DIDÁTICAS DA HISTÓRIA: ENTRE FILÓSOFOS E HISTORIADORES (1690-1907)

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DIDÁTICAS DA HISTÓRIA Entre filósofos e historiadores (1690-1907)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE Reitora Ângela Maria Paiva Cruz Vice-Reitora Maria de Fãtima Freire Melo Ximenes Diretor da EDUFRN Margarida maria Dias de Oliveira Editor Helton Rubiano de Macedo Conselho Editorial Cipriano Maia de Vasconcelos (Presidente) Ana Luiza Medeiros Humberto Hermenegildo de Araújo Herculano Ricardo Campos Mônica Maria Fernandes Oliveira Tânia Cristina meira Garcia Técia Maria de Oliveira Maranhão Virgínia Maria Dantas de Araújo William Eufrásio Nunes Pereira

Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte CNPJ: 24.365.710/0008-50 Responsável: Margarida Maria Dias de Oliveira Site: http://www.editora.ufrn.br Email: [email protected] Telefone: (84) 3342-2221 Endereço: Campus Universitário S/N - Complemento: Campus Universitário Bairro: Lagoa Nova - Estado: RN | Cidade: Natal | CEP: 59072-970

ITAMAR FREITAS

DIDÁTICAS DA HISTÓRIA Entre filósofos e historiadores (1690-1907)

Natal-RN | 2015

Copyright© 2015 by Itamar Freitas

Todos os direitos desta edição estão reservados ao autor perante a lei de Direitos Autorais 9610/98.

Este livro foi impresso com recursos oriundos do Edital CAPES/FAPITEC/SE n. 07/2012 - Programa de Estímulo e Aumento da Efetividade dos Programas de Pós-Graduação em Sergipe (PROEF).

Editoração Eletrônica e capa: Adilma Menezes Revisão: Marcia Moura

Ficha catalográfica elaborada na Fonte

Freitas, Itamar F866d Didáticas da história: entre filósofos e históriadores (1690-1907) / Itamar Freitas. – Natal: Editora da UFRN, 2015. 98p ISBN. 978-85-425-0368-5 1. Didática da história. 2. Ensino de história. 3 Aprendizagem. I Titulo. CDU: 94:37

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ALGUMAS PALAVRAS AO VENTO

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esde o momento em que recebi a incumbência de escrever esta Apresentação ou Prefácio – conforme dizia a mensagem eletrônica –, inquieto-me tentando enumerar os pontos que deveriam compor o texto. A primeira decisão era optar por uma Apresentação ou um Prefácio, conforme a determinação recebida. Pensei qual seria a diferença, já que, a meu ver, os dois são aquela parte do livro que, de fato, lemos se se trata de alguém por quem temos referência, reverência, carinho ou admiração, ou aquela que pulamos se o nosso interesse é, especificamente, pelo livro. Inferi que uma Apresentação deveria referenciar mais a publicação em mãos, e o Prefácio mais o autor e o conjunto de sua obra. Assim, continuei indecisa sobre qual caminho tomar.

Hoje, pela manhã, recebi a triste notícia de que o coração do poeta Manoel de Barros parou. Lembrei-me do dia, absolutamente fascinante, que exibi para Itamar Freitas, na sala da minha casa, o filme “Só dez por cento é mentira”1, sobre o poeta. Descobri, naquele dia que, como eu, Itamar Freitas ficou extasiado, mudo e embevecido com as frases, com os poemas, com os personagens inusitados que pairavam ao redor da poesia de Manoel de Barros. Nós também nos descobrimos irmãos no gostar das falas nordestinas, no gostar da falta de cerimônia no trato com as pessoas, no amor pela beleza do aprender, no êxtase no desafio de criar, na excitação com a História e com o ensino de História.

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Isso tudo nos faz companheiros. Mas, apesar de reconhecê-lo com um companheiro, não me sinto igual, pelo simples fato de que Itamar Freitas está bem à frente e acima de qualquer um de nós. Sua capacidade de trabalho é reconhecida por todos que o conhecem – mas eu posso me dar ao luxo de afirmar que o conheço mais um pouco.

Construímos, ao longo de dez anos de convivência ininterrupta e de quinze anos de contatos, uma maneira peculiar de trabalho. Desafio Itamar Freitas com questões e problemáticas de pesquisa, e ele me questiona sobre tantas outras coisas. Não posso negar que ele responde bem mais rápido a mim do que eu a ele, mas não é só isso. Ele não só responde, como também descobre, inventa novos caminhos. Ele aprende línguas para ler autores inacessíveis em língua portuguesa ou pelo prazer e a curiosidade de ler o autor no original. Ele busca o diferente para tentar nos explicar sobre nós mesmos. Este livro é o resultado de mais um obstáculo criado por Itamar Freitas para ele mesmo.

Ele não se contenta em ler o que todos nós lemos, ou em se restringir ao que a moda acadêmica está ditando. Daí sua procura por novas fronteiras temporais, espaciais e de áreas de conhecimento para discutir o único tema que ele, há pelo menos uma década, se propõe a discutir: o ensino de História. Engana-se, porém, quem pensa que a unicidade temática o leva a restrições de objetos ou a repetição de ideias.

Pois bem, aqui está mais uma produção do Professor Itamar Freitas. O que torna a obra deste autor diferenciada é a insubordinação ao que já está consolidado. Ele briga, no melhor sentido do termo, o tempo todo com o conhecimento produzido. Ele busca explicitar nossos desafios para avançar nas pesquisas sobre o ensino de

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História, para responder propositivamente aos nossos alunos. Para isso, ele estuda, produz e publiciza, o mais rápido possível – seja em suporte papel ou nas mídias digitais. Em um dia em que lamentamos a morte de um poeta do porte de Manoel de Barros, inspiro-me no poema:

RETRATO DO ARTISTA QUANDO COISA A maior riqueza do homem é sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou — eu não aceito. Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai. Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas.

Essa inspiração leva-me a afirmar que Itamar Freitas também tem a necessidade de ser outros e que ele renova o homem usando borboletas, escrevendo em prosa sobre o ensino de História

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e declarando sua fé na humanidade. Há crença mais bela? Acho que não.

Renovem suas esperanças nos futuros que podemos construir com as páginas seguintes. Natal, 13 de novembro de 2014.

Margarida Maria Dias de Oliveira2

NOTAS 1 “Só dez por cento é mentira. A desbiografia oficial de Manoel de Barros”. Artezanato Eletrônico. 2 Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN.

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APRESENTAÇÃO

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ste livro reúne as aulas do segundo curso de extensão que ministrei (agosto/outubro de 2014) durante o estágio de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em História (PROHIS) da Universidade de Brasília (UnB). Depois de revisado, notei que a transformação das aulas em artigos mutilava bastante o tom dialogal dos textos. Por isso, segue publicado no formato original, destituído, obviamente, das ilustrações e dos recursos audiovisuais (alguns deles vão referidos ao longo das notas).

Como as “Primeiras palavras” detalharão a seguir, o curso explorou as noções de “história”, “pensamento histórico” e “usos da história” na formação de pessoas em alguns filósofos e historiadores que se ocuparam, tangencial ou centralmente da matéria entre os séculos XVIII e XX. Trata-se de um exercício analítico de longa duração, que já havia experimentado em diferentes ambientes com outros textos e autores, buscando os elementos que possibilitaram a nós, profissionais da história do século XXI, pronunciarmos as expressões “ensino de história” e “didática da história” com total espontaneidade e até defendê-las como domínios dos historiadores.

As exposições, o exercício de leitura, enfim, a empreitada cumprida no segundo semestre letivo do PPGHIS/UnB somente foi possível com o entendimento da relevância do tema, demonstrado pelo coordenador do programa, Professor Arthur Alfaix Assis, pelos membros do Departamento de História da UnB, que estimularam os seus alunos a participarem das atividades e ao financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, mediante o Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES).

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Sua posterior publicação, da mesma forma, deve-se à iniciativa do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe (PPGED), através do emprego dos recursos oriundos do Edital CAPES/FAPITEC/SE n. 07/2012 - Programa de Estímulo e Aumento da Efetividade dos Programas de Pós-Graduação em Sergipe (PROEF).

Contudo, nenhuma ação ou intenção supera a iniciativa dos alunos do curso, graduandos, licenciados, mestrandos, mestres, doutores e pós-doutores de várias especialidades que reservaram suas tardes de sexta-feira para discutirem questões de ensino de história. Resta-nos, portanto, agradecer às presenças de: Bibiana Soyaux de Almeida Rosa, Caio Rodrigo Carvalho Lima, César Fontana Silva, Cláudia Cristina Montenegro Nunes, Cláudio Holanda de Menezes, Cléber Júnior Lima Fernandes, Daniela Miller de Araújo Lopes, Eduardo da Mota Calvo, Geovanne Soares da Silva, Henrique Medeiros Alves Fernandes, Lúcia Regina Oliveira e Pinho, Lucilene Siqueira Fernandes, Lydiane de Paula, Marcus Vinícios da Silva Reis Teixeira, Maria Ângela S. Cappucci, Maria Antônia O. Duran Marins, Marina Thomé Bezzi, Rafael Nascimento Gomes, Roberto Lima de Souza, Silvanei da Silva Santos, Thiago Alves de Souza e Viviane Aparecida dos Santos Torres.

SUMÁRIO

Algumas palavras ao vento

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Apresentação

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Razões primeiras

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Pensar historicamente em John Locke?

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Pensar historicamente em Johann Friedrich Herbart?

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Pensar historicamente em John Dewey?

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Pensar historicamente em Rafael Altamira

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Pensar historicamente em Charles Seignobos

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Considerações finais e começo de uma nova empreitada

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RAZÕES PRIMEIRAS

Prezados alunos.

Um curso intitulado “Didática da história entre filósofos e historiadores (1690-1907)” merece uma justificativa inicial. Em primeiro lugar, didática da história conserva, aqui, o sentido instrumental (simples e amplo) de conjunto de conhecimentos, habilidades e valores empregados na formação histórica de pessoas em idade escolar. A escolha pelos filósofos e historiadores tem uma lógica. Quem primeiro pensou os usos da história na formação de pessoas foram os filósofos que se debruçavam sobre todo tipo de problema físico e metafísico, isso antes que os saberes científicos, sobretudo na universidade, no século XIX, se constituíssem como corpos autônomos, inclusive a história.

Somente em meados do século XIX, começaram a aparecer os primeiros manuais que codificavam o chamado método histórico – método crítico ou, ainda, método da crítica histórica ou crítica documental. À mesma época, difundiram-se as formas de transmitir ou fazer adquirir o resultado da pesquisa histórica em formato de currículos e livros escolares, em sala de aula ou em regime preceptorial, sob os mais diversos interesses, entre os quais destaco a formação do súdito ou do cidadão (sob os regimes: monárquico ou republicano), em estados democráticos ou ditatoriais.

POR QUE LER AUTORES DE TEMPOS E ESPAÇOS TÃO DÍSPARES?

A escolha por autores com vivência na Alemanha, França, Espanha, Estados Unidos e Inglaterra está fundada em questões lógicas,

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mas guarda justificativas relacionadas aos nossos modos de ensinar história hoje, na escolarização básica, nos ensinos fundamental e médio no Brasil, na middle e high school dos Estados Unidos ou nos colégios e liceus franceses, por exemplo.

As nossas pesquisas, aqui na Universidade de Brasília, inclusive, indicam que as didáticas da história – os modos científicos de empregar o conhecimento histórico na formação de pessoas imaturas – foram criadas na passagem do século XIX para o século XX, em vários países do Ocidente e quase que concomitantemente. Da mesma forma, junto aos pesquisadores com os quais atuamos, a professora Margarida Oliveira, por exemplo, desconfiamos da excessiva centralidade concedida aos anos 1980, no Brasil, acerca da inovação no que diz respeito ao ensino de história.

Retroagindo ao início do século passado e bem mais para trás, percebemos que tais inovações – às vezes, significadas como didáticas da história – são frutos de mudanças de ideias orientadoras, da filosofia da história, psicologia educacional para a história (desprovida, esta, em grande parte, das especulações metafísicas criadas, majoritariamente, no período circunscrito entre os séculos XVI e XIX).

Dizendo de outro modo, as didáticas da história, inicialmente, baseiam suas estratégias e propósitos em princípios epistemológicos de fundo dominantemente empirista (nos casos de J. Locke e F. Herbart) e empirista/evolucionista (J. Dewey). No início do século XX, tais suportes são, em parte, substituídos por uma epistemologia histórica, ainda empirista, embora não positivista (R. Altamira e C.-V. Seignobos), que privilegia o método histórico ou as operações processuais da pesquisa e (com menor ênfase) da escrita da história, procedimentos (sobretudo os primeiros) que teriam fundamentado e legitimado a história como ciência até o início do século XXI.  

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Outra razão também nos estimula a reler os autores desse tempo em que a história não se havia alçado à categoria de ciência universitária: as permanências de algumas ideias e procedimentos formulados ou sugeridos por Locke, Herbart e Dewey, sobretudo.

Somente para estimulá-los a rememorar as suas próprias experiências de discente e/ou docente, como também a ler e apreciar os textos e vídeos arrolados na bibliografia deste curso, saibam que ao privilegiarmos o exercício de determinada habilidade – a memória, por exemplo –, mediante a repetição, a cópia e a transferência de informação para um outro colega, no ensino de história, estamos empregando princípios cunhados há, no mínimo, 300 anos, que fazem parte das lições de Locke, preparadas para a educação do cavalheiro inglês.

Da mesma forma, quando afirmamos que as crianças encantam-se com histórias fantásticas, narrativas mitológicas e a experiência de seres com superpoderes porque a cosmogonia da primeira fase da história da humanidade (da pré-história à antiguidade) foi construída sobre tais parâmetros, estamos utilizando os pressupostos de Herbart.

Quando afirmamos, peremptoriamente, que aprender é resolver problemas numa dada situação cotidiana enfrentada pelo aluno com as habilidades de pensamento desenvolvidas na escola e a partir do método experimental – problematizar a realidade, elaborar e testar hipóteses, produzir uma resposta a partir do relativo consenso do grupo – estamos trabalhando com as assertivas de Dewey.

Por fim, quando defendemos, ardorosamente, que ensinar história é induzir o aluno a pensar historicamente ou – como fazem alguns renomados pesquisadores alemães, canadenses, estadunidenses, ingleses, australianos, espanhóis, argentinos, uruguaios e brasileiros, por exemplo – “ler” ou “pensar” como historiador, estamos lançando mão dos princípios difundidos por Altamira e Seignobos.

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É por esses motivos que selecionamos tais autores. Foi para evitar que “reinventemos a roda” – que repitamos equívocos já cometidos pelos filósofos e historiadores de então ou que não tomemos nossas “descobertas” como inovações originais, a exemplo da corrente noção de “alfabetização histórica” – que propusemos a leitura de alguns dos seus textos.

Foi também para ampliar o conhecimento que nos legaram, combiná-lo ao conhecimento disponibilizado, nos livros, na fala dos professores na universidade e, sobretudo, na Internet que iniciamos este curso sugerindo que vocês assistam aos vídeos de domínio público que informam sobre recentes teses acerca da natureza do pensamento, do funcionamento do cérebro e, de modo estrito, do pensar historicamente, temas abordados pelos autores referidos.1

Por fim, uma lembrança: a pergunta “o que é pensar historicamente?”, dirigida aos autores aqui referidos, é anacrônica, evidentemente. Mas, já escreveu Bloch, sem anacronismos não se avança na pesquisa histórica, ou seja, não se inventa, não se cria não se reinterpreta o passado. E o passado que queremos explorar é o dos usos da história na formação de pessoas em uma duração conjuntural, é o das prescrições metodológicas, enfim, da transferência do bastão da filosofia para a história sobre os modos de alfabetizar historicamente ou, numa sentença bem conhecida contemporaneamente, sobre os modos de potencializar as operações que possibilitam a orientação das pessoas na vida prática.  Sejam bem vindos!

Notas

1 - O cérebro e a neurociência. Programa produzido pela Univesp TV para o curso de extensão Ética Valores e Saúde na Escola, oferecido pela Universidade de São Paulo 04/11/2011. São Paulo, 15.18min. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=h9AJbriNqSw. Capturado em: 30 out. 2014.

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PENSAR HISTORICAMENTE EM JOHN LOCKE?

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á quase meio século, um respeitado especialista na obra política de John Locke (1632-1704) – John Dunn – reclamava que o filósofo fora representado nas histórias da historiografia e da filosofia como pai do iluminismo, ideólogo da burguesia, precursor do constitucionalismo liberal inglês, livre pensador e populista, entre outros adjetivos.1 Hoje, a controvérsia se mantém sobre os escritos do intelectual.

Nosso interesse, nesta aula, não é classificá-lo nem tomar partido por uma das representações anunciadas, apenas, propomos o exame da sua obra educacional sob um ângulo pouco explorado: o dos usos da história na formação de pessoas. Faremos isso mediante a leitura do  Estudo  [E] (1667),  Sobre o estudo [SE] (1677),  Ensaio acerca do entendimento humano [EAEH] (1690), Pensamentos sobre a educação [PSE] (1693),  Sobre o emprego do entendimento [SEE] (1697),  Esboço de uma carta de Locke à Condessa de Peterborough [ECLCP] (1697) e Algumas ideias acerca da leitura e o estudo para um cavalheiro [AIALEC] (1703).2

Aqui, portanto, tentaremos identificar o lugar do conhecimento histórico na formação do  gentleman, as formas pelas quais o preceptor e o educando poderiam dela tirar melhor proveito bem como o entendimento sugerido, em seus escritos, sobre o “pensar historicamente”. Por isso, iniciamos com uma brevíssima exposição sobre o sentido de categorias-chave da sua teoria do conhecimento: “educação” (education), “mente” (mind), “ideias” (ideas), e faculdades (faculties) da mente, isto é, os poderes (powers) ou habilidades (habilities) empregados no ato de conhecer as coisas.

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INSTRUÇÃO, FACULDADES E IDEIAS DA MENTE O prefácio de PSE já indica que a educação tem o fim de produzir cavalheiros virtuosos, hábeis e úteis em suas diferentes ocupações.3 É uma educação estreitamente ligada à política, remetente aos modelos clássicos anunciados por Platão e Aristóteles4 (ainda que sejam, as duas expressões, na obra de Locke, bastante peculiares à Inglaterra do século XVII). E isso se faz exercitando e moldando corpo e mente. Entretanto, a educação intelectual (instrução ou, no sentido atual, o estudo dos conhecimentos científico-escolares) e a educação física (natação, alimentação, entretenimento etc.) têm status  inferior à educação moral. Assim mesmo, a educação moral é promovida mediante exercícios corporais, morais propriamente ditos e intelectuais que, adiante, permitirão o controle dos desejos e inclinações, isto é, a submissão, por parte do discípulo, da sua vontade à sua razão.5 Esta capacidade de “negar” os seus próprios desejos e inclinações constitui, propriamente, a virtude. Em relação à mente,6  Locke afirma que seu lugar é o cérebro (brain) e sua natureza análoga a “um papel em branco (white paper)7 ou “cera de abelha” (bees wax)8 quando se nasce.9 A frase fez época e ainda é empregada, embora represente um grande problema já que o “coração do debate, a existência ou a não existência de ideias inatas, escapa à experiência empírica”.10  Com ou sem argumento de autoridade ou estratégias retóricas, o fato é que Locke atribui à mente11 o processamento de todas as ideias impressas mediante reflexão (reflection) e sensação (sensation).12 No EAEH, a mente é, então, estruturada sob três grandes poderes: percepção (perception - poder de sentir e de refletir as ideias), retenção (retention – poder de manter as ideias simples), discernimento (discerning - poder de distinguir ideias).13

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FACULDADES DA MENTE John Locke (1632-1704) FACULDADES DA MENTE DISCERNIMENTO distinguir ideias

PERCEPÇÃO sentir e refletir as ideias RETENSÃO manter as ideias simples

SAGACIDADE classifica as ideias

sob os modos

sob os modos JULGAMENTO separa ideias por seus detalhes

CONTEMPLAÇÃO reter pela visão MEMÓRIA reter por revivescência/ imaginação

COMPARAÇÃO determina as circunstâncias

ABSTRAÇÃO separa ideias, transformando-as em ideias gerais

DENOMINAÇÃO usa palavras para transmitir ideias

COMPOSIÇÃO reúne as ideias

Figura 1 – Faculdades da Mente em John Locke Elaborado pelo autor, a partir de Locke (1999; 2005)

A respeito das ideias, é também importante rememorar o seu caráter de “objeto ou material do pensamento.”1 4 As ideias chegam à mente através da sensação ou da reflexão e podem ser do tipo simples (simple ideas) e do tipo complexo (complex ideas). As ideias simples são percebidas passivamente pela mente, mediante a impressão que os objetos causam em um sentido ou em vários sentidos externos. As ideias complexas, produzidas por meio da “repetição”, “comparação’ e “união” dessas várias ideias simples,1 5 podem ser dos tipos “modos”, “substâncias” e “relações”.

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IDEIAS John Locke (1632-1704) É o objeto ou o material do pensamento

definição

tipos

SIMPLES “são apreendidas passivamente pela mente [...], introduzidas pela sensação e reflexão”

origem

COMPLEXAS “formadas pela reunião de várias ideias simples” classificação

classificação segundo os meios de aproximação da mente

MODO simples - “seculo” misto - “beleza”

por um único sentido “doce” - PALADAR por mais de um sentido “espaço”, “figura”, “repouso” e “movimento” - TATO/VISÃO

provém da sensação e da reflexão ou dos sentidos internos (mente) e sentidos externos (corpo)

pelos sentidos e reflexão, simultaneamente “prazer”, “poder” e “sucessão”

pela reflexão (a mente observando a si mesma) “percepção” e “volição”

RELAÇÕES “causa e efeito”, “proporcionais”, “temporais”, espaciais”, naturais - pai/filho” “morais - obediência/rompimento da lei (prêmio-castigo)”

SUBSTÂNCIAS “homem”, cavalo”, “ouro”, “água”

Figura 2 – Ideias em John Locke

Elaborado pelo autor, a partir de Locke (1999; 2005)

Inventariados os sentidos de educação, mente, ideias e faculdades, podemos encerrar essa rápida introdução com as palavras do próprio filósofo que bem explicam, ao seu modo, o ato de conhecer: Os passos pelos quais a mente alcança várias verdades

Os sentidos inicialmente tratam com as ideias particulares, preenchendo o gabinete ainda vazio, e a mente se familiariza gradativamente com algumas delas, depositando-as na memória e designando-as por nomes. Mais tarde, a mente, prosseguindo em sua marcha, as vai abstraindo, apreendendo gradualmente o uso dos nomes gerais. Por este meio, a mente vai se enriquecendo com ideias e linguagem, materiais com que exercita sua faculdade discursiva. E o uso da razão torna-se diariamente mais visível, ampliando-se em virtude do emprego desses materiais.16

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Se até agora não conseguiram “fixar” e nem “compreender” os conceitos básicos propostos nesta primeira parte da aula, sugiro que se submetam a uma experiência, em parte, lockeana, assistindo ao vídeo que se segue. Mediante o trabalho da “visão” e da “audição”, acompanhando o “movimento” na lousa virtual, exercitando a “memória” com a apresentação de “uma ideia após a outra”, o “encadeamento” e a “repetição” deliberada, procedida pela professora “imaginada”, é possível que o “entendimento” de vocês seja enriquecido o suficiente para aproveitarem melhor a segunda parte do nosso trabalho. Aproveitem também para familiarizarem-se com esse lindo idioma que é o espanhol.17 

Se, por outro lado, já retiveram significativamente o conteúdo inicial da aula, “pulem” o filme e sigam com a leitura que agora trata, especificamente, dos usos da história na formação de pessoas.

A HISTÓRIA NA MORAL EMPÍRICA DE JOHN LOCKE Vimos que a educação, para Locke, é uma espécie de dona da vontade e das inclinações humanas. Evidentemente, é um tipo de controle com finalidade específica: a formação do homem bom (virtuous), útil (useful) e capaz (able) em suas tarefas de cavalheiro.18 Mas, em que medida o conhecimento histórico pode contribuir para esta tarefa? Locke exerceu a atividade de historiador?

A condição de historiador em Locke é problema de muitos e já se gastou bastante energia para convencer aos pares, sobretudo da filosofia política e da história política, de que ele era ou não era historiador. No Brasil, houve quem o defendesse como historiador, mas do tipo especulativo, que periodizou a experiência humana de forma tripartite: época do “ouro”, da “fantasia” e da “apropriação ampliada.”18

Fora daqui, especialistas divergem, principalmente, acerca do caráter dos seus “tratados de governo”: (1) obra que marca fim do

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século XVII e não início do século XVIII e, ainda, sem caráter historiográfico; 19 (2) obra que não apenas se apropria dos historiadores de sua época (Jean Bodin – 1530/1596) – separa história humana, eclesiástica e natural20 e interpreta os fatos a partir dos seus contextos), mas que apresenta uma alternativa metodológica para a pesquisa histórica (o exame da mudança dos sentidos das palavras no tempo e a comparação transcultural);21 e (3) obra que oscila entre o emprego da “lógica ou julgamento qualitativo” e das “conclusões históricas ou empíricas”.22

De fato, se observarmos as mais significativas tentativas de classificação das ciências produzidas por Locke veremos que a presença da história oscila. Em 1678, ele dividiu as principais áreas do pensamento (heads of things) em quatro, situando a história entre as mesmas. Tinha ela a dupla função de compreender as tradições (traditions) que fundamentam a humanidade (Deus, criação, revelação, profecias e milagres) e as regras ou instituições (rules or institutes) relativas à vida religiosa e civil (política).23  (Não seria, portanto, nenhum anacronismo afirmar que aqui estariam representadas as histórias sagrada e civil, respectivamente).

Em 1690, os saberes controlados são a física (physica), a ética (practica) e a semiótica (semeiotike) ou lógica (logic), respectivamente, responsáveis pelo conhecimento das coisas, das ações e dos sinais.24 Não sendo explicitamente uma ciência, então, em que contribuiria a história? Na descoberta da verdade das coisas (física), na obtenção dos objetivos (ética) ou na codificação e transferência da informação (semiótica)? Talvez seja mais simples perceber a função da história na formação de pessoas, estritamente, nos seus conselhos sobre educação e não em suas tentativas de classificação das ciências. Na obra principal do gênero em questão [PSE], a resposta de Locke é imediata: a história deleita (delights) e ensina (teaches). De-

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leita os mais jovens e ensina os adultos.25 Entretanto, como os fins educacionais de Locke são predominantemente morais, a história serve, antes de qualquer coisa, para conduzir ideias de qualidade, de substância e de relações, como também para exercitar e ampliar as faculdades mentais (não necessariamente nesta ordem) que permitam conhecer e governar os homens.

Essa função já está destacada no seu Estudio  [E], escrito em 1667,26 mas é especificada nas obras subsequentes. Trata-se de um conhecimento que possibilita ao homem, quando bem aproveitado (dependendo também das inclinações naturais de cada um), agir dentro das regras estabelecidas pela sociedade e bem governar a si próprio e a determinado Estado. Assim, seja para a criança e o jovem, seja para o adulto, a história é sempre matéria de poder. Bom exemplo de clareza está na AIALEC, escrita 1703. Neste fragmento, a história se confunde com a política. Para Locke, “os estudos que correspondem de modo mais imediato à vocação do cavalheiro são os que tratam das virtudes e dos vícios, da sociedade civil e da arte do governo, portanto, também da lei e da história.”27 Alguns parágrafos adiante ele especifica: “[a] política é constituída por duas partes distintas uma da outra. A primeira compreende a origem das sociedades e o surgimento e extensão do poder político. A segunda é a arte de governar os homens em sociedade.”28

Essa definição de política tem implicações nas leituras sugeridas uma década após a publicação do PSE. Examinando o texto ligeiramente, vemos a história em ambas as “partes”: no estudo das “origens” do poder e na “arte” de empregar esse poder. Se compararmos com a classificação das ciências de 1678, citada há pouco, veremos que essas funções correspondem a uma das duas subdivisões da Histórica (responsável, como vimos, tanto pelo aprendizado das origens, quanto pelo uso do poder). Mas, não é o que percebemos quando comparamos a lista de obras destinadas a cada uma das áreas da política.

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CONHECIMENTOS HISTÓRICOS PROVEITOSOS E REPROVÁVEIS Quais seriam então essas ideias que deleitam e que ensinam ao principiante e ao cavalheiro adulto? Em primeiro lugar, elas configurariam alguns acontecimentos destacados em seu tempo, ocorridos entre 4.713 a.C a 04 de setembro de 1582, ou seja, datados pelo calendário juliano. 29 Ele não justifica esses acontecimentos, mas deixa indícios de que tais ideias simples e complexas estariam relacionadas à história sagrada (criação do mundo, Olimpíadas, fundação de Roma, nascimento de Cristo e Hégira) e às histórias seculares antiga e nacional. No entanto, reprova as leituras (mesmo as que tratam da experiência da Roma antiga) que retratam, por exemplo, as matanças promovidas por Alexandre ou César. Este tipo de assunto não reflete a grandeza da vida humana.

Na sugestão de leituras, Locke também deixa entrever certa progressão. Para as crianças, as histórias sagradas de José e seus irmãos, de Davi e Golias e de Jonas. Este exemplo de história sagrada familiariza a criança com a ideia e a crença na existência do espírito, também comunica regras morais e estimula o gosto pela leitura30 (capacidade de observação). Para os jovens, a História de Tito Lívio, responsável pela comunicação dos costumes romanos e, principalmente, as mudanças e as causas das mudanças do Estado. “O grande objetivo de histórias como as de Tito Lívio é dar conta das ações dos homens como parte da sociedade e tal é o verdadeiro fundamento da política.”31

Para os adultos, a mistura entre história e política vai ficando nítida quando comparamos as sugestões diacronicamente. Em 1693, são citadas como boas leituras as obras de Justino, Eutropio, Quinto Curcio, numa primeira fase, e de Cicero, Virgílio e Horácio (considerados autores mais difíceis), em um segundo momento.32 Em 1697, cita apenas Tito Lívio como leitura inicial.33 Em 1703, quando sintetiza a instrução do cavalheiro na “moral” e na “política”, a lista é enorme e já

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inclui, como leituras próprias ao estudo, “sobre a origem das sociedades e o surgimento do poder político”, as suas próprias obras junto às de Hooker, Algernon Sydney e de Samuel Pufendorf. Nenhuma delas, entretanto, leva o termo “história” em seus títulos, ao contrário do que acontece com a palavra “política”.34 Sobre a “arte de governar”, ainda na obra de 1703, Locke indica histórias seculares, nacional e geral35 que contêm princípios de direito e de legislação e fornecem uma ideia da Constituição e do governo ingleses.

As obras sugeridas para a leitura da experiência nacional pertencem a dois períodos da história da historiografia inglesa. São as do tipo história política, construídas ao modo grego clássico, mas também as histórias de incipiente teor social.36 O primeiro é a História do reinado de Henrique VII (1609), de Francis Bacon (15211626). Trata-se de um relato, cujos acontecimentos destacados são, predominantemente, os nascimentos, assassinatos, casamentos e coroações de nobres, embaixadas, tratados, batalhas, tréguas, rebeliões e execuções ocorridos entre 1485 e 1509.37 Mas é também uma história que oferece importante categoria para a renovação da historiografia inglesa do final do século XVII, a ideia de “feudalismo inglês” (english feudal tenure).38

Do segundo tipo, Locke aconselha a History of England [1700], do amigo James Tyrrell (1642-1718), que abrange do “governo dos britânicos, antes de Júlio César,” até os tempos do Rei Harold (1066). O livro é iniciado com uma bibliografia comentada, contendo os erros e acertos factuais e metodológicos de obras que trataram (diríamos, hoje, uma história da historiografia) da experiência inglesa até então.39 Talvez, por isso, o tenha indicado. Nessa obra, afirmou Locke, os leitores adultos poderiam escolher qualquer autor que “a curiosidade ou juízo” pudessem conduzi-lo.40 É também compreensível que citasse Tyrrell por causa da sua combatente atuação contra a tese da cadeia de sucessão hereditária,

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ou seja, contrária às supostas ligações entre a família dos monarcas e a família iniciada por Adão, defendida por Robert Filmer.41 Isso explicaria também a indicação do seu nome para compor o rol dos autores de leitura obrigatória sobre a primeira parte da política, ou seja, a que trata da “origem das sociedades e da extensão do poder”.

ENSINAR HISTÓRIA NA PERSPECTIVA DA DISCIPLINA FORMAL Já vimos que o homem lockeano tem o poder infindo de conhecer, desde que lhe sejam apresentadas ideias ou que lhes deem oportunidade de experimentar a reflexão e os sentidos com certa autonomia e prazer. Contudo, não devemos esquecer que o “educar” de Locke, seja em dimensão física, moral ou intelectual, é primordialmente um exercício (um uso sistemático) das faculdades humanas. E a história, como conjunto de ideias simples e complexas sobre o mundo exterior, principalmente, sobre a conduta pública e privada, individual e coletiva dos homens, exige muito da faculdade da memória, sendo, por si só, um grande instrumento para o exercício dessa faculdade.

Ensinar história, portanto, requer o emprego de estratégias de leitura. Em 1677, Locke chegou a afirmar que a leitura “não era outra coisa que o armazenamento de materiais brutos, grande parte dos quais deve[ria] ser deixada de lado como inútil”42. Mas, a arte de ensinar não se resumia à leitura. Era necessário ler, recordar, repetir, recordar e repetir, obedecendo sempre à ordem original dos escritos. O preceptor, enfatiza Locke, deve sempre começar pelas ideias simples e encadeadas, uma de cada vez, e apresentar o significado das palavras. Deve, por fim, convencer-se de que tal significado está retido (fixado) na memória do aluno.

Dominado o conhecimento, podem ser testados frequentemente e até aleatoriamente, mesmo que o ensino não seja, necessariamente, de história. Ao ler um historiador latino, por exemplo, numa hipotética aula de gramática, o preceptor deveria, segundo Locke, questionar o aluno

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sobre o ano da fundação de Roma. A mesma estratégia se adequaria ao estudo de um autor grego: “Em que ano ocorreu a primeira Olimpíada?”

Outra medida válida é a imitação do mestre por parte do aluno. Se este já fixou na mente as ideias necessárias, o preceptor pode estimulá-lo a ensinar (transferir/apresentar/comunicar ideias) a um outro aluno que ainda não deu conta da sua tarefa. Ensinar, segundo Locke, é um excelente exercício para o aprender.

A leitura dirigida e aferida pelo preceptor, contudo, não garante o aprendizado. Locke parece indicar que inclinações naturais em termos de “entendimento” poderiam influir nesse sentido, quando registra a existência de dois tipos de observadores (observação - observations): o homem lento (slow) e o homem rápido em demasia (forward). O primeiro, o lento, retém muitos fatos, mas nada reflete sobre eles. O segundo pouco fixa, sendo capaz de generalizar a partir um único fato. O homem ideal é aquele que retém vários fatos particulares na memória, julga-os com os fatos (também retidos na memória) colhidos na história e faz deduções com certa segurança.43 Em suma, o bom aprendiz da história é aquele que retém narrativas mas as transforma em princípios de conduta, ou seja, que trabalha indutiva e dedutivamente.

OS MATERIAIS PRELIMINARES: GEOGRAFIA E CRONOLOGIA

Se as ideias são hierarquizadas e encadeadas no ato de ensinar e se as faculdades são exercitadas em determinada ordem, o mesmo deve ocorrer entre os demais conhecimentos científicos. Por esse raciocínio, a história não pode ser ensinada sem que ao aluno sejam apresentadas as ideias (e correspondentes exercícios das faculdades) relacionadas aos estudos da geografia e da cronologia. Na verdade, Locke estabelece uma sequência para o conhecimento das artes liberais: primeiro a geografia, que é seguida da aritmética/astronomia, geometria, cronologia e, por fim, a história. Mas, vamos ficar apenas com a geografia e a cronologia, saberes mais familiares ao nosso grupo de estudos.

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A geografia apresenta as ideias de globo (figura), a situação e os limites do mundo, reinos e regiões. Isso se faz empregando a visão e a memória. Para esse exercício, servem os impressos como o Sistema de geografia (1701), de Herman Moll (1624[?]-1763), que descreve a terra, continentes, reinos e estados sob aspectos físicos (relevo, clima e recursos naturais), políticos (divisões e subdivisões) e culturais (religiões e costumes), as coleções de mapas e os livros de viagens. A propósito, o mesmo Locke chegou a trabalhar na produção de um dos livros indicados, a Coleção de viagens editada por Mr. Churchill.44

Já a cronologia oferece os principais acontecimentos (já citados) em sua “ordem natural” (do mais antigo para o mais recente). No último quartel do século XVII, a cronologia já constituía um campo de conhecimento que, inclusive, ganhou notoriedade após sua inclusão no currículo do gentleman de Locke. Comparada à história, a cronologia era linear, resumida, didática e objetiva, anunciava o prefácio de De Doctrina temporis (1626), de Denis Petaus, um dos mais eminentes cultivadores desse saber, no início do século de Locke.45 Eram exatamente essas características que Locke queria ver reconhecidas pelos preceptores e homens feitos. Cronologias, afirmava o filósofo, não são livros de leitura. São obras de consulta. E não devem ser empregadas como exercícios de formação do futuro cronologista. Disputas por micrologias cronológicas não são educativas. Assim, com essas orientações e sob o critério da utilidade, ele oscilava entre sugerir O Teatro histórico e cronológico de Chistopher Helvicus 46 (1581-1617) e o Breviário cronológico de Gyles Strauchius.47

Como vimos, então, a geografia oferece à memória as ideias simples e ou complexas de lugar, distância e espaço. A cronologia, da mesma forma, apresenta à memória as ideias, também simples e/ou complexas de duração, período e tempo. Com estas ideias na memória, o aluno já pode estudar a história. Sem elas, a história não cumpre suas funções morais e políticas. Sem cronologia e geografia, a história apresenta-se ao aluno como um conjunto de fatos confusos, desordenados e desinteressantes.

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CONCLUSÃO Para encerrar esse segundo tempo da aula, resta-nos responder à questão inicial do curso, partindo, hoje, dos escritos educacionais de Locke. O que seria o “pensar historicamente” para o filósofo inglês? Evidentemente, ele não se deu ao trabalho de enfrentar esta questão. Não era um didata da história. Entretanto, esse fato não nos exime da responsabilidade de dar respostas já que o problema nos interessa profundamente. É uma questão do início do século XXI apresentada por historiadores (nós, aqui nesta sala) que percebem, em seu cotidiano, práticas herdadas do pensamento de Locke e de outros prescritores do ensino de história nos últimos 300 anos.

Contudo, para respondê-la, devemos tomar posição e fornecer soluções hipotéticas. Se aceitarmos a tese de J. A. Pocock, por exemplo, de que Locke não ocupou-se da matéria, isto é, de que os seus “tratados” sobre o governo, por exemplo, não são peças de história, poderemos concluir que o “pensar historicamente”, para Locke, é simplesmente pensar, ou seja, é respeitar e empregar o mecanismo natural das ideias que nos são apresentadas, sensível e mentalmente, na condição de uma sequência.

Dizendo de outro modo, refletir (observar o próprio movimento das ideias na mente) já é reconhecer que há duração entre partes desta sucessão ou entre o aparecimento de duas ideias. Agir (exercitar a faculdade da vontade), por conseguinte, é demonstrar que há uma distância entre o início e o fim dos vários movimentos das faculdades mentais e corporais.

Em suma, pensar e agir são o reconhecimento de que nada se pode criar ou deslocar, no movimento interior ou exterior dos corpos humanos, individual ou coletivamente, ontem e hoje, sem que se lance mão das ideias fixadas na mente em um tempo remoto ou breve, mas, assim mesmo, anterior (passado). Isso nos levaria então a uma segun-

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da hipotética conclusão de que o “pensar historicamente”, em Locke, não se efetiva a partir das estratégias do historiador (das operações processuais do ofício, em vigor no século XVII), posto que a história, ao menos em alguns dos seus escritos educacionais, já estaria dada, bastando ao preceptor a escolha do que fosse condizente, moral e cognitivamente, ao aluno em situação didática. Em outras palavras, o historiador do final do século XVII, contemporâneo de Locke, não pautaria os usos da história na formação de pessoas (ou, pelo menos, Locke não consideraria a vontade desse historiador ideal-típico).

Por outro lado, se concordarmos com Paul Ricoeur que o filósofo inglês valorizou a faculdade da memória como elemento privilegiado da “identidade pessoal”, se seguirmos o argumento de Arthur Assis de que a exemplaridade histórica do século XVII, “concebida em termos essencialmente políticos”, não tinha o mesmo sentido conservado pelas historiografias greco-romana e medieval48 e (ainda na esteira do raciocínio de Assis) se abonarmos a tese de Mark Glat de que Locke valorizou o estudo do passado como elemento empírico de formação de verdades, princípios e regras (de conduta e de governo), não apenas desafiando certo providencialismo (ainda que empregasse alguns princípios éticos da antiguidade), mas enxergando no exame do passado também uma brecha para a mudança das regras (uma lição de que o presente poderia ser modificado, diríamos hoje, a partir dos próprios escritos do presente - fato evidenciado com as escolhas de Tyrrell e de Pufendorf, ambos anti-absolutistas), enfim, poderemos afirmar que a nossa conclusão pode ser modificada.

E muda, principalmente, se considerarmos como plausível a sua explicação sobre o modo pelo qual a mente opera – recebendo, selecionando, armazenando ideias e, depois, combinando, comparando e produzindo princípios que, por sua vez, são novamente armazenados para orientar a vontade em situação da vida prática. Reunido todos esses considerandos, poderemos afirmar que o pensar historicamente poderia (nessa terceira hipótese) significar não somente a aplicação de operações processuais historiadoras, mas também a própria sistema-

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tização de operações historiadoras para a história. Dizendo de outro modo, os conselhos de Locke sobre o ensinar história constituiriam, concomitantemente, uma forma particular de observação histórica, tanto para a formação e aperfeiçoamento do gentleman (o aprendizado) quanto para o trabalho dos historiadores (a pesquisa e a escrita).

NOTAS

1  DUNN, 1982, p. 5. (Primeira edição publicada em 1969). 2  Três desses textos foram consultados a partir da edição espanhola (LOCKE, 1986): “Del estúdio” (1677), “Borrador de uma carta de Locke a la Condesa de Peterborough” (1697) e “Algunas ideas acerca de la lectura y el estúdio para um Caballero” (1703). 3  PSE, 7 mar. 1692. (Edição espanhola, de 1988). Na ausência desse tipo de especificação, as demais citações são extraídas das edições inglesas arroladas nas referências. 4  HALIMI, 2005, p. 101. 5  PSE, § 33. 6  Não vamos nos deter sobre a já conhecida sentença de Locke, contrária à assertiva cartesiana e de alguns absolutistas do seu tempo de que existem “ideias inatas”. Basta lembrar que os princípios “especulativos” e os “práticos” (ou morais, como fé ou justiça) não são adquiridos. Do contrário, não haveria discordância entre os homens acerca de certas ideias ditas universais e as crianças as compreenderiam ao nascer (EACH, I, Cap. I-II). O poder de conhecer é inato, mas o conhecimento é adquirido (EACH, I, Cap. I, §2). 7 EAEH, I, Cap. II, § 1; II, Cap. I, § 26; PSE, § 176, 216 (1912). 8 PSE, § 176, 216. 9 Nos Estados Unidos, a máxima anterior e a solução indicadora – a disciplina formal – predominaram entre os acadêmicos, professores e administradores escolares até a penúltima década do século XIX. No Kindergarden, em 1890, foi substituída pelas ideias de aprendizagem de Fröebel (HEWES, 1988), mas houve quem a defendesse, em tese de doutorado, ainda em 1910, como a base de toda a renovação educacional da modernidade e também da contemporânea experiência estadunidense: iniciar o conhecimento por objetos concretos, ampliação do currículo para além da primazia da matemática e a liberdade para empregar o amplo estoque de conhecimentos retidos na memória; liberdade de pensamento? (HODGE, 1911, p. 28-30). 10 Para Patrik Menneteau, isso não diminui a importância do filósofo nos progressos alcançados em vários domínios do conhecimento. A argumentação de Locke, entretanto, é vitoriosa mediante o emprego alternado de vocabulários filosóficos e metafóricos, questões retóricas, repetições dogmáticas que impedem-no de fornecer as provas experimentais (MENNETEAU, 2008, p. 65). 11 Para Locke, todo o conhecimento humano é percebido pela mente, mediante a impressão (impression) causada pelo contato dos sentidos externos (visão, audição, tato, paladar e olfato) com as diferentes qualidades dos objetos (espessura, temperatura, luminosidade etc.). Além disso, todo conhecimento humano é produzido por meio da  observação da mente sobre sua própria atividade (reflexão). Agrupando tais operações, surge a renomada frase de que “todas as ideias derivam da sensação ou da reflexão” (PSE, I, Cap. 1, § 2). 12 EAEH, II, Cap. III, § 1. 13 EAEH, II, Cap. I, § 1-2.

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14 EAEH, II, Cap. II, § 2. 15 EAEH, I, Cap. I, § 15. 16 PSE, Dedicatória. 17 John Locke - Filosofía – Educatina. 12 out. 2011. Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=GjqmmJ2mKns#t=198. Capturado em: 30 out. 2014. 18 JORGE FILHO, 1992. 19 POCOCK, 1983, p. 157. 20 BARROS, 2012, 178. Esta é uma das características de Bodin, partilhada também por Locke. 21 GLAT, 1981, p. 5, 18-9. 22 TARLTON, 2004. p. 251, 268. 23 E, § 1-2. As quatro áreas são: Philosophica (que trata do exercício do entendimento), History (exercício da memória – conhecimento dos fundamentos da humanidade e das regras sociais), Immitanda (exercício do corpo da vontade – conhecimento das práticas de boa conduta pública ou privada bem como de cuidados com a saúde) e Acquirenda (conhecimento das causas e consequências dos fenômenos físicos e naturais – história natural). 24 EAEH, IV, Cap. XXI. 25 PSE, § 184. 26 “Nela história se verá um retrato do mundo e da natureza da humanidade, e aprenderá, portanto, a pensar os homens como eles realmente são .... Nela também se podem encontrar grandes e úteis ensinamentos de prudência e ser advertido contra as armadilhas e travessuras do mundo” E- 1763. (1986, p. 381). 27 AIALEC (1986, p. 355) 28 AIALEC (1986, p. 357) 29 CCP (1986, p. 354). 30 PAE, § 159. 31 ECLCP (1986, p. 353). 32 PAE, § 184. 33 CCP (1986, p. 352). 34 Política eclesiástica – Mr. Hooker; Sobre o governo – Algernon Sydney; os dois tratados sobre o governo civil – John Locke; De officio hominis et civis e De jure naturali et gentium – Puffendorf. AIALEC (1986, p. 357-358). 35 Sobre a história geral, Locke indica: History of the World – Walter Raleigh; An institution of general history – William Howel; Relections nyemales, De rationi et methodo legendi – Degory Wheare. AIALEC (1986, p. 357-358). 36 Para J. G. A. Pocok, os historiadores ingleses só deixam de escrever, predominantemente, ao modo de Tucídides e Tácito a partir das obras de James Harrington – Answer to the Nineteen Propositions (1642) e The commonwalth of Oceana (1656) – que passam a ganhar conotação social (em oposição ao político-individual). POCOK, 1983, p. 153. 37 BACON, 1902 (Primeira edição em 1609). 38 POCOK, 1983, p. 151. 39 TYRRELL, 1700 40 LOCKE, Algunas ideas acerca de la lectura y el estúdio para um caballero - 1703 (1986, p. 355). 41 POCOK, 1983, p. 156; 2011, p. 1. 42 E, § 8 (1986, p. 391). 43 SEE § 13. 44 Informações do tradutor. AIALEC (1986, p. 359, n. 9). 45 BARRET, 2012. Cap. 1.

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46 AIALEC – 1703 (1986, p. 360). 47 PAE – 1693, § 13. 48 ASSIS, 2011, p. 113-4, 29-30.

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BACON, Francis. History of the reign of king Henry VII. London: Cambridge University Press, 1902. (Primeira edição publicada em 1609).

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BARROS, Alberto Ribeiro G. de. Jean Bodin (1530-1596). In: PARADA, Maurício (org.). Os historiadores clássicos da história: de Heródoto a Humboldt. Rio de Janeiro: Editora da PUC Rio; Petrópolis: Vozes, 2012. p. 171-191.

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GLAT, Mark. John Loke’s historical sense. The Review of Politics, v. 43, n. 1, p. 3-21, jan. 1981. HALIMI, Suzy. Éducation et politique: Some thougts concerning education de John Locke (1693). Revue de la Société d’Études Anglo-Américaines des XVIIe et XVIIIe siècles. n. 61, p. 93-112, 2005.

HELVICUS, Cristopher.  The historical and chronological theatre. London: Oxford, 1687. HEWES, Dorothy W.  Organic education in public schols of late ninetenth century America. Presented at the 10th Sesion of the International Standing Conference for the History of Education, University of Joenst. Joensu, Finland, July 27, 1988. Disponível em: http://files.eric.ed.gov/fulltext/ ED299048.pdf. Consultado em: 03 set. 2014.

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POCOCK, J. G. A. English historical thought in the age of Harrington and Locke. Topoi, n. 2, p. 149-162, 1983. POCOCK, J. G. A. Historiography as a form of political thought.  History of European Ideas, n. 37, p. 1-6, 2011.

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PENSAR HISTORICAMENTE EM JOHANN FRIEDRICH HERBART?

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ohan Friedrich Herbart (1777-1841)1, filósofo alemão, dirigiu por quarenta anos o Ginásio de Oldenburg, sua terra natal, e foi professor das universidades de Göttingen (1802-1809/1833-1841), sucedendo ao pedagogo Karl Kosenkranz, e de Könisberg (18091833), a convite de Wilhelm von Humbold, para substituir Wilhelm Traugott Krug na cadeira de Immanuel Kant. Herbart também atuou como preceptor (1777-1779) dos filhos de Herr von Steiger, então governador de Interlaken, na Suíça.2

Dessa experiência de administrador, de preceptor e de conferencista sobre pedagogia nas universidades, produziu trabalhos sobre metafísica, estética, matemática, psicologia e pedagogia, entre outras áreas, dos quais são aqui analisados apenas os que tratam de formação de pessoas em idade escolar: Representação estética do mundo como principal fim da educação [REMFPE] (1804), Pedagogia geral deduzida dos fins da educação [PGDFE] (1806), Manual de psicologia [MP] (1816; 1834), Esboço de Lições de Pedagogia [ELP] (1835; 1841)3 – uma versão sintética e bem mais clara da sua Pedagogia Geral – e as Cartas [C] (1797-1800). Estas missivas foram endereçadas à Lucie-Marguerite Schnette, sua mãe, e ao seu contratante Steiger, noticiando os avanços na educação dos discípulos (filhos de Steiger): Louis, Charles e Rodolphe.4

HERBART E LOCKE: ENCONTROS E DESSEMELHANÇAS

Vamos iniciar a aula de hoje conhecendo o pouco da vida acadêmica de Herbart mediante a narrativa fílmica5 e estabelecer algumas diferenças e similitudes entre as assertivas de Herbart e de John Lo-

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cke no que diz respeito aos sentidos de educação. Em primeiro lugar, Herbart não pensa a instrução subordinada à educação6: toda a educação é instrutiva e é educativa toda a instrução. Vimos que, para Locke, a instrução estava submetida à educação, ambas, sobretudo, morais.

Este é o mesmo pensamento de Herbart – a educação forma o homem de virtude7 (Tugent)8. Sua pedagogia funda-se em elementos referentes à “filosofia prática” (praktische Philosophie), antes mesmo dos fundamentos psicológicos (psychologischen).

Para o alemão, portanto, educar/instruir é formar pessoas dotadas de “liberdade interior” (inner Freiheit), capazes de perceber o que é o bem e o que é o mal e de agirem conforme o bem. Em algumas passagens, a “virtude” é reduzida à “boa vontade” ou “benevolência” (Wohlwollens).9 Observem a oportunidade da expressão “boa vontade”. Ela agrega os sentimentos de bem e de vontade e ambos devem ser respectivamente, apresentado e controlado pelo professor. É importante registrar que não há nada de transcendental nessa liberdade anterior. Ela deve ser construída. Nas palavras de Herbart, é a “plasticidade do aluno (Bildsamkeit) o postulado fundamental da pedagogia”.10

No que diz respeito às divisões da educação, são análogas as teses de Herbart e de Locke. O inglês as concebe como física, intelectual e moral, enquanto o alemão as nomeia por “governo”, “instrução” e “moral”.

Especificamente em relação aos modos de conduzir a instrução e ao público-alvo, entretanto, os dois filósofos se distanciam. É certo que a moralidade é o fim principal em ambos. Contudo, em Locke, a tarefa da “instrução” é formar o cavalheiro, enquanto a ideia de “dirigir interesses múltiplos”, professada por Herbart, amplia a noção de educando, ou seja, o aluno germânico passa a ser um sujeito, potencialmente, pertencente a qualquer segmento social.

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Isso fica mais claro quando Herbart refina as funções da instrução. Avançando da finalidade mais ampla (promover a “boa vontade”), a atividade do professor é definida, principalmente, como o ato objetivo/ imediato/prático de “provocar interesses múltiplos” nos alunos11, de provocar12 as “energias intelectuais”13 na direção de variadas ocupações sociais já que não se sabe aonde o futuro discípulo atuará.14 Além disso, o estímulo de “múltiplos interesses” ou da “cultura múltipla”15 combate o egoísmo e amplia (dizemos hoje) a alteridade, tornando-o, verdadeiramente, humano. Assim, cabe à instrução, ao professor e, consequentemente, às escolas primárias e ginasiais a apresentação de diferentes (mas reunidos e combinados) conhecimentos e sentimentos que provoquem variados interesses a fim de formarem o homem, dizemos hoje, em sua integralidade. Como, então, provocar os “interesses múltiplos” e, mais importante, quais seriam esses interesses?

OS PRINCIPAIS INTERESSES E OS MODOS DE APRESENTÁLOS AOS ALUNOS

A ideia de interesse está, obviamente, relacionada à noção de natureza humana professada por Herbart. Aqui ele se distancia tanto de Rousseau – o homem ideal é natureza – quanto de Locke – o homem ideal é cultura. Para o alemão, o homem ideal constitui-se sob ambas as dimensões, ou seja, a natureza dispõe os materiais e o homem os recolhe. Em outros termos, o homem é a síntese do conhecimento das coisas e da simpatia por seus semelhantes.16 Sendo, então, a “boa vontade” o fim da instrução, cabe ao professor promover seus alunos em duas direções intercomplementares: a do “interesse empírico” (empirische Interesse) e do “interesse simpático” (sympathetische Interesse). Agindo desta maneira, ele proporcionará aos alunos a aquisição de um “circulo de experiências” (seher Erleichterung) – elemento que, de fato, preenche a mente (der Substanz des Geistes).17 Esse duo se enriquece semanticamente quando ele dispõe os dois tipos de interesse em tríades e requisita a apresentação de

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ideias de dois grandes grupos de ciências, como podemos acompanhar no Quadro 1. Quadro 1. Fontes, tipos, procedimentos e ramos de ciência relativos aos interesses humanos Fontes Experiências Sentimentos

Interesse Empírico Especulativo Social Simpático Estético Religioso

Método de promoção

Ramo da ciência

Meditação progressiva acerca das coisas

Ciências naturais

Meditação progressiva e contemplação tranquila das coisas e dos acontecimentos

Ciências naturais e ciências históricas

Meditação progressiva sobre os acontecimentos humanos

Ciências históricas

Produzido pelo autor, a partir de Herbart: ELEP § 36, 83. Interesses empíricos: empírico (empirische), especulativo (speculative) e social ou politico (gesellschaftliche); interesses dos sentimentos: simpatico (sympathetische), estético (ästhetische) e religioso (religiöse).

Por que Herbart defende o desenvolvimento desse número de interesses? Como pode um homem adquirir essas múltiplas características?

Penso que fica mais fácil imaginarmos (com necessário anacronismo) que ele atuou ideal-tipicamente. O filósofo afirma que não é necessário desenvolvê-los por igual em todos os alunos. Mas, com certeza, todos os tipos de interesse devem estar presentes (e estão, segundo as suas observações no Ginásio), em certo número de alunos.18  Essa distribuição garante, então, a presença dos elementos necessários à formação de todas as pessoas (ou à humanização dos seres).

Contudo, seus leitores, sobretudo estadunidenses, na passagem do século XIX para o século XX, criticaram a exagerada simetria dessa classificação. Meditação progressiva ou contemplação não são práticas relativas às ciências históricas ou às ciências naturais. Trata-se mais de classificação “por conveniência” que por exatidão “científica”.19

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Abandonando essa digressão, importa reter que Herbart, como explicitado no Quadro 1, não somente apresenta os interesses a serem promovidos na escola, mas também as estratégias gerais para desenvolvê-los bem como as ciências nas quais se deve buscar os materiais – as ideias –, digamos, interessantes: a “meditação” e a “contemplação” e as ciências históricas e naturais. Esta distribuição das áreas do saber, como podemos concluir, constitui a base do currículo herbartiano.

No século da educação estatal, fundada nas humanidades (século XIX), portanto, assistimos à defesa da conciliação entre os estudos “clássicos” – que remetem ao ideal educacional grego – e os novos saberes científicos – as ciências da natureza. Na última década do século XIX e primeira do século XX, esse equilíbrio se romperá, em vários países, em benefício de um ou de outro tipo. Na França e no Brasil, por exemplo, respectivamente, com Émile Durkheim e Benjamin Constant, faz-se opção, na escola secundária, pela ampliação da carga horária (e até a instituição) das ciências físico-naturais no ensino secundário. Em Herbart, ambos os troncos do saber contribuem para a formação de pessoas. Tal currículo é válido para o primário e o ginásio. Ambos os níveis de ensino devem conduzir, então, ao desenvolvimento de “interesses múltiplos” com certa condescendência em relação à primazia de determinados interesses, no ginásio, já que se trata de fase preparatória ao exercício das futuras carreiras, na Alemanha.20

O MECANISMO DA MENTE

Essa ênfase na formação de interesses múltiplos, não obstante, tem origem na sua “representação estética do mundo”21 e está apoiada em uma singular concepção de mente. Herbart não abona as ideias de “tábula rasa”. Também não legitima a existência de “ta-

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lentos naturais inatos” ou de uma mente que produz a si mesma.22 A mente herbartiana é constituída a partir de leis, representadas por equações, a exemplo da seguinte: ideias semelhantes com igualdade de forças geram desarmonia. Ideias com forças desiguais geram estabilidade, ou seja, relação harmoniosa.23

Para o que nos interessa, nessa aula, é suficiente compreender que mente, para Herbart, funciona como um conjunto de ideias em disputa, isto é, ideias que atuam na condição de “forças” (kräfte), umas contra as outras, em busca de espaço na consciência.24 Nestes confrontos, algumas desaparecem outras são modificadas. Quando percebidas em séries e apreendidas numa determinada ordem, dão origem, por exemplo, ao que se chama de memória.

O mesmo entendimento explica os estados mentais (ou faculdades, no tradicional glossário do seu tempo) de sentimento e de desejo. Estes não são mais que ideias em movimento.25 O testemunho, ele extrai da própria experiência cotidiana: “um homem sente pouco as alegrias e tristezas da sua juventude; mas o que o menino aprende corretamente o adulto ainda retém”.26 Em outras palavras, para Herbart, está provado que algumas ideias desaparecem e outras permanecem ao longo da vida de uma pessoa.27

OS PASSOS DO MÉTODO

Vimos as peculiaridades do mecanismo mental herbartiano. Vimos também, um pouco antes, a simetria entre os interesses e os troncos científicos. Agora é tempo de detalhar essa relação e as estratégias que o filósofo indica para o trabalho docente. O Quadro 2 apresenta, de forma pormenorizada, a relação entre interesses e ciências ou saberes a serem ensinados. Todos devem ser apresentados/exercitados. No entanto, não se pode evitar, sobretudo no ginásio, que um aluno desenvolva ou tenha maior predileção por determinado interesse. Quando isso ocorre, o professor deve agir

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no sentido de fazer o aluno entender a necessidade dos demais interesses. Por outro lado, quando se percebe deliberadamente que um interesse se desenvolve espontaneamente mais que os outros, tem-se um flagrante caso de aluno potencialmente especialista. A ênfase no interesse empírico ligado às singularidades fisiológicas dos animais irracionais pode gerar, por exemplo, o zoólogo. O mesmo se repete na situação em que ganha relevo o interesse pelos fatos históricos. Aí, surge o historiador.

Herbart, já vimos, faz referências a “métodos”, no sentido de procedimentos, como a meditação e a contemplação no trato do aluno com os objetos de conhecimento, as ideias ou os materiais provindos das matemáticas ou da história, por exemplo. Contudo, despende muito mais espaço, em sua Pedagogia geral, para a formatação de uma metodologia holística. Trata-se aqui dos muito aplicados, embora pouco reconhecidos, “quatro passos formais” que espelham as operações da mente. Quadro 2. Interesses privilegiados e potenciais profissionais correspondentes

Interesse Empírico Especulativo Simpático Social Estético Religioso

Saberes/materiais Botânico, mineralogista, zoólogo, historiador Matemático (geômetra), metafísico, físico Político Pintor, poeta, músico Dogmático/religioso

Produzido pelo autor, a partir de Herbart: ELEP § 36, 83.

Além disso, tal método é fruto de críticas aos professores de seu tempo: uns centrados na exposição minuciosa de partes das coisas (análise), outros liberando os alunos a falarem, outros se aferrando às ideias centrais do texto ou da área, cobrando-lhes a repetição ordenada e rigorosa (síntese), outros, por fim, estimulando os alunos

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a pensarem por si próprios (meditação).28  Herbart alerta que um método não exclui o outro. E é o que realmente faz quando agrupa alguns desses diferentes modos de lecionar em “quatro passos formais”, vinculados às operações clássicas do conhecer (clareza, associação, sistema e método). Quadro 3. Os quatro passos formais do ensino herbartiano Operações

Passos formais

Análise

Clareza

Síntese

Associação Sistema Método

Procedimentos detalhados para o aluno Expor termos Repetir termos Associar ideias Modificar ideias Repetir ideias à sua maneira Apropriar-se de ideias à sua maneira Distinguir ideias principais Expor ideias principais ordenadamente Exercitar por si próprio Submeter-se à correção do professor

Produzido pelo autor, a partir de Herbart ELP § 67-9. Os quatro passos formais: clareza (Klarheit), associação (Association), sistema (System) e método (Methode).

Pelo Quadro 3, podemos perceber, então, que o ato de conhecer se constitui numa sequência das antigas macroações mentais, a análise e síntese, algo nada original em relação aos epistemólogos que o precederam. Todavia, seu método amplia tais operações e as detalha a partir dos procedimentos que ele julga serem obedecidos pela mente.  Assim, o ato de ensinar a conhecer – ou de promover interesses múltiplos, apresentando ideias provindas de múltiplas áreas do conhecimento – dá origem a uma nova didática que deve ser aplicada a todas as disciplinas. Como tal esquema pode ser aplicado à história? Qual o lugar da história na promoção dos interesses múltiplos do homem herbartiano?

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O ENSINO DA HISTORIA29

Sobre os modos de ensinar, suas bases estão estabelecidas no Quadro n. 3. Porém, nas lições produzidas em 1834, Herbart oferece farto material de orientação para o professor e o formador do professor de história. Elas contemplam os modos de expor e a observação do mecanismo da mente.

Sobre a exposição, defende a narração em ordem cronológica como principal estratégia. Os procedimentos devem envolver a formação de séries de nomes e ou acontecimentos e a apresentação dessas séries horizontal e verticalmente em sentido verso-reverso, ou seja, o professor deve ser capaz de expor diacronicamente (do atual ao remoto e do remoto ao atual) e sincronicamente (de outros países, França, Inglaterra, Espanha – para a própria terra – a Alemanha e vice versa).30

O domínio do professor deve se estender também aos pontos de parada, aos inícios e aos fins da lição de história. Em outras palavras, deve manter-se no fio da narrativa, embora conhecendo os momentos destacados lógica (da narrativa) e psicologicamente (potencialidades cognitivas discentes). Isso possibilita, efetivamente, a concentração e a reflexão por parte do aluno. Deve estimular o interesse (no sentido que usamos hoje) do aluno pela lição, saindo e voltando ao fio da narrativa sempre que necessário. Isso se faz intercalando descrições, quadros, apresentando mapas, retratos, reproduções de monumentos e de ruínas, entre outros instrumentos retóricos e materiais. Esses recursos, inclusive, facilitam a retenção das séries de ideias na memória já que mobilizam diretamente a sensibilidade do aluno. Herbart, por fim, também oferece lições de progressão. A linguagem, por exemplo, deve ser simples e clara para o primário e um pouco mais próxima das abstrações dos historiadores para o ginásio. A mobilização dos estados mentais é outro exemplo. Em algu-

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mas passagens, deixa clara a necessidade de obedecer a sequência progressiva da “atenção”, “memorização” e “reflexão” dos eventos da antiguidade, para o primário, aos eventos contemporâneos (história moderna) para o ginásio, como também da apresentação de ideias gerais, seguidas por ideias particulares, como no exemplo abaixo. 

No primeiro [grau do ensino de geografia], pode-se ensinar as noções mais gerais. Dir-se-á, por exemplo, simplesmente, que a Alemanha, em uma época não muito distante, era muito mais dividida que agora, que houve tempos onde as vilas e os senhores vizinhos às vezes guerreavam e que os cavalheiros habitavam sobre lugares altos, dificilmente acessíveis. Dir-se-á também que, para melhor estabelecer a ordem e a vigilância, a Alemanha foi dividida em dez círculos, etc. O segundo grau do  ensino de geografia  compreenderá mais fatos, ainda que poucos deles se refiram à história antiga. Há poucos fatos modernos que podem facilmente ser reunidos à geografia, salvo os casos onde ainda resistem os monumentos, tais como as ruínas na Itália, a língua mista da Inglaterra, a conformação política particular da Suíça com seu solo tão dividido, fácil de observar sob o mapa, e a diversidade de suas línguas. Se quiser, em outras lições, expor curtas biografias como primeira preparação à história da idade média e à história moderna – como tenho muitas vezes recomendado (ainda que não se possa dar mais que fragmentos) –, conseguir-se-á sucesso, ao menos mais rapidamente, se o ensino de geografia  for complementado por noções históricas das quais temos falado. Contudo, é necessário ter um quadro cronológico fixado na parede, com o qual poderá mostrar tal ou tal parte a cada vez que a ocasião exigir, a fim de permitir ao aluno reter, pelo menos, alguns pontos fixos do passado.31

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HISTORICIDADE E TEMPO Tudo deve ser ensinado sob cronologia progressiva, vimos. Também fizemos questão de encerrar o último tópico com uma citação sobre o ensino de geografia que – pensada sob os critérios atuais, seria uma geografia histórica ou uma história de longa duração. Todavia, esse anacronismo não é necessário porque, para Herbart, a história (geral ou universal) era a “preceptora da humanidade”.32 E se era finalidade da educação humanizar os alunos, todo material apresentado, conhecimentos ou sentimentos, deveria respeitar a ordem natural das coisas (do remoto ao recente) e até (como na citação direta imediatamente anterior) a sua historicidade. Assim, ganha a história o centro do currículo e é por isso que a referida citação está inclusa (curiosamente, à primeira vista) nos parágrafos referentes ao ensino de história.

Sobre o tempo, é necessário entendê-lo como fundado na percepção herbartiana de memória (ao contrário da forma a priori de Kant, com o qual diverge radicalmente). Descrevamos: as ideias são percebidas/intuídas/vistas mediante os sentidos e em forma de séries. É, por exemplo, focando determinado objeto e deslocando a retina em rapidíssimos intervalos que a noção de espaço é formada. O espaço nasce, portanto, de uma sequência de micro-observações realizadas em uma única direção.

Com o tempo ocorre o mesmo.33 Entretanto, entra em cena outro movimento da mente: a reprodução ou memória, que também realiza-se por uma sequência de ideias. Tempo, então, para Herbart, é uma ideia formada a partir da simultaneidade da percepção e da recordação de uma mesma série de ideias. Em outras palavras, temos tempo quando os olhos percebem determinada série de vocábulos, dos quais, pelo menos um (também pertencente a uma série já estabelecida na consciência), chama de volta uma antiga série, ou seja, quando essas séries são reproduzidas (rememoradas) simul-

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taneamente. Tempo, portanto, é a coincidência entre percepção de séries de ideias e a rememoração de série de ideias análogas.

Esse raciocínio e o mecanismo da mente (apresentado em tópico anterior) explicam a razão de as crianças serem incapazes de reter longas extensões de tempo. As crianças são susceptíveis à renovação de série de ideias, predominantemente, provindas dos sentidos. Séries de ideias entram e saem com frequência da consciência. É somente com o passar dos anos – com o amadurecimento da pessoa (quando várias séries de ideias já estão, há muito, depositadas na consciência) – que ela pode (mediante as simultâneas percepção e recordação) ampliar a sua capacidade de compreender longas séries de tempo ou períodos.34

A HISTÓRIA INTERESSANTE

Sendo a história (geral, é sempre bom repetir) a preceptora da humanidade e a educação a aplicação dos seus pressupostos sobre a filosofia da prática, a história que promove interesses está, sobretudo, nos antigos. Evidentemente, ele reconhece o valor das histórias medieval e moderna e até lhes formata um programa. Todavia, ao longo das obras aqui referidas, as narrativas que mais contribuem para a formação moral são as produzidas pelos gregos.

Nas  Cartas, principalmente, ele relaciona as obras de Xenofonte  (que tratam de experiências de heroísmo e liderança) e de Plutarco e cita autores como Tito Lívio Cícero e Tácito.36 Porém, são a poesia de Homero, inicialmente (que delineia as características do homem para os pequenos)37 e as histórias de Heródoto (que fortalecem a percepção intuitiva e o sentimento38  dos mais adiantados) as suas principais sugestões de leitura. Em geral, esses autores, mediante seus textos, estimulam a compreensão, o sentimento e a imaginação,39e a reflexão sobre decisões políticas, além de fornecerem os ideais formadores como a coragem e a obediência.40 35

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No  Esboço, quando discrimina as duas tríades de interesses, a história também desponta. Ela contribui para a promoção do interesse pelos homens da elite, pela religião, conhecimento e interesse pelos bens e males sociais e (em menor intensidade que a matemática) auxilia o interesse especulativo.41

CONCLUSÃO

O que seria, então, pensar historicamente em Herbart?

Considerados os fins da educação como as bases éticas e psicológicas da instrução, a prevalência da promoção de interesses que viabilizam a formação de pessoas, mediados esses interesses pela apresentação e ampliação de um círculo de ideias provindas tanto das ciências históricas quanto das ciências naturais, o pensar historicamente herbartiano nada deve de específico ao ofício do historiador do seu tempo, seja a ação do antiquariado, a seleção anedótica dos traços humanos, seja a ordenação lógica e esteticamente sofisticada dos acontecimentos promovida pelo gênero narrativo romântico.

Com muita imaginação, podemos, no máximo, afirmar que o pensar historicamente de Herbart seria debitário, sobretudo, do seu raciocínio matemático aplicado à psicologia e, concomitantemente, da sua ideia estética acerca do mundo. Isso significa, anacronicamente, é claro (e necessário), que pensar historicamente, nos textos do filósofo alemão aqui analisado, é perceber séries de ideias (mediante a percepção de ideias provindas dos textos escritos, restos de artefatos do passado ou da observação do mundo social) e rememorar ideias simultaneamente; mas, perceber e rememorar ideias que contribuíssem para a formação do homem virtuoso, ou seja, que possibilitassem a retenção e uso posterior de conhecimentos e sentimentos dominadores da vontade ou, numa acepção do nosso tempo, orientadores da vida prática, fosse como simples trabalhador do campo ou da cidade, líder religioso, estadista ou filósofo.

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Contudo, se voltarmos nossas atenções para o valor da historicidade e a centralidade da cronologia da história universal na organização de todos os saberes reunidos pelo currículo herbartiano, poderemos imaginar que o pensar historicamente não necessitaria, evidentemente, das atividades historiadoras já que Herbart trabalhava com uma ideia de progressão inconteste. As etapas do desenvolvimento humano já estavam, portanto, dadas e uma obrigatória correlação era estabelecida entre a formação do indivíduo e a trajetória da humanidade. E se o currículo (todos os saberes) deveria seguir tal orientação, alfabetizar historicamente era simplesmente ensinar. Em outras palavras, se qualquer conhecimento ou sentimento deveria ser apresentado segundo as etapas do desenvolvimento da humanidade, todas as matérias viabilizariam essa outra espécie de “pensar historicamente”: a da filosofia especulativa da história.

NOTAS 1  2  3  4 

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Filho de Thomas-Gérard Herbart e Lucie-Marguerite Schnette. Informações extraídas de PINOCHE (1994). Respectivamente, datas da primeira e da segunda edição. Essas informações e outros detalhes sobre a vida de Herbart podem ser buscadas nos trabalhos de MAUXION (1901), PINLOCHE (1894) e WILLIAMS (1911). Juan Federico Herbart. 4:13 min. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=_sQY34SBOas. Capturado em 30 out. 2014. Para Herbart, a pedagogia é, ao mesmo tempo, “ciência” (“dedução de doutrinas extraídas de seus princípios” – especulação ou meditação filosófica) e “arte” (“ação contínua, conforme os resultados da ciência” – prática) (PGDFE, I, Cap. I, § 1-2). A filosofia lhe dá os fins – “a educabilidade da criança” ou a educabilidade da vontade com vistas à moralidade (PGDFE, I, Cap. II, § 1-2), entendida como a posse das ideias de “liberdade interior”, “perfeição”, “bondade”, “direito” e “equidade” (PGDFE, I, Cap. III, § 11) e a prática, orientada filosoficamente, lhe fornece o “tato pedagógico”, ou seja, o discernimento sobre a decisão de abandonar um aluno lento ou imprimir maior rapidez (PGDFE, I, Cap. I, § 9). As referências à Pedagogia Geral PGDFE são extraídas da versão francesa, traduzida por A. Pinloche. (HERBART, 1894). REMPFE, § 3; ELP, § 8; 10-13. O vocabulário correspondente em língua alemã foi extraído da segunda edição das obras de Herbart, anotadas por Otto Wilmann, que é referência para traduções em inglês aqui empregadas (HERBART, 1880). Herbart precisa a vontade: não é desejo ou capricho. É a vontade de tomar uma resolução – o querer (PGDFE, I, Cap. IV, § 30-1).

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10  ELP, § 1. 11  PGDFE, III, Cap. 3, § 1. 12  Aqui aparece mais uma diferença entre os dois. Em Herbart, o mestre tem papel preponderante, o que limita a possibilidade de o aluno instruir-se por si próprio, como deixa entrever Locke em algumas passagens. 13  PGDFE, III, Cap. III, § 3.     14  PGDFE, II, Cap. IV, § 13. 15  PGDFE, III, Cap. III, § 29. 16  PGDFE, III, Cap. I, § 1-3. 17  MP, § 1. 18  PGDFE, III, Cap. III, § 26. 19  Quem faz esse alerta é o anotador da tradução do Esboço de lições de pedagogia, Charles de Garmo, professor da Cornell University. ELP, p. 76-78. 20  PGDFE, III, Cap. III, § 29. 21  REMPFE, § 3. 22  MP, § 151-2. 23  MP, § 33. 24  MP, § 10. 25  MP, § 29; 33. 26  MP, § 33. 27  Para bons exemplos sobre os sentimentos como conflitos de ideias, na obra de Herbart, ver, sobretudo, ORTEGA y GASSET (s.d). 28  PGDFE, III, Cap. III, § 12. 29  Toda a informação desse tópico foi extraída de: ELP, § 239-251. 30  Esse segundo exemplo não é apresentado por Herbart. 31  ELP, § 245 (Grifos do autor). 32  ELP, § 250. 33  MP, § 174-5. 34  MP, § 47; 176. 35  C, 4 nov. 1797. 36  C, outono de 1798. 37  C, primavera de 1798. 38  C, primavera de 1798. 39  C, outono de 1798. 40  C, 20 nov. 1798. 41  ELP, § 87-8.

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REFERÊNCIAS HERBART, Johan Friedrich. Pädagogisch Schriftei in Chronologischer Reihenfolge Herausgegeben. 2 ed. Leipzig: Verlag von Leopold Voss, 1880. (Anotada por Otto Willmann, professor de filosofia e pedagogia em Praga).

HERBART, Johan Friedrich. The aesthetic revelation of the word as the chief work of education. 2 ed. London: Swan Sonnenschein, 1897. (Traduzido por Henry M. e Emmie Felkin) [REMPFE – 1804].

HERBART, Johann Friedrich. A text-book in psychology – an attempt to found the Science of psychology on experience, metaphysics, and mathematics. New York: Appleton and Company, 1894. (Traduzido por Margaret K. Smith, professora da State Normal School de Oswego, Nova York). [MP  – 1816; 1834]

HERBART, Johann Friedrich.  Herbart: principales euvres pédagogiques (Pedagogie génerale – Esquisse de leçons pédagogiques – Aphorismes et extrait divers). Paris: Félix Alcan; Lille: Tallandier, 1894, p. v-xiv. (Traduzido por A. Pinloche, professor da Faculdade de Letras de Lille) [PGDFE – 1806]. HERBART, Johann Friedrich. Outlines of educational doctrine. London: Macmillan, 1901. (Traduzido por Alexis F. Lange, professor do College de Letras da Universidade da Califórnia) [ELP – 1835; 1941].

MAUXION, Marcel. L’éducation par l’instruction e les théories pédagogiques de Herbart. Paris: Felix Alcan, 1901.

ORTEGA y GASSET. Prólogo. In: HERBART. Pedagogia general derivada del fin de la educación. Madrid: La Lectura, s.d. p. 7-58. PINLOCHE, A. Préface. In: HERBART, Johann Friedrich. Herbart: principales euvres pédagogiques (Pedagogie génerale – Esquisse de leçons pédagogiques – Aphorismes et extrait divers).  Paris: Félix Alcan; Lille: Tallandier, 1894, p. v-xiv.

WILLIAMS, M. A. Johann Friedrich Herbart. In:   Johann Friedrich Herbart: A study in pedagogics. London: Blackie and Son, 1911, p. 7-18.

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PENSAR HISTORICAMENTE EM JOHN DEWEY?

P

ara Thomas Fallace1, a grande maioria dos pesquisadores que explora a relação de John Dewey (1859-1952)com a história o faz holisticamente, ou seja, examinando toda a sua obra. Esta atitude é proveitosa quando se quer conhecer a ideia de história ao longo da carreira do filósofo, mas é um obstáculo à compreensão das maneiras pelas quais as suas ideias sobre o ensino de história foram recebidas ou o grau de intervenção efetiva que elas provocaram nos currículos, por exemplo, dos Estados Unidos (e, acrescentamos, do Brasil).

Nos EUA, quando o assunto é ensino de história, Dewey é visto (positivamente) como o teórico que defendeu objetivos intelectuais e sociais, intrinsecamente interligados, e o currículo estruturado em “ocupações sociais”, mas é também (negativamente) rotulado como teórico do currículo da escola de classe média, o homem que desenvolveu os fundamentos para industrialização e, subseqüente, burocracia dessa mesma classe, um reacionário evolucionista ou, ainda, um psicólogo evolucionista2 e defensor de um sociologismo historicista.

Se o tema é o currículo para a escolarização básica, o nome de Dewey é diretamente relacionado aos eventos que transformaram a história em componente curricular dos Social Studies, principalmente ao Relatório da “Comissão dos Dez” (Committee on Social Studies report - 1916). Entretanto, Fallace pondera o peso atribuído aos seus escritos na configuração do referido relatório já que o documento incorporou apenas os trabalhos Escola e Sociedade (School and Society - 1899) e os ensaios Princípios éticos fundamentais para a educação (Ethical principles underlying education - 1897/1903) e Princípios morais em educação (Moral principles in education - 1909)3.

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No Brasil, o entendimento da história, como disciplina escolar fundamentada em Dewey, chega bem depois da instituição dos estudos sociais nos EUA. É introduzido na década de 1930, principalmente, nas instruções metodológicas da Reforma Francisco Campos (1931)4 no prefácio de Lourenço Filho ao Como se ensina história, de Jonathas Serrano (1935)5, na “Pedagogia da história” de Murilo Mendes (1935)6 e na tradução, por Anísio Teixeira e Godofredo Rangel (1936), de Democracia e educação7 (Democracy in education - 1916).

Assim, uma leitura de toda a referência sobre o ensino de história na longa obra do filósofo pragmatista não ajudaria a entender as mudanças pelas quais passou o ensino de história nos EUA, na década de 1910. O mesmo poderia ser dito em relação ao Brasil, no curso da disseminação dos princípios das escolas novas (quando o vetor da mudança foi a pedagogia de Dewey). Em suma (e, principalmente), esse tipo de abordagem não nos auxiliaria a responder as questões desse curso relativas ao pensar historicamente e à alfabetização histórica.

Por essa razão, na aula de hoje, nos restringiremos8 à leitura das ideias centrais de três textos. O primeiro é “O objetivo da história na escola elementar” (The aim of history in elementary education), ensaio inserto na primeira edição de A escola e a criança (The school and the child - 1906) e na segunda edição de A escola e a sociedade (The school and society - 1915)9. Ele é fruto das suas experiências com crianças na Universidade de Chicago, entre 1896 e 1904. O próximo é o Como pensamos (How we think - 1910) que sintetiza algumas ideias testadas ainda em Chicago. E o último, o mais conhecido no Brasil, é “O significado da geografia e da história”, capítulo de  Democracia e educação: breve tratado de filosofia da educação (Democracy and education: an introduction to the philosophy of education - 1916), que reúne grande parte da sua produção no Teachers College  da Universidade de Colúmbia. Além de fornecerem os elementos que necessitamos, especificamente para este curso, os três

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textos dialogam e será uma boa aventura perceber as continuidades entre o primeiro e o terceiro, que depõem, direta e respectivamente, sobre as ideias de ensino de história disseminadas nos EUA e no Brasil.

AS PECULIARIDADES DO “PENSAMENTO” PARA JOHN DEWEY

Antes de conhecermos as suas proposições sobre o ensino de história, entendamos um pouco dos sentidos que o filósofo empresta ao ato de pensar ou ao pensamento (thought).

Para Dewey, o pensamento reúne um conjunto de atos voluntários. Ele surge da dúvida ou da perplexidade que determinada pessoa enfrenta no cotidiano. Exige, em seguida, um plano para solucionar um problema e uma hipótese que provém do passado, ou seja, da experiência desse mesmo sujeito.10 Um pouco à frente, Dewey delineia “o ato completo do pensamento” em quatro passos que vão aqui simplificados: (1) perplexidade ou problema (perplexity or problem); (2) sugestão de uma hipotética solução (hipothesis); (3) racional elaboração de uma ideia ou implicação (implications); e (4) verificação da hipótese ou corroboração experimental (experimental corroboration).11 Esse é o pensamento crítico (critical thinking). Um tipo de reflexão que retarda a solução do problema (suspended judgment) mediante a investigação sistemática de uma ou mais hipóteses até se chegar a uma conclusão experimental.12  Pensamento crítico é uma inferência estabelecida indutiva e dedutivamente – partindo das premissas à conclusão e da conclusão às premissas; um duplo movimento em direção às hipóteses e de volta aos fatos.13 Na educação escolar, essa ideia de pensamento crítico é traduzida em tarefas para o professor. O mestre deve desenvolver no aluno a preferência por conclusões extraídas mediante investigação e ra-

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ciocínio apropriados aos problemas que o discente enfrenta. Deve criar o hábito.

Aqui, vemos, claramente, a epistemologia que funda as ciências experimentais. Ele mesmo cita Bacon e Locke como autores significativos na busca dos meios para desenvolver bons hábitos mentais. Porém, faz questão de enfatizar a distância que o separa deste último no que diz respeito às formas escolares de cultivar essa tarefa (training of thought), como podemos acompanhar pelo Quadro 1. Quadro 1. A promoção do pensamento na escola: Locke e Dewey Pensamento Ideia de pensamento

Promoção do pensamento Relação com as matérias

John Locke Faculdade mental separada da observação, da memória e da imaginação Exercícios similares aos que desenvolvem os músculos

Apresentação de determinada matéria à faculdade específica

John Dewey Conjunto de operações, envolvendo problema, hipótese, teste de hipótese e conclusão Desenvolvimento da curiosidade, da sugestão e dos hábitos de pesquisa e de verificação Apresentação de qualquer matéria

Produzido pelo autor, a partir de Dewey (1910, p. 45-6).

Resta-nos saber em que medida o método de pensar e as tarefas atribuídas à educação escolar são transferidas para o ensino de história.

No próprio Como pensamos, Dewey cita a história, mas o faz na condição de exemplo negativo, denunciando a análise e a retenção de fatos isolados, a recitação controlada minuto a minuto e a memorização. Melhor, então, examinar os seus escritos que tratam especificamente do ensino de história.

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ENSINAR HISTÓRIA EM 1906 A primeira proposta formal e esquemática acerca do ensino de história pode ser considerada aquela publicada em [1906]. Como anunciado, resulta das experiências desenvolvidas na escola experimental da Universidade de Chicago. Por ela, a história acadêmica e a história escolar têm papeis diferenciados. Para o historiador, pode ser produzida sob quaisquer motivações. Para o professor, ao contrário, “deve constituir uma sociologia indireta: um estudo da sociedade que revela o processo e os seus modos de organização.”14  Esta frase é citada, no Brasil, talvez pela primeira vez, por Lourenço Filho. A referência à “sociologia indireta” gerou diferentes interpretações. No entanto, sigamos.

Dewey entende a história como “um relato das formas da vida social”, que possibilitam ao aluno “apreciar os valores da vida social, imaginar as forças que favorecem e possibilitam aos homens cooperarem uns com os outros.”15  Aqui ele não foge à vulgada do seu tempo já que o ensino da história deveria enfatizar o “como”, o “porquê” dos homens agirem dessa ou daquela maneira, resultando em tais ou tais sucessos ou fracassos. Em síntese, a história é o conhecimento das causas e consequências dos acontecimentos trágicos ou exitosos.

Com essa finalidade, por outro lado, a cronologia progressiva clássica do historiador – da Babilônia à experiência dos europeus do século XIX – ganha outros usos. Aqui ele afasta-se de Herbart, afirmando que a cronologia é importante, mas a “correlação” não se estabelece entre a ontogênese e a filogênese e, sim, entre os interesses atuais da sociedade e as capacidades cognitivas das crianças: “[s]e o objetivo é a valorização da vida social e do seu desenvolvimento, então, certamente, a criança deve lidar com o que está perto, no seu espírito, e não com os tempos remotos.”16 Outra diferença – decorrente dessa primeira – Dewey estabelece em relação à natureza do

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gênero de história a ser oferecida às crianças. Se para Herbart era fundamental iniciar com a narrativa de ficção, nas prescrições do filósofo pragmatista é a narrativa sobre a “realidade” da criança – o mundo social circundante – que deve a ela ser apresentada.

Os desdobramentos dessa mudança – da ordem cronológica para a ordem psicológica – são, em primeiro lugar, a mudança de conteúdos substantivos e de estratégias de ensino (ou de habilidades a serem desenvolvidas). Quadro 2. Programa de John Dewey para o ensino de história [1906] Estágio Modalidade Fins

1º 2º 3º

História generalizada e simplificada

Desenvolver sensibilidade e simpatia por atividades sociais

História dos fatos positivos

Desenvolver a capacidade de lidar com fatos limitados e positivos

Idade Conteúdos 6 Ocupações da cidade e do campo Invenções e suas consequências 7 na vida Migração, exploração e 8 descoberta 9 Experiência da cidade, estado e 10 do país 11 *12 Experiência do mundo antigo 13 mediterrâneo, história europeia e 14 singularidades da história do país

(*) Neste texto, a faixa etária de 12 a 15 anos, relativa ao ensino secundário, é estimada, já que Dewey não deixa clara a quantidade de anos para este nível de ensino. Produzido pelo autor, a partir de Dewey (1906, p. 102-4).

Pelo Quadro n. 2, podemos perceber que as inovações – do próximo ao distante, espacial e temporalmente – não interditam o esquema evolutivo até então visto nesse curso. Em Dewey, a história da “civilização” se mantém, embora deslocada e ressignificada, como conhecimento básico para a formação de pessoas.

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ENSINAR HISTÓRIA EM 1916 [Dez] anos após a divulgação, em livro, da primeira proposta para o ensino de história, Dewey publica uma das suas mais conhecidas obras: Democracia e educação. É um efetivo tratado sobre fins da educação escolar, noção de mente, métodos, recursos didáticos e diretrizes para a elaboração de currículos. Nesse livro, a história é novamente discutida, mas em conjunto com a geografia. Ambas conservam a função de alargar a direta importância da experiência pessoal.

Este “pessoal”, entretanto, não significa pôr o indivíduo acima do social. A proposta afirma, exatamente, o contrário. Aqui entra em cena a primeira finalidade do ensino de história: transmitir uma moral, ou seja, ensinar que o aluno, quando maduro, deve preservar a sua vida, mas essa preservação deve estar em consonância com o bem estar (well being) de todos (da sociedade).17

A outra finalidade da história escolar e, também, da geografia é expandir a experiência dos alunos fornecendo-lhes “base e perspectiva intelectual”18 para entender e atuar no presente. Isto implica em fazer com que o aluno perceba e estabeleça o maior número de conexões possíveis: conexões entre os fenômenos naturais (geografia) e entre os atos humanos (história).19

Os fins, consequentemente, prescrevem os meios. A história não poderia ser ensinada apenas pelo fato de possibilitar a explicação do estado atual das coisas. Com este raciocínio, Dewey substitui uma proposição historicista (o passado explica o presente) por outra, afirmando que os “os eventos passados não podem ser separados da vida presente e, ainda assim, permanecerem vivos. O verdadeiro ponto de partida da história é sempre uma situação presente, acompanhada dos seus respectivos problemas.”20.

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Os desdobramentos desse princípio são a crítica ao ensino da pré-história com justificação em si mesma. Pode-se até visitar os tempos remotos, mas a questão a ser respondida não estará na pré-história, na antiguidade ou idade média. É isso que ele quer dizer quando opta pelas histórias industrial (industrial history), econômica (economic history), do trabalho (the history of work) e intelectual (intelectual history) em lugar das histórias política (political history) e militar (military history). A história industrial, afirma, “é mais humana, mais democrática e, portanto, mais liberalizante que a história política”. E acrescenta:

[q]uando a história do trabalho, quando as condições de uso do solo, da floresta, da mina, da domesticação e cultivo de grãos e animais, da manufatura e da distribuição ficam fora das narrativas, a história tende a tornar-se, meramente literária – um romance sistematizado de uma humanidade mítica, vivendo sobre si mesma, quando na verdade vive sobre a terra.21

No fundo da invenção de novos fins e conteúdos substantivos para a história está a defesa de uma filosofia da história que sorveria, inclusive, do social darwinismo, reinante no final do século XIX, como deixa explícito nestas frases: a disciplina entendida como a “história da adaptação das forças naturais humanas” e “o avanço da humanidade, da selvageria à civilização”.22

Por outro lado, é também uma história idealista, que defende o desenvolvimento civilizacional, desde os povos da antiguidade asiática aos contemporâneos europeus e norte-americanos. Por este motivo – a mescla do pensamento de autores como F. Hegel e H. Spencer – Thomas Fallace prefere classificá-lo como um “historicista pragmático” que constrói um currículo pleno de “etnocentrismo”.23

Este “historicismo pragmatista” foi apropriado de modos diferentes. Nos EUA circulam muitos estudos sobre o grau de interven-

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ção de Dewey na transformação da história em estudos sociais. No entanto, para o mesmo Fallace, seus estudos sobre ensino de história não podem ser responsabilizados por essa mudança porque, mesmo após 1916, Dewey não escreveu sobre estudos sociais. Sua inovação no ensino de história deve ser reconhecida, principalmente, pela defesa em favor da história social e a introdução do método experimental como estratégia de ensino e aprendizagem.

No Brasil, limitando-nos aos textos examinados, apenas um aspecto dos estudos deweanos parece ter sido absorvido: a citação isolada, aqui e ali, de que a história deveria ser uma espécie de “sociologia indireta”, algo que foi anunciado, originalmente, não por Dewey, mas por Spencer, o qual não é seguido literalmente pelo filósofo estadunidense. Além disso, as próprias iniciativas de implantação dos estudos sociais no Brasil, já na década de 1930, também não podem ser debitadas à sua influência já que o próprio Dewey, em sua obra Democracia e educação – talvez, a mais lida por aqui – difunde uma ideia de ensino de história caracteristicamente disciplinarizada e, no máximo, interligada à geografia.

CONCLUSÃO

Restringindo-nos aos textos examinados na aula de hoje, podemos afirmar que Dewey professou uma filosofia da história e adotou uma epistemologia empirista/experimental. Sua filosofia era devedora da ideia de progresso, tendo como padrão civilizatório a experiência industrial de alguns países europeus e, evidentemente, dos EUA. Sua epistemologia reproduzia os passos do método inaugurado por Francis Bacon e refinado ao longo do século XIX: levantamento de um problema, elaboração e testagem de hipóteses e produção de conclusões provisórias, com emprego contínuo da dedução e da indução.

No que diz respeito ao sentido de “pensar historicamente”, enfrentamos os mesmos impasses resultantes da análise dos textos de

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Locke e de Herbart, ou seja, responder de forma hipotética ou negar a existência deste pensar característico. Todavia, em Dewey parecem mais claras as posições em relação à história, o que nos permite maior grau de ousadia em nossas conjecturas. Se considerarmos a sua filosofia da história, poderemos dizer que o pensar historicamente era, concomitantemente, refletir sobre a experiência humana como o transcurso de etapas (cujo ápice seria a emergente sociedade industrial) e empregar as questões do presente (da sociedade industrial) para visitar o passado, justificá-la e mantê-la. Por outro lado, se adotarmos a sua epistemologia, que originou um método geral para o ensino (inclusive de história), constataremos que, aqui também, a história não foi apropriada em suas bases racionais (metodológicas), já reconhecidas nos EUA dez anos antes do seu primeiro ensaio e mesmo nas próprias universidades nas quais lecionava. Para Dewey, podemos conjecturar, era a história (o historiador) quem deveria adotar o seu método, fundado no “inferir criticamente”. Por ironia ou por acaso, parte do método sugerido pelo filósofo faz hoje a fama de muitos inovadores de história nos EUA com as assertivas de que estudar história é inferir a partir de evidências, estimulado por um problema e mediado por hipóteses. “Ler como historiador”, hoje, é, ainda e também, pensar criticamente ao modo erudito das ciências experimentais dos tempos (e da proposta) de Dewey.

NOTAS

1  FALLACE, 2009a, p. 613. 2  FALLACE, 2009b, p. 382. 3 John Dewey - Breve Vida e Obra. 21 jun. 2010. 3.27min. Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=kFyo_ZU2f2o. Capturado em: 30 out. 2014. 4  FREITAS, 2008. 5  LOURENÇO FILHO, 1935. 6  FREITAS, 2004. 7  TEIXEIRA, 1936. 8  Para Fallace, os títulos onde John Dewey trata da matéria de forma “amadurecida” são: Reconstrução em filosofia (Reconstruction in philosophy - 1920), Lógica: teoria da investigação (Logic: the theory of inquiry – 1938) e os não citados, no Brasil dos anos 1930, Meu credo pedagógico (My pedagogic creed - 1897) e A criança e o currículo (The

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child and curriculum - 1902). Destas obras, até o momento, encontramos uma resenha do livro Lógica, produzida por José Honório Rodrigues em 1966, cujo título revela o interesse do nosso historiador maior da historiografia: “Dewey e a História” (FALLACE, 2009a, p. 613). 9  A primeira edição é de 1899 e não contempla o ensaio sobre o ensino de história. 10  DEWEY, 1910, p. 12-3. 11  DEWEY, 1910, p. 72-7. 12  DEWEY, 1910, p. 74. 13  DEWEY, 1910, p. 79-81. 14  DEWEY, 1906, p. 95. 15  DEWEY, 1906, p. 95. 16  DEWEY, 1906, p. 101. 17  DEWEY, 1906, p. 253. 18  DEWEY, 1906, p. 244. 19  DEWEY, 1906, p. 246. 20  DEWEY, 1906, p. 251. 21  DEWEY, 1906, p. 253. 22  DEWEY, 1906, p. 254. 23  FALLACE, 1909b, p. 385-6.

REFERÊNCIAS

DEWEY, John. The aim of history in elementary education. In: School and the child: being selections from the educational essays of John Dewey. London: Blackie & Son, 1906.

DEWEY, John. The significance of geography and history. In: Democracy and education: an introduction to the philosophy of education. New York: The Macmillan Company, 1930. [Reimpressão da primeira edição – 1916]. DEWEY, John. How we think. Boston: B. C. Health, 1910.

FALLACE, Thomas. John dewey’s influence on the origins of the social sutudies: na analysis of the historiography and new interpretation. Review of Educational Research. [sdt.], v. 79, n. 2, p. 601-624, jun. 2009a.

FALLACE, Thomas. Repeating the race experience: John Dewey and the history curriculum at the University of Chicago Laboratory School. Curriculum Inquiry, Ontario, v. 39, n. 3, p. 382-405, 2009b. FREITAS, Itamar. A pedagogia da história de Murilo Mendes (São Paulo, 1935). Saeculum – Revista de História, João Pesoa, n. 11, p. 162-175, ago./ dez. 2004.

FREITAS, Itamar. A pedagogia histórica de Jonathas Serrano: uma teoria do ensino de história para a escola secundária brasileira (1913/1935). São Cristóvão: Editora da UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2008.

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LOURENÇO FILHO, Manoel Bertström.  O ensino renovado e a história. In: SERRANO, Jonathas.  Como se ensina história. São Paulo: Melhoramentos, 1935. pp. 7-12. RODRIGUES, José Honório. Dewey e a história. In:  Vida e história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. p. 233-236.

TEIXEIRA, Anísio. Apresentação. In: DEWEY, John. Democraia e educação: breve tratado de philosophia da educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936. p. 5-8.

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PENSAR HISTORICAMENTE EM RAFAEL ALTAMIRA

A

recente narrativa de síntese sobre a produção e usos da história espanhola é, obviamente, como qualquer história da historiografia, construída a partir de interesses e ideias orientadoras as mais diversas. No entanto, a figura de Rafael Altamira (1866-1951) aparece sempre como destaque positivo. Para Ignacio Peiró Martin, que é contrário ao emprego automático do modelo alemão (seminários e manuais) como explicador da profissionalização histórica na Espanha, Altamira faz parte da “ponta de lança de historiadores” que se empenharam em transformar a história “mediante a introdução de novos problemas e deslocamento de velhas perspectivas que haviam consolidado a historiografia acadêmica oficial.”1 Porém, apesar de ter escrito livro didático sobre a história nacional, é exatamente pela difusão do modelo alemão que Altamira ganha espaço como “guardião da história” (1900-1936) e partícipe da ascensão da universidade como instância superior de legitimação historiadora, frente à Real Academia de la Historia.2 Agindo em sentido contrário, no que diz respeito ao exame da historiografia sobre o nacional, Carolyn Boyd, põe ênfase nas similitudes da Espanha em relação aos demais países da Europa e chama a atenção para as apropriações extranacionais de Altamira. Afirma que foi francófilo,3 que seguiu os modelos da “história da civilização” e do ensino franceses, encarnados, sobretudo, por Charles Seignobos (fins políticos do ensino de história)4 – de quem assistiu as aulas na Sorbone.5 Boyd, professora estadunidense, afirma que as ideias do La enseñanza de la historia (1891/1895) estabeleceram “um paradigma para o ensino e a escrita da história nas escolas” que vigoraria durante quarenta anos após o lançamento da obra. No que

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diz respeito à inserção do personagem no percurso da historiografia profissional, Boyd segue Peiró, classificando Altamira como um “regenerador” da historiografia nacional.

Ao que Boyd chama de “paradigma”, um importante estudioso dos usos escolares da história – Francisco Cuesta Fernandes – classifica como “código escolar”. Altamira é um inovador, não somente por incorporar novos elementos da historiografia extranacional (a explicação histórica). É, principalmente, o fato de conjugá-los à finalidade política de “regeneração nacional” (os termos são de Altamira) – de entender que “o conhecimento histórico é o núcleo de toda a educação histórica e o centro de todo o esforço docente”6 – que faz de Altamira um autor ainda lido e empregado como modelo, no último quartel do século XX. Para Fernandes, La enseñanza de la historia é “o melhor manual de didática da história em castelhano.”7

Por fim, encerrando essa apresentação do nosso autor, nós o encontramos sob o mesmo “código disciplinar” na mais recente história da historiografia escolar de Rafael Vall Montez. O conterrâneo e homônimo Montez situa Altamira no segundo período da experiência espanhola: o da “reformulação positivista e europeísta (18801939)”. Nesta etapa do “código disciplinar”, Altamira é destacado por ter redefinido as formas e funções do conhecimento histórico (respectivamente, político-educativa e civilizacional) e dado continuidade à melhoria da escrita didática no que se refere à agregação do aparato de erudição às obras escolares.

Essa breve revisão teve o objetivo de convencê-los de que devemos ler o La enseñanza de Altamira porque ele reúne indícios acerca do “pensar historicamente” e da “alfabetização histórica” que perseguimos nesse curso. Em outras palavras, La enseñanza informa sobre os graus de assentimento do método crítico na Espanha, das relações entre os intelectuais espanhóis e de outros países e, dos modos de combinar crítica histórica, filosofia da história e estraté-

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gias da pedagogia ativa. Hoje, exploraremos, sobretudo, os sentidos de história, as funções sociais da história e do seu ensino, os métodos e os conteúdos necessários para o cumprimento de tais funções.

UMA INTRODUÇÃO À LA ENSEÑANZA DA HISTÓRIA

Já acompanhamos a avaliação de quatro autorizados leitores da história da produção e usos da história na Espanha. É importante, agora, conhecer o que o próprio autor diz sobre o seu trabalho. O texto foi publicado em 1891 e resulta de conferências proferidas no Museu de Instrucción Primaria nos anos de 1890 e 1891. A edição que temos acesso, a segunda, a mais citada, foi publicada em 1895 e é, para o autor, quase um novo livro. Já no prólogo, ele demonstra preocupação com regras de erudição, explicando as ausências de determinados elementos de referências bibliográficas de algumas obras bem como os critérios empregados na seleção das suas fontes.

Sobre esse último, chama atenção a omissão declarada dos Grundriss des historichen Methode de Gustav Droysen. Para Altamira, a obra entrou no rol daquelas que, pelo título, “parecem pertencer à metodologia da história, mas que, a rigor, ou não dizem nada sobre o tema ou são, principalmente, o que se chamou, há anos, de filosofia da história.”8 Este fato nos leva a questionar: Altamira não leu, foi desaconselhado a ler por Charles Seignobos, leu mal ou, simplesmente, desconsiderou a função pedagógica do conhecimento histórico professada por Droysen? A exclusão de outro grupo de obras é justificada pela ênfase que as mesmas reservam à história como literatura e o trato marginal acerca da questão da “parcialidade”, por exemplo. São títulos que se ocupam da melhor “maneira de escrever história”. Outro motivo foi a impossibilidade de consulta. Se ele somente teve acesso aos títulos e não às obras, algumas produzidas em línguas alemã, francesa e italiana, não poderia fazer uso desse material, sob o risco de apresentar uma “erudição vazia”.9

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Por fim, Altamira revela a originalidade da sua obra no que diz respeito ao plano geral e ao objetivo. Aqui ele afirma distanciar-se de três conhecidos manuais de introdução à história do seu tempo: os de Ernest Bernheim, Edward A. Freeman e Herbert B. Adams.10 Nestes autores, privilegia-se, respectivamente, segundo Altamira, a “crítica”, o “problema pedagógico” e o “método”.11 Aqui, novamente questionamos: Altamira não teve acesso ou não conhecia os textos de Bernheim sobre ensino de história?

Independentemente das nossas questões iniciais, importa saber em que sentido, então, La ensiñanza seria obra original na Espanha. Segundo o autor, como vimos, ela ocupa-se, exclusivamente, do ensino de história, denuncia os principais males das práticas docentes em seu país (“a substituição das coisas por livros” e a “falta de educação crítica frente aos fatos”)12 e propõe a instituição de um “método racional” a partir da fusão entre os métodos ativos da pedagogia e o método crítico da história.

Tudo o que, segundo essas duas correntes concomitantes, se deve fazer, acerca do objeto e de parte do aluno, é o que constitui a metodologia racional da história, na qual, portanto, haverá duas ordens de questões: de um lado, as questões puramente pedagógicas, como o gênero dos trabalhos de classe, as condições dos livros didáticos, o material que o aluno deve manusear, o procedimento para que este coopere, desde o primeiro instante, a própria obra etc.; do outro, as que diríamos técnicas, como o conceito e o conteúdo da história que se deve estudar, a relação e o ofício das chamadas ciências auxiliares, a leitura dos textos, o modo de utilizar inscrições, a doutrina da crítica histórica, entre outras.13

Por fim, alguns conceitos fundamentais, apresentados no início da obra. O primeiro é o de “história”, entendido duplamente como o “conhecimento sobre a mudança de estados, a evolução e varia-

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ção da humanidade no tempo” e “objeto e tema” deste mesmo conhecimento. O segundo é o de “ensino de história”. Definido por sua função social, o ensino de história constitui-se na “formação de conhecimentos relativos a uma certa ordem de realidade com a maior certeza possível”.14 Adiante ele refere-se à formação do “espírito crítico”.15 A meta é que o aluno esteja potencialmente capaz de “por si só, alcançar o conhecimento científico em qualquer momento da vida, sempre quando necessário”. 16 Vejamos, agora, se e como Altamira realizou tais objetivos no que diz respeito à proposta de nova didática para o ensino primário e secundário espanhol.

DA UTILIDADE DA HISTÓRIA PARA A VIDA

Certamente, a história serve à vida. Neste ponto, ele separa-se radicalmente dos (hoje) sociólogos Alexandre Bain e Herbert Spencer que, como sabemos, apresentam sérias restrições ao ensino da história para os imaturos. O curioso é o lugar de onde retira o seu principal argumento para defender presença da história em todas as etapas da educação geral, isto é, no ensino primário (elementar e superior) e no ensino secundário. Não busca nos autores alemães ou mesmo nos franceses. A utilidade, digamos, metafísica (a unidade da vida dos homens, da Europa ariana à Europa do século XIX) 17 ele retira do manual de metodologia histórica – The methods of historical study (1886) –, de Edward A. Freeman, professor inglês do Oriel College e do Trinity College. Ao ancorar-se em Freeman, ele revela sua face evolucionista e racialista.

A segunda utilidade, que ele classifica como “educativa”, retira de outra obra propedêutica – A manual of historical literature (1888) – Charles Kendall Adams, professor de história e [reitor] da Cornell University. Adams não foi o que poderíamos chamar de um teórico da história, ao menos nesse livro, que reúne centenas de resenhas sobre obras de história por períodos (antiga, medieval etc.), universal, nacional, estadual, dos países e até de filosofia da

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história. Também não professava o ensino de história via método crítico. Mas, oferece Altamira um princípio: a história “melhora o julgamento” e ensina a “conduzir os grandes interesses dos estados e das comunidades.” 18

Com esses dois argumentos – a continuidade da vida e a melhoria da capacidade de julgar (no sentido kantiano de atribuir um valor) – Altamira faz profissão de fé contra a história exemplar: a história não dá lições. E não o faz porque os homens esquecem a experiência alheia, acometidos por “motivos passionais ou de outro gênero que movem a vida cotidiana”; devido a “heterogeneidade dos povos e das circunstâncias históricas, tornando inaplicável o exemplo antigo ao momento atual”; e, finalmente, por causa da “eterna esperança de vencer onde os outros fracassaram.” 19

Se a história não dá lições, então, a que serve tal conhecimento? A história serve “como prova do êxito obtido em práticas anteriores, como precedente que pode abonar uma reforma [...] como exemplo que apoia uma teoria”;20 para sugerir “tendências e características individuais” de valor; como “educadora da inteligência, mediante o rigor da investigação e de suas exigências críticas”; e, por fim, na Espanha de 1891 (data da primeira edição) e também de 1895 (data da segunda), a história contribui para “formar a consciência nacional ou coletiva, o traço típico da raça” que tanto influi no comportamento da população. Está mais que justificado o sentido de “regenerador” da história nacional, atribuído a si próprio: a história – conhecimento sobre a vida nacional – regenera a “vida” dos espanhóis que, à época, eram marcados por uma espécie de caráter “decadente” que parecia “atar-lhes as mãos para toda a iniciativa presente”.21

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A APRENDIZAGEM HISTÓRICA INDEPENDE DE IDADE: É QUESTÃO DE MÉTODO Para Altamira, o desgosto dos alunos em relação ao ensino de história se resume a uma expressão: método ruim. Em outras palavras, ênfase na memorização e falta de encanto no modo de narrar são as respostas à crença, de alguns profissionais, acerca da impossibilidade de aprender história na escola primária. Aqui, novamente, ele deixa a França e vai buscar o argumento nos Estados Unidos: “Do que a criança mais gosta, o que é mais interessante para elas? Os seres humanos. E o que é a história? É o registro do que os seres humanos fazem.” 22 Este raciocínio, extraído de minúsculo artigo, “Por que as crianças não gostam de história?” [Why do children dislike history – 1884], do “eminente” professor de história Thomas Wentworth Higginson, recolhido por Stanley Hall, na coletânea Methods of teachint history (1883), punha o ensino de história, por insight ou experiência docente, desde os anos 1840, em franca oposição ao credo herbartiano em vigor nos EUA. Foi ele empregado por Altamira para enfatizar a abordagem do “real” em lugar da “ficção”, do “concreto”, em lugar do “abstrato”.23

Tal princípio, porém, não é desenvolvido em método, que ele vai buscar no próprio país. É o mestre católico, Ignacio Ramón Miró, que pensa o ensino de história como “escola de moral” (que condena os vícios e faz amar a virtude),24 em La enseñanza de la historia em las escuelas (1889), quem lhe fornece a ideia de currículo integral (as mesmas disciplinas ensinadas em todos os níveis de ensino), a proposta de divisão do ensino em três ciclos e o emprego do método “concêntrico”.

Miró entende o ensino de história como mobilizador de faculdades, a mente como repositório de ideias e o abastecimento destas ideias mediante a apresentação de objetos também pelos sentidos da visão. Refere-se à “série de ideias”, “atenção” e

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“clareza”, aparentando misturar antigos e novos princípios acerca do ensinar (já vimos aqui). Desse arrazoado, Altamira abandona a exemplaridade e o dogmatismo católico, e se apropria tanto da ideia de desenvolvimento de faculdades mentais quanto da distribuição e apresentação dos conhecimentos históricos através do método “cíclico”.

[...] a opinião dominante, no que se refere à história, é favorável ao programa cíclico, ou seja, ao estudo integral do assunto em cada um dos períodos (anos, cursos, semestres) em que se divide o trabalho escolar, e sua repetição nos tempos subsequentes; começando por um quadro muito elementar e escasso em pormenores, mas completo, para ir aumentando cada vez mais essas informações ou pormenores, ou seja, o conteúdo. 25

A sugestão do mestre espanhol, que escreveu seu manual depois de 40 anos de docência, entretanto, é justificada através das menções a autoridades pedagógicas na França e na Alemanha, como o M. Gréard (França), M. Frédéricq (Bélgica), M. Pizard, M. Lavisse (França) e M. Pergameni (Alemanha). Todavia, Altamira devolve os louros ao Inácio Miró quando denuncia que, na maioria das nações, esse programa não é “integral” e nem “concêntrico”.26

Por outro lado, defende a introdução do método regressivo no início imediato da escolarização. Ele revela os senões dos historiadores e pedagogos em relação à estratégia: o regressivo rompe a lógica histórica (causa e consequência) e combate-a com a cientificidade da psicologia: todo conhecimento, mesmo nas ciências naturais, parte do conhecido para o desconhecido: “para que uma coisa desconhecida cientificamente chegue a sê-lo e se compreenda seu verdadeiro sentido de realidade, é preciso chegar a ela por meios conhecidos, por equações sucessivas, que substituam termos de conhecimento reflexivo ou mediado por intuições da experiência

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imediata do aluno.”27 Por fim, selando a inovação metodológica, defende a participação ativa do aluno, que pode ser provida mediante os exercícios que colaboram no desenvolvimento de respectivas faculdades, ambos expostos no Quadro 1. Quadro 1. Atividades destinadas aos alunos do ensino primário e secundário Atividade “Resumos de lições” – partindo do que o professor expôs oralmente “Extrato de leituras” “Temas escritos” ou “devoirs” “Desenho de mapas e croquis” “Conversação”

“Leituras escolhidas” (histórias grega e romana) “Excursões ou passeios históricos”

Função Estimular a memorização e depois a leitura

“Concretizar o pensamento” e estimular a leitura Desenvolver as faculdades de “julgar” e de “expressar posição” Fornecer “plasticidade” às ideias

Suscitar a “atenção sobre determinada ideia ou fato”, exercitar a “memória” e a “reflexão” “Uso futuro” de livros “clássicos e modernos”, “fontes originais” e “dicionários” –

Produzido pelo autor, a partir de Altamira (1895, p. 414-6).

As atividades são hierarquizadas, embora Altamira não detalhe o que deve e o que não deve ser exercitado em cada ciclo de ensino, aqui, supostamente entendido como primário inferior, primário superior e secundário. Contudo, parece claro que há progressão de complexidade na qualidade do trabalho do aluno e na quantidade de leituras entre as tarefas e também na reserva dos temas escritos, das leituras escolhidas para o ensino secundário.

O QUE É NECESSÁRIO APRENDER?

Resolvida a questão do método – o cíclico introduzido pelo regressivo – Altamira descreve os conteúdos necessários à regeneração da historiografia e, consequentemente, do povo espanhol. E é o

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próprio método regressivo quem auxilia nesse sentido. As noções fundamentais, para a compreensão posterior das narrativas (que são fundadas na lógica causa-consequência), são adquiridas a partir do cotidiano do aluno. Assim, “sucessão”, “instituições” e “caracteres comuns” ou “caracteres diferenciais” são aprendidos em meio à localidade, junto à família, o prefeito, o padre e a própria observação do aluno acerca do seu cotidiano escolar.28

Quanto aos conteúdos substantivos clássicos que se seguirão às noções fundamentais, Altamira defende o ensino de uma “história geral” ou uma “história da civilização” sem os equívocos sentidos no seu tempo. Nessa parte da obra, que trata do “conteúdo da história” ou do objeto stricto sensu da história científica, duas operações podem ser destacadas. A primeira é a incorporação da lógica empregada pelo Compendio de historia universal (s.d) do alemão Georg Weber. A obra é estruturada em díades correlacionadas: história interna/história externa; cultura, literatura e religião/política; causa/ consequência.29 Com esse esquema, ele distancia-se dos seguidores de W. Hegel, que pôs o Estado no centro de toda a experiência 30 e também de historiadores que enfatizaram a cultura, como Wilhelm Heirich Riehl,31 e a política como Karl Lamprecht.32 O segundo movimento é a crítica à categoria “civilização”. Aqui, Altamira começa a apagar aquela impressão deixada, no início desta aula, de professo social darwinista. Ele evita o caráter “material” costumeiramente empregado para dar sentido ao termo, optando pelo critério “espiritual”, de fundo cristão. Civilizado, para Altamira, é o povo que preserva os valores de “humanidade, tolerância, piedade, justiça e correta conduta na vida.” Pelo primeiro critério, a experiência de vários povos é excluída de uma história geral (ainda que reconheça o segundo critério como também excludente).33 Os desdobramentos dessas duas posições é a criação de um modelo híbrido de conteúdo histórico, no qual a história política e a

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história social e cultural atuam, ao mesmo tempo, de forma complementar e em relação de causa-efeito. Para facilitar a compreensão da sua proposta, sugiro rememorarmos a lógica de Herbart, de que a vida do indivíduo é a repetição abreviada da vida da espécie. Em Altamira, a vida do povo é repetição abreviada da vida do indivíduo. Um povo atua como um indivíduo, que tem “funções” (às vezes ele escreve “faculdades”) que atuam harmonicamente e de cuja harmonia depende a sua vida.34

Um pouco antes de definir os conteúdos, seu movimento e importância, ele cita a experiência dos seminários alemães deixando vazar a analogia que nos parece a chave para compreendê-lo melhor. Um povo (às vezes refere-se à “vida social”), como um homem, é um “organismo” e suas funções, a exemplo da razão, sentimento, imaginação e vontade do homem, são o filosofar, criar, representar e agir ou governar.35 Em outras palavras, são funções sociais e, portanto, conteúdos fundamentais ao ensino de história, tanto as histórias da filosofia, da arte, literatura, quanto as histórias política e militar. A política (as relações internacionais) ou a história externa estaria umbilicalmente ligada à cultura ou história interna (que inclui, além dos costumes, economia, arte, ciência e literatura, a política interna) em relação de causa-efeito, não sendo possível, portanto, ensinar a primeira sem conhecer a segunda. Em síntese: a ação do povo/país é resultado do que este mesmo povo sente e pensa. [...] apesar de a constituição política (que representa, poderíamos dizer, a função construtiva do corpo nos organismos animais), nem todas elas se caracterizam por um desenvolvimento original e superior nessa ordem. Ao contrário, a característica reside muitas vezes na importância atribuída à arte ou às instituições econômicas, ao comércio, a uma determinada indústria, a um credo religioso, sem o que a esfera militar nem a política teriam alcançado desenvolvimento digno de ser apreciado em relação aos outros.36

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Nesta citação, por fim, encontramos a crítica mortal à categoria “civilização” e a principal justificativa para estudar todos os tipos de história na formação escolar. Da mesma forma, ela aponta, indiretamente, uma saída para os povos que, como a Espanha, não se enquadram nos critérios civilizacionais impostos por alemães, ingleses e, principalmente, franceses. Aqui está uma saída regeneradora para a vida nacional.

CONCLUSÃO

Vimos, então, que La enseñanza de la historia configura-se como um manual de teoria e didática da história, fundado em diferentes doutrinas recolhidas por Altamira ao longo da sua vida e das viagens que fez à América e às potências da Europa, presencialmente ou mediante leituras de textos especializados.

A sua didática da história, reivindicada como científica, divide as responsabilidades do ensino entre a psicologia educacional (referida o tempo inteiro como pedagogia) e a história. A primeira é mais difusa e o máximo que podemos afirmar, hoje, é que ela reúne princípios das escolas ativas, mas que, não necessariamente, são originados da segunda metade do século XIX. A segunda é muito clara. A história oferece o método e este é constituído por operações de erudição que possibilitam separar seguro e duvidoso, real e ficção. Na formação geral, entretanto – no ensino primário e secundário –, tal método é palidamente representado, ganhando força, ao contrário, na formação do professor, seja ele um normalista, seja ele um estudante da faculdade de filosofia. Evidentemente, não pudemos explorar essa faceta de Altamira, dada a limitação do objeto do nosso curso, ou seja, o pensar historicamente entre educandos imaturos. A este respeito, afirmamos que uma espécie de alfabetização histórica na obra de Altamira pode ser colhida nos seguintes termos: o aluno aprende história partindo do

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conhecido temporal e espacialmente, para dois ou três anos depois, apreender a experiência sensível, inteligível e volitiva dos povos ao longo do tempo. Isto lhe permite agir reta e racionalmente e, para o caso espanhol (depois de reescrita a sua história nos critérios prescritos pelo autor), livrar-se de determinada característica que lhe interdita novos horizontes.

Nessa função educativa e civilizatória (no sentido cristão e, de certa forma, multiculturalista, anunciado por Altamira), o pensar historicamente é constituído por uma série de ações mentais que lhe desperta e desenvolve a “faculdade crítica”. Tais ações são o observar fontes diretamente (lendo, tocando e não apenas ouvindo) e refletir sobre os caminhos pelos quais os historiadores constroem suas verdades. A didática da história que privilegia a formação de tal faculdade crítica, entretanto, está fundada, dominantemente, nas hipóteses sobre o mecanismo da mente extraídas de uma vulgata de filósofos e numa incipiente psicologia educacional.

Assim, podemos concluir, certa teoria da história (com laivos de filosofia da história), bem como o método crítico, já se fazem presentes nos ensinamentos de Clio, mas não são suficientes para fundamentar uma didática da história.

NOTAS

1 MARTÍN, 2006, p. 22. 2 Para o autor, nessa obra, a história da historiografia espanhola é demarcada por três períodos: o tempo dos acadêmicos (década de 1850 a 1890), dos historiadores universitários liberais (aproximadamente 1900-1936) e o dos historiadores universitários alinhados ao fascismo (1936 em diante). MARTIN, 2006, p. 24-5. 3 Para María Dolores de la Calle Velasco, essa francofilia não foi pontual. Na passagem do século XIX para o XX, a França foi modelo teórico e também institucional no que diz respeito às práticas de erudição e aos ensinos básico e superior. VELASCO, 2007, p. 149-150. 4 BOYD, 2000, p. 126-30. 5 Os adjetivos de Boyd merecem reparos. Como veremos na próxima aula, Seignobos não desprezou princípios-chave da pedagogia ativa. Porém, o centro da didática da história foi ocupado pelo método crítico, que ele ajudou a codificar. 6 CUESTA FERNANDES, 1997, p. 242-3.

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7 CUESTA FERNANDES, 1997. 8 ALTAMIRA, 1895, p. ix. 9 ALTAMIRA, 1895, p. xi. 10 O contato de Altamira com o professor Herbert B. Adams foi mediado pelo professor John Martin Vincent, da Johns Hopkins University, que depois publicaria o Historical research an outline of theory and practice (1911). Altamira não deixa claro se leu ou qual obra de Adams ele leu. Adams publicou: Methods of historical study (1884) e The study of history in american colleges and universities (1887). ALTAMIRA, 1895, p. xi, 6n. 11 ALTAMIRA, 1895, p. xi. 12 ALTAMIRA, 1895, p. 14. 13 ALTAMIRA, 1895, p.16. 14 ALTAMIRA, 1895, p. 1. 15 ALTAMIRA, 1895, p. 11. 16 ALTAMIRA, 1895, p. 2. 17 FREEMAN, 1886, p. 29-30. 18 ADAMS, 1888, p. 15. 19 ALTAMIRA, 1895, p. 370. 20 ALTAMIRA, 1895, p. 374. 21 ALTAMIRA, 1895, p. 375. 22 HIGGINSON, 1884, p. 93. 23 ALTAMIRA, 1895, p. 380. 24 MIRÓ, 1889, p. 12-3. 25 ALTAMIRA, 1895, p. 382. 26 ALTAMIRA, 1895, p. 385. 27 ALTAMIRA, 1895, p. 391. 28 ALTAMIRA, 1895, P. 393. Para anunciar essas estratégias, ele busca legitimação em Roland e Tempels, autores cujas obras não conseguimos localizar até o final da escrita desta aula. 29 ALTAMIRA, 1895, p. 141. 30 ALTAMIRA, 1895, p. 142. 31 ALTAMIRA, 1895, p. 135. 32 ALTAMIRA, 1895, p. 151. 33 ALTAMIRA, 1895, p. 142. 34 ALTAMIRA, 1895, p. 148-9. 35 ALTAMIRA, 1895, p. 144. 36 ALTAMIRA, 1895, p. 148.

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ALTAMIRA, Rafael. La enseñanza de la historia. 2 ed. Madrid: Victoriano Suáres, 1895. [Primeira edição – 1891].

BOYD, Carolyn P. Historia pátria: política, historia e identidade nacional en España: 1875-1975. Barcelona: Pomares-Corredor, 2000. [Primeira impressão – 1997].

FERNANDEZ, Raimundo Cuesta. Sociogénesis de uma disciplina escolar: la historia. Barcelona: Pomares-Corredor, 1997. FREEMAN, Edward A. The methods of historical study. London: Macmillan, 1886.

HIGGINSON, Thomas Wentworth. Why do children dislike history? In: HALL, G. Stanley (org.). Methods of teaching history. Boston: Bin, Heath & Co., 1883. p. 205-207.

MARTÍN, Ignacio Peiró. Los guardianes de la historia: la historiografia académica de la Restauración. 2 ed. Zaragoza: institución “Fernando el Católico”, 2006. [Primeira edição – 1992]

MONTÉS, Rafael Valls. Historiografía escolar española: siglos XIX-XXI. Madrid: Uned, 2007. VELASCO, Maria Dolores. “Introducción” a la obra de Rafael Altamira: la huella de Espanã en America. Salamanca: Ediciones Universidad, 2007. VINCENT, John Martin. Historical research na outline of theory and practice. New York: Holt and Company, 1911.

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PENSAR HISTORICAMENTE EM CHARLES SEIGNOBOS

A

teoria da história da escola metódica foi construída em meio a eventos significativos da experiência nacional francesa: a instalação da III República e a Guerra contra a Alemanha. Sua publicação – e as demais estratégias empregadas no processo de instituição da história como matéria universitária – estão associadas, portanto, ao poder do Estado e identificadas com a ideia de Nação.1 Ambos representaram importantes desdobramentos como a criação da cadeira de “ciências auxiliares” e de um curso de “metodologia da história” para os futuros professores do ensino secundário da Sorbonne.2 Tal episteme foi condensada em vários textos, sendo o mais conhecido o Introdução aos estudos históricos [Introduction aux études historiques-1898], difundido em várias partes do mundo.3 O manual foi referenciado e copiado no Brasil por Afonso D’Escragnolle Taunay (1909) pouco mais de uma década após ser lançado na França.4

Documento marco da institucionalização universitária da história na França,5 a Introdução anuncia o status científico da história, delimitando uma área – em relação às letras e à filosofia e, depois, à sociologia – disseminando um método e estabelecendo uma nova função social para a recente ciência.6

Não é gratuito que os autores tenham sonegado uma definição clara da história-ciência já nos primeiros capítulos do seu trabalho sobre o método histórico. Os traços diferenciadores, entretanto, vão paulatinamente surgindo nas três partes do livro, fundamentados em postulados – baconianos e cartesianos – seculares em termos de busca pela verdade: as ideias de análise, síntese e de dúvida metó-

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dica. Tais princípios induzem o leitor a construir um sentido operacional: a história é uma ciência (autônoma), fundada em um método de observação indireta dos atos humanos, cujas etapas maiores são a heurística, a análise e a síntese.7

O primeiro deles, a heurística, é o conjunto de operações que viabilizam a organização das fontes. Ele se apropria dos conhecimentos auxiliares da filologia, epigrafia, paleografia e diplomática, entre outras. A análise, por sua vez, é a reconstituição de todos os atos da testemunha, entre a observação do fato e a escrita do documento. Mediante o trabalho de crítica – histórica – essa etapa do método depura as insuficiências e exageros do observador, frutos do impacto do acontecimento em sua mente. A síntese histórica, por fim, complementa as operações-macro do historiador, que imagina a realidade passada, agrupa os fatos imaginados, preenche lacunas por intermédio do raciocínio e condensa fatos para a extração de conceitos e de relações. Tanto esforço para reunir indícios, depurá-los, imaginar e supor fatos tem uma justificativa relevante para o seu tempo. O reconhecimento obtido pelo método histórico apura o senso crítico das pessoas, auxilia a compreensão das transformações sociais e as afasta das falsas explicações acerca da evolução da sociedade. Em uma frase: a história, assim produzida, liberta o homem do obscurantismo.

O principal mérito da história é o de ser um instrumento de cultura intelectual; e ela o é por várias razões: primeiro, porque a prática do método histórico de investigação, cujos princípios foram esboçados nesse livro, é salutar para o espírito, curando-o da credulidade ingênua; depois, porque – mostrando-nos grande número de sociedades diferentes – nos prepara para compreendermos e aceitarmos usos variados; finalmente, porque a experiência das evoluções passadas – fazendo-nos compreender o processo das

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transformações humanas, pelas modificações habituais e pela renovação das gerações – nos preserva da tentação de pretender explicar por analogias biológicas (seleção, luta pela existência, hereditariedade de hábitos etc.) a evolução das sociedades, que não se produz sob a ação das mesmas causas que agem na evolução animal.8

Este seria, então, o fundamento do método crítico, segundo o qual os noviços deveriam proceder. No cotidiano de um dos seus compendiadores – Charles Seignobos (1854-1942) – entretanto, a aplicação mostrou-se problemática.9 Como a prática historiadora significava também (e principalmente) produzir manuais e ministrar aulas de história no ensino secundário, a operacionalidade da episteme foi em parte modificada. A sequência prescrita – a partir de questões postas aos documentos, chegando depois às interpretações – foi substituída pelo estabelecimento dos fatos, ou seja, a progressiva interpretação, nascente do diálogo com as fontes, deu lugar à apresentação objetiva dos acontecimentos históricos ao leitor.10

Essa insuficiência, porém, não representa ruptura significativa entre a teoria da história e a didática da história professadas por Seignobos, como veremos a seguir, começando com a equivalência entre a ciência da história e a didática da história, no que diz respeito às funções sociais desse saber.

DIDÁTICA DA HISTÓRIA E CIDADANIA NO TRABALHO DE CHARLES SEIGNOBOS

Os indícios dos sentidos de didática da história estão também no manual referido. Mas, vamos priorizar a conferência proferida nove anos após a Introdução, cujo título já revela a sua posição – O ensino de história como instrumento de educação política [L’enseignment de l’histoire comme instrument d’éducation politique-1907]. Seignobos não faz rodeios. Aliás, é bastante didático, discorrendo mediante a

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apresentação de questões e respostas argumentadas, sintetizando em um único parágrafo, ao final, todas as teses que se propôs a defender.

A primeira questão11 – se a história pode servir à educação política – Seignobos responde positivamente, fornecendo o objeto e a finalidade da ciência da história: a história estuda os eventos dos homens que vivem em sociedade: “a história estuda a sucessão temporal para dar a conhecer os estados sucessivos das sociedades e, consequentemente, suas transformações.12 Em síntese: a história se ocupa dos eventos e dá a conhecer a mudança e a evolução social – no sentido de progresso.

A segunda questão – por qual mecanismo a história pode educar para a política – é respondida com a valorização do método crítico e a apropriação do conhecimento histórico, sobretudo, aquele resultante do emprego que os historiadores fazem dessa estratégia de investigação. Essas teses são desenvolvidas adiante. Por hora, basta reforçar a ideia de que “a história fará com que o aluno adquira as noções fundamentais de evento, transformação social e até mesmo, de evolução”.13 Ela também desenvolverá as habilidades que aperfeiçoam as capacidades críticas dos humanos. Aqui, implicitamente, Seignobos revela a razão de existir da ciência da história. É um esforço para separar a verdade do mito e do dogma, para desnaturalizar a vida, enfim, um instrumento de emancipação – de esclarecimento, no sentido kantiano.

A terceira pergunta – como a história deve se ensinada de modo a contribuir com a educação política – abre espaço para a apresentação de uma didática renovada, no início do século XX. Iniciemos com uma analogia para melhor compreender essa nova didática. Imaginem a vida como um fenômeno viabilizado pela língua nacional e, consequentemente, que a vida dos imaturos apenas seja possível mediante o domínio da estrutura dessa língua. Dizendo de outro modo, pensemos que o processo de socialização da criança requer o

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domínio sobre generalidades14 como “pai”, “casa” e “cidade”. De que modo os professores podem auxiliar aos alunos a se apropriarem de tais noções?

Seignobos propõe um critério de progressão: que o aluno caminhe do concreto para o abstrato, isto é, chegue um dia à compreensão de “pai”, ouvindo ou pronunciando um pai específico – “Pierre” – o pai do aluno. Daí, ele extrai a primeira conclusão: o ensino de história na escola primária é o instrumento que faz a criança adquirir as noções gerais que lhe permitem viver em sociedade, através das noções particulares com as quais ela convive proximamente – as únicas que seu equipamento mental permite entender no momento. O ensino de história se assemelha, então, ao ensino da língua: o professor apresenta exemplos – “casos únicos” [cas uniques] (a queda da Bastilha) – para que o aluno domine adiante a estrutura da língua, ou seja, a gramática – “casos típicos” [cas types] (revolução). Aqui, Seignobos revela a ideia de funcionamento do cérebro. Crianças recebem conhecimentos rudimentares em forma de imagens [images] que deixam impressões [impressions], de onde eles extraem, paulatinamente, algumas confusas noções [notions, inconscientes et confuses]. Aí entra o trabalho do professor. Se ele não age, tornando as ideias claras e conscientes [prendre conscience et à les éclaircir], as rudimentares noções se evaporaram das suas mentes [l’esprit].15 Contudo, o que é a vida (ou o processo de socialização) para Seignobos? Na conferência, vida é razão, sentimento e ação, operados de forma integrada. Neste trecho, está a sua noção de homem, que corresponde à costumeira tripartição da grande maioria dos filósofos antigos e modernos.

Apesar da tríade, vida é, sobretudo, ação na cena pública, ou seja, atividade política. Assim, os conhecimentos que o professor de história deve fazer chegar à mente dos alunos são atos do passado – casos únicos –, em um primeiro momento, e generalizações – casos típicos

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– que representam e, portanto, realizam a vida ao final: “povo”, “nação”, “Estado”, “governo”, “costume”, “lei”, “instituições”, “funcionários”, “serviços”, “atribuições”, “classes sociais” etc. E ele é taxativo: “[s]ão exatamente esses os fenômenos gerais da vida política. O ensino de história, deste modo, familiariza o aluno com as noções fundamentais da vida política”.16 Esses últimos, os elementos do vocabulário, o aluno deve dominar para identificar os “usos” e “sociedades” e classificá-los em suas diferenças, a exemplo de sociedade “democrática”, sociedade “aristocrática”, “absolutista” e “feudal”.17

Apresentar conhecimentos não encerra, entretanto, a tarefa da didática da história. É necessário conhecer e também transformar essas noções em outras noções e em situações cada vez mais complexas. Aqui entra, literalmente, o método da crítica histórica. Por ele, os professores são convidados a fazer desenvolver nos alunos as mesmas habilidades empregadas pelo historiador na produção do conhecimento histórico: observar, analisar, comparar e criticar. Tais habilidades, conjugadas ao conhecimento dos “casos únicos” fazem-no adquirir os “casos típicos”. Assim, por exemplo, exercitando a “observação” dos protagonistas da “Guerra dos Cem Anos” (caso único), o aluno adquirirá, por oposição dos interesses e dos protagonistas, a ideia de “reino da França” e de “reino da Inglaterra”, formando para a si a ideia de “Estado” (caso típico).

Sobre este ponto, penso serem necessárias as duas digressões a seguir. Em primeiro lugar, para melhor entendimento dessa situação, basta lembrar a distinção entre os sentidos de “conceito histórico” e “categoria” professados por Reinhart Koselleck.18 Vejam, em segundo lugar, que o sentido de político, aqui, não é restritivo, por exemplo, à assertiva weberiana de fazer valer a vontade de si sobre a vontade dos outros. O “político” de Seignobos figura como social, bem mais caro ao seu contemporâneo Émile Durkheim. Todavia, voltemos à análise da sua didática.

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O exercício das habilidades historiadoras também possibilita a aquisição de conceitos mais complexos e fundamentais à futura vida adulta. Se o mestre induzir o aluno a “comparar” a manifestação de “casos típicos” entre os povos e épocas distantes, “analisar” os usos sociais e “identificar” os traços distintivos, os alunos perceberão as diferenças e adquirirão a ideia de “diversidade” [diversité]. Da mesma forma, se ele estimular o aluno a ultrapassar o simples conhecimento do evento – ou de cadeias de eventos – e a buscar as consequências do mesmo – isto é, os eventos originados de um evento ou cadeia anteriormente observada –, o aprendiz adquirirá a ideia de “consequência” de eventos.

Adiante, esse mesmo professor poderá estimular o aluno a “comparar” não apenas os usos sociais de determinadas práticas, mas também as informações das narrativas e as intenções dos seus autores. Em um primeiro momento, pode pedir que compare fábulas e narrativas historiadoras, fazendo-o compreender que uns são “verdadeiros” e outros “lendários”, mas que, por diferenças culturais, estes últimos são aceitos como verdadeiros em determinados “povos”. Em outra oportunidade e, dependendo da estrutura cognitiva do aluno, o mestre estimulará a crítica entre duas narrativas historiadoras e o fará perceber e compreender que uma é “mais verdadeira que a outra”, levando-o à constatação de que “o testemunho direto é mais seguro que o obtido pelo ouvi dizer”.19

Esse esforço para transferir o método crítico ao ensino de história – ou para fixar a episteme da metódica no centro de uma nova didática da história – também resulta na produção de outro e último tipo de conteúdo: as predisposições / valores. O primeiro grupo tem origem no conhecimento do passado proporcionado pelo ensino de história. Se o aluno conhece bem os vínculos que unem os homens entre si – que revelam o funcionamento dos organismos sociais – ele passará a se interessar pela ação política:

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[o] homem que recebeu uma educação histórica se interessará facilmente pelo espetáculo da vida política. Ora, se ele está interessado, provavelmente, será tentado a tomar parte ativa da política. Em síntese, se o conhecimento interfere na ação, o estudo da vida política conduz as pessoas a participarem da vida política.20

O segundo grupo de predisposições tem origem no exercício das operações do método crítico. Seignobos afirma, inicialmente, que a história dá a conhecer os eventos, a mudança e a evolução social21 e, ainda, que o ensino de história é o “único” meio de fazer conhecer a mudança, as diferenças e a evolução social, quando amparado nas operações do método crítico – sobretudo na comparação. Mas, por que o conhecimento da mudança é tão importante para os franceses de 1907? Ele responde de forma contundente: o conhecimento do passado ajuda a combater a ideia de que os atos humanos são fruto de “forças naturais”, “de um espírito do povo” ou da “raça” e a rechaçar o desdobramento dessas ideias na conformação do “estado de espírito” das pessoas: a “resignação” que a maioria dos não instruídos manifesta, por exemplo, diante de “injustiças” e do “abuso do poder” na França.22

Nesse ponto, a epistemologia histórica – como antídoto – e as – perniciosas – visões de mundo estão declaradas: ele mostra-se contrário aos modelos de inteligibilidade de alguns historicistas alemães – não os nomeia – e de historiadores ingleses como Hipolite Taine. Seignobos está preocupado com a disseminação dessas formas de explicação da vida entre os jovens franceses. Aqui, novamente, explicita-se a sua lógica sobre a dinâmica mental: o conhecimento interfere no sentimento e este, em seguida, na ação. Em outras palavras, a desnaturalização do passado, empreendida pelo ensino de história, conduz ao conhecimento sobre a mudança e às diferentes velocidades sob as quais se processam as mudanças, configurando sentimentos e fornecendo procedimentos práticos, compatíveis para a vida em um mundo de “transformações rápidas”.23

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Tornando mais concreta a sequência lógica, Seignobos afirma que, ao conhecer os objetos de mudança rápida, o aluno adquire “confiança”. Da mesma forma, sabendo que determinado costume modifica-se lentamente, o aprendiz adquire o sentimento/valor de “prudência”. E continua: conhecendo as várias dimensões e ritmos de mudança, ele se “preserva de falsos diagnósticos”, da “crença no progresso contínuo” e da “teoria da ação decisiva dos grandes homens”. Ele descobre, finalmente, [...] a consciência do seu dever e a regra de sua atividade, que é a de ajudar a transformar a sociedade no sentido que seja mais vantajoso para ela. A história lhe ensina o procedimento mais eficaz, que é o diálogo com outros homens que conservam as mesmas intenções e trabalhar para mudar a opinião das pessoas, seja por meio da educação das novas gerações, seja pela propaganda entre os adultos [...].24

Está claro, portanto, o valor da história quando empregada na formação de pessoas. Em 1907, a história capacitava os alunos a viverem “em uma democracia representativa e laica”, isto é, a serem “todos” “eleitores”, “eleitos”, “funcionários”, e “dirigentes”, enfim, “futuros cidadãos” franceses. Como a história representava o “verdadeiro ensino cívico”, caberia, então, aos professores de história “a missão de fazer a instrução política dos futuros cidadãos”.25

CONCLUSÕES

Nosso objetivo, nesta última aula, foi apresentar algumas possibilidades de relacionamento entre método crítico e didática da história, ou melhor, de responder – como nos demais – o que é pensar historicamente, neste caso, na didática de Charles Seignobos. Cumprimos esta tarefa agora em algumas linhas: pensar historicamente para Seignobos é pensar politicamente e com precisão. Pensar politicamente com precisão é conhecer e articular o vocabulário do polí-

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tico, os valores fundantes da cidadania e as regras de erudição histórica. Pensar historicamente é adquirir categorias e sentimentos que lhe possibilitem agir dentro dos projetos da nascente III República francesa.

NOTAS 1 2 3 4 5

DOSSE, 1992, PROST, 1994, BOURDÉ e MARTIN, s.d DOSSE, 2013. TORSTENDAHL, 2003; ASSIS, 2009; PROST, 2008. FREITAS, 2006. As demais são: o “Manifesto”, publicado na Revue Historique (1876) – “Du progress des études historiques en France depuis le XXIE siècle” – por Gabriel Monod e Gustave Fagniez, e La méthode historique appliquée aux sciences sociales (1901), livro de Charles Seignobos. 6 NOIRIEL, 1990; NADER, 1994; REIS, 1999. 7 LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1992. 8 LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1992, p. 256-7. 9 GERARD, 1983. 10 PROST, 1994. 11 Por motivos didáticos, subverteremos a ordem original no que diz respeito aos argumentos e aos exemplos apresentados por Seignobos. 12 SEIGNOBOS, 1907, p. 3. 13 SEIGNOBOS, 1907, p. 14. 14 “Classes de palavra”, na língua francesa, “categorias”, na história etc. 15 SEIGNOBOS, 1907, p. 5. 16 SEIGNOBOS, 1907, p. 7. 17 SEIGNOBOS, 1907, p. 8. 18 KOSELLECK, 2006, p. 306-307. 19 SEIGNOBOS, 1907, p. 21. Grifos do autor. 20 SEIGNOBOS, 1907, p. 20. 21 A ideia de história e as etapas do método empregado – descrever as instituições (estabelecer os fatos) e explicar a mudança (interpretar) – que são também os principais procedimentos sugeridos por sua didática da história são anunciados já nos seus primeiros artigos (1881-1884) e em sua tese de doutorado (1882) que não tratam, especificamente, de ensino de história (PROST, 1994, p. 103, 112). Ver também comentários e transcrição de trechos de Conferência de Seignobos feitos pelo mesmo autor (PROST, 1984). 22 SEIGNOBOS, 1907, p. 15. 23 SEIGNOBOS, 1907, p. 15-17. 24 SEIGNOBOS, 1907, p. 20. 23 SEIGNOBOS, 1907, p. 23-24.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS E COMEÇO DE UMA NOVA EMPREITADA

E

stimulados pelo feedback de vocês a respeito das assertivas de Jörn Rüsen,1 grande teórico e bastante estudado nesta Universidade e, considerando os princípios do mesmo a respeito de teoria da história e didática da história, progresso, direitos humanos e cidadania (que nem foi necessário incluir no nosso programa), nos atrevemos a encerrar o curso traçando um paralelo entre a última proposta apresentada neste curso – a de Seignobos e a de Jörn Rüsen (a da metódica francesa e do historicismo renovado alemão) – no que diz respeito ao pensar historicamente e a formação para a cidadania.

Partindo desses parâmetros, podemos concluir que tanto a episteme da metódica, quanto a episteme do renovado historicismo alemão compreendem a ciência da história como auxiliar fundamental à formação cidadã. Os pressupostos e os resultados, entretanto, tomam caminhos diferenciados. Em primeiro lugar, a episteme da metódica, centrada no método crítico, entendia a ciência da história como antídoto à difusão pública dos modelos de explicação da mudança temporal ancorados em pressupostos metafísicos ou naturalizantes, fosse de origem religiosa, fosse de origem científica. A ciência da história, então, apresentaria uma explicação racional para a mudança, ou seja, daria a conhecer que há sentimentos, pensamentos e ações que mudam rapidamente e outros que mudam lentamente. Ao conhecer os diferentes padrões de mudança, os futuros atuantes na cena pública, os alunos da escolarização básica, seriam estimulados a viver racionalmente, ou seja, engajar-se em movimentos de mudança daquilo que fosse possível ser transformado em curto prazo e resignando-se ou conservando forças (portanto, compreendendo), diante da experiência, ainda que nociva, que fugisse ao seu controle.

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A episteme do novo historicismo alemão, por seu turno, expande a racionalidade da história para além do método crítico, lançando mão de um elemento metafísico e, de certa forma naturalizante: a ideia de que a humanidade está centrada no binômio agir/sofrer. Por esta concepção de vida, a ciência da história seria responsável pela revelação dos modos de constituição da consciência histórica (da existência) e estabeleceria uma tipologia de relação dos homens com o tempo, ou seja, entenderia a mudança não apenas em termos de duração – a exemplo da metódica – mas, (e) também, em termos de progressão. Dizendo de outro modo, Rüsen entende que há mudanças rápidas e quase permanentes. Mas é possível perceber que a mudança na experiência humana pode ter percorrido (ou, ainda, percorrer) uma trajetória de sofisticação – da exemplaridade quase invariante à alteridade, que é a convivência de diferentes novos estados de coisas, ou seja, de mudanças na contemporaneidade.

Sobre a didática da história, a metódica de Seignobos a compreende, inicialmente, como cópia do elemento de racionalidade histórica, o método crítico. Entretanto, tal instrumento de racionalidade é insuficiente para entender os, digamos, processos cognitivos dos imaturos. Daí ele ter lançado mão de experiências com o ensino da gramática, ou seja, dos processos de aquisição da linguagem: do substantivo próprio ao substantivo comum/abstrato/generalizante (dos fatos históricos singulares e irrepetíveis aos fatos típicos, comuns a várias gerações). Curiosamente, ao empregar esse recurso, o metódico extrapola as orientações acerca das singularidades do método crítico, adotando uma posição francamente favorável às iniciativas de generalização muito próximas ao que Durkheim e seus seguidores estão pregando como elemento de racionalidade para a ciência da história, nas décadas de 1890-1900 e que Marc Bloch empregará sem nenhum “pudor”, duas décadas adiante. (Isso para não falar do emprego da vulgata pedagógica – das escolas novas que circulavam no seu tempo)

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Na episteme de Rüsen, a didática da história também lança mão de uma vulgata circulante na segunda metade do século XX. Contudo, não sabemos se por um certo “imperialismo” da corporação de historiadores ou por desconhecimento do que circula nas áreas do currículo, por exemplo, ele cria uma teoria do desenvolvimento humano (as tipologias narrativas) que rechaça a contribuição educacional dominante no século XX no Ocidente, a teoria dos estágios cognitivos de Jean Piaget, submetendo a didática da história (campo de pesquisa ou conjunto de práticas de ensino e aprendizagem histórica) às noções de homem e de tempo, professadas em sua teoria. Enfim, para Rüsen, a didática da história pode (e deve) empregar conceitos e práticas de outras áreas do conhecimento, mas o seu fundamento é a teoria que explica a formação – e, simultaneamente, a dinâmica – da consciência histórica.

Quanto à função da ciência da história na formação das pessoas, ou seja, sobre a razão de a história figurar nos currículos, ambos convergem para a formação cidadã. Na metódica, todavia, cidadania significa conhecimento e prática dos direitos políticos em uma sociedade laica e democrática. No novo historicismo alemão, tal noção é ampliada, obviamente, devido à própria dinâmica social percebida ao longo do século XX. Cidadania, então, significa conhecimento e uso dos direitos políticos, mas também dos direitos sociais, se estendermos o sentido de direito à “propriedade” à participação dos cidadãos na distribuição da riqueza.

Outra diferença marcante, ainda fruto da dinâmica experimentada no século das catástrofes (o século XX), está no objeto perseguido por estas ideias de cidadania. Em Seignobos, é a cidadania nacional francesa. Em Rüsen, a cidadania transnacional (ou intercultural).

Apesar dessas diferenças, ambos concordam que o trabalho do professor de história deve pautar-se pelo engajamento nos processos de internalização dos direitos humanos como valores entre os

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alunos. Nas prescrições de Seignobos, o adequado conhecimento do passado (mediado pelo método crítico, sobretudo pelo hábito da dúvida metódica), determina o sentimento do aluno e, consequentemente, a ação. Nas sugestões de Rüsen, o conteúdo básico do ensino de história para a cidadania não é tanto o hábito de depurar os acontecimentos (de conhecer o passado ao modo do historiador) ou reter os próprios acontecimentos. Contudo, e sem desprezar esse princípio, Rüsen sugere a atenção do professor à historicização de categorias históricas (abstrações) de “igualdade”, “liberdade” e “propriedade” e, imediatamente, a transformação dessas categorias em valores.

Deste modo, a sequência lógica e mecânica de Seignobos – de (1) conhecimento de fatos à (2) formação de sentimentos (inculcação dos direitos) e, destes, ao (3) impulso à ação – é transmutada em (1) interiorização progressiva do direito com valor e, adiante, (2) uso simultâneo desse valor nos processos de constituição de sentido, isto é, da requisição da “consciência moral” em todas as operações da “consciência histórica”: valor-rememoração, valor-interpretação e valor-tomada de decisão na vida prática.

Além dessas similitudes, por fim, é importante registrar que Seignobos e Rüsen entendem os estágios atingidos (respectivamente, nas décadas de 80 dos séculos XIX e XX) pela teoria da história, didática da história e cidadania como os níveis mais sofisticados da reflexão sobre a existência em seus respectivos tempos vividos. Numa palavra: Seignobos e Rüsen acreditam que a experiência socialista democrática do novo republicanismo francês e a experiência social democrata alemã são índices de sofisticação humana, explicados pela ideia de progresso, que também abriga uma ideia de finalidade para a vida: preservar a humanidade. E o fazem empregando o exame do passado o que significa dizer: não desprezando a exemplaridade do mesmo. Entretanto, a exemplo dos canônicos difusores da empresa do progressista, Kant e Condorcet,2 Seignobos e Rüsen ma-

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nipulam o passado de forma diferente – discussão que, infelizmente, foge ao escopo desse curso. O primeiro delega aos historiadores a competência de escolher os “exemplos”. O segundo reconhece diferentes exemplaridades (usos do passado) e sugere que os sujeitos comuns sejam capacitados a estabelecer os seus próprios filtros.

Esperamos que esse ensaio comparativo entre duas epistemologias que circulam no Brasil, entre os teóricos da história e os didatas da história, possa contribuir para a reflexão sobre as possibilidades ou as limitações de se extrair racionalidades para a ciência da história e/ou de se estabelecer uma função para a história em meio escolar. E se não ficou muito claro no desenvolvimento ou nessa conclusão, gostaríamos de encerrar enfatizando duas certezas. A primeira: não é possível discutir honestamente questões que envolvem o ensino de história – fins, estratégias, aprendizagem etc. – desconhecendo o universo das teorias da história (aqui entendidas como lugares de reflexão do campo sobre si mesmo). A segunda, talvez apocalíptica, configura-se na seguinte afirmação: somente é possível pensar na permanência do ensino da história na esfera pública hoje, lançando mão de uma noção de homem (isso implica em aceitarmos algumas estratégias da filosofia especulativa, discutir universalidade e singularidade etc.) e mantendo os vínculos, ainda que bastante críticos, com as apostas iluministas.

Evidentemente, não requisitamos para essa aula a originalidade das sentenças. Outros estudos já chegaram a idênticas conclusões, como o recente trabalho de Arthur Assis Alfaix (2014) sobre Gustav Droysen. No entanto, chamamos a atenção para a necessidade de expandirmos as investigações acerca do referido trinômio (teoria da história/didática da história/cidadania) às obras de outros autores, inclusive brasileiros, que em algum momento tenham tentado estabelecer relação entre os referidos termos. Em algum lugar das suas obras, provavelmente, um José Honório Rodrigues, um Francisco Iglésias, um Manoel Bomfim, uma Emília Viotti da Costa (como reiterada-

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mente declara Margarida Oliveira), deve ter se pronunciado a respeito e formulado assertivas semelhantes às que apresentamos neste texto.

Quais os desdobramentos dessas assertivas? Caso concordem com os nossos pressupostos e afirmações, certamente estarão inclinados a concluir, conosco, que tal situação nos transmite, no mínimo, a segurança temporária de que a pesquisa transnacional, interdisciplinar e diacrônica das ideias e práticas dos teóricos da história pode revelar alguns consensos acerca de questões sobre os usos escolares da história, liberando-nos para resolver outros desafios mais urgentes, cujas soluções estão ao nosso alcance, tal como indiretamente propôs o francês Charles Seignobos ao ilustrar a exemplaridade (ou pragmatismo?) dos usos do passado.

NOTAS 1 RÜSEN, 2001; 2004; 2010; 2012a; 2012b; 2012c. 2 A mesma ilustração que desprezou a experiência dos antigos como ordenadora da vida presente sob os direitos humanos (CONDORCET, 1993) também aconselhou o uso da História para “prever futuras modificações dentro dos Estados” (KANT, 1995, p. 40).

REFERÊNCIAS ASSIS, Arthur Alfaix. What is history for? Johann Gustav Droysen and the functions of historiography. New York: Berghahn, 2014.

CONDORCET, J.-A.-N. C. Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Campinas: Editora da Unicamp, 1993

KANT, I. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. In: GARDNER, P. Teorias da história. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. p. 28-41

OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. O direito ao passado: uma discussão necessária à formação do profissional de história. São Cristóvão: Editora da UFS, 2011. [Texto original da tese de doutorado defendida em 2004].

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RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teorias da história – os fundamentos da ciência histórica: Brasília: Editora da UnB, 2001.

SEIGNOBOS, Charles. L’enseignement de l’histoire: conferences de Musee Pedagogique (1907). Paris: Imprimerie Nationale, 1907.

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