Diferentes formas de política militar: as fortificações como reflexo de modelos de governo.

September 5, 2017 | Autor: A. Fonseca de Castro | Categoría: História do Brasil, Historia Militar, Fortificacões, História do exército
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Diferentes formas de política militar: as fortificações como reflexo de modelos de governo. Adler Homero Fonseca de Castro1

Não é surpreendente que no Brasil os fortes e fortalezas tenham sido uma parte importante de seu passado. A construção de defesas era uma necessidade natural, considerando as ameaças permanentes que os colonizadores enfrentavam – começavam com o medo de revolta de escravos ou reação dos nativos: a primeira instalação permanente no Brasil, a feitoria de Américo Vespúcio, foi destruída pelos indígenas antes de 1526 (TRIÁS, 1975: p. 254). A ameaça também podia vir de estrangeiros que contestavam a posse do território americano. Igualmente havia o risco permanente de ataques de piratas, como foi o caso da destruição da segunda feitoria feita no Brasil, em Igaraçu, em 1532 (VARNHAGEN, 1981: 137). Era um problema que não se restringia ao período inicial da conquista do território ou a ameaças a pequenas povoações: Salvador, a capital da Colônia, foi atacada pelo pirata Black Bart em 1720, este roubando um navio dentro do porto. Apesar dos riscos de ataques serem comum a todas as experiências coloniais, a maneira como as potências coloniais reagiram a ele não foi igual: franceses e espanhóis, assim como os holandeses, construíram grandes fortificações: Quebec, Montreal, Louisbourg, Nova Orleans e Caiena, enquanto os hispânicos ergueram grandes praças fortes, algumas das quais foram Santo Domingo, Vera Cruz, Campeche, Mérida, San Juan, Panamá, Havana, Cartagena, Callao, Lima e Montevidéu. No caso holandês, temos as fortificações construídas pela Companhia das Índias Ocidentais: mesmo Nova Iorque, tem sua “Wall Street” (Rua do Muro), por onde passavam as muralhas holandesas. A necessidade de se guarnecer essas fortalezas obrigava a presença de forças de milícias ou soldados profissionais em grandes números para a América, sendo que no caso das tropas de linha uma prática comum era enviar tropas da Europa, substituindo-as periodicamente, de forma que os governos metropolitanos sempre tiveram uma forma mais direta de controle de suas colônias. Portugal adotou uma política semelhante à descrita acima na Ásia, construindo feitorias, fortalezas, arsenais, estaleiros e bases navais, além de se manter lá uma poderosa força naval. Isso implicava em um planejamento estratégico centralizado, estabelecido na Europa, que periodicamente enviava forças para a Índia. Mais importante, havia um gerenciamento centralizado para a aplicação de meios financeiros de forma a assegurar um “retorno” dos “investimentos” militares. Usando recursos recolhidos em uma grande área das colônias, ou mesmo vindo da metrópole, era possível edificar grandes obras defensivas, muito mais dispendiosas do que poderiam ser custeadas com impostos locais, mostrando as vantagens da “economia de escala” aplicada pelos portugueses na Ásia. 1

Mestre em história, pesquisador do IPHAN

Essa política militar adotada na Ásia Portuguesa é interessante, por ser totalmente diferente da que foi empregada no Brasil: a nova Colônia na América nem de longe tinha as mesmas possibilidades de retorno financeiro que a Ásia ou a América Hispânica, não havendo atrativos para a realização de investimentos diretos em defesa e esses gastos não foram feitos. O total da presença portuguesa no novo território, por mais de trinta anos, foram duas pequenas feitorias. Tal situação era, instável, devido à presença no litoral de comerciantes e piratas estrangeiros. Tendo em vista isso, Portugal adotou uma política militar para o Brasil que teria efeitos por todo o período colonial: a ideia era ocupar o território sem fazer investimentos governamentais com a Colônia. Assim, em 1534 foi implantado o sistema de capitanias hereditárias, pelo qual a coroa cedia parte de sua autoridade para particulares, que deveriam se encarregar de sua defesa. Mesmo considerando que esse esquema não foi um sucesso e que formalmente teve curta duração, começando a ser substituído com o Governo Geral, de 1548, de fato, a estratégia militar para o Brasil, não mudou de forma fundamental ao longo dos séculos seguintes: a base das ações defensivas continuaria a ser os recursos mobilizados localmente, nas capitanias, com pouquíssima intervenção do Governo Geral. Em termos dos reflexos das políticas militares nas fortificações, a questão da defesa a cargo dos moradores é bem evidente no Regimento do primeiro Governador Geral, Tomé de Sousa, pelo qual se determinava que cada capitão hereditário, senhor de engenho e morador deveria ter armas: artilharia, armaduras e armas portáteis, ordenando ainda que fizessem “torres e casas fortes” (REGIMENTO, 1548: 47). Ou seja, ao contrário de se tentar obter o monopólio do uso da violência, a ideia era deixar que os próprios moradores cuidassem de sua proteção. No início da colonização esse o sistema provou ser marginalmente eficiente: as capitanias hereditárias que tinham dado certo conseguiram se firmar e expandir-se no território: no século XVI e início do seguinte, o Rio de Janeiro foi conquistado por colonos de São Vicente e Sergipe por outros idos de Salvador. Mais importante, toda a costa além de Itamaracá foi conquistada por forças mobilizadas internamente na Colônia, em Pernambuco: Paraíba (1584), Rio Grande do Norte (1599), Ceará (1612), Maranhão (1614) e Pará (1616). Mas essa estratégia tinha problemas – sua eficiência pode ser questionada: não havendo um projeto centralizado para a aplicação de recursos militares, com uma forte influência dos moradores, problemas eram inevitáveis. Não havia uma coordenação entre as capitanias e as tropas existentes eram mobilizadas e treinadas localmente, garantindo que a formação dos soldados seria deficiente. Também não havia bases militares ou a presença de uma frota permanente no Brasil, o que seria bem problemático caso não houvesse o controle dos mares, como ocorreu durante as Guerras Holandesas. Como as capitanias tinham populações recursos reduzidos, não eram possíveis grandes investimentos em fortificações, o 2

que se complicava ainda com a questão da percepção dos moradores e autoridades locais sobre a necessidade dessas defesas: câmaras municipais tinham que lidar com uma base limitada de arrecadação, os assuntos militares competindo com outros projetos. Assim, no início do século XVII, quando o bispo de Salvador foi convidado a benzer a pedra fundamental de um forte, “não quis ir, dizendo que se lá fosse seria antes para amaldiçoá-la, pois, fazendo-se o dito forte, cessaria a obra da Sé” (SALVADOR, 1982: 359). Outro exemplo dos conflitos entre moradores e autoridades pode ser visto no forte de Cabedelo, na Paraíba, em 1618: o Governo Geral ofereceu recursos insuficientes para as obras e, portanto, seria necessária a criação de um imposto extraordinário, uma imposição, só que esse imposto não pode ser aplicado, sequer com a aprovação da câmara da Paraíba: os 150 moradores elegeram uma comissão para discutir o assunto, votando-se um imposto menor do que o solicitado (EXPOSIÇÃO, 1618: 42). Uma limitação do poder central em organizar a defesa e uma demonstração da autonomia local para discutir suas prioridades, independente de uma real necessidade estratégica. Por sua vez, o povo, as vezes, podia até ir às ruas exigindo que o governo melhorasse suas defesas, mesmo quando isso não era necessário, como ocorreu em 1711, na Segunda Revolta do Maneta, em Salvador. O resultado desses obstáculos a uma ação militar mais eficiente era que, ao contrário do que na Ásia portuguesa, as defesas permanentes no Brasil eram de pequeno porte, mal armadas, construídas de forma amadora e pouco duradoura. Suas guarnições eram pequenas, sendo formadas em sua maioria por milícias locais, com pouco ou nenhum treinamento. Serviam mais para assustar um pirata ou pequena embarcação inimiga, do que a impedir um ataque decidido, como ficou vem claro nas ocasiões em que o sistema de defesa colonial foi testado: Salvador foi tomada pelos holandeses em 1624, Recife em 1630 e São Luís em 1641. Mais tarde, o Rio de Janeiro foi saqueado por Duguay-Troin (1711) e a ilha de Santa Catarina caiu ante uma frota espanhola em 1777. Mesmo a exceção do sistema, a única grande praça forte (cidade murada) construída no Brasil no século XVII como parte de um projeto estratégico de governo, a Colônia de Sacramento, foi tomada em várias ocasiões quando atacada por forças maiores: em 1680, 1705 e 1762. O resultado prático no resto do Brasil foi que as defesas tinham mais um valor psicológico do que real – a cidade do Rio de Janeiro, em meados do século XVIII, tinha o sistema mais sofisticado de defesa da colônia, com vinte fortificações, algumas delas de grande porte. Mas a opinião profissional sobre elas não era das melhores – o marechal Böhn, comandante militar da capitania, escreveu que tinha visitado os fortes e fortalezas nesta cidade e na baía, mas seu número é excessivo, quase como que cada Governador teve vontades diferentes das de seus antecessores, deixando pela metade os trabalhos que cada um começou (...) e dessa forma as fortificações (a maior parte das quais foi feita por oficiais talvez zelosos, mas sem grandes

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conhecimentos) se acumularam e o que era necessário foi desprezado. (BÖHN, 1767: 1948)

O problema era que a cidade, por não ter um muro por terra e continuava a estar vulnerável: um engenheiros militar, pensava que se ela fosse atacada, não isso não seria feito contra os fortes existentes, mas sim como os ingleses fizeram em outras cidades fortificadas nas Américas, empreendendo uma ação ofensiva “pelas praias adjacentes e pela via de terra por onde essa cidade tem menor força e mais fácil modo de chegarem a ela as tropas, que fizerem o desembarque” (CARTA Régia, 1767: 375). Só que murar a cidade seria contra os interesses dos moradores. Além dos problemas das cidades costeiras, a fronteira terrestre era um vazio, pois não havia câmaras que pudessem bancar a manutenção de obras fortificadas, enquanto os governos das capitanias que controlavam essas fronteiras não tinham condições – ou interesse – em investir na ocupação militar dessas áreas. Entretanto, a falta de presença militar no interior se tornou um problema a partir da assinatura do Tratado de Madri, em 1750, quando o esquema diplomático português passou a ser questionado, especialmente durante e depois da Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Nesse momento há, pela primeira vez, um esforço “estratégico”, de ocupação militar das fronteiras por meio de fortificações. No Pará, foram reconstruídos Gurupá (1760) e Santarém (1762). No Amapá, foi erguido o forte de São José de Macapá (1761), sendo que no mesmo local, dois anos depois, foi feito um imenso forte. No Amazonas se ergueram as casas fortes de São Gabriel e de Marabitanas (1761), estas sendo reconstruídas de forma mais permanente no ano seguinte, para cobrir a fronteira com a Venezuela. Também em 1762 foi construída a casa forte de São José do Javari, removida para a povoação de Tabatinga seis anos depois, ambas na divisa com o Peru. No Mato Grosso do Sul, foi erguida a praça forte de Iguatemi em 1765, na fronteira do Paraguai. Em Rondônia foi feito o forte de Nossa Senhora da Conceição, em 1759, reconstruído nove anos depois (forte de Bragança) e depois substituído pelo imenso forte Príncipe da Beira, cuja construção começou em 1776. Não foram obras inúteis, já que justamente essas fronteiras passaram a ser contestadas: em 1762 os espanhóis atacaram sem sucesso o forte da Conceição e conquistaram a Colônia de Sacramento. No ano seguinte, o governador de Buenos Aires ocupou o Rio Grande do Sul e em 1769 forças idas do Paraguai destruíram a Colônia de Iguatemi. No norte, os portugueses destruíram duas fortificações espanholas em Roraima, em 1773, erguendo dois anos depois o forte de São Joaquim. Finalmente, os espanhóis enviaram uma imensa frota para o Sul, tomando a Ilha de Santa Catarina em 1777. Mesmo considerando esse esforço concentrado que foi feito nas décadas de 1760 e 1770, deve-se ter em mente que as raízes do esquema militar colonial continuaram válidas: o 4

projeto de defesa não foi dirigido ou coordenado pelo vice-reinado. A colaboração entre as capitanias também foi restrita. O sistema, portanto, continuou descentralizado, descoordenado e, principalmente, ineficiente, já que os recursos das capitanias de fronteira eram bem limitados, bastando ver o caso dos fortes erguidos na Amazônia, construídos de madeira e terra, com pouquíssima durabilidade. E mesmo essa tentativa de mudança não durou muito– com a paz de 1777 cessaram as atividades e cada capitania voltou a cuidar de seus assuntos militares. Do ponto de vista de fortificações, poucas foram feitas nesse período e aquelas que foram erguidas seguiram os mesmos princípios dos anos anteriores, apesar da qualidade geral das obras ter melhorado – isso por que as capitanias eram mais ricas e podiam investir mais recursos nesse campo. Uma modificação começa a se esboçar com a Independência, apesar disso não ser tão evidente no sistema militar como seria de se esperar. Apesar de haver um governo centralizado, o esquema de defesa continuou a ser muito baseado em inciativas locais, com um mínimo de coordenação geral – os imensos programas de defesa de 1822, do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, não foram organizados como ações do governo da Corte. Até a coordenação das tropas móveis que podia ser exercida pela capital também era limitada, apesar de já existir. De forma prática, no Primeiro Reinado a manutenção da fortificações continuou a ser paga pelos governos provinciais, as dezenas de fortificações construídas no período das guerras da Independência (1822 a 1826) e Cisplatina (1825-1828), não diferindo das feitas no trezentos anos anteriores: obras de pequeno porte, ineficazes e pouco duradouras, mais capazes de gerar uma sensação de segurança do que uma defesa real. A Regência acabaria com esse período em que se mantiveram as estruturas militares coloniais. O exército sofreu uma redução brutal, passando de um total de 32.000 homens em 1829 para apenas 6.400 em 1836 – uma redução de mais de 80%. A mudança foi muito rápida e de grande vulto, de forma que necessariamente se refletiria nas fortificações – logo foi dada uma ordem para se desativarem todas as fortificações do Império, deixando-se em condições de funcionar apenas uma em cada província – e mesmo assim, em “meio armamento” (SILVA, 1831), ou seja, inúteis em caso de uma emergência. Entretanto, isso não era considerado um problema maior: ao contrário do período colonial, onde a defesa tinha um aspecto estritamente local sendo, portanto, meramente reativo, de resposta a uma ameaça, no Império se adotou uma política mais ativa. Por essa, ao invés de esperar um ataque passivamente, o que dava a iniciativa tática e estratégica a um inimigo, o exército foi reformado e, a partir de 1840, a prioridade não mais foram as defesas fixas, mas sim as forças móveis, tropas regulares e marinha de guerra, que podiam reagir diretamente a uma ameaça. Naturalmente, com os assuntos militares sendo administrados pelo governo central, as poucas defesas que foram construídas ou mantidas nesse período seguiram princípios 5

estratégicos do governo Imperial: Coimbra (MS), foi mantida para vigiar o Paraguai, Tabatinga (AM), para lidar com o Peru, assim como Óbidos (PA), um dos poucos fortes permanentes construídos durante o Império, uma necessidade, considerando-se que o Peru, chegou a fazer movimentos militares contra o Brasil em 1863 e havia ameaças a Amazônia, como da Inglaterra, que incorporou uma parte de território brasileiro em 1844. Mesmo os Estados Unidos davam sinais ameaçadores para o Brasil: em 1853 uma expedição de pesquisa foi enviada para fazer um levantamento do Rio. Nas instruções para o chefe da expedição estava escrito o seguinte: Não me importa quais sejam os motivos por que o governo o envia para lá. Sua ida será o primeiro elo naquela cadeia que terminará na criação da República Amazônica, pois quando o governo fizer o que estou sugerindo que faça, isto é, conseguir por um tratado o direito de navegar aquele rio, ele não poderá mais impedir que cidadãos americanos dos estados livres, assim como dos escravistas de irem para lá com suas mercadorias e servos para colonizarem, revolucionarem, transformarem em República e anglicizarem aquele vale (...) (MAURY, 1859)

Também sintomático de uma nova visão estratégica, de se fazer gastos dirigidos pelo governo central em áreas de interesse estratégico, há o caso do reforço das defesas no Amazonas em 1868. Foi criada uma flotilha de lanchas artilhadas lá e se reforçaram as defesas de Óbidos, Santarém e Belém. O que marca isso como realmente excepcional é que essas despesas foram feitas em plena guerra do Paraguai, quando não haveria recursos excedentes. Contudo, se pensava que o risco dos bolivianos se juntarem às hostilidades no lado do inimigo era grande o suficiente para justificar a ação do governo central. Outro aspecto do dirigismo estatal foram as defesas da Corte, onde outras considerações além das estritamente militares condicionavam a ação do governo: a cidade era a sede do governo, onde os viajantes estrangeiros tomavam o primeiro contato com a terra, além de aqui moraram os membros dos corpos diplomáticos estrangeiros. Era necessária uma presença militar mais visível. Tendo em vista esse papel de segurança da capital, as fortalezas da cidade não tinham apenas um papel figurativo – depois da recomposição do exército na década de 1840, eram defesas modernas e eficazes, apesar dessa situação de modernidade ter sido originária de uma situação que podemos considerar de origens psicológicas: a partir de 1831 os ingleses passaram a intervir militarmente no Brasil, visando a reprimir o tráfico negreiro, com ações que eram vistas como extremamente ofensivas. Por exemplo, em 1838, um navio de guerra inglês revistou a força um escaler do exército dentro da baía de Guanabara, e o diretor do Arsenal de Guerra, que estava a bordo, considerou: “intolerável que na Bahia do rio de Janeiro à vista das nossas Fortalezas, das nossas Bandeiras, e ainda mais em frente do Palácio do Imperador, e do Governo, estrangeiros orgulhosos, e insolentes pratiquem tais insultos” (DRUMMOND, 1838). Em 1845 o parlamento inglês aprovou a lei Aberdeen, o que 6

levou a apreensão de navios supostamente envolvidos com o tráfego negreiro, mesmo dentro de portos brasileiros, principalmente a partir de 1850: o Sharpshooter, capturou o um brigue em frente do forte de Macaé e outro navio inglês, o Cormorant, entrou no porto de Paranaguá, capturando três navios, acusados de tráfico. Lá, a população, revoltada com o incidente, foi para o antigo forte colonial, trocando disparos com a belonave britânica, que conseguiu sair com suas presas. O Brasil chegou a se preparar para uma guerra com a Inglaterra, reformando-se alguns fortes, mas não era possível vencer um conflito contra os britânicos, chegando-se a um acordo político. Só que a “diplomacia das canhoneiras” inglesa continuou e, em 1862, outro problema ocorreu, quando o embaixador William Dougal Christie, ordenou que navios ingleses capturassem embarcações brasileiras dentro da baía de Guanabara. Os fortes receberam ordens para não reagir, pois um conflito não era uma perspectiva aceitável para o governo – só que a população não viu dessa forma. Revoltada com a ofensa à honra nacional, o povo do Rio de Janeiro foi às ruas, protestando, como tinha ocorrido na revolta do Maneta, para que fossem tomadas medidas defensivas – o próprio imperador teve que sair do palácio para apaziguar a população enraivecida. Apesar de uma guerra contra a Inglaterra ainda não ser possível, foram dados passos no caso dessa conjuntura se concretizar: se comprou um navio encouraçado e foi encomendada uma grande quantidade de canhões de costa. Como medida de caráter mais de propaganda, os antigos fortes coloniais em todo o Brasil foram inspecionados e alguns deles, os mais importantes em cada província, receberam “novos” armamentos, canhões que tinham saído de serviço da Marinha vinte anos antes, mas que ainda eram capazes de funcionar. No caso do Rio de Janeiro era importante haver mais do que uma aparência de força e esse papel era bem desempenhado pela imponente fortaleza de Santa Cruz, na entrada do porto. Reformada na conjuntura da Questão Christie, junto com a fortaleza de São João, no outro lado da entrada da baía de Guanabara, a fortaleza, recebeu os novos canhões que tinham sido encomendados, estes com maior poder destrutivo do que os usados anteriormente. Santa Cruz era a primeira visão que quase todos os viajantes tinham: todos os navios que chegavam eram intimados a ancorar sob a boca de seus canhões, para que pudessem ser examinados. Entretanto, a Guerra do Paraguai viria a interromper o processo de modernização das fortificações no resto do Brasil e novos investimentos não foram feitos, uma situação grave em um momento em que a tecnologia militar se transformava rapidamente: os fortes do Rio de Janeiro tinham grossas muralhas de pedra, feitos com as técnicas mais avançadas de meados do século XIX, sendo projetados para receber canhões de grande calibre. Mas já na década de 1870 novos armamentos começaram a se tornar comuns, com alcances superiores, além de maior precisão e poder de destruição. Esse tipo de armamento foi instalado nos novos 7

fortes, só que as obras existentes não acompanharam o rápido desenvolvimento tecnológico necessário para as novas bocas de fogo. O resultado das mudanças do final do século XIX é que os fortes da capital ficaram obsoletos rapidamente – já na década de 1880 não seriam mais capazes de lidar com encouraçados maiores e isso ficou evidente na Revolta da Armada, quando não conseguiram impedir que os navios rebeldes passassem por eles. Como resposta ao problema que novamente ficara evidente para a população, o governo iniciou um imenso programa de construção, centrado no Rio de Janeiro, ainda como duplo objetivo de manter a capital do país defendida contra um ataque estrangeiro, ao mesmo tempo em que dava uma sensação de segurança para as pessoas e impressionava estrangeiros que vinham para a cidade. Foram projetados fortes protegidos com grossas couraças de aço, armadas de canhões capazes de lidar com os maiores e mais modernos navios do período. Foi um gasto muito grande: só um dos fortes construídos custou o equivalente a dois bilhões de dólares de hoje. Um evento inesperado novamente interromperia o processo de modernização das defesas, a Campanha de Canudos (1897-1898), que forçou o exército a concentrar seus esforços para debelar o movimento popular. Isso, junto com a política de controle de gastos do ministro da fazenda Joaquim Murtinho (1898-1902), impediu que a totalidade do programa previsto fosse encetado, apesar de dois dos grandes fortes projetados – os da Lage e o do Imbuí – terem sido concluídos, mesmo nessa conjuntura econômica negativa. Um último programa de defesa de interesse para o presente trabalho ocorreu a partir de 1906. Então, o governo, incentivado pelo ministro das relações exteriores, Rio Branco, fez um novo esforço de ampliar as defesas do Rio de Janeiro, fazendo gastos de grande vulto. Foram comprados dois encouraçados do tipo Dreadnought, o São Paulo e o Minas Gerais e materiais para mais quatro fortes, entre eles o de Copacabana, o maior de toda a América do Sul. Havia motivos militares para o programa: o porto do Rio de Janeiro era o principal do País e sua a principal fonte de receita, pelas taxas da alfândega de forma que sua defesa era fundamental. Mesmo assim, não podemos considerar que esse aspecto militar tenha sido o principal na decisão: o porto de Santos também era importante, mas só tinha dois fortes modernos armados com seis canhões de 150 mm, enquanto no Rio de Janeiro eram sete fortes com 25 canhões, os menores de 150 mm e os maiores os dois de 305 mm do forte de Copacabana – fica evidente a disparidade da eficiência das defesas. Além disso, os dois grandes fortes do Rio construídos em 1898, ainda eram eficazes, de forma que não se pode considerar a construção de novas obras como indispensável. 8

Novamente, aspectos psicológicos/diplomáticos parecem terem sido os motivadores reais das novas obra – havia a necessidade do país dar uma demonstração de força para o exterior: uma coalização de europeus bloqueou portos venezuelanos em 1902-1903, pois aquele país tinha declarado uma moratória e navios alemães chegaram até a bombardear uma cidade de lá. O Brasil tinha feito um acordo semelhante em 1898, um empréstimo para o qual foi dada como garantia a renda da alfândega do Rio de Janeiro – e em 1914 o Brasil faria uma nova moratória – de forma que a questão de aparência de força não podia ser considerada como irrelevante. Além disso, quando foi se estudou a proposta de criação de um tribunal internacional de arbitração, a ideia defendida pelas potências foi a de que os juízes dele deveriam ser indicados de acordo com a força militar de cada país, com óbvias implicações para um país fraco como o Brasil. No caso, as despesas com fortificações serviriam para impedir uma ação ofensiva inimiga e uma forma disso seria impressionar o corpo diplomático. Para isso, uma visita ao forte de Copacabana passou a ser parte permanente do roteiro dos dignitários que vinham ao País, como forma de mostrar que o Brasil estava preparado para se defender e assumir seu papel entre as grandes nações. Depois da conclusão do programa de defesa de 1908 não houve maiores investimentos na construção de fortificações, mesmo porque as existentes continuaram a ser eficazes até meados do século. Na Segunda Guerra foram propostas novas obras para o Rio de Janeiro e Santos, mas elas não chegaram a ser concluídas, pois avanços tecnológicos, como o avião, tinham tornado esse tipo de defesa obsoleto. Ainda assim, as fortificações voltariam a ter um papel estratégico. Não no campo militar, mas sim no das politicas públicas: em 1936 foi criado o SPHAN (Serviço do Patrimônio e Artístico Nacional), um dos vários órgãos do governo Vargas dedicado a uma política de formação de um sentimento de identidade nacional e entre os monumentos escolhidos como simbólicos estavam os antigos fortes: logo foram tombados 23 deles. É importante notar que entre os fortes tombados havia diversos que ainda eram usados pelo exército, mas consideramos mais relevante o caso da fortaleza de Santa Cruz, tombada em 1939. Essa poderia ser pensada como sendo apenas mais um monumento arquitetônico, só que fora modernizada em 1898 e ainda era parte importante do esquema de defesa da cidade – só seria desativada na década de 1970. É evidente que o Exército aceitou as restrições administrativas inerentes à necessidade de preservação cultural, pois seu papel como elementos identitários era parte de uma política governamental. Esse foi um novo papel estratégico das fortificações – um que ainda mantém, apesar de seu papel puramente militar ter cessado. 9

REFERÊNCIAS: TRIÁS, Rolando A. Laguarda. Cristóvão Jaques e as armadas guarda-costa. IN: História Naval Brasileira. Vol. 1. Tomo 1. Rio de Janeiro, Serviço Geral de Documentação da Marinha, 1975. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes de sua separação e independência de Portugal. Belo Horizonte : Ed. Itatiaia ; São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo, 1981. v. 1. REGIMENTO de Tomé de Sousa, Almeirim, 17 de dezembro de 1548. IN: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da Formação Administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1972. Tomo I. SALVADOR, Frei. História do Brasil, 1500-1627. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982. EXPOSIÇÃO de Olinda de 1618, feita pelo próprio punho do engenheiro mor Francisco de Frias Mesquita. s.l.n.d. SILVA NIGRA, Clemente Maria de. Francisco de Frias da Mesquita, engenheiro mor do Brasil. Revista do SPHAN, nº 9, 1945. BÖHN, João Henrique Böhm. CARTA ao Conde de Oeiras, julho de 1767, citada em MAGALHÃES, J. B. A Defesa do Rio de Janeiro no Século XVIII (estudos e obras da época). In: Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 200, 1948. CARTA Régia ao Conde da Cunha, 20 de junho de 1767. Arquivo do Distrito Federal. 4º ano, agosto de 1897. SILVA, Manuel da Fonseca Lima e. Aviso Circular do Ministro da Guerra, a todos os presidentes das províncias ordenando um plano regular de redução assim no material como no pessoal das fortificações. Rio de Janeiro, 24 de dezembro de 1831. Mss Arquivo Nacional. MAURY, Matthew. Instruções dadas ao tenente William Lewis Herndon, 20 de abril de 1850. apud STERNBERG, Hilgard O'Reilly. "Manifest Destiny" and the Brazilian Amazon: A Backdrop to Contemporary Security and Development Issues. Berkeley, Department of Geography. University of Califórnia. 1987. http://sites.maxwell.syr.edu/clag/Yearbook1987/sternberg.pdf. Acesso em novembro de 2011. DRUMMOND José de Vasconcelos Menezes de Drummond. Ofício do diretor do Arsenal de Guerra da Corte ao Ministro da Guerra, 20 de abril de 1838. Mss. Arquivo Nacional.

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