CRIANCAS DE RUA ROMPENDO CÍRCULOS: Trajectóricas de um processo educativo libertador

July 14, 2017 | Autor: Sabine Cárdenas | Categoría: Critical Pedagogy, Street Children, Childhood studies, Childrens Rights
Share Embed


Descripción

CRIANÇAS DE RUA ROMPENDO CÍRCULOS:

Trajectórias de um processo educativo libertador

1

SABINE CÁRDENAS BOUDEY (TRADUÇÃO POR SARA ESCALHÃO GOMES)

1 Tesis realizada para obtener el grado de Maestría en Ciencias de la Educación, Instituto Superior de Investigación y Docencia para el Magisterio, Zapopan, Jalisco, México, 2008. (Registrada con el código 1573, con Clave de Centro de Trabajo 14ESUOO10Q).

1

A MUDANÇA PASSA PRIMEIRO PELA POSSIBILIDADE DE SER IMAGINADA,

DEPOIS

POR

SE

LHE

FINALMENTE, SER ACCIONADA.

2

DAR

UM

NOME,

PARA

Índice Apresentação ______________________________________________________ 4 1. Introdução _____________________________________________________ 9 2. Os protagonistas dos relatos ______________________________________ 16 3. Vida Familiar __________________________________________________ 24 4. Transição e adaptação à rua ______________________________________ 36 5. Transição para um novo espaço social de vida: a instituição _____________ 61 6. Transição para a terceira fase (Casa Grande) do Programa MAMA A.C.: o prelúdio de uma nova vida ________________________________________ 92 7. Da periferia para o centro: construção de um novo projecto de vida _______ 104 8. As partidas: transição para a vida independente ______________________ 148 9. Coordenadas para traçar um modelo explicativo da mudança de vida nas crianças de rua _______________________________________________ 165 10. As descobertas e suas implicações nas políticas de cuidados da infância callejera _____________________________________________________ 194 11. Conclusões __________________________________________________ 202

3

Apresentação O trabalho que o leitor tem nas mãos é uma amostra da profundidade de conhecimento que se pode alcançar sobre um fenómeno social a que se denomina normalmente “crianças de rua”, traduzido nas trajectórias de vida de três seres humanos que, num contexto social e temporal específico, entram em contacto com outros seres humanos, enquadrados estes últimos numa instituição. O resultado deste encontro e, sem dúvida, desta interacção humana é-nos revelado ao longo do texto, expondo as dificuldades, as recaídas, os erros cometidos no desenvolvimento de um programa, os altibaixos do mesmo e o seu impacto nos protagonistas, as limitações. Mas também revela os êxitos que se traduzem em resultados de sucesso já que se conseguem tirar da rua, apesar de o destino predizer o contrário, e por isso mesmo, seres valiosos cujo sinuoso caminho nos é relatado com uma eloquente reconstrução na primeira pessoa, produto da etnografia clássica, de uma narrativa imaginativa e da análise sociológica.

Várias e valiosas são as contribuições deste trabalho. Uma delas é o seguimento e reconstrução da trajectória de vida dos protagonistas, conseguida de maneira próxima, afectiva e, por si mesma, esclarecedora.

Sem a proximidade da autora e a ligação afectiva - categoria ainda estranha no vocabulário científico - não teria sido possível o acesso, recuperação, aplicação, reconstrução e sistematização de dados que pudessem ser transpostos para o texto, o qual analisa um processo complexo, no qual o percurso da trajectória de vida individual de três seres humanos consegue agrupar e identificar os elementos comuns, identificando assim trajectórias de vida, marcando as etapas que a compõem e que é expresso de maneira didáctica em quadros e gráficos, resultado de um esforço sintético bem sucedido. Assim, desta forma, conseguem-se criar

4

modelos explicativos que também nos permitem conhecer os programas de cuidados implementados (ou que outros implementam).

O trabalho mostra que ciência, conhecimento e afecto não se contradizem e, neste caso, parecem ser condição necessária para conseguir a aproximação etnográfica e a profundidade obtida, para dar lugar depois à sistematização e explicação compreensiva que se alcança como resultado. Por esta razão, o trabalho é original ao reflectir a atitude do profissionalismo carinhoso que a sua autora promove e pratica, sem perder rigor académico.

Ao longo do texto explica-se um processo central que normalmente permanece como a caixa negra do que sucede entre a entrada de crianças no ambiente institucional e a saída dos mesmos, isto é, a vivência e os efeitos da sua passagem por um espaço social. Esclarecem-se os processos de transformação subjectiva e as suas formas objectivadas; como interagem os fios da intersubjectividade que, no final, resultam em pessoas bem sucedidas.

Os altibaixos (sucesso, fracassos, recaídas, frustrações, retrocessos) que se expõem nas ditas trajectórias evidenciam que se trata de uma reconstrução que não pretende ocultar os obstáculos que surgem no trabalho institucional, o qual permite identificar pontos problemáticos, de ruptura, de “fuga” desta população na sua relação com a instituição, mediada pelos mairos ou educadores de rua. Isto, por si mesmo, é um tributo à complexidade do trabalho com crianças que foram violentadas – das mais diversas maneiras e repetidamente – em tão tenra idade.

Outra das contribuições consiste em que a autora se esforçou por, para além de descrever o processo, identificar etapas de maneira fundamentada. Relativamente a isto, pode-se salientar a virtude de dar voz aos protagonistas, ao que se juntam documentos institucionais que se apresentam para fundamentar os seus argumentos como parte de uma rica prova etnográfica, mostrando-nos a coragem, raiva, temores, afectos, alegrias, etc. Isto é, a verbalização de uma interacção 5

viva. Quem como nós trabalha com uma população semelhante, reconhece muitos dos argumentos destas crianças que se transformam em adolescentes, jovens e adultos numa relação conflituosa – mas, afinal, de sucesso - com educadores num enquadramento institucional. O programa, mas sobretudo o vínculo afectivo criança-educador, é condição sem a qual não se vislumbra como seria possível uma transformação bem sucedida.

Outro contributo é a relação que se estabelece entre a filosofia, as características e etapas do programa com a trajectória dos três casos apresentados. Desta maneira, a autora mostra-nos precisamente algo que é extremamente raro encontrar na literatura sobre o tema: a correspondência – ou não - entre um programa, os seus pressupostos, as suas diversas etapas e como as crianças e educadores se envolvem neles. Este contributo representa um exercício didáctico para todos os programas que queiram analisar seriamente a relação, doutrinaprograma-sujeitos beneficiados, mediados, claro, pelo mairo ou educador.

É um trabalho que mostra a interdependência entre o social, o individual, o colectivo e o institucional, mostrando a complexidade de um fenómeno que, regra geral, é tratado de maneira mais simples, centrando-se nas crianças de rua, como se estas se criassem a si mesmas e/ou fossem produto de geração espontânea. Além disso, ajuda-nos a compreender os elementos psíquicos e afectivos que desempenham um papel fundamental na abordagem a esta população.

A informação aqui contida dá-nos muitos elementos para entender a lógica da cultura de rua dos seus protagonistas.

O texto mostra-nos que o trabalho quotidiano para tirar uma criança da rua implica desenvolver todo um processo desde o curto até ao médio e longo prazo, extremamente complexo, ainda que aqui seja apresentado, como raras vezes se vê por escrito. Por isso, é um convite a que outros mairos e/ou educadores sociais e pessoas que têm contacto permanente com estas crianças, recolham, escrevam 6

e partilhem as suas valiosas experiências para que se vá mostrando a diversidade de abordagens, problemas enfrentados, sucessos alcançados, estratégias empregadas.

É, além disso, um trabalho que não esconde uma pequena quantidade de dados de campo com uma enorme sucessão de conceitos teórico-metodológicos. Pelo contrário, mostra o enorme trabalho empírico sistematizado e o grande esforço para tornar menos complexo um fenómeno social da maior complexidade.

Constrói, para além disso, uma espécie de física social que permite entender a relação criança-família-rua-educador-instituição-sociedade, em várias das suas combinações, mas para lá de atitudes mecânicas, simplistas, dando conta de uma dinâmica ou dialéctica que nos mostra o que acontece no mundo da rua e no mundo das instituições. Visto assim, este trabalho, de facto, contribui para romper círculos.

Mostra-nos, diríamos de outra maneira, a partir de três casos particulares, os limites e possibilidades de sucesso da acção sobre a estrutura.

Pela sua particularidade, este trabalho, narrado de maneira exaustiva e profunda, contribui para a generalidade dos processos do fenómeno que aborda. Significa mais um avanço na acumulação de massa crítica sobre um fragmento da complexidade que é o conhecimento da população infantil de rua, os seus actores e o seu contexto social.

Pelo dito acima, o conteúdo do trabalho representa uma base sólida de comparação, que nos permite aplicar as conclusões de um processo particular noutros processos, noutros espaços particulares e com eles entender melhor os ditos processos, o que por sua vez, permitirá identificar melhor falhas, obstáculos e potencialidades, tanto em instituições como em pessoas, relativamente, claro, ao campo de cuidados à população de rua. Mostra-nos não apenas uma parte bem 7

sucedida de MAMA, mas também nos revela os complexos processos de reconstrução e transformação humana. Ao mesmo tempo, dá-nos provas de que a mudança é possível, que a esperança se concretiza, se realiza.

Finalmente, é um contributo substantivo (e de enorme potencial) para o conhecimento, a reflexão e a melhoria de acções e processos dirigidos à população infantil mais vulnerável o nosso contexto social.

Ricardo Fletes Corona Primavera de 2009

8

1.

Introdução

1.1 ANTECEDENTES 1.2 PROJECTO DE INVESTIGAÇÃO 1.3 JUSTIFICAÇÃO 1.4 ELEMENTOS TEÓRICOS METODOLÓGICOS

Crianças de Rua Rompendo Círculos é uma pesquisa do mais puro tipo arqueológico que examina as profundidades da história. A pesquisa que se faz ao longo deste trabalho, nas histórias de três jovens que viveram na rua, saíram dela e construíram um projecto de vida alternativo, revela significativos vestígios do processo de mudança pelo qual passaram os três protagonistas.

1.1 ANTECEDENTES Ao longo da minha trajectória como educadora de rua tive muitas dúvidas relativamente à minha própria prática educativa. O que é que de tudo o que faço (fazemos) é importante para a mudança de vida das crianças? Esta pergunta acompanhou-me durante muito tempo e a tese de mestrado foi uma oportunidade para tentar encontrar algumas respostas.

Na instituição onde trabalhei durante onze anos os indicadores corroboram que muitas das crianças que passaram pelo programa (não existem números precisos) saíram da rua, livraram-se dos hábitos negativos aí adquiridos e construíram um projecto de vida alternativo. Os processos de avaliação (do processo, do impacto, avaliações internas e externas) confirmam isto mesmo.

9

No entanto, estes dados dão-nos uma apreciação valorativa dos resultados de um processo que não conseguimos compreender na sua totalidade. É indiscutível que muitas destas crianças transformaram as suas condições de vida. Muitos deles conseguiram romper o círculo, tornaram-se pais ou mães que oferecem aos seus filhos uma vida significativamente diferente, mais rica afectiva e materialmente falando, relativamente à que os seus pais lhes deram na sua infância. No entanto, ainda não estamos em condições de explicar como ocorre este processo e quais são os “ingredientes” imprescindíveis.

Como é que ocorre a mudança de vida? Como é que a criança consegue desligarse da rua? O que é que permite que a criança se afilie a um programa ou instituição? O que é que o faz lá permanecer? Qual é o papel do programa ou da instituição neste processo? Que aspectos da nossa prática são significativos no processo de mudança e na construção de um novo projecto de vida?

Estas e muitas outras perguntas perdidas no quotidiano do trabalho educativo, foram as raízes do projecto de investigação que de seguida apresento.

1.2 PROJECTO DE INVESTIGAÇÃO O propósito deste trabalho é analisar a dinâmica de socialização de três jovens que estiveram na MAMA AC., através da reconstrução das suas trajectórias de vida para mostrar como ocorre o processo de mudança pelo qual estes jovens saíram da rua e construíram um projecto de vida alternativo.

Objectivos particulares: ●

Descrever como se desenvolve o processo de mudança (socialização-resocialização) pelo qual as crianças saem da rua e constroem um projecto de vida alternativo a esta.



Identificar as coordenadas para construir um modelo explicativo do processo de mudança nestas crianças

10

Objectivos específicos: ●

Definir as etapas por que passa o processo de mudança



Identificar os factores ou variáveis que intervieram no processo de mudança em cada uma das etapas e como interagem entre si

Pressupostos iniciais ●

O processo de socialização orientado pela mudança de vida depende da combinação de factores externos, isto é, do contexto do indivíduo, e de factores internos ao indivíduo



A participação das crianças na instituição foi um aspecto crucial para o processo de socialização ser bem sucedido



A socialização ocorre mediante um processo descontínuo – não linear -, o seu motor é a contradição e a forma como estas se resolvem está relacionada com a possibilidade de mudança.



As experiências determinantes e significativas para o processo de libertação do mundo da rua e a construção de um projecto de vida alternativo estão relacionadas com: -

o vínculo criança e educador(a)

-

as relações entre pares

-

a participação e o sentimento de pertença

-

os conteúdos do processo educativo

-

as formas de organização comunitária

1.3 JUSTIFICAÇÃO 1.3.1 Posição pessoal relativamente ao estudo do fenómeno das crianças de rua Intervir na realidade social sem reconhecer a sua complexidade, é como querer curar um cancro sem saber como funciona o organismo humano ou querer atravessar o mar sem compreender o sistema de correntes e as lógicas do clima. As consequências seriam fatais em ambos os casos. Um exemplo muito preocupante disto são as intervenções de carácter assistencialista que se fazem 11

nas populações de meninos e meninas em situação de rua, ainda muito comuns no nosso país2.

O modelo assistencial procura remediar as circunstâncias imediatas destas crianças ignorando as causas que geram o fenómeno, evidenciando a ausência de conhecimento acerca da realidade e dos processos humanos envolvidos na mudança de vida. Esta aproximação opera sob a lógica da satisfação de necessidades (refiro-me àquelas que nos olhos de quem intervém são necessidades), sendo o discurso argumentativo que a sustém o seguinte: Se tem fome então tem que se lhe dar de comer; se não tem casa, há que levá-lo para um albergue, etc. Esta lógica de pensamento ignora que os meninos e meninas que estão na rua têm uma cultura própria a qual implica uma maneira particular de ver e de entender o mundo, da qual nascem desejos, necessidades e motivações que nem sempre coincidem com as da instituição, a qual lhes impõe a sua visão e a sua lógica, esperando que a realidade se adapte às crianças.

As intervenções assistencialistas geraram uma relação utilitária na qual o mundo dos adultos – representado pelas instituições meramente assistenciais - e o das crianças, adolescentes e jovens que vivem na rua se afastam cada vez mais: os adultos vão à rua oferecer serviços às crianças e as crianças procuram a maneira de tirar o máximo proveito do que lhes é oferecido, de maneira que as instituições passam a ser mais um recurso para sobreviver na rua. Em consequência, as crianças estabelecem-se mais comodamente na rua e as instituições constroem um discurso deprimente. Ambos os mundos se afastam e geram um círculo vicioso que afasta também a possibilidade real de transformar a vida destas crianças.

Para analisar a realidade há que começar por conhecer a realidade. Por isso, gerar conhecimento acerca de como se origina, mantém, evolui e transforma a realidade das crianças de rua é uma questão fundamental para se fazerem 2 N.T. México

12

políticas públicas e se desenvolverem estratégias, modelos e programas destinados à infância, já que dele depende a possibilidade de se tomarem decisões racionais e eficientes para transformar as condições de vida da infância mais marginalizada deste país e prevenir situações extremas como a da presença de meninos e meninas a viver na rua e garantir os seus direitos.

Visto isto, é necessário assinalar que o estudo da realidade social requer um tratamento que permita analisá-la com a complexidade que a caracteriza. Disto depende o potencial explicativo da sua análise, para nela intervir. Isto é, tem que se tomar em conta a multiplicidade de variáveis que intervêm, a sua multidimensão, trabalhando simultaneamente na análise das dimensões gerais e particulares da realidade que vão desde as estruturas económicas, políticas e sociais, até às dinâmicas de se criar uma criança e o seu próprio mundo interior

Por tudo o acima, decidi trabalhar com três casos que demonstram o processo de mudança de vida de rua para um projecto de vida alternativo e recuperar as suas trajectórias de vida uma vez que estas guardam as provas e vestígios da vida social traduzida e cristalizada na história de pessoas concretas.

Esta é a visão que está por detrás do presente trabalho, o qual pretende, sem esquecer as suas limitações, que são muitas e diversas, contribuir para o conhecimento da realidade do fenómeno a partir da sua complexidade, tendo em vista sempre a utilidade social e prática do conhecimento gerado.

1.3.2 Como surge o objecto de estudo Na América Latina e no México em particular, há mais de 20 anos de experiência a desenvolver programas que procuram a saída das crianças da rua e a transformação das suas condições objectivas e subjectivas de vida. Contudo, a atenção centrou-se nos resultados das intervenções e deixou-se de lado o estudo dos processos a partir dos quais se originaram tais resultados.

13

A maioria das investigações debruçam-se sobre o processo de saída do lar e na adaptação à rua, deixando de lado o processo de saída da rua. A pouca informação que se tem sobre os processos que se desenvolvem assim que a criança deixa de viver na rua resulta do exercício de sistematização da prática que geralmente se centra na pedagogia e na metodologia de trabalho. Mas, por outro lado, as experiências das crianças, a sua perspectiva relativamente ao processo que experimentaram, não têm sido exploradas.

Compreender como é que as crianças se desvinculam da família e se vinculam à rua, é tão importante como compreender como é que se desvinculam da rua e se re-vinculam a uma opção que lhes permita construir um projecto de vida diferente à que a rua lhes “oferecia”. O estudo da saída das crianças para a rua permite-nos identificar como é que se tecem as circunstâncias que culminam com a saída da criança para a rua e a adopção desta como o seu espaço social de vida. No entanto, o retrato do fenómeno não está completo se não compreendermos como reverter tais circunstâncias e tecê-las num sentido positivo que gere condições que evitem a sua saída para a rua e promovam, quando vivam nela, a sua saída dela.

O valor das conclusões do trabalho radica no seu potencial explicativo do processo de mudança e a contribuição de novos elementos para ampliar a sua compreensão.

Concluindo, esta investigação dá elementos para: ● Conhecer e compreender um tema muito pouco estudado, reconhecendo a complexidade da sua natureza ● Romper com as visões lineares, simplistas e limitadas a respeito do fenómeno ● Abrir novas vertentes de investigação para aprofundar o conhecimento desta realidade

14

● Reforçar algumas coordenadas para elaborar um modelo explicativo do processo de socialização orientado para a mudança de vida das crianças de rua

Tudo isto, insisto, com a finalidade prática de oferecer conhecimento que contribua para a tomada de decisões e o desenvolvimento de programas cada vez mais eficazes para prevenir, cuidar e transformar as condições de vida das crianças mais desfavorecidos deste país. 1.4 ELEMENTOS TEÓRICO METODOLÓGICOS Para a análise recorreu-se à teoria da construção da realidade de Berger e Luckmann, assim como autores como Freire, Giroux e Mclaren e suas obras: Pedagogia do oprimido, A vida nas Escolas e Teoria e resistência na educação, os três pertencentes à actual sócio-crítica da educação.

Os conceitos mais recorrentes ao longo da análise foram: vínculo, sentimento de pertença, confiança, afectividade, processo, mudança e contradição. Estes reflectem os elementos principais da dinâmica de mudança que se explica em profundidade no último capítulo: Coordenadas para traçar um modelo explicativo da mudança de vida nas crianças de rua.

Para desenhar a estratégia metodológica recorreu-se a três coordenadas: a orientação qualitativa, o estudo de casos e o método biográfico.

O processo de análise das entrevistas foi feito por tentativa e erro graças ao qual, no processo de escrever e reescrever, se foi formando a lógica a seguir para fazer emergir dos textos os acontecimentos recorrentes, as semelhanças e diferenças entre cada uma das trajectórias.

15

2.

Os protagonistas dos relatos

2.1 RAMIRO 2.2 CAMILO 2.3 OSCAR

Neste capítulo são apresentados os três protagonistas deste trabalho. Em cada um dos caso começa-se por uma descrição que nasce do que cada relato me levou a reflectir a respeito das suas personalidades, seguido de uma breve descrição de dados relevantes para dar uma imagem do momento e do lugar onde nasceram. Por fim, descrevem-se as circunstâncias em que cada um se encontra actualmente.

Ainda que estes jovens, considerados como bem sucedidos pela instituição, não tenham logrado sair da pobreza, uma vez que muitos deles vivem o dia-a-dia com dificuldades económicas e se sustentam com muito esforço, são homens “livres da droga”, vivem em melhores condições materiais das que os rodearam na sua infância e os seus filhos não nasceram na rua; transformaram-se em pais que proporcionam aos seus filhos uma vida significativamente diferente, mais rica afectiva e materialmente falando, relativamente à que os seus pais lhes deram nas suas infâncias. Este grupo, a que se chamou “a geração da esperança”, teve os seus primeiros contactos com MAMA (antes CANICA) em 1986, aproximadamente, e esteve na instituição no período entre 1988 a 1996.

16

Camilo, Óscar e Ramiro3, os três jovens que saíram de MAMA AC e que colaboraram nesta investigação, têm em comum terem vivido na rua nos finais dos anos 80, terem ultrapassado o passado e estarem a construir, cada um à sua maneira, um destino diferente do que a rua lhes tinha prometido.

Saíram para a rua ainda criança, quando ainda frequentavam a instrução primária, entre os 6 e os 12 anos. Ainda que nenhum se lembre exactamente com que idade se tornou independente das figuras adultas da sua família, algumas evocações do passado ajudam-nos a identificar a idade aproximada. Ramiro, com a idade de 6 anos já permanecia a maior parte do seu tempo na rua, Óscar aos oito fugiu pela primeira vez de casa e Camilo aos 11 anos abandonou a casa materna definitivamente. Nos três casos o laço familiar tinha-se quebrado. Viveram na rua entre 2 a 3 anos – aos quais se adicionam os períodos intercalados durante a transição entre o espaço institucional e a rua. A droga, o roubo, a mendicidade e a violência estiveram presentes nas suas histórias. Durante a década de noventa viveram na Casa Grande do Programa MAMA AC. e quando de lá saíram decidiram começar o caminho para a vida independente.

2.1 RAMIRO

Quando pequeno era traquina, sempre a brincar, podíamos encontrá-lo no meio de um charco a saltitar de alegria para fazer salpicar a água. Nisso não mudou: continua a ser um homem cheio de energia e ainda agora lhe custa muito permanecer quieto por muito tempo.

De início acha que as suas memórias começam quando passa a viver na rua, mas lentamente surgem outras sobre anos anteriores da sua vida. Difícil tarefa, a de contar a vida, ordenar tal quantidade de experiências de uma maneira cronológica para que sejam coerentes. 3 O nome dos entrevistados foi alterado para manter a confidencialidade das suas identidades

17

Ramiro não foi um menino triste nem o é agora em adulto. O seu corpo forte reflecte uma armadura psíquica que o protege desses demónios. A alegria é a sua característica particular. É possível imaginar alguém a contar com grande entusiasmo as suas experiências de viver na rua? Ele é essa pessoa, aquele que pinta com luz as passagens que na nossa imaginação só poderiam ser pintadas em tons de cinzento.

Era um menino extrovertido e é-o agora também, quando adulto. Os seus olhos olham para o exterior e para o presente. Não se lamenta sobre o que já passou e também não fica incomodado ao explicar o passado e o presente. A única coisa que consegue transportá-lo para uma zona de incerteza é o amor pela sua família e o enorme desejo de os fazer felizes.

Grande conversador, evoca com entusiasmo os momentos da sua infância que reconstruiu com facilidade e que através dos seus gestos e pelo tom da sua voz parecem materializar-se na mesa da entrevista.

Quer ir-se embora em breve, diz constantemente, mas no fundo gosta de lembrar velhas histórias. A cassette da entrevista acaba mas a conversa continua um pouco mais, até que toma consciência disso, vê as horas e tem que ir.

Vem de uma família monoparental formada pela sua mãe e três filhos: a filha mais velha, a irmã dois anos mais velha que ele, seguida de Ramiro e por último o seu irmão mais novo. Depois da separação dos pais a mãe teve mais quatro filhos de duas relações. O pai também teve outros filhos, mas Ramiro não os conhece, não sabe quantos são e refere-se a eles como “os filhos do meu pai”.

O pai vendia gelados e a mãe e a irmã mais velha trabalhavam no campo, na apanha de tomate, cebola, morangos, o que estivesse na estação. Tem actualmente 31 anos, é casado e pai de 4 filhos. Estudou no ensino secundário, mas não concluiu os estudos. Trabalhou como engraxador de 18

sapatos, na construção civil e desde 2001 trabalha como educador de crianças em situação de rua: … E para o futuro... sonhas com mais coisas? De momento, com o futuro não, porque agora, estou muito envolvido na educação dos meus filhos, não é? Para mim não tenho nenhuma necessidade. Agora essa é a minha missão... o meu destino está guiado pelos meus filhos, não pela minha pessoa. (...) Mas o mais importante é que têm o seu pai...e têm a sua mãe (...) estamos com eles e agarramonos a que pelo menos pedem-me alguma coisa e eu procuro a maneira, não é? Às vezes não é novo mas pelo menos que a tenham, que o sintam nas mãos.

2.2 CAMILO

O relato de Camilo é feito de reflexões e experiências destruidoras e reflecte a complexidade íntima que os acontecimentos do mundo geraram nele.

Ao longo da entrevista demoramos tempo para ouvir em detalhe alguns temas que parecem interessar-lhe mais do que outros: a relação com a sua mãe, a trajectória dos seus vazios que o catapultam para novos capítulos da sua vida, as ausências da instituição MAMA, a droga. Recupera alguns detalhes que simbolizam os enormes vazios materiais e afectivos da sua vida: as coisas, a roupa, um prato, uma carta, um abraço... Temas aos quais regressa várias vezes de maneiras diferentes. Trá-los para o centro da conversa, tira-os do contexto para falar deles com mais pormenor e causa problemas à investigadora que em vão tenta manter a história, na medida do possível, dentro da lógica da cronologia.

Os factos em si mesmos parecem não lhe interessar, mas coloca no centro da sua história aquilo que os factos significaram para si, analisa as suas ideias, que parecem o eco de longas e velhas reflexões. Se não o conhecesse podia pensar que é uma pessoa que pensa muito, mas como o conheço posso afirmá-lo. Ainda que tenha apenas 30 anos, a sua maneira de “contar” parece a de uma pessoa que viveu mais experiências do que as que podem caber nestes anos. Parece reticente em contar tudo, talvez esteja cansado ou aborrecido, ou talvez tenha esquecido. Talvez por isso, parte da história de Camilo seja uma viagem 19

num balão de ar quente, que nos leva “lá a cima”, planando pela sua geografia, sem se deter para poder olhar.

Em alguns momentos da história, quem sabe por quê, diminui o ar quente para que o balão desça, torna-se numa terceira pessoa, abre a porta de par em par e leva-nos ao interior de um enredo mais íntimo, que se desencadeia paralelamente aos acontecimentos mais tangíveis, um enredo que deixa ver de que é e como é feita a história deste personagem.

Camilo nasceu em Guadalajara em 1973. A sua mãe teve-o aos 39 anos e foi filho único. Viveu a sua infância num bairro central e tradicional da cidade, onde os seus pais se conheceram, ainda que ele nunca o tenha conhecido.

A mãe de Ramiro figura como uma personagem central na sua vida. Associa-a a muitas das experiências tristes e dolorosas da sua infância, assim como à pessoa que lhe ensinou princípios e valores significativos para a sua vida, tais como falar sem dizer asneiras e ser honesto. Era comerciante, dedicava-se a fazer doces e amendoins com açúcar para os vender na rua. Recorda-a como uma mulher muito trabalhadora, que durante cerca de 35 anos vendeu os seus produtos na mesma esquina. Era muito estimada pela comunidade local, convidavam-na para festas, colaborava na preparação da comida em casamento e aniversário dos seus vizinhos e ocasionalmente tomava conta da casa de um vizinho que tivesse ido viajar.

Actualmente Camilo tem 33 anos, terminou o ensino secundário, está casado e tem um filho. Desde 2000 que se juntou a MAMA AC como educador. No passado trabalhou no restaurante de um grande amigo seu. O seu projecto para o futuro é entrar neste campo e ter a sua própria empresa. No entanto, no seu discurso, sobressai a vocação de educador: (…) depois de 7 anos, 6 como educador, continuo a enganar-me muito, a dar erros grandes, a meter o pé na poça. Continuo a ser às vezes ingénuo, mas tenho uma grande

20

capacidade para aprender com os erros. Acho que como educador cada dia se vive uma experiência nova. As crianças têm sempre necessidades diferentes, mais dificuldades, lidas com novos problemas característicos da idade de cada criança, depois da adolescência que são bem grandes (…) a ideia é um dia ter a experiência necessária acumulada para errar menos e te enganares menos e poderes dar-lhes mais.

2.3 OSCAR

Da entrevista surge a imagem de um menino, um adolescente, um jovem, alguém que está eternamente à procura. Procura um lar e um futuro, um sonho…

Contar a sua história foi difícil. Atrevo-me a dizer que foi irritante. Descobriu que é uma soma de momentos muitas vezes não relacionados entre si, e esquece a lógica que o levou de um para o outro. Que má memória tenho! exclamou mais de uma vez no decurso da entrevista.

Oscar é um pouco filósofo e um pouco psicólogo. Ao longo da sua narração deixanos ver as suas reflexões mais profundas, a sua maneira de explicar a si mesmo o que foi, o que é e o que quer vir a ser.

A sua vida não foi fácil. Desde muito pequeno soube que faltava uma peça importante do seu puzzle pessoal, a qual foi a impulsionadora da sua procura.

Sempre soube do que não gostava: de ter fome, ser espancado, estar só, sujo. E quando começou a perceber que havia uma forma de vida diferente, soube imediatamente o que queria para si.

O rumo da sua vida transformou-se drasticamente: Oscar desejou, lutou e alcançou muito do que na sua adolescência era apenas um sonho. Mas o percurso não foi fácil, teve espinhos e muros altos de medo e velhas tristezas.

21

Oscar caiu, destruiu tudo o que tinha construído, e por momentos perdeu o rumo. Mas imediatamente retomou as rédeas soltas e pouco a pouco a sua vida voltou a organizar-se para alcançar os seus sonhos.

Família, estudos, profissão, procura interior e outros são agora os objectivos que o guiam através da sua procura incansável e com eles tece e faz avançar a sua história.

Oscar nasceu na cidade de Guadalajara em 1980. É o mais velho de 5 meiosirmãos: “todos filhos de pais diferentes”. Conheceu o seu pai há apenas quatro anos. A sua primeira infância foi passada numa vecindad4 com a mãe e “a senhora” com quem a mãe vivia. Mais tarde a família aumentou com a chegada das suas irmãs. Tem uma relação mais próxima com as duas irmãs que lhe seguiram: tem 2 anos de diferença da primeira e quatro da segunda. Praticamente não conhece as duas irmãs mais pequenas, uma vez que nasceram quando já não vivia com a mãe.

Quando criança nunca soube em que é que a mãe trabalhava, mas percebia que as amabilidades que alguns homens tinham para com ele e para com a irmã, estavam relacionadas com a relação que havia entre a mãe e aqueles homens.

Tem agora 26 anos, é solteiro, vive com duas das irmãs, trabalhou como professor do ensino preparatório, fala inglês e está a terminar os seus estudos universitários. Sonha como muitos em formar uma família, mas nesta etapa da sua vida o seu interesse centra-se essencialmente no trabalho: Olha... os meus objectivos até que termine a universidade é fazer este curso para poder dar aulas de inglês, terminar o meu curso, a minha tese e acho que me vou embora do país. Quer dizer, queria estudar francês, queria estudar mais isto, mas acho que já não NT- Vecinidad é uma forma de habitação comum no México que pode surgir da divisão de unidades habitacionais maiores ou de construção de raiz. Estas habitações são arrendadas às camadas da população mais pobres. São compostas normalmente por um número reduzido de divisões, sendo comum que a cozinha e casa de banho sejam partilhadas 4

22

estou para isso. Queria começar a trabalhar e começar a produzir, a ter experiência profissional e assim.

23

3.

Vida Familiar

3.1 SITUAÇÃO ECONÓMICA 3.2 CONDIÇÕES ESPACIAIS 3.3 ESTRUTURA FAMILIAR 3.4 VIDA QUOTIDIANA DAS CRIANÇAS 3.5 REPERCUSSÕES NAS CRIANÇAS 3.6 SÍNTESE

“Nunca foi a minha casa e quase não foi a minha família”

Nesta primeira parte recolhem-se as pistas para aquilo que nos levará a explicar mais à frente como Ramiro, Camilo e Oscar escaparam da prisão da rua e se incorporaram num espaço familiar substituto.

Os primeiros anos de vida com as suas famílias são cruciais para compreender as necessidades, motivações e significados que conduziram os três protagonistas destas histórias a fugir do lar, viver na rua e ingressarem mais tarde num lar substituto.

É nesta etapa da primeira infância que a criança interioriza uma série de esquemas, aprendidos principalmente na família e no seu contexto social imediato - socialização primária -5, a partir dos quais constrói uma imagem determinada do seu mundo. O desenvolvimento da auto-confiança em sim mesmo e no seu 5 Berger, Peter; L. Luckmann,Thomas. La construcción social de la realidad. Amorrortu, Buenos Aires, 2003, p.169.

24

ambiente6 depende do tipo de interiorizações. De seguida analisam-se as circunstâncias da primeira infância de Ramiro, Camilo e Oscar. Veremos como o tecido de circunstâncias sócio-económicas e familiares desenvolvem em cada entrevistado uma série de elementos de identidade, afectivos e motivacionais semelhantes, que os afectam de tal maneira, que mais tarde desencadearão o abandono do lar materno e orientarão as suas vidas numa direcção muito diferente da criança comum.

A etapa da vida familiar dos relatos das suas vidas decorre entre 1975 e 1980. Um deles na cidade de Zamora, Michoacán, e os demais em Guadalajara, Jalisco.

3.1 SITUAÇÃO ECONÓMICA

São três famílias formadas paralelamente no tempo, constituídas a partir de situações individuais distintas, mas que no entanto têm entre sim uma estreita e significativa relação ao serem analisadas a partir dos seus contextos socioeconómicos e das práticas que de aí ocorrem.

As três famílias situam-se num contexto de pobreza e de pobreza extrema. São lares encabeçados por mulheres que desempenhavam o papel de mãe, pai e ganha-pão. Ramiro: (...) pelo que me dizia a minha mãe, o meu pai vendia uma espécie de gelado num cone grande. Era disso que vivia o meu pai. E a minha mãe trabalhava no campo, na apanha de tomate, cebola, morangos, o que estivesse na estação. O que havia na estação, era o que apanhava. Camilo: A minha mãe era comerciante. Toda a sua vida foi comerciante. Vendia frutas cristalizadas, depois vendia amendoins com açúcar, não é. Essas coisas todas. Ela fazia-os. (...) a minha mãe parava de vender lá para as 6 ou 7 (da tarde). Logo a seguir ia com ela abastecer de mercadoria. Ou também era costume ir à adega onde comprava a sua garrafa, que ia a beber pela rua. Oscar: E o que fazia a tua mãe, ou seja a que é que ela se dedicava? Eric Erikson introduziu a base teórica das teorias do apego, o conceito de confiança básica a partir do qual se define uma forma de relação-vinculação da pessoa e o mundo que a rodeia. 6

25

Não, não sabia... Saíam as duas... pois... saíam as duas e regressavam, pois... ao mesmo tempo. Acho que... a outra senhora dizia que era advogada, saía com uma maleta preta e dizia que era advogada. Pois... lembro-me que a minha mãe ia com um senhor, um sapateiro ali por...no jardim Alcalde. Se nos portávamos bem dava-nos dinheiro. E lembrome que saía com outro senhor que vendia brinquedos e nos dava brinquedos. Que fazia ela para que nos desse os brinquedos? Quem sabe, mas...

3.2 CONDIÇÕES ESPACIAIS DA HABITAÇÃO As três famílias viviam em vecindades, numa casa composta por uma divisão que servia de sala de estar, sala de jantar, cozinha e quarto. Ramiro: (...) lembro-me da minha casa. Era uma casa que era tudo ao mesmo tempo, que era cozinha, sala de jantar e quarto. Era tudo junto. Uma divisão só. E era numa vecindad de quinze casas pequenas, quinze quartos Camilo: Sim, mudei constantemente de casas, de quartos que nos alugavam, pois… nunca chegámos a ter… pois, nunca chegámos a ter fogão, não é? Quer dizer, a nossa comida era muito rudimentar, não é? Comíamos muitas vezes na rua, muitas vezes cozinhava… quer dizer, a minha mãe cozinhava com carvão ou com álcool. Então era assim muito, quero dizer, comidas muito simples, não é? Se bem que às vezes comíamos muito na rua. Oscar: (...) à entrada havia uma, assim um... como que um tipo de floreira, uma arvorezinha, assim logo à porta de entrada..., mmm e depois era a sala do lado direito e depois era a cama onde dormiam a minha mãe e a outra senhora e depois era a cozinha e o pátio..., mmm à esquerda, de onde estava a cama e da porta para a cozinha para a esquerda, estava um quartinho que era onde dormíamos nós. Se era um quarto?.... não, não exactamente, não havia quarto. Não, era antes onde dormíamos, nuns cobertores...

Os dados parecem confirmar a visão estereotipada das famílias que vivem na pobreza e em condições de superlotação.

3.3 ESTRUTURA FAMILIAR

Nos três casos há uma ausência da figura paterna. Ramiro Quando nasceu o meu terceiro irmão (...) o meu pai foi-se embora de casa com a outra senhora porque ao mesmo tempo que nasceu o meu irmão, o terceiro, o meu pai teve outro com outra mulher. No mesmo dia também teve o outro filho. Então o meu pai foi-se embora com outra senhora. Camilo: (...) era o rapaz bonito das redondezas. Então faz de conta que nós vivíamos aqui e a quatro casas daqui vivia ele com outra senhora, com outra mulher. E na esquina havia outra mulher. E nas traseiras havia outra mulher. Não sei bem, ou seja, não tenho ideia, não me lembro. Mas lembro-me que uma vez por acaso me disse a minha mãe: „olha,

26

aquele senhor é o teu pai‟. Lembro-me mais dos meus meios-irmãos, do meu avô. Sim lembro-me dele.

Oscar nunca mencionou o seu pai ao longo da entrevista. Numa ocasião ao tocar neste tema respondeu: “se te tinha falado dele ou não?”, comentou só que tinha conhecido o seu pai há dois anos atrás. Tabela 1 Estrutura familiar

Entrevistado Ramiro Camilo Oscar

Lugar que ocupa na família 2° 1° 1°

Adultos Mãe Mãe Mãe /Amiga

Irmãos

Irmãs

Pai

3 0

2 0

* *

2

2

*

Ramiro e Oscar só conviveram com alguns dos seus irmãos, os mais próximos deles em termos de idade. Com os restantes, que nasceram depois da sua saída de casa, nunca conviveram: Ramiro: Eu era o segundo, o segundo de três. E o segundo de 6. E tenho três meios-irmãos, quatro meios-irmãos diferentes, dois de um dos meus pais e dois do outro. E os meus outros irmãos são três. Oscar: Eu convivi com dois, só com dois não com uma... ou seja, somos cinco, somos todos meios-irmãos... eh... de diferentes pais. Mas eu convivi só com duas. Ou seja, aos outros dois não... Não sei muito... ou seja não os conheço… pois.

As mães passavam grande parte do dia fora de casa, a trabalhar. Por isso implementaram uma série de estratégias que lhes permitiu o sustento económico, a realização das tarefas domésticas normais e cuidar dos filhos.

No caso de Ramiro e Oscar, as mães saíam para trabalhar e deixavam-nos fechados durante muitas horas no quarto pequeno da vecindad onde viviam: Ramiro: A minha mãe levava a minha irmã mais velha, que é dois anos mais velha que eu com ela para trabalhar. Mas como eu saía de casa e os deixava e os fechava, a minha mãe decidiu pôr cadeados em tudo: janelas, portas… e deixava-me fechado todo o dia.

27

Oscar: Elas iam-se embora mas deixavam-nos fechados todo o dia. E depois regressavam [ao meio-dia]. Saíam lá para as duas e meia e só regressavam por volta das oito da noite. Lembro-me que tínhamos muita fome. Eu era muito mau. Mandava as minhas irmãs ir à fruta e como havia árvores dos lados (podiam apanhá-la se subissem ao terraço).

No caso de Camilo, a mãe levava-o consigo e nunca o deixava afastar-se dela: (...) eu estava ali ao lado na banca. Era uma vida muito aborrecida, muito aborrecida, no sentido em que via a rua mas não tinha a liberdade para atravessar a rua. A minha mãe tinha-me sempre debaixo de olho, controlado. Não me deixava andar com ninguém, não tinha amigos. Tinha muito poucos amigos.

Ramiro e Oscar eram responsáveis pelas tarefas do lar desde tenra idade. Tinham que manter a casa limpa, cuidar dos seus irmãos e preparar a comida. Ramiro: A minha mãe levava a minha irmã mais velha, que é dois anos mais velha do que eu, com ela para trabalhar. Então eu ficava encarregado dos meus dois irmãos mais pequenos e fazia-lhes de comer e dava-lhes de comer e tudo aos dois. Mas como saía de casa e os deixava e os fechava, então a minha mãe decidiu pôr cadeados em tudo Oscar: E tinhas deveres lá na tua casa, para além do teu trabalho? Trabalhar, limpar a casa. [...]

A Camilo cabia, para além disso, uma tarefa dolorosa que não tinha nada a ver com as tarefas domésticas: cuidava da sua mãe que era alcoólica: […] era uma mulher de beber. Bebia e por isso eu tinha pena, não é? Tinha bastante pena. Tinha muita pena. […] Por exemplo, a minha mãe estragava as festas e assim. Às vezes chegou a ficar caída numa esquina, bêbeda, urinada. Era assim. Às vezes ia buscar-me à escola ou ao trabalho e era inconveniente […] Mmm acho que sim, que tratava dela, pois… estava com ela, ficava ao lado dela, abraçava-a. Mas também acho que houve uma altura em que me fartei daquilo tudo.

Nos dois casos, face à necessidade de saírem para ir trabalhar as mães delegaram o cuidado dos filhos e as tarefas domésticas nos filhos mais velhos, que tinham que manter a casa limpa, preparar a comida e cuidar dos mais novos, ao mesmo tempo que ficavam fechados em casa. Esta situação expunha as crianças a constantes censuras e pancada, uma vez que eram incapazes, devido à sua idade, de cumprir as exigências maternas (não tinham mais do que 9 anos): Ramiro: [...] Ralhava muito, muito, muito: „Fica aqui! Não saias daqui!

28

Camilo: Era assim, pois… só com um olhar e já se sabia o que se tinha que fazer ou o que estava mal. Mmm… bom, era uma mulher muito dura. Nos primeiros anos fui sempre muito sossegado. Se protestava, sabia que não tinha muita chance não é? Tenho frases que me marcaram muito, não? Se é verde é porque é verde e se é encarnado é porque é encarnado. Não… e acho que estávamos, digo, lembrávamo-nos o Ricardo e eu, das frases malditas, não é? (...): ‟não serves p‟ra nada‟, „Ai inútil‟. Já mais tarde era imune aos murros. E lembro-me que isso a arreliava mais. Agarrava-me e eu ria-me, porque os murros já não me faziam nada. Não sei porquê, mas havia alguma coisa que me fazia rir. E era o medo, os nervos, não? […] há uma cena, pois, onde de repente, ouve, um… a minha mãe estava-me a bater e eu de repente sinto um ataque de raiva, e não sei… assim de repente, pois… que quando me estava a bater me safei, me safei e a deitei ao chão. Então foi uma cena bem feia, não? Oscar: Não, a minha mãe não. Quem nos castigava era a outra senhora.... a minha mãe nunca nos bateu, mas também não nos defendia... então, não sei… era assim quase todos os dias. Batia-nos, mais a mim que à minha irmã.... Pois...não sei. Lembro-me que tinha um mealheiro e às vezes tirávamos-lhe dinheiro e a mim queimavam-se-me as mãos. Deitavame a culpa. Ou cometíamos um erro, ou qualquer coisa... Às vezes mandava-me… chegou a mandar-me muitas vezes à loja assim sem calções, só em cuecas.

Estamos perante uma situação na qual “as vigas que servem para proteger também criam barreiras que desvinculam”7. As estratégias utilizadas pelas mães, baseadas em critérios autoritários, repressivos e violentos, geraram um vínculo entre elas e os seus filhos em que a característica fundamental é a pobreza afectiva. Por outro lado, estes padrões de relação estabelecidos entre a criança e a mãe ao longo do processo de socialização primária8 constituem a matéria-prima para a construção das estruturas que lhes serviram para se relacionarem com os outros e com o mundo.

3.4 VIDA QUOTIDIANA DAS CRIANÇAS

Os três foram à escola primária. Camilo foi mesmo ao jardim infantil e ainda que

7 Fletes, Ricardo. Conversa directa, 2007. 8 Etapa na qual a criança não interioriza o mundo como o único que existe e que pode conceber. Com a linguagem, e por seu intermédio, diversos esquemas motivacionais e interpretativos interiorizam-se como foram definidos institucionalmente. (...) Estes esquemas proporcionam à criança programas institucionalizados para a vida quotidiana; alguns que aprendem pela aplicação imediata e outros que antecipam o seu comportamento socialmente definido para etapas biográficas posteriores (Berger L. Peter, Luckmann Thomas. La construcción social de la realidad. Amorrortu, Argentina, 2003, 169.

29

no final da primária passasse a maior parte do tempo fora de casa, conseguiu acabar este ciclo. Ramiro: Estive 6 meses na escola pela primeira vez aos 6 anos. Então… pois… é o mesmo, não? Não estava quieto na escola, não ia a metade das aulas, no recreio não brincava muito. Por isso a minha mãe tirou-me da escola e disse-me: „não serve de nada que eu te leve para tu te baldares‟ Camilo: Pois e lembro-me de muitos anos na creche. Não sei quantos. Estava na creche a um quarteirão de onde a minha mãe vendia. Então, pois… antes de entrar oficialmente na creche, já me levava à creche, não é, como aluno. Oscar: Sim, se íamos à escola, de noite [...] lembro-me que me mandavam a mim e à minha irmã lá pelas 9 da noite e passávamos por uma garagem de automóveis e diziam-nos que éramos namorados: „eh… os namorados‟. E eu dizia: „ah! calem-se, somos irmãos!‟.

Ramiro nunca pôde permanecer na escola e pouco depois de ter entrado a mãe tirou-o definitivamente da escola. Pelo contrário, Camilo e Oscar eram bons estudantes, tinham boas notas e portavam-se bem.

Por outro lado, a rua, os arredores da sua casa, o bairro e mesmo um pouco mais para além, não lhes eram estranhos. Brincavam e trabalhavam lá, o que lhes permitiu ir explorando o ambiente imediatamente próximo ao lar e ampliar as suas fronteiras progressivamente.

Quanto ao trabalho, Ramiro não trabalhou até que saiu da casa materna. Camilo e Oscar já tinham trabalhado. Camilo acompanhava a sua mãe a vender diversos produtos numa esquina perto da sua casa e quando cresceu começou a trabalhar por sua conta, vendendo pastilhas elásticas, jornais e cantando nas camionetas. Oscar trabalhava a vender panos humedecidos com solvente que eram utilizadas para os aquecedores: [...] aos 8 anos mandava-me vender. Vendia, assim...combustíveis. Como se chamam? ... fazia bolsas com serradura, deitava-lhes gasolina para os esquentadores e depois vendia... Ela fazia-as, a senhora? Ela fazia-as, eu vendia-as e depois mandava-me o dia todo também a apanhar garrafas... tinha que regressar com $5 senão ia-se a mim...

Estas experiências permitiram-lhe desenvolver estratégias para sobreviver na rua, assim como certos vínculos que mais tarde lhes permitiriam tecer uma rede de 30

apoio social.

3.5 REPERCUSSÕES NAS CRIANÇAS

3.5.1 A pobreza afectiva Este contexto feito da ausência de afecto e excesso de repreensões resultou em três vidas com um grande número de necessidades não respondidas. No entanto, estas não parecem ser necessidades de carácter material: casa, roupa, comida, etc. Veremos também mais à frente como Ramiro ficou feliz com a sua primeira saída do lar, tendo ido viver para uma lixeira, na sua própria casa feita de lixo, ao lado de adultos que tomaram conta dele, o protegiam e lhe ensinavam a difícil arte de viver no meio do lixo.

Tratam-se antes de necessidades de natureza diferente, das quais depende o desenvolvimento da confiança básica da criança no mundo e a construção de uma imagem positiva de si mesmo9. Trata-se de um vínculo que é alimentado emocionalmente.

A pobreza afectiva na primeira infância dos entrevistados parece ter sido uma variável significativa na saída do lar. Inés Cornejo Portugal, na sua investigação sobre as causas da saída do lar, defende esta mesma ideia. Conclui que os padrões das crianças baseados numa comunicação violenta caracterizada pelos maus-tratos e pela agressão física, assim como as relações entre as crianças e as figuras adultas estruturadas nas obrigações que as crianças têm de cumprir “sem que o afecto tenha mediado as referidas obrigações”10, são causas de peso para a saída do lar. 9 O conceito de si mesmo é influenciado por um conjunto de interacções sociais que marcaram a história pessoal do indivíduo. É constituído por imagens que se tem de si mesmo quando se reconstrói os dados da própria experiência social. Reconstrói-se em relação aos diferentes contextos (família, amigos, escola, trabalho) mas também em relação a um mundo imaginário ou desejado que às vezes substitui o mundo social real. (Luchinni Ricardo. Niño de la calle Op. Cit. p.15) 10 Cornejo Portugal Inés. Los hijos del asfalto. Op. Cit. p.32

31

Em síntese, estes três jovens, que viraram costas aos seus lares, foram criados nos seus primeiros anos de vida em contextos muito violentos. Trata-se da violência que nasce da ausência ou omissão, da insatisfação e portanto da negação de necessidades fundamentais, especificamente as relacionadas com o afectivo, para o desenvolvimento pleno.

Aqui, e para não cair em explicações simplistas, é necessário salientar que o acto de negação não pode ser explicado a partir de leituras lineares, que ignorem a complexidade do fenómeno, baseadas em argumentos tão gerais como a causa para as crianças saírem de casa ser a “desintegração familiar” ou “a violência intra-familiar”.

Os relatos mostram-nos que as circunstâncias da vida familiar estão estreitamente ligadas ao contexto social. Trata-se de uma negação histórica e por isso transgeracional, isto é, que se transferiu de pais para filhos. As mães dos protagonistas foram mulheres criadas em contextos de pobreza e de falta de oportunidade, em ambientes familiares autoritários e repressivos, carentes de afectividade, cenários que elas repetiram relativamente aos seus próprios filhos, sobrevivendo sozinhas através de estratégias que requeriam diariamente um enorme esforço e o consequente enfraquecimento dos laços com os filhos. 3.5.2 Identidade11 baseada em imagens negativas de si mesmo Vimos como as práticas de cuidados às crianças se destacam por uma pobreza afectiva que afecta profundamente a formação da identidade dos entrevistados.

11 O conceito de identidade define o que um indivíduo é, aquilo que o diferencia do resto das pessoas e pelo

qual pode ser identificado. Constitui-se a partir da biografia pessoal que se origina através da participação em diversos grupos e a partir dos papéis que se desempenham neles. A partir destas interacções formam-se determinadas imagens ou ideias sobre si mesmo: “entre o que as pessoas dizem e o que eu observo de mim mesmo”. A identidade produz-se assim pela interacção do indivíduo com os outros. De acordo com Luchinni a construção da identidade produz um desejo de se ser “visto positivamente pelos outros, de se ser apreciado”.

32

De acordo com o estudo realizado por Inés Portugal, a criança, ao ser repreendida repetidamente, “não serves p‟ra nada”, e não podendo realizar as expectativas da mãe, constrói e sedimenta uma imagem negativa de si mesmo baseada na ideia que não merece ser querido: Os menores sentem-se desamparados e culpados por não serem objecto do amor da mãe. Vários expressaram que na realidade mereciam o que lhes tinha acontecido – abandono ou saída do lar – porque eram traquinas, desastrados ou porque não faziam bem e rapidamente os recados que os mandavam fazer. Talvez seja essa a justificação que lhes 12 permite entender o não se ser amado .

Este elemento da imagem negativa de si mesmo parece ter um papel preponderante ao longo das trajectórias. Mais à frente será retomado para analisar como é que a sua identidade se vai reconfigurando sucessivamente por espaços sociais diferentes.

3.5.3 Fraco sentimento de se pertencer à família Vimos como os entrevistados cresceram no meio de uma experiência de pobreza afectiva, sem serem reconhecidos como pessoas de valor e importantes no grupo familiar. Pelo contrário, de acordo com o que contam, eram crianças problemáticas.

Estas circunstâncias tendem a enfraquecer o vínculo com a família. Luchinni explica que os episódios contínuos de violência da mãe relativamente à criança desencadeiam um fraco ou inexistente sentimento de se pertencer à família: “Quando a criança não consegue identificar o que representa para a sua mãe, sai mais facilmente para a rua”.

Por outro lado, pensando na lógica do grupo familiar, o que faz a criança permanecer em casa é a presença e a procura de afecto, a sensação de protecção e segurança, a interdependência, lealdade e solidariedade entre os seus membros. Mas quando isto não está presente e as crianças vêm bloqueadas as possibilidades de satisfazerem as suas necessidades no grupo familiar, tendem 12 Cornejo Portugal Inés. Op. Cit.

33

a abandoná-lo e a irem à procura de um novo espaço13.

3.5.4 O desejo de mudança e de liberdade É interessante recordar que desde muito pequenos os nossos entrevistados criaram fantasias de uma vida melhor.

Ramiro recorda a sua vida na lixeira livre dos encargos que lhe impunha a sua mãe: Não, não havia regras. Como a sua casa era de pára-quedas, de cartão, ali viviam ali vivíamos, ali cada um tinha o seu quarto. Acho que foi disso que gostei mais porque quando estive em casa vi isso, que em minha casa tínhamos que partilhar onde nos deitávamos, a responsabilidade de estar ali, na casa a fazer a comida, o estar fechado, o estar a minha mãe a gritar por uma coisa qualquer, então eu dizia eh pá, não! Lá não me gritavam, lá não me fechavam, lá não me ralhavam. Qualquer altura era boa para sair e ficar pelo menos dois dias fora de casa. E outras vezes regressava…

Camilo conta uma história muito evocadora deste desejo: Pois… lembro-me que a minha mãe me assustava. Pois, quando víamos algum vagabundo, a minha mãe dizia-me, pois, que ia acabar assim, que aquele senhor me ia levar. E eu dizia ah bom! Encantado da vida, que me leve! […] Dizia, pois… é que… „Está livre!‟ Não? Dizia eu, „está livre‟. Que mal pode ter… não é, que mal pode ter? Digo eu, pior do que tenho vivido, não acredito […] Então, de repente, começo a observar e como que se me começa a despertar um certo interesse por essa vida, fácil, fácil e tranquila, despreocupada que eu via.

No caso de Oscar o desejo era muito claro: uma família, um lugar seguro e onde fosse querido. Estes elementos que

encontramos em

comum:

factores identificadores,

sentimento de pertença à família fracos e o desejo de mudança e liberdade, tiveram um papel importante na saída do lar assim como nas decisões futuras que os levaram a juntarem-se ao espaço educativo de MAMA AC.

3.6 SÍNTESE

Na tabela seguinte apresenta-se uma síntese dos factores analisados ao longo 13 Rizzini Irene (Coord.). Vida nas ruas, crianças e adolescentes nas ruas: Trajectorias inevitaveis. PUC Río, Río de Janeiro, 2003, p.25

34

deste capítulo. Esquema 1 Impacto do contexto social/familiar

CONTEXTO SOCIO-FAMILIAR

Pobreza, marginalidade, falta de oportunidades

DINÂMICA

FAMILIAR

ESTRATÉGIAS PARA CUIDAR DAS CRIANÇAS: Mãe ausente a maior parte do dia. Crianças fechadas. Delegação de responsabilidades excessivas nas crianças

A rua como um espaço de socialização importante PRÁCTICAS DE CUIDAR DAS CRIANÇAS: Verticais Autoritárias Violentas Sobrelotação familiar Mães com poucos recursos emocionais para os cuidados das crianças

Ausência de figuras adultas a quem se vincular emocional e afectivamente

DISPOSIÇÕES INDIVIDUAIS

Vazio afectivo

Impossibilidade de desenvolver uma identidade a partir de parâmetros positivos dado o tipo de vínculo com a mãe

Desenvolvimento de um vínculo fraco (sentimento de pertencer) relativamente à família

Procura de figuras adultas e espaços substitutos da família

Estes factores permitem concluir que as causas da saída do lar se encontram na situação de abandono e o vazio afectivo que este representa para a criança. A partir disto, os entrevistados começaram a imaginar a possibilidade de ter outra mãe, outra família, outro lugar onde viverem.

35

4.

Transição e adaptação à rua

14

4.1 CRÓNICA DE UMA FUGA SEM REGRESSO 4.2 O ENIGMA DA SAÍDA 4.3 DA RUA FIZEMOS O NOSSO LAR 4.4 O PARADOXO DA MUDANÇA: MAIS VALE MAL CONHECIDO DO QUE BOM POR CONHECER? 4.5 CONCLUSÃO

Neste capítulo apresenta-se a crónica da saída do lar e analisa-se este processo a partir das etapas que a originam, assim como os motivos que lhe subjazem. Posteriormente, descreve-se e analisa-se a fase de adaptação à vida de rua em dois momentos: a chegada ao espaço social onde as três histórias coincidem (no mesmo lugar ainda que em alturas diferentes) e a adaptação ao mesmo.

O interesse em analisar esta etapa é identificar o que compõe e desperta a necessidade de mudança, e o impacto na criança da busca empreendida fora do lar15.

14 Rua: Espaço urbano dividido e por vezes marcado territorialmente pelas “crianças de rua”. É um lugar que

lhes dá algum sentido de pertença e reconhecimento pelos outros (vendedores ambulantes, polícia, outras “crianças de rua”, instituições. No referido espaço marcam rotas quotidianas que constróiem quando circulam como nómadas pela cidade, o que gera neles uma particular visão do mundo ou cultura de rua (Cornejo Portugal Inés. Los hijos del asfalto. Una prospección cualitativa a los niños de la rua. Convergencia Mayo-agosto 1999, No. 19, Universidad Iberoamericana, México, 1999, p. 211. extraído da internet, no dia 10 de Novembro de 2004: redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/105/10501910.pdf 15 Para mais informação sobre o processo de saída para a rua, pode ler Ricardo Luchinni.

36

4.1 CRÓNICA DE UMA FUGA SEM REGRESSO “Fartei-me. E foi quando comecei a procurar, quando comecei a fugir daquela realidade que me estava a chatear e que estava a acabar comigo. E era um inferno repetitivo, repetitivo, repetitivo.”

4.1.1 A saída de Ramiro (5-7 anos) A primeira saída de Ramiro começou por um encontro casual. Estava na rua e umas pessoas, ao verem-no sozinho e tão pequeno, pensaram que estava perdido, tentaram perceber de onde ele era, se tinha casa, mas ele permaneceu calado: [...] viram-me na rua e convidaram-me: „vem para aqui e para ali. E que aqui há comida e que sabes que mais e que ninguém te vai fazer mal [...]. Tratavam-me como se estivesse perdido. Diziam-me „e de onde és?‟ E não sabia. „E onde vives?‟ Ainda menos. E assim como que tomaram conta de mim.

Tratava-se de uma família que recolhia e vendia material reciclável. Levaram-no para viver com eles numa lixeira. Aí Ramiro construiu a sua própria casa, ao lado da da sua família adoptiva. Fê-la de material reciclado da lixeira. Recorda com grande emoção que era um lugar sem regras, onde tinha um espaço seu que não partilhava com ninguém, ao contrário da sua casa onde tudo era para todos. Desta experiência só tem boas recordações: tinha o seu próprio quarto, tinha a liberdade necessária, mas não estava só. Sabia que a sua família adoptiva tomava conta dele e o protegia, e aprendeu algumas estratégias para sobreviver fora de sua casa: “Pessoalmente foi bom porque me ajudou a conhecer assim… melhor, ajudou-me a saber como me alimentar. […] Quer dizer, aprende-se a comer pássaros, a escolher lixo”.

Mais tarde Ramiro encontrou-se com a sua mãe: Não, de facto quando encontrei a minha mãe foi por acaso. Cheguei a um mercado que se chamava Carmen e daí desse mercado são 5, não 8 quarteirões de onde vivíamos antes. Então por acaso chegámos a esse mercado, saí do camião e vi a minha mãe lá ao longe. Eu vi-a e disse „ai!‟ e ela não me via e eu se: „É ou não é?‟ Até que se voltou e me disse: „Anda cá!‟.

37

Foi assim que se reencontrou com a mãe, que o levou de volta para casa. Tinha esperança de que as coisas tivessem mudado, mas cedo se apercebeu que não ia ser assim. A partir daí começou a passar algumas noites em casa e outras na rua: Comecei a fazer amigos no mercado, onde há muita comida. Então, vai lá muita gente comer. Quando eu ia lá a pedir, ou pedir uma bucha, assim, havia lá mais miúdos a brincar. Comecei-me a juntar a eles e eles levavam-me às casas deles, pois. E à conversa, às vezes encontrávamo-nos na garagem de um deles ou no mercado. Ficávamos por lá. E comecei a dar-me com eles, perto de casa e longe de casa.

Em algumas ocasiões regressou para o pé da mãe, mas não era um regresso por ter saudades: Eh pá... Sim lembrava-me [da família] mas não me dava para ir vê-los. Ou seja, rara era a vez que dizia: „pronto, vou à minha mãe‟. Ia mas por exemplo porque os outros miúdos eram apanhados pela polícia e levavam-nos ou porque as mães deles não os deixavam sair. Então eu, assim sozinho na rua aborrecia-me.

Mas os horários da vecindad não se adequavam ao seu novo estilo de vida, de maneira que deixou de ir dormir a casa: “[…] a vecindad era ali. Fechavam a porta de entrada e havia uma porta assim como a de uma prisão. E tinha barrotes e fechavam a porta às 10 (da noite), muito cedo para voltar para casa”.

4.1.2 A saída de Camilo (7-12 anos) No caso de Camilo a sua vinculação à rua foi mais progressiva do que a de Ramiro. Começou a trabalhar como empacotador num supermercado, não muito longe do seu bairro no terceiro ou quarto ano da primária. Depressa deixou o trabalho para cantar nas camionetas. Esta nova experiência facilitou as primeiras incursões mais afastadas dos limites permitidos pela mãe. Começou a chegar tarde a casa. Primeiro uma vez, depois repetiu uma segunda vez. E apesar de isso lhe custar tareias tremendas, acontecia cada vez mais frequentemente até que um dia não regressou para dormir: Pois, a primeira vez procuraram-me através da polícia. Procuraram assim uns quinze dias e não me encontravam. Encontrou-me primeiro uma tia e pronto, levou-me para casa dela, pois. E pronto foi lá … foi lá foi onde me encontraram os polícias, com a minha tia.

Passava as noites em casa de amigos da escola e do bairro: “Às vezes vivia com os meus colegas da escola, nas casas deles”. Tinha um amigo, mais velho que ele, que em especial o acolhia quando Camilo precisava: 38

[…] também tinha um amigo aqui em Santa Tere, que ele foi o meu melhor amigo no bairro pois. O meu amigo chama-se Francisco. […] Dava-me uma ajuda, escondia-me em casa dele, escondia-me da minha mãe. A minha mãe discutia com ele e ele [dizia]: „não aqui não está‟. Então a minha mãe discutia com a mãe dele e eles escondiam-me.

Chegou uma altura em que passou as férias de verão fora de casa. Apesar disso, e ainda que fosse perdendo pouco a pouco o interesse pelos estudos, continuou a frequentar a escola: “[…] regressava a tempo. Isto é, perdia-me todas as férias, também me perdia aos fins-de-semana, mas às segundas lá estava. Ia-me às sextas depois da escola mas às segundas já estava em minha casa para ir à escola”. No sexto ano da primária chegou a faltar vários meses às aulas, mas graças ao apoio dos professores e à sua fama de bom estudante terminou a primária e com isso rompeu os últimos laços que o mantinham perto da mãe. De seguida começou um caminho sem regresso: […] tinha um amigo no bairro, chamava-se Ramón, que já se tinha ido embora. Com ele começo a vender jornais, que eu nunca tinha vendido mais do que pastilhas elásticas. […] Ele já conhecia um senhor que vendia flores por aí, por isso lá íamos vender flores com ele. Era vender toda a noite. Vendíamos até às 11 ou meia-noite, ou uma da manhã aos fins-de-semana. […] Então lá íamos, partilhávamos o táxi e íamos a casa de um amigo. Éramos um montão de miúdos nas mesmas condições. Dormíamos lá [com o senhor das flores]. Depois levantávamo-nos tarde, assim lá para depois das 10-11, tomávamos o pequeno-almoço e descansávamos.

4.1.3 A saída de Oscar (7-8 anos) A primeira vez que saiu de casa foi uma decisão repentina. Tinha cerca de 7 anos e queria ir viver com a tia, a irmã da mãe: saltou do terraço para a rua e começou o caminho rumo à sua nova vida: Apanhei uma camioneta e lembro-me que (pensei): „tenho que sair aqui perto, é por aqui perto que tenho que sair.‟ E deu a volta e eu saí, É boa! Acho que a primeira vez regressei e logo depois voltei a apanhá-la (a camioneta), até que lá saí e cheguei à minha tia.

Contudo, não teve sucesso. Nesse mesmo dia a mãe foi à procura dele e trouxe-o de volta para casa. Pouco depois desse dia Oscar fugiu de casa mais 6 vezes, até que um belo dia a mãe deixou de o procurar.

Oscar passou quase um ano em casa da tia que era boa pessoa e lhe dava o acompanhamento de um adulto que não tinha tido antes: “ela ficava em casa todas as tardes”. No entanto, não era bem-vindo pelo marido e pela sogra da tia, a 39

qual (a sogra) lhe batia constantemente: “batia-me e dizia-me que ia ver onde me punha porque não podia estar ali com eles”. Um dia a tia sucumbiu às pressões e internou-o num lar, onde de novo sofreu violência: “Eu sempre tive pouca sorte. Nos lugares onde ia, batiam-me. […] No lar havia um tipo […] era lutador de boxe e também me batia...”

4.2 O ENIGMA DA SAÍDA “[...] acho que era assim a procura.... Sim era assim a procura de um espaço, onde tivesse conforto. Mas acho que as condições eram assim sempre como que complicadas. Então procurava outro espaço, sempre à procura... E nessa procura, pois, eram vários cenários onde...”

Pelas crónicas de saída vemos que nos protagonistas subjaz um mesmo desejo: a mudança. Freire define esta procura como a vocação para ser mais: "(...) no momento em que se inicie a verdadeira luta para criar a situação que nascerá da superação da antiga, já se está a lutar para se ser mais”16. De seguida analisa-se como é que o desejo de mudança se instalou nas suas vidas ao ponto de os fazer sair da casa materna e fazer da rua o seu lar.

4.2.1 Com um pé na família e outro na rua A saída do lar ocorre através de um processo no qual os laços familiares se desfazem ao mesmo tempo que as crianças tecem novos vínculos e desenvolvem capacidades para sobreviver no seu novo espaço social: a rua. Era mais… eu como que estava… ia formando a ideia de que tinha que cortar por completo. Porque havia uma parte de mim em que sim, havia muito carinho, mas também… pois… havia uma parte onde, ao entrar em contacto com o mundo do trabalho, ou seja, começares a dar-te conta que podes depender… quer dizer… de ti. Valeres-te a ti mesmo. Ou seja, também te dá, assim… lutas contra o medo interior, assim, que era “que vou comer, que vou fazer, que…” Como te sentias quando imaginavas a vida, sozinho, ou a possibilidade de teres essa vida? Sim, ou seja, os medos vão-se indo, quando te dás conta que podes sobreviver, assim, sozinho.

16 Freire Paulo. Pedagogía del oprimido. Siglo veintiuno, Brasil,1987, p.38

40

Este processo alude a uma ruptura biográfica17, na qual a criança se vê no meio de uma grande tensão, já que o processo anterior à decisão de mudança o coloca no meio de um campo de forças contraditórias que o atraem e o repelem ao mesmo tempo para dois lugares diferentes18. Na tabela seguinte descrevem-se estas forças de acordo com o indicado pelos protagonistas nas suas histórias: Tabela 2 Campo de forças na transição casa/rua

Espaço social de vida Família

Rua

Forças que expulsam

Forças que atraem

 A ausência de afecto, cuidados e protecção  A opressão extrema  Violência física, verbal, psicológica  Medo: A saudade Não saber como sobreviver na rua

 Esperança de que as coisas mudem  A escola (no caso de Camilo)  Capacidade para a sobrevivência económica  Rede de pares  Rede de adultos chave  Experiência de liberdade

A procura fora do lar é uma experiência minada de contradições, entre o mundo da família e o da rua, que se resolvem à medida que a criança se adapta à vida na rua.

As trajectórias mostram-nos também que cada transição se manifesta de maneira diferente de acordo com os seguintes factores: 

Tipo de vínculo parental



Tempo de vida na família19



Interesses ligados à permanência no lar

Palavra que se refere a uma ruptura com a realidade ou quotidiano anterior, que implica um processo de aprendizagem de novas práticas e significados 17

18 Rizzini Irene (Coord). Vida nas ruas, crianças e adolescentes nas ruas: Trajectorias inevitaveis?, PUC Rio, Rio de Janeiro, 2003, p. 25 19 Este é relativo, já que na maioria dos casos não se trata de um tempo contínuo. O período de vida familiar

vê-se interrompido por períodos de estadia com outras famílias, saídas para a rua, etc.

41



Idade com que a criança passa pelo processo de saída



Grau de satisfação sentido na rua

De acordo com as narrações, estes elementos tiveram um papel importante no processo de saída. Com a intenção de ordenar e sistematizar esta sugestão, é possível dizer que o grau de possibilidade de fixação na rua se apresenta numa ordem de maior a menor possibilidade, primeiro em Ramiro, depois em Camilo e finalmente em Oscar. Tabela 3 Factores que intervêm na possibilidade e na duração da transição para a rua

Entrevistados Factores Idade Tempo de vida na família Características do vínculo com a mãe

Ramiro

Camilo

Oscar

5-7 5 anos aprox.

7-12 10 anos aprox.

7-8 7 anos aprox.

 Violência  Opressão  Autoritarismo

 Opressão  Violência  Sobreprotecção

 Omissão  Desprotecção  Distância

Interesses ligados à permanência no lar

 Nenhum

 Escola

 Nenhum

Grau de satisfação sentido na rua

 Alto

 Médio

 Baixo

O processo de transição da família para a rua, no caso de Camilo foi o mais prolongado. Há que recordar que era filho único e foi à escola desde muito pequeno (a mãe colocou-o no infantário antes de ter a idade regulamentar), lugar que se transformou no ambiente onde se sentia livre do jugo da mãe e onde se podia divertir com os amigos. Mas talvez o mais significativo deste espaço social tenha sido que lhe oferecia a oportunidade para formar algumas imagens positivas de si mesmo. Na entrevista, à pergunta sobre qual tinha sido o melhor momento desta etapa, Camilo respondeu: “Mmm, acho que no quinto ano me deram uma menção honrosa”. O seu caso é o único entre os entrevistados que manifesta ter 42

tido algum interesse, não utilitário20, a ligá-lo à casa materna. Para ele era muito importante terminar o ensino primário e era isto que o fazia permanecer de segunda a sexta-feira durante o período escolar na sua casa: [...] assim doido não estava, por que regressava a tempo. Isto é, perdia-me todas as férias, também me perdia aos fins-de-semana, mas à segunda lá estava. Ia-me às sextas, quando saía da escola mas à segunda já estava em minha casa para ir à escola.

Camilo

também

manifesta

ter

mantido

durante

mais

tempo

a

esperança/expectativa de que alguma mudança ocorreria na mãe. Ainda que vivendo na rua regressava ao seu bairro com a ideia de se fazer presente na vida da mãe.

Ramiro, por outro lado, viveu nos seus primeiros anos, entre o primeiro e o segundo ano de vida, na casa de uma amiga da mãe, o que o manteve longe dela numa etapa crucial para o desenvolvimento do vínculo maternal. Ao regressar para perto da mãe descobriu que já tinha sido substituído por um irmão mais pequeno que ele. Esta e outras situações descritas anteriormente explicam porque é que Ramiro experimentou um processo de transição para a rua muito mais curto que Camilo.

Oscar não parece ter hesitado em sair de casa pela primeira vez. Sabia claramente na sua tenra idade que queria um lugar tranquilo. Aparentemente, a situação de violência em que vivia e a falta de afecto e protecção eram tão elevadas que não havia nada que ali o retivesse.

Isto mostra-nos que o processo de saída das crianças é mais curto havendo menor força de atracção para a família e mais recursos de sobrevivência na rua. De seguida veremos como isto ocorre.

4.2.2. E foram todos felizes? Nos relatos está presente uma esperança oculta, uma fantasia originada do íntimo Com isto refiro-me a um interesse que tenha ido para lá da satisfação de necessidades tais como a alimentação e um espaço onde dormir 20

43

desejo de que as coisas mudem em suas casas. Esta fantasia aparece em diversos momentos da primeira infância, embora seja mais evidente na etapa de saída do lar.

No caso de Ramiro, logo na primeira experiência de afastamento temporário do lar, surge a expectativa de que no seu regresso as coisas em casa fossem diferentes: E gostei durante um bocado, acho que uma semana, porque depois de uma semana era: „Dá de comer aos teus irmãos, faz as camas, e depois limpa a casa, e...‟ Cheio de responsabilidades aos 5 ou 6 anos. Então não gostei e fui-me embora. Quer dizer, andava por Zamora. E aos 7 anos foi quando disse vá, vamos.

A narração mais evocativa deste desejo é talvez a de Camilo que tinha o sonho de que a sua “mãe verdadeira” o viria salvar: É assim uma imagem que tenho. É assim a da minha mãe, uma mulher já velha, assim… Quando eu nasci ela tinha 39 anos, já quase entrada nos quarentas. Então quando começo a ter esta noção da minha mãe, que era uma mulher assim demasiado velha, que podia ser minha avó… E de facto eu muito tempo… assim, cheguei a não aceitar que era minha mãe. Não. Eu melhor, às vezes, eu pensava no fundo, que assim, que ela me dizia que era minha mãe e tudo, mas eu pensava que por detrás havia uma história assim fantástica, não é, de que eu tinha uma mãe perdida, que me tinha deixado com a minha avó. Assim que tinha ido ganhar dinheiro, ou assim, e que um dia ia regressar para mim.

Mais tarde, depois das primeiras expedições fora do lar, imaginava que ao regressar a casa as coisas seriam diferentes: [...] A primeira vez que fugi, pois, não se calava [a mãe]. Preocupou-se e tudo. E eu disse: „Pois, vamos a ver se com isto muda alguma coisa‟ não é? Mas não havia mudanças. [...] Pensava mais no medo, pensava na pancada que me iam dar, mas também pensava: „a ver se percebe‟, pois… [...] Fugi umas quantas vezes e não havia mudanças. Voltei umas quantas vezes e também não se viu nenhuma mudança. Ou seja, era assim.

Ainda que fugisse e se escondesse dela, regressava uma e outra vez ao seu bairro, onde ficava com a família de um amigo. Camilo tinha a expectativa de que por acaso pudesse ser visto pela mãe. Tentava fazer com que a mãe percebesse que precisava de ser encontrado, salvo: Às vezes ficava lá meses e depois ia-me sempre embora. E pois, ele era um bom amigo [...] Era o único que me dava conselhos. Às vezes até me dava sermões de eu andar na rua. Quando andas na droga, pois é, dão-te sermões e de repente dava-me um sermão. E dava-me para vir para o bairro. Aparecia bem pedrado. Ele via-me e metia-me em casa, e 21 tirava-me o tonzol , não é, e dava-me banho. [...] Às vezes como que queria, sentia que 21 Solvente industrial utilizado para diluir

tintas.

44

queria. Isto é, nunca cheguei a encontrar a minha mãe. Isto é, para minha sorte, para que não me desse uns bons murros. Mas eu como que queria, assim inconscientemente, eu como que queria que me visse e queria que ouvisse. Eu queria provocar algo nela não é.

Oscar fugiu de casa três vezes ou mais. A mãe fazia-o regressar para perto de si, mas ao escapar do primeiro lar de crianças não manifestou intenção alguma de regressar para ela. O seu olhar dirigiu-se a novos horizontes. No seu caso é muito provável que a esperança de um final feliz se tivesse extinguido muito tempo antes. No esquema seguinte analisa-se como os entrevistados foram quebrando lentamente os laços com a família

Esquema 2 Transição da família para a rua

Ainda que seja mais claro na história de Camilo, talvez por ser aquele que viveu mais anos com a mãe, nos três casos encontra-se presente a fantasia de um final feliz, dentro do lar. Luchinni, que estudou em profundidade esta etapa, conclui que em certos casos, a criança espera ser salva e desencadear uma mudança na sua mãe. Para este autor, a saída do lar é muitas vezes o último recurso para provar o

45

que a criança representa para a mãe22. O sucesso desta tentativa radica em que a mãe vai sofrer com a sua ausência e provavelmente, ao reencontrarem-se, a criança obterá os cuidados e o amor que antes não teve. No entanto, ao não ter sucesso, corrobora que não é digno de ser amado, confirma as imagens negativas de si mesmo, enfraquece o vínculo familiar e a probabilidade de uma fuga definitiva torna-se mais eminente: “E aos 7 anos foi quando lá disse, vamos”.

4.2.3. Procura de família Ao não alcançar “o desejado final feliz” na família, inicia-se uma nova estratégia: a criança começa à procura de um espaço familiar substituto.

Ramiro, Camilo e Oscar, nas suas primeiras experiências de fuga, deixaram a casa da família para irem para um espaço familiar novo. Isto significa que, pelo menos nestes três casos, eram guiados pela procura de um lar substituto. Para Ramiro foi a família que recolhia lixo e que vivia na lixeira, no caso de Camilo foi a família do seu amigo Francisco, assim como as famílias dos seus colegas de escola, e para Oscar foi a casa da tia. Camilo é quem melhor representa este facto com uma passagem da sua vida: Tive mesmo propostas feitas à minha mãe, de uma senhora para quem trabalhou como empregada de limpeza. A irmã dela queria-me levar para os Estados Unidos, porque não podia ter filhos e estava casada com um homem que tinha filhos de outro casamento. Então queria adoptar-me, mas a minha mãe não deixou. Eu sim, queria.

Os três entrevistados, antes de chegarem à rua, passaram por um ou vários espaços de vida substitutos da família. No quadro seguinte representa-se o percurso que cada um seguiu, antes de chegar à rua.

No quadro podemos ver que, a expectativa de encontrar uma família manteve-se mesmo depois de terem feito da rua o seu espaço social de vida. Várias vezes regressaram a espaços familiares substitutos, inclusivamente mais tarde, quando já viviam na instituição.

22 Esta situação foi denominada por Ricardo Luchinni como “encruzilhada de identificação”

46

Camilo explica que uma vez na rua, apanhado nessa prisão, tinha a expectativa de que ao regressar a sua casa ou à do seu amigo poderia deixar a vida de rua e em particular o consumo de drogas.

No entanto, nenhum deles encontrou um lugar com as condições necessárias para aí permanecer e evitar a saída para a rua. Esquema 3 Percurso da família para a rua

RAMIRO

CAMILO

OSCAR

Família

Família

Família

Família amigo

Tia

Família/rua

Família

Amiga da mãe

Família de recolhedores de lixo Família

Família do patrão

Tia

Família

Família/rua

Albergue 1

R UA rua

rua

r ua

ru a

Em síntese, nos três relatos há sinais de que, quando a família não cumpriu as suas funções de refúgio emocional que satisfaça as suas necessidades materiais e emocionais, precipitou a saída da criança para fora da casa materna. É a partir deste momento que se inicia uma procura através da qual experimenta viver “voluntariamente” em espaços familiares substitutos. Contudo, perante a falta de 47

um contexto propício que reúna as condições necessárias para reter a criança nos limites de um lar, não foi possível evitar a talvez naquele momento evitável deslocação para a rua.

4.2.4. Alguém se lembra que sou uma criança? A terceira força motivadora da saída para a rua é nas três crianças uma necessidade de reivindicar a sua liberdade e a sua natureza lúdica: sair de casa significava ficar livre das responsabilidades impostas pelas exigências familiares e poderem divertir-se.

Para dois deles, Ramiro e Camilo, a chegada à rua representou a possibilidade de experimentar tanto a diversão como a liberdade. Ramiro ainda o recorda com um sorriso e diz: A boa vida… passávamos a vida a ir de um lado para o outro e a brincar por ali. […] Eu cá gostava, pois, porque, assim males grandes não eram muitos. Pois… eram poucos e não duravam muito, não é? Assim, pois as idas lá ao rio. Assim os, os banhos aqui na fonte e o senhor que tomava conta ia e tirava-nos e nós a metermo-nos. Andar à conversa pela noite na praça, ficar por ali à conversa era bom.

A inquietude pela vida fácil aparece muito cedo a Camilo: “De repente começo a observar e como que se me começa a despertar um certo interesse por aquela vida, fácil, fácil e tranquila, despreocupada que eu via”. E realça os momentos que mais gostava nas suas primeiras experiências de vida fora do lar: Aos domingos comíamos sempre a mesma coisa: era ir aos batidos de chocolate, às sandes. E, pois, era o que era diferente, não é. E o que te lembras de ser agradável nessas saídas que ainda não eram definitivas? Pois as liberdades. A liberdade de fazer um montão de coisas, de ir onde queria, fazer o que queria. De que é que gostavas mais do dia, ou qual era o momento por que mais aguardavas? Então… brincar, falar no jardim, nas piscinas, ver televisão.

A experiência de Oscar mais uma vez é diferente. Perante a pergunta sobre as experiências positivas na rua surpreendeu-se e disse: “Do tempo que passei na rua? O melhor? Que boa pergunta! Acho que nunca tinha pensado nas coisas boas. Achava que tinha sido tudo mau”: Sim, lembro-me ter sentido fome. De quando ganhava os meus $1.50 e ia compra o meu feijão. Dizia „ah que bom, feijões com queijo!‟ Era isso. Também ia tomar banho ali (…). Andava bem cansado.

48

Recordemos que para ele era muito importante encontrar uma família. Talvez por isso as suas recordações agradáveis sejam antes a experiência do lar, os jogos de futebol e as experiências de jogo colectivo, em vez da experiência da rua onde viveu por muito pouco tempo.

4.3 DA RUA FIZEMOS O NOSSO LAR: CRÓNICA DO PROCESSO DE CALLEJIZACIÓN23 “Sim, acho que… ou seja, no fim de contas, dei-me conta que via outros lares. E eu dei-me conta que não tinha um lar”

4.3.1 Ramiro A. A chegada ao novo espaço social Ao espaço de encontro e confluência de crianças que habitavam as ruas, foram chegando um a um os protagonistas destas histórias. Primeiro Ramiro, depois Camilo e por fim Oscar. Este foi um momento importante nas suas trajectórias já que essa zona era em primeira instância um espaço social cheio de oportunidades para a sobrevivência, mas também uma porta aberta que os convidava a entrar numa nova vida.

No caso de Ramiro, que se tinha adaptado sem muitas dificuldades à vida em Zamora, o seu quotidiano mudou radicalmente quando se envolveu numa luta onde um rapaz foi ferido com uma navalha. Fugiu com os seus amigos até chegar ao terminal de autocarros, onde subiram sem pagar bilhete para uma camioneta que os levou a Guadalajara: “…e a primeira camioneta que vimos assim meio NT. “Callejización” e “callejero” são expressões utilizadas em alguns países da América Latina para se referir ao processo de enraizamento da criança na rua. Estes termos referem-se ao processo pelo qual a criança vai estabelecendo interacções (cada vez mais intensas e frequentes) e laços afectivos com outras pessoas no espaço da rua, resultando numa progressivamente maior permanência nesse espaço até que a maioria ou todas as suas actividades têm aí lugar. Este processo descreve a mudança da situação da criança de “estar na rua” para “ser de rua”. 23

49

vazia e que não tinha assim motorista subimos. Escondemo-nos debaixo dos assentos. Nenhum dos que fomos sabia ler. Não sabíamos para onde íamos”. Não sabiam ler nem escrever, pelo que não sabiam qual era o destino da camioneta. A grande cidade no final do trajecto apanhou-os de surpresa. Foi assim que Ramiro se encontrou, sem o esperar, no centro de Guadalajara, chegado à agora Antiga Central de autocarros: E lá quando chegámos aqui foi um assombro total, não é? De ver uma cidade bem pequenita onde num dia a fazias toda a pé e chegar aqui. Ai meu! Onde é que viemos parar? Não é? Fazíamos todos a mesma pergunta: „Onde é que viemos parar?‟

B. Processo de callejización O seu início no “vício”, como ele lhe chama, começou em Zamora quando ele e os seus pares, com a idade de sete anos aproximadamente, experimentaram resistol24. Mais tarde deixou de lhes fazer efeito e exploraram outras drogas como a marijuana e o cimento: “[…] uma vez roubámos uma lata de 5 litros. A malvada da lata acabou-se numa noite, caiu-nos mal. Acabámos todos doentes”.

Naquela altura a droga não era ainda um problema na sua vida, uma vez que continuava com as suas actividades quotidianas e a consumia só à noite: Psss! Era porque por exemplo o resistol… assim… usávamos mas já à noite. E não havia muitos problemas porque logo de manhã comíamos e tudo e à tarde voltávamos a comer e jantávamos. E depois tornávamos a pedrar-nos, não é? Com resistol.

A sua iniciação ao tonzol deu-se no encontro com as crianças que viviam nas imediações da Antiga Central de Camionetas na cidade de Guadalajara: “E foi quando conhecemos aqueles amigos. Foi quando nos ensinaram a droga que era o tonzol”. Diferente desta experiência com o consumo de “cimento”, que foi mais moderada, foi a experiência de Ramiro que começou a consumir tonzol todo o dia. A droga tirava-lhe a fome, deixava de comer e isto fê-lo emagrecer muito:

Cola que inclui solventes. Este composto químico encontra-se facilmente à venda na América Latina mas a sua venda é restrita na América e Estados Unidos devido à sua alta toxicidade e baixo ponto de inflamação. As crianças de rua inalam este composto químico. 24

50

E já era muito diferente o tonzol, pelo facto de o conhecer não é? Por ter que usar todo o dia, deixávamos de ter fome. […] E agarrávamo-nos a ele e era muito bom o cheiro. Agarrei-o outra vez, agarrei-o outra vez… mau, mau, mau […] Pedrado e sem comer. Se de mim era magro, então mais magro fiquei.

Iniciou-se no roubo desde muito pequeno quando ainda vivia em Zamora. A sua primeira experiência deu-se pouco depois da chegada de duas crianças novas, Javis e Perico, que chegaram para viver no bairro do seu amigo Lechuza. Javis tinha experiência no roubo de máquinas registadoras que sabia abrir. Foi ele quem o convidou a roubar: […] um dia andávamos no centro a falar e o gajo [disse]: „anda, vamos ali roubar‟. Era uma geladaria, [e disse]: „nós vamos assim como se fossemos comprar gelados e vocês pedem gelados à miúda e eu cá vou pela calada‟. E nós [dissemos]: „Boa!‟. E fomos de boa vontade e a miúda assim meia desconfiada atendeu-nos. O cabrão salta o balcão e vai, vai, vai rápido abriu a caixa! E tira um montão de notas e corre e raios! Não é… e depois do assalto começámos também nós a correr.

Na sua incursão pelo roubo descobriu que esta era uma maneira de ganhar mais dinheiro que pedindo nas ruas. Foi assim que ele e os seus amigos começaram a roubar de maneira sistemática, uma estratégia para se proverem de recursos económicos. Roubavam dinheiro, jóias e a própria droga.

4.3.2 Camilo A. A chegada ao novo espaço social Encontrou esta zona da cidade ao ter convidado outra criança para passar a noite com ele, o qual em troca o convidou a conhecer o seu território: Numa das minhas saídas, nos meus tempos na rua... Estava a dormir no jardim Alcalde. Era lá que vivia. Os encarregados do parque deixavam-me dormir ali e os do parque… e assim, de repente dei por mim… chegou um miudito ali, assim, e estive ali no jardim assim dois ou três dias ali a falar com ele: „Não, que eu sou da Central e vivo na rua‟, não é? Que „eu também, mas eu vivo aqui‟. Então foi assim um convite, não é? E lá se ficou por ali uns 2, 3 dias. E depois disse-me: „Não, assim, agora sou eu quem te convida para os meus territórios‟.

Camilo sabia que naquela zona da cidade havia muitas crianças como ele, mas era tímido e não conhecia ninguém que vivesse lá. Contudo, ao receber o convite de uma das crianças que lá vivia, aceitou de boa vontade ir. Passou a viver nos arredores da Antiga Central de camionetas. Entre os vários trabalhos que realizou lembra-se do de carregador na estação de camionetas: 51

(...) muita gente ia apanhar o comboio, então tu ajudavas as pessoas com as malas. Adiantavas-te aos carregadores. As pessoas sempre te iam dando gorjeta, (outras) no fim davam mais alguma coisa. As pessoas arriscavam-se no pior dos casos a que lhes ficassem com a mala, mas também ganhavam. Quer dizer, não te dão o mesmo que iam dar ao carregador.

B. Processo de callejización O primeiro contacto de Camilo com as drogas teve lugar no seu primeiro trabalho no supermercado. Um polícia tinha feito um acordo com o vigilante da loja, que pedia a Camilo que tirasse pacotes de cigarros para ele. Em troca davam-lhe cigarros. Foi assim que começou a fumar. Mais tarde o polícia começou a pagarlhe com doses pequenas de marijuana, que Camilo partilhava com os seus conhecidos. Não sabia como enrolar um cigarro para a fumar. Utilizava tanto o tabaco como a marijuana para adquirir prestígio no grupo de pares do bairro: (...) vi logo que podia tirar proveito da situação. Continuei a fazer o mesmo durante muitos meses, não sei bem quantos. Mas então uma vez cheguei ao bairro e todo convencido “olhem, trago erva”. E quando viram que tinha erva, assim, eu ofereci-lhes. Então pouco depois era assim como que um duplo poder. Porque os miúdos do meu tamanho ficavam impressionados porque eu tinha saído de casa, comecei a fumar e agora além disso viam que os miúdos mais velhos me respeitavam.

Começou a consumir droga algum tempo depois, quando passava largas temporadas fora da casa materna. Nos fins-de-semana, com os colegas da venda de flores ia roubar e com o que obtinham do roubo adquiriam tonzol a caminho da Antiga Central de Camionetas.

Na adolescência mantinha-se grande parte do tempo drogado. Consumia marijuana, tonzol e ocasionalmente comprimidos e pastilhas. Descreve esta experiência com uma espécie de lema: “Se é para estar bêbedo, esteja-se drogado”.

Ainda que em várias ocasiões tenha feito pequenos roubos, esta estratégia não se sedimentou como uma prática quotidiana para sobreviver. Roubar e pedir dava-lhe muito trabalho e a mãe tinha sido muito clara e severa quanto a estas condutas: “não me ensinaram a pedir, era proibido. Ou seja, roubar e pedir era assim como „Queimo-te as mãos cabrão!‟, „Queimo-te a boca!‟. Sim era difícil”. É por isso, salvo 52

em algumas excepções, que se descrevem de seguida, que a maior parte do tempo obteve dinheiro a trabalhar em diversos ofícios. Quando estudava envolveu-se na “lojinha da escola” que funcionava como uma cooperativa. Cabia-lhes prepararem as sandes e vender os sumos. Um dia lembraram-se que seria divertido prepararem ali mesmo a sua própria comida. Entre todos compraram um grelhador eléctrico e faziam sandes para a cooperativa. O professor, que os tinha sempre apoiado, apoiou esta iniciativa e deu autorização. Para eles isto era um bom pretexto para se divertirem, relaxarem, mas também para fazerem “negócios escuros” com a cooperativa debaixo dos olhos do professor: (...) comíamos o fiambre, cortávamos no que púnhamos nas sandes. Íamos vender os sumos e nós os quatro nos roubos. Então eu comecei a andar com eles. Estivemos assim uns dois anos a negociar com os sumos. Tirávamos três caixas e só registávamos duas.

Passados alguns anos, quando começou a viver na rua aos fins-de-semana, com os seus colegas da venda de flores, ia roubar. E com o que obtinham do roubo adquiriam tonzol a caminho da Antiga Central de camionetas.

4.3.3 Oscar A. A chegada ao novo espaço social Fugiu do internato com um amigo que o convidou a conhecer um lar situado no centro da cidade. O amigo tinha lá passado algumas noites e normalmente vivia nas ruas próximas com outras crianças. […] lembro-me que íamos fugir, entre aspas. Íamos fugir do lar. Éramos uns oito, mas no fim só fugimos três....Ficaram todos para trás. Ou seja, desistiram todos. Deixaram-se ficar para atrás e não éramos mais que três. Então lembro-me que fugimos e chegámos ali à 25 zona atrás do Carlton , do condomínio Guadalajara, e disse: é aqui! Mas ainda não estava aberto.

Nesse mesmo dia Oscar encontrou-se pela primeira vez com o mundo das crianças que viviam na rua, com a droga e com o lar no qual ia passar os anos seguintes da sua vida.

25 Nome de um Hotel situado na zona centro da cidade de Guadalajara.

53

B. Processo de callejización O caso de Oscar é diferente dos dois anteriores: ele conhece a rua 26 ao mesmo tempo que se encontra com o espaço educativo. (Referindo-se ao dia em que fugiu do lar de Tlaquepaque) Lembro-me que me levou a um 27 estacionamento, onde havia dois ou três quartitos pequenitos, onde muitos iam tonchar . E, isso, e lembro-me que eu lhe disse „ai, eu quero que me ensines a tonchar!‟ E ele ensinou-me a tonchar....

Isto leva-o a passar períodos alternados entre o lar e a rua, o que impediu que estabelecesse vínculos fortes com esta última, ao contrário dos casos de Ramiro e Camilo.

4.4 O PARADOXO DA MUDANÇA: MAIS VALE MAL CONHECIDO DO QUE BOM POR CONHECER?

Nesta parte analisa-se o processo de callejización da criança e o paradoxo que ele implica. Procuram uma mudança, uma vida melhor, gratificante, mas encontraram a prisão da rua.

4.4.1 E finalmente formei a minha família... O encontro com outras crianças é um facto fundamental tanto para a transição para a rua como para a sua permanência aí e talvez, porque não dizê-lo (ainda que isto se analise mais à frente), para a saída desta: [...] também já conheces outros miúdos fora, então já começas… havia um vizinho que também vivia por ali e que às vezes já não ia dormir a casa. Comecei a andar com ele e de repente já não regressava.

Nas crónicas de saída para a rua há passagens que evidenciam este facto. Nos três casos o processo de saída e adaptação à rua é mediado por outras crianças que ali vivem ou que estão mais familiarizadas com esse mundo.

26 É importante ressaltar que o

conceito de “rua” se refere a um espaço social com uma cultura própria. 27 Acto de consumir tonzol (solvente industrial que as crianças que vivem na rua utilizam para se drogar).

54

Depois de construída uma rede social que lhes dê alguma segurança no seu novo espaço social é que ocorre a saída definitiva. Nesta rede os protagonistas aprendem as estratégias necessárias para sobreviverem na rua e alteram a sua identidade paulatinamente até se transformarem no que denominamos criança de rua. É um fenómeno comum que as crianças ao ficarem sós na rua 28, façam uma visita à sua família e mais tarde a abandonem novamente para se juntarem aos seus pares na rua: E lembravas-te da tua família, dos teus irmãos? Psss! Sim, lembrava-me, mas não me dava para ir vê-los. Ou seja rara era a vez que dizia, pronto, vou à minha mãe. Ia mas por exemplo porque os outros miúdos eram apanhados pela polícia e os levavam ou porque a mãe deles não os deixava sair. Então eu sozinho, pronto, na rua aborrecia-me. Era o mesmo quando chegava a minha casa e não me deixavam sair uma semana. Então quando voltava era quando gostava.

Para chegar a este ponto tiveram que ter passado por várias experiências nas quais lhes foi negada a possibilidade de pertencer. Face a isto formaram o seu próprio espaço, o seu próprio grupo, na margem, “fora de”. Perante a não existência de um espaço para si, criam-no! Constroem um que lhes permite organizarem as suas vidas de acordo com as suas próprias leis e à margem das convenções que na sua infância tinham sido socialmente aceites. O grupo de pares forma uma sub-sociedade29 com duas funções importantes: ser um refúgio emocional para as crianças e manter os significados divergentes relativamente aos da sociedade.

A sub-sociedade de crianças na rua cristaliza então a resistência, a ausência de um lugar, de possibilidades, de oportunidades. Assim como também reivindica Isto sucede em circunstâncias tais como viagens colectivas fora da cidade, quando há rusgas policiais ou quando lutam entre si e se distanciam temporariamente, etc. 29 Grupo social que se constitui a partir das diferenças que se manifestam nos significados dos seus membros relativamente aos da sociedade mais ampla. A sua função é assim manter essas diferenças a pesar de a sociedade tentar eliminá-las. [...] Tem a função de "um refúgio emocional" no qual o indivíduo consegue manter ideias diferentes às dominantes (Berger L. Peter, Luckmann Thomas. La construcción social de la realidad. Amorrortu, Argentina, 2003, p.159) 28

55

para as mesmas crianças os seus direitos a pertencerem a um lugar que ordene e dê sentido às suas vidas.

4.4.2 Chamam-nos crianças e apelidam-no da rua Depois de ter “resolvido” a ambivalência entre a casa e a rua, transitam para uma ambivalência maior.

As crianças experimentam uma metamorfose progressiva até se tornarem callejeros. Ao longo deste processo transformam as suas práticas quotidianas, adquirem novos significados com os quais reinterpretam o seu mundo actual e passam por uma mutação na sua identidade.

Esta alteração na sua identidade constrói-se sobre uma base contraditória. Quem está na rua afirma-se organizando-se numa sub-sociedade, com o objectivo de reivindicar o seu direito a existir, a ser alguém através dela e a pertencer a um lugar que ordene e dê sentido às suas vidas. Mas tal afirmação alude a uma negação prévia, na qual se viram privados dos seus direitos, isto é, das condições elementares para a vida.

Isto indica que se transformam em alguém ao diferenciarem-se dos outros, o que nasce da negação que esses outros fazem de si. Este é o paradoxo da criança de rua. Quanto mais se identificam com a cultura da vida na rua, mais definem a sua identidade como callejeros, se diferenciam dos outros, se afastam do sistema social dominante e das suas regras, o que os arrasta para cada vez mais longe das suas fronteiras. Isto significa afastá-los de todas as oportunidade para o desenvolvimento de uma vida plena e gratificante.

Por isso é que se trata de uma resolução que na realidade não o é. Parece libertálos daquilo que os oprimia no lar, mas isto ocorre ao encontrarem uma prisão maior.

56

4.4.3 A sobrevivência e as suas prisões O processo de incorporação na vida de rua foi definido por diversos autores e mesmo por educadores de rua a partir de quatro etapas: o encontro, o idílio, a profissionalização e a crise do futuro30. Ao longo destas o consumo de droga, a aprendizagem da mendicidade, o roubo e o uso da violência têm um papel importante que determina o nível de fixação das crianças a esta cultura denominada cultura callejera.

De seguida analisar-se-ão os significados que cada uma destas práticas implica, explicando porque é que as crianças permanecem na rua apesar de se encontrarem em condições de vida muito adversas.

Com o processo de incorporação e adaptação à cultura callejera a criança experimenta a satisfação de necessidades que denominarei psicológicas: reconhecimento, prestígio e sentimento de pertença. Algumas passagens das trajectórias, assim como os comentários ouvidos na convivência com os entrevistados, demonstram-no.

Ser reconhecido como parte do grupo através das práticas típicas da cultura callejera fá-los experienciar aceitação e sentimento de pertença, o que fortalece o vínculo aos pares: Era bom quando nos juntávamos todos já de noite, não é? E, por exemplo, começávamos a falar do que nos tinha acontecido durante o dia, de que eu roubei fulano de tal, e que deilhe um pão bem grande e eu dei um pãozaço a beltrano… E que eu atirei um balão de água àquele ali de cima. Então começávamos a contar o que tínhamos feito para ocupar o tempo e eu gostava mesmo disso, não é? Porque dizia há... eu quase não falava, era muito calado, mas ouvia os outros e gostava de os ouvir e ver que não já não era só eu o único desastrado, mas que havia mais.

O consumo de droga dá à criança prestígio e reconhecimento: Desde essa altura que fumava cigarros. Então os outros miúdos da minha idade olhavam para mim assim como que com respeito. Então quando comecei a fazer estes negócios com o polícia, também vi logo que podia tirar proveito da situação. Então de repente comecei a ser respeitado pelos mais velhos. Continuei com os negócios muitos meses. 30 Pérez García, Juan Martín. La infancia ruajera: apuntes para reflexionar el fenómeno. Revista Española de Educación Comparada 8, España, 2003, p.10 Extraído da Word Wide Wife no dia 10 de Novembro de 2004: www.derechosinfancia.org.mx/Documentos/art_inf_lat.pdf.

57

Não sei bem quantos. Mas então uma vez cheguei ao bairro, e todo convencido “olhem, trago erva”. E quando viram que tinha erva, assim, eu ofereci-lhes. Então pouco depois era assim como que um duplo poder. Porque os miúdos do meu tamanho ficavam impressionados porque eu tinha saído de casa, comecei a fumar e agora além disso viam que os miúdos mais velhos me respeitavam

Mas também fortalece a experiência de pertencer ao grupo: perante a orfandade em que vivem, o consumo dá-lhes um sentido de pertença31.

O uso da violência, para além de ser um padrão aprendido na família, dá a quem a exerce prestígio e o reconhecimento do grupo. Numa ocasião, Ramiro, ao reflectir com o grupo de educadores ao qual actualmente pertence sobre o grau de violência manifestado nos últimos dias na comunidade de crianças, comentou o seguinte: “Pois, é que p‟ra nós, na rua, a violência é algo importante. Ajuda-nos a sobreviver, a ser alguém, e, é assim: assim que chegas aqui e assim como assim dizem-te que não, que isso não se faz. Pois não. Assim é muito difícil”.

A solução dos problemas que a vida na rua lhes proporciona, providencia-lhes experiências de sucesso que reforçam uma imagem positiva de si mesmo. Ramiro narra em tom orgulhoso ao longo da entrevista, que a experiência na lixeira lhe deu lições importantes: (...) foi boa porque me ajudou a saber como me alimentar, por exemplo. (...) Há maneiras de recolher lixo sem que sujes uma mão e sem que te baixes, por exemplo, (...) com um pau, com um gancho. (...) E depois para abrir caminho na lixeira, amarrávamos um pau mais grosso. Ou seja era uma técnica.

O que está em jogo no processo de callejización é a possibilidade de existir e de ser alguém num mundo que lhes negou essa possibilidade. A rua é um espaço onde podem alcançar os seus objectivos e onde têm a possibilidade de modificar a percepção que tinham de si mesmos.

Isto não significa que a saída para a rua seja a resposta mais adequada em termos de um novo projecto de vida, mas sim que nela encontram uma série de satisfações para as enormes carências que tinham em termos psicológicos. Por 31 Cornejo Portugal, Inés Op. Cit. p. 33

58

isso desenvolvem um forte vínculo com este estilo de vida, o qual tem sido muitas vezes comparado a um vício.

É importante lembrar de novo a experiência ambivalente em que se imergem as crianças. Encontram um espaço social onde podem ser alguém, não obstante o preço que pagam por ele ser altíssimo: permanecem à margem da lei, vivem em condições de muito stress, desenvolvem uma dependência a certas substâncias que mais à frente lhes provoca problemas de saúde, etc.

4.5 CONCLUSÃO

O objectivo principal deste capítulo foi analisar o processo de saída dos protagonistas e a sua adaptação à rua para mostrar como é que este processo se desenrola e que impacto teve nos protagonistas do mesmo.

A partir da análise desta etapa de vida, é possível concluir que: 

A saída do lar origina-se no desejo de mudança que a criança tem, mas concretiza-se à medida que esta desenvolve as competências necessárias para explorar para lá dos limites do lar e em que existe à volta dele um contexto facilitador da sua presença na rua.



As crianças, ao saírem de casa, procuram em primeiro lugar um lar substituto, um lugar onde ser e existir e ao não o encontrarem continuaram a sua procura até chegarem à rua.



A transição para a rua pressupõe uma ruptura biográfica que os submete a uma experiência de tensão, medo, emoção e que se resolve na medida em que aprendem a sobreviver na rua.



A transição para a rua implica uma transformação da sua identidade, baseada em dois factos contraditórios. Por um lado as crianças encontram um lugar onde ser alguém, apesar do repúdio dos outros, e por outro, transformam a sua identidade a partir de novas imagens que, para a sociedade mais ampla, são negativas, não obstante aos olhos da criança e do seu grupo o revestirem 59

de prestígio e darem sentido ao seu mundo: ser indigente, violento, perigoso, etc. 

O grupo de pares tem funções importantes para a criança durante a transição e a permanência na rua: permite-lhe sobreviver na rua, faz as vezes da família, dá-lhes uma nova identidade e um novo sentido de vida.

Vimos que, ainda que cada trajectória encerre um pequeno universo cheio de circunstâncias muito particulares, os três protagonistas partilham um mesmo desejo: terem uma mudança nas suas vidas. E é este mesmo desejo que os levou a viver na rua, o que mais adiante lhes dará o suporte necessário nas suas primeiras incursões no espaço educativo.

60

5. Transição para um novo espaço social de vida: a instituição

5.1. CARACTERIZAÇÃO DAS PRÁTICAS32 DO EDUCADOR DE RUA 5.2 CRÓNICA DE UM ENCONTRO FELIZ 5.3 O DESPRENDIMENTO: TENSÃO ENTRE DOIS MUNDOS 5.4 O ENCONTRO: FACTORES VINCULANTES CRIANÇA-PROGRAMA 5.5 CONCLUSÃO

Este capítulo inicia-se com um retrato das práticas do educador de rua, seguido da descrição dos encontros de cada um dos entrevistados, para finalmente se analisar como ocorre o processo de vinculação da criança ao espaço educativo. Pretende-se dar as primeiras explicações sobre como se deu a mudança nos entrevistados, que factores interferiram, como interferem ou interagem e a natureza da mudança em si. Isto é, que tipo de mudança se trata? De que se compõe e para onde se orienta a vida das crianças?

5.1. CARACTERIZAÇÃO DAS PRÁTICAS DO EDUCADOR DE RUA Não há diálogo se não houver fé nos homens. Fé no seu poder de fazer e refazer. De criar e de recriar. Fé na sua vocação para ser mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens. Paulo Freire

Esta é uma descrição das práticas dos educadores de rua de MAMA A. C., reproduzidas a partir do período em que trabalhei como educadora de rua. 32

61

O encontro da criança com a “instituição” dá-se na rua. Não se trata na realidade de um encontro com a instituição mas sim do encontro entre duas pessoas: o educador e a criança ou o grupo de crianças e o grupo de educadores. A primeira etapa desta aproximação é definida como operação amizade33. Referese a uma amizade incondicional, que não julga, só observa, é solidária, fraterna e baseada no respeito.

Para o educador de rua um dos primeiros indicadores de que o processo de amizade começou, manifesta-se no momento em que encontra as crianças a uma determinada hora e lugar e elas vêm ter com ele. Isto diz-nos que se despertou o interesse, que as crianças tomam a decisão de assistir e reunirem-se numa actividade lúdica proposta pelo educador.

Mais tarde, quando seja claro que se gerou um vínculo, o educador quebra o silêncio e na convivência quotidiana com as crianças apresenta-lhes a sua postura relativamente à vida. Um exemplo claro disto, que é também um novo indicador de que o processo avançou um passo mais, acontece quando o educador manifesta a sua postura relativamente às drogas pedindo às crianças antes de começar a actividade planeada que não usem droga. Parte do ritual realizado no trabalho de rua é a queima das monas34. Acende-se uma grande fogueira onde todas as monas são queimadas. As crianças deixam por umas horas a droga e envolvemse plenamente na actividade: uma partida de futebol, jogos, música, canções, etc.

A jornada termina por vezes com um refeição simples, pão e leite, antecedida por uma oração de agradecimento. Este é um momento em que muitas crianças aproveitam para dizer algo ou pedir por algo ou por alguém. É um momento mais íntimo, de reflexão. 33 As palavras que aparecem em itálico fazem referência à linguagem pedagógica de MAMA AC.

Mona: palavra utilizada pelas crianças para referir a um pedaço de estopa, tela ou papel, impregnado de tonzol (solvente que utilizam para se drogarem) 34

62

Os educadores retiram-se e algumas vezes duas ou três crianças correm atrás deles: “mairo35 leva-me contigo. Vamos para o Refúgio36”. Este é mais um indicador da progressão na relação com as crianças. No entanto, o educador nem sempre aceita levá-los, embora cada caso seja diferente. O que é essencial neste processo é fortalecer a vontade de mudança da criança. Às vezes joga-se com isso. Na rua tudo é um jogo. Um jogo muito sério que por vezes é a vida da criança: “se quiseres amanhã fazemos isso”, “mmm, hoje não. Outro dia. Deixame ver”. Não há uma resposta pré-determinada para o pedido da criança: as circunstâncias, a relação que se tem com ele, a sua história, etc., têm que ser ponderadas antes de responder.

O objectivo de relembrar esta prática é reconhecer como o educador constrói uma relação significativa com as crianças e os elementos a partir dos quais se vai constituindo o vínculo entre o educador e a criança. Isto é, a etapa em que inicia, em termos práticos, o processo de mudança na criança.

5.2 CRÓNICA DE UM ENCONTRO FELIZ

De seguida reconstrói-se a partir da perspectiva dos protagonistas o seu encontro com a instituição. Cada um teve lugar numa época distinta ainda que não muito distantes uns dos outros, embora em contextos diferentes. Há que recordar que naquela altura, como vimos no capítulo dois, as mudanças aconteciam rapidamente umas atrás das outras. A ordem histórica dos encontros é a mesma que se segue no texto: primeiro Ramiro, de seguida Camilo e mais tarde Oscar.

35 Vocábulo que as crianças utilizam para se referir aos educadores de 36 Espaço-albergue da

rua MAMA AC. (primeira fase do programa) que abre entre o período da tarde e a manhã

seguinte.

63

5.2.1. Ramiro (7-8 anos) Ramiro e os seus amigos tomaram conhecimento do Quinto Andar 37 algum tempo depois da sua chegada a Guadalajara. As mesmas crianças da Central com quem começaram a falar falaram-lhes deste lugar: “[…] disseram-nos assim sem mais que havia o Quinto Andar e que se quiséssemos ir e que nos davam comida e que podíamos dormir lá”.

Encontraram um mairo de barba grande e enrolada. Acha que era o Director, que se aproximou e lhes perguntou de onde vinham. Assim se iniciou a conversa entre eles durante a qual o mairo os convidou para irem conhecer o Quinto Andar. Ramiro e os seus amigos responderam com alguma cautela ao convite: “[…] quer dizer, assim com medo. Nós a dizer se vamos ou não vamos? E lembro-me que nessa noite não fomos”. Deixaram passar uma noite antes de se convencerem a subir para conhecer o Quinto Andar. Foi assim que começaram a lá ir: iam jantar e tomar o pequeno-almoço; não iam almoçar porque estavam drogados: “[…] pelo menos jantávamos e tomávamos o pequeno-almoço. E o almoço psss era rara a vez que lá íamos para isso”.

Aos olhos de Ramiro, era um espaço muito grande, cheio de crianças e jovens que iam e vinham por todos lados: (…) não havia beliches. Havia uns colchões finos, uma cozinha enorme. Disseram-nos aqui é um quarto e aqui dormem fulano, fulano e beltrano, aqui é o teu quarto e aqui é onde nos reunimos, aqui é o escritório, aqui é a sala de jantar, aqui é a cozinha, a casa de banho.

A visão do Quinto Andar fez-lhe lembrar a vecindad onde viveu os seus primeiros anos: “[...] eu imaginava que estava assim numa vecindad onde estávamos com amigos”. Era um lugar onde podia comer e dormir de graça. Contudo para lá poder estar tinha que deixar a droga lá fora e não consumir dentro da casa. Primeiro lar do programa MESE do DIF Jalisco para crianças de rua. O seu nome deve-se precisamente ao facto de ser um espaço grande situado no quinto andar do edifício da Antiga Central de Camionetas. 37

64

O que mais o surpreendeu na sua primeira visita foi o tipo de interacção que os outros tinham com ele: […] espantei-me de ver tanto miúdo e ainda mais porque passavam e (diziam) “que tal cabrão”. Falavam connosco assim sem nos conhecerem, diziam-nos adeus com a mão, mas sem os conhecer. Vinham p‟ra cá e p‟ra lá e de repente saíam de um lado e metiamse noutro.

Havia duas coisas de que Ramiro gostava em especial no Quinto Andar. A primeira era o momento em que se reuniam todas as crianças para falar sobre as “diabruras” que tinham feito durante o dia: O bom era quando nos juntávamos todos já de noite, não é? E por exemplo começávamos a conversar sobre o que tinha acontecido durante o dia, do que roubei a fulano de tal, e que eu dei um murro a beltrano.

A segunda eram os passeios nos quais era obrigatório não levar droga. Conta que de qualquer maneira levavam droga. Era parte da brincadeira entre eles e os mairos: eles tentavam escondê-la e os mairos encontrá-la. Por fim, os “perseguidos” acabavam por se render e atiravam a droga pelas janelas: (…) impunham-nos regras: nada de droga. E ai meu! Pregávamos tanta mentira e às vezes lá subíamos com droga mas a meio caminho parava a camioneta e „Ora que é isto?‟, não é? E „vamos lá a ver miúdos, última oportunidade. Quem traga droga que se desfaça dela porque ali à frente vai haver uma rusga e não há volta a dar‟. Então era o saco de baunilha pela janela e as pastilhas voavam logo.

Quem não deitasse fora a droga antes de chegar ao destino, e que fosse descoberto pelo seu evidente estado de intoxicação, era deixado a meio do caminho para que regressasse sozinho.

5.2.2. Camilo (13 anos) Camilo tinha construído um estilo de vida à margem das figuras adultas da sua infância. Sabia tomar conta de si mesmo na rua e estava muito envolvido no consumo de drogas.

O Quinto Andar tinha fechado, não existia um espaço físico onde educadores e crianças se pudessem reunir. No entanto, os educadores de rua continuavam presentes na zona da Antiga Central de Camionetas e de San Juan de Dios. Foi 65

nessa altura que Camilo ouviu falar dos mairos: diziam-lhe que andavam na rua e ajudavam crianças como ele.

Por esses dias deu-se o primeiro encontro com os educadores. Foi com uma maira, não se lembra a que instituição pertencia, nem em que lugar se encontraram. O que se lembra muito bem é que estava enjoado da droga, não tinha sapatos há vários dias, tinha os pés muito feridos, cheios de cortes e que a maira tratou deles e lhe deu umas sandálias.

Em 1987 encontrou-se pela primeira vez com o educador fundador de CANICA e posteriormente de MAMA AC.: […] os miúdos com quem eu andava cumprimentaram-no e foi a abordagem típica de um Mairo: „como estás? como te chamas?‟. „isto e aquilo, eu sou fulano de tal, trabalhamos com miúdos, temos uma casa‟ […]

A casa de CANICA era provisoriamente no mercado de Mexicaltzingo, lugar frequentado por Camilo e os seus amigos, onde iam buscar comida. Pelo caminho passavam pela casa de CANICA e algumas vezes jantavam lá, pediam um paro38 para tomar banho e ocasionalmente passavam lá a noite.

Camilo reflecte e chega à conclusão de que a aproximação a CANICA se iniciou através do vínculo com os seus pares, através da cultura do “paro” e a solidariedade entre eles.

Recorda que quando estava na CANICA tinha uma sensação estranha, ao estar no meio de tantos desconhecidos, mas em que todos tinham algo em comum, isto é, a experiência de viver na rua: É um ambiente estranho, não é, assim… assim como… é uma sensação estranha chegar a um lugar como este e ver puros desconhecidos e de repente convidam-te para jantar. Pois, é estranho sentares-te entre 30, 40 pessoas da tua idade, que sabes que a maioria está nas mesmas condições.

38 Palavra utilizada na rua como sinónimo de ajuda.

66

No Natal desse mesmo ano foi convidado para uma pousada para todos os que participavam de alguma maneira na vida da CANICA. Foi assim que se aproximou progressivamente da casa da CANICA, até que um dia quis ficar: “[...] não me lembro em que dia, nem porque é que de repente me lembrei de pedir o paro, de passar a viver na casa, mas foi assim, [disse] „quero um descanso‟”.

5.2.3 Oscar (8-9 anos) Na sua experiência não houve um encontro prévio com os educadores de rua. Fugiu do lar onde vivia e nesse mesmo dia chegou ao albergue da CANICA. Desde esse dia passou, ainda que não todas as noites, a dormir lá. Havia diferentes actividades: “Íamos jogar futebol, ao Jardim Água Azul, também era bom... acho que eu nessa altura não era grande fã de futebol mas também me punha à conversa. Acho que havia aulas. Já não me lembro porque é que não ia. Acho que fui uns dias...não me lembro”.

No entanto, havia uma regra que tinha que ser cumprida para se poder ficar lá: “não trazer drogas para a casa”. Mas Oscar introduzia-as astuciosamente para cumprir a regra e não deixar de fazer a sua vontade: “sim, sim, sim, nós chegávamos já bem servidos, para passar a noite...”.

O momento de que mais gostava era quando brincavam: reuniam-se todos à volta de uma mesa de matraquilhos velha e faziam “duelos”39. A razão por que este momento foi significativo não é puramente pelo aspecto lúdico. Do que Oscar gostava era da atmosfera que se gerava a partir desta actividade: a reunião do colectivo em torno da mesa proporcionava-lhe a sensação de pertencer a este colectivo: (…) ou seja, ao jogar, o estar naquele espaço... a jogar e assim como a interagir, a conviver, era como se tivéssemos uma identidade... sentias-te parte de algo, de alguém.

A expressão quer aqui dizer que o vendedor da partida saía do jogo para outro entrar e assim sucessivamente, de maneira a que todos pudessem jogar. 39

67

A casa de CANICA significava a satisfação das necessidades básicas: segurança, afecto e sentimento de pertença40: “Podia estar todo o dia na rua e chegar à noite e haver comida e um lugar que nos aceitava sem problemas, com umas portas assim que me faziam sentir em segurança”. Era isto que o fazia regressar a este lugar.

5.3 O DESPRENDIMENTO: TENÇÃO ENTRE DOIS MUNDOS O conteúdo programático da educação […] é sugerir à população, através de certas contradições básicas, a sua situação existencial concreta, presente, como problema que por sua vez a desafia […] Paulo Freire

Nesta parte examina-se o processo pelo qual as crianças transitam para a instituição. Começa-se com a apresentação de uma breve descrição dos objectivos da instituição e as práticas dos educadores que aí se originam. De seguida faz-se a reflexão sobre o que sucede à criança na sua incursão no albergue e a possibilidade de sair da rua e fazer deste espaço o seu novo lugar de vida.

5.3.1 A instituição e a mudança de vida 41

“Libertar-se dos problemas da rua e construir um projecto de vida Bom” . Luta para que a tua vida mude e seja melhor”, “Caminha mais depressa, voa mais alto”.

Estas são máximas e frases que são parte do discurso pedagógico da instituição. Através delas e de muitas outras, o educador, no seu discurso, transmite às crianças a ideia de mudança: [...] procuramos suscitar a tomada de consciência e participação dos meninos e meninas 42 na compreensão da sua realidade problematizada e na luta para a transformar.

Entende-se por pertença a experiência de se saber membro de um grupo. Isto implica ter um papel dentro do mesmo, assim como partilhar uma série de práticas e significados a partir dos quais se tece o vínculo entre os seus membros. 41 Objectivo do programa criança de rua de MAMA AC. 42 MAMA AC. Modelo de Cuidados à Criança, Programa Criança de Rua. Documentos Institucionais, Guadalajara, Jal., 2000, p. 10. 40

68

Embora a relação criança/educador nos primeiros encontros na rua seja flexível e se baseie em regras mínimas de convivência, passado algum tempo, quando a criança começa a ir ao albergue, são impostas novas regras. Ainda que continuem a ser bastante relaxadas - permitindo a transição da criança da rua para o albergue e aceitando que chegue sob os efeitos da droga, etc. - o nível de exigência aumenta de grau. Algumas destas regras são: não se pode introduzir droga no espaço educativo, se se inicia um episódio de violência os responsáveis devem assumir as consequências e discutir isto com o educador, se se incorrer mais de três vezes na mesma falta haverá uma sanção que pode ser passar uma noite fora do espaço educativo, etc.

As crianças, ao chegarem e participarem no espaço educativo, inevitavelmente questionam-se face à dinâmica do lugar, através do novo discurso e da exigência de práticas diferentes: Neste primeiro momento os meninos e as meninas pouco a pouco e a partir do desenvolvimento da vontade de mudança renunciam aos hábitos negativos adquiridos na rua. Constroem um “NÃO” à ignorância, à violência, à droga, à mendicidade, ao roubo e à prostituição.

Nesta etapa a criança começa a deixar de resistir, tem o desejo de estar no albergue e decide ir para lá. No entanto, para lá ficar e poder beneficiar do que este lhe oferece, tem que se adaptar à estrutura do programa e enfrentar as contradições que isto implica, já que deve abandonar o que tinha sido até então, para o bem e para o mal, o seu lar. É assim que surge a interrogação sobre o seu futuro, e que a criança de alguma maneira deve começar a reflectir e tomar decisões. É o tema da mudança de vida. Este é um momento crítico no processo de transição da criança para um novo mundo.

69

5.3.2 Com um pé na rua e outro na instituição Nas três histórias de vida manifesta-se um fenómeno semelhante ao que se viu no processo de saída do lar: uma tensão que nasce precisamente das contradições entre o mundo da rua e o mundo para que é convidado pelo educador.

A luta interna marca o início de uma nova etapa caracterizada pela oposição que existe entre estes dois mundos que competem entre si. A criança sente-se atraída pelo espaço educativo e pelo que lá encontra, mas também lhe resiste já que o seu sentimento de pertença começa a estar condicionado a deixar algumas práticas comuns “da rua”. Este é um momento crucial já que se não o fizer pode ficar preso na cultura de rua ou, talvez, no jogo permanente de usar a instituição como um espaço de refúgio temporário, convertendo-a num elemento para sobreviver e permanecer na rua.

Na tabela seguinte descrevem-se estas forças de acordo com o assinalado pelos protagonistas nas suas histórias: Tabela 4 Campo de forças na transição rua/instituição Espaço social de vida Rua

Forças que expulsam   

Albergue

  

Forças que atraem

A solidão As consequências da adição às drogas A insegurança



As regras A dependência à droga Os conflitos e desavenças com outras crianças

   

 



A liberdade e a diversão que a rua proporciona O consumo de drogas Rede de pares e adultos chaves para a sobrevivência Vínculo afectivo aos adultos Protecção e serviços Assistência dos pares Desenvolvimento de pertença ao espaço A diversão colectiva

O consumo de droga e o uso da violência geram as primeiras contradições, como sucede com Ramiro:

70

Ramiro: [...]a primeira vez fiquei 24 horas (refere-se ao Refúgio). No dia seguinte lembro-me que me fui drogar. Já não cheguei para dormir. E no dia seguinte assim com o lamento de: “então, já estraguei tudo”. Lá vou eu outra vez, disseram-me logo: “Que é que aconteceu, meu? Mal te vais e já cá estás outra vez…” Mas não, não percebia porque é que regressava, saía, drogava-me e regressava outra vez.

No caso de Camilo a sua decisão de ficar a viver no Refúgio deu-se porque estava à procura de uma forma de largar as drogas: O que é que significava entrar para lá (no Refúgio)? Pois… começar a viver na casa. […] E disseste isso ao mairo? Não me lembro se lhe disse…, […]. Mas se foi, digo: “pois, quero um descanso”, não é? Que mais implicava esse descanso? Pois… deixar a droga.

A droga foi uma das primeiras e mais difíceis prisões contra as quais Ramiro e Camilo tiveram que lutar antes de poderem entrar numa vida nova. A instituição não tinha um programa específico de desintoxicação nem acompanhamento psicológico. O caso de Oscar, que no momento do contacto com a instituição tinha acabado de começar a explorar o seu consumo, foi diferente: Não sei como é que as deixei. Simplesmente deixei-as. O que deixei em último lugar foi o tabaco e assim de repente deixei. Já não quero fumar e deixei de fumar. Ou seja, na verdade nunca... bom, acho que agora percebo porque mudo ou porque começo algo ou porque faço alguma coisa. É à conclusão que cheguei. Acho que é quando sinto que algo se converte numa necessidade, é quando automaticamente, algumas...não sei...os universos conspiram e as estrelas e os corpos e isso tudo, une-se tudo e eu digo, chega [...] Serviu-me para os objectivos que tinha. Então quero estudar inglês e fui à procura e queria, queria. Mas, nunca foi assim como que muito consciente...

Os três entrevistados deixaram de recorrer às drogas nesta etapa do processo, possibilitando assim a sua transição para etapas superiores do programa.

A diminuição do consumo de droga é talvez a tarefa mais óbvia e evidente no que se refere à mudança de vida. No entanto, não é a única. Existe também a violência, uma prática que no contacto com o espaço educativo gera fortes contradições. Ramiro narra uma experiência a este respeito: E cheguei ao pé do miúdo das cadeiras e sem perguntar nem nada tirei-lha das mãos e fiquei a ver e (disse-me) „eh que cena estúpida é essa, és um bom vagabundo, tu? Cabrão‟. E eu não lhe disse nada. Pensei: „cena estúpida, maricas. Não me vais chatear.‟ [...] e depois chegaram os amigos que conhecia e: „que é que houve! Quando é que

71

saíste?‟. E a cena estúpida ficou por aqui: „conhecem-no?‟. Lembro-me que depois andei à pancada com ele.

Na rua a violência é uma ferramenta para sobreviver e um valor altamente reconhecido que dá à criança estatuto ou reputação positiva entre os seus pares. Mas no albergue a mesma conduta violenta é, na linguagem pedagógica, “um problema da rua: as crianças devem construir um não à violência”, da qual se devem libertar: (...) lembro-me que uma vez estava o mairo à conversa comigo e um miúdo chegou e atirou-se a mim. O mairo mesmo ali. Pum! Dei-lhe um murro tão grande que até o mandei para acolá. (O mairo chamou-o à atenção): “Digo-te meu, tu não percebes”. Saí e o mairo (disse-me): „que vás em bem filho da…., vai-te tu também‟.

Como foram resolvidas as contradições que os entrevistados experienciaram?

A resposta não é simples. No entanto, as trajectórias indicam-nos que a correspondência entre as necessidades das crianças e o espaço educativo foi mais forte do que as forças que os expulsavam do espaço e as que os atraíam para a rua.

Na medida em que tecem vínculos no interior do espaço educativo, afastavam-se da rua tanto física como emocionalmente. Esta situação começou a orientar os seus interesses para um novo horizonte, activando o desejo de mudança.

De seguida apresentam-se os factores que facilitaram este exercício de desmanchar e tecer vínculos, com o que será possível juntar mais elementos à explicação de como acontece a transição e a afiliação à instituição.

5.4 O ENCONTRO: FACTORES VINCULANTES CRIANÇA-PROGRAMA

Vimos que a sobrevivência na rua depende em grande parte da afiliação a um grupo de pares. Pertencer ao grupo dá segurança, pacifica a solidão e nutre o mundo lúdico das crianças. Mas fundamentalmente restitui-lhes o seu direito a ser 72

alguém na medida em que são reconhecidos como um membro do mesmo. É a partir deste grupo que a criança consegue reconstruir a sua identidade, dando-lhe novos significados, tanto positivos como negativos.

É difícil pensar que uma vez adaptados à vida de rua, sabendo que conseguem sobreviver, sentindo que são capazes e que controlam as suas vidas livres do jugo imposto no passado pelos adultos, deixaram a rua para ir para o espaço educativo pelo simples facto de que aí haverá um conjunto de serviços que os espera: comida, habitação, roupa, escola, etc.

Os testemunhos dos protagonistas mostram-nos que o processo de afiliação depende de um grupo de factores (que foram organizados nos associados às características dos entrevistados e que correspondem ao programa educativo), a partir dos quais se explica como é que se constrói a ponte entre o mundo da rua e o do albergue, graças à qual as crianças activaram de novo a antiga procura de mudança.

5.4.1 Factores associados aos entrevistados A procura dos entrevistados originou-se na necessidade de ter uma família onde ser alguém e pertencer a algo que satisfaça os vazios de segurança e afecto ausentes na sua primeira infância. No entanto, ao longo do processo de adaptação à rua e do desenvolvimento de pertença ao grupo de pares, a criança adquiriu novas práticas e significados importantes para si que o dotaram de novos elementos de identidade e de um novo sentido de vida.

Assim, nesta etapa da sua vida, a possibilidade de afiliação a um lar substituto, neste caso o albergue, foi mediada pelos seguintes factores: idade, tempo de vida na rua, dependência de drogas, grau de pertença ao grupo de pares, estado de espírito no momento. Na tabela seguinte apresenta-se uma descrição da situação dos protagonistas relativamente a cada um deles.

73

Tabela 5 Factores relacionados com a possibilidade de afiliação ao albergue Entrevistados Factores Idade Tempo de vida na rua Dependência de drogas Grau de pertença ao grupo de pares Estado de espírito no momento

Possibilidade de afiliação

Ramiro

Camilo

Oscar

7-8 3-4 anos aprox. ● Alto ● Alto

13 4-5 anos aprox. ● Alto ● Médio

8-9 1-2 anos aprox.

Atracção à rua: sentia-se bem na rua

Repulsa à rua: Procurava ajuda para sair das drogas, “ter um descanso” Média

Repulsa à rua: Procurava um lugar onde viver

Média

● ●

Baixo Baixo

Alta

De acordo com as trajectórias vemos que em cada uma os elementos anteriores se combinam de maneira diferente e ainda que nos orientem na análise das possibilidades de saída da rua, não são definitivos em nenhum dos casos. Poderíamos dizer que nos ajudam a identificar o grau de dificuldade que uma criança experimentará no processo de afiliação ao albergue. Por exemplo, na trajectória de Ramiro, que parecia ter tudo contra si: mais de um ano de vida na rua, alta dependência de drogas, alto grau de pertença ao grupo de pares e uma experiência gratificante na rua, conseguiu afiliar-se ao programa. No seu caso, a idade, que em princípio podia ter sido um factor que o ia vincular mais à rua, jogou a seu favor facilitando-lhe o vínculo com um educador, com quem desenvolveu uma forte ligação, semelhante ao de um filho ao pai: (…) ao ver que me defendiam, que me davam comida, que me levavam a passear, para mim era a imagem de um bom pai. O que imaginei... porque nunca ninguém me ensinou como era um pai. Lá fui imaginando e fui-me afeiçoando. Era muito apegado.

Por seu lado, Camilo tinha contra si a sua idade, a dependência às drogas e o tempo de vida que tinha passado na rua. No entanto, estava a atravessar uma fase em que se sentia mal, nas palavras de Camilo “precisava de um descanso”, aligeirar a carga de viver na rua.

74

Em Oscar, que se encontrou com o espaço educativo no mesmo dia em que fugiu do internato, observamos um grau mais baixo de dificuldade relativamente aos dos anteriores. A isto se soma a claridade que tinha sobre o que procurava: um lugar onde viver que lhe oferecesse segurança, afecto e pertença.

5.4.2 Factores associados ao programa educativo De seguida apresentam-se oito factores que activam a transição e a afiliação ao espaço educativo: A. O grupo de pares como veículo de mudança, B. O vínculo criança-adulto, C. A orientação participativa e o desenvolvimento de pertença, D. O discurso pedagógico, E. Recuperação dos valores da cultura callejera, F. A experiência de ser um colectivo, G. A diversão e H. Os serviços: um aliciante efectivo.

Estes factores apresentam-se numa lógica que pretende mostrar o processo que se segue para a reconstrução da confiança.

A. O grupo de pares como veículo de mudança Na época em que estas histórias se passam, havia uma grande quantidade de crianças a viver nos arredores da agora Antiga Central de Camionetas. Eram muitos os que iam diariamente ao Refúgio, que era muito atractivo para as crianças já que os seus amigos estavam lá. Mudavam o seu mundo para um novo espaço, o do albergue43: (...) às vezes eram 50 miúdos que estavam lá dentro (...) Iam-se embora (à noite) por exemplo os mais velhos. Eles já alugavam os seus quartos lá na Central. Eles lá se iam e nós ficávamos, 25 às vezes 26 putos mais miúdos.

Nas três histórias os entrevistados foram para o Refúgio a convite de outras crianças que como eles viviam na rua.

Ramiro e os seus amigos de Zamora sentiram de início uma certa desconfiança. Não compreendiam como é que havia um lugar para eles, onde podiam dormir,

43 Para ampliar o contexto veja-se o capítulo 5

75

comer e divertir-se sem necessidade de pagar por isso. As primeiras vezes que Camilo foi ao Refúgio em busca de comida quente foi com os seus amigos: (...) era mais questão de que os miúdos te convidavam que ele, ou seja (...) acho que o primeiro contacto… acho que o primeiro passo para a confiança não é o educador, são os miúdos. Esquema 4 Afiliação e grupo de pares

A função dos pares no processo de afiliação ao espaço educativo Conduzir a criança ao espaço Promover a sua permanência Reproduzir o mundo da criança

No processo de recuperação da confiança, que se materializa no processo de desprendimento à rua e afiliação ao projecto que o espaço educativo oferece, o grupo de pares foi fundamental. De tal maneira que é possível afirmar que o grupo de pares tem duas funções: por um lado serve de veículo para as primeiras explorações do espaço e por outro facilita o regresso e a permanência das crianças na medida em que reproduzem o seu mundo no interior do espaço educativo, mantendo a salvo a sua identidade.

B. O vínculo criança-adulto Nos seus primeiros anos os protagonistas passaram por uma longa cadeia de violência e rejeição por parte das figuras adultas mais significativas da sua vida. Um exemplo disto é o vínculo com a mãe ser caracterizado pela pobreza afectiva. Pelo que o processo de recuperação da confiança e a possibilidade de abertura a uma nova relação requer certos elementos que os entrevistados partilham connosco nas suas narrações. 76

a. Consistência O desenvolvimento de um vínculo baseado na confiança foi uma condição essencial nas primeiras etapas de aproximação ao espaço educativo. A este respeito Freire explica que a confiança nasce da semente da consistência entre o acto de dizer e o acto de fazer.

Ramiro, Camilo e Oscar afirmam como a coerência dos educadores facilitou a construção de um vínculo afectivo entre o adulto e a criança Porque nem nos dava dinheiro, por exemplo. Não nos dava nada em troca. Dava-nos uma amizade e nós lá estávamos. E se éramos 5 ou 6, às vezes éramos até 30 putos ali sentados, por um íman porque se aproximava e cumprimentava-nos e ia-se embora e éramos um magote.

b. Cuidados A relação entre as crianças e os educadores foi-se consolidando a partir de pequenos factos quotidianos que nutriam as necessidades mais essenciais das crianças, tais como a diversão, a protecção, os limites, etc.: […] brincavam muito connosco e por outro lado defendiam-nos dos mais velhos. Via-o assim como a figura de um pai, que me levava a comida, que me levava a passear…

A preocupação que o educador manifestava no seu discurso e através das suas acções foi mais um elemento que contribuiu para o desenvolvimento da confiança: […] e perguntava-nos como é que estávamos. Do que gostava era que nos punha sempre um alto à droga […] Dava-nos a sua amizade mas a sua amizade tinha um preço, um preço bom, valioso, não é? Que era: deixa as tuas coisas um bocado e vamos falar. Fazer-nos sentir que sim, podíamos por 1 hora ou por 2 horas, que sim, podíamos deixar de nos drogar no meio da droga. Era o que mais me chamava a atenção. Acho que era (por isso) que o seguíamos, não é?

A relação com os educadores foi uma experiência nova para eles, que não tinham tido na rua e tão pouco nas suas famílias. A atenção que estes lhes davam, fê-los sentirem-se queridos. A procura de afecto fazia-os regressar ao espaço educativo: E de início que outras coisas te chamavam para lá ir? Ao refúgio? Podiam ser várias coisas. Uma delas é, acho eu, que acho que alguns miúdos gostavam de algum mairo em especial. Eu da maira Lupita. Sentia-me assim… como que me aceitava, gostava de mim e acho que essa também era uma das razões por que regressava. […] Acho que me apegava muito aos mairos. Era muito apegado. Lembro-me que chegava e assim e corria a abraçá-los, a quem chegasse. Chegava um ia, abraçava-os; chegava

77

outro ia... e também era muito apegado. E se algum me dizia não te vás a tonchar cabrão, não tonchava.

44

agora

c. Horizontalidade A consistência do educador com a atenção que dava às crianças estava enquadrada numa estrutura de relação horizontal. No seu encontro com os educadores enfrentaram uma nova forma de relação, baseada no diálogo, à qual respondiam favoravelmente, já que nela percebiam o real interesse dos adultos por eles: Porque é que, se não gostavas que mandassem em ti, fazias caso do mairo? Porque não era assim que se impusessem. Havia maneiras. Não era: „cabrão deixa a estopa cabrão!‟. Sim, não era? „Vá, quem quiser falar pode vir para aqui falar comigo, mas peço-lhes que não se estejam a tonchar por agora‟. Era a grande diferença do que tinha vivido com a minha mãe. É que aqui se pede, não é? Esquema 5 Afiliação e vínculo com o educador

Elementos que fortalecem o vínculo criança/educador Consistência

Cuidados

Horizontalidade

Os entrevistados experimentaram um novo tipo de relação com os adultos que é muito diferente da relação vertical e autoritária vivida na etapa familiar. Em alguns casos depositaram nos seus educadores o papel de pai ou mãe que nunca experimentaram: (…) ao ver que me defendiam, que me davam comida, que me levavam a passear, para mim era a imagem de um bom pai. O que imaginei porque nunca ninguém me ensinou como era um pai. Lá fui imaginando e fui-me afeiçoando. Era muito apegado.

44 Vocábulo utilizado na rua que expressa o acto de inalar

78

tonzol (toncho)

A partir destes factores os entrevistados tiveram a possibilidade de construir um vínculo afectivo com os educadores e de os incluir na sua rede de apoio social. Na medida em que confiaram neles foram ocupando paulatinamente um lugar importante nas suas vidas.

C. A orientação participativa e o desenvolvimento de pertença A permanência na instituição depende das crianças conseguirem apropriar-se do projecto que esta lhes oferece. As trajectórias de vida dos protagonistas mostram que a orientação participativa da instituição foi um factor importante no processo de afiliação. Esta orientação baseou-se no princípio de portas abertas45, na participação e protagonismo das crianças na vida comunitária.

O processo a partir do qual os entrevistados se foram apropriando deste novo espaço social, os seus códigos, os seus conteúdos, os seus propósitos, constituiuse de uma maneira muito particular, já que duas circunstâncias que em princípio pareciam adversas, exerceram um efeito positivo para o desenvolvimento de um forte sentimento de pertença ao espaço educativo. Estas circunstâncias foram: a necessidade de reconstruir e adaptar o novo imóvel que tinha sido emprestado à jovem instituição - que estava praticamente em ruínas - para fazer dela um espaço educativo digno e a crise institucional que desencadeou uma ruptura e a formação de uma nova instituição.

No seu início, o Refúgio era uma construção em ruínas habitada por algumas ratazanas. Contudo, apesar disto as crianças preferiam passar ali a noite do que nas instalações da Antiga Central de Camionetas. Como se explica isto? O fundador de MAMA recorda que as crianças diziam que preferiam ficar no Refúgio, ainda que tivessem que dormir na terra e ter cuidado com as ratazanas porque aquele lugar era seu. Trabalharam durante o dia ao lado do educador e de um grupo de operários para reconstruir o que seria a sua casa: “[...] diziam que o

45 Isto significa que é decisão da criança

ir e permanecer no albergue.

79

primeiro mês foi uma chatice para tirar terra, lixo... a mim não me tocou tirar lixo nem escombros. Tocou-me remodelar, mas não o pesado”.

Algum tempo depois uma crise deixou o projecto durante alguns meses à deriva. As consequências foram a perda do nome original (CANICA AC.), assim como o abandono de todos os educadores com excepção do fundador. À primeira vista, esta situação parece ser totalmente desfavorável mas, como diz o ditado, o que não mata, engorda. E neste caso a pertença ao espaço educativo, o protagonismo, a organização e a auto-gestão dos seus residentes fortaleceu-se: Quando houve a bronca desses da Canica […] o Rogelio convocou-nos para uma reunião extraordinária. Explicou-nos tal e qual o que era o problema: “sabem que há este problema, tiraram-nos o nome e vou lutar por ele. Mas por agora não temos fundos. O que fazemos?”

A comunidade uniu-se para manter economicamente o Refúgio enquanto o seu fundador organizava novos recursos para o projecto, agora chamado MAMA AC. Lembro-me que tínhamos a banca de engraxador da Central, que era do Rogelio. […] Não sei se foi um puto ou se foi o Rogelio que disse: “vamo-nos sustentando com a banca de engraxador”. E eu achava graça porque todos os pasteleiros que nós éramos dizíamos: “Simón vamo-nos sustentar”. […] Por exemplo, durante a semana metade do que ganhávamos era para a causa: ganhávamos $150 para a causa e $50 p‟ra nós. […] Tínhamos reuniões todos os dias e aos domingos levava-nos às compras ao mercado e íamos comprar legumes.

Os três entrevistados envolveram-se de maneiras diferentes neste processo. Ramiro participou plenamente nesta etapa, Camilo integrou-se no final e Óscar chegou quando as coisas começaram a melhorar. Para os dois primeiros esta experiência encerra algumas lembranças significativas. Ramiro sentiu-se orgulhoso por poder fazer algo pelo espaço educativo: […] gostei muito desta participação de todos, pois. Porque todos fizemos um bocadinho

Para Camilo, foi a possibilidade de usar o seu tempo em algo positivo: […] tinha chegado há pouco tempo, mas envolvi-me rapidamente. Lembro-me que fizemos uma marcha e também me juntei e acho que fui… […] Se bem me lembro, foi a primeira vez que gritei palavras de ordem ou assim. Mas gostei, gostei da agitação. É uma boa maneira de encontrar e fazer confusão e de não te aborreceres. Porque também podes ir a este tipo de eventos […] em que se faça algo. E podes ver as coisas de outra maneira e juntares-te e não só juntares-te: tornas-te no protagonista e o tempo passa num instante, num instante.

80

Esquema 6 Afiliação e projecto pedagógico Traços da orientação participativa que promovem a pertença A participação na tomada de decisões A colaboração nas actividades quotidianas do albergue Co-responsabilidade nos problemas comunitários

As trajectórias mostram que esta orientação contribuiu para: 

A coesão comunitária



O fortalecimento das imagens positivas de si mesmos, baseada no alcance de objectivos



O fortalecimento do vínculo crianças-adultos



O afastamento temporário da rua e do consumo de drogas

D. O discurso pedagógico Entende-se por discurso pedagógico aquelas ideias ou conceitos definidos institucionalmente que se apresentam às crianças fazendo uso de elementos do seu mundo linguístico e que são transmitidos através do educador. O discurso do educador tem a função de dar às crianças novos significados sobre o seu mundo, a sua realidade e sobre si mesmos, através dos quais constroem uma perspectiva para o futuro e reinterpretam o seu passado. Camilo faz uma referência interessante a isto ao assinalar o que se segue: Então de repente, durante muito tempo ouviste que a mendicidade não resolve nada, o não ao roubo, a pancada não resolve nada. Então de repente chegas à rua e sentes-te todo desorientado e no mínimo mais fraco ou menos esperto que os outros. E com medo. Ou seja, antes divertias-te, toda a gente te ajudava e hoje assim. As lições magoam, pois.

81

Oscar Que te ensinavam os mairos a respeito da mudança? Assim sobre as fases da MAMA, que estávamos na segunda (fase), que a terceira era melhor, que eram 24 horas, que podíamos ir à escola. Falam-te muito do futuro, para que construas o teu futuro e que uma vida digna, não sei...mmm...algumas dessas coisas faziam eco e lá... então ficamos parados? Vamos em frente, não é verdade?

O discurso pedagógico é o fio com que se vai tecendo a visão de que uma mudança é possível. A função deste discurso é oferecer novos significados à criança com os quais explique o seu passado, o seu presente e consiga imaginar o futuro que pode construir para si mesmo e para os que a rodeiam: (Queríamos) que a partir da memória colectiva se visse tudo o que se viveu e como foi o caminho. Também que na memória colectiva penetrasse a esperança do „sim, pode-se‟ (…) Exaltar na memória colectiva a luta contra a rua. Além disso, introduzir uma atitude 46 individual de compromisso para continuar na luta e conquistar uma vida nova .

O discurso neste caso, recupera três ideias fundamentais em termos da facilitação da mudança: 1) A ideia de que a vida das crianças pode mudar, 2) que depende delas mudá-la e 3) que têm a capacidade para o fazer. O que é essencial em termos da recuperação da confiança.

E. Recuperação dos valores da cultura callejera A ida regular ao espaço educativo nas primeiras etapas de aproximação não depende apenas da possibilidade de receber um benefício através dos serviços que este oferece, nem de aceder a um lugar mais seguro, cómodo e com melhores oportunidades.

A aceitação pela criança do novo espaço social relaciona-se também com a possibilidade de se sentir identificado com ele. Nas narrações salientam-se alguns elementos como o espaço educativo reproduzia a cultura callejera, tais como:

46 Descrição do contexto que rodeou a geração da esperança. Entrevista realizada a Rogelio Padilla Díaz, Guadalajara, 9 de febrero de 2005.

82

Esquema 7 Afiliação e cultura callejera

Recuperação de alguns elementos da sua cultura O princípio de portas abertas

A cultura do paro e a solidariedade A recuperação e adaptação de elementos da sua linguagem pelo discurso educativo



O princípio de portas abertas que permitia às crianças tomarem as suas próprias decisões relativamente a quando ir ao albergue



A recuperação da lógica do paro e a solidariedade callejeros, que implica um princípio de colaboração entre irmãos ou iguais.



A incorporação de alguns elementos da linguagem relacionados com os valores callejeros tais como: giro, paro, mano, etc.

Os entrevistados, ao fazerem da rua o seu espaço de vida, obtiveram liberdade e autonomia relativamente aos adultos, um lugar e um estatuto no interior do seu grupo, mas sobretudo uma identidade que lhes permitiu ser alguém num mundo que lhes negava esta possibilidade. É por isso que a identificação da criança com o espaço educativo parece não só depender da presença dos seus pares no albergue, mas também de que, com eles, tenha a possibilidade de ser quem é no interior do mesmo, paralelamente àqueles valores aprendidos na rua e que agora eram parte importante do seu mundo.

83

Esquema 8 Afiliação e experiência de família Satisfação de necessidades

Segurança

Afecto

Pertença

F. A experiência de ser um colectivo A necessidade de uma família reaparece nesta etapa, nos três casos. Dois deles, Ramiro e Oscar, referem que no Refúgio tiveram a sensação de estar em família. Camilo, por seu lado, diz que de alguma maneira procurava substituir a falta da família com os pares e educadores: “o da relação familiar, então como que queres encher este vazio com os companheiros que estão ali”.

Ainda que não tivessem tido uma família que exercesse as funções correspondentes (segurança, afecto, pertença), era claro para eles quais eram estas funções: […] quando chegava e fechavam a porta e estavam lá todos assim, um grupo, acho que também era a sensação de... não de uma família. Mas era algo muito parecido, assim… o mais parecido que eu podia ter de família, se bem que nessa altura não pensasse assim. Mas acho que sim. Era saber que estás num grupo e a conviver e que vai haver comida e que vais com quem tu conheces e que vão fechar a porta e que te vais deitar ali no quentinho.

O Refúgio era atractivo na medida em que apresentava a possibilidade de pertencer a um espaço semelhante ao de uma família: “ainda que não seja uma família, mas parece-se com o que se sente quando se está numa”.

84

G. A Diversão Esta actividade é algo importante nas trajectórias de vida. Os três entrevistados consideram a diversão como uma das melhores coisas do albergue: [...] lembro-me das brincadeiras que fazíamos. (...) Sim, todas as noites era uma brincadeira pegada. [...] Sim, tudo ao monte. Podes imaginar quase 30 putos ali, a brincar. Foi lá onde me partiram o dente, num trambolhão… lá.

O futebol era uma actividade muito importante para a comunidade e para os seus membros, além de ajudar na sua integração e contribuir para a sensação de ser parte de um grupo: [...] acho que isso de jogar à bola todos juntos...acho que era das coisas mais importantes. Gosto muito de futebol, não é? Mas era giro ver como... assim o riso, as habilidades. Todos juntos. Ou seja, sim! Agora percebo! Ou seja, através do jogo demonstras que, que estás, que tens uma identidade como grupo.

Jogar com os educadores também foi importante Ena! era giro (os mairos) porque jogavam muito connosco. E se fosse preciso defendiamnos dos mais velhos.

Em síntese, o jogo aparece como una forma de linguagem que medeia entre as crianças e os educadores, gerando experiências agradáveis e satisfatórias e fortalecendo o sentimento de pertença.

H. Os serviços: um aliciante efectivo Recordemos que naquela época, ao contrário de actualmente, os programas de cuidados à infância em situação de rua eram projectos pioneiros. Naquela altura só havia dois: o Programa MESE e MAMA A.C., pelo que os serviços que ofereciam era algo novo que chamava as crianças para o espaço educativo.

Para Ramiro era importante ter um espaço onde ir comer, sobretudo porque achava que uma vez alimentado seria mais legítimo drogar-se e que isto seria menos prejudicial já que tinha nutrido previamente o seu corpo: “[…] pelo menos jantávamos e tomávamos o pequeno-almoço, já que a comida psss… era rara a vez que íamos ao mesmo [refere-se a que a droga lhes tirava a fome]” No caso de Camilo os serviços significaram um forte atractivo que o fazia ir ao espaço educativo: 85

E que te fazia ir ao Refúgio? Pois… acho que os serviços… ou seja, acho que os serviços são sempre atractivos e honestamente torna-se em algo que é cómodo ter: quem te dê que comer, ter um lugar quente onde não passar frio.

Uma das primeiras recordações do Refúgio que se fixou na memória de Oscar, está relacionado com o alimento: “lembro-me que chegámos e havia umas bolachas assim bem boas que davam no Refúgio […]”

No entanto, os serviços em si mesmos, para além de serem um bom pretexto para explorar o espaço educativo, não eram suficientes para promover o regresso periódico dos entrevistados e o desprendimento à rua. De seguida analisaremos os factores promotores da permanência dos entrevistados neste espaço.

5.5 CONCLUSÃO Os factores apresentados nesta parte restituem às crianças a confiança perdida e promovem o desenvolvimento do sentido de pertença e afiliação a um novo mundo que lhes oferece a possibilidade de construir com base neles um novo projecto de vida.

86

Esquema 9 Elementos que intervêm na primeira etapa da mudança

Possibilidades de afiliação da criança ao programa - Idade - Tempo de vida na rua - Dependência das drogas - Grau de pertença ao grupo de pares - Estado de espírito do momento - História pessoal

De acordo com o

Funções principais do programa: - Preenchimento de carências afectivas, materiais e educativas

RECUPERAÇÃO DA CONFIANÇA

Factores facilitadores da afiliação: - Orientação participativa: alcance de objectivos comuns - Vínculo aos educadores e pares: diálogo, horizontalidade e princípio de confiança mútua - Recuperação dos valores callejeros: práticas de colaboração, ajuda mútua e diversão colectiva - Práticas e discurso orientados à acima, o processo de mudança

Situam a possibilidade de mudança no horizonte da criança

BASES PARA A EDIFICAÇÃO DE UM NOVO PROJECTO DE VIDA

DESENVOLVIMENTO DO SENTIMENTO DE PERTENÇA

aproximação e afiliação ao espaço

educativo segue uma lógica progressiva que se define a partir de três fases: 1. Desenvolvimento da confiança em si mesmo (nas suas capacidades e no seu valor pessoal), nas figuras adultas, num novo espaço social, no futuro e na possibilidade de mudança. 2. Desenvolvimento de afeição e pertença ao programa 3. Desenvolvimento de uma visão de futuro que se materializa a partir de objectivos colectivos e individuais 47

47 É importante assinalar o grau de consciência dos entrevistados relativamente à mudança e ao futuro. Os entrevistados expressam que não tinham uma consciência clara do que se estava a passar nas suas vidas e que se tratou antes de uma experiência em que seguiam em frente e se deixavam levar pela inércia no meio do colectivo.

87

Tudo isto mediado pelos pares, pelos educadores, por um projecto pedagógico baseado numa metodologia participativa e numa estrutura discursiva através da qual se tece o processo de re-socialização48.

Falta dizer que não se tratam de fases rigidamente definidas, mas sim de momentos que se entrelaçam uns nos outros e que aparecem nas trajectórias sob a lógica descrita acima.

Na medida em que a criança consegue desenvolver confiança, afeição e visão de futuro, a ambivalência que experimenta relativamente ao mundo da rua vai diminuindo já que os seus interesses começam a transformar-se e a dirigir-se para o novo mundo. Esquema 10 Processo de afiliação ao espaço educativo

A re-socialização é um caso extremo. Contudo, existem muitas fases que não implicam romper com a realidade anterior e que se constroem uma nova realidade subjectiva mediante o processo de socialização secundária, mas baseada na primária. 48

88

A mudança apresenta-se como uma alteração, isto é, uma mudança radical semelhante ao que sentem as pessoas que se unem a uma congregação religiosa ou a um partido político. Berger e Luckmann explicam que esta mudança só pode ocorrer a partir de um processo de re-socialização que implica no seu grau mais extremo desmantelar a realidade anterior e construir uma nova49.

Os autores afirmam que a re-socialização requer uma matriz de plausibilidade, ou seja um contexto que possibilite este processo. No caso que nos interessa, a instituição fornece a matriz que serve de “laboratório para a transformação”50.

Esta organização, desenhada para a mudança, tem uma estrutura específica, um grupo de práticas determinadas e um discurso cuja função é transmitir os novos significados e legitimar a proposta institucional tanto na etapa inicial como nas subsequentes.

A

matriz

opera

mediante

um

processo

que

facilita

o

desmantelamento da antiga realidade e a construção de uma nova. Para que isto ocorra é necessário que se dê o seguinte: 

Desenvolvimento de um alto grau de afiliação ao programa (matriz de resocialização) que ocorre na medida em que se gera uma identificação fortemente afectiva com os significantes da matriz (educadores e pares): Esta estrutura de plausibilidade será mediada relativamente ao indivíduo por outros significantes, com quem deve estabelecer uma identificação fortemente afectiva. Sem essa identificação não pode produzir-se nenhuma transformação radical da realidade subjectiva 51 (na qual se inclui, certamente, a identidade) .

 O distanciamento total ou parcial da realidade anterior, pelo menos até que a nova realidade se estabeleça:

Berger L. Peter, Thomas Luckmann. La construcción social de la realidad. Amorrortu, Argentina, 2003, p. 185-216. 50 Ídem. 51 Ídem. 49

89

Isto significa uma concentração intensa de toda a interacção significativa dentro do grupo que sintetiza a estrutura aludida e em particular no elenco encarregado da tarefa de re52 socialização .

De acordo com o que as trajectórias nos dizem, este processo segue uma lógica que se inicia na transformação inicial da realidade objectiva, isto é, da transformação das práticas quotidianas da criança para a posterior transformação de alguns aspectos da sua realidade subjectiva (identidade, crenças, imagens de si mesmo).

Esquema 11 Caminho seguido pelo processo de re-socialização

Nesta dinâmica parece estar contida a origem da mudança.

52 Ídem.

90

Nos capítulos seguintes veremos como esta matriz mantém a identificação das crianças com o espaço educativo e como o processo de mudança continua o seu caminho uma vez alcançada a afiliação.

91

6. Transição para a terceira fase (Casa Grande) do Programa MAMA A.C.: o prelúdio de uma nova vida

6.1 O CONTEXTO DA TRANSIÇÃO 6.2 CRÓNICA DE UMA NOVA MUDANÇA 6.3 ANÁLISE DA TRANSIÇÃO 6.4 CONCLUSÃO

Neste capítulo analisa-se o período de transição do albergue (segunda fase do programa Criança de Rua) para um novo espaço chamado “Casa Grande” (conhecida como a terceira fase do mesmo programa). Esta é uma comunidade aberta 24 horas, situada no extremo sul da cidade. É um espaço semi-rural ou campestre onde se pode ir apenas utilizando os meios de transporte suburbanos, longe da zona onde as crianças haviam vivido as suas vidas até então.

Descreve-se aqui o contexto no qual ocorreu a transição, as narrações de cada protagonista e analisa-se este processo.

92

6.1 O CONTEXTO DA TRANSIÇÃO A nossa Geração da Esperança existe. E é composta por 34 crianças que são a prova viva da experiência educativa de sucesso de MAMA A.C. Ex-filhos da rua, feitos de um barro forte, a vida miserável do passado não os venceu. Já não lutam pela sobrevivência. Agora lutam por uma vida melhor. São a nossa alegria, a nossa enorme esperança. Viveram profundamente enraizados na rua, mas agora estão do outro lado, lutando pelas suas vidas: às vezes com sucessos admiráveis, outras com fracassos. Mas uma coisa é para eles muito clara: um gajo que não luta é engolido pela rua. Rogelio Padilla Díaz

A instituição passou a contar com um novo espaço num bairro localizado num extremo da cidade, bastante longe da zona do centro à qual os habitantes do Refúgio tinham uma ligação histórica. A aquisição deste novo espaço permitiu que a equipa de educadores pensasse em dar vida à terceira fase do programa: a Casa Grande da MAMA (CGM).

Uma vez tomada a decisão, começou o processo de transição. Os educadores tentaram gerar nas crianças novas expectativas de futuro. Ajudavam-nos a traçar novos horizontes, a identificar novas coisas por fazer, novos sonhos e objectivos a alcançar: [...] (Tentávamos) que a partir da memória colectiva, se observasse tudo o que se tinha vivido e como se tinha feito este percurso. Também que na memória colectiva penetrasse a esperança do „sim, pode-se‟ […], exaltar na memória colectiva a luta contra a rua, assim como introduzir uma atitude individual de empenho para continuar na luta e alcançar uma 53 vida nova

O processo de transição foi iniciado na segunda fase, o Refúgio, com diversas actividades: assembleias comunitárias para a reflexão, actividades e exercícios de 53 Op. Cit.

93

motivação, assim como visitas à nova casa, a CGM, que serviam para transportar algumas coisas, limpar o jardim e organizar algumas partidas de futebol. Passavam o dia inteiro lá. Era como um dia no campo e mesmo a cozinheira se envolveu nestas jornadas, levando comida preparada para todos: “não me lembro quanto durou esta etapa, se quinze dias, fomos e voltámos uma e outra vez, até que lá levámos tudo”.

O Refúgio foi encerrado temporariamente uma vez que os educadores acompanharam as crianças e adolescentes (34 aproximadamente) ao longo do processo de adaptação.

A chegada à nova casa foi marcada com um ritual que simbolizou o início de uma nova vida: foram queimados “os hábitos”. Os educadores organizaram a comunidade em pequenos grupos com o objectivo de reflectirem e decidirem quais os elementos da “vida velha” que iam deixar para trás. Depois escreveram em papéis que queimaram numa grande fogueira.

A CGM tinha um jardim amplo, espaço para uma cozinha de boas dimensões, uma sala de estar e uma sala de jantar muito amplas. No entanto, não estava preparada para a comunidade que ali se ia instalar. A adaptação fez-se de maneira progressiva e depois de as crianças já viverem na casa. Foi uma fase de trabalho conjunto entre as crianças, os educadores e alguns especialistas que colaboraram nas diferentes actividades: jardinagem, canalização, construção, carpintaria e electricidade.

O quotidiano desenvolveu-se no início na mesma lógica que a da casa anterior. No entanto os primeiros dias foram inteiramente dedicados a trabalhar na casa para a arranjar: depois começámos a bulir. Calhou-nos mudar de casa em tempo de chuvas, então estava tudo crescido na parte do pátio. Tocou-nos cortar as ervas, a outros limpar a casa.

94

Nos primeiros meses dormiram todos numas mantas, uma vez que as camas foram construídas posteriormente pelas crianças e adultos.

Não foram apenas as crianças que se mudaram para a casa nova, mas também o seu séquito de cães que noutros tempos os acompanhavam nas suas correrias na rua. Em breve se viram as consequências de tal caótico grupo de animais: as crianças apanharam sarna. A grande manta que fazia as vezes de cama comunitária foi a fonte da infecção. Camilo conta que a situação chegou a tal estado que tiveram que os separar para que a doença pudesse ser controlada: Dormíamos na manta. Era lá que se faziam as camas. Tínhamos um monte de cães, apanhámos todos sarna, pelas mantas. Depois estávamos divididos em não sarnosos, os com menos sarna, os mais ou menos sarnosos e os sarnosos.

Uma vez a casa arranjada e já com as divisões necessárias para os dormitórios, os educadores levaram a cabo o processo de formação e organização das famílias54. Cada uma escolheu o seu nome e o emblema que as caracterizaria, e ocupou um dos novos quartos, dos quais passaram a ser responsáveis. Bem, trabalhámos em duas opções: numa fizemos nós uma lista de com quem é que gostaríamos de viver; e noutra, assim, os mairos também trabalharam na lista deles. Este trabalho foi feito assim nos primeiros dias de adaptação à casa e mesmo antes de chegar. E já depois é que se deu a lista das famílias.

Nos primeiros meses estudaram todos na casa, acompanhados por professoras voluntárias.

Ramiro e Camilo pertenceram à primeira geração de jovens que fundaram a CGM. Algum tempo depois chegou Oscar como parte da segunda geração.

Como parte do processo de transição da segunda geração para a CGM, o grupo a que Oscar pertencia foi visitado por algumas das crianças e adolescentes da primeira geração da “Casa Grande do Programa MAMA A.C.” que falaram com

54 Núcleo organizativo a

partir do qual se organiza a vida comunitária. É formado de membros de diferentes idades: pequenos, médios e grandes, pretendendo-se fomentar reciprocidade e solidariedade entre os diferentes grupos de idade.

95

eles sobre o que significava estar na terceira fase, do que lá faziam e das novas oportunidades que teriam se decidissem dar este passo.

Depois de um trabalho de aproximadamente dois meses chegou o grande dia em que o segundo grupo estava pronto para se mudar para a sua nova vida. Organizou-se um passeio a Chapala55 no final do qual se dirigiram à CGM. Quando chegaram levou-se a cabo uma cerimónia ritual que Oscar descreve: Era uma actividade e puseram-nos em duas filas. Puseram-nos de frente, às duas gerações, e cada um se ia (apresentando) ao da frente. (…) Apresentámo-nos a todos e aos seguintes. Foi muito interessante. Depois disso, de nos conhecermos e não sei quê, seguiu-se a criação das famílias.

Uma vez feita a apresentação entre os novos e velhos residente da comunidade, os educadores explicaram como esta estava organizada em famílias, as quais seriam reestruturadas para acolher os novos membros. Explicaram também quais as regras e responsabilidades que uma família tinha a seu cargo: [...]os papéis, as limpezas por família […],os reconhecimentos à família e quando alguém não faz alguma limpeza, então a família vai ter que fazer as coisas por ele... isso tudo.

Depois disto formaram-se as novas famílias e cada uma escolheu um nome, um lema, um símbolo e uma cor para se identificar: Vamos lá ver! Que vamos fazer? Que lhes parece se for por letras? E que cada letra signifique algo (e dissemos): Vamos lá ver! Somos uma família: “f”, temos que ser limpos: “L”, devemos ser organizados: “O”... E assim foi saindo, não é?... a FLORTULA: Família limpa, organizada, responsável, trabalhadora, unida... falta o “A”, não me lembro (o que significava).

6.2 CRÓNICA DE UMA NOVA MUDANÇA

6.2.1 Ramiro (9 anos aproximadamente) Para Ramiro, ir viver no novo espaço significava afastar-se dos “problemas” da rua, assim como também lançar-se numa nova aventura: […] uma mudança de vida um pouco! Porque era um afastamento assim muito grade dos problemas, uma mudança de espaços, de lugar. Eh! E ainda mais para um lugar que não

55 Pequena povoação na margem do Lago de Chapala.

96

conhecia, pois. Um lugar desconhecido, o que sempre me tinha agradado. Foram assim, pois, as primeiras impressões, pois.

Para ele, ir para a CGM implicava sair da cidade para um lugar mais tranquilo e sobretudo com mais espaço para poder brincar e sentir-se livre: […] ao princípio foi muito cómodo, não é? E depois de viver na cidade vais para um lugar mais longe da cidade. […] Quer dizer, viver no meio do barulho e chegar a um lugar onde era mais silencioso. Ver o lugar, conhecer o terreno de novo. Ver onde... onde íamos para correr. Pois eu achei assim como, assim…eu via-o assim… contentes com o lugar que era maior. Tinha um pouco mais de liberdade, não é? Para brincar. E foi só quando chegámos ao pátio […] siiim! chegávamos e a primeira coisa que fazíamos era sairmos disparados para o pátio e podíamos ser mais livres, assim, com mais liberdade. Então, assim… nunca se forçou a mudança. Foi com gosto e muito alegres, pois. De ver um espaço maior.

Sem conhecer ainda os processos organizativos e a importância da sua participação nas tarefas da vida comunitária, seguia a dinâmica da comunidade. Seguia o exemplo dos mais velhos e juntava-se às tarefas diárias que tinham que realizar: E como foi que se foi fazendo a organização desta comunidade? Eh pá! Olha que isso sim é, é meio difícil. Nome!… o que acontece é que…, pois, naquele tempo era miúdo e os outros diziam vamos fazer isto. Era assim darem as ordens sem mais. Vamos lá a ver: há que fazer as limpezas. E vá, assim, não é? Assim… têm que se organizar famílias para se organizarem as limpezas. Era assim: à família fulana de tal tocalhe tal tarefa. Os mairos eram… são quem se encarrega de dar as tarefas, de fazer as actividades, não é?

Nestes testemunhos vemos como a brincadeira era uma actividade central na vida de Ramiro através da qual se vinculava aos seus pares e ao próprio projecto, ainda que com este último a vinculação se pode observar também pelas actividades que programavam os mairos.

6.2.2 Camilo (14 anos aproximadamente) Era dos mais velhos do grupo e com uma experiência de maior vinculação à rua, pelo que sentia cepticismo relativamente à ideia de uma nova vida. As ideias de mudança e construção de uma nova vida ainda não tinham sido interiorizadas e tudo isto fazia-o duvidar da possibilidade de uma nova vida. No ritual de chegada à CGM tiveram que discutir sobre quais os elementos da vida antiga que queimariam nesse ritual, isto é, o que abandonariam a partir desse momento:

97

Lembro-me que numa assembleia nos disseram “e agora temos que escrever todas as coisas que queremos queimar daquela vida”. E eu acho que éramos miúdos mas também éramos inconscientes não é, porque dizíamos para quê queimarmos isto se não vamos fazer isso? Então havia até discussão dentro do grupito de trabalho, pelo menos do que me lembro: “e agora temos que queimar o cigarro” e logo “não” – dissemos nós – “não brinquem! Não vamos queimar o cigarro!” Eles discutiam entre o possível e o mais real e o mais real era que não se ia conseguir deixar algumas coisas.

Camilo duvidava que fosse possível. Tinha medo de um novo fracasso. Agora que é um adulto e depois de ter percorrido este difícil caminho, defende que um ritual ou mil palavras de encorajamento não são suficientes para o conseguir: […] Eu acho que o ritual é algo bem-intencionado e que usa muitas palavras para tentar convencer-te. […] O ritual não consegue tocar a parte da fé em ti mesmo. Repetir máximas toda a gente faz, como carneiros. Repetimo-las na igreja, nos partidos políticos. Mas ter fé em ti mesmo é o mais difícil.

Dá-se conta que era difícil acreditar em si mesmo e na sua capacidade para seguir em frente quando mais do que uma vez a experiência lhe tinha mostrado que não era uma pessoa capaz: […] De repente a tua auto-estima não te consegue fazer acreditar que podes e que é assim de fácil. Viveste sempre em situações difíceis, mentalmente já estás programado para dizer não. Estás engrenado para o pessimismo.

Mesmo assim, tinha o desejo de mudança, de deixar a vida antiga e construir uma vida nova, confrontar as grandes contradições, as feridas antigas que queria deixar para trás e a incerteza de não saber como lidar com tudo isto: E a luta interna é enorme: por um lado dizes ‟sim quero um descanso‟ mas na verdade tens muito poucos elementos e recursos para poderes descansar, não é? Tens a companhia dos adultos, mas tens a necessidade de um adulto em particular. E tens muita necessidade de carinho, de afecto. Há muitas coisas que não conseguiste e que não alcançaste.

No meio de tudo isto, os vínculos previamente tecidos e os bons momentos da vida comunitária ajudam-no a seguir a inércia entusiasta do grupo. Os momentos de encontro e brincadeira com os seus pares eram o momento mais alto do dia: Pois, o melhor foi ter um espaço para brincar. Ficávamos muito tempo no futebol, todos cheios de energia e que não acabava. Então (quando acabava) ficávamos por ali a pairar.

6.2.3 Oscar (10 anos aproximadamente) Anos mais tarde, Oscar considera que esta etapa foi crucial na sua vida, já que a partir dela começaram a dar-se uma série de acontecimentos que ao se irem 98

somando, um a um, o levaram a desenvolver uma perspectiva de futuro e tomar uma série de boas decisões para a sua vida: […] Mas, felizmente, acho que segui um bom caminho. Mas não é que tenha tomado uma decisão assim muito pensada, não, porque só íamos indo.

Entre aquelas situações considera que se pode contar o trabalho dos seus educadores: […] E acho que também aí foi um pouco do trabalho dos mairos de (nos dizerem): “Vamos à Ciudad Granja!” e “a escadinha”, e ”vão para cima!” e não sei que mais…

O discurso dos educadores influenciou-o. Acredita que de tanto ouvir a ideia de que as drogas eram más e que o impediriam de avançar no seu projecto de vida esta acabou por se registar na sua consciência: “Pois eu acredito que de alguma maneira sim, se interiorizou, não é? Todas as histórias de não te drogues, as drogas são más”. Ainda que tudo o que fazia não se originasse num processo consciente de reflexão, a sua percepção é que as coisas iam ocorrendo por si mesmas. Acredita que foi só quando estava na secundária que começou a tomar consciência das implicações das suas decisões: “Não, não deixei só assim. Os meus processos conscientes, as minhas decisões conscientes começaram quando comecei a secundária”.

Outro facto importante desses dias foi o encontro com alguns estrangeiros que visitaram o Refúgio de MAMA quando lá vivia. Ter conhecido pessoas de outros países “com outra mentalidade”, originou em Oscar uma admiração por essas pessoas que eram tão diferentes dele, assim como um desejo de os imitar: Lembro-me que chegou um haitiano, lembro-me que chegaram (também) dois alemães ou não sei quê. Acho que eles foram se calhar … um pouco quando eu me comecei a ver seguir para a frente, para o futuro, para cima, até ao céu, não é?

Mais tarde, a passagem para a terceira fase (Casa Grande) do Programa MAMA A.C. e a constituição da família FLORTULA deu a Oscar uma forte sensação de orgulho e fortaleceu o seu sentimento de pertença a este lugar. Admirava os seus companheiros mais velhos (que formavam a primeira geração da CGM), atraía-o que eles “tinham outra mentalidade e outra forma de ver as coisas”. Admirava 99

especialmente Chepe, que por ser o mais velho e o mais antigo na casa, tinha o papel de líder na família de Oscar: […] Lembro-me que admirava muito o Chepe: era muito bom no futebol e era um miúdo assim (com) muita energia. E como que se ganha um certo carinho, porque era muito… muito boa onda e era, bem...bem porreiro… admirava-o muito.

Oscar recorda com muito prazer esta etapa da sua vida: “Ah, que bom! Não? Foi uma boa época”.

Os sonhos e desejos que começaram a nascer naqueles dias no horizonte de possibilidades de Oscar converteram-se no principal motor que o levou a abandonar a vida de rua e os hábitos que ali tinha adquirido, como foi o caso do consumo de drogas.

6.3 ANÁLISE DA TRANSIÇÃO

6.3.1 O papel do discurso pedagógico No discurso dos educadores56 aparecem quatro ideias que representam a coluna vertebral do plano feito para a comunidade de crianças naquela época: 

Recuperar a história do que cada criança percorreu até esse momento



Conjugá-la com a ideia de mudança (a luta contra a rua)



Convencer a criança de que é capaz de consegui-lo



Torná-lo protagonista na busca de uma vida nova

A máxima na linguagem pedagógico da instituição foi Deixar para trás A vida velha e começar a lutar para construir A vida nova: E, vá, diz-me lá, o que é que te explicavam, o que é que te diziam? É assim: das fases da MAMA, que estávamos na segunda, que a terceira era mais gira, que eram 24 horas, que podíamos ir à escola. Falavam-nos muito do futuro, para que faças o teu futuro e uma vida digna, não sei...mmm, algumas dessas coisas foram interiorizadas e pronto...então não havíamos de fazer nada? Seguimos isto, não é?

56 Para mais informação, ver

capítulo II: “A vida na Casa Grande: reconstrução do período 1988-1995”

100

Isto implicava deixar as velhas práticas, os Problemas da rua e incorporar os 5 Amores. Tabela 6 Problemas da rua/Os 5 amores

    

Problemas da rua Mendicidade Roubo Violência Droga Prostituição

    

Os 5 Amores Trabalho Estudo Vida comunitária Desporto Solidariedade

57

O discurso pedagógico e as actividades tinham como objectivo colocar no horizonte das crianças a ideia de mudança de vida e os elementos concretos que constituíam esta mudança.

6.3.2 A mudança: três experiências diferentes Todos os protagonistas tiveram uma experiência diferente da transição para a CGM, de acordo com a sua idade, a sua história pessoal, o tipo de vínculos com os seus pares e educadores, o período de tempo em que viveram na rua e o grau de adição às drogas. No entanto, o resultado num primeiro momento foi o mesmo: os três tomaram a decisão de seguir o caminho que os seus educadores lhes propunham.

Na transição para a CGM podemos observar o mesmo jogo de forças que atraem as crianças a este espaço, assim como aquelas que as fazem rejeitá-lo: Tabela 7 Forças que atraem/forças que repelem Espaço social de vida Casa Grande do Programa MAMA AC

Forças que atraem  Espaço para brincar  Os pares e educadores  A ideia de mudança  A ideia de uma vida melhor

Forças que repelem  Medo do fracasso  A distância do espaço social  A adição

57 MAMA A.C. Modelos de Atención Programa “Niños de la Calle”. Documentos institucionais.

101

seu

Ramiro, o mais jovem, encarou a transição como algo natural, sem demasiadas contradições. Como ele mesmo nota, não tinha muita consciência das coisas, estava contente por ter um lugar melhor para viver e estar com os amigos e educadores. Oscar, pelo seu lado, estava muito motivado pela activação de novos sonhos, desejos e metas a alcançar nesta etapa.

Pelo contrário, para Camilo implicou um enorme esforço, um grande desafio, muito medo da possibilidade de fracassar e do que isto implicava. A sua experiência é importante já que nos abre a porta para o seu mundo interior e nos permite conhecer as dificuldades que enfrenta um adolescente com forte vinculação à rua e com um grande desejo de a deixar definitivamente. Para ele era claro o que devia fazer para o conseguir e quais os objectivos a alcançar. Contudo, com a sua pouca idade sabia como era difícil deixar os velhos hábitos e que a motivação e as palavras dos educadores não lhe seriam suficientes. Agora que é adulto acredita que parte do medo de fracassar residia em não saber como conseguir tudo isto: [...] de repente, assim… fez-se um ritual de chegada a uma casa nova, a uma vida nova e de queimar ideias, não é? É como te digo: volto a dizer que às vezes as palavras não mexem tanto com a consciência.

A sua experiência passada, cheia de fracassos, fazia-o duvidar que desta vez ia conseguir: De repente a tua auto-estima não te consegue fazer acreditar que podes e que é assim de fácil. Viveste sempre em situações difíceis... mentalmente já estás programado para dizer não. Estás engrenado para o pessimismo.

O que foi diferente nesta experiência que o ajudou a mudar a sua vida definitivamente? Foi algo para o qual Camilo não teve resposta.

6.4 CONCLUSÃO

O período aqui analisado revela-se como uma etapa cujo eixo central é o desenvolvimento de uma visão de futuro, a activação de ideias, sonhos e

102

objectivos concretos que serviram para motivar os entrevistados a distanciarem-se da rua mais um passo.

A análise das narrações mostra como quanto mais velhos e maior a penetração no mundo da rua, maior é também a dúvida, o medo e a incerteza de conseguir uma saída definitiva da rua.

103

7. Da periferia para o centro: construção de um novo projecto de vida 7.1 VIDA COMUNITÁRIA 7.2 INCORPORAÇÃO EM NOVOS ESPAÇOS SOCIAIS 7.3 REGRESSOS AO PASSADO 7.4 CONCLUSÃO

“(já) não estás preocupado por causa do pão, com a subsistência... E isso permite-te ter pelo menos uns momentos de brincadeira, ser alegre, brincar despreocupado, relaxado”.

Este período de vida tem como fio condutor a imagem do percurso da periferia para o centro, uma vez que se pressupõe que o processo de mudança segue esta direcção e transporta os protagonistas de uma condição socialmente marginal para uma mais central na qual estarão em condições de exercer os seus direitos e aproveitar as oportunidades que o sistema oferece para terem uma vida digna.

Nas etapas anteriores, a tarefa dos protagonistas tinha sido sair da rua e desfazerem-se (parcialmente) dos hábitos negativos aí adquiridos, tais como o consumo de drogas, o roubo e a violência.

Nesta etapa, a tarefa é construir um novo projecto de vida fora e longe da rua. Para tal precisam enfrentar dois desafios. O primeiro consiste em manterem-se no programa. Como afirma uma frase popular mexicana, “o difícil não é chegar mas permanecer”. O segundo desafio é integrarem-se em novos espaços sociais onde as práticas e os significados contradizem os dos entrevistados. Este desafio 104

coloca algumas perguntas que serão respondidas ao longo da análise que se faz neste capítulo: - Como é que as crianças passam da rebeldia, da negação e da resistência às práticas e aos valores socialmente aceites para o desejo de participar e de ocupar um lugar onde sejam aceites na sociedade que sistematicamente lhes resistiu? - Como ocorre o processo de integração nos novos espaços sociais? - Como sentiram o processo de assimilação de práticas e valores socialmente aceites e ao quais historicamente resistiram?

O presente capítulo recupera e analisa os factos mais significativos da construção do novo projecto de vida dos entrevistados. Este processo decorre ao longo de quase uma década, de 1989 a 1997, aproximadamente. Na primeira parte descreve-se o contexto da comunidade (a “Casa Grande do Programa MAMA A.C.”) onde os protagonistas viveram e analisa-se o processo de adaptação e fixação na mesma, condição indispensável para permanecerem no programa e evitarem o regresso à rua. A segunda parte, a parte central deste capítulo, descreve e analisa a incursão dos entrevistados em dois espaços sociais centrais para o desenvolvimento do seu projecto de vida: a escola e o trabalho. Na parte final reflecte-se sobre a experiência de retorno ao estilo de vida anterior, facto que se apresenta nos três casos.

7.1 VIDA COMUNITÁRIA (…) … Não somos irmãos de sangue, mas há algo que nos faz sê-lo…

A vida comunitária apresenta-se nos três casos como um factor importante para o processo de mudança dos entrevistados já que a partir das suas dinâmicas internas é possível explicar e compreender como e porquê os entrevistados permaneceram no programa, sendo a permanência uma condição prévia indispensável para que o processo de mudança possa continuar. 105

Para analisar este período apresentam-se primeiro os eixos condutores da vida comunitária, recuperados a partir de documentos institucionais. Posteriormente abre-se uma sub-parte onde se descreve a vida quotidiana daqueles dias (recuperada a partir das narrações dos entrevistados). Termina-se com as narrações e reflexões das experiências mais significativas que os protagonistas viveram no interior da comunidade, com o objectivo de identificar o que a estrutura e dinâmicas comunitárias trouxeram para o processo de mudança dos entrevistados.

7.1.1 Notas sobre o modelo pedagógico De acordo com o programa, o objectivo nesta etapa é o seguinte: Organização e luta para a construção de uma vida “boa” (digna). Neste momento os meninos e meninas começam a construir para si um novo destino a partir de uma série de tomada de decisões positivas que vão constituindo um novo projecto de vida baseado na consciência, na organização, na luta, na vida comunitária, na amizade, no estudo, no 58 desporto, no trabalho e na solidariedade .

A vida comunitária é um dos cinco pilares59, sobre os quais se edifica o projecto de vida das crianças. Os objectivos de vida comunitária são60: 

 

Organizar o centro educativo a partir de instâncias e figuras organizativas de maneira a proporcionar que os meninos e meninas se envolvam de diferentes maneiras e a diferentes níveis nas tarefas que se desenvolvem quotidianamente dentro da comunidade Promover a participação da população na tomada de decisões sobre os temas que afectam a sua comunidade através destas instâncias Promover a capacidade de auto-gestão e auto-governo da comunidade

A vida quotidiana rege-se por relações horizontais, nas quais as crianças têm voz e voto na tomada de decisões comunitárias: Tentar a organização e a imposição de regras baseadas na verticalidade levar-nos-ia ao 61 fracasso para lá de contradizer o espírito do nosso programa

O modelo tem três eixos, a partir dos quais se desenvolve o trabalho educativo: a participação, o protagonismo e a organização infantil. 58 MAMA AC. Primeiro Documento de Sistematização.

Arquivo digital de documentos institucionais. 59 Ver “5 Amores” na parte “O papel do discurso pedagógico” do capítulo anterior. 60 MAMA AC. Conceptualização das linhas de acção. Arquivo digital de documentos institucionais 61 Op. Cit.

106

Entende-se por participação o tipo de relação que se estabelece entre as crianças e a comunidade na qual as crianças intervêm e se envolvem na maior parte das actividades relacionadas com a comunidade.

Entende-se por protagonismo uma qualidade ou forma de participação específica: Participação activa, consciente e dirigida pelas crianças no processo de organização para entender e transformar a sua realidade. Qualidades: auto-gestão, empenho, luta, crítica. Perfil: auto-crítico, empenhado na vontade de mudança, disciplinado e solidário.

Entende-se por organização um princípio a partir do qual se geram as condições necessárias para o processo educativo: Os callejeros são anárquicos, não se sujeitam a normas que não sejam as suas próprias leis da rua. Não se pode fazer nada por e com as crianças de rua se os reunirmos num espaço e estiverem anarquizados, desorganizados. Da anarquia não se pode gerar 62 nenhum tipo de educação .

A organização refere-se também à estrutura na qual se desenvolve a vida quotidiana: Grupo de crianças com interesses comuns que se reúnem para transformar a sua realidade. Deve ter como característica que a sua liderança esteja nas mãos das crianças, devendo o papel do mairo ser só o de facilitador e auxiliar. A organização é um lugar de encontro e respeito mútuo, além de ser um espaço de tomada de decisão, reflexão, 63 planeamento e execução. Finalmente é uma ferramenta para o protagonismo infantil .

Por outras palavras, a organização é a estratégia principal para se estabelecerem e transmitirem novas práticas e os seus correspondentes significados, isto é, a forma “correcta” de ser e fazer no mundo.

A vida comunitária é construída com base em diversas instâncias organizativas, de entre as quais a família é a mais importante já que representa a base ou unidade organizativa da comunidade. A família é constituída da seguinte maneira: [...] é constituída por membros pequenos, médios e grandes (idade). Cada família tem um coordenador e um subcoordenador, eleitos pelos próprios membros da família. Cada 64 família tem um nome, um emblema e um lema próprio . 62 MAMA A.C. Definição das linhas de acção. Arquivo digital de documentos institucionais. 63 Elementos de protagonismo e organização infantil.

Arquivo digital de documentos institucionais. 64 MAMA A.C. Modelo de Cuidados CGM 2000. Arquivo digital de documentos institucionais.

107

É a partir das famílias que se organizam e distribuem as tarefas quotidianas entre outras actividades.

Outra instância que aparece recorrentemente nas trajectórias é a Comissão de Governo, órgão representativo dos membros da comunidade. Esta comissão tem várias funções relacionadas com o serviço e com a organização comunitária, assim como com o co-governo (entre crianças e educadores). Para ser parte deste tomam-se em conta as contribuições para a comunidade e a evolução das capacidades necessárias para este tipo de participação. Por último, existe a Assembleia Comunitária65 que se define como: [...] instância a partir da qual se desenvolvem as demais actividades organizativas. Nesta instância os membros das famílias falam das coisas boas ou más ocorridas durante a semana, reflecte-se colectivamente no respeito, tomam-se decisões e fazem-se acordos. É também nesta instância que se fazem reconhecimentos (aspectos positivos) e críticas 66 (aspectos negativos) às famílias ou indivíduos que sobressaiam .

As assembleias têm lugar todas as quartas-feiras a partir das 19 horas. Todos os membros da comunidade têm necessariamente que assistir. Uma pergunta recorrente que as crianças fazem é se “É obrigatório assistir à assembleia, mairo?” Para a qual há também uma resposta recorrente: “Não, não é obrigatório, é necessário”.

7.1.2 O contexto: a vida quotidiana na CGM À sua chegada, a comunidade manteve um tipo de vida muito semelhante ao que tinha no Refúgio o qual se transformou, a partir do ingresso dos habitantes, na escola. De manhã faziam as actividades de manutenção da casa, as quais chamavam Tarefas do Bem-estar Comum (TBC), assim como actividades formativas, desportivas e culturais que se distribuíam ao longo da semana. De tarde iam à escola:

65 idem 66 idem

108

Vou-te falar sobre um dia normal da minha primeira etapa. Lembro-me muito bem. Acho que tínhamos muito tempo livre. Acordávamos, a limpeza e depois jogar futebol e depois íamos comer e depois outra vez jogar. Eh! E de noite íamos à escola.

Mais tarde o horário mudou. Passaram a ir à escola de manhã e faziam o resto das actividades de tarde.

Nesta etapa a equipa de adultos que acompanhava a comunidade era formada por 2 educadores, um no turno da manhã e outro no da tarde. Um idoso tinha a cargo o turno da noite. A estes juntavam-se uma cozinheira, um grupo de voluntários que colaboravam no desenvolvimento das actividades desportivas, académicas e culturais, e o educador fundador da instituição que estava a tempo inteiro na comunidade e desempenhava a tarefa de coordenar o projecto.

Ao fim de alguns meses o fundador reduziu a sua presença na comunidade e transferiu o seu escritório para o espaço onde se faziam as actividades administrativas da Instituição que nessa altura tinha começado outro programa dedicado aos cuidados a crianças trabalhadoras. A sua presença deixou de ser permanente ainda que visitasse diariamente a comunidade, continuasse a ter o papel de coordenador da mesma, facilitasse a assembleia semanal e fizesse alguns turnos nocturnos e ao Domingo. Os recursos materiais eram limitados. Ainda que as crianças tivessem uma casa, roupa, comida e educação, a situação económica da instituição era suficiente para dar às crianças apenas uma vida modesta e para pagar aos educadores salários modestos que naqueles dias eram chamadas de “bolsas”, aludindo ao seu reduzido montante.

A formação da equipa de educadores foi difícil. Havia recursos apenas para dois educadores, um para o turno da manhã e outro para o turno da tarde, e para um idoso para o turno da noite. Cada um destes devia responder às necessidades individuais e comunitárias, garantindo o decorrer da vida quotidiana da comunidade de acordo com os critérios pedagógicos da instituição: “pois... faziam 109

tudo. [...] Foi sempre assim: o número da população é superior ao número de educadores”, explica Camilo na entrevista.

As necessidades da comunidade eram demais para eles: O mairo arranja sempre um pouco de tempo para falar um bocado contigo, sentar-se a comer, para a promoção e organização da casa. [...] (Nisso) o educador sempre esteve muito bem, o estar sempre perto... É quando já não tem tempo por causa do número de miúdos…

O número de educadores e a presença cada vez menor do fundador, debilitou o acompanhamento que podiam dar a cada criança: [...] E essa parte em que iam ter contigo para falar contigo das coisas boas ou das coisas más ou para te perguntarem da tua vida (refere-se a uma actividade que a instituição chama de aconselhamento)... Mas poucas vezes há assim: „que onda o filme de ontem‟. Quando tu vais e dizes: „olha mairo preciso de falar contigo‟ é um: „espera um pouco que não tenho tempo‟. Então assim as coisas vão-se guardando e isso depois tem influência.

Os protagonistas sentiam e ressentiam o afastamento dos seus educadores. Esta situação, em conjunto com outras circunstâncias, foi debilitando o vínculo que tinham com eles. Contudo, paralelamente, gerou uma maior aproximação entre as crianças, que nessa altura eram já adolescentes e se refugiavam na relação com os seus pares. Camilo e Oscar comentam o seguinte relativamente a esta situação: Camilo Estás sozinho muito tempo da tua vida. Estás a ver televisão, estás acompanhado pelos teus pares mas nunca está por exemplo um mairo contigo a ver televisão. Claro que tu sabes que ele pode ter mil coisas para fazer. [...] E em muitas alturas estás sozinho. Dormes sozinho. Quer dizer, dormes com os teus pares e, sim, a relação com os teus pares torna-se muito forte. Mas não é o mesmo com os teus educadores Oscar Não, pois… por exemplo, quando havia um problema, se te chateavas com outro, ou seja, não havia mairos. Quando havia que solucionar um problema de uma limpeza, falta um mairo.

Apesar das limitações materiais e afectivas que os protagonistas sentiram, mantiveram-se na comunidade participando activamente. Isto coloca as seguintes perguntas: O que os reteve no programa? Por que não regressaram à rua quando começaram a sentir o afastamento relativamente aos seus educadores?

110

7.1.3 A fixação à comunidade Ao longo deste trabalho mostrou-se uma longa lista de factores que contribuem quer para activar quer para facilitar a mudança na vida dos protagonistas. Nesta etapa sobressai desta lista o factor da afeição e o sentimento de pertença à comunidade. De acordo com o que os entrevistados narram, o sentimento de pertença ao grupo e à família, assim como o desenvolvimento das suas lideranças, foram fundamentais para se manterem ligados ao processo de construção de um novo Projecto de Vida (PV).

A. O sentimento de pertença como um factor de fixação “No fim de contas tu sabes que estás sozinho e que a única coisa que tens são eles (os pares).”

Apesar das inimizades e antipatias entre alguns membros da CGM e das diferenças internas que de facto existiam, quando se tratava de uma disputa com membros externos à comunidade, as diferenças entre eles eram esquecidas e o sentimento de pertença prevalecia: (…) Utilizávamos sempre uma frase entre nós: que por muito que um idiota te chateasse o juízo sabias que na hora da pancada saltavas logo a defendê-lo. Quando tínhamos problemas era com outros miúdos. Então sabíamos que apesar de tudo éramos uma comunidade ainda que não te desses mesmo nada bem com o outro. Havia sempre assim esse espírito de fraternidade.

Os espaços e momentos comunitários foram centrais para manter vivo o sentimento de pertença e o apego à comunidade. Nas histórias de Ramiro e Oscar estes aparecem como parte das melhores recordações da “Casa Grande da MAMA A.C”: Ramiro: Quando estava a brincar à chuva, quando fazíamos os campeonatos, não é? Que até era moda jogarem os mairos contra miúdos, não é? Mmm.. Que será, pois… são muitos, quer dizer... assim meio duros a porem-nos na ordem. Os natais. Os passeios, (lembro-me que) o Rogelio nos acompanhava, que ia assim como o líder, não é? As lutas que armávamos com ele no mar, corpo a corpo. Vamos vendo a ver quem é melhor! Não é? Os jogos também lá na praia. São muitos. Oscar: (…) Faziam-se jogos de futebol e não, quer dizer, jogaços, renhidos. Todos queriam ganhar. Era fascinante...Intenso, intenso, sim sim sim. Ou seja, era o orgulho ganho outra vez. Tinhas que ganhar e eram jogos renhidos, eram intensos! (…) Era giro ver, assim entre risadas, as habilidades… Todos juntos, ou seja um grupo que no meio do jogo

111

demonstra que tem uma identidade como grupo, que interage como grupo, que tem algo em comum, que te interessas pelo outro. E eram jogos renhidos, eram intensos! 67

Nas Jornadas A minha Casa , eram a mesma coisa, todos a trabalhar. Todos a fazer alguma coisa, todos juntos, unidos: vamos fazer isto, vamos fazer aquilo. Nos momentos da comida também... ver todos. Ehh pois era o mesmo. E nessa altura estávamos quase sempre todos juntos. [...] As refeições eram momentos muito giros porque vias as caras de todos.

A lógica das famílias também contribuiu para fortalecer o sentimento de pertença e a identificação entre os pares. De seguida apresentam-se algumas declarações dos entrevistados a este respeito. Ramiro: Eu inventei o nome então era eu o líder. Que ao princípio (o nome) não era Homens do Futuro: era Jovens do Futuro. Mas chegou o Senhor Grande (Director/Fundador) e disse: „o nome Homens do Futuro soa melhor‟. Lembro-me que havia um miudito a quem chamávamos o Camalo e eu dizia que era meu filho, meu irmão mais novo. E pois sim, sentia-me muito ligado à família. Fui dos únicos que nunca mudaram de família. Pertenci sempre à mesma família Camilo: [...] Dás-te conta de que nem tudo está perdido. Sim, levanta-te a moral, a consciência, [...] o conceito de família, de grupo, pois. [...] Vais reconhecendo vários como a tua família. Tenho uns amigos de há anos. Dás-te conta que não estás sozinho e pensas sobretudo... ou seja, mais do que pensar no adulto pensas na comunidade, nos miúdos. Se não sentes falta do adulto, sentes falta dos miúdos, da comunidade, do ambiente. Éramos os homens GIS: Guerreiros Inclinados a Superarem-se. Também estavam na moda os homens G. E... Quem lhe deu o nome? Pois todos, pusemo-lo e lá ficou.

Oscar: E cada letra significava algo (e dissemos) Vamos lá ver! Somos uma família: “F”, temos que ser limpos: “L”, devemos ser organizados: “O”... E assim foi saindo, não é?...A FLORTULA: Família limpa, organizada, responsável, trabalhadora, unida... falta o “A”, não me lembro (o que significava). [...] Não tenho os dados, mas acho que éramos a melhor família e fomos a família da década. Ou seja, éramos os melhores.

A acção colectiva e de grupo, tanto no trabalho como na brincadeira, adquiriu grande relevância, já que foi o meio pelo qual se fortaleceu a unidade familiar e comunitária.

Actividade periódica na qual os residentes fazem trabalhos de reparação e limpeza a fundo da comunidade 67

112

B. Reconhecimento, sucesso e estatuto Nesta etapa muitos dos membros da primeira geração desempenharam lideranças de destaque que animavam e inspiravam os mais jovens: Porque os mais velhos, [...] eles faziam os outros mexer, pois. Diziam: „Hey, vamos lá!‟ Só de os ver motivava-te. Eram eles que agitavam. Via-los e fixe! Não é? [...] Ou seja como um irmão mais velho que admiravas, que fazia o pessoal mexer, que jogavam futebol

Em momentos diferentes das suas trajectórias os entrevistados tiveram experiências de participação significativa como líderes da comunidade. Ramiro e Camilo foram membros da Comissão de Governo durante vários anos: Camilo: Pois, era parte da Comissão de Governo [...] Éramos os mais velhos nos primeiros tempos (o que) nos fazia responsáveis. Aos domingos à noite não havia ninguém, então ficávamos encarregues da casa. E ficámos encarregues da casa ao domingo durante muito tempo. E gostavas disso? Sim. Não sei porquê mas as Comissões de Governo funcionam. O miúdo que está fora da Comissão tem consciência de que os adultos não estão e o miúdo que está na Comissão também tem a mesma consciência e a responsabilidade. E afinal de contas acho que vem (porque) o adulto não está, não conseguiu relacionar-se por completo e estar com o miúdo. Não é uma figura que de repente faça falta… não como se acredita. Às vezes sim, acho que nisso se baseia o sucesso das Comissões de Governo.

Depois de um problema entre os jovens e o educador que naquela época coordenava a comunidade, houve um período em que esta ficou sem educadores. Ramiro narra como propuseram ao educador fundador que lhes desse a oportunidade de ficarem encarregues da casa enquanto aguardavam por um novo coordenador: Falei com eles no escritório e disse-lhes: „sabem que mais‟. Tínhamos sido sempre os líderes, de uma ou outra maneira, quem tinha a batuta. Então propus-lhe: „comandamos o barco, enquanto falam com o (novo) mairo? Então mandamos nós‟. E todos aceitaram as propostas de mandarmos na casa.

Oscar, que era mais novo que Ramiro e Camilo e pertencia à segunda geração encontrou na escola um campo fértil para uma liderança no âmbito académico e desportivo: “Ah na secundária! Na secundária era o líder do grupo. Tinha um grupo. Era o líder e era bom no futebol”.

113

Mais tarde quando os membros da primeira geração saíram da CGM, Oscar, juntamente com outras crianças, tomou o papel de líder e participou na Comissão de Governo. Contudo, a época de lideranças fortes tinha ficado para trás: Depois d‟(a chegada d‟)o Juan (o novo coordenador), saíram muitos dos mais velhos mas os miúdos, nós tornámo-nos mais passivos. [...] Porque já não havia aquilo que tinha havido. Não havia liderança de ninguém. [...] Saem eles e não sei, a comunidade faz-se assim cada qual no seu galho, no seu quarto. Não sei... assim, a passividade total em certas alturas.

Estas experiências seguramente deram imagens positivas aos entrevistados que a partir da experiência de liderança e trabalho de grupo e colectivo descobriram que eram capazes de assumir responsabilidades cada vez maiores e de ter a aceitação e o reconhecimento dos seus pares.

7.1.4 Conclusão Retomando as duas perguntas iniciais, o que é que os reteve no programa? Por que é que não regressaram à rua quando começaram a sentir o distanciamento relativamente aos seus educadores? A vida comunitária, nos termos que aqui se apresenta, foi o dispositivo facilitador da fixação no programa e à permanência no mesmo. De seguida apresenta-se um esquema que sintetiza este fenómeno:

114

Tabela 8 Factores Responsáveis pela fixação na comunidade

Metodologia participativa

VIDA COMUNITÁRIA

Concentra as actividades quotidianas no interior da comunidade

Desenvolvimento de capacidades

ACÇÃO DE GRUPO/ COMUNITÁRIA

Objectivos e sucessos

FIXAÇÃO NA COMUNIDADE

Estatuto

A estructura organizativa

Desenvolvimento de imagens positivas

O esquema permite ver como a fixação na comunidade surge a partir da acção de grupo e colectiva que ocorria quotidianamente na comunidade. Esta acção era regida pela metodologia participativa e pela estrutura organizativa e deu aos entrevistados um espaço social fértil no qual podiam experimentar e provar a si mesmos que eram capazes de obter sucessos e alcançar objectivos importantes. Foi assim que, apesar do distanciamento e dos conflitos com os educadores, a estrutura e a dinâmica comunitária forneceu os elementos necessários para manter os entrevistados dentro das fronteiras do espaço educativo.

Em síntese, a tarefa do programa consiste de acordo com Berger e Luckmann em “proporcionar à nova realidade a indispensável estrutura de plausibilidade”68 para que as crianças, neste caso, continuem a tomar a sério o processo de mudança. De acordo com estes autores, o processo de conversão não tem grande significado a menos que este consiga continuar ao longo do tempo.

68 Berger y Luckmann Op. Cit.

115

Por isso, neste caso, o programa educativo é efectivo na medida em que mantém em vigor e activos os factores que permitem às crianças alcançar objectivos, alcançar sucesso e actualizar ao longo dos anos a afiliação à comunidade.

7.2 INCORPORAÇÃO EM NOVOS ESPAÇOS SOCIAIS Inclusive, acho que sou diferente da maioria, do comum...Sim, o que acontece é que... [...] mmm... Pois… aceito e sei que é parte da minha história. Acho que isso sim, é importante, não é?

A instituição até então tinha sido um modelo efectivo para atrair e manter os entrevistados fora da rua e fazê-los participar activamente numa estrutura que lhe tinha dado uma nova realidade. No entanto, nesta etapa, na qual o lema central é construir um novo PV, a prova de fogo apresentou-se quando os entrevistados saíram dos limites institucionais.

Os entrevistados, através da sua afiliação à comunidade/instituição, conseguiram deixar a rua e o consumo de drogas, preencheram alguns vazios afectivos e desenvolveram capacidades e valores para estabelecer outros padrões de relação consigo mesmos e com os membros da sua comunidade. Mas isto não é suficiente para aceder às oportunidades necessárias que lhes permitam alcançar uma vida independente e gratificante já que para aproveitar tais oportunidades necessitam de desenvolver capacidades que os conduzam a vincular-se com o seu meio de uma maneira diferente à que até então haviam conhecido, diversificando as suas afiliações a outros espaços sociais e nutrindo a sua identidade de novas tipificações que lhes permitam distanciarem-se daquelas que os estigmatizam69. Na medida em que isto ocorra será possível estender o seu sentimento de pertença à comunidade a novos espaços sociais.

Este conceito refere-se ao acto de adjudicar a uma pessoa um estatuto de inferioridade relativamente aos demais membros de um grupo pelo facto de dar um atributo que o marca como diferente relativamente aos demais. 69

116

Os âmbitos escolar e laboral aparecem nas trajectórias dos protagonistas como dois espaços relevantes nas suas vidas. As experiências que narram têm um potencial explicativo de como ocorre o processo da periferia para o centro. Recuperam-se aqui as experiências vividas pelos entrevistados ao longo da sua incursão na escola, a formação para o trabalho e posteriormente o trabalho formal, para explicar como decorre o processo pelo qual as crianças passam de uma condição marginal para uma condição mais cêntrica.

7.2.1 Regresso à escola: descrição de factos significativos De seguida apresentam-se os factos mais significativos que os entrevistados recuperaram nas suas narrações acerca dos primeiros dias na escola e a trajectória académica que cada um seguiu.

A. Ramiro Tabela 9 Trajectória escolar de Ramiro

Idade 13



16

   

17 19

  

Trajectória e resultados escolares de acordo com o arquivo institucional Entra na escola Urbana 502 para o terceiro ano da primária Obtém média de 9 Passa para o horário nocturno na mesma escola e estuda no quinto ano da primária Obtém média de 10 70 Obtém uma declaração de bom comportamento na escola Estuda no sexto ano e obtém média de 9 Estuda no primeiro ano da secundária na INEA (Instituto Nacional de Educação para Adultos) Obtém média de 8.5

Ramiro tinha-se esquecido por completo deste tema. Ainda que tivesse algumas horas de estudo por dia na casa, não tinha pensado entrar para a escola: Agarraram-me a meio do ano, todos os dias, todos os dias o estudo e depois disseram-me: „sabes que vais entrar para o terceiro ano‟… E entrei para um grupo do terceiro ano da primária. (...) Fiquei muito surpreendido porque nem sequer me deram a chance de lhes 70 NT: Declaração escolar que reconhece o bom comportamento do aluno

117

dizer que não queria ir. Não me perguntaram e disseram-me: „vais entrar para o terceiro ano.‟

A ideia de regressar à escola assustava-o, não achava que fosse capaz de prosseguir os estudos porque não tinha sido bem sucedido no passado: Pois, porque quando era puto toda a gente me tentou meter na escola e nunca. Que não gostava e não gostava. E… aos treze anos meteram assim, com medo. Se de miúdo quando tive a oportunidade de começar bem e aprender e não, não pude! E eu dizia que não podia porque não podia estar fechado na sala, dizia-lhes assim. Preferia andar lá fora.

Pensava que não tinha os conhecimentos suficientes para ser bem sucedido: (...) Ou seja, digo-te, pensei que me ia espalhar. É que não sei nada, não é? Ou seja, sei o que me tinham ensinado os professores, mas na realidade, não. Não tinha conhecimento do que se ia ver nem nada. Era totalmente ignorante.

Nos primeiros dias três coisas surpreenderam-no muito. Primeiro que era mais velho que os seus colegas: Assim quando cheguei à escola, à sala, ficaram todos a olhar para mim. Até mesmo a professora e disse: „ai meu, já estou grandote! Ou quê?‟ Até me dava assim como que uma sensação estranha, não é? Nem sequer era do tamanho deles.

Depois surpreendeu-se, como se tivesse despertado de um longo sono, por em todos estes anos a ideia de estudar ter desaparecido do seu horizonte: “Pois, algo que me chamou muito a atenção, que digo mesmo: Como, como é que me deixei dormir tanto nisto da escola?”. Ficou estupefacto ao ver que a escola não era tão difícil como tinha imaginado: “E quando lá cheguei disse: isto para mim é canja.” Para ele a escola converteu-se num desafio: “Sim, sim, era a minha ideologia: „sim posso, sim sei‟.” Este espaço permitia-lhe demonstrar as suas capacidades: E lá aceitei este desafio, não é? E quando a professora falava... falava comigo. “Vá, Ramiro o que é …” Ou seja a obrigação de responder, não é.

Em pouco tempo fez amizades com os seus colegas e conseguiu alcançar um lugar significativo entre deles Fizeste amigos mesmo quando eram mais pequenos do que tu? Sim. Não com todos os da sala. Quer dizer, assim depois de uns dois meses já eram todos meus amigos. A uns dois da sala, defendia-os de toda a gente.

118

No entanto, a incorporação neste espaço teve problemas relacionados com o acatamento da disciplina escolar: “A disciplina é a que me dava conta da cabeça”. A sua dificuldade radicava em as regras não terem sentido para ele e serem-lhe impostas à forças: As regras não as... não as obedeci ao princípio. Já mais tarde sim, pois. Comecei a desrespeitar as regras, porque já as conhecia. E já estava mais adaptado à escola, pois sim. Já depois sim, chateavam-me. Isso de estar a saudar a bandeira e estar a cantar à força.

Ramiro soube tirar proveito da sua idade e começou a moldar a sua identidade em características como a força física, a solidariedade com os seus colegas, a rebeldia contra os adultos e as normas, e o sucesso académico. Rapidamente se adaptou à escola e sentiu confiança nas suas capacidades: Sim. Pois eu acho que todos os anos foram muito fáceis para mim. Até no terceiro ano me quiseram mandar para o quarto. A professora ficou doente e depois já não me mandaram. E do quarto queriam-me mandar para o quinto. E quando estava no quinto foi o mesmo para o sexto. Porque diziam que eu fazia coisas do sexto.

B. Camilo Tabela 10 Trajectória escolar de Camilo Idade 11

13 15

17 19 20

Trajectória e resultados escolares de acordo com o arquivo institucional  Certificado da primária, com uma média geral de aproveitamento no 6.º ano, de 9  Diploma da Escola Urbana 826 “21 de marzo”  Cédula do primeiro ano da secundaria técnica 79  Cédula de qualificações escolar do segundo ano da secundária, turno da tarde  Cédula de qualificações do segundo B da secundária técnica (ciclo 88-89). Especialidade electrónica.  Cédula oficial de qualificações do segundo ano  Declaração de bom comportamento da Secundária Técnica  Certificado de estudos da secundária Técnica  Diploma da MAMA A.C. pela sua destacada participação nas explicações de matemática  Diploma da MAMA A.C. de reconhecimento por ter entrado na Preparatoria 71

NT. No México, Preparatoria são os 3 anos de ensino secundário que antecedem a entrada para a Universidade. 71

119

Ao contrário de Ramiro, Camilo tinha passado mais de 6 anos na escola formal quando vivia com a sua mãe.

Camilo começou a ir à escola secundária. Gostava de estudar mas também gostava muito de ir para o recreio com os seus colegas. As ciências sociais pareciam-lhe as disciplinas mais fáceis e a matemática uma das mais difíceis. Era um rapaz diligente mas pouco dedicado: “não era marrão”.

Para ele, a escola significou a possibilidade de ter um espaço próprio, exterior à sua comunidade. Os outros companheiros iam todos em grupo à escola, mas ele tinha o privilégio de construir um mundo à parte: E era um espaço bem divertido (a escola secundária) porque a mim me tocou ir sozinho à secundária. Então iam todos em grupo... Então eu dizia: é que se alguém mexe uma palha, toda a gente sabe.

As experiências difíceis que experimentou ao regressar a este espaço não estavam relacionadas com a parte académica. Uma das primeiras coisas que partilha connosco na entrevista foi o tema do uniforme: “Então foi mágico ter o meu uniforme”. No entanto, em breve o uniforme começou a ficar velho e novamente as diferenças com o resto dos seus colegas ficaram à vista: (...) E depois ficas na mesma. (Ainda que tenhas) uniforme, continuas a ser o que anda roto, descosido e não há quem tenha (a cargo) essas partes. Pelo menos antes. Hoje há mais cuidado.

Camilo dava-se conta que era diferente e não se importava quando estava em casa porque ali todos eram iguais. Mas sentia-se envergonhado quando saía de lá e enfrentava o mundo exterior: Na rua usavas o que quer que fosse. Era o mesmo cá em casa. Não havia problema usares o que quer que fosse. O problema era quando ias para o espaço exterior e te davas conta de que andavas bem miserável. (... ) Gostei muito quando tive o meu uniforme, porque era bem evidente. Hoje os miúdos têm um montão de coisas (refere-se às crianças que actualmente habitam na CGM) e às vezes não se dão conta. Então imagina lá eu nesses anos com umas calças… tinha umas calças brancas de quadrados, com uma camisa amarela, todo vaidoso. Não, pois… não tinha muita escolha. Tinha muito pouca roupa.

O que Camilo lastimava na realidade não era contudo só uma questão de classe social, de ser pobre. Não era a diferença económica mas a afectiva, o não ter 120

alguém que se preocupasse com ele como o faria um pai ou uma mãe, o não ter uma família como os seus companheiros de escola: (...) Como que a minha motivação (era o almoço). Lembro-me que nos primeiros dois meses, deram-nos almoço, mas depois foi tudo ao ar. (...) Assim tu vais com os teus colegas, de repente há uns bem necessitados, não é? Mas também encontras alguns colegas que levam 10 pesos no mínimo.

Ser diferente não era algo que o aborrecesse muito, mas não lhe agradava ter que contar a sua história: “não gostava nada”. Incomodava-o ter que explicar que vivia num albergue e a experiência de abandono que para ele representava este facto. No entanto, a sua experiência de vida era admirada pelos seus colegas de escola, o que lhe dava um estatuto especial: Pois, era assim como, quer dizer... havia uns miúdos que eram da pesada, lá na secundária e eram de Ciudad Granja. Então, assim, eu acho que quando se deram conta de onde eu vivia, foi assim como que... eu acho que afinal de contas o saber de onde vens, aos miúdos causa-lhes respeito, não é? Então há assim como que um respeito ou medo. Não sei bem. Eu acho que é mais respeito.

C. Oscar Tabela 11 Trajectória escolar de Oscar Idade 14 15

   

16



17

 

17 18 20

  

Trajectória e resultados escolares de acordo com o arquivo institucional Obtém o certificado da primária com uma média de 9.4 Frequentou o primeiro ano da secundária no turno da tarde com média final de 9 Menção honrosa por ter obtido o primeiro lugar do seu grupo Reconhecimento da MAMA A.C. como estudante de destaque Frequentou o segundo ano da secundária com uma média final de 7.9 Frequentou o terceiro ano da secundária Menção honrosa por ter obtido o primeiro lugar do seu grupo Obteve certificado como técnico de informática Ingressa na Preparatoria Certificado de acreditação do curso de preparação

121

*

TOEFL 72  Termina a Preparatoria abierta  Entra na Universidade

Parte da identidade de Oscar baseou-se na representação do bom aluno da CGM: “Não sei… acho que me viram sempre como o estudante”.

A sua experiência escolar ao longo deste período divide-se em 4 momentos ligados à progressão educativa: primária, secundária,

Preparatoria e a

universidade.

a. Primária Na primária era um menino muito tímido e inseguro. Era muito instável já que passava largas temporadas fora da comunidade para depois regressar. A sua experiência escolar foi intermitente mas apesar disso conseguiu terminar a primária. Quando estava na “Casa Grande da MAMA A.C.” frequentou a mesma escola pública que os seus pares da comunidade e quando estava com a sua tia ia à escola primária pública do bairro onde ela vivia:

Preparatoria Abierta é a Preparatória não escolarizada. Os jovens recebem os livros e um guia de estudo podendo aceder semanalmente a professores mas estudam sozinhos em suas casas. Os estudantes podem depois realizar os exames. 72

122

(...) o quarto, o quinto e o sexto, fiz na escola de Miravalle com a minha tia. Do segundo ao 73 quarto estive na escola de Ciudad Granja . Desta fui para a outra.

Desta etapa ficou-lhe uma marca, tal como no caso de Camilo: a experiência de ser diferente dos seus colegas de escola, diferença associada fundamentalmente ao tema da família. Oscar comparava o ambiente das casas de alguns dos seus colegas de escola, a que chamava “normais”, com a sua, desejando ter uma família como a deles: (…) Também me comecei a sentir diferente: eles com família e eu não. E os meus amigos eram normais. Não que eu fosse anormal, mas viviam com as famílias e tinham outra mentalidade e outra atitude, não é? E eu chegava lá e era diferente, não é?

b. Secundária [...] Os meus processos conscientes, as minhas decisões conscientes iniciaram-se quando comecei a secundária.

Na secundária as coisas mudaram para Oscar: Ah na secundária, era o líder do grupo! Tinha um grupo. Era o líder e era bom a jogar futebol. (...) Tinham medo de mim. Atirava-lhes uns pontapés e eles atiravam-se a mim. Eh pá!!! Não sei, era bom, pois, na secundária. E também nos estudos, pois. Tinha um amigo que também era muito bom, que tirava boas notas, mas eu era sempre melhor.

A aptidão desportiva e académica mantinha-o muito motivado: Havia um miúdo pequenito, assim, pequenito mas muito inteligente. Tivemos um exame (...) e fui eu quem teve a nota mais alta. Ganhei-lhe por uma décima. E eu (pensei): „ufff‟.

Teve alguns altos e baixos que se repercutiram nas suas notas, especialmente no segundo ano da secundária, já que o futebol e a namorada o distraíam das tarefas académicas: O segundo ano já não me correu assim tão bem. No segundo descambei. Tinha uns relatórios... Mais pelo futebol. Por exemplo, estávamos no recreio e eu ficava a jogar ou saía de uma aula para ir jogar futebol. Heee! Bom, no segundo tinha uma miúda e levantava-me às seis da manhã a correr para a ir ver. Hee! Para a levar à escola…

Mesmo assim, continuaram as menções honrosas e o reconhecimento da sua comunidade por ser o melhor aluno.

Nome do bairro onde estava situada a Casa Grande da MAMA A.C., que era utilizado pelos seus habitantes para se referir a esta. 73

123

c. Estudos complementares Ao terminar a secundária, por volta dos 16 anos, interessou-se pelo estudo de inglês e informática. Considerava que ambos eram importantes para um futuro sucesso profissional: “Terminei a secundária e nesse trajecto estudei duas coisas: computadores e um curso de inglês. (…) Fiz assim uns dois anos”.

d. Preparatoria Começou por estudar a Preparatoria Técnica74. As notas já não eram tão altas como as da primária e da secundária. No entanto mantinha uma média de 7.5. Um dia teve um problema com o pagamento das propinas precisamente na época em que tinha decidido deixar a comunidade. Isto levou-o a deixar a Preparatoria.

Meses mais tarde, o Director de MAMA AC conseguiu uma bolsa de estudos para que ele frequentasse uma Preparatoria privada com sistema aberto: “uma Preparatoria Aberta de betos, puros betinhos. (…) E foi lá que terminei a Preparatoria”. O ambiente era muito diferente daquele a que estava acostumado. Isolou-se dos demais e estudou por sua conta: “não gostava de estar com os betinhos. Na verdade não falava quase com ninguém”.

d. Universidade Foi o primeiro membro da Casa Grande do Programa MAMA A.C. a chegar à Universidade75. Depois de muita hesitação para aceitar a ajuda que lhe era oferecida e a bolsa de estudos que lhe ofereceram para pagar a educação, entrou numa universidade privada, uma das mais importantes do Estado de Jalisco. A integração neste espaço foi uma experiência difícil já que desde o primeiro dia se sentiu diferente: “assustava-me ver os carrões, ver os miúdos assim, com boas roupas”.

NT – Preparatoria na qual os estudantes para além do currículo normal estudam também cursos profissionalizantes 75 No decurso desta investigação Oscar terminou o seu curso universitário e licenciou-se em Educação. 74

124

Sentia-se diferente e por isso achava que era necessário imitar os outros para ser aceite como um deles. Vou-te dizer o que se passou comigo, se conseguir ser coerente a contar-to. Antes eu achava... Assim, achava que para falar com alguém tinha que ser como eles. Mesmo com as miúdas. Se é uma miúda atrevida eu tenho que ser atrevido e se é uma miúda séria eu tenho que ser sério. Era o que pensava, por exemplo para falar com eles: tenho que ser rico ou tenho que me vestir como eles ou tenho que falar como eles.

Sentia também a necessidade de falar com os professores acerca de quem era e de onde vinha, ainda que não soubesse bem porque o fazia e o que procurava alcançar com isso: [...] ia ter com uma professora ou um professor e queria-lhe contar. Era muito reservado com os meus colegas mas de repente tinha assim uma necessidade de falar com alguém.

Dentro deste espaço via-se a si mesmo como um estudante participativo: [...] sou participativo, não sou preguiçoso. Num instante passa-me, pois. Não é algo constante. Sou participativo, não sou líder. Há outros que tomam mais a iniciativa.

Agora que está prestes a terminar a sua passagem pela universidade, Oscar reflecte de maneira retrospectiva e conclui que passou por uma transformação importante. Sente-se mais seguro e independente do “que dirão”: E esta é a teoria que tenho, de como te vês a ti mesmo: se és inseguro eles percebem. As pessoas percebem e não falam contigo. Não sei... tratam-te como queres que te tratem e se eu chegava assim com medo, então eles falavam comigo assim como que inseguros, assim distantes. E agora vejo-os como iguais e trato-os de igual para igual. Já não tenho necessidade... Se antes não vinham falar comigo sentia-me mal. Não me querem falar, não fazem caso de mim... não sei. E agora já sou mais independente.

7.2.2 Conclusão O acima permite expor as particularidades de cada experiência, mas também nos mostra os aspectos comuns aos três entrevistados.

O regresso à escola teve três repercussões importantes no processo de mudança: 

Recuperar um espaço socializante próprio da infância, isto é, dar um passo no caminho da periferia para o centro



Dar imagens positivas sobre si mesmos, orientando o processo de reconstrução da sua identidade para a possibilidade de ter experiências mais

125

satisfatórias76 nas quais se definiram como sujeitos capazes de alcançarem as mesmas metas que outros adolescentes  Descobrir as diferenças que têm em relação aos seus colegas de escola: reavivando a experiência de abandono familiar, a solidão e a necessidade de afecto e atenção que no albergue não era satisfeita

Esquema 12 Repercussões do retorno à escola

RESULTADOS DO REGRESSO À ESCOLA Pertença a um novo espaço social fora da instituição

Dotar a sua identidade de novas imagens e tipificações positivas de si mesmo

Reactivar a experiência de abandono e o vazio afectivo

Os sucessos que alcançaram na vida social e académica da escola permitiramlhes descobrir que eram iguais ou mais capazes que os seus colegas de aula, enfraquecendo a dúvida persistente nascida na sua primeira infância acerca da 76 Diz-se que com a maior coerência entre a identidade pessoal e “o sistema de normas e valores sociais e historicamente determinados” as experiências do indivíduo tendem a ser mais gratificantes. (Gilberto Jiménez, Materiales para una teoría de las identidades sociales. http://www.lie.upn.mx/docs/Diplomados/LineaInter/Bloque1/Identidad/Lec1.pdf)

126

sua capacidade e valor pessoal. No entanto, também surgiram novos factores que os estigmatizaram.

De novo, surge a natureza paradóxica e complexa deste processo: por um lado libertam-se de convicções e práticas que os estigmatizaram no passado mas surgem novos factores que marcam as diferenças que têm relativamente aos demais o que os colocam numa posição de carência, isto é, numa posição de inferioridade. Apesar disto, nos três casos apresenta-se a mesma força: a sua grande capacidade de adaptação a novos ambientes e situações sociais.

De seguida analisa-se o processo de adaptação ao novo espaço social, a partir dos mecanismos utilizados pelos entrevistados para se adaptarem à escola.

7.2.3 Análise do processo de incorporação na escola A entrada na escola, no caso dos entrevistados, trata-se de uma situação particular, devido à situação de exclusão em que tinham vivido: crianças, pobres e callejeros. As pessoas em situações semelhantes, quer seja por estigmas77 sociais, físicos ou étnicos/de grupo, implementam uma série de mecanismos pelos quais tentam ultrapassar esta situação. Um exemplo destes mecanismos consiste em esconder as referidas diferenças ou expô-las para originar uma reacção específica nas pessoas, etc.

77 Refere-se ao “mal em si mesmo”, a um traço ou marca ao qual se atribui socialmente uma conotação negativa e que depende do contexto, da cultura e do momento histórico. (Goffman Erving. Estigma: La identidad deteriorada, Amorrortu, Argentina, 1993, p. 11)

127

O uso destes mecanismos ao longo da vida é importante em termos de identidade, uma vez que no esforço de ocultar, acomodar ou corrigir as diferenças que o estigmatizam, estes (esforços) “fixam-se como parte da identidade pessoal”78.

No caso dos protagonistas observa-se nas trajectórias uma combinação de diversos mecanismos cujo objectivo parece ser obter a aceitação e o reconhecimento dos seus pares e professores.

Tabela 12 Mecanismos de adaptação ao novo espaço social

Esforço adicional

 Fazer um esforço reconhecido

Exposição das diferenças

 Utilizar a sua história para conseguir estatuto a partir das diferenças

Capitalização dos seus recursos

 Aproveitar as competências ou capacidades pessoais para o alcance de objectivos tanto académicos como sociais  Colocar em prática valores característicos da sua subsociedade tais como a lealdade, a amizade e a solidariedade entre pares  Utilizar as suas competências em âmbitos em que se sentem capazes

Encobrimento

 Guardar no anonimato os aspectos da história pessoal que os tornam vulneráveis  Isolamento

Exagero

 Projectar uma imagem de força para ocultar as zonas vulneráveis (aquelas que os faziam sentir-se diferentes e inferiores)  Revoltar-se e desobedecer aos procedimentos autoritários e a quem os representa

Ajuste/ conciliação

Aceitar-se, aceitar e esperar ser aceite

adicional

para

sobressair

e

ser

78 A identidade pessoal refere-se às qualidades ou características que definem a pessoa como um ser único e ao modo como esta utiliza a informação relacionada com esse passado. (Goffman Erving Op. Cit. p. 91-125)

128

Estes mecanismos de adaptação caracterizam-se por: 

Estarem orientados maioritariamente para a pertença, o sucesso e o reconhecimento



Associar-se à natureza da maioria destes mecanismos tem carácter positivo, uma vez que apresentam uma coerência com os valores aceites e promovidos na instituição, na escola e na sociedade em geral: o esforço, o sucesso, as boas qualificações



Produzir experiências gratificantes

Os protagonistas utilizaram a seu favor alguns dos elementos de identificação que os identificavam com o seu passado de callejeros, re-acomodando-os dentro da sua identidade actual e dando-lhes uma nova função: a de ferramenta para conquistar novos espaços sociais.

O motor de mudança radica na descoberta pelo entrevistado das suas próprias capacidades e aptidões para fazer da sua vida algo melhor. A palavra-chave aqui é Sucesso. Assim como no início do processo o vínculo, primeiro e o sentido de pertença depois activaram a mudança, nesta etapa o sucesso aparece como o instigador principal do processo e o apego e o sentimento de pertença à comunidade o que o sustém.

O sucesso final desta etapa avalia-se pelos sucessos que obtêm fora da sua comunidade e com a interiorização de novos significantes que dotem a sua identidade de imagens positivas e reafirmem a confiança nas suas capacidades.

7.2.4 Incorporação no trabalho: descrição de factos significativos A. Ramiro79 Não estava muito assim… muito inteirado pois (das coisas da MAMA A.C.). Pois sim, não sabia de nada. Porque estudava e trabalhava. Mas trabalhava de manhã e estudava de 79 A informação das tabelas denominadas “trajectória laboral”, obteve-se a

e das entrevistas realizadas

129

partir dos arquivos institucionais

noite na secundária. E no tempo que tinha livres ia..., ora pois ia para a farra para o centro ou onde fosse.

Tabela 13 Trajectória laboral de Ramiro

Idade Infância 15 * * 19 * * *

       

Trajectória laboral Engraxador de sapatos Ajudante numa agência automóvel Operário de construção civil Operário numa fábrica de móveis Frequenta o curso de mecânica automóvel Aprendiz numa fábrica de anúncios luminosos 80 Mairín Mairo

A sua primeira experiência laboral foi aos 16 anos, como operário de construção civil. Recorda que era um trabalho muito duro: E a mim puseram-me como ajudante geral. Então era sacar o entulho, fazer as misturas... lembro-me que me correu muito mal e que não trabalhei mais do que uma semana. Fiquei com umas bolhas.

Trabalhou pouco tempo como operário de construção civil mas não nos conta porque deixou as obras. Mais tarde trabalhou numa fábrica de móveis para jardim. Viu um anúncio na fábrica e entrou para pedir emprego. Antes de ser aceite teve que lá ir várias vezes até que finalmente o contrataram. Desta vez era uma tarefa menos árdua e difícil do que a de operário de construção civil, mas Ramiro aborrecia-se: E o meu segundo trabalho foi fazer móveis. Desses móveis de plástico para o mar. E lá no trabalho... não, não era pesado, não é? Mas era muito chato. Era sempre... era fazer o mesmo, não é? Estar a dobrar tubos, estar a montar tubos.

Em breve deixou a fábrica para fazer um curso de formação em mecânica automóvel.

Maírin – Jovens aprendizes de mairo que, tendo passado pelo programa da organização, estão a receber formação para se tornarem mairos. Desempenham tarefas de ajuda e apoio aos mairos. 80

130

Também trabalhou numa agência de automóveis. Porém, como era menor de idade, não pôde continuar uma vez que o proprietário queria pessoas maiores de idade. Foi aprendiz numa empresa de anúncios luminosos. Não tinha um salário mas davam-lhe o suficiente para os autocarros e para tomar uns sumos: E depois trabalhei em anúncios luminosos. Mas aí foi como aprendiz. Tinham-me dito que era uns dois meses, não mais, para aprender como se faziam. Mas eu fiquei por lá uns seis meses. E sem receber. Davam-me dinheiro só para os autocarros cá em casa. E no trabalho davam-me para um refresco, cinquenta pesos.

Nesta nova etapa o desafio para Ramiro foi a incorporação no mercado de trabalho. Diz-nos como viveu experiências diversas, mas nenhuma parece ter sido gratificante: uma muito dura, outra muito aborrecida, outra mal paga.

Mais tarde, quando se tornou independente da comunidade, ocupou-se como operário da construção civil e finalmente como educador da instituição. Desenvolveu por estes dois trabalhos um interesse/gosto que ultrapassou a mera remuneração económica.

B. Camilo Tabela 14 Trajectória laboral de Camilo Idade Trajectória laboral infância  Cerillo81, vendedor de flores e jornais, cantando em autocarros. 20  Mairín da MAMA A.C.  Cobrador no escritório da MAMA A.C.  Trabalhou nos anos seguintes numa leitaria, * numa empresa de comida para eventos  Mairo do programa Criança Trabalhadora da * MAMA A.C.

Depois de uma experiência de regresso à rua, Camilo começou a trabalhar durante um período de espera para entrar na Preparatoria. Recorda que às vezes NT – Criança que coloca as compras do supermercado em sacos. É um trabalho sem salário mas que proporciona às crianças a oportunidade de receberem gorjetas. 81

131

os trabalhos que a MAMA A.C. lhe arranjava não eram muito bem pagos, mas considera que estes o fizeram aproveitar o tempo enquanto esperava pelas datas para se inscrever na Preparatoria. Em momentos diferentes participou no programa “De Mano a Mano”82, através do qual os jovens da comunidade se formavam como líderes e futuros mairins. Quem participava neste programa fazia as jornadas nocturnas na segunda fase do programa Criança de Rua, “O Refúgio de Crianças”, ao lado dos educadores. Era uma actividade formativa mas também solidária com as crianças que iniciavam o processo de saída da rua. Mais tarde foi nomeado mairín, juntamente com um grupo de colegas. A partir desse momento começou a colaborar no trabalho de rua – a primeira fase do programa criança de rua – nos turnos nocturnos e da tarde. Mais tarde trabalhou como cobrador nos escritórios da instituição: “está-se lá bem. Na cobrança tens menos pressão, é uma vida mais relaxada. Se me aborrecia, de repente saía com a bicicleta para andar pelo centro”.

Depois ingressou no programa Criança Trabalhadora como mairín: Tinha muito medo. Acho que vinha precedido de uma fama grande, que parte era realidade mas também parte era assim mentira, assim exagerado. Sim, tinha medo. Ou seja, não sabia qual ia ser a reacção dos mairos, por causa de todos os antecedentes, por toda a bagagem que trazia, não é? Como ia ser a relação, como ia ser a confiança, talvez. [...] não sabia como me ia receber a miudagem, até porque já era outro tipo de miúdos. 83 Havia muitas caras novas, mas também havia caras velhas e a malta tem boa memória . Quer dizer, tem mais memória que assim os mairos, os adultos.

No programa De Mano a Mano, as crianças que participam na Casa Grande da MAMA AC encarregam-se dos serviços oferecidos no Refúgio de MAMA AC 83 Nesta citação, Camilo refere-se a um período prévio em que regressou às drogas e se afastou por dois anos da Instituição. Mais à frente, no capítulo 8 “As partidas: transição para a vida independente”, narra-se este período. 82

132

Um ano mais tarde, num dos eventos mais importantes da história institucional, Camilo, juntamente com outro dos seus companheiros, é nomeado mairo. Desde então tem trabalhado para a Instituição em que cresceu, no programa para crianças trabalhadoras: Pois, vejo-o como um processo de aprendizagem. Sou um... muitas vezes, sou um mau educador não é? E às vezes acho que sou o pior dos educadores. Mas o que me ajuda é que todas estas experiências dos anos... toda esta experiência o que me ajuda é a analisar, a aprofundar, a dar-me conta dos erros e a aprender. E então, depois de 7 anos, 6 como educador, continuo a enganar-me muito, a dar erros grandes, continuo a meter o pé na poça, continuo a ser às vezes ingénuo. Mas tenho uma grande capacidade para aprender com os erros. E acho que como educador cada dia se vive uma experiência nova, uma experiência diferente. Todos os dias é algo novo, um problema novo. As crianças têm sempre necessidades diferentes, mais chatices, problemas diferentes. Por um lado são crianças de rua ou são crianças trabalhadoras, mas de repente tens que resolver problemas novos característicos da idade de cada criança. Depois os da adolescência, que são bem grandes. E cada dia aprendes mais. E um dia a ideia é ter a experiência necessária acumulada para errar menos e te enganares menos e poderes dar-lhes mais. Mas por agora, depois de 7 anos continuo a enganar-me às vezes, continuo a ser ingénuo.

Parece gostar do seu trabalho, mas também admite que tem os seus inconvenientes: Porque às vezes arrependo-me de ser mairo. Também, no fim de conta fazias tudo como os mairos. [...] Sim, a vida de educador é muito dura, difícil e agitada e além disso, pois, metes-te em conflitos.

C. Oscar Tabela 15 Trajectória laboral de Oscar Idade 17 19 20 20

Trajectória laboral  Certificado de acreditação como operador de informática  Mairo na MAMA AC  Professor da Preparatoria Aberta  Recepcionista de hotel

Começou a trabalhar na quarta fase do programa84, pouco antes de terminar a Preparatoria. Trabalhava à noite na recepção de um hotel e de manhã ia aos serviços de apoio da Preparatoria Aberta. Também estudava inglês e durante 84 Fase de transição entre a vida na comunidade e a vida independente.

133

algum tempo estudou francês. Mais tarde, quando entrou na Universidade, começou a trabalhar na comunidade como mairín. E assim comecei a trabalhar na MAMA A.C., como mairín. De facto, em alguns dos lugares onde estive, regressei: estive na MAMA e regressei como mairin; onde estudei a Preparatoria regressei como professor. Eu queria contribuir porque estou em dívida com a MAMA, dizia eu. É isso que sinto. Sei que não me vão cobrar mas estou mesmo agradecido pelo que a MAMA fez por mim, não é? Todo o apoio que me deu. E, de alguma maneira, disse: „tenho que fazer alguma coisa para lhes agradecer‟, não é? E o Rogelio disse-me: “é bom como serviço social”, é bom. Mas ninguém fez serviço social. E eu disse-lhe “ahhh, não me digas que foi como serviço social porque ninguém o fez assim. Eu quero dar uma mão se puder”.

A sua vida começou a complicar-se. Por um lado tinha a tarefa de se adaptar à Universidade e levar a cabo as tarefas próprias da licenciatura e, por outro, o seu trabalho de mairín, cheio de dificuldades: E assim a experiência foi meio atrapalhada, difícil, por causa da idade. Porque eram meus colegas e não te obedecem e comigo pior, porque era colega deles. Na verdade preferia fazer eu as coisas para não lhes dizer vá, vá, vá. Isto é o que diz qualquer mairo quando lhe perguntes qual foi situação mais difícil para ti quando acabas de chegar? “Que me digam que não” (os miúdos). Sim, foi muito difícil e acho que por isso já não quero ser educador. (Prefiro) Dar aulas de inglês ou algo mais ligeiro, do que tratar directamente das crianças.

7.2.5 Análise do processo de incorporação no âmbito laboral Mesmo com a pouca informação que as entrevistas proporcionam acerca do tema do trabalho, é possível identificar três componentes que constituem um novo paradoxo no processo de mudança.

A. Quem mais necessita é quem menos tem A formação ou obtenção de qualificações para o trabalho aparece nas trajectórias dos entrevistados como um aspecto marginal do seu projecto de vida, ao contrário da escola que se apresenta como uma actividade preponderante para a comunidade.

Esta falha surge paralelamente ao enfraquecimento da equipa de educadores. De acordo com o que o director fundador explica, as crianças trabalhavam desde a segunda fase no projecto de bancas de engraxamento de sapatos. Mais tarde na 134

CGM, dedicavam 20 horas semanais a realizar actividades fabris e posteriormente levou-se a cabo um projecto de ferraria. No entanto, estes projectos não dependiam por completo da instituição, mas também do altruísmo de pessoas e da colaboração de instituições e organismos diversos já que, como vimos no início do capítulo, a comunidade só contava com dois educadores que não conseguiam responder na totalidade às necessidades dos residentes. Em síntese, as carências materiais, humanas e económicas não permitiam que a instituição desenvolvesse na sua totalidade as linhas de acção do programa. Este foi o caso do tema trabalho, que ficou dependente da capacidade de gestão85 e da oferta de espaços para a formação e para o trabalho.

B. Quem mais trabalha não é quem mais ganha “Foi uma geração que conseguimos tirar da rua, mas não da pobreza”86.

Parte dos objectivos do programa era que as crianças transitassem de ofícios para-económicos

e

se

incorporassem

em

empregos

formais

que

lhes

proporcionassem melhores condições laborais. No entanto, depararam-se com as crianças não poderem ser contratadas devido à sua idade, o que fez com que recebessem salários mais baixos dos que os dos seus colegas. E mais tarde, quando foram contratados, receberam salários baixos que não lhes permitiam satisfazer as suas necessidades.

C. O trabalho gratificante não é para todos Outro aspecto importante foi o tema da vocação. Nenhum dos três nesta etapa desenvolveu um interesse específico por um ofício que lhes servisse de base para se formarem e se especializarem numa área determinada. Os empregos que tiveram dependiam mais dos espaços que se abrissem e lhes oferecessem uma oportunidade do que da procura intencional para desempenhar um ofício pelo qual se tivesse uma preferência. Por isso muitas das experiências que tiveram não Naquela época, a área administrativa era formada por três pessoas dedicadas à gestão e angariação de fundos económicos e em espécie, a administração e a contabilidade 86 Frase do director da instituição, apresentada no capítulo 2 85

135

foram

gratificantes,

não

conseguiram

interessá-los

e

por

vezes

foram

interrompidas antes de o período acordado tivesse terminado.

Em síntese, vemos como se vai tecendo uma trama complexa em torno do tema do trabalho. Num extremo desta trama aparece a instituição e a sua falta de recursos assim como o enfraquecimento da equipa de educadores, à qual se juntam como trabalhadores dois dos três entrevistados. Noutro extremo apresentase a realidade de uma instituição com recursos económicos muito limitados e de um país onde os salários não são suficientes para cobrir as necessidades dos trabalhadores.

7.2.6 Da incorporação e adaptação Temos que fazer uma última reflexão acerca da natureza do processo de incorporação e adaptação em novos espaços sociais.

De que tipo de mudança se trata? Para onde se dirige? Até que ponto o seu carácter é libertador ou alienante?

A incorporação no espaço escolar e posteriormente no laboral são dois momentos reveladores

do

tipo

de

processo

de

mudança

que

os

entrevistados

experimentaram. Das formas de confronto com a realidade e da resolução de conflitos que este gera moldar-se-á uma nova forma de relação entre a criança e a sociedade mais ampla. Uma relação que se situará algures num ponto de um contínuo que tem em um dos seus extremos a dependência - submissão passiva à estrutura social - e no outro a autonomia - incorporação activa e crítica das imposições da estrutura social. Os entrevistados decidiram pertencer à comunidade escolar porque sabiam que tal era necessário para o seu projecto de vida. Aceitaram as regras do jogo e graças a isto obtiveram um lugar na escola que os dotou de um novo papel: o de estudantes. No entanto, também ocorreu um processo inverso, no qual 136

incorporaram elementos da sua cultura no espaço escolar. Isto é a reflexão de um fenómeno de resistência que lhes permite manter aspectos importantes para a continuidade da sua identidade. Como assinala McLaren, os jovens lutam para que as suas identidades callejeras não sejam apagadas e distorcidas pelos mecanismos escolares de opressão e homogeneização87.

Ao contrário de Ramiro e Camilo, Oscar, que viveu pouco tempo na rua, tinha poucas referências culturais callejeras com as quais se sentisse identificado, razão pela qual tinha pouco que defender em termos da sua identidade e muito desejo de pertencer ao espaço social da escola. Salienta isso mesmo em algumas partes da sua história de vida, referindo que muitas das suas motivações relativamente à superação eram alimentadas pela admiração de certos personagens que para ele representavam o sucesso e que se caracterizavam por falar outros idiomas, viajar, ter graus académicos. Sonhava também em viver numa família como a dos seus colegas onde, ao contrário da sua comunidade, se falasse com educação, houvesse muita limpeza e ordem. Isto é, Oscar tinha menos elementos a negociar com a estrutura escolar em termos de como se inserir nela, pelo que estava muito motivado para ser como os outros.

Por seu lado, Ramiro e Camilo encontraram na rua um espaço social no qual desenvolveram um alto grau de pertença e com o qual se sentiam plenamente identificados. E por isso tinham uma posição de defesa relativamente àqueles que tentava apagar o que das suas condutas e atitude era representativo da sua identidade.

O que aqui se apresenta é um processo de negociação do protagonista com a estrutura escolar. A partir deste os entrevistados apropriam-se progressivamente de novos elementos culturais que correspondem neste caso ao espaço escolar e que se combinam com os elementos próprios da sua cultura. Do resultado de tal 87 Maclaren Peter. La vida en las escuelas. Una introducción a la pedagogía crítica en los fundamentos de la educación. Siglo XX. México, 1998, pp.229-230

137

negociação depende a incorporação bem sucedida no novo espaço social, isto é, os sucessos que possam alcançar no dito espaço.

A negociação entre a criança e o espaço social é na realidade uma confrontação entre a sua identidade e a estrutura escolar, cujos resultados são mediados pelo grau de flexibilidade da estrutura escolar e pelo grau de identificação da criança com a cultura callejera, exercendo o espaço educativo (a comunidade de vida) a função de árbitro mediador entre ambos os mundos.

Isto pode ser resumido no seguinte esquema:

Esquema 13 Processo de adaptação no âmbito escolar

PROCESSO DE ADAPTAÇÃO

NEGOCIAÇÃO Criança/espaço escolar

Grau de identificação com a identidade de callejero

Capacidades pessoais da criança

Interiorização da visão de futuro

Nível de pertença à comunidade

Grau de flexibilidade da estrutura do espaço social

GRAU DE SUCESSO

Aparece de novo o paradoxo: o entrevistado experimenta um processo de mudança que se orienta para a transformação da sua realidade e para o 138

desenvolvimento de certos graus de autonomia88. Mas, por fim, encontra os limites que o sistema social lhe impõe onde opera a lógica de “o que mais necessita, menos oportunidades de ter terá”. Este é o caso do âmbito laboral, no qual o processo de adaptação aparece mais acidentado, menos gratificante e não resolvido de todo. Ainda que a estrutura do espaço social possa fazer algumas concessões aos entrevistados, como é o caso da escola, isto é uma excepção.

Mas o que significa tudo isto? Pode-se dizer que a natureza do processo de mudança é libertadora porque tem forças de oposição através das quais negoceiam a forma em que se irão incorporar em novos espaços sociais? Até que ponto as condutas de oposição podem ter como consequência um novo processo de marginalização naqueles espaços sociais onde não existem as condições requeridas para uma negociação favorável para os entrevistados?

Alguns mitificaram as condutas de resistência das crianças de rua, afirmando que são verdadeiros “heróis” ou “guerreiros” por isso. Sem dúvida que o são, mas pela sua capacidade de resistência. No que respeita ao tema da resistência, é necessário analisar estas condutas sem preconceitos e objectivamente para conhecer os produtos ou consequências destas manifestações de resistência.

De momento deixarei estas perguntas por responder por não estar em condições de as responder.

7.3 OS REGRESSOS À RUA 7.3.1 Regresso à rua: descrição de factos significativos O percurso ao longo do processo de mudança dos protagonistas seguiu um caminho acidentado caracterizado por significativos avanços (como os que vimos

[...] é uma conquista constante e um processo constante de construção, onde cada pessoa é o sujeito responsável por esta conquista e construção. [...] Não é só liberdade de escolha: é também poder concretizar esta escolha, é desejo. É ter o “poder de escolher” o caminho e segui-lo. (Delma Lucía. Freire y la formación de educadores. Siglo veintiuno, Brasil, 2000 p. 87) 88

139

até agora) mas também de retrocessos, como o regresso à vida na rua e às antigas práticas de sobrevivência.

Nos três casos está presente pelo menos uma experiência desta natureza. Contudo para cada um teve significados diferentes de acordo com o momento em que ocorreu, as circunstâncias e as suas próprias motivações para deixar a comunidade.

De seguida descrevem-se e analisam-se estes cenários, os quais nos permitirão perceber o papel da CGM nas suas vidas e as mudanças que estavam a ocorrer.

A. Ramiro A partir da sua chegada à CGM permaneceu estável na comunidade. Mas anos mais tarde, na adolescência, começou a consumir álcool e drogas como uma maneira de se divertir e esquecer a irritação resultante das constantes fricções com os educadores: (...) chateava-me um bocado estar outra vez nesse regime. Porque, lembro-me que isso foi o que me levou à droga... os mairos, não é? Para aguentar.

Nesta época começou a deteriorar-se gravemente a relação entre a equipa de educadores e os pioneiros da comunidade, que tinham deixado para trás a infância há bastante tempo. Os agora jovens sentiam-se abandonados pelos seus educadores: (...) Às vezes havia um que fazia de propósito para ver o que o mairo fazia se se chateasse. E então, não é, nunca mas nunca.....nunca diziam nada, não é? Era como... como dizer-lhes „olha mairo ando drogado‟. Uma vez andava nas pastilhas, por exemplo, e andava a jogar à bola e caí. Caí na ponte, pensei que iam tratar de mim mas em vez disso só me perguntaram: „então, o que é que te aconteceu, cabrão?‟ Pois, sim, era... quer dizer, chateava-me.

140

O consumo de droga começou a ser um comportamento repetido para Ramiro, pelo que o Director, que tinha sido o seu educador há alguns anos atrás e com quem mantinha uma relação muito chegada, decidiu dar-lhe tempo para pensar89: (...) Foi na vez do cimento que o mairo se deu conta e ouviu o boato (o director/fundador) e disse-me: „tens tempo para pensar, tempo fora‟. E eu ao princípio, pois, nem acreditei! Ou seja, (pensava): „está a gozar, como de manhã‟. Isto passou-se à noite, quando me disseram. E de manhã chegou o mairo: „Vá, Ramiro... agarra nas tuas coisas porque te vais embora‟. Ah meu! Então era mesmo a sério, não é? Então já não havia remédio...

Inicialmente sentiu-se seguro. Sabia como sobreviver na rua e não teria problemas. Mas não tardou muito a dar-se conta que não era assim tão simples sobreviver lá: (...) Mas quando cheguei à rua é que me dei conta que assim de verdade já não existia nada, não é? Que o que havia então eram sítios com lojas, algumas abertas e outras fechadas, não é? Que os miúdos já não se juntavam no mesmo sítio...

Decidiu visitar a família e trabalhou mesmo durante alguns dias na sua cidade natal. Mas havia alguma coisa que não o fazia sentir-se bem e preferiu regressar a Guadalajara, a cidade que, depois de vários anos, conhecia melhor do que a da sua família. Esta foi uma experiência muito difícil para ele. Primeiro por se sentir expulso da sua própria casa: “foi muito duro, pois. Porque depois de tantos anos lá que... que numa só noite me diga que me vá”. Depois porque se apercebe do que lá tinha e do que tinha perdido: Então pensava em todo o movimento da casa, pensava que lá não... que trabalhasse ou não trabalhasse tinha o meu prato de comida e na rua não. Então, assim passei... passei uns 15 dias na rua e era duro, não é? Porque às vezes, até me lembro, andava à procura… quer dizer, eu... mesmo que fosse de uma moedita que encontrasse, não é? Tinha que andar à procura à força de comida, porque ninguém ma ia dar, ou trabalhar. Trabalhei nesses 15 dias que andei… trabalhei uma semana... nas obras também... era duro, muito duro.

B. Camilo Camilo lembra-se de ter regressado à rua em duas ocasiões, ainda que não se lembre quais as circunstâncias que o levaram a isso. O que se lembra, sim, é que Frase que se utiliza na MAMA AC para se referir à necessidade de separar um membro da comunidade com o objectivo de que reflicta sobre a sua situação, dê valor ao que tem na comunidade e decida se deseja de facto lá continuar. 89

141

andava à procura de aventura, incluindo da possibilidade de consumir droga livremente: Que é que te levou a regressar à rua? Pois… então… a droga e a aventura. Pois pela vontade. Sempre que alguém regressa, pois, é pela vontade, não é?

Destas experiências Camilo extrai uma interessante reflexão e chega à conclusão de que a vida na comunidade lhe dificultou voltar a viver na rua. Explica as razões para isto.

Primeiro, porque o seu grupo de pertença já não se encontrava na rua mas sim na comunidade: “E às vezes, como que já estavas habituado aos teus companheiros, já tinhas o hábito... não é fácil regressar à rua (...)”. Segundo, porque se tinha habituado às comodidades: “A vida cómoda faz-te perder algumas coisas que te ajudam a sobreviver na rua”. Terceiro, porque as lições aprendidas passaram a ser parte do seu conceito de vida e se opunham às práticas que lhe permitiam sobreviver na rua: Então, de repente, durante muito tempo ouviste dizer que a mendicidade não presta, o dizer não ao roubo, a sujidade não presta. Então de repente chegas à rua e sentes-te todo desnorteado e mesmo fraco ou menos esperto que os outros. E com medo. Ou seja, antes brincavas, fazias tudo e hoje as lições da MAMA fazem-te mal, pois.

Quarto, por que descobriu que a sua vida tinha passado a ser diferente e ao regressar à rua tinha algo valioso que podia perder: (...) já estás no processo, já se gerou algo assim como que algo de consciência. Então agora dizes: „meu, estás a estragar tudo‟, ou „o que é que estou a fazer aqui?‟ Sim, como que te dás conta que não. Está tudo perdido, pesa-te a moral, a consciência… o que é que estou a fazer aqui‟‟ (...) Tinhas-te dado conta que eras capaz de passar de ano na escola… não sei, assim, que não estás perdido, não é?

Tal como na experiência de Ramiro, ao regressar aos seus antigos territórios descobriu que tudo tinha mudado. Já não estavam lá os amigos de antigamente e era rejeitado porque já não era um deles: Acabavam por te dizer que a MAMA me tinha deitado abaixo. E a raça que fica lá fora é muito dura. Não lhes podes falar à raça que está lá fora. (...) Não lhes podes falar em

142

muitos sentidos porque gozam contigo e provocam-te durante algum tempo. Depois vão e voltam e caem-te em cima.

Camilo conclui por fim a sua reflexão fazendo um inventário dos danos: “Sim perdi. É que acho que acabei por só ter terminando a secundária. Perdi tempo para regressar à Preparatoria”. C. Oscar Entre os 9 e os 12 anos Oscar saiu da CGM em três ou quatro ocasiões. Nessas viagens conheceu Barca, Yurécuaro Michoacán, Sinaloa e a cidade do México, entre outros lugares: Uma vez fomos a Sinaloa com um tipo que era de lá e de outra fui a Yurécuaro. Da segunda vez fiquei uns três meses e só depois é que regressei. Foi tudo uma aventura nas estradas, a pedir boleia. Numa dessas (saídas) foram uns três meses.

A primeira vez que decidiu sair da comunidade foi porque um dos seus pares o convidou a viver com a sua família: “Fui com o Abelardo. Disse-me: „os meus pais são de Sinaloa. Vamos! Vamos viver com eles‟”. Mas normalmente viajava sozinho: “Vou, depois venho, mas só eu”. Esta é uma das suas características muito particular. Nas suas incursões na rua não procurava encontrar-se com outras crianças que lá viviam. No fundo procurava uma família: (…) Lembra-te que fui quase sempre sozinho. Andava sempre sozinho. Lembro-me que também me via nas estradas a caminhar e a ouvir rádio. Acho que a aventura nunca me deu medo.

No seu regresso à cidade de Guadalajara ia ocasionalmente a casa da tia e permanecia aí por temporadas: “íamos embora e fui com a minha tia. Estive com a minha tia em Tonalá, depois em Miravalle e depois com um tio em Miravalle também”.

Apesar de tantas mudanças de lugar conseguiu terminar a primária. Quando estava na CGM ia à mesma escola pública que os seus pares da comunidade.

143

Quando estava com a sua tia ia à escola primária pública do bairro onde esta vivia.

A viagem mais longa foi à Cidade do México, onde depois de várias atribulações chegou a viver com uma família onde só encontrou violência e maus-tratos: Lembro-me que lavavam uns frascos de café. Não sei para quê, mas lavavam-nos. Punham-me (a fazer o mesmo): “Vá! Dá-lhe!” Punham-me a limpar os frascos do café. Mas como não chegava o que eu fazia davam-me pancada.

Ao perguntarem-lhe os motivos que o faziam aventurar-se para fora da comunidade, responde sem hesitações que queria ter uma família. Acontecia sempre a mesma coisa: quando algum amigo lhe oferecia a possibilidade de ir a uma casa onde seriam recebidos, ia com ele sem hesitar: “(E então o que é que te motivava?) A família. A possibilidade de estar numa família, quer dizer. Agora percebo!”. Os três, nas suas saídas da “Casa Grande” do Programa MAMA A.C, encontraram de novo as suas prisões: o abandono da família e a solidão entraram de novo na vida de Oscar, assim como a adição, com tudo o que traz atrás de si, entraram nas vidas de Ramiro e Camilo.

7.3.2 Análise dos regressos Ainda que à primeira vista a saída para a rua signifique um retrocesso, esta teve implicações significativas em termos do processo de mudança dos protagonistas, uma vez que os três regressos à rua terminaram com o fortalecimento da decisão de permanecer na comunidade. Nos casos de Ramiro e Camilo, as narrações mostram-nos as mudanças ocorridas neles mesmos ao longo dos anos que permaneceram no programa e que foram a causa da impossibilidade de se adaptarem de novo à vida da rua: 

A apropriação de novas práticas e significados adquiridos no programa opunham-se aos da rua



A pertença à comunidade satisfez até certo ponto a procura de uma família e preferiam a comunidade dos ex-callejeros à comunidade dos callejeros 144



A possibilidade de perder o que até então tinham alcançado Tabela 16 Síntese do processo de regresso à rua Entrevistado

Razões para a saída

Circunstâncias em que ocorrem

Consequências que tem

Ramiro Camilo

 Expulsão  Procura de aventuras e liberdade para consumir drogas

 consumo reiterado de drogas  Etapa avançada do processo  Adolescência  Tensão/problemas/dist anciamento dos educadores

 Descobriram que já não lhes era fácil viver na rua, que tinham passado a ter algo valioso na sua vida que estava em risco de se perder, pelo que desejaram regressar à comunidade

Oscar

 Procura de uma família

 Etapa inicial do processo  Convite de um par para ir viver com uma família

 Acabou por aceitar a CGM como a sua casa e aí ficar até ter uma vida independente

O regresso à rua foi uma experiência que, tal como a integração na escola, lhes serviu para delinear com mais claridade quem eram. Ramiro e Camilo descobriram que já não eram os mesmos. Ainda que tivessem importantes elementos de identificação que provinham da sua experiência de vida na rua, o que os fazia sentirem-se próximos dos seus pares callejeros, algo neles tinha-se transformado e o indicador mais claro foi que não gostaram da experiência e sofreram com a perda das conquistas alcançadas na CGM.

O caso de Oscar é diferente. Trata-se de um período de adaptação, da necessidade de confirmar que não há uma família de verdade para si. E depois de várias incursões na rua, finalmente decide ficar. Começa a estudar afincadamente, a obter boas qualificações e nunca mais deixa a comunidade, até ao dia em que decide ser independente.

145

7.4 CONCLUSÃO

Relativamente ao primeiro desafio traduzido na pergunta como é que conseguem os entrevistados manterem-se dentro do programa educativo ao longo dos anos, é possível afirmar que a estrutura e dinâmica comunitárias participativas na sua essência, em conjunto com a clareza relativamente aos objectivos a alcançar para a edificação de um novo PV e os meios que permitam alcançar os referidos objectivos, constituem a estrutura de plausibilidade da qual depende muito a permanência das crianças no programa.

Da análise dos regressos à rua conclui-se que quando se apresenta um alto grau de contradição entre os entrevistados e a vida comunitária com os seus pares, educadores e inclusivamente consigo mesmos, o vínculo com o programa debilitase e paralelamente aumenta a possibilidade de regresso à rua. Por isso, esta estrutura de plausibilidade necessita também de certos graus de coerência ou correspondência entre o discurso, as práticas e os vínculos de quem nela participa: crianças e adultos.

Quanto ao segundo desafio, de como ocorre o processo de integração nos novos espaços sociais, descobriu-se que consiste num processo de negociação entre os entrevistados e o espaço social onde interagem dois mundos com significados diferentes e, em ocasiões, contraditórios.

Ao longo deste processo os entrevistados desenvolvem uma série de mecanismos para manejarem as diferenças entre ambos os mundos e utilizam a seu favor diversos elementos da sua identidade criados na etapa de vida na rua.

O grau de adaptação ao novo espaço social e, por isso, o nível de sucesso que podem alcançar dentro dele, depende por um lado da flexibilidade da estrutura do espaço social e por outro das capacidades da criança, do apego aos elementos da

146

sua identidade que correspondem à sua etapa de vida na rua e o apego ou motivação ao projecto de vida que o programa lhes apresenta.

Para terminar, é importante assinalar que o processo de mudança e construção de um novo projecto de vida é restringido pelas condições estruturais que se materializam na falta de oportunidades, os altos custos da vida relativamente ao baixo poder aquisitivo, baixos salários e as péssimas condições laborais. Tudo isto está fora do controlo das crianças e do programa educativo. No entanto, tem uma influência determinante na vida das crianças, marcando o limite das suas possibilidades, das suas esperanças e expectativas para alcançar uma vida melhor, submetendo-os, pela sua condição de vulnerabilidade, a novas formas de pobreza e marginalização social.

147

8. As partidas: transição para a vida independente 8.1 MEMÓRIAS DAS SAÍDAS 8.1.1 A SAÍDA DE RAMIRO E CAMILO 8.1.2 A VIDA DE RAMIRO DEPOIS DA SAÍDA DA COMUNIDADE 8.1.3 A VIDA DE CAMILO DEPOIS DA SAÍDA DA COMUNIDADE 8.1.4 A SAÍDA DE OSCAR 8.1.5 ANÁLISE DAS SAÍDAS 8.1.6 CONCLUSÃO

A transição para a vida independente torna claras as principais dificuldades dos entrevistados no culminar do processo, o qual implica enfrentar a vida por si mesmos e a inserção na vida produtiva.

A transição dos entrevistados para a vida independente fora da comunidade onde até então estavam os elementos mais significativos da sua realidade foi uma fase complexa, com contradições, que acabou em dois dos três casos numa crise que os levou a regressar às práticas de uma etapa de vida anterior, a vida na rua.

Ao longo das trajectórias é possível identificar como se relacionam factores macro e micro-sociais que à primeira vista não apresentam conexão alguma mas pelos quais é possível explicar e compreender o processo das saídas assim como o alcance e as limitações do processo de mudança pelos quais os protagonistas das trajectórias passaram.

148

8.1 MEMÓRIAS DAS SAÍDAS

No caso de Ramiro e Camilo a partida ocorreu no meio de uma situação de crise. O caso de Oscar ocorre dois anos mais tarde em circunstâncias totalmente diferentes. Para seguir a lógica cronológica apresentam-se primeiro os factos relativos à saída de Ramiro e Camilo e depois os relacionados com a saída de Oscar.

8.1.1 A saída de Ramiro e Camilo (17-18 anos aproximadamente) Tudo começou com a saída do mairo coordenador da comunidade e com a proposta do grupo de jovens líderes discutida com o director de que estavam dispostos a assumir as responsabilidades de coordenador enquanto a instituição procurava alguém. Ramiro convocou os seus companheiros para partilhar a sua ideia de assumir a liderança da casa, os quais concordaram. Juntos falaram com o mairo Rogelio para lhe fazer a proposta: Falei com eles no escritório, não é? E disse-lhes que tínhamos sempre sido os líderes. De uma maneira ou de outra, éramos quem tinha a batuta. Então propus-lhe: „comandamos o barco, enquanto falam com o mairo? Então mandamos nós‟. E aceitaram todos a proposta de mandarmos na casa... Propus isso ao Rogelio e ele disse: „está bem, a decisão já está tomada, não é?‟ Com aquilo do Pepe e agora tomaram outra decisão... apoio-os.

A partir desse momento começou uma nova etapa. A comunidade ficou nas mãos das crianças que eram líderes naturais da comunidade (CGM), o que levou a que experimentassem uma série de contradições: eram crianças muito jovens com uma grande responsabilidade sobre os ombros, o que os fazia debaterem-se entre o dever e o prazer. Um dia foram num passeio a uma povoação situada nas montanhas para participarem num torneio de futebol. Ramiro e outras duas crianças foram como responsáveis, acompanhados por dois adultos de apoio. De noite os três 149

encontraram-se para beber álcool e embriagaram-se. Na manhã seguinte, de ressaca, Ramiro teve que assumir a maior parte das responsabilidades. Um dos seus companheiros tinha magoado o pé e o outro sentia-se tão mal por causa do álcool que não pôde fazer nada: Ramiro: E.....de noite, depois de ter feito tudo bem, fomos para os copos. E de manhã às sete tinha uma grande ressaca e não fiz nada. E eu de ressaca… e como estava acordado, foi a mim que me coube a organização da ida à cascata, de deixar limpas as casas e de sair a tempo para o autocarro e o pequeno-almoço e a comida. Lembro-me que fiz um esforço enorme para que tudo saísse... para tudo estar no horário.

No entanto de nada valeu a Ramiro o seu esforço para ultrapassar o erro cometido. Um membro do grupo quebrou “a lei do silêncio”, denunciou-os e falou com Rogelio sobre o que tinha acontecido no passeio… Isto teve graves consequências: Camilo: 90 [...] a rua marca-te com a lei do silêncio e há regras de ouro. Então quebraram-se as regras e nós saímos queimados.

No regresso do passeio Ramiro foi chamado para falar com o Director: [...] e... quando chegámos cá a casa, uns dois dias depois diz-me o Rogelio: „sabes, estás expulso da Comissão de Governo, Ramiro?‟ E eu pensei: „mas que raio?‟ Pela bebedeira e porque tinha saído da barraca. E eu fiquei muito admirado: „fiz tudo. Ou seja, levantei-me, organizei o pequeno-almoço, organizei a cascata, organizei a saída, organizei a limpeza... quer dizer, não houve queixas da parte dos encarregados das casas‟...

Na mesma altura um novo Coordenador tinha chegado à comunidade, a qual se encontrava num momento crítico de divisões e queixas entre os seus membros.

Dias mais tarde o mairo Rogelio mandou chamar Ramiro e três dos seus companheiros para lhes propor que transitassem para a quarta fase91: [...] tu, tu e tu vão começar a vossa quarta fase. E eu (disse): „Então!‟ (Logo depois Rogelio continuou): „Vão procurando casa, vão vendo o dinheiro que precisam. A Instituição vai-vos apoiar com comida e com a renda‟.

Com esta frase Camilo refere-se a uma prática que surge na rua e que é transferida para a comunidade que implica um código de honra entre as crianças que guardam para si as coisas que se se soubessem fora deste círculo lhes causaria problemas. 91 O objectivo deste nível é que as crianças regressem aos seus bairros de origem e aí planeiem uma alternativa produtiva (cooperativas de produção) apoiados pelos habitantes do bairro. (MAMA A.C. Primeiro Documento Institucional. Documentos institucionais digitais) 90

150

Deram-lhes 15 dias para sair da comunidade. Os educadores indicaram que era importante e necessário que iniciassem a transição para a quarta fase. Neste contexto, pareceu-lhes que no fundo os estavam a expulsar da comunidade.

Numa assembleia informaram-nos que um grupo de jovens sairia da comunidade para ir para a quarta etapa do programa. Disseram-lhes que já tinham idade suficiente para começar uma vida com mais independência da Casa Grande do Programa MAMA A.C. No entanto, para Oscar esta foi uma explicação insuficiente já que não se lembra de ter tido oportunidade de dar a sua opinião a tal respeito: Bom… acho que disseram que já estávamos em idade de ir embora blá, blá, blá. Mas era um aviso, não era para: „vamos ver o que têm para dizer‟. Para (nos dizerem): „vocês o que acham?‟ Mas acho que não foi isso que aconteceu. Eu acho que não foi isso que aconteceu. Sim, foi um momento muito difícil.

A saída dos seus companheiros mais velhos foi um momento muito difícil e confuso para Oscar já que eles eram importantes na sua vida: Pois foi, foi algo... assim um momento muito confuso. Todos os miúdos da minha idade estavam assim muito chateados. Entravam e saíam... Como miúdo admirava alguns dos mais velhos, não é? E eles começam a sair e eram os que faziam as coisas mexer. Via-los como um irmão mais velho que admiravas a maneira como fazia o pessoal mexer, como jogavam futebol. E depois não sei o que se passa e sai o coordenador e chega o novo mairo coordenador e começam a sair os miúdos e assim. Que coisa.

Anos depois, na altura da entrevista, considera que não se geriu correctamente a saída dos antigos líderes da comunidade: Acho que era importante que nos tivessem perguntado, aos miúdos, como nos sentíamos a esse respeito, não é? E digo eu: acho que até eu me senti excluído porque não me perguntaram nada.

Por seu lado, Ramiro e Camilo sentiram-se ainda mais confusos quando se deram conta de que na comunidade iam ficar os companheiros que estavam envolvidos no incidente do passeio: “Ai meu! Nós vamos e eles ficam”.

Saíram da comunidade com um conjunto de sentimentos de confusão, tristeza e irritação. A MAMA A.C arrendou um espaço e pagou a renda durante vários meses.

151

Ramiro tinha uma irritação acumulada. Tinha tomado como um acto injusto e de vingança do mairo Rogelio cada expulsão da comunidade. Tudo isto fazia-o querer ir-se embora o mais rapidamente possível, ainda que o mairo lhe pedisse que tivesse calma e não fizesse uma loucura: E eu agarrei assim, pois claro. Já andava meio chateado.

Tinha medo que a irritação dele o traísse e cometesse de novo um erro: (...) o que eu queria... queria muito sair, não é? Acho que era essa a minha intenção. Era sair rapidamente, antes que fizesse uma loucura outra vez e saísse disparado...

Camilo tomou consciência de quem era e de onde estava: Sim. E o que aconteceu foi que se juntou tudo, não é? Não conseguimos entender tudo o que se passou. Num minuto vais vivendo o dia-a-dia, então de repente vês que tens 15 dias para te ires embora. Não tens trabalho… ou seja, não tens nada, nem trabalho. Apanham-te de surpresa… assim! Dás-te conta de que… eu pessoalmente tinha-me valorizado, não é? Quem era e onde estava, „eh meu, tenho problemas de droga‟. Ou seja, mais do que há muito tempo. Não acabei de estudar. No campo da formação profissional pois estou tramado. Não tenho… não tenho formação para nada. E a tudo isto junta-se que, pois… que tens 15 dias para te ires embora. Então é muito doloroso, essa coisa. E depois demoras meses a encontrar emprego e assim. No dia em que nos fomos, fomos sem nada. E para mim, pois, foi muito decepcionante porque nos tinham dito que nos ia apoiar e o apoio consistiu em não sei quantos meses de renda. Mas lembro-me que assim... que não levámos nada.

Para Oscar esta situação transformou a vida inteira da comunidade: Depois (da chegada) do Juan (o novo coordenador), saíram muitos dos mais velhos, mas os miúdos tornámo-nos mais passivos (…) porque já não havia aquilo que havia. Não havia liderança… de ninguém.

8.1.2 A vida de Ramiro depois da saída da comunidade Esquema 14 Trajectória de saída de Ramiro

Rua

Quarta fase

Hotel: com a namorada

Hotel com a sua nova família

Sogros

CGM

Em sua casa com a mulher e os filhos

O seu afastamento foi só parcial. Vivia com três dos seus pares da CGM mas trabalhava de dia como angariador de fundos nos escritórios da MAMA A.C. e de 152

tarde e à noite no Refúgio de crianças como mairín92. A MAMA A.C. apoiava-os com alimentos e de início fê-lo também com uma parte da renda.

No primeiro mês um dos seus pares desertou, regressou à Casa Grande do Programa MAMA A.C. para viver na ideia de ser “uma ajuda93 provisória”.

O seu regresso ao refúgio, agora como mairín, significou contraditoriamente uma ponte de regresso à rua. Depois de um mês a lá trabalhar, o cheiro do tonzol começou a afectá-lo: Depois de um mês sim, mexeu comigo porque comecei a cheirar os cheiros da rua, por assim dizer, não é?... cheiros da droga. (...) essa coisa, quer dizer, chamava por mim. Ai meu! „tá tudo lixado!...filho da pu..! Vai-te embora‟, não é.... Sim mexeu comigo, não é? E mexeu comigo e remexeu, porque depois agarrei-me à droga outra vez, por exemplo.

Esta situação levou-o a sair do Refúgio, “Deixei o lugar de mairín”, e começou de novo a drogar-se. Tentou trabalhar, mas só durou uma semana. Com o dinheiro que ganhava começou a consumir cocaína, andava drogado e isso levou-o a sair do projecto da “Quarta Fase”: Não podia ficar numa casa a viver assim. E... tentei trabalhar... que seja... trabalhei uma semana, não é? Mas meti-me mais na droga porque, por exemplo, não tinha usado cocaína.....e depois de... não sei quantos anos usei. Disse: „então pr‟a que é que é isto... para quê trabalhar tanto para a droga para um dia e acabar-se-me o dinheiro?‟ Pois, agarrei-me outra vez à droga, não é? Pois isso, sim, mexeu muito comigo.

Regressou às antigas práticas da vida na rua, como tinha feito na sua infância. Comecei a viver na rua, arrastei-me assim uns três meses ou quatro meses na rua. Conseguia droga e drogava-me com o que encontrava. Então depois, sim, voltei ao mesmo. Eu digo que sim, que me fez muito mal, pois, não é? Regressei à origem de onde... de onde saí. Pois, voltei a cair, não é? Foi esta a história.

Meses mais tarde iniciou uma relação amorosa que o fez sair da rua para ir viver num quarto de hotel94: Lembra-te, por exemplo, de que quando estava com a minha mulher, de estar recém... e pois eu continuava a drogar-me. Já tinha uma banca de engraxador. Ia engraxar para o mercado e assim conseguia p‟ró quarto, p‟rá comida e p‟rá droga, não é? 92 Aprendiz de mairo 93 Paro: refere-se a uma ajuda, um favor

Esta é uma prática comum entre as crianças e jovens que não querem dormir na rua. O que ganham permite-lhes pagar um pequeno quarto de hotel nos arredores da antiga central de autocarros da cidade. 94

153

Nesta etapa a sua vida deu uma volta de 180°: E a juntar-se a tudo...Pois...E quando a minha mulher me dá a notícia, pois, de que se sentia um bocado mal-disposta e que não lhe vinha o período, disse ai! Pois, que cena, não é? E começou-lhe a crescer a barriga. Disse: „Ah, pois é! Já está! Não é?‟ Então como que se me fez uma luz. Que eu sempre tinha dito que na escuridão há sempre uma luzinha, não é? Como que se me acendeu uma pequena luz. E assim como que a agarrei, pois. Foi assim que deixei, de um dia para o outro. Um dia disse „nunca mais‟ e parei (refere-se ao consumo de droga). E foi assim. A mim às vezes quando falo nisso pareceme muito simples, não é? Dizer „A partir de hoje não! Acabou-se‟. E foi mesmo assim. Depois de que disse „não, não há mais droga!‟, já era! E continuava a viver no mesmo buraco, por exemplo. Mas acho que lá havia saúde, não é?

Assim decorreram os primeiros dois anos de vida do seu filho mais velho. Ramiro e a sua companheira trabalharam como engraxadores nos arredores da antiga central de camionetas. Aquele pequeno quarto de hotel, aquele buraco, como lhe chama Ramiro, logo depois do nascimento do seu filho primogénito converteu-se no lar da nova família.

8.1.3 A vida de Camilo depois da saída da comunidade Esquema 15 Trajectória de saída de Camilo

Quarta fase

Rua

Família amigo

Sozinho num quarto

Companheiros da CGM

Tia

Viu-se fora da que havia sido a sua comunidade, sem dinheiro e sem trabalho. Começou a frequentar um curso de formação de radio-electrónica. Tinha que caminhar longas distâncias para ir de casa para o curso e doíam-lhe os pés: (…) Durei para aí uma semana. Cansaram-se o raio dos pés de ir ao raio do curso a pé todos os dias ou à boleia. Disse não. Ainda faltavam 20 dias para receber o cheque. Disse não.

Não tinha motivo algum para se esforçar. Não tinha o que o motivasse para superar a difícil situação em que se encontrava. Não pode ultrapassar a dor do sentimento de traição e abandono e depois de uma semana, foi-se abaixo: 154

E fui-me abaixo. Ou seja, num minuto vês as coisas assim sem teres um peso em cima. Assim, sem um peso! Noutro minuto não tens trabalho. Então, mesmo que tenhas coisas na dispensa, alguém que partilhe uma bucha de pão contigo... quer dizer, quanto tempo consegues continuar assim, à procura de trabalho?

Durou uma semana na quarta fase - na casa arrendada pela instituição – e depois começou a viver em casas abandonadas, na rua, “andava por todo o lado, por ali pelo cemitério, pelo Expiatório95 pelo „expia‟, andava por todo o lado”.

Este período da sua vida durou dois anos. Camilo tocou no fundo, começou a consumir drogas como no passado e mantinha-se sob o seu efeito o dia inteiro. Um belo dia “tocou no fundo”. Sentiu-se tão mal que decidiu deixar a rua e pedir ajuda. Foi com o seu amigo do bairro, o qual desde a sua infância lhe dava refúgio em sua casa quando a mãe o procurava: “melhorei. Num instante fomos comprar roupa e coisas pessoais e arrendámos um quartito. É um bom amigo”.

A partir desse momento a sua vida mudou. Começou a trabalhar no café do amigo onde ganhava bem mas trabalhava muito: começava às 5 horas da manhã e terminava às 7 horas da noite. Depois ia ao bairro Mexicaltzingo com os amigos, onde consumiam droga até à meia-noite. Na manhã seguinte ia outra vez trabalhar: “nos primeiros meses andava como um zombi”.

No entanto, a droga continuava a ser uma constante na sua vida, consumindo-a nos seus tempos livres. Trocou o tonzol, já que não lhe permitia trabalhar, por cocaína: De repente agarrava numa linha e snifava-a toda. Fechava-me sozinho e punha-me a fumar crack. Também acho que fisicamente já estava bem fodido. Fumava muito e trabalhava muito, muito. Digo-te: se trabalhava! Às 5 da manhã já andava a pé, e depois acabávamos às 10, 11 da noite.

Uma vez, depois de ter fumado marijuana, decidiu ir visitar a mãe ao cemitério. Era de noite e levou um saco-cama, decidido a passar lá a noite.

Duas ou três vezes esteve na prisão, mas teve sorte e nunca ficou detido por mais 95 NT –El Expiatorio é um largo em Guadalajara

155

de um dia: Numa semana agarraram-me três vezes com droga. Iam-me mandar para a prisão (...) e um amigo meu foi e tirou-me de lá. (...) Tive muita sorte, muita lábia com as trabalhadoras.

O amigo pagou cinco mil pesos de fiança e conseguiu sair. No dia seguinte tinha que ajudar o amigo no trabalho para o compensar pelo que tinha pago pela fiança. Tinha que levar a comida para um evento. Camilo não queria ir, estava de ressaca, mas sentia-se em dívida com o amigo e, por fim, no estado em que estava, apresentou-se para trabalhar. Ao fim da noite estava arrependido: “deu-me pena”. O amigo não merecia que ele se portasse assim.

A sua vida ia do trabalho ao consumo de drogas. Os domingos eram o seu dia de descanso. Desde sábado à noite até à madrugada de segunda-feira consumia cocaína, marijuana, passava a noite em branco, fumava crack. Um dia sentiu-se mal e foi de ambulância para o hospital. O seu corpo estava a reagir ao excesso de fármacos. O corpo “começou a cobrar”: (...) deu-me assim um medo. E se meto água, que estou a atirar tudo por água abaixo. Já era! Agora era tudo diferente. Trabalhava como um escravo, como um burro para ganhar bem, mas não me durava.

Depois deste grande susto e por causa da presença solidária e incondicional do amigo, abrandou o seu ritmo de vida assim como o consumo de droga, sem contudo deixar de usar: “comecei a drogar-me cada vez com menos frequência”.

Implementou as suas próprias estratégias para se afastar das drogas. Começou a trabalhar mais, evitava permanecer sozinho muito tempo, afastou-se de muitos dos seus amigos com quem se encontrava para consumir drogas e evitou os lugares onde houvesse tentações que o fizessem recair: [...] Foi sempre assim. Assim como fui fraco também fui forte e disse: „Tenho que ser forte por mim mesmo‟. E pronto, fui cada vez menos e menos.

Camilo conseguiu livrar-se das drogas e começou a viver com maior liberdade. No entanto, a ferida que a saída da comunidade lhe causara continuava aberta: [...] Estava assim muito zangado. Com quem estava menos zangado talvez fosse com os mairos. Ou seja, a minha bronca e dor era com o Rogelio (o director), não com os outros

156

mairos. O meu desespero, a minha raiva e a minha impotência, a minha queixa era com o Rogelio.

Mas uma má notícia e uma frase dita por Rogelio ajudaram-no a superar. Um dia encontrou na rua um dos seus antigos pares da Casa Grande da MAMA A.C. que lhe contou que estavam a viver uma nova crise no seguimento de problemas sérios com o educador que anos atrás tinham feito sair da comunidade. O seu companheiro contou-lhe que nesses momentos difíceis Rogelio se tinha lembrado de Camilo, das suas queixas e advertências: “se tivesse feito caso do que o Camilo disse”. Essa frase sozinha foi o remédio que Camilo necessitava para superar aquela dolorosa experiência: [...] Para mim foi... mesmo que não o tivesse ouvido dizer isso, afinal de contas tinha dito que eu tinha razão! Foi como sentir que... foi uma frase que me motivou para... assim para perdoar, não é? Não sei como dizer.

Esta crise deixou a segunda fase do programa sem educadores, pelo que Camilo decidiu encontrar-se de novo com Rogelio e solidarizar-se com a situação: “Assim que o Francisco me disse que estavam sem ninguém no refúgio durante as noites... então acho que fui algumas noites”.

Considerava que tinha direito a uma oportunidade, pelo que pediu ao director que o contratasse como mairín do Refúgio. Para sua surpresa o seu pedido foi aceite mas para ser mairín do programa Criança Trabalhadora na sua segunda fase: Sim, também tinha... Não sabia como me ia receber a miudagem, até porque já era outros tipo de miúdos. Havia muitas caras novas, mas também havia caras velhas e a malta tem boa memória. Quer dizer, tem mais memória que assim os mairos, os adultos. Tinha muito medo. Acho que vinha precedido de uma grande fama, que parte era verdade mas também parte era assim mentira, tudo muito exagerado. Sim, dava-me medo. Ou seja, não sabia qual ia ser a reacção dos mairos, por causa de todos os antecedentes, por tudo o que trazia comigo, não é? Como ia ser a relação, como ia ser a confiança, talvez.

Reuniu-se com alguns dos seus companheiros para partilhar a renda de uma casa. Um ano mais tarde a instituição organizou uma importante cerimónia na qual, pela primeira vez, nomearia dois mairins como mairos. Um deles foi Camilo.

157

8.1.4 A saída de Oscar (18 anos) Esquema 16 Trajectória de saída de Oscar

Tia

Sozinho

CGM

Família Canadá

CGM

Com a irmã

Em 1997 a MAMA AC decide transferir a terceira fase do programa criança de rua (a Casa Grande da MAMA A.C.), para um novo espaço: um grande terreno localizado num município próximo à cidade de Guadalajara (actualmente agregados).

A comunidade trabalhou durante vários fins-de-semana para limpar o terreno. Começaram aí a viver em tendas que depois se transformaram em cabanas que haviam sido doadas. Mais tarde construíram o primeiro módulo de quatro casas pequenas, em cada uma das quais habitava uma família.

Oscar nunca gostou da ideia de deixar o velho bairro (Ciudad Granja), nem a de viver tão longe da cidade. De início a mim não me agradou a ideia de irmos para o Rancho. Gostava muito da Ciudad Granja. Sonhava com a Ciudad Granja. (…) Quer dizer, a minha vida tinha sido na Ciudad Granja, estava muito longe... e também a idade, não é? Acho que tinha 18 anos. E um dia disse: „vou-me embora‟. Acho que foi agarrar uma mochila e já nos vemos.

Foi viver com a tia, deixou a Preparatoria96 e começou a trabalhar num hotel como recepcionista, o que lhe permitiu arrendar o seu próprio espaço, um pequeno quarto por cima da casa da tia.

A sua vida quotidiana organizava-se da seguinte maneira: trabalhava no hotel o Deixou os estudos devido a duas situações. A primeira foi que, por falta de pagamento de propinas, tinha deixado de frequentar a escola e tinha que repetir o semestre. A segunda foi a sua separação da comunidade e a necessidade de trabalhar para se sustentar economicamente. 96

158

seu turno e de manhã ia às explicações da Preparatoria Aberta. Também estudava inglês e durante algum tempo começou a estudar francês, com o apoio económico de um dos assessores da instituição.

No entanto, Oscar não se sentia feliz. Depois de ter vivido tantos anos na comunidade, a solidão era um peso difícil de carregar: Senti a falta da MAMA. Não gostava do rancho mas senti-lhe a falta. Até fiz uma carta. Acho que ainda a tens, não? (…) Senti a falta que me puxassem para cima, que me dissessem: „ânimo!‟ Que me fizessem andar para a frente, não é? Que me continuassem a pressionar para que continuasse a estudar, que me dissessem que fosse fazendo as coisas. (…) E quis regressar à MAMA.

Refere-se a uma carta de três folhas, com data de 12 de Março de 2000. De seguida transcrevem-se alguns parágrafos: [...] quero dizer-te que aprendi muito e que a minha cabeça está a 1000 por segundo. [...] Estou a estudar e a trabalhar, é difícil, não digo que não, não quero que penses que tenho medo de enfrentar as coisas. E mesmo que talvez regresse como fracassado ou me digam alguma coisa não me importo. O que se passa comigo é o seguinte: no trabalho, na escola e no inglês vou mais ou menos bem, mas emocionalmente estou zangado. Agora sei porque é que os mairos me diziam que ir-me embora não era a melhor decisão. [...] Concordo, sinceramente, com quando me diziam que não estava preparado para me ir embora completamente sozinho sem ter ninguém ao meu lado. Eu acho que não preciso de ninguém que me diga vá!, vai à escola! Mas sim preciso de alguém que me diga a que horas vais? [...] Sinto falta dos meus amigos, [...] sinto a falta dos jogos da bola, das discussões, do convívio, tudo o que faz do Rancho o lugar que foi: a minha casa. [...] gostava de regressar (não à 4ª porque não estou preparado) à 3ª fase e daí, ter muita força de vontade e continuar a lutar e talvez, por exemplo 2 vezes por semana ajudar o mairo a olhar pelo pessoal, agora que quase não há mairos, ou aventurar-me aos domingos sozinho, para continuar a aprender e demonstrar que quero mesmo regressar. Faço tudo isto porque na verdade o meu projecto de vida está feito aos pedaços, não vejo claramente e queria seguir com o meu projecto juntamente com vocês, que já estava semiconstruído, e seguir em frente [...]

Oscar regressou à comunidade mas para a quarta fase e com o papel de mairín, recebendo por isso um modesto salário. Permaneceu aí um tempo durante o qual terminou a Preparatoria. Posteriormente foi quatro meses ao Canadá para aperfeiçoar o inglês e quando regressou entrou na universidade.

Começou então uma nova vida ao lado da irmã que estava casada e tinha dois filhos. Finalmente tinha saído da comunidade e sentia-se integrado numa família.

159

8.1.5 Análise das saídas A etapa de transição para a vida independente é um passo importante para um final bem sucedido de um longo processo de mudança, já que o desenvolvimento de uma vida independente é o objectivo último do mesmo. No modelo de cuidados daquela época, a instituição planeava o seguinte em relação à etapa que os entrevistados referem nas suas narrações como quarta etapa: Quarto nível: Viver em bairros Objectivos:  Os jovens viverão em pequenas comunidades. Serão casas arrendadas onde viverão de cinco a dez jovens  Os jovens participarão na vida social e organizativa do bairro.  Os jovens, com os Educadores de Rua, encarregar-se-ão do trabalho com os jovens dos gangues  As cooperativas de produção serão auto-financiadas

O programa inicial procura desenvolver uma participação activa dos jovens que saem da instituição na vida do bairro, assim como um trabalho educativo a desenvolver em conjunto com os educadores. No entanto, de acordo com o referido no capítulo 8, a instituição não contava com recursos humanos e materiais suficientes para manter esta fase.

A análise das saídas indica que foi um processo marcado por contradições e retrocessos para estilos de vida anteriores no caso de Ramiro e de Camilo. Deixando de lado as circunstâncias particulares de cada entrevistado, vemos que se apresentam cinco factores comuns aos três casos: 

A saída foi abrupta, repentina



Os entrevistados experimentaram um sentimento de orfandade, solidão ou abandono



De início não conseguiram adaptar-se ao exterior da comunidade



Verificam-se um ou mais regressos à comunidade ao longo do processo de saída



Em nenhum dos três casos se observa um plano de transição como o presente na passagem do Refúgio para a Casa Grande da MAMA A.C.

A partir disto surgem as seguintes perguntas: 160

- Como se explicam as dificuldades apresentadas nas memórias que têm das saídas? - Como é que a instituição facilita ou cria obstáculos ao desenvolvimento da independência e da autonomia dos jovens relativamente à própria instituição? - Como contribui o processo da partida, tal como se apresenta aqui, para a compreensão do processo de mudança?

Os elementos a partir dos quais se origina a dificuldade para o desprendimento da comunidade encontram-se relacionados com o seguinte:

A. O alto grau de identificação e pertença à comunidade O que de início foi determinante para activar e manter o processo de mudança transformou-se num obstáculo para este.

De acordo com os que os três casos apresentam, os entrevistados que desempenharam papéis situados num nível superior da hierarquia, como o caso de Ramiro e Camilo, foram quem teve mais dificuldade na transição para a vida independente. Isto indica que o grau de pertença à comunidade (que pode ser avaliado a partir de indicadores como a vinculação à rua, tempo de vida na comunidade, idade de chegada à comunidade, idade de saída, papéis desempenhados na comunidade) se apresenta como um factor que dificulta a transição para a vida independente.

B. Ambiguidade relativamente ao processo de independência dos entrevistados A instituição inculca nos entrevistados ao longo da sua vida na comunidade uma ideia muito valiosa, a de serem educadores das gerações vindouras: “os melhores educadores estão para vir”. Esta ideia apresenta duas facetas: por um lado dá aos entrevistados uma opção laboral na qual podem capitalizar a sua experiência e colocá-la ao serviço de outras crianças que percorreram o mesmo caminho que eles. Mas por outro lado implica o desenvolvimento de uma relação de 161

dependência entre o jovem e a instituição já que aquele não tem a oportunidade de construir um projecto de vida próprio e provar a si mesmo que pode ser alguém fora dos limites da instituição. O alcance de objectivos no exterior da comunidade é uma tarefa importante para a recuperação da confiança, no contexto dos jovens que viveram na rua.

C. As decisões abruptas e precipitadas Nos três casos isto dificultou a transição já que esta não se desenvolveu a partir de um processo planeado que os entrevistados pudessem levar a cabo passo por passo e ir processando o cúmulo de emoções que esta transição envolve, tal como ocorreu com o processo de saída da rua e a identificação com a instituição.

D. Falta de acompanhamento Como se referiu no capítulo 7, a instituição carecia dos recursos humanos e materiais suficientes para desenvolver o modelo de cuidados que apresentava no papel. Neste contexto, a falta de educadores na comunidade era evidente. Isto faz presumir que a falta de acompanhamento e seguimento ao longo da transição para a vida independente está relacionado com a falta de educadores que ofereçam a atenção e o acompanhamento necessários aos três casos aqui apresentados.

A consequência disto foi que para estes jovens a vulnerabilidade, o medo e a ansiedade natural da vida independente se exacerbaram ainda mais pela solidão na qual cada um teve que enfrentar as lutas no seu mundo interior e exterior.

8.1.6 Conclusão O que aqui se demonstra mostra-nos por um lado um contexto institucional afectado pela falta de recursos que limitou as possibilidades de uma atenção como tinha sido planeada no papel. A isto junta-se um foco de ambiguidade relativamente à separação entrevistado-instituição, criando um conflito entre uma série de sentimentos, ideais e motivações relacionados com o alto grau de 162

identificação dos protagonistas à comunidade e aos ideais institucionais que promovem por um lado a imagem do jovem que saiu da instituição, que se converte em educador, e por outro o processo de independência.

Tudo o referido acima permite notar a manifestação de uma espécie de reprodução da marginalização do acesso a recursos económicos, oportunidades para o desenvolvimento de capacidades para a vida independente, situação a partir da qual se mantêm presentes as diferenças destas crianças relativamente a outros com acesso a mais oportunidades e que tornam evidentes as fraquezas com que enfrenta o mundo.

Há elementos que indicam que o processo de mudança tem as suas limitações no sistema social e que não é tão simples como pareceria no papel compensar as diferenças e desvantagens que experimentam os entrevistados relativamente a crianças da sua idade que nasceram em condições socialmente mais favoráveis. No final de contas, os esforços da instituição também estão limitados por circunstâncias estruturais que reduzem os seus recursos e oportunidades, o que por sua vez se converte em limitações para as crianças que atende.

Como criar um processo de mudança verdadeiramente transformador sem preencher os vazios das crianças e dando-lhes experiências nutritivas que passam necessariamente pelo tema do acesso a oportunidades diversas que vão para lá da saúde, educação e alimentação?

Como

desmarginalizar

transformação

das

as

consciências

condições

materiais

das e

crianças

sem

passar

objectivas

que

originam

pela tal

marginalização?

Paulo Freire sugere que este processo passa primeiro por descobrir que se está numa situação marginal e, segundo, por esclarecer como é que esta situação se originou, para finalmente tomar decisões destinadas a transformar esta situação. 163

Contudo, os princípios do que agora chamamos educação popular, são ultrapassados na prática, a qual é minada de contradições. A activação de pequenas mudanças ocorre sempre dentro das margens do sistema que por meio de diversos mecanismos tende permanentemente a reproduzir a pobreza, a marginalização e as diferenças sociais. Esta sugestão abre novas perguntas relativamente à natureza da mudança destes jovens, os potenciais, as limitações e as variáveis que se relacionam com isto. Por agora gostaria de terminar este capítulo, com o qual finalizo a análise do processo de mudança, com uma frase do fundador da instituição: “Foi uma geração que conseguimos libertar da rua, mas não da pobreza” (Rogelio Padilla)

164

9. Coordenadas para traçar um modelo explicativo da mudança de vida nas crianças de rua

9.1 COMENTÁRIOS GERAIS ACERCA DO PROCESSO DE MUDANÇA 9.2 FACTORES PRESENTES NO PROCESSO DE MUDANÇA 9.3 A LÓGICA DO PROCESSO DE MUDANÇA 9.4 AS ETAPAS DA MUDANÇA 9.5 CATEGORIAS PELAS QUAIS SE MANIFESTA A MUDANÇA 9.6 PROCESSO SEGUIDO PELA MUDANÇA EM CADA ETAPA E AO LONGO DE CADA EIXO 9.7 OS FACTORES QUE DIFICULTAM A MUDANÇA 9.8 CONCLUSÃO

Neste capítulo incluem-se os processos mais significativos encontrados ao longo dos capítulos anteriores que demonstram como ocorre a mudança de vida das crianças. Na primeira parte apresentam-se os ingredientes básicos para a mudança e como estes interagem entre si. Depois descrevem-se os factores envolvidos na mudança e as 5 dinâmicas encontradas ao longo das trajectórias que activam e mantêm activo o processo de mudança. Mais à frente identificam-se as etapas atravessadas pela mudança e as categorias através das quais é possível identificá-la, referenciá-la pedagogicamente e inclusivamente avaliar os seus progressos. Por fim, apresenta-se uma reflexão acerca dos factores que dificultam ou criam obstáculos ao processo de mudança.

165

9.1 COMENTÁRIOS GERAIS ACERCA DO PROCESSO DE MUDANÇA O processo de mudança inicia-se com o desenvolvimento do vínculo afectivo educador-criança. A partir desse momento e na medida em que a criança se afasta da rua e desenvolve um sentimento de pertença 97 ao espaço educativo, o educador adquire uma posição cada vez mais importante no mundo da criança como figura socializante. Estas são as bases do processo de mudança pelo qual os entrevistados conseguem sair e deixar definitivamente a rua, sendo os ingredientes fundamentais, de acordo com o que as trajectórias mostram: a criança, os seus pares e os educadores, o espaço educativo, a vinculação afectiva e o sentimento de pertença. No esquema seguinte integram-se estes elementos numa sequência temporal: Esquema 17 Componentes principais do processo de mudança

EDUCADOR

ACTIVAÇÃO DA MUDANÇA

Vínculo

Figura socializante

Sentimento de pertença ao espaço educativo

CRIANÇAS

A linha tracejada indica a evolução atravessada pela identidade da criança que, de acordo com o analisado, transita para o ser mais, passando de uma identidade constituída fundamentalmente de imagens negativas sobre si mesmo para uma identidade formada de imagens positivas.

97 Entendo por sentimento de pertença o processo de apropriação do complexo socio-cultural de um espaço social que se gera a partir da participação no dito espaço e da aquisição de um papel e de um estatuto dentro do mesmo (Gilberto Jiménez, Materiales para una teoría de las identidades sociales. Extraído em 17 de Maio de 2007: http://www.lie.upn.mx/docs/Diplomados/LineaInter/Bloque1/Identidad/Lec1.pdf)

166

A mudança em termos teóricos entende-se como um processo de socialização, especificamente de re-socialização, já que uma das suas características principais é a ruptura ou a grande mudança de direcção que a criança faz entre o mundo anterior, o da rua, e a incorporação num novo mundo, numa nova realidade. Daí que se entenda mais como uma dinâmica re-socializante, ao longo da qual a criança desconstrói a sua realidade anterior e gera uma nova na qual reinterpreta a sua história, o seu presente e reconstrói os seus horizontes para o futuro.

Esta mudança passa por alterar e transformar primeiro a realidade objectiva da criança e posteriormente a sua realidade subjectiva. As primeiras etapas do processo mostram isto com maior claridade: a presença do educador desencadeia uma mudança nas práticas quotidianas da criança, que se reúne com outros pares em torno das actividades que o educador prepara para si. Paralelamente estes encontros alteram também a realidade subjectiva da criança, que começa a desenvolver um laço afectivo com o educador e a reconstruir a confiança perdida nos adultos e posteriormente, através do sucesso, reconstrói também a confiança em si mesmo.

A mudança ocorre então numa lógica que vai de fora para dentro e dos outros para si mesmo

9.2 FACTORES PRESENTES NO PROCESSO DE MUDANÇA

A mudança origina-se dentro de uma rede de relações que passa pelas dimensões social, institucional e individual. Em cada dimensão encontrou-se um grupo de factores que facilitou o processo de mudança. Os factores das dimensões institucional e individual98 apresentam-se relativamente constantes ao

Há que esclarecer que o estudo se centrou nestas duas dimensões pelo que aprofundar a dimensão do contexto social excede as possibilidades desta análise. 98

167

longo de cada uma das etapas de mudança. Porém, a sua importância varia em cada etapa do processo.

De seguida apresenta-se uma tabela que resume de maneira sintética estes factores. Tabela 17 Factores associados ao processo de mudança

Contexto social  Situação histórica

Instituição 

relacionada com o

Espaço educativo de portas abertas

99

desenvolvimento de

 Pedagogia participativa

novos modelos de

 O tipo de relação horizontal

intervenção



Tipo de vínculo parental



Tempo de vida no interior da família



diálogo entre a criança e os

diminuição dos recursos



processo de saída

 O discurso pedagógico com

função de construir o

 Grau de flexibilidade dos

Idade da criança quando experiencia o

educadores

rua

Interesses vinculados à permanência no lar

e democrática, baseado no

 Mudança do contexto:

para a sobrevivência na

Criança



Grau de satisfação sentido na rua

contexto do novo mundo

espaços sociais nos

 A brincadeira



Tempo de vida na rua

quais a criança se vai

 Recuperação dos valores



Dependência de drogas



Vinculação afectiva aos

incorporando  Recursos e

da cultura callejera

oportunidades para a vida produtiva

educadores

 O fortalecimento da vida 

colectiva 

pares

Preenchimento das necessidades básicas

Vinculação afectiva aos



Sentimento de pertença ao espaço educativo

(serviços)  A crise Institucional que



no espaço educativo

fortaleceu a organização e a identidade colectiva

Conquista de objectivos



Construção de uma visão de futuro

99 Refere-se

a um modelo no qual as crianças circulam livremente, não são retidos à força dentro do espaço

educativo

168

A multiplicidade de factores associados à mudança mostra-nos que esta não é uma equação fácil de explicar, já que depende da conjugação de uma diversidade de circunstâncias num tempo específico. O mais importante desta constatação é que contribui para desmantelar as ideias simplistas baseadas na relação causaefeito que ainda se infiltram em amplos sectores da sociedade: “os pobres são pobres porque não trabalham”, “as crianças de rua ficam na rua porque gostam da preguiça e da ociosidade”, “só querem chamar a atenção”, “não querem mudar”, “ofereci-me para o pôr na escola e não quis”. Estas são só algumas das muitas frases que ouvi ao longo do meu trabalho neste sector da infância, expressadas por pessoas que talvez tenham boa vontade mas pouco conhecimento da complexa realidade na qual estão a intervir.

Os resultados da análise indicam que a mudança de vida não é apenas uma questão de optar ou decidir sair da rua, aproveitar as oportunidades que as instituições lhes oferecem e construir um novo Projecto de Vida. Se nos colocarmos na perspectiva das crianças, neste caso dos informantes, podemos ver que há uma trama densa que vai desde a realidade intra-psíquica até à sociológica, que existem forças e tensões entre estes níveis de realidade, que possibilitam e dificultam a transição das crianças que vivem na rua para uma vida digna e gratificante.

9.3 A LÓGICA DO PROCESSO DE MUDANÇA

A lógica pela qual se activa e desenvolve o processo de mudança caracteriza-se por cinco dinâmicas: ser/ser mais, vinculação/ desvinculação, objectivo/subjectivo, indivíduo/colectivo, concentração/diversificação/redistribuição. As cinco partilham uma lógica que se move entre os dois pólos da realidade – objectivo/subjectivo, o eu e o outro - a partir dos quais a mudança se activa. As duas primeiras partilham a característica de serem dinâmicas iniciadas e procuradas pela criança e as últimas três pelo espaço educativo e a sua pedagogia. 169

Estas lógicas pelas quais transita a mudança não são processos separados nem lineares onde seja claramente identificável um início e um fim, encontrando-se, sim, sobrepostas na vida quotidiana das crianças. Foram extraídas e expostas separadamente neste capítulo apenas com o objectivo e para se compreender melhor o processo de mudança.

9.3.1 Ser - Ser mais O processo de mudança avança a partir da contradição entre as forças que empurram a criança para ser mais e os obstáculos internos e externos que o impedem.

As crianças de rua crescem dentro e a partir da contradição, pelo que aprendem a lidar com ela e a fazê-la sua cúmplice no processo de mudança.

Em tenra idade tecem um vínculo ambivalente com a mãe; ao longo de cada uma das mudanças de espaço social são submetidas a uma rede de forças que os atrai e os repele; a sua identidade de callejeros constitui-se com base na negação que a sociedade faz da sua existência; as suas práticas quotidianas permeadas pela cultura callejera contrapõem-se e são condicionadas pelas práticas aí promovidas ou pelos novos espaços sociais pelos quais transita; na sua procura para ser mais, que se evidencia no caminho que inicia com a saída do lar, encontram duros opositores nas próprias carências e limitações emocionais, nas limitações institucionais e na estrutura e dinâmica social que se lhes impõe e os determinam de maneiras diversas.

A contradição, por isso, é uma dinâmica sempre presente nas suas vidas que nos leva a imaginar a imagem do ser humano que caminha por uma rampa inclinada cheia de obstáculos. Isto permite imaginar o grau de intensidade que as crianças

170

experienciam nas suas histórias, o nível de desgaste emocional que implica a mudança e sobretudo a força e a violência da sua procura para ser mais.

9.3.2 Vinculação - desvinculação À activação da mudança, segue-se a procura que, sobretudo nas primeiras etapas, leva a criança a transitar de um espaço social para outro. Esta transição constante deve-se a uma situação também constante de vinculação/desvinculação afectiva.

As trajectórias estão marcadas por ciclos de vinculação/desvinculação de um espaço social para outro, onde a vinculação é constituída pelo elemento afectivo entre a criança e as pessoas que constituem o espaço social: a mãe, os pares, os educadores, etc.

As histórias dos informantes caracterizam-se pela transição ao longo de diversos espaços sociais: lares substitutos, a rua, o albergue, a comunidade de vida, etc. O ritmo da transição e a permanência no espaço dependem do grau de vinculação afectiva que a criança estabeleça com as figuras significativas do referido espaço, assim como do posterior desenvolvimento do sentimento de pertença. Este último dependerá do desenvolvimento da confiança e do facto de ter um papel que lhe permita participar, ser reconhecido, em síntese, como diz Freire: ser alguém.

A imagem que esta dinâmica mostra, é a de uma criança que tece e volta a tecer vínculos, os quais, sem entender muito bem como e porquê, se deslaçam uma e outra vez, se rompem, se desfazem. Isto indica-nos que o desenvolvimento de uma vida estável para estas crianças – na realidade para qualquer criança - está intimamente ligado à possibilidade de estabelecer vínculos afectivos estáveis ao longo do tempo.

171

9.3.3 Objectivo - subjectivo A mudança dá-se num processo que transita entre a realidade objectiva e a subjectiva100. Cito outra vez um exemplo das primeiras etapas do processo: a criança que vive na rua, depois dos primeiros encontros com um educador marca um encontro com ele ou com ela, e comparece; começa a ir a certas horas a determinados lugares, organiza-se com a sua rede de pares para realizar as actividades que o educador propõe, deixa talvez de consumir drogas por esse breve lapso de tempo. É assim que o seu quotidiano – realidade objectiva começa a ser transformado pouco a pouco pela presença do educador. Paralelamente vincula-se afectivamente à figura do educador, começa a familiarizar-se com o seu discurso que contém novos significados relativamente à sua circunstância de callejero através da qual se esboça o rascunho de uma nova realidade que afecta e transforma a sua realidade subjectiva permitindo-lhe ver – objectiva e subjectivamente - novos horizontes de possibilidade.

O discurso e as práticas pedagógicas têm um papel preponderante no processo de re-significação da criança e o seu mundo: o primeiro traz os novos significados no âmbito subjectivo da criança e as segundas confirmam-nos e sedimentam-nos na realidade objectiva. Isto é, para que a criança acredite no educador e o siga, este deve confirmar o seu discurso no quotidiano da criança e vice-versa.

Para Freire não há processo educativo sem uma transformação em ambas as dimensões. De acordo com os seus pressupostos, o acto de educar ocorre a partir do diálogo e tem lugar no terreno do subjectivo onde começam as primeiras mudanças que se manifestam em novas formas de ler a realidade que lhe permitem compreender o seu mundo e a sua circunstância pessoal, como esta

De acordo com Berger e Luckmann a realidade objectiva é a que se refere à socialmente definida e que se cristaliza nas instituições e nas práticas quotidianas que aí se levam a cabo. Por outro lado, a realidade subjectiva define-se como os significantes com os quais o indivíduo constrói uma ideia determinada de si mesmo e do seu mundo. A realidade subjectiva mantém-se enquanto encontra uma confirmação na realidade objectiva. (P.l. Berger y T. Luckmann. La construcción social de la realidad. Amorrortu, Buenos Aires, 1968, pp. 185-216). 100

172

está configurada e agir, deste modo, para a transformar no âmbito do concreto ou objectivo.

Berger e Luckmann assinalam que a transição de uma realidade para outra não é difícil. O que é realmente complicado é fixar e sedimentar a nova realidade no mundo subjectivo dos indivíduos de maneira a que ao entrar em contacto com os significados e significantes passados a pessoa consiga manter-se na nova realidade.

Por isso, de uma perspectiva pedagógica, deve entender-se a mudança como um processo que ocorre em ambas as dimensões, onde a realidade subjectiva da criança deve transformar-se, mas para fixar e manter esta mudança é indispensável que exista uma base objectiva que confirme continuamente os novos significados adquiridos.

9.3.4 Indivíduo - colectivo Paulo Freire diz que “Ninguém educa ninguém e ninguém se educa a si mesmo. O homem educa-se através da mediação pela sociedade ou pelo mundo”.

O processo de mudança move-se numa dinâmica que transita permanentemente entre o individual e o colectivo como dois pólos ou faces inseparáveis na constituição da mudança.

O colectivo tem três funções fundamentais ao longo do processo de mudança: 

Muda o mundo anterior



Define os contornos de um novo mundo



Sustém, mantém e renova a mudança

O grupo ou a comunidade de crianças aparecem ao longo das trajectórias como o contexto por excelência onde ocorre a mudança. O colectivo, formado por pares e

173

adultos educadores, é como que uma rede com diversas funções de acordo com a etapa do processo de mudança em causa. 9.3.5 Concentração – diversificação – redistribuição Outra lógica que caracteriza o processo de mudança e que aparece ligada ao modelo pedagógico101 é a concentração-diversificação-redistribuição dos vínculos afectivos e dos sentimentos de pertença da criança.

A mudança está marcada por três momentos. Um onde a criança se distancia e concentra os seus vínculos afectivos mais importantes e o seu sentimento de pertença no interior do seu espaço social de vida. Outro onde se afasta e diversifica os seus vínculos e os sentimentos de pertença a novos espaços sociais. E um terceiro, no qual depois da diversificação, ocorre uma redistribuição do peso ou importância dos vínculos e o sentimento de pertença que a criança desenvolveu.

A vida familiar é um momento de concentração. Depois, a saída para a rua é um momento de diversificação, seguido por um processo de adaptação no qual se redistribui e redefine o peso específico dos vínculos aí estabelecidos, num espectro de relação formado por círculos concêntricos onde o primeiro círculo determina os vínculos mais importantes para a criança e assim sucessivamente. Mais tarde reinicia o mesmo ciclo: concentração dos vínculos no espaço educativo, diversificação dos mesmos ao explorar novos espaços sociais tais como a escola e o trabalho e mais tarde, quando inicia a transição para a vida independente, a redistribuição do peso específico que estes vínculos têm na sua vida.

Esta dinâmica alude à ideia do processo de maturação no qual ao se ir desenvolvendo se constrói a rede de relações e vínculos afectivos que sustêm a vida da criança a qual passa de uma rede instável para uma mais estável. 101 O programa constitui-se a partir de cinco etapas que seguem justamente esta lógica.

174

9.4 AS ETAPAS DA MUDANÇA

De acordo com a análise realizada nos capítulos anteriores, definiram-se quatro etapas ao longo das quais se desenvolve o processo de mudança: Activação, Fixação, Evolução, Consolidação.

Estas etapas estão organizadas a partir da perspectiva da mudança, mas coincidem também com a passagem de um espaço social para outro, isto é, as etapas que marcam o próprio programa educativo. O critério para a sua definição estabeleceu-se a partir dos avanços que os entrevistados apresentam na construção de um novo PV e que se iniciam com a saída da rua.

O nome de cada etapa refere-se ao objectivo de cada uma ao longo do processo de mudança.

9.4.1 Activação Trata-se da activação da vontade de mudança na criança. Ainda que a mudança na sua vida se inicie no momento em que procura transformar as suas circunstâncias, quer seja evitando-as ou indo para um espaço social novo, isto é, a sua saída da rua, para fins deste trabalho o início da mudança situar-se-á no momento em que a procura da criança encontra um espaço propício para tomar o seu curso. Isto é, no encontro com a instituição, materializada no educador de rua.

Nesta etapa, a criança encontra-se com o educador, participa depois nas actividades que este organiza na rua, toma a decisão de ir ao espaço educativo e inicia um vaivém da rua para o albergue.

9.4.2 Fixação O objectivo desta etapa, como o seu nome indica, é fixar a vontade, a decisão, a intenção de mudar. É o momento por excelência da ressocialização no sentido da 175

desconstrução da realidade anterior através de uma nova realidade. Caracterizase pela concentração das actividades no interior do espaço educativo, a intensificação das relações entre os pares e educadores, mediados pelo discurso pedagógico e pelo reconhecimento dos sucessos que cada criança vai alcançando, o que contribui para fixar o sentimento de pertença da criança no espaço educativo.

Esta etapa, de acordo com a estrutura institucional de fases, inclui a segunda metade da fase do albergue e a transição para uma comunidade de vida de 24 horas.

A criança deixa de ir à rua, limita os contactos com o mundo exterior e apropria-se das práticas e do discurso do espaço educativo, aumentando a identificação como membro deste lugar e diminuindo a sua identificação com a cultura callejera.

9.4.3 Evolução O seu objectivo deixa de ser a saída da rua e a desactivação da cultura callejera e passa a ser a construção de um novo PV.

A criança começa a introduzir-se em novos espaços sociais, começando pela escola e acabando no trabalho. Nesta etapa a comunidade de pares tem uma importante função já que actua como uma rede que sustém e contém a criança, permitindo-lhe continuar a sua progressão no processo de mudança.

9.4.4 Consolidação Esta é uma etapa tão importante como a da fixação. Da sua resolução favorável depende que se evitem situações como a do regresso dramático à rua que se descreve no capítulo As Partidas.

176

A etapa de consolidação implica a fixação da criança, já então um jovem, em novos espaços sociais sendo os mais importantes o trabalho e outros grupos de referência importantes tais como os grupos de amizades, grupos desportivos, etc.

Para que ocorra uma fixação de sucesso é condição prévia necessária um processo de transformação do intenso vínculo e sentimento de pertença à comunidade de vida, desenvolvido nas etapas prévias.

9.5 CATEGORIAS A PARTIR DAS QUAIS SE MANIFESTA A MUDANÇA

Os progressos que os entrevistados fazem ao longo do processo de mudança, manifestam-se e organizam-se em cinco categorias situadas junto ao vértice da dimensão psico-social da mudança, uma vez que cada um deles envolve o indivíduo e a sua interacção com um contexto específico: Vínculo, Confiança, Sentimento de Pertença, Futuro, Sucesso.

A característica principal destas categorias é situarem-se no âmbito da realidade subjectiva da criança, com excepção do Sucesso, que alude a elementos de ambas as dimensões da realidade. Isto é importante já que representa uma das principais descobertas sobre o processo de mudança narrado pelos próprios protagonistas: a relevância do elemento subjectivo neste processo.

A ordem em que se apresentam estas categorias não é aleatória. Segue um padrão que se manifesta na análise das trajectórias de vida. É contudo importante esclarecer que na realidade isto é flexível e a ordem destas categorias altera-se, acumula-se, sobrepõe-se. Por exemplo, é possível identificar uma relação entre vínculo e confiança: o vínculo estabelece-se a partir da confiança e esta constróise na vinculação com o outro. No caso do sentimento de pertença, é muito claro que para se estabelecer necessita de um vínculo prévio e uma base de confiança. No entanto, a visão para o futuro parece constituir-se sobre as categorias 177

anteriores, assim como sobre outros elementos tais como o sucesso que lhe segue como última categoria e o discurso pedagógico. No entanto, para prosseguir na construção de um modelo explicativo da mudança, é necessário fixar uma lógica que as ordene no tempo.

De cada categoria saem eixos pelos quais transita o processo de mudança. Por exemplo, a partir da categoria da confiança traça-se um eixo que chamo recuperação da confiança que vai da desconfiança à confiança.

De seguida definem-se cada uma delas.

9.5.1 Vínculo Refiro-me ao tipo de relação que a criança estabelece com as figuras significativas do seu mundo e para o qual transfere as necessidades não satisfeitas na primeira infância. O referido vínculo é constituído assim por uma forte componente emocional, semelhante aos vínculos que as crianças estabelecem nas primeiras etapas das suas vidas.

Nos seus primeiros anos de vida o vínculo que estabelece com a mãe caracterizase por: ser instável ao longo do tempo; ser ambivalente já que coexiste na criança um sentimento de aceitação e resistência relativamente à mãe; ser portador de poucas ou nenhumas recompensas; ser portador de um grande número de experiências pouco gratificantes tais como medo, cólera, impotência e frustração; criar imagens negativas de si mesmo.

Pelo que, em termos do processo de mudança, o eixo da categoria do vínculo traça-se ao longo de um contínuo que vai de um vínculo instável, ambivalente, pouco gratificante, para uma vinculação mais estável com as pessoas significativas do seu mundo que proporciona experiências gratificantes (que geralmente surgem da satisfação das necessidades emocionais da criança) e a partir das quais a criança descobre ser e se reconhece como uma pessoa 178

merecedora da aceitação e do afecto dos outros. Trata-se de um vínculo que passa pela vinculação com os pares, com o educador, com o espaço educativo, com os outros e com novos espaços sociais.

9.5.2 Confiança Entendo por confiança uma forma específica de a criança se relacionar consigo mesmo, com o próximo e com o seu mundo em geral.

Este conceito surge como um dado empírico ao longo da análise das trajectórias e confirma-se na minha própria experiência de trabalho com as crianças, a qual me mostrou a enorme necessidade que têm de receber afecto e a grande dificuldade em pedir e receber. Este conceito baseia-se nas teorias psico-analíticas do apego, cujo representante é John Bowlby, o qual defende que a partir das experiências com quem cuida da criança, se constroem certos modelos de funcionamento posterior,

assim

como

certos

padrões

de

memórias,

pensamentos

e

sentimentos102. Por outro lado, Eric Erikson introduziu nas teorias do apego o conceito de confiança básica, a qual define a atitude da pessoa relativamente ao mundo que pode fixar-se ao longo de um contínuo que vai da desconfiança para a confiança103.

A criança de rua, dadas as circunstâncias em que se desenvolve nos seus primeiros anos de vida quando a satisfação das suas necessidades foi frustrada, desenvolveu um vínculo cujo núcleo é a desconfiança, a qual permeia as suas relações e a impede de satisfazer as carências que tem desde pequeno, assim como as do momento actual.

A reconstrução da confiança de acordo com as trajectórias segue um processo que vai de “fora para dentro”. Isto é, reconstrói-se na relação com o próximo, neste caso com o adulto educador e com os pares, e posteriormente introduz-se na Rosario Mendiola Daroca. Reseña del libro: Teoría del apego y psicoanálisis. Revista de Psicoanálisis No. 20. Extraído da internet no dia 26 de Julho de 2007: http://www.aperturas.org/20mendiolafonagy.html. 103 Bischof, Ledford. Interpretación de las teorías de la personalidad. Trillas, México, 1975. 102

179

relação consigo mesmo. Na medida em que as suas experiências se tornam mais gratificantes que frustrantes, a relação com o seu mundo e consigo mesmo transforma-se.

O eixo que corresponde à categoria da confiança traça-se num contínuo que vai da desconfiança à confiança e passa pela reconstrução da confiança no adulto e posteriormente em si mesmo e nos outros.

9.5.3 Sentimento de Pertença O sentimento de pertença a um grupo define-se em termos do desempenho de um papel e da participação do indivíduo dentro da estrutura colectiva104. O sentimento de pertença a diversos grupos permite ao indivíduo definir a sua identidade e satisfazer as suas necessidades.

A análise mostra-nos que a criança ao desvincular-se do seu lar experimenta um vazio de pertença e procura activamente um lugar ao qual pertencer.

A criança desenvolve um reduzido grau de pertença à família o qual lhe facilita a saída para a rua. No entanto, esta situação leva-o a procurar um lugar onde pertencer e satisfazer as suas necessidades materiais e emocionais. Mais tarde insere-se na rua e sobrevive nela com base num elevado grau de pertença ao sector de crianças de rua e ao pequeno grupo de pares com quem aí sobrevive. Mais tarde, este sentimento de pertença transita para o espaço educativo e para o grupo de pares que aí vive.

O sentimento de pertença que aparece nas primeiras etapas da vida da criança tem um grau de dependência, já que a criança satisfaz as suas necessidades vitais no espaço e pelos membros relativamente aos quais se desenvolve tal

104 Giménez Gilberto. Materiales para una teoría de las identidades sociales. Extraído da internet no dia 17 de Maio de 2007: http://www.lie.upn.mx/docs/Diplomados/LineaInter/Bloque1/Identidad/Lec1.pdf

180

pertença. Por isso o eixo que corresponde a esta categoria vai da pertença concentrada à pertença diversificada, de maneira a que a dependência inicial se transforme numa interdependência do indivíduo relativamente aos diferentes espaços sociais nos quais satisfaz diversas necessidades.

O eixo que corresponde à categoria de pertença traça-se numa linha que vai da reduzida pertença, passa pela elevada pertença e termina na diversificação da pertença.

9.5.4 Futuro Nesta categoria reúnem-se as expectativas que a criança vai construindo em relação ao futuro com a passagem pelo programa educativo. Como se viu no capítulo “Transição para a terceira fase (Casa Grande) do Programa MAMA A.C: o prelúdio de uma nova vida”, na relação da criança com o educador e através do discurso pedagógico, o primeiro começa a definir determinadas ideias do que pode ser o seu futuro se continuar no espaço educativo e continuar o processo que lhe indicam. A visão de futuro tem para as crianças as funções de criar um novo horizonte de possibilidade, de as motivar, de lhes facilitar a definição de objectivos através dos quais podem alcançar o que se propõem e de as ajudar a continuar a esforçarem-se e esperarem por uma recompensa que por muito que avancem, tarda a ser alcançada.

9.5.5 Sucesso Refere-se aqui ao resultado de cada etapa para o qual se requer ter passado pelas categorias anteriores. A função do sucesso é reforçar na criança a imagem de que é capaz de alcançar o que se propõe e desta maneira mantê-lo a participar dentro do espaço educativo. O sucesso é para a criança a prova concreta de que vale a pena a sua participação no espaço educativo.

181

O sucesso vai de um eixo que começa na rua e culmina num novo PV, passando por dois grandes momentos: o primeiro a saída da rua e o segundo a incorporação no espaço educativo e a posterior incorporação em novos espaços sociais.

9.6 PROCESSO SEGUIDO PELA MUDANÇA EM CADA ETAPA E AO LONGO DE CADA EIXO

Nesta parte apresenta-se de uma maneira integrada cada uma das etapas, os eixos e o tipo de desenvolvimentos que é suposto a criança seguir para alcançar uma vida independente, de acordo com cada etapa. Numa terceira coluna apresentam-se os factores facilitadores deste processo, os quais na sua maioria se mantêm constantes ao longo das etapas. Para não os repetir em cada quadro, apresento apenas os que se apresentam como mais relevantes de acordo com a etapa em causa.

182

9.6.1 Etapa de Activação

Eixos

Descrição

Factores facilitadores da mudança

A criança inicia a desvinculação à

Vinculação (A)

desenvolvimento de novos modelos de

tempo no espaço educativo. Cria-

intervenção

se um vínculo intenso que pode



incidir tanto na figura do educador

 Grau

de flexibilidade dos espaços

espaço educativo

sociais nos quais a criança se vai

Inicia-se a reconstrução da

incorporando

confiança no próximo

 Espaço educativo de portas abertas

fundamentalmente nas figuras

 Pedagogia participativa

adultas representadas pelo

 O tipo de relação baseada no diálogo,

horizontal

e

democrática

entre

Concentra-se no grupo de pares

 A brincadeira  Recuperação dos valores da cultura

(A)

callejera

Desvincula-se da rua, incorpora-se no espaço educativo e desactiva

 A provisão das necessidades básicas

(serviços)

progressivamente os hábitos

 Idade da criança quando passa pelo

negativos adquiridos na rua

processo de saída  Grau de satisfação sentido na rua

Visão de Futuro (A)

a

criança e os educadores

Sentimento

Sucesso (A)

Mudança de ambiente: diminuição dos recursos para a sobrevivência na rua

educador

de Pertença

Situação histórica que está ligada ao

rua na medida em que passa

como nos pares que participam no

Confiança (A)



Aparece no horizonte da criança a possibilidade de mudar a sua vida: o desejo de ser mais

 Tempo de vida na rua  Dependência das drogas  Vinculação afectiva aos educadores 

183

Vinculação afectiva aos pares

9.6.2 Etapa de Fixação

Eixos

Descrição Mantém-se

Vinculação (B)

Factores facilitadores da mudança

relativamente

ao

educador que permaneça ao longo do

processo,

intensifica-se

 Mudança de ambiente: diminuição dos

recursos para a sobrevivência na rua

mas

dirige-se

e

 Pedagogia participativa

em

relação

à

 O tipo de relação baseada no diálogo,

comunidade de pares

horizontal e democrática entre a criança

Dá os primeiros passos para a

e os educadores

reconstrução da confiança em si mesmo a partir dos sucessos que

 O discurso pedagógico cuja função é

construir o contexto do novo mundo

Confiança

começa a alcançar: ir ao espaço

 A brincadeira

(B)

educativo, diminuir o consumo de

 Recuperação dos valores da cultura

droga,

a

relações,

violência colaborar

nas

suas

activamente

callejera  O fortalecimento da vida colectiva  A provisão das necessidades básicas

nas actividades, etc. Sentimento

Concentração do sentimento de

de Pertença

pertença no espaço educativo

(serviços)  A crise institucional que fortaleceu a

organização e a identidade colectiva

(B) Definem-se os termos em que se

 Grau de satisfação sentido na rua

Visão de

baseia o programa educativo: vida

 Tempo de vida na rua

Futuro (B)

comunitária,

 Dependência das drogas

estudo,

desporto,

 Vinculação afectiva aos educadores

trabalho e solidariedade Incorporação, participação Sucesso (B)

adaptação produtiva

e na

 Vinculação afectiva aos pares  Sentimento de pertença ao espaço

educativo

comunidade.

 Conquista de objectivos

no espaço

educativo  Construção de uma visão de futuro

184

9.6.3 Etapa de Evolução

Eixos

Descrição

Factores facilitadores da mudança

O vínculo em relação aos pares

 Grau de flexibilidade dos espaços sociais

105

nos quais a criança se vai incorporando

e educadores Vinculação (C)

Confiança (C)

debilita-se

intensifica-se, paulatinamente

relativamente aos educadores e

 Recursos e oportunidades para a vida

produtiva

diversifica-se em relação aos

 Espaço educativo de portas abertas

outros pares de novos espaços

 Pedagogia participativa

sociais

 O tipo de relação baseada no diálogo,

Reconstrução da confiança em si

horizontal e democrática entre a criança e

mesmos a partir da qual a

os educadores

criança

começa

a

alcançar

sucessos nos novos espaços

 O

discurso pedagógico cuja função é

construir o contexto do novo mundo

sociais

 A brincadeira

Sentimento

Diversificação de novos espaços

 Recuperação

de Pertença

sociais

dos

valores

da

cultura

callejera  O fortalecimento da vida colectiva

(C) O horizonte de futuro enquadra

 A

provisão

das

necessidades

(serviços)

Visão de

as

Futuro (C)

quotidianos, definindo um “para

 Tempo de vida na rua

que” na consciência da criança

 Dependência das drogas

acções

e

Incorporação,

os

esforços

adaptação

e

básicas

 Vinculação afectiva aos educadores

participação produtiva em novos

 Vinculação afectiva com os pares

espaços sociais

 Sentimento

de

pertença

ao

espaço

objectivos

no

espaço

educativo

Sucesso (C)

 Conquista

de

educativo  Construção de uma visão de futuro

Isto apresenta-se de maneira diferente nas trajectórias, já que dadas as dificuldades com a equipa de educadores, o que ocorre na realidade é o enfraquecimento do vínculo entre as crianças e a equipa de educadores. 105

185

9.6.4 Etapa de Consolidação

Eixos

Descrição

Factores facilitadores da mudança

Redistribuição do peso específico dos

 Grau de flexibilidade dos espaços

vínculos afectivos da criança, de

sociais nos quais a criança se vai

Vinculação

maneira a que a relação que tem com

incorporando

(D)

a

comunidade

independência

passa para

interdependência

da a

106

vida produtiva  Espaço educativo de portas abertas

Reconstrução da confiança no mundo Confiança (D)

 Recursos e oportunidades para a

 O

tipo

de relação

baseada no

que a rodeia, no futuro que a espera e

diálogo, horizontal e democrática

em si mesma, na sua capacidade

entre a criança e os educadores  O discurso pedagógico cuja função é

para a vida independente

construir o contexto do novo mundo

Sentimento

Redistribuição do peso do sentimento

de pertença

de pertença entre os espaços sociais

 Dependência das drogas

(D)

que passam a constituir a sua vida

 Vinculação afectiva aos educadores

Incorporação, adaptação e

 Vinculação afectiva com os pares

participação activa e produtiva no

 Sentimento de pertença ao espaço

Sucesso (D)

educativo

âmbito laboral O horizonte de futuro imaginado na Visão de

etapa dois forma os padrões para

Futuro (D)

ponderar

os

seus

sucessos

 Construção de uma visão de futuro

e

construir novos objectivos

9.7 OS FACTORES QUE DIFICULTAM A MUDANÇA

Tal como no caso dos facilitadores da mudança, os elementos que a dificultam podem organizar-se nas mesmas dimensões: o social, o institucional e o individual, e podem definir-se como a ausência ou o oposto do factor que facilita a mudança. Por exemplo, na dimensão social descobrimos que o grau de ligação à

Nas trajectórias o vínculo intenso com a comunidade, entre outras circunstâncias, dificulta a transição para a vida independente 106

186

rua ocorre, entre outros factores, na medida em que a criança encontra neste espaço social recursos abundantes para a sobrevivência: o aumento destes dificulta o processo de mudança e a diminuição dos mesmos facilita-o. No entanto, existe também outra ordem de factores que dificulta a mudança e tem a sua origem no mesmo núcleo onde se originam as condições que levam a uma infância na rua: o sistema social.

Através das trajectórias e da sua análise é possível ver uma força que mantém o estado de coisas tal como está. Refiro-me a não ser suficiente a boa vontade e o desejo da instituição, das crianças e dos educadores. Não é suficiente a elaboração de estratégias pertinentes e efectivas uma vez que existe uma dinâmica social que impõe limites, mantém as diferenças onde alguns mantêm grandes vantagens relativamente aos outros e determina as fronteiras da possibilidade destas crianças, dos seus educadores e da instituição que os acolhe.

As situações de crise no âmbito institucional são afectadas pela situação e pelas condições económicas da mesma e nem sempre é possível obter um saldo positivo destas, como foi o caso da primeira crise, quando a instituição era ainda pequena, mas conseguiu um saldo positivo no processo de fixação das crianças no projecto. No entanto, na segunda crise ocorreram rupturas que dificultaram a última etapa do processo, na qual os jovens deviam transitar para a vida independente.

Da mesma maneira, no âmbito dos educadores e dos problemas que nele se apresentam, a situação económica continua a ser uma variável que lhes está associada. Como o assinalam os protagonistas das trajectórias, “éramos muitos para poucos educadores”, “estavam sempre ocupados com outras coisas e não tinham tempo para ti”, etc. Nesta dinâmica, onde há uma grande exigência das necessidades da comunidade e poucos educadores para as satisfazer cabalmente, o potencial do espaço educativo para a manutenção e evolução da mudança enfraquece. 187

Uma das partes mais fracas do processo de mudança é a que corresponde às últimas etapas, quando as crianças/jovens requerem diversificar o sentimento de pertença e a participação em diversos espaços sociais e fortalecer em especial o relacionado com o âmbito laboral. Esta etapa parece ser fundamental no curso posterior que os respectivos projectos de vida dos entrevistados tomaram. Na medida em que diversificam a sua pertença a diferentes espaços sociais, nutrem o seu projecto de vida de maneira a que a transição para a vida independente seja facilitada.

Vimos nas trajectórias como é que, com a saída da comunidade, dois dos informantes regressaram à rua, uma vez que ao verem-se despojados da sua comunidade, a sua referência imediata era a rua. Ainda que já não sentissem que pertencessem a esta, não tinham novos mundos para a substituir. O mesmo acontece com o terceiro protagonista que não regressa à rua mas cuja vida independente afasta da comunidade, a sua principal fonte de sentimento de pertença. Experimenta por isso uma grande solidão, o que o faz regressar à comunidade, saindo dela mais tarde com mais ferramentas para assumir a vida independente.

O trabalho é o espaço social mais importante para o sucesso da vida independente. Dele depende a possibilidade de obterem os recursos económicos necessários que lhes permitam tornarem-se materialmente independentes da instituição. Os sucessos que obtêm neste âmbito, antes de saírem da comunidade, também os investem da confiança necessária para enfrentarem as dificuldades e frustrações próprias da vida independente. Contudo, neste campo, os recursos e oportunidades que a instituição oferecia aos entrevistados mostram ser

limitados

e

restringidos

pelas

necessidades

de

quem

oferece

as

oportunidades, não satisfazendo as necessidades dos entrevistados de formação para o trabalho.

188

A segunda debilidade do processo revela-se na atenção e no acompanhamento pessoal. Neste sentido Camilo faz uma série de críticas valiosas.

9.7.1. O acompanhamento O discurso pedagógico da instituição diz permanentemente que é possível transformar uma vida de sofrimento numa vida melhor. Tenta-se que esta ideia penetre progressivamente nas consciências das crianças, no seu horizonte de possibilidade e a partir daí se desencadeie o desejo dessa vida para finalmente tomarem a decisão de participar na etapa seguinte do programa, com a clara intenção de se esforçarem para que a vida mude.

Camilo reflecte criticamente, a partir do discurso e sobre como a experiência de libertação da rua é difícil e dolorosa. Explica que sair dos “problemas da rua107”, especificamente das drogas, foi um longo caminho que implicou muitas quedas. Ter decidido um belo dia que queria “ter um descanso e sair da vida antiga”, era apenas o princípio de um longo e difícil caminho, que requeria algo mais que palavras para chegar ao sucesso: “há um grau de inocência, em acreditar que as meras palavras são tudo”.

Ainda que para ele fosse claro que queria uma mudança, não sabia como consegui-lo. Tinha muitos problemas emocionais e uma adição que afectava toda a sua existência.

Como adulto, considera que naquela altura precisava urgentemente de terapia psicológica que o ajudasse a resolver as suas dores emocionais e o seu problema de adição. Mas essa ajuda chegou mais tarde, quando Camilo tinha desenvolvido uma grande descrença na possibilidade de alguém o poder ajudar. A sua resistência em abrir-se sobre os temas dolorosos da sua vida aumentou ao longo

Na linguagem pedagógica da instituição existem 5 problemas de rua: violência, mendicidade, roubo, droga e prostituição. 107

189

dos anos e recusava-se a falar com um psicólogo sobre estes capítulos da sua vida: Com essa idade Ramiro já tinha problemas com certas figuras, ou seja, lá para ele então um psicólogo é um fulano que te quer ´terapiar´ e que não vai fazer nada por ti, e terapeio eu o psicólogo, e digo não está certo, ´terapeias-te´ tu sozinho, mas nesses momentos estou-me a lixar para o psicólogo.

O testemunho anterior reflecte uma clara resistência a revisitar os eventos dolorosos da sua vida, mas também a dificuldade institucional de lhe oferecer numa etapa anterior um apoio psicológico.

9.7.2 A atenção individual Da reflexão sobre a forte necessidade de pertencer a uma família, Ramiro transita para a necessidade de ter uma atenção individual, o qual dificilmente alcança apesar das boas intenções e da dedicação dos educadores, “tudólogos”, como o mesmo Ramiro diz, que permanentemente estão inundados de responsabilidades e tarefas para fazer: “os números são excessivos na MAMA e vai-se a atenção individual para nós”.

Quando a mãe morreu sentiu muitas coisas internamente. Os educadores disseram-lhe: “Meu, morreu-te a mãe, estamos contigo, somos teus amigos”. De novo assinala que quando morre um familiar a alguém “vão ao psicólogo para não se abaterem”, mas ele não teve um espaço para processar a dor: “Decidi não aceitar, decidi tirar tudo de cima, pôr de lado”.

Passados alguns anos, acha que na altura da morte da mãe se encontrava numa etapa muito sensível que lhe tinha permitido adaptar-se com maior facilidade à família da tia, mas lamenta que os educadores não tivessem contemplado essa opção. Questiona-se como teria sido a sua vida se esta ideia, que acabou por só ser uma possibilidade, se tivesse tornado realidade.

190

9.7.3 A necessidade de família Na instituição existe um lema que diz mais ou menos que “as crianças têm que seguir em frente com as suas famílias, sem as suas famílias ou apesar delas”. Da experiência institucional retira-se que no caso das crianças que fazem da rua o seu lar, a reinserção familiar, na maioria dos casos, não é aconselhável, já que se tratam de famílias com uma problemática muito complexa que ultrapassa os propósitos institucionais. Por vezes são famílias completamente “quebradas”. Mas Ramiro duvida da posição institucional e baseia claramente os seus argumentos, partindo da sua própria experiência de vida.

Explica que existe um vazio familiar que não se preenche quando se vive numa comunidade alternativa e ao longo da vida, de vez em quando, emerge uma expectativa, está-se permanentemente à espera de uma oportunidade: (...) é muito fácil ver-se de fora e pensar que se vai tornar numa família substituta, que não lhes ia fazer bem. Pois eu não estou de acordo. Em teoria pode ter mais conhecimentos, mas também na parte vivencial faz-nos sentir o que é estar sozinhos e o que é a procura de um lar.

Considera que nas famílias “do povo pobre” existem possibilidades de se receberem crianças como ele entre os familiares: uma tia ou um tio, que ainda que não tenham as melhores condições económicas, têm uma família unida, sem problemas. Ele teria gostado que o tivessem levado para viver com a família da tia. Uma vez a mãe recebeu mesmo uma proposta para dá-lo para adopção: (...) houve propostas feitas à minha mãe, de uma senhora para quem trabalhou como empregada de limpeza. A irmã dela queria-me levar para os Estados Unidos, porque não podia ter filhos (...) Queriam-me adoptar, mas a minha mãe não deixou. Eu sim tinha, querido.

Pensa que é mais fácil que uma criança com uma história semelhante à dele se adapte a uma família “do povo pobre” do que a uma família de um nível económico mais alto. No entanto, a idade é um factor importante quando se 191

procura encaminhar uma criança para uma família substituta. Quanto mais anos passam, mais difícil se torna a criança adaptar-se à vida familiar já que os hábitos adquiridos na rua se encontram mais enraizados e se é mais resistente a aceitar o carinho e a ajuda dos adultos.

Ramiro não está de acordo com a frase usada pelos seus educadores quando era criança de que “nós somos a tua família”: (...) tu tinhas uma necessidade urgente de atenção pessoal de carinho, de ter uma família, de ter um pai, de ter uma mãe, coisas que a vida te negou. E é muito difícil que te agarres a essas palavras, que dão conforto (...), sim, mas tu tens uma necessidade muito grande e essa outra família não vai chegar do dia para a noite.

As reflexões de Ramiro em relação aos vazios e dificuldades que experimentou, ajudam-nos a medir o impacto que as carências afectivas têm na vida das crianças.

9.8 CONCLUSÃO

O espaço educativo tem a função de uma câmara de despressurização, como a que permite ao mergulhador passar de um ambiente para outro, do fundo do mar para terra. Neste caso trata-se de um dispositivo pelo qual as crianças transitam do mundo da rua para o sistema social dominante, servindo o espaço educativo à criança, assim, de matriz para a ressocialização, ao dar-lhe a preparação para viver num meio diferente e facilitando a transição de uma cultura para outra. Retomando a pergunta que deu origem ao trabalho de investigação “O que é que de tudo o que fazemos, os educadores, é o realmente importante para o processo de mudança de vida nas crianças?” será possível dizer que o fundamental é a relação que se estabelece entre a criança e o educador, a brincadeira, a metodologia participativa e colectivista, o discurso pedagógico e a projecção baseadas nas metas do projecto de vida que mantém o sentido e a validade entre 192

as acções quotidianas que as crianças realizam no presente e o horizonte de futuro que imaginaram para si.

Em contrapartida, aquilo que dificulta e entorpece o processo de mudança é o tamanho e a instabilidade da equipa de educadores; a insuficiente atenção e acompanhamento individual; a concentração do sentimento de pertença relativamente à comunidade nas últimas etapas do processo quando esta deveria diversificar-se e enraizar-se em novos espaços sociais; a fraca formação para o trabalho e a falta de oportunidades para que as crianças escolham e participem em diversos espaços sociais, sejam desportivos, culturais, recreativos, etc.

193

10. As descobertas e suas implicações nas políticas de cuidados da infância callejera 10.1COMO DEFINIR E EXPLICAR A MUDANÇA DE VIDA 10.2 PRINCIPAIS DESCOBERTAS E SUAS IMPLICAÇÕES

Como pano de fundo apresenta-se a maneira como foi conceptualizada e explicada a mudança de vida, para posteriormente se apresentarem duas descobertas que têm repercussões significativas para a maneira de conceber as lógicas de intervenção sócio-educativa em populações callejeras.

10.1 COMO DEFINIR E EXPLICAR A MUDANÇA DE VIDA Vimos acima a mudança de vida que envolve o desenraizamento de um mundo anterior e a adaptação a um novo mundo, para o qual se requerem as seguintes condições108:  Uma estrutura facilitadora da mudança  Novos referentes do mundo  Afastamento físico de um contexto para outro  Figuras socializantes transmissoras dos novos referentes  Identificação e apego a estas figuras

Para Berger e Luckmann a condição social mais importante consiste em dispor de uma estrutura de plausibilidade eficaz, ou seja, de uma base social que sirva como “laboratório” de transformação. Esta estrutura de plausibilidade será mediada no 108

Berger L. Peter, Thomas Luckmann. La construcción social de la realidad, Amorrortu Argentina, 2003, p.

195

194

indivíduo por outros significantes com os quais deve estabelecer uma identificação fortemente afectiva. Sem esta identificação não se pode produzir nenhuma transformação radical da realidade subjectiva, identificação essa que reproduz inevitavelmente as experiências infantis no que toca à dependência emocional de outros significantes.109

De uma perspectiva sociológica é possível entender isto como um processo de resocialização onde são interiorizados novos elementos do mundo que não coincidem necessariamente com as interiorizações consolidadas na socialização primária110. A re-socialização implica uma mudança, isto é, uma forte transformação “que deve debater-se com um problema de desmantelamento ao desintegrar a anterior estrutura nómica da realidade subjectiva”111. Este processo foi estudado em adultos que experimentam uma grande mudança, como o caso dos alcoólicos anónimos ou das conversões religiosas.

No caso da criança de rua não é possível falar exactamente de um caso de resocialização. Pela sua condição de crianças, porque muitos deles ainda se encontram na etapa de socialização primária e dada a sua condição de callejeros, o processo de socialização desenrola-se numa lógica cronológica diferente.

Os autores assinalam contudo que na dinâmica de re-socialização existem diversas matizes que não implicam necessariamente romper com a realidade anterior112. Isto é, a re-socialização também é possível ser entendida como um processo no qual, sobre a base do mundo interiorizado na socialização primária, se constrói “uma nova realidade subjectiva”.

109 Idem. 110 Berger L. Peter 111 Idem.

p. 195. 112 Idem. p. 200

195

Ao contrário da socialização secundária113, na qual o presente se interpreta a partir dos referentes passados, na re-socialização o passado é reinterpretado a partir dos referentes do presente. Pelo acima, a ideia de mudança implica uma ruptura biográfica “subjectiva”, mediante a qual se constrói uma nova interpretação da história pessoal. As crianças, ao verem-se interpeladas pelo discurso pedagógico, adquirem novos significantes que lhes permitem interpretar as suas vidas sob uma nova perspectiva. É nesta dinâmica que parece estar contida a génese da mudança nas suas consciências.

10.2 PRINCIPAIS DESCOBERTAS E SUAS IMPLICAÇÕES

10.2.1 Os motivos de saída e as políticas de intervenção social com crianças callejeros Um primeiro elemento digno de ser assinalado é o motivo de saída para a rua. É importante compreender a origem desta saída, que se idealiza a partir de uma procura, de uma transição por diversos espaços (casa de amigos, familiares, conhecidos, etc.) sendo a rua o último deles e a única alternativa ao espaço de vida que procuravam.

Este facto, que é preciso questionar de maneira sistemática e em maior escala, indica que o leitmotiv de Ramiro, Camilo e Oscar, e talvez o de muitas mais crianças, é a necessidade de uma família.

Esta é uma circunstância por demais relevante já que, se não havia um contexto familiar que retivesse a criança, onde estavam as redes sociais, as instituições e as instâncias responsáveis por garantir os direitos da infância? Isto evidencia uma falha social sistemática, constituída pela ineficácia dos mecanismos de cuidados e “Aquisição do conhecimento específico de 'papéis', estando estes directa ou indirectamente radicados na divisão do trabalho". Berger L. Peter, Thomas Luckmann en La construcción social de la realidad, Amorrortu Argentina, 2003 113

196

protecção à infância, assim como a fragilidade do tecido social através do qual escorregam lentamente as crianças, até chegarem à rua, deixando desprotegidos os seus membros mais vulneráveis.

O paradoxo é que esta problemática foi abordada sistematicamente a partir da figura da criança como vítima, a qual se tem que salvar e reintegrar no bom caminho. Os cuidados que as autoridades oferecem à infância em situação de rua centrou-se na criança e no seu perfil: a criança e as suas práticas, a criança e a sua família, a criança e o consumo de drogas, a criança e as doenças sexualmente transmitidas, etc. Mas as respostas ao problema, como mostra a análise aqui realizada, não se encontram nas crianças, mas nas pessoas, grupos, comunidades e instituições responsáveis por lhes garantirem uma vida plena, que falharam na sua função.

É necessário mudar esta forma de abordar o fenómeno da infância callejera e centrar a atenção nas causas que o geram, de maneira a que se concentrem os esforços e os recursos em reparar o tecido social, mediante programas preventivos centrados nas áreas detectados como zonas que expulsam.

Isto não significa que se opte por suprimir os programas de cuidados à infância callejera, os quais são indispensáveis enquanto as crianças continuarem a fugir das suas famílias, dos seus bairros e das suas comunidades de origem para adoptarem as ruas como espaço de vida. São precisamente estes programas que fazem a diferença na vida das crianças, tal como se mostrou ao longo do trabalho.

Para diminuir o fluxo de crianças para a rua, é indispensável pensar em termos de acções de prevenção das circunstâncias que os empurram para a rua. Isto é menos dispendioso em termos económicos e sobretudo humanos do que tentar alterar uma situação que chegou a um extremo no qual reverter as suas consequências levará toda uma vida (em sentido literal e metafórico). E indo mais

197

longe, com o propósito da construção de condições de vida adequadas para a infância, tomando como marco de referência a convenção dos direitos da criança.

Um programa de prevenção deve centrar-se em: 

Fortalecer vínculos familiares, a identidade e sentimento de pertença comunitários que possibilitem a fixação dos habitantes no seu espaço de vida



Promover a participação e a organização dos membros da comunidade na construção de oportunidades e condições que permitam às suas crianças terem um desenvolvimento pleno



Apoiar, no caso das crianças em situação de risco, as suas redes sociais de apoio, identificando os grupos familiares que a enquadram de maneira a que possam ser retidos dentro deles

No entanto, é um contra-senso pensar que as instâncias e organismos governamentais que têm por função garantir condições de vida adequadas para o desenvolvimento integral das crianças concentrem os seus recursos, estrutura e capacidade de coordenação e vinculação nos níveis operativos ou de cuidados directos, já que existem instituições privadas ou não governamentais com uma larga e reconhecida trajectória no campo da atenção à infância em situação de rua, especializados no campo. Para além disso, tais instâncias são regidas por ciclos de seis anos114, lutas de poder, interesses partidários, etc., que impedem a continuidade de um projecto de cuidados ou prevenção o qual pela sua natureza implica um trabalho a médio e longo prazo. Pelo que, mais que trabalhar nos cuidados directos às crianças em situação de rua, deveriam: 

Passar de organismos de cuidados para organismos de planeamento, monitorização e avaliação, produtores de informação para a tomada de decisões relativamente à infância, de maneira a que fosse possível fazer um plano estatal, que transcenda a lógica de seis anos, destinado não só a

114 N.T. No México o ciclo eleitoral é de 6 anos.

198

reverter as circunstâncias que expulsam as crianças para a rua, mas também a gerar as condições que garantam os direitos a toda a infância 

Dedicar recursos materiais, humanos, em espécie e em serviços a instituições não governamentais especializadas e com trajectórias reconhecidas nos diversos aspectos do cuidado à infância vulnerável, coordenando as suas acções de prevenção e cuidados115 e sendo o organismo de ligação que tem um projecto maior destinado à infância do Estado

Em síntese, deveria repensar-se seriamente o tema da infância e elaborarem-se estratégias de médio e longo prazo orientadas à prevenção e construção de melhores condições de vida para os meninos e meninas de Jalisco, construindo paralelamente novas formas de trabalho, organização e vinculação com as organizações não governamentais que trabalham com os sectores da infância mais vulneráveis.

10.2.2 As necessidades das crianças vs os modelos de cuidados assistenciais Ao longo da análise, os testemunhos mostram-nos que a satisfação de necessidades materiais tais como a alimentação, abrigo, roupa e educação não eram muito importantes para os entrevistados, uma vez que tinham aprendido a proverem-se de tudo o necessário para a sobrevivência.

Contrariamente ao que se acredita, os três testemunhos mostram que as necessidades fundamentais destas crianças eram de carácter psicológico e emocional: sentimento de pertença, segurança, diversão e reconhecimento. O que esclarece a eterna queixa de muitos programas de cuidados: “as crianças querem estar na rua, não permanecem no albergue, não lhes interessa, etc.” As necessidades manifestas nos testemunhos de Ramiro, Camilo e Oscar permitem Desta maneira seria possível romper o círculo de reprodução da pobreza nas instituições que prestam serviços à infância em situação de rua e que, como vimos ao longo da análise, vêm diminuídas as suas capacidades e as oportunidades que oferecem às crianças que atendem, dada a precária situação económica em que sobrevivem. 115

199

explicar

e

compreender

porque

é

que

muitos

programas

baseados

fundamentalmente na oferta de serviços fracassam no seu objectivo de tirar as crianças da rua.

A segunda descoberta deste trabalho é, sem dúvida, o elemento afectivo como factor fundamental para desenraizar a criança da rua, assim como para activar e manter o processo de mudança.

Tal como na dimensão político-social, requer-se desviar os cuidados da criança para os mecanismos governamentais de prevenção e cuidados. Na dimensão dos programas é necessário desviar a atenção do conjunto de serviços que frequentemente oferecem este tipo de programas, criando estratégias que restituam e reparem os vazios afectivos das crianças. Este pressuposto vem reforçar o anterior, no que respeita deixar a operação dos programas de cuidados nas mãos de organismos privados e especializados. Trata-se de um processo educativo que deve ser regido por princípios diferentes dos das dinâmicas governamentais.

200

11. Conclusões 11.1. UM MODELO PARTICIPATIVO 11.2. UM REGIME DE VIDA INTENSO E GRATIFICANTE 11.3. CUIDADOS INDIVIDUALIZADOS 11.4. UMA PEDAGOGIA QUE TRANSFORME PARALELAMENTE A REALIDADE SUBJECTIVA E OBJECTIVA 11.5 UM PROGRAMA À MEDIDA DAS NECESSIDADES DAS CRIANÇAS 11.6 EPÍLOGO

Neste capítulo apresentam-se alguns elementos a tomar em consideração na elaboração de programas de cuidados à população callejera.

11.1. UM MODELO PARTICIPATIVO É difícil pensar que uma criança que viveu de maneira independente e é capaz de prover-se do necessário para a sobrevivência possa adaptar-se a um espaço com uma organização vertical no qual deve seguir um regime de vida e um sistema normativo no qual não intervém de forma alguma e que lhe é totalmente estranho.

O modelo participativo permite que as crianças se identifiquem e façam seu o albergue, o qual ao longo do tempo passa a ser o espaço de referência mais significativo para si, algo parecido com uma família substituta que os dota de identidade e sentido e no qual encontram as oportunidades para aprender e desenvolver capacidades que lhes permitam no futuro serem independentes.

201

A ideia do modelo participativo e comunitário substitui o vazio da família, de grupo e de referentes sociais que desencadeou a fuga da criança para a rua.

11.2. UM REGIME DE VIDA INTENSO E GRATIFICANTE A participação em si mesma não é suficiente, já que precisa de um regime atractivo que mantenha os seus residentes activos e interessados na conquista de objectivos. Um espaço onde as crianças, adolescentes e jovens não se sintam desafiados e estimulados, desencadeia condições propícias para o aborrecimento, o desânimo, a tristeza e a perda de interesse, e propicia um terreno fértil para a reactivação do consumo de drogas.

Um regime de vida com estas características requer uma equipa profissional, criativa, dedicada e responsável. Assim como requer recursos materiais e uma prática na qual se distribuam equilibradamente os tempos para a acção, a reflexão, o planeamento e a avaliação.

11.3 CUIDADOS INDIVIDUALIZADOS O acompanhamento ou cuidados individualizados é uma necessidade importante para estas crianças e a restituição dos seus vazios afectivos. Ainda que de diferentes formas, de acordo com a idade e a etapa de vida, as crianças precisam de uma figura adulta à qual se apegar. Em especial nos períodos de crise e transição, o acompanhamento individual é um factor fundamental para conseguirem continuar o processo de mudança.

Além disso, os episódios críticos da vida, tais como a morte de um familiar, a integração em novos espaços sociais e especialmente no processo de saída da instituição e a passagem para a vida independente, num contexto “normal”, dão origem a medos e ansiedades. No caso destas crianças, mais vulneráveis ao fracasso, tornam-se momentos que requerem um maior acompanhamento já que correm o risco de regressar às antigas práticas callejeras.

202

11.4. UMA PEDAGOGIA QUE TRANSFORME PARALELAMENTE A REALIDADE SUBJECTIVA E OBJECTIVA É importante recordar que o processo educativo das crianças se desenvolveu em dois níveis: a realidade subjectiva e a realidade objectiva. No caso da dimensão subjectiva, o discurso pedagógico dotou as crianças de novos significados que lhes permitiram imaginar uma nova vida, descobrirem que eram merecedores da mesma, re-significarem a sua experiência de vida e criarem a confiança necessária para se aventurarem numa nova experiência. Por outro lado, no caso da dimensão objectiva, o programa facilitou às crianças alcançarem objectivos e sucessos progressivos a partir dos quais confirmaram a possibilidade e a viabilidade das suas capacidades para fazer da sua vida uma experiência diferente e mais gratificante que a da rua, confirmação de que era possível e viável transformar a sua realidade.

As trajectórias mostram-nos a importância de trabalhar deliberadamente em ambas as dimensões da realidade, de maneira a proporcionar às crianças uma base material com as oportunidades necessárias para provar as suas capacidades e alcançar os objectivos planeados. Dá-lhes também elementos necessários para re-significar o seu passado e sonhar e imaginar o seu futuro.

11.5. UM PROGRAMA À MEDIDA DAS NECESSIDADES DAS CRIANÇAS

É importante sublinhar que a análise destas três trajectórias nos ensina que os cuidados dados a esta infância não podem dar-se em massa, mediante um sistema regulado por medidas de tempos institucionais e governamentais. Criar uma criança na família leva uma vida. Porque se espera que as crianças saiam da rua e transformem o seu mundo de acordo com os tempos políticos ou institucionais?

Tenta-se atender as crianças da maneira mais eficiente e ao mais baixo custo como se se tratasse de uma empresa de engarrafar sumos. Pelo contrário, a esta 203

infância, a qual o nosso sistema caracterizado pela desigualdade espancou brutalmente deixando as suas marcas para a vida, devemos a máxima atenção e dedicação, já que as suas carências e necessidades são maiores do que as de qualquer outro menino ou menina criado numa família cheia de amor e com as oportunidades de saúde, educação, cultura, recreação, desporto que por lei deveria beneficiar todo o menino ou menina. Essa seria uma verdadeira política compensatória.

11.6 EPÍLOGO Acção vs estrutura: da rua pode-se sair, mas… As trajectórias mostram-nos que a mudança é possível, que as crianças ao encontrarem os pontos de apoio necessários são capazes de superar as múltiplas dificuldades que implicam a saída da rua e a mudança de vida. No entanto, também nos deixam ver que tal mudança requer ir para lá das declarações, que não basta apenas desejar, não são suficientes os decretos governamentais ou programas de boa vontade que ofereçam uma longa lista de serviços, tenham casas limpas e crianças bem lavadas.

A análise aqui realizada submerge-nos na complexidade que implica um processo desta natureza, cujo eixo de gravidade é a condição humana e social. Um processo que requer uma estranha combinação entre amor e profissionalismo, um profissionalismo amoroso que exige acções pedagógicas claramente traçadas e preparadas e modelos de cuidados elaborados com base na compreensão profunda do fenómeno de mudança que experimentam as crianças.

É também um processo que materializa as contradições que o sistema social baseado na economia de mercado cria, submetendo as crianças e as instituições às mesmas leis deste, onde quem menos tem ocupa um lugar marginal e limitado relativamente às oportunidades e benefícios que se anunciam no regime baseado no capital. 204

As narrações dão conta de duas circunstâncias que caracterizam os potenciais e as limitações destas crianças: a mudança e a continuidade.

205

Lihat lebih banyak...

Comentarios

Copyright © 2017 DATOSPDF Inc.