princípios fundamentais da sociologia é-nos extremamente útil para compreender a abordagem das relações entre direito e sociedade e de

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que modo se estabelece a metodologia a seguir pelo sociólogo para observar e analisar a sociedade através dos factos sociais contidos no aparelho jurídico-legal. De acordo com Durkheim, a sociologia deverá estudar os factos sociais, os quais, segundo o autor, apresentam como critério de identificação duas características fundamentais – a exterioridade e a coacção. Em As regras do método sociológico, o autor define os factos sociais nestes termos: «consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo (existem fora das consciências individuais) e dotadas de um poder coercivo em virtude do qual se lhe impõem» (Durkheim, 1984b [1895]: 31). O facto social é geral no âmbito de uma dada sociedade e, sendo exterior ao indivíduo, tem uma existência própria: existe independentemente das manifestações individuais que toma ao difundir-se, impondo-se como modelo de acção e de valores nos quais as pessoas são socializadas. O poder de coerção externa que exerce sobre os indivíduos verifica-se por se impor através de um conjunto de sanções, punições e obrigações. Ou seja, «reconhece-se, por sua vez, pela existência de uma sanção determinada ou pela resistência que o facto opõe a qualquer iniciativa individual que tende violá-lo» (Durkheim, 1984b [1895]: 36). São factos sociais as regras jurídicas, morais, dogmas religiosos, sistemas financeiros, maneiras de agir, costumes, etc. Interessa-nos, sobretudo, atender a um facto social particular: as regras e os comportamentos que derivam do direito e das instituições jurídicas. O direito é uma instituição social porque apresenta um carácter coercitivo sobre os indivíduos através de um conjunto de sanções, punições e obrigações. Além disso, é exterior aos indivíduos, visto que as leis, constituições e códigos existem independentemente da vontade individual, e é geral, posto que muitas pessoas aderem às normas jurídicas num determinado território. 2.1.2. A solidariedade social e as normas jurídicas Considerando fundamental para o trabalho do sociólogo o estudo da solidariedade social que provém da divisão do trabalho, Durkheim explicita ser imprescindível determinar se o que esta produz contribui para a integração geral da sociedade, ou seja, se é um factor essencial da coesão social ou, pelo contrário, «se não é senão uma condição acessória e secundária» (Durkheim, 1984a [1893]: 79-80). Para concretizar esta tarefa, Durkheim refere a necessidade de comparar a solidariedade social que provém da divisão do trabalho com outros laços sociais, sendo para isso indispensável classificar as diferentes espécies de solidariedade social. O problema que se coloca ao sociólogo na tarefa de estudar a solidariedade social é o facto de esta ser um «fenómeno completamente moral que, por si próprio, não se presta à observação exacta nem sobretudo à medida» (Durkheim, 1984a [1893]: 80). Face à necessidade de substituir o facto interior pelo facto exterior, que o simboliza, Durkheim identifica o direito como o símbolo visível da solidariedade social, referindo que «podemos estar certos de encontrar reflectidas no direito todas as variedades essenciais da solidariedade social» (Durkheim, 1984a [1893]: 81).

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O direito forma um campo relativamente autónomo, com regras e linguagem próprias, mas que ao contrário do que as concepções formalistas do direito supõem, recebe interferências das normas sociais, nomeadamente das regras morais e dos costumes. Na seguinte passagem da obra A divisão do trabalho social (1984a [1893]), Durkheim desconstrói a ideia, que considera errada, que a sociedade apenas intervém no âmbito da aplicação do direito para conciliar os interesses privados: «Nada é menos exacto como fazer da sociedade uma espécie de terceiro-árbitro entre as partes (…) o direito é em primeiro lugar coisa social, a qual tem um objecto muito diferente do interesse dos litigantes (…) para apreciar bem a importância da acção social deve-se observá-la não somente no momento em que a sanção se aplica, em que a relação abalada é restabelecida, mas também quando se institui» (Durkheim, 1984a [1893]: 134).

Durkheim considera que nem todas as relações sociais tomam a forma jurídica. Isso só acontece quando a regulamentação da vida em sociedade atinge um determinado grau de consolidação e precisão, que se cristaliza na norma jurídica. Mas há relações sociais que, em vez de serem reguladas pelo direito, são-no pelos costumes, pelo que o jurídico apenas nos fornece parte da vida social. Acresce a este facto que, por vezes, os costumes não estão em concordância com o direito, o que acrescenta um outro problema ao método sociológico, na medida em que se levanta a possibilidade de se manifestarem espécies de solidariedade diferentes daquelas que o direito positivo exprime. O autor responde a este obstáculo frisando que a oposição entre o direito e os costumes «somente se produz em circunstâncias absolutamente excepcionais (…) em casos raros e patológicos, que não podem prolongar-se sem perigo» (Durkheim, 1984a [1893]: 81). A situação mais corrente é, na perspectiva de Durkheim, que os costumes não se oponham ao direito mas que, pelo contrário, lhe constituam a base; e que todas as formas de solidariedade social essenciais e úteis para o sociólogo possam ser conhecidas pela análise do direito positivo, pelo que as relações sociais que apenas são regulamentadas pelos costumes «carecem de importância e de continuidade» (Durkheim, 1984a [1893]: 82). Partindo do pressuposto de que não podemos conhecer cientificamente as causas de um fenómeno senão através das suas manifestações sensíveis e dos efeitos que produzem, há que escolher os efeitos mais objectivos e que melhor se prestam à medida, pelo que Durkheim considera que as diferentes espécies de solidariedade social se exprimem nas diferentes espécies de direito: «O nosso método está assim completamente traçado. Já que o direito reproduz as formas principais da solidariedade social, não temos mais do que classificar as diferentes espécies de direito para procurar em seguida quais são as diferentes espécies de solidariedade social que lhes correspondem. Desde já, é provável que haja uma que simbolize essa solidariedade especial de que a divisão do trabalho é a causa. Feito isto, para medir a importância desta última bastará comparar o número de normas jurídicas que a exprimem ao volume total do direito» (Durkheim, 1984a [1893]: 84).

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A tradicional distinção entre «direito público» (aquele que regula as relações entre o indivíduo e o Estado) e «direito privado» (aquele que regula as relações dos indivíduos entre si) serve os propósitos do jurista, mas não do sociólogo, considera Durkheim, ao observar que em termos sociológicos todo o direito é privado – pois os indivíduos encontram-se em presença e agem – e todo o direito é público, pois este cumpre uma função social e todos os indivíduos são, em alguma medida, «funcionários da sociedade» (Durkheim, 1984a [1893]: 84-5). Seguindo os preceitos do método científico, torna-se necessário estabelecer relações de causa e efeito, pelo que o sociólogo deverá indagar a característica que «sendo essencial aos fenómenos jurídicos, seja susceptível de variar quando eles variam» (Durkheim, 1984a [1893]: 85). Como característica essencial, comum a todos os fenómenos jurídicos, Durkheim encontra o facto do preceito jurídico se referir a uma norma de conduta sancionada. Mas as sanções são variáveis e essa variação depende directamente de factores sociais, tais como: (i) a gravidade atribuída aos preceitos jurídicos; (ii) o lugar que ocupam na consciência pública; (iii) o papel que desempenham na sociedade. A classificação das normas jurídicas que mais se adequa aos objectivos do sociólogo será aquela que deriva das diferentes sanções que lhe estão adstritas. Daí que Durkheim proponha a distinção entre direito repressivo e direito restitutivo. À primeira espécie de direito corresponde o direito penal, que simboliza a «solidariedade mecânica». À segunda espécie de direito, que constituí o elemento externo da «solidariedade orgânica» corresponde o direito civil, o direito comercial, o direito processual, o direito administrativo e o direito constitucional. Nas sociedades tradicionais ou simples o que predomina é a consciência colectiva e é reduzida a autonomia individual. O indivíduo tende a agir conforme os preceitos do grupo e, quando não o faz, o seu desvio será classificado como crime pela colectividade. O laço de solidariedade social a que corresponde o direito repressivo é aquele cuja ruptura constitui o crime, ou seja, todo o acto que determina contra o seu autor uma reacção social traduzida na aplicação de uma pena. Os crimes podem ser diversos, mas na óptica de Durkheim a característica comum a todos os crimes é que estes representam actos universalmente reprovados pelos membros de cada sociedade, isto é, formam uma ofensa aos estados fortes e definidos da consciência colectiva. A consciência colectiva ou comum consiste num sistema de valores que se mantém por muito tempo, ligando gerações sucessivas: «O conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem a sua vida própria» (Durkheim, 1984a [1893]: 98). Nas sociedades primitivas, todo o direito é penal e a justiça repressiva tende a ser praticada pelo povo. Em sociedades mais complexas, certos grupos ou certas personagens – júris, juízes – assumem a função de intérpretes autorizados dos sentimentos colectivos. O direito repressivo exprime ou configura materialmente a solidariedade mecânica, aquela que deriva das semelhanças e que provém do facto de um certo número de estados de consciência serem comuns a todos os membros de uma sociedade. A parte que esta solidariedade tem na integração de uma sociedade depende «da amplitude maior ou menor da

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vida social que a consciência comum abarca e regulamenta» (Durkheim, 1984a [1893]: 130), sendo dominante nas sociedades mais simples e tendendo a ser substituída em importância pela solidariedade orgânica, mais adaptada às sociedades industriais. Para medir a importância relativa deste tipo de solidariedade numa determinada sociedade, bastará ao sociólogo «determinar qual a fracção do aparelho jurídico que representa o direito penal» (Durkheim, 1984a [1893]: 130). A solidariedade social e o tipo de direito predominantes são bastante distintos nas sociedades modernas e industriais, com ampla divisão do trabalho. A sociedade complexa é organizada por um conjunto de funções diferentes, sendo que umas dependem das outras, do mesmo modo que os diferentes órgãos se relacionam de forma estreita. A solidariedade tornou-se uma necessidade inerente à própria divisão do trabalho social e, em simultâneo, há uma maior autonomia individual. Os indivíduos desempenham diferentes funções, compartilham diferentes crenças colectivas em cada agrupamento social e com isso ampliam a sua consciência individual. O direito que predomina neste tipo de sociedade é o direito restitutivo ou contratual, com base na liberdade individual de estabelecer contratos e de receber sanções. O direito regula o complexo corpo social, assim como o sistema nervoso regula as funções do corpo. Quanto mais se desenvolve a solidariedade orgânica, mais diminui a solidariedade mecânica, embora esta continue presente, especialmente em instituições militares e religiosas. 2.1.3. A noção de crime O autor apresenta uma abordagem do crime que se afasta do modelo médico e antropológico do estudo do criminoso e da criminalidade, dominante no séc. XIX, por dois motivos: (i) pela ênfase que coloca nas estruturas sociais para explicar a ocorrência do crime, pondo de lado as causas do crime provocadas por factores individuais; (ii) por excluir qualquer ideia de diferença ou anomalia, na medida em que a sua tese principal é a de que o crime é o resultado do normal funcionamento do sistema e da necessária actualização da força normativa dos seus valores. Os crimes podem ser essencialmente de duas espécies: «ou manifestam uma dissemelhança muito elevada entre o agente que os realiza e o tipo colectivo ou então ofendem o órgão da consciência comum» (Durkheim, 1984a [1893]: 127). Quais são então os caracteres essenciais do crime? Durkheim encontra no acto criminoso três características que se destacam e que servem para o definir: (i) o crime ofende os sentimentos que se encontram em todos os indivíduos normais da sociedade considerada; (ii) estes sentimentos são fortes; (iii) são definidos. Em síntese, o crime é para Durkheim o acto que ofende os estados fortes e definidos da consciência colectiva. Para o autor, o crime é normal, útil e pode promover a mudança social. Normal no sentido de regular, ou seja, não há sociedade humana que não defina determinados actos como crime que merecem ser punidos, afirmando que «não há fenómeno que apresente de maneira mais irrefutável todos os sintomas da normalidade, dado que

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aparece como estreitamente ligado às condições de qualquer vida colectiva» (Durkheim, 1984a [1893]: 86). Útil porque fortalece os vínculos morais através da partilha de sentimentos de indignação face ao acto criminoso, «O crime aproxima assim as consciências honestas e aglutina-as (…) de todas as cóleras que se exprimem, surge uma cólera única (…) que é de toda a gente sem ser de ninguém em particular. É a cólera pública» (Durkheim, 1984a [1893]: 122-3). O crime pode ainda contribuir para a mudança dos valores sociais. A este respeito, os casos da justiça criminal podem, nas sociedades contemporâneas, constituir-se como palco de representação mediática da consciência colectiva, sendo assim potenciais catalisadores de mudança social, mas sem perturbar a continuidade do sistema social (Cottle, 2005). Quando um conflito privado é transformado em problema público através da intervenção dos média, e da função interpretativa dos jornalistas na definição do mesmo, geram-se energias na sociedade passíveis de mobilizar processos de transformação social, ainda que estes tendam a enquadrar-se no sentido de actualizar as normas e os consensos prevalecentes (Cottle, 2005; Sacco, 1995). Daí que a normalidade dos actos criminosos seja vista como uma característica da vida em sociedade em vista à sua mudança, e este aspecto assume particular importância quando Durkheim articula a abordagem do crime com a discussão sobre o estado de anomia em que a sociedade industrial do seu tempo se encontrava. A abordagem durkheimiana do crime ancora-se no conceito de anomia – por via etimológica significa a ausência de normas e falta de referência a regras práticas de vida em sociedade. A teoria da anomia procura apontar as tensões socialmente estruturadas que induzem a ocorrência do crime e a consequente adopção de soluções desviantes. Procura assim descobrir como é que o sistema social produz o crime e o faz como resultado normal – esperado e funcional – do seu próprio funcionamento. 2.1.4. Anomia, direito e solidariedade Associado à discussão do direito restitutivo e da solidariedade orgânica, o autor introduz a abordagem do estado de anomia em que se encontra a sociedade industrial de finais do século XIX. Palco de intensos conflitos sociais, nomeadamente entre empresários motivados pela concorrência e entre estes e os assalariados que lutam por melhores salários, a sociedade do século XIX surge aos olhos de Durkheim desprovida de desenvolvimento moral. Não significa isto que seja uma sociedade vazia de normas e de valores, mas tão-somente que as normas sociais vigentes estão em crise e que o desenvolvimento económico e social não foi acompanhado pelo desenvolvimento moral. Em suma, urge que se criem, instituam e efectivem novos mecanismos de regulação do sistema social. O conceito de anomia tem sido usado para fins extremamente diversificados e numa ampla variedade de contextos. Trata-se de um conceito que assume uma grande importância na linha das teorias sociológicas funcionalistas, nomeadamente no trabalho de Robert Merton (1938) e de Talcott Parsons (1951, 1984).

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A teoria da anomia foi fundada por Émile Durkheim e desde então tornou-se uma das mais prestigiadas abordagens explicativas do crime, tanto na sociologia, como na psiquiatria e nos estudos religiosos e de participação política (Dias e Andrade, 1997: 313). Começou por ser usada por Durkheim como uma hipótese explicativa da ocorrência de uma forma específica de suicídio – o «suicídio anómico» – que, segundo o autor, se deve ao carácter anómico dos processos de regulação social da actividade económica nos mundos industrial e comercial das sociedades modernas. Contudo, o conceito de anomia acabou por adoptar o estatuto de teoria geral da criminalidade e das formas mais variadas de comportamento desviante: alcoolismo, consumo de estupefacientes, doença mental, heterodoxia religiosa e alienação em relação à vida pública3. O conceito de anomia assume dois sentidos diferentes na obra de Durkheim: por um lado, em O suicídio (1992 [1897]) o autor apresenta uma visão pessimista da anomia, entendendo-a como uma situação generalizada de desregramento do sistema, manifestada numa sociedade carecida de ordem normativa para controlar a força desintegradora dos instintos, dos interesses e das ambições individuais. Por outro lado, em A divisão do trabalho social (1984a [1893]), a anomia é uma manifestação «anormal ou patológica» do sistema social, que traduz no essencial desajustamentos entre órgãos sociais e normas associadas a determinados papéis ocupacionais. A concepção de anomia no quadro da abordagem que o autor faz da evolução das sociedades não assumirá tanto uma função desintegradora, como acontece no estudo sobre o suicídio. Na realidade, Durkheim afirma que o normal será que a divisão do trabalho crie solidariedade social. Porém, pode originar o que chama perturbações anormais ou patológicas do sistema, decorrentes de conflitos entre o trabalho e o capital. Assim sendo, a anomia, e mais especificamente o crime, assumirá o papel de sintoma da perda de legitimidade das regras que antes comandavam as condutas, revelando a necessidade de renovação do sistema. A anomia é apontada como a causa social do desvio, da não aplicação da norma social (ou legal) por parte de indivíduos socialmente classificados como desviantes. Neste sentido, a anomia é entendida como um problema de desadaptação das populações, em particular dos desviantes ou criminosos, às turbulências da vida moderna (Dores, 2004: 16). Trata-se assim de procurar descortinar como certas estruturas sociais exercem tensões sobre algumas pessoas da sociedade, no sentido de se envolverem em actividades criminosas ou desviantes. Mas Durkheim concebe também o crime como o resultado normal do funcionamento do sistema social e da imperiosa necessidade de actualização da força normativa dos seus valores. De facto, afirma Durkheim, que o crime é útil, não só por expressar a autoridade limitada da consciência colectiva, mas também por poder constituir um factor de mudança (3) Convém precisar que em Durkheim este conceito assume um carácter macrossociológico, sendo a anomia entendida como a propriedade de um sistema social e não um «estado de espírito» deste ou daquele indivíduo dentro do sistema.

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moral. No entanto, acima de tudo, o autor reconhece a utilidade do crime como factor de reafirmação da solidariedade colectiva, expressa na condenação ritual do criminoso. Ao afirmar que criminosos sempre existirão em qualquer sociedade e que o seu comportamento desempenha funções sociais de criatividade e de inovação do sistema, por provarem a falta de legitimidade e actualidade das regras de conduta, Durkheim está a afirmar que nem todo o crime é anómico: só o é quando o crime corresponde a uma crise de coesão social, em que as taxas de criminalidade se situam em valores acima do socialmente esperado e tolerável. Nesse caso, o crime atingirá formas anormais ou mórbidas, incompatíveis com a vida social. Durkheim apresenta uma visão normativa da sociedade no sentido de enfatizar a necessidade de se criar uma nova moral – de que a administração de justiça será o principal executante – capaz de acabar com o estado de anomia da sociedade industrial. «Há sobretudo um órgão face ao qual o nosso estado de dependência vai sempre crescendo: o Estado. Os pontos em que estamos em contacto com ele multiplicam-se, assim como as ocasiões em que lhe incumbe chamar-nos ao sentimento da solidariedade comum» (Durkheim, 1984a [1893]: 261).

Numa sociedade em que a moral religiosa e familiar se está a desagregar, uma nova forma de moralidade – laica – terá que surgir e se consolidar: uma nova moral que pode assumir diferentes formas, desde a nova moral profissional através da criação de corporações que possibilitem a produção de novos vínculos de solidariedade; uma moral cívica, garantida pelo Estado através da educação pública; uma moral geral também, garantida pelo Estado através do aparelho de justiça e das instâncias públicas de controlo e de punição, e com a função de desenvolver o sentimento da solidariedade comum. Na contemporaneidade, a ideia de estabelecimento de uma nova moral preconizada por Durkheim a partir da expansão da esfera da justiça, assume formas híbridas. Neste sentido, assistimos à disseminação de formas plurais de direito (Santos, 2000) e ao papel dos média como forma de poder não-eleito capaz de dizer o direito. Ou melhor, através da representação que faz da moral e do direito, os média podem projectar na opinião pública as representações daquilo que é bom e justo e, por essa via, reforçar o sentimento da solidariedade comum, em concorrência ou colaboração com o Estado. A administração da justiça terá ainda como um dos objectivos principais garantir as condições de reprodução e continuidade do modelo social vigente, controlando e limitando os efeitos desagregadores que a criminalidade e o conflito provocam na sociedade. Pensando no papel e presença do crime nas sociedades actuais, é importante reflectir como as imagens mediáticas do crime se traduzem frequentemente em retratos anormais e distorcidos da realidade criminal, particularmente no que respeita ao volume e grau de violência (Jewkes, 2004; Surette, 1998), sem contudo provocar crises de coesão social. Assim, no sentido proposto por Durkheim, as notícias sobre crime convocam a adesão emocional e a reacção moral das audiências, podendo os média contribuir para o

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reforço dos laços sociais em risco pela reafirmação dos valores e da ordem social (Katz, 1987; Surette, 1998). Durkheim deixou ainda um legado importante para a desconstrução das mensagens veiculadas pelos média no que toca à criminalidade. O autor chama a atenção da importância das estruturas sociais na ocorrência e explicação do crime e da necessidade de actualizar a força normativa do sistema social. Por contraste, os média nas sociedades actuais tendem a acentuar a responsabilidade individual e o carácter de deficiência moral atribuído aos criminosos (Jewkes, 2004). Jack Katz (1987) argumenta que os significados sociais do crime se alteraram significativamente desde o século XIX e, por esse motivo, devemos olhar com algum cepticismo a função social do crime proposta por Durkheim. O drama e efervescência pública das execuções achou-se transferido para o drama das detenções e dos julgamentos, ao mesmo tempo que a punição foi afastada para a privacidade do cárcere. Actualmente, devido à «emocionalização» dos discursos sobre o crime e a justiça (Karstedt, 2002), parece assistir-se a um retorno à visibilidade pública da punição, assumindo esta a forma de «julgamentos mediáticos» que levam frequentemente à estigmatização dos alegados criminosos e proporcionam a expressão pública de indignação e repulsa moral. 2.1.5. Funções sociais da pena Na perspectiva de Durkheim, a pena e o direito penal têm como função principal proteger a sociedade do enfraquecimento da solidariedade mecânica e manter a coesão social que resulta das similitudes sociais mais essenciais. Tudo o que contribui para abalar os sentimentos colectivos abala ao mesmo tempo a coesão social e compromete a sociedade. Pela pena e pela noção de expiação há a ideia de uma satisfação concedida a um poder – a consciência colectiva – que é superior ao indivíduo e que de algum modo o transcende: «Quando reclamamos a repressão do crime, não é que queiramos pessoalmente vingar, mas é qualquer coisa de sagrado que sentimos mais ou menos confusamente fora e acima de nós (…) Eis porque o direito penal não somente é na origem essencialmente religioso, mas ainda contém sempre uma certa marca de religiosidade: é que os actos que ele castiga parecem ser atentados contra qualquer coisa de transcendente, ser ou conceito» (Durkheim, 1984a [1893]: 120).

A punição penal assume um papel de certo modo ilusório, que é vital para a coesão social e para o sentido individual de pertença à sociedade: quando é atribuída uma pena a um criminoso, num certo sentido os elementos da sociedade sentem que são eles a «vingarem-se»: «num certo sentido somos bem nós que nos vingamos, nós que nos satisfazemos, pois que é em nós, e apenas em nós, que se encontram os sentimentos ofendidos. Mas esta ilusão é necessária» (Durkheim, 1984a [1893]: 120). A reacção penal – a escolha da sentença e a modalidade da sua aplicação – não é sempre a mesma, dependendo não só do crime em si, mas também do que Durkheim chama «a

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vivacidade do sentimento ofendido» (Durkheim, 1984a [1893]: 121). O autor considera que a reacção penal tem um carácter social, que deriva da natureza social dos sentimentos ofendidos. E social significa geral e colectiva, ou seja, «não se produz isoladamente em cada um de nós, mas conjuntamente e em unidade» (Durkheim, 1984a [1893]: 122). A extrema importância que Durkheim confere à coesão social leva-o a considerar que a pena é extremamente útil – «Eis porque é bom, em geral, que os actos que os ofendem [os sentimentos colectivos] não sejam tolerados» (Durkheim, 1984a [1893]: 128). Mas salienta que as normas penais devem ser alteradas à medida que também a consciência colectiva se modifica, ou seja, a norma penal só tem razão de ser quando corresponda a algum sentimento colectivo ainda vivo e enérgico, deixando de fazer sentido se este enfraqueceu ou desapareceu. Em relação à função da pena, o autor considera que esta serve sobretudo para reforçar a coesão social, fazendo o criminoso sofrer pelo mal que fez à sociedade. O papel de cura das feridas colectivas surge-lhe como muito mais útil do que a função de prevenção e dissuasão do criminoso ou de correcção de comportamentos: «A sua verdadeira fuoção está em manter intacta a coesão social, mantendo toda a sua vitalidade à consciência comum. Tão categoricamente negada, esta perderia necessariamente energia se uma reacção emocional da comunidade não viesse compensar essa perda, e daí resultaria um abrandamento da solidariedade social. É preciso assim que ela se afirme com força no momento em que é contestada e a única maneira de se afirmar é exprimir a aversão unânime que o crime continua a inspirar, através de um acto autêntico que só pode consistir num sofrimento infligido ao agente» (Durkheim, 1984a [1893]: 128).

Quais são então os caracteres essenciais da punição penal?: (i) é uma reacção passional de intensidade graduada; (ii) esta reacção passional emana da sociedade, refutando-se a teoria segundo a qual a vingança provada teria sido a forma primitiva da pena; (iii) esta reacção colectiva deixa de ser difusa porque se exerce por intermédio de um corpo constituído, o aparelho jurídico-legal, que simboliza a interpretação autorizada dos sentimentos colectivos. Daqui decorre que o órgão autorizado para aplicar a reacção passional que suscita todo o sentimento forte ofendido – o aparelho de justiça – detenha uma utilidade imprescindível à vida em sociedade: a aplicação da punição penal serve para manter a coesão social, ao mesmo tempo que a determinação e utilização da expiação assume um carácter quase religioso. «É suficiente ver nos tribunais como funciona a pena, para se reconhecer que o móbil é inteiramente passional; pois é a paixões que se dirigem quer o magistrado, que acusa, quer o advogado, que defende. Este procura suscitar a simpatia pelo culpado, aquele despertar sentimentos sociais que o acto criminoso ofendeu, e é sob a influência destas paixões contrárias que o juiz sentencia» (Durkheim, 1984a [1893]: 109).

O desenvolvimento da solidariedade orgânica e do direito restitutivo foi acompanhado pela maior divisão do trabalho social no seio dos próprios órgãos que administram a justiça:

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«Enquanto o direito repressivo tende a permanecer difuso na sociedade, o direito restitutivo cria órgãos cada vez mais especiais: tribunais consulares, comissões de conciliação e tribunais administrativos de toda a espécie. Mesmo na sua parte mais geral, isto é, o direito civil, ele não é aplicado senão graças a funcionários particulares: magistrados, advogados, etc. que se tornaram aptos para este papel graças a uma cultura muito especial» (Durkheim, 1984a [1893]: 133).

Ao contrário da sanção penal, que assume uma natureza expiatória, a sanção restitutiva representa uma reposição das coisas: «As penas e danos não têm carácter penal; é apenas um meio de voltar ao passado para o restituir tanto quanto possível à sua forma normal» (Durkheim, 1984a [1893]: 131).

2.2. Contributos de Émile Durkheim para o debate da justiça restaurativa A abordagem de Durkheim deixa contributos importantes para o debate de questões que têm estado no epicentro da discussão dos rumos da justiça na contemporaneidade, nomeadamente, a informalização e a desjudicialização da justiça e a implementação de políticas públicas de reinserção social. No âmbito da modernização e reforma da justiça uma das problemáticas mais prementes é a procura de soluções para o desajustamento entre a procura e a oferta de justiça nos tribunais judiciais, pela construção daquilo que alguns autores designam como uma «justiça de proximidade» (Pedroso et al., 2003; Gonçalves et al., 2007). Comum a muitos países é a crescente juridificação das sociedades que surge acompanhada pela incapacidade de resposta à procura da parte dos tribunais e pela concentração da litigação judicial em litígios sem conflito ou de baixa intensidade (Santos et al., 1996, 1998; Santos, 2001; Pedroso, 2001). Este contexto tem vindo a convocar os governos de diferentes países europeus a desenvolverem programas de reforma da administração da justiça, em que um dos pontos é precisamente tentar construir um modelo assente nos princípios de informalização e desjudicialização da justiça. Aquilo que Galanter (1993) refere ser «o direito em abundância» tem-se convertido numa crescente juridificação da sociedade, ou seja, conversão em potencial processo jurídico de vários domínios da vida económica e social. Face aos recursos limitados dos tribunais, essa crescente juridificação surge como excessiva e percebida como uma das causas principais da agora crónica morosidade, inacessibilidade e ineficiência (Santos et al., 1996; Ferreira e Pedroso, 1997), criando a tão propalada «crise da justiça» (Barreto, 2000). Reclama-se assim uma reforma da justiça que assuma «uma nova relação (alternativa, complementar e substitutiva) entre os meios não judiciais de resolução de litígios e o sistema judicial, que não será de exclusão mas, pelo contrário, de inclusão» (Pedroso et al., 2003: 11). A possibilidade de integrar na política pública de administração da justiça os princípios da informalização e da desjudicialização pressupõe admitir o pluralismo jurídico (o direito e a

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justiça como podendo emanar de outros sectores da sociedade que não apenas o Estado) e aceitar que possam ser aplicados meios não judiciais de resolução de litígios. Esta justiça alternativa ou informal pode surgir sob a forma de alternativa aos tribunais (resolvendo litígios que também os tribunais dirimem), como também na modalidade de complemento (para os litígios que não chegam a tribunal) ou de substituto (quando há transferência de competências de resolução de conflitos dos tribunais para estes meios) (Pedroso et al., 2003: 418). Independentemente da forma de organização e de relacionamento com os tribunais que a resolução alternativa de litígios possa assumir, tem sempre como pilares o consenso, a reparação, a negociação e a «justiça em comunidade». Por outro lado, apresenta a pena de prisão como a alternativa última de responder ao crime, apostando nas penas alternativas (pena de multa, prestação de serviço à comunidade e outras reacções não detentivas). Isto como meio não só de optimizar as vias de reinserção social do delinquente, mas também de promoção de uma nova abordagem ao crime e conflito, assente no princípio da necessidade de envolver as vítimas, os delinquentes e a colectividade na reparação colectiva do mal causado. Esta ideia de justiça em comunidade tem sido criticada por muitos como detentora de uma «ideologia da harmonia» que repousa sobre a negação dos conflitos, a assumpção de que todos partilham dos mesmos valores e crenças e que não tem em conta as desigualdades de poder (Bonafé-Schmitt, 1992). Mas note-se, também, que se trata de uma resposta que favorece a colaboração de todas as partes e que pode facilitar a reintegração de delinquentes. Estes princípios de preferência pela resposta colectiva e integradora ao crime, em vez da coerção, encontrámo-los na discussão que Durkheim elabora da solidariedade orgânica. Constitui também a pedra de toque de movimentos de «justiça restaurativa», surgidos no Canadá nos anos setenta do século XX, que promovem a participação de todos os cidadãos na administração da justiça, pela via de soluções alternativas à prática jurídica tradicional: medidas como a reparação do crime, programas de intervenção juntos das vítimas e das famílias e de mediação entre as vítimas e o delinquente. Trata-se de construir a restauração – que Durkheim discute no âmbito do que chama «direito restitutivo» – no sistema do direito penal, em detrimento da coerção e punição (Llewellyn e Howse, 1999; Bucqueroux, 2004). Em Portugal, a Lei n.º 21/2007 de 12 de Junho criou um regime de mediação penal relativa ao estatuto da vítima em processo penal, que procura fomentar a função de inserção comunitária tanto da vítima como do arguido (Brito, 2007), pela construção de um acordo das duas partes, que preveja a aplicação de medidas não privadoras da liberdade do arguido (pedido de desculpas, pagamento de uma quantia em dinheiro, reabilitação do arguido pela frequência de cursos de formação, por exemplo). O estabelecimento do acordo é feito por intermédio do Ministério Público e aceita-se a figura do «mediador penal», pessoa habilitada com um curso de mediação penal reconhecido pelo Ministério da Justiça (art.º 12.º, alínea e). Outro exemplo de aplicação do conceito de «justiça restaurativa» em Portugal refere-se à Lei Tutelar Educativa (Lei n.º 166/99, 1999-2001) que, além de assentar no papel educativo e socializador do Estado, promove a aplicação de medidas tutelares educativas alternativas ao internamento do jovem (12 a 16 anos) delinquente em centros educativos. A aplicação de medidas tutelares educativas – por exemplo, admoestação, reparação ao ofen-

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dido, prestação de serviços à comunidade, frequência de programas educativos – «visam a educação do menor para o direito e a sua inserção, de forma digna e responsável, na vida em comunidade» (n.º 1, do art.º 2.º). Se a aplicação das penas alternativas ou de substituição em detrimento da pena privativa de liberdade se revelarem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição (Dias, 1993: 331), projecta-se um sentido reeducativo e pedagógico que visa socializar ou ressocializar o delinquente no sistema social. Mas também pressupõe o envolvimento activo da comunidade, convocada a envolver-se na aplicação desse tipo de medidas, nomeadamente no contexto da aplicação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade ou de suspensão da pena com imposição de deveres ou regras de conduta (Rosa, 2000). No âmbito da implementação de uma justiça «restaurativa» em Portugal, refira-se ainda o papel dos Julgados de Paz. São tribunais extrajudiciais (a par com os tribunais marítimos e tribunais arbitrais), previstos ao abrigo do n.º 4 do art.º 202.º e do n.º 2 do art.º 209.º da Constituição da República Portuguesa. Em matéria cível, os julgados de paz têm «competência para todas as causas que lhe sejam apresentadas entre as partes interessadas, sem qualquer limite de valor e de matérias, desde que não sejam de competência exclusiva de outros tribunais» (Pedroso et al., 2003: 429). Em matéria penal, têm competência para julgar pequenos crimes, tais como furtos, ameaças e injúrias. A justiça restaurativa é encarada como um instrumento para a realização da justiça no quotidiano, apresentando-se assim como mais acessível ao cidadão comum. No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329/2001 que estabelece o regime de funcionamento e a organização dos julgados de paz é referido que pela criação deste mecanismo de justiça visa-se «progredir para a construção de novos modelos em que a administração da justiça haverá de ser caracterizada por mais acessibilidade, proximidade, celeridade e informalidade, a benefício dos cidadãos». O conceito de solidariedade orgânica proposto por Durkheim apresenta um potencial analítico relevante para a compreensão da introdução de novos modelos de administração da justiça e da abordagem da sociedade e dos próprios legisladores e julgadores relativamente aos crimes de menor potencial ofensivo. Como já foi amplamente desenvolvido em secções anteriores deste livro, Durkheim conclui que a divisão do trabalho é a principal fonte de solidariedade social, simbolizada externamente pelo direito. Nas sociedades mais desenvolvidas e complexas, predomina o que chama solidariedade orgânica, à qual corresponde a dominância das sanções restitutivas em detrimentos das sanções repressivas. Ou seja, enquanto as sanções repressivas se afiguram como características do direito penal, e visam atingir o agente do crime na sua honra, fortuna, liberdade ou privação de algo de que desfrute (podendo ser a privação da própria vida); as sanções restitutivas visam a reparação do status quo, ou seja, «o restabelecimento das relações perturbadas sob sua forma normal, quer pela recondução à força ao tipo de que desviou, quer pela sua anulação (privação de todo e qualquer valor social)» (Mazur, 2003: 142). O direito restitutivo assume, assim, uma motivação restaurativa e não a expiação. Além disso, assenta na cooperação de agentes heterogéneos, cada um com a sua função especiali-

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zada e a sua esfera própria de acção. Mas essa diferenciação dos indivíduos torna-os também cada vez mais dependentes dos outros, motivo pelo qual a coesão que resulta deste tipo de solidariedade é muito mais forte. Se o direito criminal é repressivo por excelência, à luz do modelo aqui discutido de justiça restaurativa, a modernização do direito criminal vai passar a expressar, sob determinadas circunstâncias, o espírito restitutivo associado ao conceito de solidariedade orgânica proposto por Durkheim. Por outras palavras, a criação de uma justiça de proximidade e assente nas penas alternativas ou de substituição em detrimento da pena privativa de liberdade visa aproximar-se das reais necessidades da sociedade, procurando um meio-termo entre a descriminalização e a sanção originariamente estipulada, se se considerar que esta se revela incompatível com a resposta jurídica considerada adequada. Trata-se, enfim, de garantir a intervenção mínima do direito penal e o princípio da proporcionalidade, o que torna os julgados de paz e as penas alternativas ou de substituição da prisão uma forma de expressão da solidariedade orgânica pela via da reparação do dano causado, reservando-se a pena de privação da liberdade àqueles cuja convivência social seja de tal maneira prejudicial à colectividade que se justifique a sua segregação (Mazur, 2003: 146). Encontramos no debate actual em torno da justiça de proximidade e da reinserção social um problema de gestão social, de controlo social e mesmo de ordem moral. Retomando o conceito de anomia em Durkheim e a sua aplicação na abordagem sociológica do sistema de justiça, podemos elaborar duas leituras distintas (Dores, 2004): numa versão mais usada da anomia, esta representa a causa social do desvio, do não reconhecimento da norma legal, justificando assim uma reacção social pela qual a pena de prisão seria o castigo julgado adequado à gravidade da falta. Neste sentido a anomia é também entendida como resultado de uma incapacidade de determinados indivíduos se adaptarem ao sistema, nomeadamente às «turbulências da modernidade», surgindo como uma espécie de «efeitos colaterais do desenvolvimento humano e social em indivíduos oriundos de grupos sociais que se opõem à modernização» (Dores, 2004: 16). Uma segunda leitura possível do conceito de anomia, e que consideramos mais proveitosa para a explicitação da argumentação que temos vindo a desenvolver, é aquela que enfatiza que o crime pode desempenhar funções sociais de inovação e de criatividade, com proveito funcional, sempre que as taxas de criminalidade se situem em valores socialmente toleráveis. Ainda segundo Durkheim, os conflitos sociais tenderiam cada vez mais a resolver-se de forma restitutiva em vez de punitiva, à medida que as sociedades se desenvolvessem. Esta posição optimista de Durkheim, que encontramos hoje reproduzida nos defensores da justiça restitutiva, entra em chocante confronto com as estatísticas prisionais, que nos mostram a tendência cada vez maior para a formação de «sociedades penitenciárias» (Wacquant, 2000, 2007) e para as dificuldades até hoje sentidas, tanto na aplicação de punições alternativas à prisão, como na promoção da reinserção social dos reclusos pela insuficiente aposta nos meios e competências necessárias e adequadas para que não cometam novos crimes uma vez saídos em liberdade (Santos et al., 2003; Carlen, 2007).

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Relações sociedade-solidariedade-direito segundo Durkheim

Sociedade

Segmentária

Tipos sociais

Semelhantes

Diferenciada

Dissemelhantes

Mecânica

Solidariedade

Orgânica

Penal

Direito

Contratual

Repressiva

Reprovação, censura, punição

Sanção

Objectivo da sanção

Restitutiva

Restauração, restabelecimento

Actividade de reflexão e debate: Nos dias de hoje, os média têm um papel fundamental na difusão de arquétipos de criminoso (assim como de vítima, de vilão e herói, etc.). Quando mediatizadas, as punições dirigidas aos criminosos assumem frequentemente um papel de reforço do sentido de pertença à comunidade dos cidadãos cumpridores. Discuta a função da punição penal, na sua articulação com os média, no que diz respeito à construção social, respectivamente, do que Durkheim chamaria consciência colectiva e solidariedade social.

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Direito, Justiça e Média – Tópicos de Sociologia

3. O DIREITO COMO MODO DE ESTABELECIMENTO DO PODER LEGÍTIMO E DA DOMINAÇÃO – O CONTRIBUTO DE MAX WEBER Esta secção visa: – identificar o papel do direito no desenvolvimento das sociedades modernas; – localizar a forma de dominação do direito como fonte de legitimidade assente no poder carismático dos profissionais do foro jurídico; – captar as modalidades pelas quais o método sociológico visa compreender o sentido que os indivíduos estabelecem em relação às leis e à ordem jurídica, determinando até que ponto e como as pessoas orientam as suas condutas por referência a estas; – compreender o princípio teórico basilar da sociologia do direito e da justiça no processo de racionalização do Estado moderno e do direito; – descrever os tipos de direito e a racionalização formal e material do direito; e as relações entre a legalidade e a legitimidade; – aplicar os conceitos de poder carismático, fonte de autoridade e legitimidade na análise das relações entre os sistema de justiça criminal e os meios de comunicação social.

3.1. A sociologia do direito e da justiça de Max Weber como sociologia da dominação Max Weber (1864-1920) foi um académico alemão, jurista, economista, considerado um dos fundadores da sociologia. O seu papel na formação da sociologia do direito e da justiça foi relevante, por defender a autonomia deste ramo do saber em relação à ciência jurídica, embora a sua postura se afaste de alguns dos pensadores que mais marcaram o início da sociologia do direito, tanto daqueles que reivindicavam uma total separação do direito e da sociedade, nomeadamente Hans Kelsen4; como daqueles, como Durkheim, que encaravam o direito como uma manifestação exterior da solidariedade social, objecto de estudo da sociologia. Não será demasiado afirmar que, dos fundadores da sociologia, Weber foi quem mais atenção dedicou ao direito e ao processo de racionalização da administração da justiça, embora o seu contributo para o que poderemos aqui denominar como a sociologia do direito e da justiça seja muitas vezes negligenciado (Rojo e Azevedo, 2005). Weber define a sociologia do direito como o estudo externo das características empíricas do papel do direito na sociedade, referindo que diferente será o estudo do direito a partir de uma visão interna, a levar a cabo por juristas (Deflem, 2007). No capítulo VII de Economia e sociedade (Weber, 1984 [1919-1922]), intitulado «Economia e direito (Sociologia do

(4) Hans Kelsen (1881-1973), jurista austro-americano, ficou conhecido por tentar construir uma «teoria pura do direito», universalmente válida. Na sua perspectiva positivista, a ciência jurídica devia excluir do seu objecto a própria justiça, por esta comportar valores. Estes últimos deviam ser objecto de estudo da sociologia e não do direito.

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direito)», o autor começa por defender a necessidade de se observar com rigor a diferença entre a ciência jurídica e a sociologia do direito. Enquanto o ponto de vista jurídico versa sobre o direito, preocupando-se com o sentido normativo – o «dever-ser» (sollen) – a que corresponde um predicado verbal concretizado na norma jurídica; o ponto de vista sociológico interroga-se sobre o facto que ocorre – o «ser» (sein). Sobretudo, convoca para o estudo do direito na sociedade o conceito de acção social. Ou seja, a partir do momento em que Weber refere que, dada a possibilidade de os indivíduos que participam na acção considerarem subjectivamente como válidas ou não determinadas normas e face a essa interpretação orientarem as suas condutas, resulta que «interessam-nos (…) as repercussões qualitativas na esfera de disposições do indivíduo, através das normas jurídicas de um determinado tipo» (Weber, 1984 [1919-1922]: 533, tradução dos autores). Considerando que o direito e a administração da justiça representam sobretudo uma instância de coacção estatal que pretende ser fonte «legítima» de si mesma e que formalmente se apresenta como servindo todos de «modo equitativo», Weber descortina a lógica de dominação presente na instituição jurídica, principalmente por via das acções dos actores que pertencem àquilo que chama a «comunidade jurídica». Ou seja, o direito produz uma acção social pela qual uma das partes impõe e a outra consente, de modo mais ou menos forçado (devido à existência de uma coacção jurídica que pode ser ou não aplicada). Como explicita Weber na seguinte passagem do capítulo sobre a «Sociologia do direito» em Economia e sociedade (1984 [1919-1922]), a forma de dominação pelo direito assenta, em grande medida, no poder carismático dos profissionais do foro jurídico, mas alcança legitimidade pelo sentimento de equidade que é transmitido aos indivíduos sobre os quais o poder jurídico é exercido: «Onde existe a comunidade jurídica, o carácter formal do direito e da aplicação do mesmo é amplamente cuidado, pois a aplicação não depende do arbítrio ou dos sentimentos e emoções daqueles para os quais é aplicado, já que não pretende “servi-los”, mas dominá-los, pelo que surge como um produto da revelação dos possuidores da sabedoria jurídica. Mas esta sabedoria, como todo o autêntico poder carismático, tem que “reafirmar-se” através da sua força persuasiva, o que leva a que o sentimento de “equidade” e a experiência quotidiana dos membros da comunidade jurídica exerça uma influência bastante eficaz» (Weber, 1984 [1919-1922]: 530, tradução dos autores).

Para o autor, a sociologia é uma ciência que procura compreender a acção social, que implica a compreensão do sentido que cada indivíduo atribui à sua própria conduta. A abordagem sociológica centra-se basicamente na compreensão do significado que os indivíduos dão aos seus actos e sua subsequente explicação, sendo necessário considerar os princípios, os valores ou outros factores (políticos, económicos e religiosos) que orientam esses comportamentos, o que claramente sai do âmbito do ângulo jurídico. Embora a sociologia do direito se possa socorrer de conceitos jurídicos, para levar a cabo a tarefa de compreender (verstehen, apreender o sentido), interpretar (deuten, dar conceptualmente conta da acção)

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Direito, Justiça e Média – Tópicos de Sociologia

e explicar (erklären, estabelecer relações de causa e efeito), necessita de conceitos próprios e de elaborações teóricas sujeitas a verificações empíricas. Como já referido, a sociologia de Weber define-se como um esforço destinado a compreender interpretativamente a acção social, ou seja, implica a percepção do sentido que o actor atribui à sua conduta: «Entendemos por sociologia (no sentido em que se toma esse termo tão ambiguamente utilizado) uma ciência que se propõe compreender interpretativamente a acção social, para deste modo a explicar causalmente no seu desenrolar e nos seus efeitos» (Weber, 1988a [1912]: 584).

Por «acção» Weber entende toda a conduta humana (Verhalten) em que o sujeito ou os sujeitos da acção lhe dão um sentido subjectivo: «Por acção entendemos aqui um comportamento humano (…) sempre e contanto que o agente ou agentes lhe associem um sentido subjectivo» (Weber, 1988a [1912]: 584). Uma acção é social, organizando-se em relação social (soziale Beziehung), quando o sentido pensado pelo seu sujeito ou sujeitos se refere à conduta de outrem, por esta se orientando no seu desenrolar. Conjuga o conceito de acção social com duas assumpções teóricas fundamentais: por um lado, considera que existe uma influência dos valores e das crenças nas condutas humanas e nas organizações sociais; por outro lado, entende que se as condutas dos actores sociais se orientam regularmente umas face às outras, sendo necessário algo que condicione a regularidade de tais relações sociais. Weber encontra essa regularidade nos costumes, quando tal relação é fruto de uma longa tradição; nas convenções, quando a sanção que corresponde à sua violação representa uma desaprovação colectiva; e no direito, quando a sanção assume a forma de coerção física. A regularidade das relações sociais associa-se à noção de probabilidade, ou seja, o comportamento nunca é totalmente previsível. Se os indivíduos se comportam de determinada maneira porque têm em consideração, por exemplo, as normas jurídicas, isto é, sem dúvida, um componente essencial, e empiricamente verificável, da perduração e estabilidade da ordem jurídica. Assim, interessará à sociologia do direito e da justiça, do ponto de vista de Weber, compreender o sentido que os indivíduos estabelecem em relação às leis e à ordem jurídica, determinando até que ponto e como os indivíduos orientam as suas condutas por referência a estas. A explicação da importância crescente do direito e da administração da justiça e das leis e da ordem jurídica na orientação das condutas dos indivíduos tem como fio condutor, do ponto de vista do autor, a constatação que nas sociedades capitalistas aumentaram consideravelmente «as exigências da vida jurídica» (Weber, 1984 [1919-1922]: 531). Contudo, as características do mundo jurídico dependem mais das experiências e conhecimentos especializados dos profissionais do direito do que das condições económicas ou do processo de racionalização em geral, defendendo assim a autonomia relativa do direito e da administração da justiça:

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«Um direito pode ser racionalizado em diversas formas, e não necessariamente na direcção que implica a dispersão das suas qualidades propriamente “jurídicas”. Contudo, a direcção em que estas qualidades formais se desenvolvem encontra-se directamente condicionada por circunstâncias que poderíamos designar por “intrajurídicas”, a saber, a peculiaridade do círculo de pessoas que podem influir profissionalmente na formação do direito e apenas indirectamente nas condições económicas e racionais de carácter geral» (Weber, 1984 [1919-1922]: 531, tradução dos autores).

Torna-se agora claro que os pontos de vista jurídico e sociológico são necessariamente distintos em virtude das diferenças metodológicas: enquanto a ciência jurídica se baseia no método lógico-normativo, a sociologia utiliza o método empírico-causal. O método da ciência jurídica intenta verificar no interior de um conjunto de regras abstractas a compatibilidade lógica das normas num ordenamento jurídico. O método empírico-causal analisa as acções dos indivíduos face a um sistema de regras «avaliando a potencialidade de suas condutas subsumirem aquelas disposições, ou ainda, orientarem-se segundo o conteúdo da norma, ainda que não cumprindo o disposto nela» (Silveira, 2006: 173). Por outras palavras, para Weber, enquanto a ciência jurídica se situa no plano ideal da vigência pretendida, a sociologia do direito orienta-se para os acontecimentos reais em que o direito mais não representa do que uma ordem que detém certas garantias específicas da probabilidade da sua vigência empírica. O princípio teórico basilar da sociologia do direito de Weber reside no que designa processo de racionalização do Estado moderno e do direito. E, de acordo com esse projecto científico, Weber vai empreender dois eixos centrais de investigação: os tipos de direito e a racionalização formal e material do direito; e as relações entre a legalidade e a legitimidade. 3.1.1. A racionalização do Estado e do direito nas sociedades modernas A sociologia do direito e da justiça de Weber é indestrinçável do seu posicionamento político e da sua identificação com o projecto de dominação económica e política da burguesia na Alemanha, no início do século XX. Na visão do autor, o direito expressa a racionalidade económica representada pela burguesia, e a passagem da dominação tradicional para a dominação jurídico-racional facilitaria, a seu ver, o acesso da burguesia a uma posição dominante. O direito como princípio de organização social desempenhou um papel privilegiado na racionalização do Ocidente e na legitimação da dominação de tipo racional-legal, enquanto forma mais difundida de institucionalização do poder nas sociedades modernas. Na perspectiva do autor, a substituição em muitas sociedades europeias da monarquia por democracias republicanas reforça a substituição da dominação tradicional pela dominação racional-legal. No entanto, mesmo nesta última subsistem elementos do que Weber denomina dominação carismática e até tradicional. A abordagem do direito e da ordem jurídica está directamente relacionada com os conceitos de poder e de dominação desenvolvidos por Weber. Se poder significa «a possibili-

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dade que um homem ou uma pluralidade de homens tem de fazer prevalecer a sua própria vontade numa actuação comunitária, mesmo contra a resistência de outros intervenientes» (Weber, 1988a [1912]: 737), o poder do direito reside na probabilidade de impor a própria vontade no contexto de uma relação social de âmbito jurídico-legal. O autor considera que todo o ordenamento jurídico (e não apenas o «estatal») influi directamente na divisão de poder no seio de uma dada comunidade, quer se trate de poder económico, de poder social ou honra social ou de poder político. No entanto, o ordenamento jurídico pode não ser a fonte primária desses distintos tipos de poder. E refere o caso concreto do «poder social», referindo que o jurídico pode garanti-lo mas normalmente não constitui a sua base principal, «embora também aqui represente um factor adicional que aumenta a possibilidade de o deter, sem porém o poder assegurar» (Weber, 1988a [1912]: 737-8). O conceito de poder conduz-nos ao conceito de dominação. Enquanto o poder (Macht) significa a probabilidade de um actor impor a sua vontade a outro, mesmo contra a resistência deste; dominação (Herrschaft) remete para a probabilidade que um senhor (Herr) tem de contar com a obediência daqueles que em teoria lhe devem obedecer: «Chamar-se-á dominação segundo a definição dada à probabilidade de encontrar obediência a ordens específicas (ou a todas as ordens) por parte de um dado grupo de pessoas» (Weber, 1988a [1912]: 681). A diferença fundamental entre poder e dominação é que, no primeiro caso, a imposição não é necessariamente legítima, enquanto no segundo caso a probabilidade de obediência se fundamenta no reconhecimento de quem dá as ordens da parte de quem obedece. As motivações para o cumprimento das ordens podem ser diversas: desde a habituação a considerações puramente racionais. Mas, independentemente do tipo de dominação e legitimidade, toda «comporta um mínimo de vontade de obedecer, e por conseguinte, de interesse (exterior ou interior) em obedecer» (Weber, 1988a [1912]: 681). Na obra Economia e sociedade (Weber, 1984 [1919-1922]), Weber distingue três tipos de dominação e legitimidade: tradicional, carismática e racional. A tipologia baseia-se principalmente no tipo de motivação que orienta a obediência. Assim, na dominação de tipo tradicional a obediência orienta-se para o «senhor do poder» e fundamenta-se «na santidade de tradições válidas desde tempos imemoriais e na legitimidade daqueles que por elas são chamados à autoridade» (Weber, 1988a [1912]: 685). A dominação carismática baseia-se nas qualidades extraordinárias do chefe carismaticamente qualificado como tal, «assentando na entrega extra-quotidiana à santidade, heroicidade ou exemplaridade de uma pessoa, e nas ordenações por ela reveladas ou criadas» (Weber 1988b [1919-1922]: 685). Por fim, a dominação racional remete para o jurídico, dizendo respeito à autoridade fundada na legalidade da ordem social e nos títulos dos profissionais que exercem a dominação, em suma, na obediência ao superior impessoal, à lei. A dominação racional ou legal baseia-se «na crença na legalidade de regulamento estatuídos e do direito a estabelecer directivas por parte daqueles que são chamados, por esses regulamentos, ao exercício da dominação» (Weber, 1988b [1919-1922]: 685). No caso da dominação legal, obedece-se a uma ordem impessoal, objectiva e legalmente estatuída, e ao superior através dela designada por via da legalidade formal. No caso da

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dominação tradicional, obedece-se ao indivíduo que recebe o poder pela tradição, pelo costume e por força da reverência. Por fim, no caso da dominação carismática, obedece-se por força da confiança numa pessoa, extraordinária pela sua revelação, heroicidade ou exemplaridade (Weber, 1988b [1919-1922]: 685). De acordo com a visão de Weber, o modo de dominação mais visível nas sociedades modernas é a de tipo racional e será sobre esta nos vamos debruçar mais à frente, por ser característica central das organizações de administração da justiça. A dominação legítima, que se distingue da dominação ilegítima imposta pela força física, baseia-se em três fundamentos principais: (i) a tradição, que justifica a dominação pela via de regras ancestrais; (ii) o carisma de um indivíduo, dotado de qualidades extraordinárias que fazem com que se lhe reconheça autoridade; (iii) o direito, que define um conjunto de regras institucionais. Ilustrativo do modo de dominação típico do direito e da administração da justiça é o crescente afastamento do público leigo em relação aos saberes e práticas jurídicas. O distanciamento do direito e da justiça em relação aos cidadãos comuns é descrito como uma das consequências inevitáveis do processo de racionalização moderno e da própria legitimidade e modo de dominação racional da instância jurídica. Weber revela-nos, na parte final do capítulo VII de Economia e sociedade, especificamente dedicado ao direito, a sua visão do fenómeno algo paradoxal de propósitos simultaneamente democráticos e autocráticos da justiça nas sociedades modernas que, ao produzirem práticas e conhecimentos jurídicos altamente especializados, se afastam do propósito de se construir uma administração da justiça inteligível para os leigos: «O certo é que o resultado inevitável, condicionado pelo desenvolvimento técnico e económico, terá que ser, apesar de qualquer judicatura laica, o desconhecimento crescente, por parte dos leigos, de um direito cujo conteúdo de ordem técnica é cada vez maior, isto é, a especialização do mesmo e a crescente consideração do direito vigente como um aparato racional desprovido de toda a sacralidade e, por isso, modificável a qualquer momento de acordo com fins racionais» (Weber, 1984 [1919-1922]: 660, tradução dos autores).

3.1.2. Legitimidade e dominação racional Max Weber (1988b [1919-1922]) distingue quatro tipos de acção social, elaborando a seguinte tipologia: (i) acção tradicional, ditada pelos hábitos, costumes e crenças, pela qual o actor não concebe um objectivo, não obedece a um valor nem é impelido por uma emoção, mas obedece a reflexos criados por uma longa prática, revelando uma correspondência directa com o tipo de dominação tradicional; (ii) acção afectiva, ditada pelo sentimento, pelo estado consciência de momento, que parece ir de encontro à dominação carismática; (iii) acção racional com relação a um objectivo (ou racional instrumental), pela qual o actor concebe claramente qual o seu objectivo, em função dos seus conhecimentos da situação e combina

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os meios disponíveis para atingi-los; (iv) acção racional com relação a um valor, em que o actor age porque aderiu a determinados valores. O ordenamento jurídico pode produzir diferentes tipos de obediência. Se a obediência resulta duma «interiorização» (innerlich), a acção que a retrata pode ser de tipo afectivo, tradicional e racional com relação a um valor. Mas o ordenamento jurídico pode também ser sustentado por motivações não interiorizadas, mas sim por reflexão a respeito das consequências do acto, podendo essa reflexão determinar a conduta dos que obedecem, produzindo uma acção racional com relação a um objectivo e que resulta da afirmação positiva de uma ordem legal. Partindo da dominação racional, prevalecente nas sociedades modernas, o autor analisa as características da organização burocrática. O que Max Weber designa por «dominação legal com quadro administrativo burocrático» (Weber, 1988b [1919-1922]: 686-90) pode ser cabalmente aplicada à organização dos tribunais nas sociedades modernas. A dominação legal, tal como quase sempre em qualquer tipo de dominação – por exemplo, carismática ou tradicional – pode recair sobre uma pluralidade de pessoas e requer a existência de um quadro de pessoas obedientes (o tal «quadro administrativo»), conjugado com uma probabilidade de que estas executem as disposições gerais ou ordens concretas. O quadro administrativo pode estar vinculado à obediência ao dominador (ou dominadores) apenas por hábito, mas também por motivos afectivos ou racionais. Aos motivos para a obediência deve sempre juntar-se a crença na legitimidade, podendo-se distinguir os tipos de dominação «segundo a reivindicação de legitimidade» (Weber, 1988b [1919-1922]: 682). No caso da dominação legal a reivindicação de legitimidade é também de ordem legal e a motivação principal para a obediência fundamenta-se na acção racional (em relação a um objectivo ou a um valor, embora possa dominar o tipo instrumental). Mas como Weber chama a atenção, mais importante do que a própria reivindicação de legitimidade, será para o aparelho jurídico-legal (ou para qualquer organização associada a um determinado tipo de dominação) o facto de a sua reivindicação de legitimidade se afigurar como válida, tanto para dominadores como para dominados, podendo até construir-se uma evidente comunidade de interesses: «Determinante é que a sua própria reivindicação de legitimidade, segundo a sua natureza, se torne em relevante medida “válida”, consolide a sua existência e co-determine o modo de dominação escolhido» (Weber, 1988b [1919-1922]: 684).

Algumas características destacam-se, na sua forma pura ou ideal-típica, na dominação legal com quadro administrativo burocrático: (i)

O direito é estatuído por pacto ou outorga, com reivindicação de observância por parte das pessoas que se encontram sob a esfera de acção da associação (por exemplo, cidadãos de um determinado Estado);

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(ii) O dominador ao mesmo tempo que ordena, também obedece à ordem impessoal instituída; (iii) Os obedientes não obedecem à pessoa do detentor legal de poder, mas sim àquela ordem impessoal, pelo que apenas estão obrigados a obedecer às atribuições objectivas, racionalmente delimitadas, que lhe são conferidas por essa ordem social; (iv) A dominação racional corresponde a uma autoridade constituída, assente num exercício de funções continuado e vinculado a regras, que existe no seio de atribuições formalmente consagradas. Estas referem-se a deveres de prestação de serviços, agregação de poderes de comando necessários a essa prestação e delimitação dos meios coercivos e dos pressupostos de sua aplicação. Não há apropriação do cargo por parte do seu detentor; (v) Existe uma hierarquia de funções, com direito de apelação ou queixa por parte dos subordinados aos superiores; (vi) A aplicação das regras exige formação técnica e observa-se o princípio da conformidade à obrigatoriedade do registo escrito; (vii) A dominação burocrática significa dominação por força do saber, através de conhecimentos especializados e de conhecimentos adquiridos no decurso do serviço; (viii) A burocratização reflecte a tendência para o nivelamento no interesse do recrutamento universal de entre os mais qualificados na especialidade; para a aprendizagem técnica tão prolongada quanto possível e para o desempenho do funcionário de modo igual «para toda a gente», ou seja, para todos os interessados que se encontrem em idêntica situação de facto; (ix) A burocratização origina um nivelamento de tratamento face às diversas condições sociais. Contudo, na medida em que elimina o dominador que detém poder em virtude do estatuto social, da tradição, da apropriação dos meios económicos ou administrativos, também irá favorecer a burocratização, ou o que Weber chama «progresso da democracia de massas» (Weber, 1988b [1919-1922]: 690). À medida que as sociedades produziram um aumento progressivo da racionalidade, em particular de racionalização da organização social, pôde-se observar uma extensão do papel do direito na vida das sociedades, constituindo este, na perspectiva de Weber, o modo mais racional de institucionalização do poder. Do mesmo modo que o conceito de poder é inerente ao conceito de direito, admitindo que este sem poder não passa de letra escrita, morta, sem efeitos sociais, pode-se também afirmar que o direito legitima o poder (estruturas de poder e dominação pré-existentes) e, ao fazê-lo, cria o seu próprio poder. Por outras palavras, o direito legitima-se a si mesmo, na medida em que justifica o poder e a dominação que ele próprio constrói. Isto acontece de modo particularmente claro nas sociedades em que o tipo de dominação que predomina é racional-legal e, nesse contexto, o direito enquanto garante do poder oficial institucionalizado – o Estado de direito – consolida pelo mesmo acto a sua própria legitimidade, assegurando e reproduzindo constantemente a dominação estatal. A sociologia

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do direito e da justiça de Weber é assim, simultaneamente, uma sociologia política (Rojo e Azevedo, 2005). Considera o autor que, na aplicação do direito, intervêm «determinantes de ordem puramente “afectiva”, o sentimento de “equidade”, por exemplo» (Weber, 1984 [1919-1922]: 517, tradução dos autores): «Desconhecem-se por completo as fundamentações estritamente racionais da decisão concreta. O mesmo ocorre quando a decisão não emana de uma divindade ou um meio mágico de prova, mas de um sábio carismaticamente qualificado ou, como em tempos, de um ancião conhecedor da tradição (…) ou, por último, de um juiz investido pelo governo» (Weber, 1984 [1919-1922]: 520, tradução dos autores).

Apesar da visão normativista e substantivista do direito ter dominado o pensamento sociológico sobre o direito no primeiro quartel do século XX, a verdade é que o tema do «direito vivo» e da «criação judiciária do direito» esteve presente no pensamento de Max Weber. Não podendo o processo de decisão do juiz ser rigorosamente racional, é antes, necessariamente, «sumamente elástico e dúctil» (Weber, 1984 [1919-1922]: 520, tradução dos autores). O autor abriu assim caminho para estudos empíricos sobre as decisões particulares do juiz e respectiva articulação com a contraposição entre a normatividade abstracta da lei e a normatividade concreta e conformadora da decisão judicial; e sobre a contraposição entre o direito formalmente vigente e a normatividade emergente das relações sociais, criando deste modo «as pré-condições teóricas da transição para uma nova visão sociológica centrada nas dimensões processuais, institucionais e organizacionais do direito» (Santos, 1994: 143).

3.2. Contributos de Max Weber para a sociologia do direito e da justiça Podemos situar o contributo de Max Weber ao nível dos estudos sociológicos do direito e da justiça em quatro níveis principais: (i) no enfoque do papel do direito na transformação modernizadora das sociedades, nomeadamente das relações económicas, e como fonte de normatividade das sociedades capitalistas; (ii) nos processos de legitimação do poder da lei e da ordem jurídica e na análise da dominação de tipo racional-legal, associada à dominação carismática; (iii) no papel do direito na orientação das condutas individuais; (iv) na análise do direito e da justiça como monopólio estatal administrado por funcionários especializados segundo critérios de racionalidade formal, numa administração integrável no tipo ideal de burocracia. O legado de Weber no que concerne ao papel do direito na normatividade das sociedades capitalistas, em particular nas transformações modernizadoras das relações económicas, é descrito com detalhe e exaustivamente analisado por Swedberg (2003), especialista nas relações entre a sociologia, o direito e a economia. Apelando à necessidade de construção

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de um campo da sociologia económica do direito (economic sociology of law), afirma que a teoria de Weber é a que melhor se aproxima desse objectivo, não obstante os esforços dos sociólogos marxistas do direito em tentarem compreender as relações entre economia e direito. De facto, Max Weber considera não só as dimensões jurídicas da actividade económica, como os impactos jurídicos na economia e os efeitos da economia na comunidade jurídica (Swedberg, 2003: 4-6). A discussão da legitimidade do poder jurídico, e sua semelhança com os modos de dominação de outros tipos de conhecimento, como o conhecimento científico, serviu de inspiração a vários autores contemporâneos. A importância da análise do papel do direito na orientação das condutas individuais discutida por Max Weber é retomada por estudos desenvolvidos, principalmente, a partir da década de sessenta e de setenta do século XX, na Europa e nos Estados Unidos que mesmo sem se apoiarem directamente neste autor, convergem para a importância que este confere às práticas e às representações dos cidadãos nas suas relações com o sistema de justiça. A perspectiva compreensiva reflecte-se também em estudos sobre relações entre os média, o crime e a justiça, e os efeitos no público (Fox et al., 2007; Guibentif et al., 2002; Surette, 1998). Em relação à abordagem do direito e da justiça no contexto de uma administração burocrática, destaque-se a importância da sociologia das organizações, ramo do saber que conheceu amplo desenvolvimento no final da década de cinquenta e início da década de sessenta do século XX (por exemplo, Blau 1955; Crozier 1963), em boa medida inspirado pelo legado teórico de Weber, que surge uma década mais tarde e profusamente aplicado à organização judiciária e nomeadamente aos tribunais, em particular nos Estados Unidos (Heydebrand, 1977). Em anos recentes, e em Portugal, os estudos dos tribunais como organizações têm ganho novo fôlego, nomeadamente pelas pesquisas realizadas pelo Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Santos et al., 2001, 2002, 2006b). No âmbito deste conjunto de estudos sobre a justiça como organização política e profissional, que pode incluir objectos de análise muito diversos, os profissionais do foro jurídico, em particular os juízes, assumem um papel central no campo analítico: não só desde os anos sessenta do século XX que se desenvolveram os estudos sobre os comportamentos e as decisões proferidas pelos juízes, como se desconstruiu «a ideia convencional da administração da justiça como uma função neutra protagonizada por um juiz apostado em fazer justiça acima e equidistante dos interesses das partes» (Santos, 1994: 151). Outros temas emergiram mais recentemente, nas duas últimas décadas, por referência à administração da justiça enquanto instituição política e profissional, sendo de destacar os trabalhos sobre os processos de recrutamento dos magistrados e sobre a importância dos sistemas de formação e seu papel no exercício da função de juiz (Santos et al., 2001, 2006a). O direito baseia-se em símbolos destinados a impor o respeito e, de modo ritualizado, construir e recordar o poder do jurídico. Se no passado os sacerdotes e reis exerciam funções jurídicas, não extraíam o seu prestígio e autoridade do direito propriamente dito,

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Direito, Justiça e Média – Tópicos de Sociologia

mas de outras fontes (magia, religião), hoje a magistratura converteu-se no símbolo vivo do direito e de uma moral que se destaca no seio das sociedades contemporâneas, por sua vez, espartilhadas por diversas morais. O direito e a justiça encontram nos média um concorrente na disseminação de símbolos que organizam e estruturam a vida social, para além de constituir a principal via de representação, e mesmo de legitimação do poder do Estado nas sociedades modernas (Ericson, 1991: 238). Nas sociedades contemporâneas, o poder e a respectiva legitimação residirá em grande medida nas suas representações públicas e mediáticas, capazes de, por exemplo, enquadrar e influenciar a construção do «carisma» de um líder político, exaltar as suas qualidades ou apontar os seus defeitos. Pode dizer-se que a legitimidade do direito e da justiça depende da capacidade das autoridades em conferir credibilidade às suas decisões, na medida em que estas se conformem com as normas sociais vigentes. Assim, ao representar e interpretar as mundivisões dominantes (Curran, 2002: 77), também os média criam o seu próprio poder assente na legitimação conferida pelo plebiscito das audiências. A proposta da abordagem do direito em termos de poder e de dominação significa conferir uma atenção crescente ao fenómeno pelo qual as sociedades contemporâneas parecem cada vez mais envolvidas na procura da justiça. A crescente juridificação das relações sociais significa também uma procura crescente da justiça, da autoridade «construída», ou seja, quando a tradição, a religião, os costumes não parecem poder responder cabalmente às necessidades de resolução de conflitos, os indivíduos e os grupos sociais socorrem-se do juiz imbuído de poder pelo Estado. Porém, a insatisfação da procura de justiça pode conduzir à busca de formas alternativas de resolução de conflitos, designadamente através da procura de visibilidade pública para as situações percepcionadas como litígios, surgindo os média e a classe jornalística como uma modalidade capaz de emular o ideal de imparcialidade adscrita aos juízes (Wykes, 2001: 21). Contudo, Weber empreende uma importante distinção entre o direito formal dos preceitos jurídico e o direito aplicado pelo juiz, ao falar da coexistência entre o carácter formal do direito e os procedimentos afectivos e tradicionais dos meios de tomada de decisão (Weber, 1984 [1919-1922]: 520). A este respeito, é importante referir que os média, ao exercer funções de escrutínio e comentários frequentemente personalizados acerca dos juízes e da justiça, são passíveis de produzir influência sobre o processo de tomada de decisão ou regular a actividade judicial, na medida em que os juízes são seres humanos e, logo, não são absolutamente imunes a críticas ou opiniões exteriores (Badinter e Breyer, 2004: 261).

A perspectiva dos clássicos da sociologia

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Dominação racional-legal e burocracia segundo Max Weber

Ideal-tipo do quadro administrativo burocrático

Sociologia Jurídica = Sociologia Política

Compreensão, interpretação e explicação da acção social racional

(Racionalização do Estado e do Direito) Legitimação da domínio do tipo racional-legal Racionalização do Ocidente

Sentido da acção social por referência às leis e à ordem jurídica

Actividade de reflexão e debate: O modo de dominação típico do direito é o racional-legal, assentando na neutralidade e impessoalidade da norma escrita. Porém, os média tendem a personalizar os conflitos e os seus actores. Debata em que medida as representações mediáticas do crime e da justiça, designadamente por via da exposição à mediatização de casos judiciais, podem afectar o modo de dominação típico do direito.

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CAPÍTULO

A perspectiva de autores contemporâneos

1. SISTEMA CULTURAL E ORDEM SOCIAL – O CONTRIBUTO DE TALCOTT PARSONS Esta secção visa: – identificar as forças motivacionais para a acção, que agem pela positiva (socialização e compensação) e pela negativa (punição); – descrever o papel da justiça na orientação da acção social e no garante da estabilidade e continuidade do sistema social; – explanar de que forma os mecanismos de controlo social evitam o desequilíbrio e operam no sentido de motivar os actores a abandonar o desvio e a regressar à conformidade com o sistema; – compreender o papel da lei penal na garantia do equilíbrio estável do processo interactivo, pela prevenção de tendências desviantes; – relacionar o papel dos média com a projecção de valores e a sanção de comportamentos desviantes.

1.1. Talcott Parsons e o papel do direito e da justiça no sistema social Talcott Parsons (1902-1979), autor da teoria do sistema social, apresenta sobretudo referências indirectas ao papel do direito e do sistema judiciário nas sociedades actuais, assim como algumas escassas observações pontuais mais explícitas, ao considerar que «Entre as funções mais importantes de tais órgãos constritivos [a polícia, os Tribunais e os demais] encontra-se a limitação da difusão das tendências desviantes que eles definem como ilegítimas» (Parsons, 1984: 293, tradução dos autores). Teceu algumas considerações sobre a profissão do jurista (Parsons, 1954), mas a importância da sua teoria no âmbito da sociologia do direito e da justiça incide, sobretudo, no relevo que o autor concede à necessidade, em cada sociedade, de reintegrar o desvio no curso normal do sistema social, de modo a não perturbar o seu equilíbrio.

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Direito, Justiça e Média – Tópicos de Sociologia

Parsons não deixa de reconhecer a importância dos tribunais no capítulo VII da obra O sistema social, intitulado «A conduta desviada e os mecanismos de controlo social», quando diz que «Como é lógico, não deve perder-se de vista a importância destes mecanismos» (Parsons, 1984: 293, tradução dos autores). Mas acrescenta que os tribunais e a polícia, as instituições de controlo social que operam pela sanção ou «motivação pela negativa», assumem menos destaque no seu trabalho, por considerar que, ao sociólogo, interessam mais os mecanismos subtis de controlo, projectados pelo sistema cultural através dos valores sociais, processos de socialização e do que chama «forças motivacionais»: «A forma em que operam é tão conhecida nos seus fins gerais que não é necessário dedicar-lhes aqui maior atenção. Quando surgem os problemas de maior interesse sociológico, estes estão relacionados com tipos mais subtis de mecanismos de controlo» (Parsons, 1984: 293, tradução dos autores).

Preso a uma visão formalista do direito e do judiciário, que apenas focaliza o aspecto estritamente jurídico das relações de poder no contexto dos tribunais, Parsons identifica como função principal da lei e da administração da justiça a aplicação de sanções negativas aos comportamentos desviantes em relação ao estipulado na lei: «A definição de alguns actos como delitos constituem o caso típico da categoria alargada de mecanismos de controlo mais conhecido, no qual as pautas normativas se “forçam” mediante a vinculação de sanções negativas específicas à sua violação (…) Entre as funções mais importantes de tais órgãos constritivos encontra-se a limitação da difusão de tendências desviantes que eles definem como ilegítimas» (Parsons, 1984: 293, tradução dos autores).

De seguida expomos os contributos de Talcott Parsons para uma sociologia do direito e da justiça assentes, sobretudo, na reflexão que ao autor elabora sobre o papel do direito e do sistema judiciário para manter o equilíbrio do sistema social. 1.1.1. A função do direito e da justiça no equilíbrio social O objectivo de qualquer sociedade é, segundo Parsons (1984), de acordo com o que defendeu ao nível da sua teoria estrutural-funcionalista, alcançar a homeostase, ou seja, a manutenção da estabilidade, do equilíbrio permanente, fazendo com que um subsistema do sistema social só possa ser estudado em função do todo. No contexto desta abordagem funcionalista, o direito e o poder judiciário podem ser concebidos como garantes da ordem e da estabilidade das interacções sociais, por servirem funções de institucionalização das expectativas sociais e, por conseguinte, desempenharem um papel importante no que Parsons considera serem «os mecanismos de socialização da motivação» (Parsons, 1984: 193-9), tidos como imprescindíveis para o cumprimento das regras sociais e aprendizagem dos papéis. Por motivação, Parsons entende o sentido que o actor confere à sua acção, sendo esta determinada pelos fins e interesses perseguidos pelo

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indivíduo, na medida em que «os processos motivacionais são sempre produzidos em actores individuais» (Parsons, 1984: 193-6, tradução dos autores). Inspirado na obra de Vilfredo Pareto (1848-1923), Parsons encara a base da acção em torno do conceito de motivação com vista a determinados fins e por via da adaptação aos meios. A motivação para a acção – seja a acção em conformidade com as expectativas, seja a acção desviante – resulta sempre, para Parsons, de uma orientação face aos meios materiais (económicos), culturais (simbólicos) e sociais (os outros indivíduos) presentes em determinado contexto. Além disso, a motivação comporta também dimensões cognitivas, afectivas e morais. Influenciado por Durkheim, Parsons afirma que o estado normal do sistema social assenta na estabilidade e continuidade dos processos motivacionais, pelo que considera problemática a tendência para a alteração destes, referindo que tal só poderá ocorrer em situação de alteração do estado «fixo» do sistema social: «Um estado estabelecido de um sistema social é um processo de interacção complementar ao dos demais actores individuais, em que cada um deles se ajusta às expectativas de um outro ou outros, de tal maneira que as reacções do alter às acções do ego são sanções positivas que servem para reforçar as disposições e necessidades, concretizando assim as expectativas dadas. Este processo estabilizado ou equilibrado de interacção constitui o ponto de referência fundamental de toda a análise motivacional dinâmica do processo social» (Parsons, 1984: 193-6, tradução dos autores).

Mesmo que não se verifique uma situação de tendência para mudança do equilibro da interacção – base do processo social de motivação – podem ocorrer situações de desvio, pelas quais o indivíduo não corresponde pelo seu comportamento às expectativas do sistema social, ou seja, afasta-se da conformidade com os critérios normativos que fazem parte da cultura colectiva. Não obstante o indivíduo ter todas as oportunidades para aprender os valores sociais e as orientações da acção exigidas, pode acontecer que tenha motivações para não se comportar em conformidade: «A tendência para o desvio é um processo de acção motivada da parte de um actor que, indiscutivelmente, terá tido todo o tipo de oportunidades para aprender as orientações exigidas e que tende a desviar-se das expectativas complementares de conformidade com os critérios comuns, desde que estes sejam relevantes para a definição do seu papel» (Parsons, 1984: 197, tradução dos autores).

O sistema social pode tolerar uma determinada margem de desvio, dentro de certos limites, mas dispõe de mecanismos de controlo social que evitam o desequilíbrio e que operam no sentido de motivar os actores a abandonar o desvio e a regressarem à conformidade com o sistema: «Trata-se de um mecanismo de restauro do equilíbrio» (Parsons, 1984: 198, tradução dos autores). Tal como em relação aos mecanismos de funcionamento da personalidade, Parsons entende que o controlo social opera de duas maneiras: pela defesa e ajustamento, e por refe-

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rência às tendências para violar as expectativas criadas pelos papéis sociais. Não que os mecanismos de defesa e ajustamento da personalidade sejam os mesmos que encontramos nos mecanismos de controlo social: enquanto os primeiros se situam nos indivíduos, os segundos pertencem ao sistema social. Mas inter-relacionam-se profundamente e partilham o objectivo comum de refrear as «tendências desagregadoras» (Parsons, 1984: 198, tradução dos autores). A aplicação da lei pelos tribunais surge assim como um ponto fundamental de referência para a análise do controlo social e para a teoria do desvio. Para garantir o equilíbrio estável do processo interactivo existe a lei que, sobretudo no caso da lei penal, tem como função prevenir as tendências para os comportamentos desviantes. Mas o desvio pode ocorrer, na medida em que nenhum sistema social, em termos empíricos, está perfeitamente equilibrado e integrado. Como tal «Os factores motivacionais desviantes encontram-se constantemente em acção. E chegam a estabelecer-se de tal maneira que não são eliminados dos sistemas motivacionais dos actores» (Parsons, 1984: 281, tradução dos autores). Quando ocorre o desvio, o sistema social convoca os mecanismos de controlo social não para prevenir ou eliminar o desvio, mas sim para limitar as suas consequências e impedir que os efeitos perniciosos do desvio para o equilíbrio do processo interactivo ultrapassem determinados limites, colocando em perigo a estabilidade do sistema social. Será esta a função dos tribunais ao punirem os criminosos, interpretação essa que Parsons vai recuperar de Émile Durkheim. Na citação seguinte, refere explicitamente a influência de Durkheim na sua própria visão do papel da justiça criminal. Além do efeito imediato de «protecção da sociedade» pelo efeito punitivo e dissuasor da criminalidade que a punição apresenta, a justiça criminal tem como objectivo a expressão ritualizada dos sentimentos colectivos, sustentados nos valores e nas práticas institucionalizadas pelos tribunais e prisões. Parsons entende que deste modo se fortalecem os sentimentos da população que tem «motivações positivas», contribuindo assim o sistema de justiça para o interesse do grupo na continuação com a conformidade: «Durkheim foi o primeiro a assinalar claramente que o castigo possui outra série de funções altamente significativas para além da “protecção” imediata da sociedade. Em certo sentido, trata-se de uma expressão ritual de sentimentos que sustentam os valores institucionalizados que o criminoso violou» (Parsons, 1984: 292, tradução dos autores).

A partir da visão funcionalista da sociedade, o passo seguinte é determinar os seus componentes básicos formados pela economia, o sistema político, a comunidade societária e a cultura. Estes são todos interdependentes e agem no sentido de preservar a sobrevivência do todo, não havendo necessariamente uma hierarquia entre eles. O direito e a justiça assumem principal papel de relevo no subsistema da comunidade societária, na medida em que este abarca o conjunto de instituições que têm como função estabelecer e manter as solidariedades que uma sociedade pode exigir dos seus membros. Recuperando de Durkheim o conceito de solidariedade orgânica e a análise da divisão social

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do trabalho, Parsons invoca que, nas sociedades modernas, surge a necessidade de uma maior especialização da função de integração, de modo a criar um sistema de normas para que uma organização colectiva mantenha a unidade e a coesão. Ou seja, a solidariedade é, no entendimento de Parsons, a integração institucionalizada, o que significa que a administração da justiça assume a função de consolidar os interesses da comunidade. «Só quando o sistema de acção implica solidariedade, os seus membros definem certas acções como exigíveis em função do interesse da integridade do sistema em si mesmo, e outras acções como incompatíveis com essa integridade; o resultado é que as sanções se organizam em torno desta definição» (Parsons, 1984: 99, tradução dos autores).

A religião e a moral podem assumir esse papel, mas o direito e a administração da justiça ganham destaque na função de integração na actualidade e de garante da estabilidade social. Não se trata de conceber o direito como um reflexo dos interesses das classes dominantes, como afirmam os marxistas, mas de pensá-lo como um garante necessário da previsibilidade das condutas dos diferentes membros das sociedades, por meio da instituição de regras reforçadas pela existência de punições. A determinação pelo sistema social das condutas desejáveis e a definição de escolha das mesmas ficam delegadas no sistema cultural (no que diz à produção dos valores a serem preservados), no sistema político (pela definição dos objectivos da sociedade) e no sistema económico (pela adaptação dos objectivos às condições físicas existentes). Isto porque cada subsistema encontra-se em relação de interacção e troca com os outros subsistemas, pela qual cada subsistema recebe de cada um dos outros subsistemas elementos essenciais ao seu funcionamento (inputs) e oferece em troca produtos da sua actividade (outputs). O autor defende ainda que uma das características da sociedade moderna é o facto do sistema jurídico-legal estar separado do subsistema político. Contudo, Parsons considera que o sistema cultural é que controla, em última instância, os demais sistemas, porque é nele que são afirmados os valores sociais, cabendo-lhe, por isso, em última instância, o controlo social. Ao direito cabe promover os valores institucionalizados na sociedade – e não desenvolver a mudança social – e o seu compromisso primário, numa sociedade complexa é, sobretudo, garantir a ordem e a estabilidade das relações sociais. Poderíamos argumentar que, nas sociedades contemporâneas, para além da religião e da moral, o papel dos média é fulcral na interacção dos sistemas e particularmente na produtividade do sistema cultural, através do estímulo da sensibilidade moral dos cidadãos, a projecção de valores e emoções que actuam na catalisação de processos de mudança ou actualização da moral colectiva (Katz, 1987; Karstedt, 2002; Cottle, 2005). Ao projectar os valores sociais, os média assumem também um papel sancionador dos comportamentos. As sanções desempenham um papel de carácter predominantemente simbólico, focando comportamentos, atitudes e discursos, tidos como indesejáveis para a coesão do sistema. Pela via da representação e da co-construção dos imaginários colectivos, os média promovem o consenso, a ordem social e a reprodução do sistema social.

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Sistema cultural e ordem social segundo Talcott Parsons Positiva

Sistema

(socialização)

Integração

Motivação para a acção

Indivíduo

LEI

Negativa (punição)

JUSTIÇA (Polícia, Tribunais, Prisões)

Criminoso Actividade de reflexão e debate: A visão funcionalista da sociedade desenvolvida por Parsons tem sido objecto de críticas várias, que apontam a quase impossibilidade de explicar a mudança e o conflito. A partir do extracto de uma notícia abaixo reproduzido, atenda e exponha os aspectos mais polémicos da ideia que a punição dos criminosos deve servir para proteger a sociedade e reforçar os sentimentos colectivos da população que tem «motivações positivas», contribuindo assim para o interesse do grupo na continuação com a conformidade, e o papel que os média podem desempenhar nesse processo. TRÊS ASSALTANTES NA CADEIA Três autores de vários assaltos na zona de Olhão foram anteontem enviados para a cadeia, para cumprimento de penas de prisão pelos crimes cometidos. Dois deles, com idades a rondar os 20 anos e bastante conhecidos das autoridades, foram condenados pelo Tribunal de Olhão a penas de seis e sete anos de prisão efectiva. A dupla tinha vários processos de furto pendentes, após diversas detenções por parte da PSP local, e estavam a ser julgados. Outro indivíduo referenciado pela polícia foi igualmente enviado para a cadeia, para cumprir uma pena de prisão pelo mesmo tipo de crimes. Segundo fonte policial, «são três pessoas que foram autoras de vários crimes e provocavam muitos problemas, e vão agora passar algum tempo na cadeia» (Correio da Manhã, 24 de Janeiro de 2010).

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2. A TEORIA DOS SISTEMAS E O DIREITO DA SOCIEDADE – O CONTRIBUTO DE NIKLAS LUHMANN Esta secção visa: – identificar o modo pelo qual as relações entre o direito e a sociedade são apresentadas a partir do próprio direito; – reconhecer como é que o direito pode criar realidade social, na medida em que condiciona as acções dos indivíduos, a expressão da comunicação e dos seus conteúdos dentro da lógica jurídica subjacente; – explanar como é que as acções do sistema jurídico-legal são sempre operações de diferenciação, pelas quais o direito cria o seu próprio território; – compreender os modos de produção e reprodução das operações do sistema jurídico, com base no conceito de «fechamento operativo do sistema»; – analisar formas de «comunicação significativa» do sistema do direito com base na teoria da comunicação de acordo com a qual se inclui não só os factos discursivos, mas também informação e compreensão das interacções entre as estruturas e os actos discursivos; – discutir a tese da justiça como «fórmula de contingência», dando exemplos práticos; – relacionar o conceito de fechamento operativo do sistema com as tensões geradas pela mediatização da justiça.

2.1. Niklas Luhmann e a tese do direito da sociedade Luhmann (1927-1998), sociólogo alemão e licenciado em direito, assume explicitamente a função de desenvolver uma sociologia do direito distinta daquilo que designa como «sociologia do direito tradicional», referindo-se, em concreto, ao que considera serem as limitações da teoria dos sistemas de Talcott Parsons e da própria crítica fenomenológica à sociologia parsoniana (Mello, 2006: 351). Para uma compreensão mais cabal da proposta do autor para a abordagem sociológica do direito e da justiça, importa primeiro perceber os conceitos elementares da sociologia de Luhmann, visando uma compreensão da aplicação que o autor faz dos mesmos ao que chama «sistema jurídico». Este autor é efectivamente um sociólogo do direito, com uma vasta produção teórica sobre a área e revelando preocupação em esmiuçar os meandros do sistema jurídico. Optámos por desenvolver a teoria do autor sobre o sistema jurídico com base, principalmente, na sua obra O direito da sociedade (Das Recht der Gesellschaft) (1993). O primeiro capítulo deste estudo versa sobre «o posicionamento da teoria do direito» e procura distinguir a versão «moderna» da sociologia do direito que Luhmann se propõe construir a partir da teoria dos sistemas. O autor começa por referir que uma teoria científica do direito deve começar pela constituição do objecto, respondendo a uma questão inicial: «Quais são as fronteiras do direito?». O autor constata que a maioria das respostas

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a essa pergunta central se baseia em puro subjectivismo, pelo qual cada investigador identifica o seu próprio objecto. Defende então uma resposta concreta, que passa por rejeitar que o observador possa definir a sua própria objectividade e por considerar que as fronteiras do objecto são definidas pelo próprio objecto. No caso específico do direito, as fronteiras do direito são definidas por este, determinando o que é próprio do direito e o que não o é. Daí que a questão subsequente – e, na perspectiva do autor, interrogação bem mais profícua – seja «Como é que o direito procede para definir as suas fronteiras?» (Luhmann, 2004). 2.1.1. A ruptura com a sociologia do direito «tradicional» O projecto de constituição de uma nova sociologia do direito baseia-se na rejeição do que Luhmann (2004) considera ser a sociologia do direito tradicional, que na sua perspectiva faz «desaparecer o direito» da sua análise, principalmente de três maneiras: (i) focando o jurista1 e desviando a atenção sobre o objecto e o método do direito; (ii) deduzindo o direito das decisões e comportamentos de pequenos grupos de juízes e jurados, pela observação dos tribunais2; (iii) restringindo a análise ao conjunto das opiniões que os diversos grupos e indivíduos têm sobre o direito. «Quais são as fronteiras do direito? Esta pergunta aponta para questões bem conhecidas sobre se estas fronteiras são analíticas ou concretas e analíticas, isto é, se são definidas pelo observador ou pelo próprio objecto (…) a nossa resposta é que “as fronteiras são definidas pelo objecto”. Quer isto dizer, na verdade, que o próprio direito define quais são as suas fronteiras, o que pertence ao direito e o que não pertence. Responder à controvérsia deste modo leva-nos à questão: como é que a lei procede ao determinar as suas fronteiras?» (Luhmann, 2004: 57-8, tradução dos autores).

O processo pelo qual a abordagem interdisciplinar do direito tem falhado, em particular a relação entre a teoria jurídica e a teoria sociológica, explica-se, na perspectiva de Luhmann, pelo facto de cada uma dessas disciplinas definir o objecto de estudo de modo diferente, impossibilitando a comunicação eficaz entre elas e perpetuando os debates incessantemente áridos: «Isto torna fácil o preenchimento de “debates”, mas tais debates não têm resolução, ou antes, apenas servem para afinar o armamento de cada uma das partes. Com efeito, qualquer delas não consegue compreender o ponto de vista da outra» (Luhmann, 2004: 57, tradução dos autores). (1) Luhmann recebeu uma bolsa de estudos em 1962 para Harvard, onde passou um ano a trabalhar com Talcott Parsons. A crítica que faz ao enfoque da sociologia nos juristas como profissão faz-nos especular se não se tratará de uma alusão crítica a Parsons e seu famoso texto de 1954 «A sociologist looks at the legal profession». (2) Não podemos saber se Luhmann se refere a algum trabalho específico ou aos estudos etnometodológicos do direito em geral. No entanto, convém referir a importância da tradição dos estudos de tribunais iniciada por Harold Garfinkel, que cunhou o termo etnometodologia na sequência de um trabalho sobre jurados em tribunal (Garfinkel, 1967), e que iremos abordar na parte final deste capítulo.

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A ciência jurídica está preocupada com a ordem normativa, a sociologia procura elaborar prognósticos e explicações e, consoante o posicionamento teórico assumido, tanto pode focar o comportamento social, como as instituições ou os sistemas sociais. Isto faz com que as duas disciplinas, direito e sociologia, possam estar a usar os mesmos termos – por exemplo, «direito» ou «lei» – mas de facto estarem a falar de coisas diferentes. Como resolver esse impasse? Na perspectiva de Luhmann, pode e deve ser encontrado um denominador comum entre a perspectiva da ciência jurídica e da sociologia. Como primeiro passo da aplicação da sua teoria dos sistemas ao direito, e consequente favorecimento da interdisciplinaridade baseada no entendimento do modo como o direito define as suas próprias fronteiras, Luhmann considera que a teoria dos sistemas apresenta a resposta mais adequada, pelos seguintes motivos (Luhmann, 2004: 58-60): (i) trata-se da única teoria que explica como é que algo cria as suas próprias fronteiras e se relaciona com o ambiente externo; (ii) não apaga o papel do observador, apenas pressupõe que este tem que agir como tal, ou seja, não sendo sujeito da objectificação mas sim mero observador, que deverá orientar a observação para a distinção entre o sistema jurídico e o ambiente externo; (iii) a teoria dos sistemas admite uma epistemologia construtivista pela qual a observação do sistema e das suas relações com o ambiente não se faz directamente, mas pelo que designa de «observação de primeira ordem» (auto-observação do sistema) e por «observação de segunda ordem» (observação realizada pelo sujeito observador); (iv) são possíveis duas maneiras de observar o direito: a abordagem jurídica (que observa o sistema «de dentro») e a abordagem sociológica (que observa o sistema «de fora»). Esta última constituirá sempre uma análise externa do sistema jurídico, mas que só será adequada se descrever o sistema como um sistema que se descreve a si mesmo. O autor apresenta recomendações tanto aos juristas que se preocupam com a interacção entre o direito e a sociedade, como aos sociólogos que se interessam pelo direito. Justifica assim a escolha do título da sua obra – O direito da sociedade (Luhmann, 2004) – em vez de «direito e sociedade», considerando esta uma fórmula enganadora que, em última instância, pressupõe que a lei existe fora da sociedade (Luhmann, 2004: 59). O conselho que tem para os juristas, que estando integrados no sistema jurídico necessariamente empreendem uma auto-observação e auto-descrição, é que conceptualizem o seu objecto em comparação com algo distinto: «Devem identificar, isto é, para distinguir, o seu objecto, de forma a serem capazes de o estudar» (Luhmann, 2004: 59). Aos sociólogos recomenda extremo cuidado para não perderem de vista o seu objecto, e para não esquecerem a premissa fundamental de que o direito se auto-observa e se auto-descreve. O que significa que o sociólogo terá que realizar a sua abordagem do direito de maneira a que este possa ser compreendido pelo jurista. «O objecto sociológico (tanto quanto o legal) é um que se auto-observa e se auto-descreve. Reconhecer o facto de que existem auto-observações e auto-descrições do

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objecto é condição para uma descrição cientificamente apropriada, realista e, diria, empiricamente adequada. De outro modo poder-se-ia simples e inapropriadamente negar que existem auto-observações e auto-descrições no sistema legal» (Luhmann, 2004: 60, tradução dos autores).

A problematização das relações entre o direito e a sociedade é-nos apresentada por Luhmann a partir do próprio direito e nisto reside, talvez, o seu principal contributo para a abordagem sociológica do direito e da justiça. Isto permite-nos concluir que não são apenas os sujeitos a criar o direito, mas o próprio direito cria realidade social, na medida em que condiciona as acções dos indivíduos e a expressão da comunicação e dos seus conteúdos dentro da lógica jurídica subjacente. Para além do direito, também os média são criadores privilegiados de realidade social, operando num sistema auto-referencial que cuja selectividade actua sobre o ambiente (comunica o que reflexivamente considera relevante) e constitui um dos principais sistemas cognitivos das sociedades modernas. Luhmann argumenta que os média proporcionam os meios através dos quais a sociedade constrói a ilusão da sua própria realidade (Luhmann, 2000: 92). 2.1.2. O direito como subsistema do sistema social e a teoria da comunicação Luhmann considera que o ponto de partida essencial para a construção de uma teoria adequada à análise sociológica do direito consiste em admitir que o sistema jurídico-legal é um subsistema do sistema social mais geral. Crítico dos estudos tradicionais do «direito e sociedade» (law and society studies), considera que estes comentem um erro crasso, por admitirem, à partida, que o direito é algo mais ou menos susceptível de sofrer as influências da sociedade, sem responderem à questão fundamental, de «como é que é possível o direito na sociedade?» (Luhmann, 2004: 73). Para responder a essa questão, o autor propõe como vector de análise e explicação o estudo das relações entre sistema e ambiente, ou seja, (i) a clarificação do contexto pelo qual o sistema jurídico-legal se relaciona como o sistema social geral («a sociedade»); (ii) a percepção de que as acções do sistema jurídico-legal são sempre operações de diferenciação, pelas quais o direito cria o seu próprio território através de operações que são também, elas próprias, sociais. O autor defende a ideia que qualquer sistema (jurídico, artístico, religioso, político etc.) cria a sua unidade interna pela definição das suas próprias estruturas e fronteiras. Fá-lo através da produção e reprodução das operações do sistema. Daí que Luhmann se socorra do conceito de «fechamento operativo do sistema» (operative closure of the system), que tanto se aplica ao sistema social geral como ao sistema do direito. O modo de produção e de reprodução de cada sistema reside na «comunicação significativa» (meaningful communication). No caso do sistema do direito, trata-se de um subsistema do sistema social, que opera pela comunicação, através de formas com significado, neste caso particular, as sentenças e os códigos das leis. A explicação para o facto de o modo de operação de comunicação significativa do subsistema do direito residir nas decisões dos tribunais e na codificação resulta de

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uma longa evolução sócio-cultural do sistema social geral, que tornou as operações de comunicação do direito auto-evidentes: «O sistema legal é um subsistema do sistema social na medida em que usa o modo de operação da comunicação, isto é, nada pode fazer para além de enquadrar formas (sentenças) no âmbito do significado com a ajuda da comunicação. É um feito do sistema social que tal se tenha tornado possível, e que uma longa evolução sócio-cultural o tenha tornado auto-evidente» (Luhmann, 2004: 73, tradução dos autores).

Seguindo a tese de Luhmann, de que qualquer sistema define as suas próprias fronteiras através do fechamento operativo, há que notar a peculiaridade dos média no sentido em que são passíveis de produzir e seleccionar comunicação significativa relativamente a todos os outros subsistemas sociais. Por exemplo, ao sobre-representar determinado tipo de crime nos noticiários (ex. violência doméstica), proporcionando espaço para o discurso público de «especialistas», os média podem condicionar os outputs dos outros sistemas, tais como a produção legislativa. O direito ao longo da evolução sócio-histórica foi-se autonomizando da moral, a partir de um processo de diferenciação funcional (Luhmann, 1983a, 1983b), até se constituir como um sistema social autopoiético, composto de comunicações de expectativas normativas, cuja validade remete de modo recursivo para outras expectativas normativas (Madeira, 2007: 30). Por outras palavras, a função do direito está em generalizar e estabilizar expectativas de condutas e regular conflitos mediante a construção de procedimentos para fazê-lo. De acordo com Luhmann (2000) as funções normativas e moralizadoras vêm sendo ocupadas pelos média no sentido em que a contínua reprodução «daquilo que é» é permanentemente contrastada com «aquilo que devia ser» numa incessante justaposição entre a realidade real e a realidade ficcional (Luhmann, 2000: 80-2). Segundo o autor, a comunicação jurídica só pode ser compreendida por uma teoria do fechamento operativo dos sistemas, que se baseia na ideia de que a comunicação jurídica não se refere apenas à linguagem e discurso3, que durante tanto tempo ocupou os estudiosos da aplicação da semiótica e da linguística ao direito (por exemplo, Jackson, 1985). A análise da comunicação implica, na perspectiva do autor, perceber além dos sentidos, as intenções e as consequências da comunicação. Por outras palavras, rejeita a análise sociológica do direito baseada nas teorias da linguagem e da semiótica. Em seu lugar, defende a aplicação de uma teoria da comunicação. Esta última não se limita a focar os factos dis(3) Socorremo-nos aqui da distinção elaborada por William Conklin (1998), pela qual os conceitos de linguagem e de discurso podem ser sinónimos em determinados sentidos e bastante distintos noutros; sendo que este último pode ter dois sentidos: um puramente linguístico (coincidindo com o conceito de linguagem e dizendo respeito a segmentos falados ou escritos) e um outro «social», ultrapassando a mera dimensão da linguagem e entrando no domínio da acção, remetendo para os actos de produção e de conhecimento acerca do social e do próprio indivíduo, podendo ser encarado como constituindo os modos como são construídos determinados significados partilhados por vários actores sociais em certo momento histórico.

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cursivos, mas incluí também informação e compreensão das interacções entre as estruturas e os actos discursivos, invocando uma relação circular pela qual as estruturas apenas podem ser definidas e alteradas pelas operações de comunicação, e por sua vez estas são especificadas pelas estruturas: «A comunicação não pode ter lugar sem estruturas ou actos comunicativos. Todavia, a comunicação não pode ser reduzida a actos comunicativos (…) para além disso, há uma relação circular entre a estrutura e a operação» (Luhmann, 2004: 75, tradução dos autores).

A redução do direito à comunicação jurídica faz com que Luhmann defenda que as operações jurídicas são independentes das aspirações à justiça ou dos projectos políticos dos sujeitos (Guibentif, 2006: 5). Na sua óptica, as operações jurídicas encontram toda a sua substância, necessidade e condições de realização em operações jurídicas anteriores. Estas, ao repetirem-se e encadearem-se, reproduzem distinções – entre o válido e não válido, verdadeiro e falso, bem e mal – que são ferramentas essenciais para a construção da razão e de todo o universo simbólico, e que se concretizam em compilações de códigos de leis. Sintetizando, o sistema jurídico é autónomo apesar das relações que estabelece com o ambiente social (sem o qual não poderia sobreviver). Não obstante a dependência relativa em relação ao ambiente, a sua qualidade normativa é produzida pela comunicação interna e própria do sistema, e só neste é decidido o que é do direito e o que não é do direito. Na perspectiva de Luhmann, toda a justificação da validade e pertinência da comunicação do sistema jurídico é dada de forma interna e por via da autonomia operativa do sistema, pelas quais as operações se reproduzem sem a influência externa e com base na assimilação selectiva de elementos do ambiente, de acordo com os critérios do próprio sistema jurídico. 2.1.3. O fechamento operativo do subsistema do direito A assumpção de que a construção teórica do objecto pela sociologia do direito necessita de assentar no pressuposto fundamental de que o sistema jurídico se auto-observa e se auto-descreve remete para a noção desenvolvida por Luhmann do direito como sistema autopoiético, que trataremos de seguida. A autopoiese é um conceito retirado da biologia que representa a capacidade de um sistema se construir através de seus próprios elementos formadores. Por meio desse conceito refutou-se a ideia que a manutenção e evolução de uma espécie seriam determinadas por factores externos, do meio, realçando pelo contrário a sua capacidade de auto-reprodução. Luhmann introduziu o conceito de autopoiese nas ciências sociais, teorizando a sociedade (sistema social mais abrangente) como um sistema autopoiético, referindo que qualquer sistema tem a capacidade de estabelecer relações internas com os seus próprios elementos constitutivos e de diferenciá-las das relações que mantém com o ambiente. Para o autor, a autopoiese é composta de três momentos: além da (i) auto-referência, refere-se à (ii) reflexividade e à (iii) reflexão emanadas do sistema. Enquanto a reflexividade é um

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«mecanismo no interior de um sistema autopoiético implica que o processo referente e o processo referido são estruturados pelo mesmo código binário e que, em conexão com isso, critérios e programas do primeiro reaparecem no segundo» (Neves, 1992: 277-8); a reflexão significa que «é o próprio sistema como um todo que se apresenta na operação auto-referencial, não apenas os elementos ou processos sistémicos» (Neves, 1992: 278). Aplicando a teoria da autopoiese ao direito, Luhmann defende que o sistema jurídico se recria com base nos seus próprios elementos, mas também não pode existir sem ambiente. Ou seja, o sistema jurídico-legal constitui-se como tal ao criar e ao manter a sua diferença, e os seus limites com o ambiente servem para regular essa diferença. Partindo da estrutura geral da sociedade como um sistema social funcionalmente diferenciado em consequência da repetição da diferença sistema/ambiente dentro do próprio sistema, o sistema jurídico-legal deve ser entendido como um dos seus subsistemas funcionais. Ou seja, constitui-se a si próprio a partir das suas funções específicas e diferenciadas, determinadas no nível do sistema societário. Os actos jurídico-legais e todas as unidades elementares do sistema do direito são activados por um processo de redução de complexidades, que permite que o sistema submeta os estímulos do ambiente aos seus padrões próprios e auto-diferenciados de entendimentos e de processamento da informação. O fechamento autopoiético do sistema legal coexiste com as conexões que estabelece com o ambiente. Por um lado, como já demonstrámos exaustivamente, para Luhmann os subsistemas são sempre auto-referenciais, produzem-se e reproduzem-se a si próprios. Nesse sentido são «fechados». Por outro lado, o autor defende que interagem com o ambiente e, nesse sentido, são abertos. Esta dupla condição faz com que Luhmann afirme que «o sistema legal é aberto porque é fechado e fechado porque é aberto» (Mello, 2006: 355). O sistema legal como sistema fechado significa que este tem os seus elementos, funções específicas e a sua forma própria de comunicação, seja pela criação de normas que definem o que é ou não relevante do ponto de vista jurídico-legal, ou o que é lícito e não-lícito. O seu fechamento prossegue no sentido em que pode alterar-se, mas essa mudança, mesmo que motivada, por exemplo, por factores políticos ou económicos, só pode ocorrer dentro do próprio sistema e segundo os seus procedimentos específicos. Isto é, só a lei pode modificar a lei. Em suma, o sistema legal é normativamente fechado, mas cognitivamente aberto. O ambiente que interage com o sistema legal introduz estímulos dos demais subsistemas sociais: político, económico, moral, mediático, educacional etc. Ou seja, entra informação no subsistema proveniente do ambiente. Mas a passagem da informação ao conhecimento dá-se segundo as regras do subsistema, que usa a sua auto-referência normativa não só para se reproduzir a si próprio mas também para seleccionar e transformar a informação recebida do ambiente, garantindo deste modo a manutenção da sua especificidade e a contínua adaptação às pressões do ambiente. Porém, neste aspecto são notórias as dificuldades dos tribunais em conseguirem adaptar-se a um ambiente mediático cujo programa comunicacional tende a salientar disjunções entre a direito e a justiça e os média, isto é, os contrastes entre o tempo judicial e o tempo

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mediático, as diferenças ao nível do discurso e os enquadramentos dramáticos dos eventos judiciais proporcionados pelos média. 2.1.4. As interacções entre o sistema jurídico e as relações sociais A teoria sistémica de Luhmann apresenta uma renovação importante da sociologia do direito tradicional, no sentido em que permite a compreensão das relações do direito com a sociedade partindo das realidades criadas pelo próprio sistema jurídico, por sua vez ancoradas na distinção entre o que é e não é juridicamente relevante, e o que é e não é lícito, com efeitos visíveis nas comunicações dos indivíduos, ou seja, nas relações sociais. O direito não é assim, para Luhmann, uma espécie de indicador externo do social, seja da moral colectiva (Durkheim), das relações de dominação entre as classes sociais (Marx) ou um reflexo dos interesses estratégicos de determinados grupos sociais (Weber). Um dos pontos de divergência entre vários sociólogos da «sociologia do direito tradicional» reside no reconhecimento dos direitos dos cidadãos em participar na história e na representação do direito como um instrumento pelo qual os sujeitos fazem história (Hespanha, 2004). Luhmann assume uma posição radical ao afirmar, por um lado, «que não há sujeitos» e, por outro, que a actividade jurídica não só se sustenta a si própria como é constituída (como qualquer outro sistema social) por operações de comunicação. A partir da sua teoria sistémica, Luhmann estabelece uma distinção entre três grandes sistemas sociais: (i) os sistemas vivos referentes às operações vitais; (ii) os sistemas psíquicos, constituídos pelos indivíduos; (iii) e os sistemas sociais, constituídos por comunicações (Luhmann, 1984, 1995). Os sistemas sociais (sistemas comunicativos que se reproduzem) são compostos de subsistemas: o direito, a política, a economia, a educação etc., e representam não só a complexidade da vida moderna como a diferenciação funcional. Em relação ao princípio da complexidade, o autor refere que os sistemas sociais servem de mediadores entre a extrema complexidade do mundo moderno e a capacidade limitada dos indivíduos para assimilarem a totalidade das possibilidades do mundo. Por operação de selectividade de acordo com critérios internos ao sistema, os sistemas sociais reduzem a complexidade. A diferenciação funcional dá-se entre os diversos sistemas sociais que evoluem no sentido da autonomização criada pelo sector da vida em sociedade que fica sob o seu código particular e na alçada da sua selectividade. 2.1.5. A justiça como fórmula de contingência Na perspectiva de Luhmann, a justiça constitui a base da comunicação do sistema jurídico e representa a auto-descrição da unidade do próprio sistema. O termo contingência comporta aqui as diversas possibilidades de reacção aos factos que todo e qualquer sistema possui. No caso do direito, as regras, princípios e doutrinas existentes são contingentes, no sentido em que poderiam ser diferentes. Do mesmo modo, todas as estruturas são forma-

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das por operações que podem conduzir a novas estruturas. O autor rebate assim a ideia da existência de um «direito natural»4, apesar de o ideal de justiça ser canonizado – como espécie de universalidade válida em qualquer lugar – pelo próprio sistema jurídico. O modo pelo qual o ideário de justiça se pode manter sempre associado ao direito sem se cair na ilusão do direito natural, é fazendo equivaler a justiça a uma «fórmula de contingência» (Luhmann, 2004: 211-29). O sistema jurídico é caracterizado por possuir a exclusividade da aplicação do código binário «legal/ilegal» ou «lícito/ilícito», sendo este responsável pela positivização do direito, vista como uma determinação operacional deste. Ao contrário da sociologia jurídica tradicional, que vê na positivização um simples resultado das condições sociais gerais, Luhmann defende uma sociologia que encare a modificação do direito como parte integrante do sistema jurídico e imanente a ele e somente os requisitos fixados na legislação podem fundamentar objecções contra a vigência e validade das leis. «A unidade do sistema legal é conferida primariamente no seio do sistema pela forma das suas sequências operativas, as quais reproduzem o sistema autopoieticamente (…) o sistema tem que ser capaz de reconhecer, isto é, de identificar, as operações como repetições de modo a facilitar esta forma de auto-referência através da repetição» (Luhmann, 2004: 211, tradução dos autores).

O autor constata a tendência para colocar a justiça e o direito no plano da moral e da ética. Mas, uma vez que a positividade do direito o protege de influências ligadas a interesses políticos e morais, mostra-se desadequada uma teoria da justiça como critério exterior ou superior do sistema jurídico. Assim, a justiça só pode ser considerada a partir do interior do sistema jurídico, devendo ser reorientada para a questão da complexidade adequada do sistema jurídico e da consistência de suas decisões. «Aceitamos inteiramente que as normas morais são referidas no sistema legal e que, através de tais referências, se tornaram juridificadas; mas, de modo a demonstrar que isto é assim, esta disposição deverá ser consubstanciada por dados provenientes de textos legais específicos» (Luhmann, 2004: 211, tradução dos autores).

Luhmann relembra, a propósito da discussão do sentido da justiça, a necessidade da auto-observação e da auto-descrição do sistema, na medida em que a validade das operações jurídicas dependem do uso recursivo de outras operações internas do sistema: «Enquanto a “validade” é um símbolo que circula no sistema, ligando operações umas às outras, e relembrando os resultados das mesmas para posterior uso recursivo, a justiça tem que ver com as auto-observações e auto-descrições do sistema» (Luhmann, 2004: 213, tradução dos autores).

(4) Direito natural (em latim, lex naturalis) é uma teoria que postula a existência de um direito cujo conteúdo é estabelecido pela natureza e, portanto, válido em qualquer lugar.

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A autonomia operativa do sistema deve-se às operações de código binárias que estabelecem a diferença entre justo e o não justo. A justiça corresponde assim ao princípio que permite diferenciar comunicações específicas entre o justo e o não justo, que se estabelecem e evoluem de acordo com as regras do sistema. Estas são moldadas historicamente e variam entre um sistema e outro. A codificação jurídica é imprescindível para decidir sobre o que é justo e o que não o é, com base nos valores estabelecidos pelo código binário, e os códigos jurídicos reproduzem-se e evoluem de acordo com os critérios do próprio sistema jurídico. O sistema jurídico tem que definir a justiça de modo a identificá-la com uma ideia, um princípio ou um valor que deve prevalecer no sistema. Deste modo, a ideia de justiça nunca é contestada no interior do sistema jurídico, embora Luhmann rejeite a ideia de que a justiça equivalha a uma espécie de princípio natural do direito. Apesar do princípio abstracto da justiça ser efectivamente válido em qualquer sistema jurídico, os seus conteúdos concretos variam, o que desde logo se explica pelo facto que «As assumpções da natureza são substituídas pelas assumpções das auto-especificações da fórmula» (Luhmann, 2004: 215, tradução dos autores). As operações internas do sistema jurídico, ainda que detendo um carácter circular e recursivo, não deixam de explorar outras possibilidades, mas sempre de modo latente e guiando-se pelo princípio da «igualdade» com base no que é legalmente válido. Ou seja, a procura do justo é sempre feita do interior pela mobilização da recursividade: «A formula para a contingência é um esquema para a procura de razões ou valores, os quais se podem tornar legalmente válidos somente sob a forma de programas. Cada resposta a uma qualquer questão colocada seria então encontrada no sistema legal ao mobilizar a sua recursividade» (Luhmann, 2004: 218, tradução dos autores).

Finalmente, para compreender cabalmente a proposta do autor de uma teoria da justiça, importa perceber a distinção que Luhmann faz entre função e desempenho do sistema jurídico. Enquanto a função do direito é específica, o desempenho não o é. O objectivo da acção (desempenho) reside na resolução de disputas, o que não é exclusivo do direito. Já a função consiste na estabilização das expectativas normativas pela criação de normas, não só pela coerção mas pela obrigatoriedade do tempo das comunicações jurídicas, ou seja, aquilo a que Luhmann chama a dimensão temporal do direito (Luhmann, 2004: 15), que consiste na manutenção do sentido das comunicações referentes a expectativas normativas. A estabilidade normativa criada pelo direito faz com que este não tenha rival similar no que se refere à produção de normas, com a excepção, talvez, da concorrência dos média na produção de orientações relativamente estáveis no domínio cognitivo e normativo (Luhmann, 2000: 99). Devido à autonomia do sistema jurídico em relação ao resto da sociedade e à repetição das suas operações de modo a estabilizar os sentidos da comunicação, este produz normas mais estáveis do que aquelas emanadas da ética ou do que é considerado «natural» e «normal». O que faz com que as normas jurídicas possam mesmo apoiar as operações de outros sistemas, como a economia ou a política. Por outras palavras, quando o sistema social deseja estabilizar regras, o melhor é inseri-las no sistema jurídico, ou seja, juridificar as relações sociais.

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Para Luhmann a justiça significa a complexidade adequada que resulta da consistência do processo de decisão do sistema jurídico (Luhmann, 2004: 219), o que é particularmente difícil nas sociedades modernas, atendendo à crescente juridificação da sociedade e ampla diversidade de casos. A consistência na decisão – medida por exemplo, pela tomada de decisões iguais em casos similares – é desafiada pela crescente diversidade de práticas judiciais. O que também tem a ver com a ressonância que o ambiente introduz no sistema autopoiético, que, por sua vez, em nome da certeza do direito e da estabilização das expectativas normativas, favorece a repetição das decisões. Porém, sobretudo, Luhmann situa a discussão da justiça no interior do próprio sistema jurídico, reforçando assim o seu projecto de criar uma sociologia jurídica que não faça «desaparecer o direito». Reafirma assim a absoluta necessidade de separar a moral e a ética do direito, embora não descure a possibilidade de desacordo moral na avaliação sobre o direito e a justiça: «Uma divisão clara entre justiça, julgamento moral e reflexão ética não é somente uma questão de autonomia do sistema legal. Também garante que um julgamento moral sobre a lei possa ser feito independentemente da lei e, por último, permite a possibilidade de dissensão moral na avaliação das questões legais» (Luhmann, 2004: 225, tradução dos autores).

Por fim, torna-se importante perceber o modo de funcionamento da justiça na perspectiva de Luhmann, pela distinção que este elabora entre «codificação e programação» (coding and programming, Luhmann, 2004: 173-210). Enquanto o código permite distinguir entre o que pertence e não pertence ao sistema, a programação estabelece as condições pelas quais é apropriado aplicar a categoria positiva e negativa da codificação (no caso do direito, legal/ ilegal): «Os códigos permitem-nos distinguir entre o que pertence ao sistema e o que não pertence ao sistema, enquanto os programas, que atribuem os valores de legal/ilegal, são objecto de julgamentos de válido/inválido» (Luhmann, 2004: 209, tradução dos autores).

Um exemplo permitirá clarificar a aplicação da codificação binária legal/ilegal e a inerente programação. Veja-se o caso da aplicação da ciência forense no âmbito da justiça criminal. A ciência baseia-se num código binário que diferencia entre verdadeiro e falso. O sistema jurídico vai converter a procura da «verdade» na procura da decisão entre o que é legal e ilegal, ou seja, determinando se um indivíduo é culpado (logo, a punição é legal) ou se é inocente (logo, a punição seria ilegal). Mas isto não significa que a culpa equivalha à «verdade» da ciência. Isto porque o código do direito (a punição é legal ou ilegal) não corresponde ao código da ciência (essa informação é verdadeira ou falsa). Pode ser problemático para a justiça que a própria codificação e programação dos média tenda a elaborar sobre a programação da justiça, na medida em que pode actuar na denúncia de casos e a sua selectividade opera na codificação daquilo que é desviante ou normal, de acordo com os seus critérios binários (aceite/não-aceite; relevante/irrelevante; conforme/

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desviante). Com isso, pode pressionar ou interferir na codificação/programação da justiça (Altheide, 1992: 71; Ericson et al., 1991: 239-83). E como se situa a ideia de justiça no contexto da codificação binária? A justiça opera também por um código binário assente na ideia de igualdade, mas num sentido particular ao sistema jurídico, ou seja, pela igualdade (consistência) no tratamento dos casos judiciais. O código pelo qual a justiça opera baseia-se na distinção «igual/desigual», permitindo não só repetir a codificação com base em programações prévias, como também lidar com a indeterminação (mudando a programação, mas nunca o código) (Luhmann, 2004: 224). Codificação e programação do direito segundo Niklas Luhmann Sistema Social

Subsistema do direito Fechamento operativo

Autopoiese Codificação binária

Comunicação jurídica significativa

Seleccção dos elementos do ambiente

Actividade de reflexão e debate: A reforma dos Códigos Penal e de Processo Penal que entrou em vigor, em Portugal, em 2007, foi desencadeada, de acordo com alguns, por ressonância da pressão da comunicação social sobre a investigação criminal e a administração da justiça, muito particularmente por intermédio de casos que envolveram figuras públicas. Alterações no Código de Processo Penal são encaradas como resultado de impactos de casos concretos, nomeadamente as mudanças introduzidas ao nível da duração do interrogatório do arguido, escutas telefónicas, reconhecimentos fotográficos e a obrigatoriedade de informar o arguido sobre os factos que existem contra si. Discuta esse cenário, com base na ideia desenvolvida por Luhmann, sobre a ressonância que o ambiente, e particularmente por influência dos média, introduz no sistema autopoiético do direito.

A perspectiva de autores contemporâneos

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3. FLEXIBILIDADE E AUTOPOIESE DO DIREITO – O CONTRIBUTO DE GUNTHER TEUBNER Esta secção visa: – reconhecer o elemento de flexibilidade em relação ao conceito de autonomia do sistema jurídico e de autopoiese do direito; – explanar como é alcançada a autopoiese em virtude da constituição de relações circulares e recursivas entre o sistema jurídico e o sistema social; – contrapor a tese da autonomia do direito e da justiça à autonomia jurídica com base nas relações entre infraestrutura e superestrutura, construídas conceptualmente pelas teorias marxistas; – relacionar o conceito de «perturbação» com a possibilidade de introdução de mudança no sistema judicial.

3.1. Gunther Teubner e a juridificação das sociedades actuais A teoria de Luhmann teve continuidade em trabalhos de autores como Gunther Teubner (1944-). Sociólogo e jurista alemão, professor de sociologia jurídica na Universidade de Frankfurt, Teubner retoma o projecto de Niklas Luhmann no sentido de criar uma sociologia jurídica «distinta da tradicional». Recupera a noção do direito como sistema autopoiético, mas reformulando-a a partir da análise empírica da juridificação das sociedades contemporâneas (Teubner, 1993), e focando em particular a realidade concreta dos sistemas jurídicos europeus desenvolvidos no contexto do Estado-providência. Autor de vasta obra no âmbito da sociologia jurídica, merece particular relevo o livro O direito como sistema autopoiético (Teubner, 1993), no qual revisita a teoria dos sistemas de Luhmann, no sentido de a dotar de sujeitos, pelo entendimento de que o direito deve ser analisado como resultado da interacção entre factores sistémicos do próprio direito e as pressões políticas (Mello, 2006: 363). «Luhmann (…) identificando autonomia com autopoiesis e vendo em ambas as realidades de inflexível rigidez, acaba por ser incapaz de acomodar diferentes graus de autonomia do sistema jurídico» (Teubner, 1993: 71).

A abordagem proposta por Teubner assenta no princípio de que é necessário introduzir flexibilidade no conceito de autonomia do sistema jurídico e de autopoiese do direito, afirmando que existem diferentes níveis de gradação desses fenómenos (Teubner, 1993: 64-74). Admitindo que existem sucessivos graus ou etapas de autonomia do sistema jurídico, considera que este só se torna totalmente autónomo e auto-referencial quando os seus elementos – acções, normas, processos e identidades – se constituem em ciclos auto-referenciais, conjugando-se entre si. A autopoiese é plenamente atingida quando se exclui a exis-

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tência de interacções entre o sistema jurídico e o sistema social em virtude da constituição de relações circulares e recursivas: «Um sistema jurídico se torna autónomo na medida em que consiga constituir os seus elementos – acções, normas, processos, identidade – em ciclos auto-referenciais, só atingindo o termo perficiente da sua autonomia autopoiética quando os componentes do sistema, assim ciclicamente constituídos, se articulem entre si próprios, formando um hiperciclo» (Teubner, 1993: 58).

A autonomia jurídica reside no carácter circular e recursivo de novos elementos do direito a partir dos seus próprios componentes sistémicos, o que não significa negar a existência de nexos causais entre o sistema jurídico e os outros subsistemas sociais. Significa somente que as influências externas são particularmente complexas no caso do sistema jurídico, devendo estas ser descritas como um problema de influência externa sobre processos causais circulares internos. Teubner assume-se como crítico tanto da teoria dos sistemas como da teoria marxista. Relativamente à teoria dos sistemas, considera-a incompleta por apenas referir a capacidade do sistema jurídico de criar as suas próprias regras, sem referir a sua capacidade de «auto-constituição de acções jurídicas, a juridificação dos processos e a “invenção” de institutos jurídico-doutrinais» (Teubner, 1993: 72). No que toca às teorias marxistas que forjam a autonomia jurídica com base nas relações entre infraestrutura e superestrutura, o autor considera que é necessário distinguir conceptualmente entre circularidade da produção do direito e independência causal do sistema jurídico face ao meio envolvente: «Muitas polémicas levantadas pelos críticos da teoria autopoiética teriam sido evitadas se isto tivesse sido perfeitamente entendido: entre outras coisas, não teria sido possível afirmar que a noção de autonomia operacional de um sistema jurídico autopoieticamente organizado favorece a criação de uma espécie de autarcia do direito, nem se teria perdido tempo a recolher evidência empírica com o fito de demonstrar a dependência do direito do sistema económico e político» (Teubner, 1993: 73).

Em vez de se falar duma relação de causa-efeito, Teubner adopta o conceito de «perturbação», introduzido no sistema jurídico por factores externos e capaz de confrontar os limites internos da racionalidade formal do direito com as exigências estruturais e funcionais das sociedades actuais. O sistema jurídico considera-se a si próprio como um sistema dentro de um ambiente, e reconhece os limites da sua capacidade de regulação dos outros sistemas sociais: «A autonomia jurídica não exclui, mas antes pressupõe, a possibilidade de interdependência entre sistema jurídico, sistema político e sistema económico, com a ressalva de esta ser aqui perspectivada e entendida como um problema de influência externa sobre processos causais circulares internos» (Teubner, 1993: 74).

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O conceito de perturbação proposto por Teubner é útil no sentido de proporcionar uma explicação para o modo como os média podem actuar como catalisadores de mudança nas sociedades modernas. Não necessariamente enquanto relação de causa-efeito, mas como elemento de pressão externa sobre os restantes sistemas que, embora autónomos mas interdependentes, se vêem constrangidos a adaptar-se. Por exemplo, os média, ao tornar visível determinado tipo de criminalidade, como por exemplo crimes de corrupção, carjacking ou casos de abuso sexual de menores, são capazes de pressionar mudanças no sistema político e legislativo, transformando as prioridades de política criminal que vão implicar mudanças ao nível do sistema judicial.

Direito como autopoiese segundo Gunther Teubner Juridificação das sociedades actuais

SISTEMA JURÍDICO

Circularidade Independência

SISTEMA ECONÓMICO

Perturbação

Pressão externa

Sujeitos

SISTEMA POLÍTICO

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Actividade de reflexão e debate: Atendendo à crescente juridificação da sociedade, discuta a ideia de «perturbação» do sistema jurídico por via de factores externos (p. ex. os média), passíveis de confrontar os limites internos da racionalidade formal do direito com as exigências estruturais e funcionais das sociedades actuais. Procure apresentar exemplos de casos ou eventos mediáticos que se traduziram em «perturbações» capazes de catalisar mudanças no sistema judicial.

4. O DIREITO E A MORAL SECULARIZADA – O CONTRIBUTO DE JÜRGEN HABERMAS Esta secção visa: – identificar o contributo de Habermas no conjunto da teoria crítica desenvolvida pela Escola de Frankfurt, como projecto de reconstrução do materialismo histórico e de projecção de uma modernidade assente na liberdade e na emancipação dos sujeitos; – reconhecer a importância da acção comunicativa e da esfera pública como base da sociedade ideal projectada pelo autor e como elemento fulcral da teoria do direito e da justiça; – explanar de que forma a linguagem, o discurso e a comunicação surgem como elementos de garantia da democracia, pela obtenção da compreensão de interesses mútuos e pelo alcance de um consenso, considerados essenciais na legitimação da justiça; – compreender como a teoria do direito se sustenta numa ética discursiva e a validade social das normas jurídicas assenta em preceitos morais e pragmáticos que fundamentam a aceitação racional das consequências do acto jurídico; – relacionar o papel dos média nas sociedades modernas com os processos informais de formação de opinião pública e a sua importância na legitimação da lei.

4.1. Jürgen Habermas e o direito, a comunicação e secularização da moral Jürgen Habermas (1929-), filósofo e sociólogo alemão, ingressou em 1956 no Instituto de Investigação Social em Frankfurt, tornando-se assistente de um dos mais renomados membros da denominada Escola de Frankfurt, Theodor Adorno. Herdeiro da teoria crítica da Escola de Frankfurt, envolve-se na discussão e reflexão de temas como o marxismo e a abordagem crítica da cultura de massas, do cientismo e do tecnologismo. Desde cedo, Habermas enveredou por um percurso intelectual relativamente independente e é, ainda hoje, tido como um dos mais importantes pensadores neo-marxistas, empenhado em debater as possibilidades de uma sociedade futura caracterizada pela comunicação livre, aberta e emancipatória. Crente, tal como Marx, que o projecto da modernidade está ainda por realizar (Habermas, 1990: 13-32), Habermas vê na comuni-

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cação livre o rumo possível para a sociedade futura ideal e assenta a sua teoria do direito e da justiça numa teoria do discurso, da linguagem e da comunicação. É ainda conhecido por se opor às teorias da pós-modernidade e por defender a possibilidade de construção de uma grande teoria nas ciências sociais, distanciando-se assim dos pós-modernistas que defendem o fim das grandes narrativas (Ritzer, 1996: 589), tal como atestam as seguintes palavras do autor: «O pensamento pós-moderno está meramente a atribuir a si mesmo uma posição transcendente, quando na realidade permanece dependente dos pressupostos, validados por Hegel, da autocompreensão moderna. Não podemos excluir de antemão a hipótese de que o neo-conservadorismo ou anarquismo de inspiração estética estejam apenas a tentar mais uma vez, em nome de um adeus à modernidade, revoltar-se contra ela. Pode muito bem ser que eles estejam pura e simplesmente a disfarçar sob a capa do pós-iluminismo a sua cumplicidade com uma venerável tradição do contra-iluminismo» (Habermas, 1990: 16).

Envolvido na missão de desenvolver um programa teórico que classifica como «reconstrução do materialismo histórico» (Habermas, 1975: 95, tradução dos autores), o trabalho de Habermas, usualmente englobado no conjunto das teorias neomarxistas (Ritzer, 1996), assume-se explicitamente como uma crítica à visão que Karl Marx apresenta do potencial humano, que considera ser redutora, por se centrar unicamente no trabalho, constituindo uma «redução do acto auto-gerador da espécie humana para o trabalho» (Habermas, 1971: 42, tradução dos autores). Defensor de uma distinção fundamental entre trabalho e interacção, o autor distingue entre «acção racional com vista a um objectivo» (trabalho) e «acção comunicativa», considerando que esta última é a que constitui o traço mais distintivo e essencial dos fenómenos humanos. Além disso, acrescenta que não é o trabalho, mas sim a comunicação a base da vida da sociedade. «Na teoria do agir comunicacional o processo circular, que encerra o mundo da vida e a praxis comunicativa quotidiana, ocupa o lugar de mediador que Marx e o marxismo ocidental tinham reservado à praxis social» (Habermas, 1990: 293).

Se para Marx o curso da história deveria ter como objectivo principal atingir uma sociedade sem barreiras ao desenvolvimento pleno do potencial humano para o trabalho (a sociedade socialista); para Habermas o ideal seria realizar uma sociedade isenta de barreiras e de distorções da comunicação. Foi a partir dos anos oitenta do século XX, que Habermas se dedicou a reflectir sobre o direito, embora a coerência interna da sua extensa obra nos conduza a remeter para trabalhos anteriores, de modo a atingir uma compreensão mais completa da discussão que o autor empreende da importância do jurídico nas sociedades modernas. Muito sinteticamente, podemos afirmar que Habermas apresenta uma visão optimista do papel dos sujeitos na história, ao entender que a razão jurídica, feita pelos meios semânticos que permi-

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tam aos sujeitos jurídicos (cidadãos) dominar a história, se ancora nas potencialidades da comunicação livre, do debate aberto entre os sujeitos, que por sua vez, se poderão constituir como cidadãos neste processo comunicativo. 4.1.1. A teoria da acção comunicativa e a esfera pública A acção comunicativa é uma das principais teorias desenvolvidas por Habermas, introduzida pela primeira vez na obra A teoria da acção comunicativa (vol. I) (Habermas, 1984). Trata-se de uma teoria da sociedade moderna alicerçada em métodos da sociologia, da filosofia social e da filosofia da linguagem. Aqui, Habermas vai pensar a linguagem como elemento de garantia da democracia, uma vez que, na sua perspectiva, a própria democracia pressupõe a compreensão de interesses mútuos e o alcance de um consenso partilhado. Contudo, para que a linguagem assuma este papel, é necessário que a comunicação seja clara, defendendo o autor que, nas sociedades actuais, ainda se assiste a várias espécies de distorção da comunicação, que impedem a comunicação efectiva e a construção de consenso, e como tal, a prática efectiva da democracia. A ideia da importância da comunicação e o conceito de acção comunicativa afiguram-se de particular importância para a discussão da teoria do direito e a reflexão sobre o papel da justiça nas sociedades contemporâneas propostas por Habermas. Por acção comunicativa, o autor entende aquela acção que apresenta duas características fundamentais – a coordenação entre os actores para atingir a compreensão e a harmonização de planos de acção com vista a alcançar definições de situações comuns: «As acções dos agentes envolvidos são coordenadas, não por cálculos egocêntricos de sucesso, mas através de actos de procura de consenso. Na acção comunicativa, os participantes não são primariamente orientados pelos seus próprios sucessos; perseguem os seus objectivos individuais sob a condição de que possam harmonizar os seus planos de acção na base de definições de situações comuns» (Habermas, 1984: 286, tradução dos autores).

A aplicação da teoria da acção comunicativa ao direito é abordada essencialmente na obra Entre factos e normas: Contributos para uma teoria do discurso do direito e da democracia (Habermas, 1996). Cruzando elementos da filosofia da linguagem já expressos na obra A teoria da acção comunicativa, com uma teoria da jurisprudência e um conjunto de reflexões sobre a sociedade civil e a democracia, Habermas propõe uma reflexão que podemos situar no âmbito da sociologia e filosofia do direito, mas também da teoria política. Estamos assim perante uma abordagem da teoria da justiça nas sociedades contemporâneas que pensa o direito, os tribunais e as interfaces entre o judiciário e o poder político em termos de comunicação e moral, esta última «secularizada», conforme será explanado mais à frente. Habermas considera que o direito representa a instância primeira de integração social na sociedade moderna, na medida em que legitima que o poder do Estado exija obediência da parte dos cidadãos. Introduz o conceito de «poder de comunicação» na teoria do direito,

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para explicar que a produção legitimada das leis emerge da opinião pública, através de um processo simultaneamente político e legislativo: «A formação de opinião pública informal gera “influência”; influência essa que é transformada em “poder comunicativo” por via dos canais das eleições políticas; e o “poder comunicativo” é novamente transformado em “poder administrativo” através da legislação. Esta influência, levada a efeito pelo poder comunicativo, confere à lei a sua legitimidade, e deste modo proporciona ao poder político do Estado a sua força compulsória» (Habermas, 1996: 301, tradução dos autores).

Há assim uma relação recíproca e circular entre o poder da comunicação e o poder de legitimação do direito e do Estado, que se justapõem: o poder político institucionaliza o direito e a justiça, enquanto estes, por sua vez, conferem legalidade ao exercício do poder político. Contudo, se o direito assenta numa perspectiva normativa, o poder político baseia-se numa perspectiva instrumental, o que conduz o autor a distinguir entre «poder de comunicação» e «poder administrativo». Será por via da legislação que o poder de comunicação se converte em poder administrativo. De facto, em democracia, o poder da comunicação não governa directamente, mas quando a influência da opinião pública é canalizada para processos de decisão do governo, para programas de acção política e para actos legislativos, pode-se falar de influência política da opinião pública (Habermas, 1996: 300). O papel dos média enquanto espaço onde a acção comunicativa se converte em opinião pública assume uma importância fulcral. Embora se possa presumir que as decisões e debates relevantes possam ser levadas a cabo longe dos olhares do público, os média dispõemse a actuar como pontes entre a formação informal de opinião e os processos institucionalizados de formação de vontade (Cottle, 2003: 168; Curran e Seaton, 2003: 335; Habermas, 2006 in Garnham, 2007: 209). Preocupado em identificar de que modo, nas sociedades modernas, a comunicação permite que uma colectividade faça a sua história, e em analisar as condições que podem favorecer um processo de comunicação a uma escala global, Habermas defende que a chave de uma comunicação efectiva reside numa articulação eficaz entre o espaço público e o sistema político constituído em Estado de direito. Na obra A transformação estrutural da esfera pública (Habermas, 1989), dá continuidade à tradição da Escola de Frankfurt ao abordar os efeitos perniciosos da comercialização e do consumismo na esfera pública pelo surgimento e expansão dos meios de comunicação social e da cultura de consumo. Em particular, debruça-se sobre as consequências negativas sentidas nos partidos políticos e nos debates parlamentares, cada vez mais distantes de um debate racional e crítico, essencial para a democraticidade da sociedade moderna. Segundo Habermas, o alargamento da esfera pública proporcionou um espaço onde é disseminada uma «cultura de integração» por via dos média que levou à deterioração do carácter específico da esfera pública, ou seja, uma cultura que não só integra os formatos de informação e debate com formas literárias, fundindo informação com entretenimento,

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mas que é suficientemente flexível para assimilar funções publicitárias e de propaganda política e económica (Habermas, 1989: 175). A esfera pública nas sociedades modernas refere-se ao que Habermas define como um «público que julga» (Habermas, 1984: 41), que é resultante de um processo histórico que envolve a conquista de direitos e configura em modos peculiares de racionalização. «A esfera pública burguesa pode ser concebida sobretudo como a esfera dos indivíduos privados reunidos enquanto público; logo disseram que a esfera pública exercia uma regulação a partir de cima contra as próprias autoridades públicas para as enfrentar num debate acerca das regras gerais das relações de governação na basicamente privatizada, mas publicamente relevante, esfera da troca de bens e do trabalho social. O meio deste confronto político foi peculiar e sem precedente histórico: o uso público da razão por parte das pessoas “Öffentliches Räsonnement”» (Habermas, 1989: 27, tradução dos autores).

O modelo-base da esfera pública na actualidade é aquele que surgiu com um formato burguês, em Inglaterra, no século XVII, graças ao surgimento da imprensa, e que corresponde à emergência de uma ordem pública laica, constituída por indivíduos privados, que se reúnem para formar um público ou para discutir questões de interesse público. A esfera pública ganha realidade empírica nos cafés e pubs (public houses, ou casas públicas) europeus, popularizados no século XIX. Este cenário é fortalecido pela expansão do acesso à educação, especialmente a alfabetização, e à literatura, que acabam viabilizando a ampliação da reflexão crítica e reflexividade. É uma nova (ou renovada) forma de participação política e social, capaz de fazer relacionar a sociedade civil com o Estado. Trata-se de uma arena fundada na racionalidade, diálogo e capacidade argumentativa que faz lembrar os fóruns democráticos gregos na Polis e que, de acordo com Habermas (1984), deteria as seguintes características principais: (i) debate aberto e acessível a todos; (ii) pauta estruturada a partir de interesses comuns ou não particularistas; (iii) atribuição de status de igualdade entre os actores; (iv) processos de decisão apoiados em igualdade de condições. Este conceito de esfera pública é susceptível de críticas (ver por exemplo, Fraser 1992), pelo facto de pressupor um acesso universal à esfera pública, mas ao mesmo tempo estabelecer como condição a posse de educação. Habermas refere que «Uma esfera pública da qual grupos se encontrassem excluídos seria menos do que meramente incompleta; não seria de todo uma esfera pública» (Habermas, 1970: 85). No entanto, uma vasta camada da população não tem, nem provavelmente terá acesso a esta esfera pública. Em determinado sentido a ideia de esfera pública de Habermas permanece como uma forma ideal, um elemento do projecto inacabado da modernidade (Cubitt, 2005: 93). Ao longo da história, a esfera pública burguesa foi-se institucionalizando por duas vias: por um lado, pela formação de partidos e de parlamentos; e por outro lado, pela formação da cultura de massas, podendo assim declinar, neste segundo formato, pela via do empobrecimento cultural e da mercantilização. Na visão de Habermas, o crescimento das forças produtivas causado pelo capitalismo e o aumento do controlo tecnológico sobre a vida (Habermas, 1970) produziram uma forma de racionalização que, tal como já tinham dito

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autores clássicos da sociologia, como Weber e Marx, constitui o principal problema da sociedade actual. Como solução, Habermas aponta a racionalização da acção comunicativa (Ritzer, 1996: 294), de modo libertar a comunicação da dominação ideológica. A emancipação dos sujeitos só poderá advir da emancipação baseada na «remoção de restrições à comunicação» (Habermas, 1970: 118, tradução dos autores). Em vez de defender, na esteira do marxismo, uma evolução social que passe por uma mudança do sistema produtivo, Habermas (1975) aponta o caminho da evolução das sociedades como sendo baseado em um novo sistema normativo, pautado pela racionalidade, significando racionalidade a eliminação das barreiras da comunicação e a formação de um sistema de comunicação baseado na interacção, na apresentação e debate aberto e transparente de ideias até alcançar consenso. Neste sistema não haveria, a priori, argumentos ou poderes mais ou menos dissimulados que poderiam vingar, mas venceria a ideia que fosse considerada mais válida ou mais próxima da «verdade», através daquilo que o autor chama «a procura cooperativa da verdade». A verdade alcançada pelo consenso teria que reunir quatro condições essenciais: (i) a comunicação dos discursantes é compreensível; (ii) os argumentos apresentados são credíveis; (iii) os argumentos são verídicos; (iv) os actores têm o direito de, a qualquer momento, completarem os seus argumentos (Ritzer, 1996: 295). Habermas descreve nos seguintes termos o processo comunicativo que poderá permitir alcançar o consenso da verdade: «Que as reivindicações tomadas na redução à sua pureza essencial, de validade das asserções, recomendações ou avisos sejam o objecto exclusivo de discussão; que os participantes, temas e contribuições não sejam restringidos excepto no que se refere ao objectivo de teste das reivindicações de validade em causa; que nenhuma força exceptuando a do melhor argumento seja exercida; e que todos os motivos exceptuando o da procura cooperativa da verdade sejam excluídos» (Habermas, 1975: 107-8, tradução dos autores).

A acção comunicativa define a essência da sociedade, na medida em que a vida em sociedade envolve sobretudo «um cenário formador de contextos relativos a processos de alcance de compreensão e consenso» (Habermas, 1987: 204, tradução dos autores), em que o argumento vencedor servirá para construir o consenso entre os sujeitos actuantes. A sociedade tanto pode ser construída do ponto de vista do sujeito – «A sociedade é concebida a partir da perspectiva do sujeito actuante» (Habermas, 1987: 117, tradução dos autores) – como do ponto de vista externo, do observador – «da perspectiva observante de alguém não envolvido» (Habermas, 1987: 117, tradução dos autores). Na construção da sociedade (do ponto de vista interno ou externo) intervêm elementos que derivam dos principais componentes da vida social (cultura, sociedade e personalidade), formados por estruturas como a família, o Estado, a economia e o judiciário. Mas a racionalização da vida moderna assenta na crescente diferenciação e complexidade das estruturas da sociedade, que se tornam cada vez mais auto-suficientes e cada vez menos envolvidas em processos de construção de consenso com base na acção comunicativa, o que nos conduz à teoria de Habermas da «colonização da vida moderna» (Habermas, 1987).

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4.1.2. O papel do direito nas sociedades modernas O ideal de democratização da sociedade desenvolvido por Habermas sustenta-se na sua teoria da comunicação e articula-se com concepções ético-morais e epistemológicas de formas fundamentais de integração social, sobre a organização da sociedade e sobre o campo de acção dos sujeitos. Discutindo o conceito de modernidade, apresenta uma complexa e vasta reflexão que nos conduz a seleccionar da sua ideia de «colonização da vida moderna» apenas aquilo que mais nos poderá interessar para a reflexão em torno do direito e da justiça nas sociedades modernas. Em particular, interessa-nos salientar que Habermas vê nas sociedades capitalistas actuais a tendência para a comunicação se tornar mais rigidificada, empobrecida e fragmentada devido à colonização do «mundo da vida» (do quotidiano) pelo dinheiro e pela burocracia, na medida em que as principais forças destes processos residem em processos de controlo dos sujeitos e das acções assentes na economia e no Estado. «O padrão capitalista de modernização é marcado por uma deformação, uma reificação das estruturas simbólicas do mundo da vida sob os imperativos de subsistemas diferenciados por via do dinheiro e do poder, assim tornadas auto-suficientes» (Habermas, 1987: 283, tradução dos autores).

Tal como Luhmann (1995), Jürgen Habermas (1992) vai centrar a sua atenção no fenómeno da crise do direito formal a que se assiste na contemporaneidade, embora adoptando uma perspectiva bastante distinta. Luhmann (1995) atribui as tendências de crise do direito formal a problemas de adaptação à diferenciação funcional da sociedade e aponta como solução uma maior autonomia do direito, uma abstracção mais pronunciada dos conceitos jurídicos, maior auto-reflexão do sistema e um novo funcionalismo da doutrina. Habermas (1975, 1984, 1987) considera que a racionalidade formal do direito está ligada a uma crise geral de legitimidade do capitalismo organizado. Para vencer essa crise, deve-se institucionalizar uma nova razão comunicacional da normatividade, para transformar as estruturas jurídicas da sociedade em geral (Mello, 2006: 361). Para Luhmann não há sujeitos e as operações jurídicas «não devem nada, enquanto operações jurídicas, a qualquer sujeito que invista nelas as suas aspirações à justiça, ou os seus projectos políticos» (Guibentif, 2006: 5), apenas dependendo, nas suas condições de possibilidade, de operações jurídicas anteriores. A este modelo de sociedade e de mundo jurídico sem sujeitos, contrapõe Habermas uma teoria pela qual os actores sociais não estão ausentes nem são apenas realizadores de normas (como defendia Parsons), mas apresenta-os como propositores activos e conscientes, fazendo com que a opinião pública se transforme num poder comunicacional que vai interferir na administração da justiça: «As opiniões públicas transformam-se num poder comunicacional que autoriza o legislador e legitima uma administração reguladora, enquanto a crítica jurídica, publicamente mobilizada, obriga os tribunais, que intervêm na formação do direito, a um esforço mais rigoroso de justificação» (Habermas, 1992 in Guibentif, 2006: 8).

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Face à colonização da vida moderna, pela qual a própria linguagem do quotidiano é controlada pelo poder do sistema político, do aparato administrativo-burocrático e do dinheiro, que papel subsiste ainda, para a opinião pública, de capacitação para o exercício de poder comunicacional que mobilize os cidadãos e que conduza os tribunais a tentar alcançar uma verdade que se afigure consensual e credível no espaço público? A teoria da justiça de Habermas coexiste com um conceito de solidariedade, uma vez que o direito garante relações simétricas de reconhecimento recíproco entre titulares abstractos de direitos subjectivos, sob a premissa de estabilização de expectativas de comportamento. A justiça é definida como algo que é igualmente bom para todos – «o que é igualmente bom para todos» (Habermas, 1998: 29) –, e que emerge da natureza binária do debate pela validade e das condições em que se desenvolve a argumentação. A solidariedade é o «laço social» estabelecido entre membros de uma comunidade (Habermas, 1998: 10), uma comunidade em que cada sujeito encara o outro como «um de nós»: «uma pessoa coloca-se no lugar de outra» (Habermas, 1998: 29). No âmbito estrito da justiça, os participantes no acto de administração da justiça empregam um sentido individualista de igualdade, ao passo que, em termos de solidariedade, os indivíduos consideram-se membros de uma comunidade dotada de comunicação ilimitada (Habermas, 1993: 154). Para que o consenso seja atingido e partilhado pelos participantes no acto da administração da justiça, as normas do direito a aplicar têm que ser justificadas com razões válidas, assentes num discurso real (Habermas, 1990: 68) que surja aos olhos dos cidadãos como justificado e imparcial. As implicações normativas de atingir a ordem social e a resolução de conflitos através do acordo racional são várias: (i) cooperação e consenso no lugar de domínio, coerção e violência; (ii) a selecção pública e consideração de todas as informações relevantes e potenciais consequências; (iii) a padronização de acções racionalmente motivadas; (iv) resultados que são razoáveis e justos; (v) abertura para aprendizagem moral e, daí, para mudança social (Lee, 2007: 139). 4.1.3. A justiça como moral secularizada A ideia de justiça em Habermas articula-se também com um ponto de vista moral, intersubjectivo e universalizante, que assenta na imparcialidade, que por sua vez exige que as necessidades e interesses dos participantes sejam considerados de modo igualitário (Habermas, 1993: 48-9). De facto, a teoria do direito proposta pelo autor sustenta-se numa ética discursiva, pela qual a validade social das normas jurídicas se baseia em preceitos morais e pragmáticos, que fundamentam a aceitação racional das consequências do acto jurídico, pela formação de opiniões e vontades inclusivas e discursivas, entre os sujeitos do direito. O autor trata a questão do direito por um prisma metodológico pluralista, considerando as perspectivas da filosofia, sociologia e história do direito, assim como da teoria da moral e da teoria da sociedade, para chegar a uma teoria do direito sustentada numa teoria do discurso. As exigências de uma abordagem pluralista justificam-se pelo facto de as sociedades modernas representarem a transição de uma sociedade cujas instituições se apresen-

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tavam de forma autoritariamente inabaláveis, onde as expectativas normativas se entrecruzavam com as cognitivas, para uma sociedade cuja complexidade permitiu a pluralização de formas de vida e a individualização. A transformação das sociedades modernas originou uma decomposição das convicções sacralizadas e questionou a regulação de instituições fortes, como a família, os tribunais e o Estado. Este fenómeno acarretou a indagação do direito moderno, que Habermas descreve como a tensão entre a facticidade e a validade (Habermas, 1992). As sociedades antigas validavam as suas normas por tradições e convicções apoiadas em bases míticas ou sacralizadas, ocorrendo uma fusão entre validade e facticidade. As sociedades modernas estruturaram um sistema de normas que garante as liberdades dos indivíduos, onde as características formais da obrigação e da positividade estão associadas a uma «pretensão de legitimidade» das normas. Ou seja, a base de validade deixa de ser um direito natural, fundado na religião e na metafísica, para passar a estar nas mãos do legislador político. Nas sociedades modernas perdeu-se, assim, a fundamentação tradicional da legitimidade: doravante a validade de uma norma jurídica depende da força coercitiva do Estado, que assim consegue garantir a obediência à lei, e de pressupostos institucionais que garantem o surgimento legítimo da norma jurídica. Como se processa, então, em democracia, a produção do direito e da sua legitimidade? Como se articula liberdade de informação e de argumentos com a necessária força integrativa e coercitiva do direito? A resposta de Habermas reside na acção comunicativa, sustentada na teoria do discurso e na ideia que os destinatários do direito devem poder percepcionar-se como autores desse direito. Assim se dá a legitimação dos ordenamentos jurídicos modernos: «Pois, sem um respaldo religioso ou metafísico, o direito coercitivo, talhado conforme o comportamento legal, só consegue garantir sua força integradora se a totalidade de seus destinatários singulares das normas jurídicas puder considerar-se autora racional dessas normas. Nesta medida, o direito moderno nutre-se de uma solidariedade concentrada no papel do cidadão que surge, em última instância, do agir comunicativo» (Habermas, 2003: 49).

O direito detém uma importante função de integração social na medida em que permite uma ampla comunicação de mensagens normativas, que se sustentam na linguagem do direito: «O direito funciona como uma espécie de transformador, o qual impede, em primeiro lugar, que a rede geral da comunicação, socialmente integradora se rompa. Mensagens normativas só conseguem circular em toda amplidão da sociedade através da linguagem do direito; sem a tradução para o código do direito, que é complexo, porém aberto tanto ao mundo da vida como ao sistema, estes não encontrariam eco nos universos de acção dirigidos por meios» (Habermas, 2003: 82).

Desta forma a comunidade jurídica não se constitui através de um contrato social, mas na base de um entendimento obtido através do discurso e em que a fundamentação do ordenamento jurídico, partindo de indivíduos autónomos e racionais, constitui uma capacidade «moral».

A perspectiva de autores contemporâneos

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O ponto de vista moral associado à teoria do direito implica que todos os participantes na argumentação se abram às perspectivas dos outros, tornando possível um alargamento das suas perspectivas (Habermas, 1998: 57), pelo qual cada sujeito se coloca no lugar do outro, gerando-se assim um interesse generalizado, um consenso, obtido após sucessivas abstracções: «O ponto de vista moral invoca a extensão e reversibilidade das perspectivas interpretativas de modo a que os pontos de vista alternativos e estruturas de interesse e diferenças nas auto-compreensões individuais e visões do mundo não sejam suprimidos, mas antes amplamente integrados no discurso» (Habermas, 1993: 58, tradução dos autores).

A justiça deverá reger-se, assim, por um princípio moral assente na universalidade (garantia da igualdade na abordagem dos interesses e das necessidades de cada um) e na adequação (aplicação da universalidade a situações específicas) (Habermas, 1996: 109). Para preencher a função socialmente integradora da ordem jurídica e da pretensão de legitimidade do direito, a segurança jurídica deve basear-se na aceitabilidade racional dos sujeitos do direito e nas decisões (consistentes) dos tribunais. O maior desafio para a democracia é, assim, estabelecer procedimentos que legitimem os processos legislativos pela via do assentimento de todos os cidadãos: «O princípio democrático declara que somente podem reivindicar legitimidade os estatutos que alcançam o assentimento de todos os cidadãos num processo discursivo de legislação que por seu turno foi legalmente constituído (…) através de um sistema de direitos que assegura para cada indivíduo uma participação igual num processo de legislação em cujos pressupostos comunicativos se encontram à partida garantidos» (Habermas, 1996: 110, tradução dos autores).

Tanto o direito como a moral remetem para problemas de ordem social e para necessidades de integração social. A teoria discursiva do direito acolhe a assumpção que os argumentos morais permeiam o direito, através do processo democrático da produção da legislação e das condições de equidade da formação do compromisso. A inserção da moral no direito significa que certos conteúdos morais são traduzidos para o código do direito e revestidos de um outro modo de validade, não havendo na sobreposição dos conteúdos uma dificuldade de diferenciação entre eles, uma vez mantida a diferença das linguagens. A moral presente na justiça é classificada por Habermas como uma «moral secularizada» (Habermas, 1993). A pluralidade de formas de vida e o crescente individualismo a que assistimos nas sociedades actuais, fazem com que se tenha intensificado dramaticamente a necessidade normativa de regulação das interacções quotidianas. A imparcialidade da moral secularizada, que podemos encontrar no direito, permite aos indivíduos transcender formas de vida e identidades de âmbito local e tradicional. O direito transmite as relações de reciprocidade e de simetria, características da acção comunicativa do nível da simples interacção para o nível abstracto das relações organizadas (Habermas,

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1996: 437). Para que a moralidade tenha projecção para além do contexto local, para toda a sociedade, tem que ser traduzida para código legal: «A lei é o único meio no qual é possível estabelecer, de modo fiável, relações moralmente impostas de respeito mútuo, inclusive entre estranhos» (Habermas, 1996: 460, tradução dos autores).

Ao contrário da moral, que é uma forma de conhecimento, o direito é um sistema de conhecimento (códigos jurídicos e jurisprudência) e um sistema de acção (normas que regulam comportamentos), que tem um efeito imediato na acção, ao contrário da moralidade (Habermas, 1996: 79-80). Com a complexificação da sociedade moderna, as questões legais, morais e éticas separaram-se. No entanto, considera Habermas que o direito e a moral tratam dos mesmos problemas, nomeadamente aqueles que se relacionam com a ordem social e com a resolução de conflitos de modo legítimo e consensual. Mas enquanto a moral é uma forma de conhecimento cultural, o direito é um conhecimento institucionalizado, com carácter vinculativo. Mas sobretudo, o direito e a justiça representam, em Habermas, o meio de comunicação pelo qual, pela política, se pode falar para e sobre todas as esferas da acção humana (Habermas, 1998: 252). Justiça, esfera pública e democracia segundo Jürgen Habermas

Teoria da Acção Comunicativa e Esfera Pública

Teoria do direito Legitimação pública das leis

Teoria da Justiça Solidariedade Integração Social

Teoria da Democracia Comunicação livre Consenso partilhado Emancipação

A perspectiva de autores contemporâneos

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Actividade de reflexão e debate: Desenvolva uma reflexão sobre as relações entre a justiça e os meios de comunicação social, atendendo à importância que Habermas confere à acção comunicativa e à esfera pública na construção da democracia e a definição proposta de justiça como «moral secularizada». Para esse efeito, analise criticamente a seguinte citação do texto «Crime, drama e entretenimento. O caso Maddie e a meta-justiça popular na imprensa portuguesa» (Machado e Santos, 2008). «Casos de investigação criminal com grande destaque mediático potenciam focos de tensão entre os média e os agentes judiciários. A conversão do potencial dramático do exercício da função judicial em dramas mediáticos contribui para a amplificação da noção de uma justiça lenta, débil e ineficaz na sua função de identificar e castigar os transgressores. Além disso, os média podem exercer funções concorrentes do exercício de justiça em moldes de uma justiça meta-popular, assente no imediatismo, dramatismo e apelo à emoção» (Machado e Santos, 2008: 1).

5. A SOCIOLOGIA DO CAMPO JURÍDICO – O CONTRIBUTO DE PIERRE BOURDIEU Esta secção visa: – identificar a base do campo jurídico na divisão de trabalho dos profissionais do direito, em luta simbólica permanente por dizer o direito; – reconhecer uma correspondência de poder no interior do campo jurídico e entre a posição dos agentes e das instituições no espaço social; – explanar de que forma o campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio de dizer o direito, em que se defrontam agentes investidos de distintas capacidades reconhecidas de interpretar o direito; – compreender como é que o capital linguístico pode ser um factor de hierarquização e de classificação sociais dos indivíduos no campo jurídico; – interpretar o modo como os média, integrando e dominando os sistemas simbólicos da sociedade, podem actuar como concorrentes do campo jurídico.

5.1. Pierre Bourdieu e o campo jurídico Pierre Bourdieu (1930-2002), filósofo de formação, antropólogo e sociólogo, não nos apresenta propriamente uma teoria sociológica do direito e da justiça. A construção teórica sobre o «campo jurídico» subsume-se a poucos textos (1986, 1989) e segue os pressupostos dos demais campos, alguns dos quais (a arte, a cultura, a política, a educação e os meios de comunicação social) muito mais trabalhados pelo autor. Iremos abordar a proposta de «sociologia do campo jurídico» desenvolvida por Bourdieu numa perspectiva integrada no âmbito

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geral do seu pensamento, geralmente classificado como construtivismo estruturalista ou estruturalismo construtivista. A abordagem do construtivismo estruturalista na formulação seguida por Bourdieu admite que existem no mundo social estruturas que condicionam a acção e a representação dos agentes sociais. No entanto, tais estruturas são construídas socialmente através da incorporação das estruturas da parte dos indivíduos, ao mesmo tempo que as reproduzem e legitimam. O autor admite tanto os princípios do estruturalismo como a autonomia dos agentes, adoptando, explicitamente, o objectivo de superar tanto o objectivismo estruturalista como o subjectivismo interaccionista, pela análise da dialéctica entre «situação e habitus» (Bourdieu, 2002). O habitus permite perceber a interiorização da exterioridade (o modo como a sociedade está nas pessoas sob a forma de disposições duráveis) e a exteriorização da interioridade (sob a forma das respostas aos constrangimentos e solicitações do meio social existente). Em suma, o projecto de sociologia jurídica de Pierre Bourdieu representa uma teoria estruturalista construtivista. Todavia, contra o estruturalismo, reconhece que os agentes do campo jurídico produzem activamente o mundo social, através de instrumentos incorporados de construção cognitiva – o habitus –, que embora durável e agindo num campo que valoriza o consenso e a estabilidade, não é estático nem eterno. Contra o construtivismo, afirma que as possibilidades de acção e de representação no campo jurídico (tal como noutros campos) produz práticas moldadas em função das estruturas sociais que os geraram. O cerne da teoria sociológica do jurídico desenvolvida por Bourdieu é geralmente situada no seu texto de 1986 «A força do direito – Elementos para uma sociologia do campo jurídico» («La force du droit – Éléments pour une sociologie du champ juridique»), publicado nas Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Não obstante o elevado interesse desse artigo, iremos utilizar o capítulo VIII da obra O poder simbólico (1989), pelo facto de se tratar de uma versão mais expandida do texto de 1986, que apresenta a vantagem adicional de integrar a discussão do jurídico na teoria geral dos campos e naquilo que Bourdieu considera ser o poder de construção da realidade que impõe o sentido imediato do mundo social (Bourdieu, 1989: 9). 5.1.1. O direito como consagração da ordem estabelecida Para Bourdieu, o direito consagra uma ordem estabelecida que representa a visão do mundo estabelecida e garantida pelo Estado, embora o campo jurídico detenha uma autonomia relativa. Tem assim um papel preponderante na manutenção da ordem e na reprodução social, representando uma «forma de violência simbólica legítima cujo monopólio pertence ao Estado e que se pode combinar com o exercício da força física» (Bourdieu, 1989: 211). A assumpção teórica que o campo jurídico representa práticas de dominação e de comprometimento com os valores e os interesses das classes dominantes, que são legitimados pela autoridade jurídica não significa, porém, que Bourdieu se aproxime da visão do marxismo tradicional, que tende a ver no direito uma espécie de subproduto determinado pela estrutura económica. Aliás, Bourdieu refere explicitamente que o seu projecto de sociolo-

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gia jurídica se afasta da «metáfora arquitectural da infra-estrutura e da superestrutura» (Bourdieu, 1989: 209). O autor critica directamente os marxistas, considerando que estes ignoram tanto a estrutura dos sistemas simbólicos, ou seja, os fundamentos sociais e os contextos históricos da emergência e consolidação da autonomia do campo jurídico; como a forma específica do discurso jurídico, pela redução simplista à abordagem do direito como reflexo directo das relações de força existentes, pelas quais se exprimem as determinações económicas aliadas aos interesses dominantes ou se materializam instrumentos de dominação (Spitzer, 1983). O seguinte extracto revela de forma lapidar o essencial da crítica de Bourdieu à abordagem marxista do direito: «Vítimas de uma tradição que julga ter explicado as “ideologias” pela designação das suas funções (“o ópio do povo”), os marxistas ditos estruturalistas ignoraram paradoxalmente a estrutura dos sistemas simbólicos e, neste caso particular, a forma específica do discurso jurídico. Isto porque, tendo reiterado a afirmação ritual da autonomia relativa das “ideologias”, eles passaram em claro a questão dos fundamentos sociais dessa autonomia, quer dizer, mais precisamente, a questão das condições históricas que se devem verificar para poder emergir, mediante lutas no seio do campo do poder, um universo social autónomo, capaz de produzir e de reproduzir, pela lógica do seu funcionamento específico, um corpus jurídico relativamente independente dos constrangimentos externos» (Bourdieu, 1989: 210, sublinhado nosso).

O autor propõe uma análise sociológica do direito que se afaste tanto de uma visão puramente interna que o encare como um mero conjunto de normas incorporado numa estrutura formal, como de uma perspectiva estruturalista que negue a sua autonomia essencial e que conceba o direito como um reflexo ou utensílio ao serviço dos grupos sociais dominantes. Ou seja, entende que uma sociologia do campo jurídico tem que se afastar das posições formalistas (o que designa por visão internalista) como das posições instrumentalistas (a que chama visão externalista): «Para romper com a ideologia da independência do direito e do corpo judicial, sem cair na visão oposta, é preciso levar em linha de conta aquilo que as duas visões antagonistas, internalista e externalista, ignoram uma e outra, quer dizer, a existência de um universo social relativamente independente em relação às pressões externas, no interior do qual se produz e se exerce a autoridade jurídica» (Bourdieu, 1989: 211).

Bourdieu recupera o conceito de autonomia relativa do sistema jurídico avançado por Luhmann, mas criticando-o e superando-o. Refere a necessidade de distinguir entre a noção de sistema de Luhmann e o conceito que considera mais adequado para a análise sociológica do jurídico: o conceito de campo jurídico como espaço social. Como tal, o campo jurídico é um espaço construído a várias dimensões, na base de princípios de diferenciação ou de distribuição «constituídos pelo conjunto de propriedades que actuam no universo social considerado, quer dizer, apropriadas a conferir, ao detentor delas, força ou poder neste

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universo» (Bourdieu, 1989: 133-4). Os agentes do campo jurídico são assim definidos pelas suas posições relativas nesse espaço, em função do capital que detêm, e que representam os poderes que definem as probabilidades de ganho num campo determinado. Mas conceber o jurídico como um campo do espaço social significa também recusar a hipótese que o jurídico encerre em si mesmo o princípio da sua própria dinâmica e da sua transformação, considerando que essa abordagem resulta de uma ausência da necessária distinção entre as estruturas simbólicas (o direito propriamente dito) e as instituições sociais que as produzem: «Por não se distinguir a ordem propriamente simbólica das normas e das doutrinas (…) e a ordem das relações objectivas entre os agentes e as instituições em concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, não se pode compreender que o campo jurídico, embora receba do espaço das tomadas de posição a linguagem em que os seus conflitos se exprimem, encontre nele mesmo, quer dizer, nas lutas ligadas aos interesses associados às diferentes posições, o princípio da sua transformação» (Bourdieu, 1989: 211-12).

Na perspectiva de Bourdieu, o campo jurídico está duplamente condicionado, por uma lógica específica que fundamenta a sua autonomia relativa, que também obriga a que o sociólogo do jurídico empreenda a sua análise a partir do próprio campo: (i) pelas suas lutas de concorrência entre os corpos de profissionais no interior do próprio campo, pela competência de dizer o direito; (ii) pela codificação do direito, que serve para estabilizar o campo e para a sua apresentação como autónomo e necessário à sociedade. «As práticas e os discursos jurídicos são, com efeito, produto do funcionamento de um campo cuja lógica específica está duplamente determinada: por um lado, pelas relações de força específicas que lhe conferem a sua estrutura e que orientam as lutas de concorrência ou, mais precisamente, os conflitos de competência que nele têm lugar e, por outro lado, pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, deste modo, o universo das relações propriamente jurídicas» (Bourdieu, 1989: 211).

O reconhecimento da importância do jurídico para a sociedade não reside, na visão de Bourdieu, na eficiência jurídica propriamente dita nem na realização de justiça, mas sim na crença no formalismo do direito que, nas palavras do autor, universaliza o ponto de vista dos grupos dominantes através da produção de normas destinadas a subtrair a contingência de situações particulares e que servem de modelo a decisões ulteriores: «Pela sistematização e pela racionalização a que [o trabalho jurídico] submete as decisões jurídicas e as regras invocadas para as fundamentar ou as justificar, ele confere o selo da universalidade, factor por excelência da eficácia simbólica, a um ponto de vista sobre o mundo social que, como se viu, em nada de decisivo se opõe ao ponto de vista dos dominantes» (Bourdieu, 1989: 245).

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De acordo com o autor, o formalismo do direito e codificação encontrados nas obras jurídicas constitui a base pela qual os agentes e as instituições jurídicas constroem o monopólio do uso do direito, e toda a legitimação do campo jurídico se dá na crença, amplamente difundida pelo senso comum, na neutralidade, autonomia e universalidade da administração da justiça. «A crença que tacitamente é concedida à ordem jurídica deve ser reproduzida sem interrupção e uma das funções do trabalho propriamente jurídico de codificação das representações e das práticas éticas é a de contribuir para fundamentar a adesão dos profanos aos próprios fundamentos da ideologia profissional do corpo de juristas, a saber, a crença na neutralidade e na autonomia do direito e dos juristas» (Bourdieu, 1989: 244).

O aparelho jurídico-legal parece fundado na equidade de princípios, na lógica específica e autónoma da ciência jurídica, entrecruzada com a lógica normativa da moral. Isto na medida em que, entre os diferentes campos da vida social, há sempre uma interpenetração, que faz com que o campo jurídico se associe a conteúdos políticos e éticos e seja uma arena que se reveste de uma forma neutra e universalizante com base na própria construção da racionalidade jurídica, ou naquilo que o próprio autor designa por «presumidas funções do direito» (Bourdieu, 1989). A verdadeira base do campo jurídico reside na divisão de trabalho dos profissionais do direito, em luta simbólica permanente por «dizer o direito» (Bourdieu, 1989). Além disso, há uma correspondência de poder no interior do campo jurídico e entre a posição dos agentes e das instituições no espaço social. 5.1.2. O campo jurídico como espaço de concorrência Toda a problemática do campo jurídico reside na criação e acumulação de capital assente na divisão do trabalho jurídico. Como tal, Bourdieu entende que o campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio de dizer o direito, em que se defrontam agentes investidos de diferentes capacidades sociais e técnicas, ou melhor dizendo, distintas capacidades reconhecidas de interpretar o direito ou o «corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social» (Bourdieu, 1989: 212). A concorrência no campo jurídico opõe, em primeira instância, profissionais e leigos (ou profanos, para utilizar a terminologia de Bourdieu), ou seja, apresenta uma cisão entre os «veredictos armados do direito e as intuições ingénuas da equidade» (Bourdieu, 1989: 212), o que faz com que o campo jurídico se apresente como «totalmente independente das relações de força que ele sanciona e consagra» (Bourdieu, 1989: 212). Acresce à ilusão da independência do jurídico em relação a forças externas a coesão interna do sistema e a propensão para a estabilidade e resistência à mudança, o facto de o próprio sistema jurídico evitar o conflito pela exclusão das normatividades concorrentes, ou seja, nas palavras do autor, «as divergências entre os “intérpretes autorizados”

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[serem] necessariamente limitadas e a coexistência de uma pluralidade de normas jurídicas concorrentes [estarem] excluídas por definição da ordem jurídica» (Bourdieu, 1989: 213). Porém, surgindo os média nas sociedades modernas como fonte de normatividade simbólica e interpretação concorrente do discurso jurídico, os casos judiciais mediatizados são passíveis de evidenciar lutas entre o campo jurídico e outros campos, como por exemplo, o campo político (Lenoir, 1999: 222). Assim, os média colocam desafios ao campo jurídico na sua tendência para excluir forças e discursos externos, ao expor publicamente os conflitos internos da magistratura e as lutas com outros campos, podendo inclusive exercer o seu poder e influência sobre outros campos (político, cultural, académico), sob a forma meta-capital, isto é, a capacidade de exercer poder através de outras formas de poder (Couldry, 2004). Segundo Bourdieu, todos os campos de produção cultural se encontram sujeitos à coacção do campo jornalístico por via do que o autor designa por «uma forma absolutamente rara de dominação» que possibilita o exercício de poder sobre os «meios de expressão pública, de existência pública, de reconhecimento e de acesso à notoriedade pública» (Bourdieu, 1997: 48). Esta forma rara de dominação exacerbará, então, intensas lutas simbólicas entre o campo jurídico e o campo jornalístico ou, chamemos-lhe assim, o campo mediático, quer ao nível da apropriação do discurso jurídico pelos «profanos» jornalísticos, do poder de nomeação e, inclusive, do poder de «dizer o direito». Não obstante a luta pelo acesso aos recursos do campo jurídico ser profundamente hierarquizada e limitada, com o objectivo de fomentar o consenso e a estabilidade, a interpretação do texto jurídico é objecto de luta, na medida em que a leitura representa força simbólica. Esta luta pela interpretação do direito e por dizer o direito está profundamente estruturada pela autoridade hierarquizada do campo jurídico, que consegue assim dirimir vários dos potenciais conflitos entre os intérpretes e as interpretações do texto jurídico: «A Justiça organiza segundo uma estrita hierarquia não só as instâncias judiciais e os seus poderes, portanto, mas também as normas e as fontes que conferem a sua autoridade a essas decisões» (Bourdieu, 1989: 214). A instituição do campo jurídico ou espaço judicial implica uma delimitação entre os que são admitidos à luta simbólica e os que dele estão excluídos, principalmente, na perspectiva de Bourdieu, «por não poderem operar a conversão de todo o espaço mental – e, em particular, de toda a postura linguística – que supõe a entrada neste espaço social» (Bourdieu, 1989: 225). A retórica é uma base fundamental do poder jurídico e nas instâncias judiciárias é extremamente evidente a contraposição simbólica entre os discursos do quotidiano e aqueles que são enquadráveis na categoria de «discurso jurídico», sendo que os primeiros são desvalorizados ou mesmo rejeitados pelos profissionais, cujo capital está dependente do domínio dos meios e recursos jurídicos exigidos pela lógica do campo (Bourdieu, 1989: 233). A noção de capital linguístico desenvolvida por Pierre Bourdieu (1998a), como constituindo uma faceta particular do capital cultural, pode-nos ser útil para captar as modalida-

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des de diferenciação social construídas e espelhadas pelo e no sistema de justiça. O capital linguístico revela-se como um elemento determinante no contexto do campo jurídico, funcionando como factor de hierarquização e de classificação social dos indivíduos, na medida em que «o que se exprime através do habitus linguístico é todo o habitus de classe, do qual ele é uma dimensão, ou seja, de facto, a posição ocupada, sincrónica e diacronicamente, na estrutura social» (Bourdieu, 1998a: 77). A linguagem ou produção discursiva constitui, enfim, um recurso cultural, que pode ou não ser utilizado adequadamente em tribunal. Há ainda que atender ao facto de que os modos de exercício de poder através da linguagem tanto podem ser influenciados por determinadas formas de discurso (por exemplo, entoações de voz, hesitações versus fluência), como também pelos contextos sócio-institucionais nos quais decorre a produção das linguagens. Os agentes sociais mais desapossados em termos de capital linguístico acabam por ficar sujeitos a um «sistema de sanções e de censuras específicas» (Bourdieu, 1998a: 14). No contexto particular dos tribunais, os indivíduos mais fragilizados em termos de competência linguística são, precisamente, aqueles que encontram maiores dificuldades em se fazerem compreender e em interpretar os discursos «especialistas», nomeadamente, aqueles que são proferidos por advogados e magistrados, o que pode ser encarado como um dos mais recorrentes obstáculos no acesso à justiça (Machado, 2005), na medida em que «a constituição do campo jurídico é inseparável da instauração do monopólio dos profissionais sobre a produção e a comercialização desta categoria particular que são os serviços jurídicos» (Bourdieu, 1989: 233). O discurso jurídico parece assim imbuído de uma forte ambivalência. Se, por um lado, se apresenta como «universal», por outro lado, socorre-se de uma linguagem muito específica – assaz distante das linguagens do quotidiano – de modo a manter uma certa «aura» que fundamenta a sua dimensão autoritária. Mesmo em situações nas quais não se verifica propriamente o recurso à linguagem técnica – cujo uso é mais frequente ao nível da escrita – as desigualdades no campo jurídico tendem a manifestar-se de forma particularmente evidente no contexto das interacções face-a-face envolvendo profissionais e profanos. Isto porque, por um lado, por via das regras formais e informais de funcionamento dos julgamentos, os profissionais do campo jurídico detêm mais poder (em sentido global) que os cidadãos envolvidos; mas também porque, por outro, os agentes com mais capital jurídico strictu sensu possuem um elevado capital cultural (medido pela posse de diplomas escolares), sendo que os indivíduos exteriores ao sistema jurídico e a este submetidos podem estar destituídos de qualquer tipo de capital passível de ser mobilizado. Bourdieu finaliza a sua proposta de uma sociologia jurídica, na versão que podemos encontrar na obra O poder simbólico (1989), pela defesa da ideia de que o julgamento judicial «representa uma encenação paradigmática da luta simbólica que tem lugar no mundo social: nesta luta em que se defrontam visões do mundo diferentes, e até mesmo antagonistas, que, à medida da sua autoridade, pretendem impor-se ao reconhecimento e, deste modo, realizar-se» (Bourdieu, 1989: 236).

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Considera também o direito como o expoente máximo da consagração plena da ordem estabelecida, «a forma por excelência do poder simbólico de nomeação» (Bourdieu, 1989: 237), que impõe a visão do Estado por operações de classificação (de atribuição de identidade e estado civil, de poderes e capacidades, de sancionamento de aquisição, transferência e retirada de poderes). A força do direito constitui, assim, «a forma por excelência do discurso actuante, capaz, por sua própria força, de produzir efeitos» (Bourdieu, 1989, 237); não esquecendo, porém, que «não é demais dizer que ele faz o mundo social, mas com a condição de se não esquecer que ele é feito por este» (Bourdieu, 1989, 237). Bourdieu propõe-nos assim uma sociologia do direito e da justiça que desconstrua a ideologia da neutralidade e da universalidade, tal como já tinham feito outros autores, nomeadamente os marxistas. Contudo, não só apela à análise a partir do próprio direito e focando as lutas simbólicas específicas do campo jurídico (aproximando-se aqui de Niklas Luhmann, embora afastando-se do conceito de autopoiese), mas também invoca o estudo das estruturas sociais que têm feito com que, ao longo da história, o jurídico tenha emergido simbolicamente como um campo autónomo da vida social. Dentro deste ponto de vista, Bourdieu critica o marxismo pela sua visão simplista de encarar o direito como mero produto ideológico das relações de força impostas pela estrutura económica. O poder de nomeação do direito corresponde ao facto de o Estado ser o detentor do monopólio da violência simbólica legítima. Como tal, a administração estatal da justiça, como imposição social, pode concorrer com outras formas alternativas de justiça, mas detém o poder de nomeação legítima – explícita e pública. Trata-se de um poder de nomeação oficial, acto de imposição simbólica que tem a seu favor o facto de ser porta-voz autorizado, mandatário do Estado, e como tal, projecta a força do colectivo e do consenso. E mostra, de modo exemplar, como «a verdade social é o que está em jogo numa luta entre agentes armados de modo muito desigual» (Bourdieu, 1989: 147). O poder dos juristas tem correspondência no capital cultural baseado na instrução e na facilidade de expressão oral e escrita associada à linguagem hermética do direito, e no capital simbólico associado ao prestígio. O capital ou poder jurídico representa ainda, na visão de Bourdieu, e conforme elucida em Meditações pascalianas (1998b), uma forma de apropriação privada do serviço público, na medida em que os juristas, com base num conjunto de conceitos, procedimentos e formas de organização próprias do campo jurídico, mobilizam a universalidade para se apresentarem a si mesmos como servidores do interesse geral e distanciados de interesses particulares. Esse distanciamento é apenas aparente, na medida em que Bourdieu entende que a mobilização da categoria da universalidade e da equidade, por via da administração da justiça, corresponde aos interesses dos poderes políticos.

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Relações entre a sociedade, o Estado e o campo jurídico segundo Bourdieu ESTADO / POLÍTICOS Violência simbólica legítima

Codificação do direito = neutralidade, autonomia e universalidade

CAMPO JURÍDICO Lutas de concorrência capital/agentes/ habitus

Justiça – visão dos dominantes

Sistemas simbólicos / Contextos históricos SOCIEDADE

Actividade de reflexão e debate: A invocação do formalismo do discurso jurídico e a codificação dos procedimentos e jurisdições, como algo que pertence ao domínio dos peritos e que exclui o saber leigo dos jornalistas, emerge como uma reafirmação do monopólio legítimo dos actores judiciais sobre o campo jurídico. Discuta os seguintes extractos de entrevistas a magistrados e jornalistas (Santos, F., 2009), procurando salientar as lutas simbólicas entre justiça e média: Não é que os juízes ou as magistraturas tenham uma linguagem mais técnica que não seja perceptível por toda a gente. Significa que quando algumas expressões com cariz técnico são empregues, elas não são percepcionadas pelo receptor que neste caso é o jornalista que depois as vai transmitir. O que dá que muitas das vezes as próprias notícias acabam por ser erróneas, não porque as pessoas não estejam imbuídas de um espírito informado, mas porque não sabem o que é que estão a dizer (Entrevista ao magistrado M7). Apesar de, quer nós, os jornalistas, quer os juízes, os procuradores, os advogados falarmos todos o português, temos gramáticas diferentes. (…) A que é que isto muitas vezes leva? Leva a que quem decide, os juízes, os magistrados e isso, muitas vezes não gostam do que lêem porque acham que aquilo foi… A ideia contida na cabecinha deles ao ser reduzida a um título, ou uma notícia no jornal reduz – fica muito redutora – e não foi aquilo que eles queriam dizer (Entrevista ao jornalista JB).

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6. A JUSTIÇA EM ACÇÃO – O CONTRIBUTO DA ETNOMETODOLOGIA Esta secção visa: – identificar o pressuposto de que a análise das actividades da vida social permite descobrir e explicar as interpretações reais que os actores conferem às suas actividades no quotidiano; – reconhecer a natureza da interpretação prática em contexto jurídico-legal, a partir do ponto de vista dos actores, procurando captar como é que a organização social da justiça «é feita»; – explanar de que forma a etnometodologia se caracteriza pelo estudo das práticas dos actores, por assumir as descrições dos actores como tópicos de análise e pela observação dos contextos «naturais»; – compreender que a etnometodologia presta atenção ao detalhe da vida social dos tribunais e das prisões, acabando por descobrir elementos que vão contra o ponto de vista do instituído; – identificar as potencialidades da etnometodologia no estudo qualitativo dos média.

6.1. Etnometodologia e a «justiça em acção» A etnometodologia é uma corrente da sociologia que estuda as actividades das pessoas comuns na vida de todos os dias, em cooperação com outros actores sociais e criando uma ordem social previsível, estável e duradoura. Ou, como define Manzo, a etnometodologia preocupa-se com o «como» da organização social, em detrimento do «porquê» (Manzo, 1997: 5). Os estudos da etnometodologia partem do pressuposto que a análise das actividades da vida social permite descobrir e explicar as interpretações reais que os actores conferem às suas actividades na realização prática da vida de todos os dias. Examinam a natureza da interpretação prática em diferentes contextos, a partir do ponto de vista dos actores, procurando captar como é que a organização social «é feita». Curiosamente, a expressão «etnometodologia» foi proposta por Garfinkel na sequência de um trabalho sobre jurados em tribunal em Chicago (Garfinkel, 1967), no qual procurou perceber como é que os participantes descreviam e conduziam as suas actividades, tendo constatado que essas descrições não coincidiam com as fontes de informação oficiais (por exemplo, regras estipuladas pelo juiz) e, sobretudo, que as descrições dos actores mereciam ser objecto de estudo em si mesmas. Apresenta-se como uma corrente da sociologia alternativa à sociologia tradicional, na medida em que não busca construir modelos analíticos ou estabelecer relações entre variáveis: «Para a etnometodologia, as práticas concretas não necessitam de ser modificadas ou referenciadas como construções idealizadas, na medida em que as práticas concretas são já endogenamente organizadas» (Manzo, 1997: 5, tradução dos autores). Congrega uma ampla diversidade de estudos, que procuram perceber como se organizam as activi-

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dades de forma a fazer do direito e da administração da justiça «uma forma distinta da vida social» (Manzo, 1997: 5, tradução dos autores). Vários dos primeiros estudos da etnometodologia focam tópicos relacionados com a justiça e a reinserção social: além do já referido estudo de Garfinkel sobre jurados, Atkinson (1979) e Conley et al. (1978) estudaram os modos de organização verbal da interacção em tribunal como formas de produção, negociação e de interpretação de «factos jurídicos» e de condução das interacções entre profissionais e leigos; Cicourel (1968) debruçou-se sobre as práticas judiciárias dirigidas a jovens delinquentes. Mais recentemente, destacam-se os trabalhos de Matoesian (1992) sobre julgamentos de violação, de Maynard (1984) sobre recursos no âmbito da justiça criminal e os estudos de Conley sobre o estilo linguístico exibido pelos diferentes actores sociais em contexto de julgamento judicial (Conley, 1990; Conley e O’Barr, 1993). Infelizmente, os estudos etnográficos de tribunais não têm ganho grande expansão e continuidade, circunscrevendo-se a maioria dos trabalhos a pequenos textos publicados sob a forma de artigos, como por exemplo, os estudos de autoria de Bogoch (1997, 1999) e de Figueira (1998) sobre os modos como são realizadas as construções de identidades profissionais dos actores judiciários no contexto institucional específico dos tribunais, nomeadamente através dos encontros face-a-face desenvolvidos entre advogados e juízes. Ao contrário da estratégia de exposição de conteúdos usada em momentos anteriores, por referência a outras correntes teóricas, na abordagem da etnometodologia procederemos a uma descrição não de autores individuais, mas sim de aspectos teóricos e metodológicos que caracterizam esta escola de pensamento, na medida em que, não obstante a diversidade de estudos realizados, existe uma clara partilha de vários princípios orientadores da pesquisa. Muito sumariamente, é possível afirmar que a etnometodologia forma o estudo do direito-em-acção (law in action), o «direito vivo», e que se pode caracterizar por três directivas principais: (i) o estudo das práticas dos actores; (ii) as descrições dos actores como tópicos de análise; (iii) a observação dos contextos «naturais». Em relação à primeira característica da etnometodologia, como estudo das práticas dos actores sociais, socorremo-nos, novamente, da análise pioneira de Garfinkel (1967) de um grupo de jurados de um tribunal de Chicago. O autor descobriu que os jurados definem um conjunto de regras que consideram «procedimentos correctos» que são diferentes, ou mesmo inconsistentes com as regras prescritas pelo juiz. Mas este estudo não foi dirigido às orientações judiciárias de tomada de decisão ou muito menos tentou estudar os tribunais como um todo. Foi sim um estudo das actividades «práticas» dos jurados. Em segundo lugar, as descrições e outra informação facultada pelos actores constituem os tópicos de análise e não recursos para comprovar teorias ou hipóteses. Por fim, a observação dos actores em acção não implica a busca de elementos sócio-estruturais mais latos que «expliquem» essas actividades práticas, na medida em que a etnometodologia assume que mesmo que o investigador capte na linguagem e nas acções de realização prática da vida social esses impactos, analisa-os sempre como traços dos discursos dos actores sociais evidenciados e organizados na interacção social.

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«De um ponto de vista etnometodológico, a experiência “crua” é tudo menos caótica, na medida em que as actividades concretas de que é composta são coevas com uma organização inteligível que os actores “já” fornecem, e isso está disponível para análise científica. Centrais para a concretização desta organização são as actividades práticas através das quais os actores produzem e reconhecem as circunstâncias em que se encontram inseridos. O principal objectivo da etnometodologia é o de investigar o cumprimento procedimental destas actividades enquanto comportamentos concretos e concertados» (Maynard e Clayman, 1991: 387, tradução dos autores).

Todos estes dispositivos para a investigação convergem para o princípio que a construção dos procedimentos de análise e de interpretação dos dados estão enraizados no terreno e o estudo das descrições e das interpretações dos actores sociais não se destina a ser «encaixado» nas descrições e interpretações dos investigadores, sob a forma de comprovação de hipóteses: «Os resultados são alcançados através das interpretações dos membros e não pelas interpretações do analista. A etnometodologia foca a organização social das actividades vividas. Incide sobre o trabalho real de pessoas reais, um fenómeno que constitui, noutras abordagens ao direito, uma distracção que deve ser ignorada e afastada por explicações de erro por parte das pessoas sob estudo» (Manzo, 1997: 11, tradução dos autores).

Os tópicos de investigação da etnometodologia são geralmente aquelas actividades «vistas mas despercebidas» (Manzo, 1997: 12) da vida social. Ou seja, aquelas que assumimos como certas e das quais só nos apercebemos se alguém entra em ruptura, se não cumpre o acordo tácito (por exemplo, falar alto, não cumprir as «regras» da distância interpessoal, etc.). A etnometodologia presta atenção ao detalhe, ao que muitos considerariam os elementos corriqueiros da vida social. E pensando concretamente na vida social dos tribunais e das prisões, acabam por descobrir elementos que vão contra o ponto de vista do instituído: «As conclusões dos estudos etnometodológicos militam frequentemente contra as visões prescritas em mapas organizacionais, na lei, nas regras de procedimento, e noutros ambientes institucionalmente impostos, não porque estas “regras” são erradas ou insuficientes, mas porque nos cegam perante as realizações peculiares da organização social» (Manzo, 1997: 12, tradução dos autores).

Do ponto de vista da etnometodologia, a justiça pode ser analisada como um «fenómeno da ordem» (phenomenon of order) (Garfinkel, 1988), pelo qual a justiça existe na e pelas actividades práticas, locais e naturais, coordenadas entre si, pelas quais os actores conferem sentido às suas acções e tomam decisões que interpretam como adequadas ao contexto jurídico-legal. A etnometodologia pode também ser usada no estudo dos média. Os diálogos, acções e encenações dos actores nos média são formas que permitem apreender os códigos e sistemas de crenças. Porém, com a diferença de que tudo o que decorre

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no espaço mediático é produzido para ser representado perante um grande número de indivíduos – as audiências – com base numa partilha presumida de crenças, conhecimentos e percepções (Berger, 2000: 151). Os média ao projectarem imaginários da justiça em acção, tornam-se «credíveis» para os actores sociais, mesmo que estes se confrontem, no quotidiano, com visões diferentes do modo de funcionamento da justiça, por exemplo, ao nível das imagens da ciência forense, onde as imagens ficcionais podem gerar expectativas eventualmente passíveis de produzir impactos na participação dos actores na justiça em acção, designadamente quando cidadãos comuns são chamados a prestar serviço de júri. Por exemplo, o chamado «Efeito CSI», assim chamado devido à popularidade da série televisiva Crime Scene Investigation, pretende estabelecer uma relação entre a exposição e consumo de ficção televisiva em que a ciência forense é representada como infalível, e as percepções e avaliações de prova científica nos tribunais do mundo real por parte dos jurados (Podlas, 2006: 437). A justiça como «fenómeno da ordem» consiste em actividades concertadas pelas quais a sociedade mostra como é que se organiza por referência à justiça: pelas práticas de percepção e de interpretação dos actores. A justiça é assim um fenómeno social captável pela acção – «justiça como uma regra de propriedade ou procedimento inserido em acção» (Maynard e Manzo, 1997: 213, tradução dos autores) – admitindo que a organização social «real» é intrínseca às conversas e interacções observadas no contexto jurídico-legal ou outro. Trata-se, enfim, de investigar sociologicamente a justiça nos seus termos práticos, de que modo esta emerge pela acção dos actores, e não em termos abstractos e ideais. A «justiça» consiste no que os juízes, jurados, advogados, testemunhas, réus e vítimas «fazem»

Perspectiva etnometodológica da justiça

Práticas e representações dos actores Investigador

Direito e justiça em acção

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Actividade de reflexão e debate: Dos muitos casos que diariamente passam pelos tribunais portugueses, apenas um pequeno número é seleccionado como noticiável e é passível de chegar ao conhecimento do público por via mediática. Analise o extracto de uma notícia abaixo reproduzido, procurando descrever as representações do crime e da justiça (positivas/negativas; realistas/exageradas, etc.), e assinalando as concepções de ordem e desvio social que são veiculadas: GANG APANHADO POR CSI Unidade especial do DIAP acusa ladrões com provas de laboratório. Enquanto a polícia era atacada à pedrada e com cocktails molotov na Bela Vista, cinco jovens armados deixaram o problemático bairro de Setúbal para ir atacar o Intermarché do Carregado. Corria o mês de Maio, no auge dos tumultos, mas foram caçados em flagrante pela PSP e por um tenente do Exército – que passava ali por acaso e feriu a tiro um dos ladrões em fuga. Já estão acusados por este roubo, mas os testes de ADN em laboratório, a partir de cabelos, conseguiram ligar dois dos suspeitos a mais assaltos. Roubo, sequestro agravado, receptação e posse de arma ilegal são os crimes cometidos pelo gang no Carregado, mas a Unidade Especial de Combate ao Crime Violento do DIAP de Lisboa pediu exames de laboratório para os tentar ligar a outros casos. Em causa, os ataques aos supermercados Modelo em Santa Iria da Azóia e Grândola, ambos no mês de Março. Ao que o CM apurou, a polícia recolheu saliva aos suspeitos, pelo método conhecido por zaragatoa – e comparou os perfis de ADN com os de cabelos deixados em gorros utilizados nos referidos assaltos a outros supermercados e depois abandonados. O resultado foi positivo em relação a dois dos assaltantes, o que permite agora à unidade do DIAP, liderada pela procuradora Cândida Vilar, acusá-los de vários crimes. (Correio da Manhã, 4 de Dezembro de 2009).

PA R T E 2 Justiça, Média e Cidadania

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CAPÍTULO

A pluralidade do jurídico

1. A PLURALIDADE JURÍDICA, PIRÂMIDE DE LITIGIOSIDADE E O ACESSO À JUSTIÇA – O CONTRIBUTO DE BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS Este capítulo visa: – identificar outras ordens jurídicas além da projectada pelo sistema jurídico-formal, reconhecendo que a principal fonte de poder não se confina ao direito do Estado; – explanar o conceito de pluralismo jurídico ou de pluralidade de ordens jurídicas, referindo as dimensões da nova fenomenologia jurídica que lhe estão inerentes; – reconhecer, pela noção de interlegalidade, que os sujeitos têm possibilidade de recurso, consoante o contexto, a diferentes ordens jurídicas ou a uma combinação de várias; – compreender a noção de «pirâmide de litigiosidade», aplicando o conceito a uma sociedade como a portuguesa, rica em mecanismos informais de resolução de conflitos; – caracterizar os principais obstáculos no acesso à justiça.

1.1. A pluralidade jurídica Abordagens recentes do direito e da justiça, assentes na ideia da «pluralidade do jurídico», propõem uma fenomenologia do jurídico que atenda à ideia de que existem na sociedade outras ordens jurídicas além da projectada pelo sistema jurídico-formal. Esta postura implica reconhecer que: (i) a principal fonte de poder e de controlo social nas sociedades actuais não se reduz ao poder estatal e direito formal; (ii) o jurídico não se confina ao direito estatal. A noção de pluralidade jurídica começa por surgir na antropologia legal (Griffiths, 1986; Rouland, 1988), associada às experiências coloniais de vários países europeus em possessões ultramarinas, designadamente em África e na Ásia, onde os costumes locais e tradicionais motivaram, em alguns casos, o reconhecimento por parte do direito oficial de outras ordens legais e fontes de normatividade e regulação de certas áreas da vida social.

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Na perspectiva de uma ideologia de «centralismo legal», isto é, a ideia que a lei é essencialmente a lei do Estado, são reconhecidas outras ordens normativas que se aplicam a determinados grupos definidos segundo critérios étnicos, religiosos, nacionais ou geográficos, mas que deverão permanecer hierarquicamente subordinadas à lei e às instituições do Estado (Griffiths, 1986: 3). A tendência para este tipo de co-existência e reconhecimento da força normativa dos costumes locais e de grupos particulares verificou-se inclusive no contexto do Império Romano (Rouland, 1988: 44). Contudo, Griffiths considera que o mero reconhecimento de outras formas de regulação para além das oficiais é uma forma «fraca» de pluralismo jurídico (Griffiths, 1986: 5). Segundo este autor, o pluralismo legal «forte» ocorre quando a sociedade observa mais do que um sistema normativo sem que seja necessariamente reconhecido pelo Estado. Por outras palavras, o pluralismo jurídico «forte» é aquele que existe «de facto» no quotidiano, independentemente da sanção ou reconhecimento por parte das instituições oficiais. Seguindo esta última perspectiva, e nas palavras de Boaventura de Sousa Santos, interessa-nos a «sobreposição, articulação e interpenetração de vários espaços jurídicos misturados, tanto nas nossas atitudes, quer em momentos de crise ou de transformação qualitativa nas trajectórias pessoais e sociais, quer na rotina morna do quotidiano sem história» (Santos, 1988: 164). Boaventura de Sousa Santos é um dos autores que explora o conceito de «pluralidade jurídica» ou «pluralidade de ordens legais», rejeitando a designação de «pluralismo legal» por esta ter uma conotação claramente normativa, podendo transmitir erradamente que o que é pluralista é algo inerentemente positivo e emancipatório por oposição ao que não é pluralista (Santos, 2002: 89; 2009: 62). A nossa reflexão incide particularmente sobre o trabalho deste autor, na medida em que, a partir do conceito de pluralidade jurídica, propõe uma formulação do conceito de poder que convoca a atenção para os vários poderes jurídicos não estatais. É especialmente relevante a tese desenvolvida a partir da qual propõe uma análise das intersecções e interacções dinâmicas e relacionais entre as formas de direito, conhecimento e poder. Mais, a conceptualização de poder segundo a qual este «nunca é exercido numa forma pura e exclusiva, mas sim como uma formação de poderes, isto é, como uma constelação de diferentes formas de poder combinadas de maneiras específicas» (Santos, 2000: 246) é útil na compreensão do carácter relacional da produção do direito nas sociedades contemporâneas e o subsequente mapeamento dos designados espaços estruturais que constituem o modelo de análise proposto por Boaventura de Sousa Santos. Mais recentemente, o autor fala da «porosidade das ordens jurídicas», um «mundo de hibridações jurídicas, uma condição a que não escapa o próprio direito estatal nacional» (Santos, 2003: 49). A noção de pluralismo jurídico, ou «pluralidade de ordens jurídicas» (Santos, 2003: 52-3) exige uma nova fenomenologia jurídica, assente na noção de interlegalidade, que assume a possibilidade de recurso, consoante o contexto, a diferentes ordens jurídicas ou a uma combinação de várias. Na concepção ampla de direito proposta por Boaventura de Sousa Santos, entendido como «um corpo de procedimentos regularizados e de padrões normativos, considerados justi-

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ficáveis num dado grupo social, que contribui para a criação e prevenção de litígios, e para a sua resolução através de um discurso argumentativo, articulado com a ameaça de força» (Santos, 2000: 269), o autor considera que nas sociedades capitalistas circulam várias ordens jurídicas, salientando seis principais: o direito doméstico, o direito da produção, o direito da troca, o direito da comunidade, o direito estatal e o direito sistémico. Essas distintas formas básicas de produção de direito são estruturalmente autónomas mas inter-relacionam-se. No entendimento de Boaventura de Sousa Santos, o reconhecimento da pluralidade das ordens jurídicas conduz a uma concepção plural do poder, concebido não como um atributo exclusivo de uma determinada forma de poder, mas sim o efeito global de uma combinação de diferentes formas de poder e dos seus respectivos modos de produção. Esta concepção ampla e plural é expressa na operacionalização do poder como «qualquer relação social regulada por uma troca desigual» (Santos, 2000: 248). A partir desta concepção difusa do poder, o autor propõe um modelo analítico das sociedades capitalistas contemporâneas que articula os vários modos de produção de poder, interligados, mas estruturalmente autónomos, com o que designa por «espaços estruturais». Cada espaço resulta de um longo processo de sedimentação que consolida e distingue os conjuntos de relações sociais mais elementares nas sociedades capitalistas contemporâneas. Assim, desenvolve aquilo que designa por «mapa de estruturação-acção das sociedades capitalistas», que possibilita a compreensão analítica dos fluxos interligados de diferentes práticas, sentidos e modos de produção, de poder, direito e conhecimento nas sociedades, localizando-os nos respectivos «espaços», a saber: (i) o «espaço doméstico», que abrange as relações sociais de produção e reprodução de domesticidade e parentesco; (ii) o «espaço da produção», que se refere ao conjunto de relações sociais estabelecidas em torno do trabalho, da produção e dos valores de troca económicos; (iii) o «espaço do mercado», onde se desenvolvem relações sociais de distribuição e consumo de valores de troca; (iv) o «espaço da comunidade», onde se desenrolam as relações sociais que dizem respeito à construção de territórios e identidades físicas e simbólicas em torno de origens ou destinos comuns; (v) o «espaço da cidadania», ou «esfera pública», que diz respeito às relações estabelecidas entre os cidadãos e o Estado; (vi) e o «espaço mundial», que se refere à dinâmica das interacções do sistema mundial, ao englobar e integrar em cada sociedade os efeitos gerados pela divisão global do trabalho sobre os restantes espaços existentes em cada sociedade. Cada espaço estrutural é operacionalizado a um nível abstracto em componentes básicos de expressão, ou dimensões, que lhe conferem a sua especificidade e dinâmica própria, caracterizada pelo tipo de trocas desiguais no âmbito das relações sociais que nele se desen-

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volvem. Importa, então, descrever de forma breve a que se referem cada uma das dimensões ou componentes propostas por Boaventura de Sousa Santos. A «unidade de prática social» é o eixo de acção e identificação individual e colectiva e a base em torno da qual se desenvolvem as relações sociais de cada espaço estrutural, como por exemplo, a identificação do indivíduo ou grupos de indivíduos enquanto clientes/consumidores no espaço do mercado. A dimensão «institucional» descreve as estruturas organizadas e estáveis, responsáveis pela reprodução de formas e procedimentos, através das quais os padrões de interacção são «normalizados» e tornados necessários e desejáveis. A «dinâmica de desenvolvimento» concerne ao princípio e direccionalidade da acção e ao tipo de racionalidade subjacente às relações sociais em cada espaço estrutural. Isto é, no âmbito dos espaços estruturais, a acção é configurada e orientada na prossecução de fins com vista à maximização da produção e reprodução da dinâmica própria do espaço. Por exemplo, a maximização da lealdade no espaço da cidadania visa a adesão constante, por via da legitimidade ou coerção dos indivíduos, ao Estado e às suas representações simbólicas. Boaventura de Sousa Santos debruça-se particularmente sobre os modos de produção do poder, do direito e do conhecimento, enquanto vectores fundamentais da sua crítica ao paradigma positivista moderno. Assim, de acordo com a conceptualização plural proposta por Santos, as «formas de poder» referem-se às trocas desiguais que ocorrem no seio de cada espaço estrutural, sendo que em cada um se verifica um modo privilegiado de poder, embora seja importante salientar a possibilidade de transversalidade e combinação de qualquer uma das formas de poder entre os restantes espaços estruturais. O autor exemplifica a hibridação e permeabilidade das diversas formas de poder referindo-se ao patriarcado como forma dominante no espaço doméstico, a qual estrutura e organiza as relações sociais nesse espaço. Contudo, a mesma forma de poder pode ter expressão em qualquer um dos restantes espaços de acordo com as circunstâncias específicas de cada espaço e de cada sociedade. Por exemplo, para as mulheres norte-americanas, o patriarcado produz impactos mais relevantes para as mulheres ao nível do espaço da produção devido ao efeito das desigualdades manifestas em salários mais baixos do que os dos homens ou a perda de oportunidades de promoção em função de licenças de maternidade ou para cuidar dos filhos (Santos, 2000: 264). Por «formas de direito» entende-se uma concepção ampla de direito que admite que este abarca o conjunto de procedimentos estáveis e padrões normativos que orientam e servem de base para a emergência e resolução de conflitos no seio de determinado grupo social, sem que necessariamente se conforme com as disposições centradas no direito estatal. Por fim, as «formas epistemológicas» ou de conhecimento estão relacionadas com um senso comum específico de cada espaço que se desenvolve mediante as trocas simbólicas, interacções e relações sociais proporcionadas pelos respectivos repertórios locais de argumentação e lógica retórica. O mapa de estruturação-acção integra os diferentes «espaços», interligando-os numa matriz de dimensões de expressão que operam no sentido de «constelação», isto é, qualquer

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dimensão particular de um espaço estrutural pode conjugar-se com outras dimensões de outros espaços. Por exemplo, o consumismo e cultura de massas, que correspondem à forma epistemológica do espaço do mercado, podem conjugar-se com a diferença sexual e geracional, que corresponde à unidade de prática social do espaço doméstico, na medida em que a interacção dinâmica entre as duas dimensões proporciona diferentes escolhas e segmentações que configuram diferentes relações sociais. Na medida em que a esfera das relações entre o Estado e os cidadãos se encontra profundamente imersa naquilo que se poderia designar por esfera mediática (Couldry, 2000: 178), e esta assume cada vez maior relevância na configuração das diversas constelações de poder existentes, ousaríamos argumentar que os média constituem um sétimo espaço estrutural nas sociedades capitalistas contemporâneas. Seguindo o mapa de estruturação-acção proposto por Boaventura de Sousa Santos (2000: 254), procuramos localizar os seis componentes elementares de expressão dos espaços estruturais no que designámos por «espaço dos média». A unidade de prática social no espaço dos média corresponde ao consumo-audiência, uma vez que a produção de significados e a reprodução de representações e sentidos configura o eixo relacional determinante das pertenças individuais e colectivas em torno dos média. A forma institucional assumida são os órgãos e meios de comunicação social, os quais contêm em si um acervo específico de memórias, procedimentos e rotinas, nomeadamente as rotinas de produção jornalística, que caracterizam e organizam as relações sociais que se estabelecem no espaço estrutural dos média. O modo de racionalidade ou dinâmica de desenvolvimento do espaço dos média opera em função da maximização da influência social. Esta dimensão afigura-se particularmente interessante na medida em que constitui um bom exemplo da interpenetração dos diversos espaços e dimensões. Ou seja, se considerarmos a publicidade comercial, temos a maximização da influência em conjugação com o espaço do mercado (cliente-consumidor), ao mesmo tempo que se relaciona, por exemplo, com a dimensão comunitária referente à maximização da identidade, ou mesmo como veículo dos fins de maximização da identidade no âmbito do espaço da cidadania. O mecanismo de poder no espaço dos média é a hegemonia das representações, que designa a assimetria na produção de formas simbólicas e a força e amplitude com que estas podem ser disseminadas na sociedade. A forma de direito corresponde ao direito da opinião, isto é, a possibilidade da troca de argumentos, a visibilidade dos actores ou o «tempo de antena» que lhes é conferido, assim como o exercício do contraditório, constituem no espaço dos média as normas e procedimentos padronizados que são justificáveis e aceites como modos de criação, resolução ou prevenção de litígios. Finalmente, a forma epistemológica ou de conhecimento do espaço estrutural dos média é a lógica mediática. Falamos do ritmo, gramática e enquadramentos característicos dos média que proporcionam um tipo distinto de senso comum, possivelmente até o mais marcante e difundido nas sociedades capitalistas contemporâneas.

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De acordo com o que foi exposto, apresentamos abaixo o quadro referente ao mapa de estrutura-acção das sociedades capitalistas no sistema mundial proposto por Boaventura de Sousa Santos (2000: 254), onde assinalamos a adição do espaço dos média: Mapa de estrutura-acção das sociedades capitalistas no espaço mundial DIMENSÕES ESPAÇOS ESTRUTURAIS

UNIDADE DE PRÁTICA

ESPAÇO DOMÉSTICO

Diferença sexual e geracional

ESPAÇO DA PRODUÇÃO

Classe e natureza enquanto «natureza capitalista»

ESPAÇO DO MERCADO

Cliente-consumidor

INSTITUIÇÕES

DINÂMICA DE DESENVOLVIMENTO

FORMA DE PODER

FORMA DE DIREITO

FORMA EPISTEMOLÓGICA

Casamento, família e parentesco

Maximização da afectividade

Patriarcado

Direito doméstico

Familialismo, cultura familiar

Direito da produção

Produtivismo, tecnologismo, formação profissional e cultura

Fábrica e empresa

Maximização do lucro e Exploração maximização da «natureza da degradação capitalista» da natureza

Mercado

Maximização da utilidade e Fetichismo maximização da das mercadorização mercadorias das necessidades

Comunidade, Etnicidade, região, ESPAÇO DA raça, nação, organizações COMUNIDADE povo e religião populares de de base ESPAÇO DA CIDADANIA

ESPAÇO MUNDIAL

ESPAÇO DOS MÉDIA

Cidadania

Estado

Sistema inter-estatal, organismos e Estado-nação associações internacionais, tratados internacionais Consumo-audiência

Órgãos e meios de comunicação social

Maximização Diferenciação da identidade desigual

Maximização da lealdade

Dominação

Direito da troca

Consumismo e cultura de massas

Conhecimento local, Direito da cultura da comunidade comunidade e tradição Direito territorial (estatal)

Nacionalismo educacional e cultural, cultura cívica

Maximização da eficácia

Troca desigual

Direito sistémico

Ciência, progresso universalístico, cultura global

Maximização da influência

Hegemonia das interpretações e representações

Direito de opinião

Lógica mediática

A pluralidade do jurídico

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Procuramos demonstrar, através da inclusão do espaço dos média, que a proposta do mapa de estruturação-acção de Boaventura de Sousa Santos não só é analiticamente útil, mas também heuristicamente profícua no questionamento das várias formas plurais normativas e jurídicas existentes nas sociedades capitalistas contemporâneas. Os média, com maior incidência nas últimas décadas, têm vindo a sedimentar-se enquanto estrutura socialmente relevante no sentido da produção e reprodução de direito, poder e senso comum, podendo despoletar, enquanto «zonas de forte consenso sobre possibilidades de acção, grandes transformações sociais» (Santos, 2000: 244). O uso dos média para fazer eco de causas, iniciativas e argumentos pode, deste modo, ser visto como a expressão de uma normatividade plural. A discussão de matérias públicas ou privadas na esfera mediática poderá ser considerada uma modalidade de exposição e resolução de problemas pessoais, enquadrados pelos média como problemas sociais (Sacco, 1995). Contudo, a normatividade plural encontra-se disseminada nos interstícios de toda a vida social, sendo frequentemente mobilizada pelos mecanismos informais de resolução de litígios, o que conduz à formulação, proposta por Boaventura de Sousa Santos, de «pirâmide de litigiosidade», que trataremos de seguida.

1.2. Cultura jurídica e pirâmide da litigiosidade Tal como foi feito para o conceito de pluralidade jurídica, os conceitos de cultura jurídica e pirâmide de litigiosidade e a questão do acesso à justiça serão abordados a partir das propostas de Boaventura de Sousa Santos, explicitadas em obra elaborada em conjunto com outros autores (Santos et al., 1996), tendo coordenado aquele que terá sido o mais alargado estudo sobre a justiça na sociedade portuguesa. Esta opção assenta na centralidade deste autor e do seu pensamento na compreensão das problemáticas do direito e da justiça nas sociedades contemporâneas e em particular na sociedade portuguesa. Na matriz do Estado moderno, o poder judiciário é um poder político soberano. No entanto, o seu desempenho não depende só de factores políticos, mas também de outros factores, nomeadamente do «nível de desenvolvimento do país, e, portanto, da posição que este ocupa no sistema mundial e na economia-mundo» (Santos et al., 1996: 41). Se o nível de desenvolvimento socioeconómico de um país é fundamental para a explicação do nível e tipo de desempenho dos tribunais, os factores políticos desempenham também um papel central na cultura jurídica, assim como os próprios cidadãos e configurações de cidadania: «O Estado é um elemento central da cultura jurídica e nessa medida é sempre uma cultura jurídico-política e não pode ser plenamente compreendida fora do âmbito mais amplo da cultura política. Por outro lado, a cultura jurídica reside nos cidadãos e suas organizações e, neste sentido, é também parte integrante da cultura de cidadania» (Santos et al., 1996: 42).

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Direito, Justiça e Média – Tópicos de Sociologia

Entendendo por «cultura jurídica» o «conjunto de orientações a valores e a interesses que configuram um padrão de atitudes face ao direito e aos direitos e face às instituições do Estado que produzem, aplicam, garantem ou violam o direito e os direitos» (Santos et al., 1996: 42), Boaventura de Sousa Santos afirma que existem sociedades mais ou menos litigiosas, ou seja, com maior ou menor propensão para litigar e para transformar situações potencialmente litigiosas em situações judiciais. Por outro lado, varia de país para país, a capacidade de adaptação da oferta judicial à procura judicial. O autor socorre-se assim do conceito de «pirâmide da litigiosidade» para perceber de que modo os litígios são relações sociais que emergem e se desenvolvem segundo dinâmicas que o sociólogo pode analisar. A própria cultura jurídica tem como indicador principal a propensão à litigação: «O conceito de pirâmide de litigiosidade tem vindo a ser utilizado para dar conta, por recurso a uma metáfora geométrica, do modo como são geridas socialmente as relações litigiosas numa dada sociedade. Sabendo-se que as que chegam aos tribunais e, destas, as que chegam a julgamento, são a ponta da pirâmide, há que conhecer a trama social que intercede entre a ponta e a base da pirâmide» (Santos et al., 1996: 44).

Os litígios são construções sociais na medida em que, um mesmo comportamento pode ser considerado litigioso ou não, consoante a sociedade, o grupo social ou o contexto de interacção. As percepções das situações de litígio e os níveis de tolerância são diferentes perante as injustiças, variando de acordo com a classe, o género, o nível de escolaridade e a etnia (variáveis pelas quais os grupos sociais mais vulneráveis têm menor capacidade de transformar a lesão em litígio). Há ainda a considerar factores de natureza interpessoal, individual e tipo de contexto social (família, trabalho, mercado etc.) em que se tecem as relações sociais (Santos, 2009: 110). No conjunto de mecanismos de resolução de litígios, os tribunais tendem a ser os mais oficiais, formais, especializados e menos acessíveis (Santos et al., 1996: 47). Além disso, os grupos sociais mais vulneráveis têm uma percepção mais reduzida dos danos injustamente sofridos e menor capacidade de transformar tal percepção e avaliação em procura efectiva dos tribunais. Antes de recorrer aos tribunais, as partes tendem a procurar resolver os litígios junto de «instâncias não oficiais mais acessíveis, mais informais, menos distantes culturalmente e que garantam um nível aceitável de eficácia» (Santos et al., 1996: 47). Os conceitos de pirâmide de litigiosidade e de cultura jurídica e a sua aplicação na análise sociológica das sociedades actuais articulam-se com as funções do aparelho jurídico-legal. De acordo com a proposta de Boaventura de Sousa Santos, os tribunais modernos detêm três funções principais: (i) instrumentais; (ii) políticas; (iii) simbólicas. No que diz respeito às funções instrumentais dos tribunais, o autor destaca o papel de resolução de litígios, controlo social, administração e criação do direito. Ao nível das funções políticas, destaca-se o papel de legitimação do poder político, podendo a «politização do poder judicial» pôr em causa o funcionamento independente, acessível e eficaz dos tribunais (Santos et al., 1996: 54). As funções simbólicas dos tribunais derivam «do próprio

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garantismo processual, da igualdade formal, dos direitos processuais, da imparcialidade, da possibilidade de recurso» (Santos et al., 1996: 55-6). Por isso, a morosidade, a inacessibilidade, os custos ou a impunidade podem afectar severamente a credibilidade simbólica dos tribunais. Ao enfatizar as ineficiências da justiça formal e as diferenças entre os ideais da lei e a lei em acção, os média tendem a desafiar as funções instrumentais, políticas e simbólicas dos tribunais. Com isto, contribuem também para a emergência de percepções negativas da justiça formal e para a reivindicação de meios alternativos de resolução de litígios, pela comunicação ao público da ideia de que é necessário construir meios alternativos de obter justiça (Ericson et al., 1991: 229). Para além das características associadas à morosidade, inacessibilidade ou custos por vezes atribuídas ao sistema de justiça, importa analisar qual o tipo de obstáculos que se colocam no acesso à justiça aos cidadãos à medida que escalam a designada pirâmide de litigiosidade. 1.2.1. O acesso à justiça O acesso à justiça significa, em termos operacionais, «a capacidade para aceder aos tribunais e obter deles uma resolução do litígio» (Pastor, 1991: 65). Como foi dito atrás, diferentes grupos sociais têm diferentes percepções da litigiosidade e distintos níveis de tolerância perante situações «injustas». Mas, sobretudo, possuem diversificadas capacidades – económicas, culturais e cognitivas – de transformar um litígio em procura judicial. À situação de classe podemos adicionar outras variáveis com interesse sociológico – género, etnia, nacionalidade, religião, escolaridade – que condicionam o acesso aos tribunais e as representações sobre a justiça. Os grupos em situação de maior vulnerabilidade detêm, em termos globais, menor capacidade para aceder à justiça (Santos et al., 1996: 488 e ss.), pelo que importa identificar o tipo de obstáculos sociais que podem condicionar o acesso e as experiências em tribunal. De acordo com a proposta dos autores, existem três tipos principais de obstáculos no acesso à justiça: económicos, sociais e culturais, que passamos a descrever. Os obstáculos económicos compreendem os gastos associados aos custos judiciais e aos honorários de advogados, gastos de transportes e outros custos, como aqueles que resultam da morosidade. Estes custos tornam a justiça proporcionalmente mais cara para as acções de pequeno valor, que são aquelas que são mais correntes junto das classes populares (Santos et al., 1996: 486-7). Os obstáculos sociais e culturais são mais difíceis de identificar e analisar, mas referem-se, essencialmente, ao que podemos designar como «a distância dos cidadãos em relação à justiça». Isto articula-se com as configurações de cidadania, pelo que cidadãos com menores recursos tendem a desconhecer mais os seus direitos ou a mostrarem uma maior tendência para a resignação.

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«A discriminação social no acesso à justiça é um fenómeno muito mais complexo do que à primeira vista pode parecer, já que, para além das condicionantes económicas, sempre mais óbvias, envolve condicionantes sociais e culturais resultantes de processos de socialização e de interiorização de valores dominantes muito difíceis de transformar» (Santos et al., 1996: 488).

O acesso dos cidadãos à justiça é relativamente restrito, por via da selectividade do desempenho dos tribunais, mas também por ser grande a diferença entre a procura potencial e a procura efectiva da justiça. Além disso, o sistema de apoio judiciário – garante importante dos direitos de cidadania dos grupos sociais mais vulneráveis – parece ainda não funcionar em pleno. O acesso à justiça surge sociologicamente articulado com a questão das representações sociais sobre os tribunais. De facto, o tema da opinião pública sobre o direito e a justiça tem uma longa tradição ao nível dos estudos sociais do direito e da sociologia política, afigurando-se relevantes, ao nível da análise sociológica das representações sociais da justiça, matérias como o que os cidadãos sabem ou ignoram sobre o direito e os tribunais, o que pensam sobre o seu desempenho, como os avaliam à luz de experiências próprias ou de familiares e conhecidos, e que disponibilidade e motivação revelam para recorrer ao sistema de justiça oficial. Estudar as representações sociais da justiça significa também aferir a distância e proximidade dos cidadãos em relação ao sistema político moderno e a própria legitimidade do Estado. Numa sociedade democrática é importante perceber as representações dos cidadãos sobre o direito e a justiça. E essa tarefa torna-se tanto mais complicada de realizar quando, nas sociedades actuais, a formação da opinião pública é vulnerável à acção dos meios de comunicação social e de outros grupos de pressão. Admite-se que a maior parte da informação que os cidadãos adquirem acerca do sistema de justiça seja proveniente dos média, embora as audiências não sejam receptores passivos (Guibentif et al., 2002; Sacco, 1995). Porém, a maioria da informação acerca de assuntos públicos, particularmente aqueles que estão mais afastados da experiência quotidiana dos cidadãos, como é o caso dos tribunais, é produzida e veiculada pelos média. Ou seja, a realidade transmitida aos cidadãos acerca de praticamente todos os assuntos públicos é informação em segunda mão, formatada e enquadrada por jornalistas (McCombs, 2004: 1). Em sociedades em que não haja tradição de participação cidadã diversificada e continuada, os inquéritos à opinião pública podem constituir-se, antes, em «artefacto de opinião dos grupos económicos que controlam os meios de comunicação social» (Santos et al., 1996: 504). Além do mais, em sociedades cada vez mais complexas, será difícil falar de uma opinião pública, sendo talvez mais adequado falar de várias opiniões públicas. Conjugado com um reduzido acesso à justiça, parece verificar-se, em Portugal, uma prevalência elevada de opiniões negativas sobre os tribunais. Na medida em que apenas uma pequena percentagem de cidadãos tem contactos directos com os tribunais, é provável que os média desempenhem um papel relevante na construção de opiniões negativas da jus-

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tiça, designadamente por via da saliência do contraste entre os tempos mediáticos e os tempos judiciais. Também a eficiência dos tribunais é frequentemente posta em causa, devido ao que Cunha Rodrigues designa por «absorção da incerteza», isto é, quando os indícios e as consequências num dado caso são comunicados em lugar da existência de provas concretas, podendo assim criar expectativas públicas em relação a veredictos que não são concretizados pela justiça (Rodrigues, 1999: 72). No que toca às representações sobre a justiça, o estudo mais extensivo até hoje realizado em Portugal, anteriormente referido, apresentou como hipóteses de trabalho sobre este tema específico as seguintes proposições: • Relativamente à experiência em tribunal e sua avaliação A representação que o cidadão faz da justiça pode ser diferente consoante teve ou não uma experiência directa com os tribunais. Se não teve, muito provavelmente a avaliação que fará da justiça apoia-se nas realidades mítico-simbólicas projectadas pelos meios de comunicação social. O tipo e grau de envolvimento com os tribunais pode também ser decisivo: desde experiências «fortes» (se foi autor, réu, arguido ou ofendido), «moderadas» (testemunha) ou «fracas» (assistência de julgamentos). Hipótese: o recurso aos tribunais é relativamente diminuto e o grau de satisfação com a experiência é, em geral, baixo (Santos et al., 1996: 509).

• Relativamente ao funcionamento dos tribunais e profissionais da justiça As opiniões dos cidadãos sobre as instituições e sobre os operadores das mesmas assentam em expectativas sobre desempenhos e resultados. Resultam também da maior ou menor distância entre os cidadãos e os actores institucionais – distância que pode ser avaliada, nomeadamente, pelas modalidades de interacção verbais e não verbais que se desenvolvem entre os cidadãos e os operadores jurídicos, valores e normas que regulam as práticas de uns e outros, etc. Uma efectiva democratização do acesso à justiça e melhoria positiva das representações e avaliações que os cidadãos têm sobre os tribunais passará, nomeadamente, por uma alteração na formação dos magistrados, que previna dificuldades de comunicação e que potencie a compreensão das diferenças sociais e especificidades culturais e sócio-económicas dos contextos locais em que operam. Hipótese: a distância entre cidadãos e instituições, que redunda no uso escasso dos tribunais, redunda também em opiniões geralmente negativas a respeito dos tribunais e dos seus profissionais; no entanto, dada a heterogeneidade social da nossa sociedade, são grandes as variações segundo as características sociológicas dos inquiridos e de região para região (Santos et al., 1996: 510).

No seguimento destas hipóteses de trabalho, afigura-se relevante lançar uma hipótese adicional como ponto de partida para o próximo capítulo acerca das interacções entre os média e a justiça e os seus efeitos no que concerne aos contacto dos cidadãos com o sistema de justiça e à construção social de representações sobre a justiça, o crime e os tribunais.

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• Relativamente aos média e à justiça Com efeito, nas sociedades contemporâneas, naquilo que são as funções do aparelho jurídico-legal, verifica-se eventual e episodicamente uma «concorrência» (Commaille, 1994) por parte dos média, particularmente no que respeita às funções instrumentais, políticas e simbólicas dos tribunais. Por outras palavras, dir-se-ia que os cidadãos, através dos média, aqui enquadrados no conceito de «espaço estrutural» (Santos, 1988, 2000), serão capazes de mobilizar os componentes elementares e as formas plurais de poder e normatividade desse espaço que, frequentemente, se traduzem no uso dos média como via alternativa de litigância ou de instrumentalização da normatividade plural. Através da disseminação de representações, os média desempenharão também um papel relevante na construção da legitimidade do poder político, mas também do próprio poder judicial. Todavia, a selecção e cobertura mediática de apenas alguns casos e de fases processuais mais noticiáveis e rentáveis do ponto de vista comercial, tais como detenções, interrogatórios, ou divulgação de indícios, tendem a esvaziar o conteúdo potencial de intervenção e desenvolvimento da cidadania, mas também podem constituir um desafio às funções simbólicas dos tribunais. Hipótese: os média podem actuar no sentido de reduzir as distâncias entre os cidadãos e o sistema de justiça por via do escrutínio público. Contudo, a lógica de acção dominante nos média pode contribuir para reduzir o papel dos cidadãos ao de meros consumidores.

Assim, a mediatização de determinados casos judiciais aproxima-se do que Santos (1986: 27) designa por informalização e democratização do direito, processo pelo qual o poder jurídico se caracteriza por uma elevada heterogeneidade e se articula com outras formas de poder (Santos, 2000: 247). A mediatização da justiça é assim passível de decorrer da existência de uma pluralidade jurídica e normativa pela qual o conjunto de relações sociais que constituem a esfera das relações entre o Estado e os cidadãos se entrecruzam em diversos espaços estruturais e respectivas dimensões sociais, com as suas dinâmicas, formas de poder, formas de direito e instituições próprias (Santos, 2000: 253-7). Pensando a complexidade das relações estabelecidas entre a justiça, os média e os cidadãos, e tentando captar, nomeadamente, os impactos dos média no próprio sistema judicial, afigura-se útil a noção de «constelações de direito» proposta por Boaventura de Sousa Santos (Santos, 2000: 273). Este conceito permite-nos considerar a articulação e hibridação da ordem jurídica projectada pelo sistema jurídico-formal com a ordem jurídica espelhada e reafirmada pelos média no contexto do seu «espaço estrutural» e disseminada nos processos de produção de representações sociais. Isto é, pensar a crescente visibilidade da justiça nos média como um reflexo da insuficiência de respostas adequadas por parte das instituições produtoras de direito oficial.

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Pluralidade de ordens jurídicas segundo Boaventura de Sousa Santos Pluralidade das fontes do poder

Pluralidade das ordens jurídicas

Poder jurídico heterogéneo e diferenciado

Interlegalidade

Outras formas de direito

Direito oficial

Litigiosidade

Actividade de reflexão e debate: Os cidadãos podem recorrer aos média como meio alternativo de resolução de litígios relativamente à justiça formal, quer seja em pequenos conflitos locais, quer em casos de âmbito nacional. Dê exemplos de casos concretos em que os média foram usados para procurar obter resolução em situações percepcionadas como litígios, elaborando sobre os eventuais obstáculos que condicionaram o acesso aos tribunais e a eventual resolução pela via da justiça formal.

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CAPÍTULO

Média, crime e justiça

1. A MEDIATIZAÇÃO DA JUSTIÇA E A CONSTRUÇÃO DE REPRESENTAÇÕES SOCIAIS Este capítulo visa: – explorar as contradições geradas pela visibilidade mediática da justiça; – descrever a lógica associada à operacionalização dos critérios de noticiabilidade; – compreender as disjunções entre a justiça e os média; – reconhecer a importância e o papel dos média nos processos de construção das representações socais da justiça; – articular as funções de entretenimento dos média com a prevalência de opiniões negativas acerca do sistema de justiça.

1.1. A visibilidade da justiça e as funções concorrentes dos média A consolidação do Estado moderno ao longo do século XIX surge acompanhada de uma crescente complexificação e profissionalização da actividade judiciária, assente numa administração da justiça cada vez mais burocratizada e codificada. A carga simbólica da neutralidade e da imparcialidade da justiça apoia-se na codificação das leis e na produção de discursos baseados em códigos semânticos e linguísticos distanciados das linguagens do quotidiano e do senso comum. A justiça torna-se, assim, quase incomunicável para os públicos leigos, o que representa, sem dúvida, um dos mais sérios obstáculos à realização plena da democracia. A desejável visibilidade e o escrutínio público da justiça assumem um carácter essencial na sua legitimidade democrática. Dada a baixa propensão para a litigiosidade judicial na população portuguesa (Santos et al. 1996: 88-90) a justiça acaba por depender, em certa medida, das representações mediáticas circulantes no sentido de reforçar ou fragilizar a sua legitimidade.

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Reconhecendo o papel fulcral dos média na formação de opinião (McCombs, 2004), torna-se evidente a importância dos meios de comunicação social enquanto precursores e veículos transformadores do sistema jurídico. Nas relações entre os média e a justiça decorrem várias lutas simbólicas, particularmente centradas sobre o direito ao poder de nomear (Bourdieu, 1989). Na ocupação do espaço público, tanto pelos média como pela justiça, as suas funções respectivas, podendo ser complementares, revelam-se por vezes concorrentes (Commaille, 1994: 13). O direito é produto e produtor de um trabalho de racionalização que visa categorizar e excluir a ambiguidade dos fenómenos do mundo social, assente na eficácia performativa conferida pela legitimidade da aceitação pública (Bourdieu, 1989: 236-7). Por sua vez, os média tendem a concorrer com o direito pelo monopólio do poder de nomeação, derivando a sua legitimidade da adesão popular reflectida nas audiências e constituindo-se como o principal veículo de representação da autoridade nas sociedades modernas (Ericson, 1991: 238). Para além de desafiar o monopólio do direito de nomeação, os média desempenharão ainda uma outra função concorrente com o direito, isto é, a prática de «normalização». Com efeito, se o direito, como postula Bourdieu, consagra a ordem social dominante, normalizando e naturalizando, tornando-se doxa (Bourdieu, 1989: 248-9), os média tendem a seleccionar como sendo proeminentemente noticiáveis os temas e casos onde é percepcionado desvio, incluindo os desvios relacionados com as regras e procedimentos judiciais, co-construindo e reafirmando as normas e a moral dominante (Altheide, 1992: 71; Ericson et al., 1991: 239-83). De seguida, analisaremos em maior detalhe quais os factores ou características de um dado evento judicial que o tornam noticiável, mas também quais os aspectos da lógica de acção mediática que, de modo geral, enformam e condicionam as visões do mundo que são veiculadas para o público, construindo, assim, uma das vias de construção de representações dos cidadãos acerca da justiça. 1.1.1. Critérios de noticiabilidade Apesar da crescente visibilidade de temas ligados ao crime e à justiça nos meios de comunicação social, apenas um ínfimo número de casos é merecedor de atenção dos média e, como tal, participa como construtor das representações públicas acerca do sistema de justiça como um todo. A partir de Yvonne Jewkes (2004), que leva a cabo uma pertinente reflexão acerca de quais podem ser considerados os valores de noticiabilidade no século XXI, elencamos um conjunto de doze factores ou características associados à configuração particular de um crime ou caso judicial susceptíveis de levar à exposição e escrutínio públicos. Embora os possamos considerar de forma isolada, há que salientar que estes factores se configuram frequentemente em modo de constelação ou justaposição: (i) (ii)

limiar previsibilidade

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(iii) (iv) (v) (vi) (vii) (viii) (ix) (x) (xi) (xii)

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simplificação individualismo risco sexo celebridades ou pessoas de elevado estatuto proximidade violência espectacularidade ou imagens fortes crianças ideologia conservadora e manobras políticas

Segundo Yvonne Jewkes, a melhor metáfora para descrever as visões do mundo proporcionadas pelos média não será a de janelas ou espelhos, mas de prismas, na medida em que a essas visões está subjacente um certo grau de distorção. Dois factores concorrem para tal distorção: i) as condicionantes organizacionais e estruturais que afectam os processos de produção de notícias; b) as assumpções que os produtores de notícias fazem acerca das suas audiências. Assim, a noticiabilidade de um dado evento ou situação é algo que decorre de uma avaliação que jornalistas e editores fazem acerca da apetência das audiências e do interesse público (Jewkes, 2004: 37). Enquanto a apetência do público é mensurável através de índices de audiências e vendas, o interesse público é algo mais complexo e pode envolver determinantes organizacionais e interferências externas. Aqui, é invocado o papel dos jornalistas enquanto mediadores ou intermediários, investidos da responsabilidade de exercer uma ponderação activa e gestão equilibrada dos vários interesses em questão, quer sejam o interesse público, o interesse da fonte ou, diríamos até, o interesse comercial inerente à divulgação de determinada informação. O primeiro dos componentes referentes à noticiabilidade é designado por «limiar» e diz respeito ao grau percepcionado do conteúdo dramático de uma estória, podendo variar de acordo com a escala do órgão noticioso: local, nacional ou global (Jewkes, 2004: 41). Isto significa, por exemplo, que uma estória pode ter interesse público no âmbito de uma rádio local ou jornal regional, mas não ser percepcionada como ultrapassando o limiar de importância suficiente para ser focada num canal de televisão que difunda ao nível nacional. Outro aspecto relacionado com o «limiar» tem que ver com o cumprimento de critérios adicionais de noticiabilidade ou com o relacionamento com outras estórias, constituindo uma série. Isto sucede, por vezes, com notícias de pequenos crimes locais, tais como assaltos, que se tornam alvo de atenção nacional devido a um enquadramento particular, ou seja, algo como uma «vaga de assaltos». O componente da «previsibilidade» relaciona-se com eventos programados que podem ser inseridos com antecedência nas agendas mediáticas e aos quais podem ser alocados com a devida antecedência os meios e recursos adequados, tais como as várias sessões de um julgamento. É quase necessário que um evento extraordinário e imprevisto, como um grande assalto ou um episódio de violência, tenha potencial valor de noticiabilidade. Todavia, os

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eventos programados podem ser também noticiáveis, mas com o contributo de outro aspecto relevante que concerne à selecção do enquadramento. Deste modo, ainda de acordo com Jewkes (2004: 42), a partir do momento que os média decidem qual a abordagem que pretendem seguir sobre um determinado caso, essa abordagem mantém-se e dificilmente se altera. Como exemplo, podemos referir as manifestações anti-globalização onde, apesar de a grande maioria dos elementos demonstrar uma atitude pacífica, qualquer episódio violento de confrontos com a polícia tende a ser amplificado e a dominar a cobertura mediática, na medida em que eventos semelhantes anteriores terão sido cobertos sob esse mesmo enquadramento. A previsibilidade de um evento implica a definição da situação de antemão, influenciando o prisma através do qual será visto pelo público. Tal é particularmente relevante para a cobertura de casos judiciais onde a «definição da situação» ocorre muitas vezes em fases anteriores a um eventual julgamento, na medida em que os média tendem a «construir» o caso a partir de informação que nem sempre corresponderá à efectiva e concreta situação jurídica. Isto tende a suceder, por exemplo, com a detenção para interrogatório de suspeitos de crime, cujo enquadramento mediático proporciona, frequentemente, ampla especulação acerca dos motivos que levaram à acção judicial. Uma crítica frequente aos média por parte de actores judiciais relaciona-se com a «simplificação» isto é, a redução da complexidade de um caso judicial a termos nem sempre conformes com a realidade jurídica. Segundo Jewkes (2004: 43), a lógica jornalística tende a reduzir ao mínimo os elementos e temas de um caso, a tornar a estória o mais breve, clara e inequívoca possível. Tal poderá implicar que o público suspenda a sua interpretação crítica e seja conduzido a reacções emocionais unânimes. Nas notícias de crime, a simplificação acarreta geralmente sentimentos de indignação moral dirigidos aos transgressores. Este tipo de notícias representa um bom exemplo de simplificação, na medida em que os casos criminais são mais propensos à polarização de emoções e à apreensão imediata dos sentidos e significados disponíveis do que um outro tema cuja noticiabilidade implique um enquadramento mais aprofundado e circunstanciado. O factor de noticiabilidade que Jewkes designa por «individualismo» surge frequentemente associado a outros factores tais como a «simplificação», acima descrito, e o «risco» (Jewkes, 2004: 45-7). Ou seja, perante um dado crime, a preferência dos média tende a recair sobre enquadramentos e explicações que enfatizem os factores individuais e eventuais desajustamentos de carácter moral dos indivíduos, em detrimento de outras explicações mais complexas e politizadas, tendendo a ignorar qualquer sentido de responsabilidade social. Os sujeitos desviantes são assim responsabilizados pelo seu destino e os média desvalorizam quaisquer estilos de vida que não se enquadrem no panorama normativo dominante. Uma consequência do individualismo para a justiça criminal é que os «desviantes» são isolados em função da sua «diferença», centrando em si o foco da reacção moral. Geralmente, o «individualismo» patente em muitas estórias de crime e justiça relaciona-se com uma apetência mediática pelas estórias de «interesse humano» onde é possível retratar e caracterizar quer o criminoso, quer a vítima ou pessoas próximas da vítima. Os rela-

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tos mediáticos focados sobre as acções e motivações dos indivíduos envolvidos em crimes tendem a levar o público a identificar-se, porventura, com as suas próprias experiências e reacções, consumindo as notícias no sentido em que Jack Katz designa por «exercício moral» (Katz, 1987: 70). O critério do «risco» surge associado à espectacularidade, dramatismo e ansiedade relacionada com sentimentos de insegurança provocados por narrativas de criminosos «a monte» e à ideia da potencial aleatoriedade da vitimização. Por exemplo, uma grande maioria de crimes graves, incluindo homicídios e violações, é cometida por pessoas conhecidas das respectivas vítimas. Todavia, ao conjugar a simplificação e o individualismo nas estórias de crime, os média tendem a construir narrativas que acentuam a noção de risco, desvalorizando factores de vitimização conhecidos. A ideia de que somos todos potenciais vítimas é um fenómeno relativamente recente e bastante associado ao enquadramento centrado na vítima conferido pelos média. Por vezes, a exploração das preocupações públicas e o exagero dos riscos potenciais destinam-se a agitar os medos e ansiedades prevalecentes nos indivíduos (Jewkes, 2004; Garland, 2008: 9). Contudo, as audiências não são passivas e acríticas. Embora os enquadramentos fornecidos pelos média não promovam o surgimento de interpretações alternativas, as noções individuais de risco assentarão, muito mais do que em algo veiculado na comunicação social, nas experiências e avaliações pessoais (Ericson, 1991: 219; Jewkes, 2004: 47). Segundo Yvonne Jewkes, um dos valores noticiosos mais relevantes, particularmente na imprensa tablóide, mas também na imprensa de referência, é o «sexo». As notícias de crimes que combinam sexo com violência ilustram eloquentemente o valor noticioso do risco, particularmente quando são alvo de enquadramentos individualistas consubstanciados na figura do «predador sexual» que persegue as suas vítimas inocentes para satisfazer as suas pulsões (Jewkes, 2004: 48). O componente que podemos designar por «celebridades» representa, talvez, um dos elementos mais relevantes de noticiabilidade, na medida em que o «limiar» é alcançado quase de imediato, independentemente da natureza ou grau de desvio, de a pessoa em questão ser a vítima ou o ofensor. Qualquer evento, por trivial que possa ser, tal como conduzir com excesso de álcool, que envolva uma figura pública ou uma «celebridade» é imediatamente passível de ser percepcionado como noticiável, ao contrário do que sucederá, normalmente, com qualquer outro indivíduo (Jewkes, 2004: 49). Particularmente noticiáveis são as estórias que reúnem «celebridades» e desvio sexual, na medida em que justapõem, perante uma audiência de cidadãos presumivelmente medianos e obedientes, a imagem de decadência de indivíduos olhados anteriormente como possuindo um estatuto superior (Barak, 1994 in Jewkes, 2004: 50). O mesmo tipo de efeito pode produzir-se para pessoas que, não sendo «celebridades», podem ser associadas a posições de classe com relevância na comunidade, como por exemplo, membros do clero, médicos, professores ou magistrados. Paradoxalmente, apesar de os média frequentemente retratarem o crime como sendo algo que classes de excluídos e marginais fazem incidir sobre cidadãos «normais» e res-

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peitáveis, o facto é que os crimes cometidos por pessoas de classe média, alta ou celebridades é que se tornam mais noticiáveis e preenchem mais espaço e atenção mediática (Jewkes, 2004: 51). Assim, os crimes das «celebridades» nos média podem contribuir para a construção pública de representações de uma justiça diferencial, que trata de modo desigual os «ricos» e os «pobres», na medida em que, para o cidadão comum, será difícil estabelecer comparações entre o desenvolvimento e conclusão da multiplicidade de processos judiciais dada a sobre-representação mediática dos crimes das «celebridades». A «proximidade» das audiências relativamente aos casos noticiados diz respeito a dinâmicas espaciais e culturais, ou seja, à proximidade geográfica e à ressonância com o quadro de valores, crenças e interesses de uma dada audiência. Os eventos ocorridos a um nível local podem ser relevantes para o público local, mas pouco significantes para um público de escala nacional (Jewkes, 2004: 51). O factor de proximidade aplica-se à noticiabilidade de eventos à escala nacional, internacional ou global. Do ponto de vista cultural, a percepção de proximidade pode estar ligada às características do evento – a existência de elementos ou temas com ressonância no público – ou ligadas às características dos indivíduos envolvidos. Pode verificar-se uma articulação das duas dinâmicas, sendo a respectiva importância condicionada pelo evento ou crime em questão. Por exemplo, o caso de uma pessoa dada como desaparecida num país estrangeiro e longínquo pode tornar-se potencialmente mais noticiável em função de um conjunto de factores interrelacionados. Se a pessoa em questão for jovem, do sexo feminino, de classe média e convencionalmente atraente, os média prestarão, em princípio, maior atenção ao caso do que se a pessoa fosse, por exemplo, um rapaz da classe trabalhadora ou uma mulher mais velha. Mesmo em casos em que existam suspeitas imediatas de rapto e/ou homicídio, o interesse mediático variará em função dos detalhes da vida da vítima (Jewkes, 2004: 52). O critério da proximidade, quer seja geográfica ou cultural, e da consequente visibilidade mediática atribuída, pode ser determinante para a configuração de políticas de policiamento e combate à criminalidade. Poderiam dar-se os exemplos de acções policiais em determinados bairros ou mesmo a frequência de operações policiais com o propósito de combater um crime específico como o carjacking. A «violência» é um dos valores noticiosos mais comuns a todos os tipos de média. Quando retratada por imagens, particularmente em formato televisivo, a violência assume um enorme potencial de noticiabilidade e, associada a crimes, torna possível a apresentação de imagens e relatos de formas que, possivelmente, seriam consideradas chocantes e não se fariam noutros contextos. Do mesmo modo, quaisquer crimes ou eventos passíveis de resultar em «espectáculo e imagens fortes», tais como motins e incêndios, serão percepcionados como tendo valor noticioso. Contudo, de acordo com Jewkes (2004: 55), os crimes que ocorrem na esfera privada ou que não são sujeitos a escrutínio público (i.e. violência doméstica, abuso sexual de menores, e muitos crimes de colarinho branco) podem ser frequentemente marginalizados pelos média por não proporcionarem imagens dramáticas, pese embora as considerá-

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veis consequências para os indivíduos e a sociedade. Talvez devido à disseminação e a uma certa banalização de retratos de violência em praticamente todos os formatos de média, desde os videojogos ao cinema, na ficção televisiva, ou mesmo nos espaços informativos, torna-se cada vez mais difusa a marcação de fronteiras entre a realidade e a ficção (Jewkes, 2004: 55) e a própria noção pública de urgência de resposta aos problemas criminais. Segundo Jewkes (2004), qualquer crime que envolva crianças, como agressores ou vítimas de violência terão probabilidades exponencialmente maiores de serem notícia, particularmente quando se tratam de situações que ofendem a moral dominante. As crianças representam simbolicamente em muitas sociedades o que há de mais puro, inocente e indefeso (Wyse, 2004: 207), e o seu envolvimento em actos criminais tende a gerar respostas morais por parte da sociedade que serão muito mais enérgicas do que se as vítimas ou agressores forem adultos. Na medida em que representam o futuro, a associação entre crianças e criminalidade pode ser vista como sintoma de declínio moral (Jewkes, 2004: 58). Assim, as crianças podem surgir como figuras centrais de campanhas morais mediáticas (por exemplo, contra a pedofilia) com o propósito alcançar mudanças legislativas, punições exemplares para os criminosos ou incremento de medidas de segurança e vigilância pública. Por fim, o último critério de noticiabilidade elencado por Jewkes refere-se ao que a autora designa por «ideologia conservadora». Trata-se de uma postura editorial de alguns média que confere visibilidade e reivindica a criminalização de comportamentos e grupos vistos como marginais (toxicodependentes, imigrantes, sub-culturas). Esta postura algo hostil de alguns média, perante grupos marginais ou não convencionais, emerge frequentemente alinhada com reivindicações de maior repressão policial e judicial e sentimentos punitivos (Jewkes, 2004: 59). Este tipo de discursos é passível de ser aproveitado por actores políticos, criando uma espécie de simbiose com os média para conquistar o apoio de um público ansioso e receoso. Contudo, os discursos mediáticos que apelam ao incremento da punitividade da justiça e que tendem a fomentar algum pânico público relativamente a certos grupos ou comportamentos podem servir apenas para desviar as atenções de problemas sociais mais sérios, fenómeno que Jewkes designa por «manobra política» (Jewkes, 2004: 59-60). À luz do que foi exposto acerca dos valores de noticiabilidade, particularmente no que concerne aos temas relacionados com o crime e a justiça, teremos lançado algumas pistas relativamente à lógica e processos que orientam a selecção da justiça tornada visível por via dos média. Com efeito, as imagens projectadas pelos média configuram uma modalidade de construção cidadã de representações acerca do crime e da justiça. De seguida, aprofundaremos os sentidos, significados e implicações subjacentes ao fenómeno da mediatização da justiça.

1.2. Representações da justiça Numa sociedade democrática é importante perceber as representações dos cidadãos sobre o direito e a justiça, tornando-se essa tarefa mais complicada de realizar quando, nas

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sociedades actuais, a formação da opinião pública é vulnerável à acção dos meios de comunicação social, a outros grupos de pressão e a contextos particulares de interacção (Ericson, 1991: 242-3). Em sociedades como a portuguesa, em que não há tradição de participação cidadã diversificada e continuada, e em que tal fenómeno se conjuga com uma grande diferença entre a procura potencial e a procura efectiva da justiça, a avaliação que o cidadão comum fará dos tribunais, sobretudo se não teve uma experiência de contacto directo com estes, apoiar-se-á nas imagens e interpretações projectadas pelos meios de comunicação social (Guibentif et al., 2002). Saliente-se que o facto das representações que os cidadãos têm da justiça, em particular do sistema de justiça criminal e das polícias, se ancorarem em grande medida na informação que obtêm dos órgãos de comunicação social não é exclusiva de Portugal, nem de países com um nível socioeconómico ou uma tradição jurídica similares. Vários estudos recentes têm vindo a demonstrar o impacto criado pelos média na compreensão pública e avaliação da justiça e da criminalidade, sendo apontadas quer as tendências para a dramatização da justiça, quer para a consolidação, por via da mediatização de determinados casos judiciais, de avaliações negativas sobre a eficácia dos tribunais, a adequação das leis e os modos de actuação das polícias (Fox et al., 2007; Surette, 1998). O interesse mediático pela justiça e o elemento dramático que lhe pode ser associado é maioritariamente focado na área criminal, sobretudo quando esta assume o carácter de ofensa aos estados fortes e definidos da consciência colectiva (Cohen, 2002; Durkheim, 1984a [1893]; Garland, 2008). As noções de «normalidade» e «ordem» difundidas pelos média são fundamentais para a capacidade dos diversos agentes e autoridades obterem legitimidade e autoridade moral para os seus propósitos e reivindicações, isto é, de reunir consenso no público acerca das definições dos problemas e das soluções apresentadas (Ericson, 1991: 8). A lógica mediática tende a extrair dos casos judiciais, através dos seus formatos, enquadramentos e gramáticas (Altheide, 2002: 102-3), os elementos que possam provocar a adesão emocional do público e a efervescência colectiva (Katz, 1987), em ressonância com factores de ansiedade e de medo mais generalizados (Cohen, 2002). A nosso ver, trata-se sobretudo de uma proximidade virtual cultivada pelos média, assente na emocionalidade e participação vicariante através daquilo que Moira Peelo chama «testemunho mediatizado» (Peelo, 2006), e que assumirá, nos dias de hoje, um papel cada vez mais central nas relações que os cidadãos estabelecem com a justiça. Estas relações podem configurar-se no âmbito da unidade de prática social do «espaço dos média», ou seja, no consumo de experiências e excitação proporcionadas pelos meios de comunicação social. Por outras palavras, ao mesmo tempo que a justiça em Portugal se tem vindo progressivamente a tornar mais permeável aos holofotes do escrutínio público e mediático (Costa, 2006; Santos, 2005b), abrindo assim caminho para a construção de uma imagem pública de uma justiça mais humanizada e próxima dos cidadãos, oferece também a face para um agudizar das representações negativas sobre os tribunais. Isto porque a mediatização da justiça surge acompanhada de uma construção social da justiça como lenta, ineficaz e ana-

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crónica, que pode favorecer uma deslocação da instância de julgar pelos tribunais a favor dos média (Commaille, 1994: 15). Poderá ser este um reflexo do mecanismo de poder no «espaço dos média» no sentido em que, mesmo que a realidade representada configure uma fracção da realidade concreta da justiça e dos tribunais, os média têm a capacidade de disseminar imagens hegemonizantes passíveis de influenciar as representações colectivas da justiça como um todo. A privatização dos órgãos de comunicação social terá exacerbado conflitos entre a sua função social de providenciar informação, guiada por princípios de profissionalismo, exigência e seriedade, e as eventuais pressões económicas, levando à transformação de público em consumidores (Lewis et al., 2005: 6). O papel mediador dos meios de comunicação social acha-se assim imbuído na operacionalização de uma dinâmica de desenvolvimento que actua no sentido da «maximização da influência social» que, no caso da justiça criminal, tende a produzir efeitos no sentido de moldar a percepção cidadã relativamente à qualidade e eficácia do sistema de justiça, inclusivamente por via da sobre-representação de determinados crimes (Reiner, 2007; Surette, 1998). A esfera pública poderá ser, assim, o espaço de disseminação de narrativas que revelam uma ordem discursiva dominante, mais propensa à articulação de mundivisões subjectivas, do que propriamente de acesso e envolvimento democrático (Holohan, 2005: 19). Contudo, o papel das audiências reveste-se de capacidade interpretativa relativamente aos discursos mediáticos (Mendes, 2004: 153). Daqui decorrerá o potencial para accionar a «forma de direito» própria do «espaço dos média», que referimos no capítulo anterior, o qual reside no direito da opinião. Mesmo admitindo que apenas um conjunto limitado de cidadãos terá acesso ao exercício da sua opinião nos média dentro dos parâmetros consensuais – uso de urbanidade, cortesia e respeito –, pressupõe-se um espectro de opiniões suficientemente amplo que possibilite e contribua para a formação de opinião plural por parte dos cidadãos. Porém, a formação de opinião será condicionada por uma forma de conhecimento característica dos média – a lógica mediática – a qual, no contexto da construção de representações da justiça, terá que ser enquadrada no conjunto das divergências ou disjunções que encontra face à lógica de acção da justiça. 1.2.1. Disjunções entre justiça e média No que respeita à representação e reafirmação dos valores, normas e ordem social vigente e dominante, poderíamos olhar a justiça e os média como faces de uma mesma moeda. Atente-se, por exemplo, nas declarações frequentemente ouvidas por parte de figuras públicas que se vêem envolvidas em processos-crime, quando colocadas perante microfones, gravadores e câmaras de filmar, dizendo que a verdadeira justiça se faz no tribunal. Serão este tipo de declarações reveladoras da consciência de que decorrem em paralelo dois julgamentos – um mediático e um institucional? É a partir daqui que surge a necessidade de compreender as distinções e semelhanças entre justiça e média, tentando elencar algumas das características, lógicas e contingências inerentes a cada campo.

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Entre o campo jurídico e, chamemos-lhe assim, o campo mediático, verificam-se disjunções nas suas lógicas de acção. Justiça e média actuam com referência a parâmetros temporais distintos, denotando-se inelutáveis assimetrias, incompatibilidades e antagonismos (Pina, 2009: 136). Boaventura de Sousa Santos (2005a) identifica dois níveis principais: o nível temporal e o nível gramatical. Ao nível temporal, os tempos da justiça atendem às exigências da tramitação processual e à burocracia e racionalidade das diferentes fases processuais, orientando cada processo através de um conjunto de «portas» que se vão fechando à medida que avança, desde a abertura do processo até ao trânsito em julgado. A tramitação judicial pode ser considerada extremamente lenta, especialmente quando confrontada com a temporalidade dos média. A periodicidade ou temporalidade mediática possui um carácter mais imprevisível na medida em que é afectada por factores relacionados com o estabelecimento de agendas, critérios de noticiabilidade, rotinas de produção noticiosa e mesmo mudanças organizacionais. Assim, no que diz respeito à cobertura da justiça, a lógica mediática procura reduzir a imprevisibilidade e adaptar os acontecimentos à sua própria lógica de periodicidade, isto é, hora-a-hora, diária ou semanal (Surette, 1998: 61). Paradoxalmente, é possível que um dado caso judicial possa ser alvo de grande cobertura mediática no início, quando pouca informação está disponível, mas que na sua fase judicial final seja praticamente ignorado pelos média. Ao nível discursivo ou gramatical, verificam-se traduções nos média que visam adaptar e tornar compreensível ao público leigo a linguagem técnica e altamente profissionalizada do campo jurídico que permanece hermética para os profanos de forma a consolidar o poder que advém do monopólio das competências (Bourdieu, 1989: 232-3). Desse modo, o público leigo vê-se limitado na interpretação da informação veiculada pelos média, na medida em que a formatação do discurso mediático eleva, por vezes, a decisão judicial à categoria de coisas acontecidas, com reflexos a nível da certeza, da absolutização e da ressonância. Para além disto, a necessidade de tornar a informação mais apelativa e compreensível leva frequentemente à introdução de novas significações por parte dos média (Rodrigues, 1999: 85-6). Um outro aspecto, que possui tanto de disjunção como de cumplicidade, refere-se às características dramáticas da justiça. O drama é quase inerente à justiça, sendo os processos judiciais inclusive descritos metaforicamente como um teatro: «Os processos judiciais tiveram sempre o potencial de se transformarem em dramas. Trata-se, porém, de um teatro para um auditório muito selecto, um teatro de culto profissional. Hoje, os meios de comunicação social, sobretudo a televisão, transformam esse teatro de culto num teatro de boulevard, espectáculo como entretenimento segundo uma linguagem directa e acessível a grandes massas» (Santos, 2005a: 99).

A dramatização dos casos judiciais por parte dos média contrasta com os rituais e papéis dos actores do processo judiciário, os quais se desenrolam num espaço e tempo delimitados que renunciam ao imediatismo e à personificação dos actores (Silva, 2003: 61).

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Dito de outro modo, o potencial dramático da justiça desenrola-se no âmbito de um tempo e espaço delimitados e os códigos linguísticos empregues são altamente especializados no sentido de reforçar o trabalho de racionalização da lei e a lógica do funcionamento do campo jurídico, produzindo dois efeitos maiores: a neutralização e a universalidade. A neutralização possibilita a impessoalidade do discurso jurídico através do uso de construções passivas e frases impessoais, conferindo um tom imparcial e objectivo, ao mesmo tempo que constitui o enunciador em sujeito universal (Bourdieu, 1989: 215-6). Por seu turno, a lógica mediática que diz respeito ao modo e processos de construção e disseminação de mensagens em determinado meio através da adaptação de formato, ritmo e gramática (Altheide, 2002: 102-3), tende a abordar os temas judiciais de acordo com a lógica televisiva dominante, mas também sob a influência dos vários critérios de noticiabilidade, e através do que vários autores designam por serialização, personificação e comodificação (Fox et al., 2007: 29-30; Surette, 1998: 73-4). A serialização refere-se ao desenvolvimento dramatizado de uma sequência de eventos ao longo de um determinado período de tempo, sendo que as audiências de um julgamento, pela sua previsibilidade, possibilitam a afectação e rentabilização de recursos por parte dos média. A personificação aponta para a ênfase nas características pessoais e emoções dos intervenientes em frequente detrimento da explanação circunstanciada dos factos e análise das questões de fundo. Deste modo, as narrativas judiciais são dominadas por personalidades e arquétipos, tornando-se retratos de personalidades individualizadas e suas idiossincrasias. Finalmente, a comodificação designa o modo como um julgamento ou caso judicial é «embalado», promovido e vendido como qualquer outro programa. É um factor que se encontra ligado à estrutura comercial da televisão que encoraja o público a olhar os dramas judiciais quase como um produto e não como um espaço institucional, vendo-se a si mesmo mais como consumidor do que como cidadão (Surette, 1998: 73). Vimos atrás como pode ser marcado o contraste entre a lógica judicial e a lógica mediática. Trata-se de disjunções entre uma lógica de acção que preconiza a observância estrita de regras e procedimentos por parte do sistema de justiça e uma lógica mediática que privilegia a actualidade e enquadramentos que possibilitem o acesso e rápida compreensão a largas camadas de público. O confronto entre estas lógicas distintas é passível de fomentar tensões e contribuir para visões algo distorcidas acerca de questões como a percepção do volume e frequência do crime e a capacidade e eficácia das autoridades em manter a ordem e a segurança. No seguimento do que foi explanado acerca dos critérios de noticiabilidade e das disjunções entre os média e a justiça, exploramos agora o conceito de julgamentos mediáticos e os seus potenciais impactos sobre os processos de construção de representações acerca do sistema de justiça.

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1.3. Julgamentos mediáticos 1.3.1. A visibilidade da crise e a crise da visibilidade De entre os eventos relacionados com o crime e a justiça que são alvo de cobertura pelos média, os designados julgamentos mediáticos serão, provavelmente, os maiores responsáveis pela disseminação e popularização de assuntos judiciais junto do público em Portugal. Por força de uma certa desestatização da comunicação social portuguesa nos anos noventa do século XX, que levou ao surgimento de canais de televisão privados e novos títulos de imprensa escrita, a justiça tornou-se mais permeável aos holofotes do escrutínio público e mediático (Costa, 2006; Dâmaso, 2004; Santos, 2005b), inferindo-se daqui a eventual relação entre o apelo comercial dos temas judiciais e a reestruturação do mercado mediático que acentuou a concorrência entre os agentes. O fenómeno da atracção mediática por temas judiciais, associado à descoberta de alguns escândalos que implicavam figuras poderosas (por exemplo, Carlos Melancia, Leonor Beleza, Torres Couto)1 marcou, segundo Boaventura de Sousa Santos, um período em que «a plácida obscuridade dos processos judiciais deu lugar à trepidante ribalta dos dramas judiciais» (Santos, 2005a: 98). A visibilidade inaudita proporcionada pelos holofotes mediáticos, sobre casos onde se encontravam implicadas figuras de elevado estatuto político e social (as «celebridades»), pareceu transmitir a noção de que a justiça se estava a transformar, atingindo «todos» e podendo ser eficaz e célere, sendo estes casos, paradigmaticamente, usados como símbolos de mudança. Segundo Simon Cottle (2005), a cobertura mediática de casos extraordinários é passível de abalar as estruturas morais e simbólicas da sociedade, quer através da reafirmação dos valores, agências e práticas de controlo social prevalecentes, quer ao desencadear processos de mudança ou reforma. Se os primeiros julgamentos mediáticos pareciam trazer promessas de mudança, albergavam também sementes da chamada «crise da justiça». Estudos sobre o desempenho global do sistema judicial português revelam que este sofre de uma grande «inércia», marcada pela morosidade, ineficácia e inacessibilidade (Amaral, 2000; Costa, 2006; Santos, 1982; Santos et al., 1996) contribuindo também para a crise da legitimidade do Estado. Tratar-se-á de uma crise do sistema de justiça com raízes no próprio declínio dos Estados-providência que se traduz num aumento da procura e de litigação, em simultâneo com as

(1) Carlos Melancia foi governador de Macau tendo sido associado a um caso de corrupção passiva num negócio relativo à construção do aeroporto de Macau em 1989. Foi posteriormente absolvido em 1994. Leonor Beleza foi ministra da Saúde entre 1985 e 1990. Foi constituída arguida juntamente com outros indivíduos, tendo sido acusada de negligência no processo de importação de sangue, que se viria a saber estar contaminado com HIV, e que infectou 137 hemofílicos. No entanto, não foi provado dolo e o processo foi arquivado, tendo os lesados recebido indemnizações por ordem de um tribunal arbitral em 1995. José Torres Couto era secretário-geral da UGT quando, em 1988, surgiram notícias acerca do seu envolvimento e de mais 23 arguidos num caso de alegado desvio de verbas provenientes do Fundo Social Europeu. O julgamento do caso teve início em 2002, sendo Torres Couto absolvido em 2007.

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crescentes dificuldades de cariz financeiro para adequar os sistemas de justiça aos desenvolvimentos sociais e económicos (Amaral, 2000). Em Portugal, mais do que a constatação de uma «crise» associada à explosão de litigiosidade (Santos et al., 1996), instalou-se a «mediatização da crise» (Costa, 2006: 18), associada ao surgimento de julgamentos mediáticos, como reflexo de uma tendência para a dramatização e sensacionalismo que, acentuando o escrutínio dos média sobre a justiça, salientou igualmente alguns conflitos existentes no seio da magistratura, bem como a morosidade e o ritualismo (Costa, 2006). Na medida em que os temas judiciais tendem a ser enquadrados mediante um certo nivelamento dos conteúdos e a sua disseminação no seio de públicos heterogéneos, é frequente verificar-se alguma tensão e discrepância entre a justiça nos tribunais e as suas representações nos média. Algumas das principais tensões entre o sistema de justiça e os média parecem emergir, fundamentalmente, durante casos que, por determinados factores ou uma particular conjugação de critérios de noticiabilidade, levam a uma cobertura extensiva por parte dos média, incidindo particularmente na área criminal (Pina, 2009: 131-6). A recorrência relativamente recente, em Portugal, dos julgamentos mediáticos, sugere o crescimento do fenómeno da mediatização da justiça e, porventura, de efeitos e impactos implícitos para a construção de representações por parte dos cidadãos, como veremos de seguida. 1.3.2. Os impactos dos julgamentos mediáticos O funcionamento rotineiro da justiça não suscita grande interesse da parte dos média ou do cidadão comum. Tende a verificar-se que aqueles casos onde os procedimentos judiciais são vistos como desviantes em face dos valores ideológicos dos média e das suas audiências implícitas podem vir a ser alvo de atenção e crítica. Por exemplo, se se verifica a imposição de uma medida de coacção ou sentença que fica aquém das expectativas geradas mediante a gravidade do crime. O interesse mediático surge também naqueles casos que conjugam critérios de noticiabilidade suficientemente relevantes para serem sujeitos ao escrutínio mediático e público. A selecção mediática de alguns casos judiciais particulares pode constituir-se, conforme aponta Cunha Rodrigues, em veículo de juízos, opiniões e local de digladiação de interesses em confronto, podendo mesmo desautorizar ou desvalorizar a acção da justiça (Rodrigues, 1999: 12). Neste aspecto particular, salientam-se as disposições ideológicas e interesses frequentemente opostos entre jornalistas e os actores judiciais, que tornam o acesso e divulgação de informações acerca dos processos judiciais crescente objecto de tensões entre média e sistema de justiça (Pina, 2009: 151; Santos, 1997: 45). Estas tensões configuram potenciais cenários onde se desenrola a construção de formas plurais de direito e de poder em torno da projecção pública de imagens de ordem e controlo social naquilo a que Ericson et al. (1991) designam por efeito de «desinstitucionalização». Segundo estes autores, o tratamento mediático de casos judiciais é passível de fomentar um pluralismo de valores, moralidade e crenças, podendo afectar os significados estáveis

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adscritos às instituições tradicionais, por exemplo, ao desconstruir aos olhos do público as hierarquias de autoridade presentes nas instituições judiciárias (Ericson et al., 1991: 19) através da exacerbação mediática de conflitos no seio da magistratura. Os julgamentos mediáticos (Fox et al., 2007; Rodrigues, 1999; Surette, 1998) surgem como paradigmas que marcam o desenvolvimento de imagens públicas da justiça e resultam frequentemente de casos cujo potencial de noticiabilidade e entretenimento leva a um interesse mediático desproporcionado acerca de episódios «extra-ordinários» no funcionamento rotineiro do sistema de justiça. Nas palavras de Ray Surette: «Um julgamento mediático é definido como um evento noticioso regional ou nacional no qual os média cooptam o sistema de justiça criminal como fonte privilegiada de drama e entretenimento. (…) Envolvem aqueles crimes que atraem cobertura intensa quer imediatamente após a sua descoberta ou no momento de uma detenção. (…) Apesar do seu pequeno número, os julgamentos mediáticos têm sido citados como centrais para a construção social da realidade do crime e da justiça. Actuam como um palco público gigantesco para a disseminação de conhecimento acerca da realidade do crime e da justiça pois comparam e avaliam explicitamente construções da realidade concorrentes perante uma audiência de cidadãos vulgares» (Surette, 1998: 72-3, tradução dos autores).

A recorrência deste género de eventos é passível de produzir consequências profundas nas representações públicas acerca do sistema de justiça, designadamente, por via da emocionalização dos discursos, da reivindicação de medidas repressivas e punitivas ou atitudes negativas perante o sistema de justiça e as forças policiais. O tema do crime nas notícias tem vindo, progressivamente, a passar das páginas interiores dos jornais para as suas capas. Quando uma notícia dá curso à construção de uma narrativa que se desenvolve ao longo de um dado período temporal, os retratos detalhados das vítimas e dos criminosos, famílias e contextos sociais contribuem para que as audiências se identifiquem de modo vicariante com os casos e originem respostas emocionais (Katz, 1987: 70). Segundo Cunha Rodrigues, a crescente visibilidade social da justiça por via da mediatização implica um efeito de absorção da incerteza, na medida em que, actuando numa lógica imediatista, opera uma fusão simbólica entre o mundo social e o mundo judicial, com reflexos nas representações dos cidadãos sobre a justiça: «A mediatização exerce um incontornável papel na publicidade da justiça, desde logo porque age como importante factor de absorção da incerteza. Socializando o discurso judicial, reedifica-o e fá-lo ingressar no universo dos eventos sociais. Aproximando o processo do receptor da mensagem, eleva a decisão judicial à categoria das coisas acontecidas, com reflexos a nível da certeza, da absolutização e da ressonância» (Rodrigues, 1999: 84).

A vítima de crime e o seu sofrimento, assim como a reacção moral contra os chamados crimes de «colarinho branco», assumiram, nas últimas décadas, uma posição central

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nos discursos mediáticos acerca do crime e dos criminosos, colocando a tradicional racionalidade e rigidez processual da justiça sob a pressão social emocionalizada do público (Pina, 2009: 127). Uma outra autora refere, inclusive, que a «emocionalização» dos discursos públicos e políticos acerca do crime se tornou uma característica da esfera pública na modernidade tardia (Karstedt, 2002: 303). Esta «emocionalização» poderá simplesmente derivar da crescente fusão dos códigos informativos e ficcionais (ou infotainment), na medida em que as organizações noticiosas se vêem envolvidas numa competição, cada vez mais apertada, pelas audiências, particularmente devido ao surgimento dos designados «novos média» (Fox et al., 2007: 200; Jewkes, 2004: 26; Surette, 1998: 53). Por via dos «julgamentos mediáticos» os média proporcionam ao público um «sofrimento distante» no qual podem exprimir compaixão e simpatia pelas vítimas, ao mesmo tempo que alimentam sentimentos de repulsa moral contra os criminosos (Karstedt, 2002: 301). Deste modo, temos os média, como produtores de uma moral social e política, destinada a impor determinados padrões de ordem e de consenso social (Ericson et al., 1991: 6; Foucault, 1977). Os aspectos emocionais dos enquadramentos mediáticos acerca de eventos judiciais, por exemplo, ao procurarem reacções e comentários junto das vítimas de crime, mas também da parte de suspeitos e arguidos, são susceptíveis de afectar a percepção pública do funcionamento da justiça. Na medida em que colidem com o trabalho de demarcação dos actores judiciais, que postula um distanciamento e neutralidade relativamente às partes num determinado processo, a emocionalização dos discursos a propósito de casos extraordinários poderá tender a generalizar e amplificar visões de desordem, impunidade e arbitrariedade, com impactos na credibilidade e legitimidade das instituições judiciais. A disseminação de imagens e discursos que podem ser vistos por actores judiciários como fomentadores de percepções negativas acerca do funcionamento do sistema de justiça potenciam, nas palavras de Cunha Rodrigues, a reivindicação de meios alternativos de resolução de litígios e manutenção da ordem: «A imagem de um eficiente trabalho das polícias ou de uma actuação célere e adequada da justiça fomenta reacções de aprovação e de reconciliação com o estatuto de cidadania. A ideia de que as polícias são inoperativas e a justiça lenta e ineficaz constitui caldo de cultura para a reivindicação de meios alternativos e para o basismo. É nestas representações que encontram explicação muitos episódios de autodefesa ou de “justiça popular”» (Rodrigues, 1999: 82).

O declínio da confiança pública na justiça parece acompanhar a tendência das últimas décadas do século XX, nas sociedades ocidentais, de uma aparente «crise da democracia» (Miguel, 2008: 252). Entre diversas hipóteses de explicação, as mais robustas surgem associadas às transformações do papel dos média nas sociedades. A hipótese da «espiral do cinismo», coloca os média, o público e as instituições como elementos de uma espiral que

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se re-alimenta continuamente, sendo os média o pivot do processo (Miguel, 2008: 255). Em traços gerais, esta hipótese poder-se-ia traduzir, de modo simples, mas eficaz, nos discursos populares que encontram ressonância nos média e que exprimem uma resignada desconfiança relativamente ao poder, às instituições e aos actores políticos, dizendo: «são todos a mesma coisa» ou «andam todos ao mesmo». Nas palavras de Sara Pina «A mediacracia contribui para a descredibilização da actividade política e a desconfiança dos cidadãos nos políticos – o cinismo político» (Pina, 2009: 83). Em Portugal, o entendimento popular do conceito de julgamento mediático poderá encontrar-se mais associado à divulgação de informação em processos sujeitos a segredo de justiça. A publicitação da mera existência de um processo de investigação actua, na visão de Cunha Rodrigues, no sentido da credibilização dos indícios e da estigmatização dos envolvidos. «Não é sequer necessário que [a] comunicação social reproduza o conteúdo de actos ou peças processuais. A mera invocação do processo produz efeitos de credibilização e de estigmatização. De resto, os denunciantes apercebem-se rapidamente disto e, algumas vezes, são eles próprios que enviam a queixa simultaneamente para as instâncias de investigação e para órgãos de comunicação social» (Rodrigues, 1999: 79).

O uso da publicidade em casos judiciais poderá favorecer um ambiente em que os média se constituem como palco de detecção e denúncia de crimes, actuando ao serviço dos interesses de denunciantes e interessados e configurando uma modalidade privilegiada e de grande visibilidade de tentativa de resolução alternativa de litígios.

1.4. Média, justiça e cidadania O papel dos média enquanto espaço onde os litígios se desenrolam perante os olhos do público, assume uma importância fulcral. Embora se possa presumir que as decisões e debates relevantes sejam levadas a cabo longe dos olhares do público, importa salientar o papel dos média como pontes entre a formação informal de opinião e os processos institucionalizados de formação de vontade (Habermas, 2006 in Garnham, 2007: 209). Neste sentido, e através dos actores que contribuem para formar opinião, seja em colunas de jornal, fóruns radiofónicos ou debates televisivos, é possível observar nos média um certo «poder indirecto», que se manifesta na capacidade de influenciar os decisores através do agendamento e da formação de «climas de opinião» (Curran e Seaton, 2003: 335; Roberts et al., 2003). Com efeito, os julgamentos mediáticos são passíveis de conduzir a processos de discussão e transformação na sociedade, na medida em que são ocasiões em que é dada ao público a possibilidade de observar os procedimentos, regras e funcionamento da justiça. Por via das imagens e discursos produzidos nos média, o público recebe dados que lhe permitem elaborar concepções e representações acerca do sistema de justiça e da ordem social vigente, plasmada ou mesmo ausente nos códigos e disposições legais. Isto é importante, na medida em que dado o relativo afastamento dos cidadãos do sistema de justiça, os

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média podem constituir-se como catalisadores de reivindicações populares e mudança, promovendo inclusivamente o desenvolvimento da qualidade da cidadania. A mediatização da justiça pode também servir para manter o status quo, sob a ilusão da participação e da transparência, reduzindo a vivência democrática a níveis inferiores, sem que tal se afigure perceptível aos cidadãos, dado que frequentemente é formatada para consumo e entretenimento e não necessariamente como contributo para a educação e formação cívica das audiências (Fox et al., 2007; Surette, 1998). Porém, há que ter em conta que os grupos em situação de maior vulnerabilidade tendem a estar mais distantes dos tribunais e a exprimir uma maior desconfiança face às instituições públicas em geral (Cabral et al., 2003; Miguel, 2008), tanto por via da escassez de recursos económicos como pelo efeito de obstáculos sociais e culturais. São também os grupos sociais mais vulneráveis em termos sócio-económicos e com menos escolaridade as audiências implícitas dos órgãos de comunicação social mais sensacionalistas e «comerciais» (ou «tablóide») (Guibentif et al., 2002: 188; Sparks, 1992: 285), e aqueles que, à partida, possuem «chaves de interpretação» cognitivas mais limitadas, e que por isso mesmo, estarão mais dependentes dos conteúdos e ritmos de acontecimentos projectados pelos média (Morley, 1983: 113; Silva et al., 2002: 123). Se a forma de poder no «espaço dos média» concerne à hegemonia das representações, pressupõe-se que os grupos sociais mais desfavorecidos em termos educacionais e culturais se encontrão mais expostos e isolados relativamente à influência dos ditos «climas de opinião». Presume-se, então, que estes mesmos grupos sociais estarão também mais condicionados no desenvolvimento e exercício da sua cidadania do que os cidadãos com outros recursos e competências que lhes permitam filtrar e relacionar a informação seleccionada e veiculada pelos média. Os critérios de noticiabilidade que abordamos ilustram a forma como os média seleccionam, de entre todas as formas de crime e vitimização, apenas aqueles que podem ser «vendidos» aos anseios voyeuristas das audiências, exagerando e dramatizando crimes relativamente extraordinários, ao mesmo tempo que ignoram ou menosprezam os crimes mais passíveis de vitimizar o cidadão comum (Jewkes, 2004: 60-1). Isto produzirá potenciais impactos relevantes, não só nas percepções cidadãs acerca das agências de segurança e instituições judiciais, mas também nas próprias avaliações de risco individual. Poderia falar-se do potencial dos média enquanto espaço estrutural que possibilita formas de participação cívica, na medida em que os cidadãos dispõem hoje de meios e recursos de acesso à informação e ao exercício da publicidade da sua opinião exponencialmente maiores do que alguma vez terão tido na história. Neste sentido, o «espaço dos média» potencia a expressão de formas de pluralidade jurídica e de intervenção na esfera pública que, diríamos, não tem precedentes. A interpenetração do «espaço dos média» com os demais espaços, como por exemplo, o espaço da cidadania, o espaço doméstico ou o espaço do mercado, pode configurar constelações complexas, mas de análise relevante. Neste capítulo, argumentámos que os média têm vindo a constituir-se como veículos privilegiados de ordem normativa não formal e não estatal.

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Assim, relembramos os «três sentidos sociológicos» da justiça, propostos por Jacques Commaille e indicados na parte introdutória deste livro: A justiça como (i) símbolo de como a sociedade representa os seus valores e normas; (ii) símbolo de imposição de autoridade (jurídica, mas também moral e política); (iii) representação do estatuto social do direito e seu papel ao longo da história na construção da legitimidade do poder político (Commaille, 1995: 10). Considerando a possibilidade do exercício de funções concorrentes com a justiça institucional por parte dos média (Commaille, 1994: 13), admitimos que também estes participam dos três sentidos sociológicos da justiça, isto é, como representação de valores e normas sociais, como símbolo de imposição (e representação) de autoridade, e como factor relevante na construção da legitimidade do poder político, mas também do poder judicial. Deste modo, propomos um esquema conceptual que sintetiza uma perspectiva para o estudo sociológico do acesso à justiça e da construção de representações dos tribunais e que admite uma via informal de contacto dos cidadãos com a justiça, centrada no papel dos média, em paralelo com a via formal. O acesso à justiça e a construção de representações dos tribunais

Via formal

JUSTIÇA

Via informal

Obstáculos no acesso à justiça

Disjunções entre justiça e média

Litígios

Julgamentos mediáticos

Contactos directos e indirectos

Média

Construção de representações sociais

CIDADÃOS

Média, crime e justiça

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Actividade de reflexão e debate: Tendo em conta os processos e dinâmicas de construção das representações sociais da justiça, discuta as eventuais vantagens e desvantagens da mediatização da justiça na sociedade portuguesa, procurando dar exemplos de casos judiciais mediáticos, identificando os factores que condicionaram a sua visibilidade, e os eventuais efeitos na sociedade portuguesa.

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