Corviale: monstro de cimento ou lugar extraordinário?

August 21, 2017 | Autor: Fabiana Pavel | Categoría: Reabilitação Urbana
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Descripción

Corviale: monstro de cimento ou lugar extraordinário? Fabiana Pavel, FAUTL Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa, Portugal, [email protected] Resumo: Após um breve historial do problema da habitação popular em Roma, Itália, o presente trabalho concentrar-se-á no edifício de habitação popular Corviale, situado na periferia romana. Projectado pelo arquiteto Fiorentino em 1972, este edifício, inspirado nas teorias modernistas e na Unité de Habitacion, com o comprimento de 980 m, foi considerado símbolo da má periferia. Ao longo dos anos nasceram numerosas polêmicas relativamente ao seu futuro. Muitos propuseram a destruição deste “monstro de cimento”. Em 2004 a Fondazione Adriano Olivetti e a Câmara Municipal de Roma, convidaram o Osservatorio Nomade/Stalker a realizar o projecto Immaginare Corviale. Trata-se dum trabalho de campo que procura encontrar a identidade do lugar, criando uma relação directa, constante e participativa com os habitantes e que demonstra como seja possível resgatar os espaços urbanos criados pelo modernismo promovendo a vida em comunidade. Esta apresentação pretende delinear o método da acção do Osservatorio Nomade/Stalker, que visa a concepção da arquitectura como Arte Cívica, através do caso de estudo de Immaginare Corviale, exemplo de parceria entre autarquia, serviços públicos e entidades particulares de promoção duma intervenção que procurou uma requalificação participativa deste bairro/edifício modernista da periferia romana. Palavras-chave: Corviale; Modernismo; Osservatorio Nomade/Stalker. Abstract: After a brief history of the social housing problem in Rome, Italy, this work will concentrate on the Corviale social housing building on the outskirts of Rome. Designed by the architect Fiorentino in 1972, this 980 m long building, inspired by modernist theories and by the Unité de Habitación, was looked on as a symbol of the bad periphery. Over the years there has been much heated debate over its future. Many have proposed tearing this “cement monster” down. In 2004 the Fondazione Adriano Olivetti and Rome City Hall invited the Stalker/Nomadic Observatory to work on a project called Immaginare Corviale. This field work aims to find the place’s identity, creating a direct, constant and participative relationship with its inhabitants and which would demonstrate how it is possible to salvage urban spaces created by modernism promoting community life. This presentation aims to set out the Stalker/Nomadic Observatory’s work method, which looks on the conception of architecture as Civic Art through the Immaginare Corviale case study, an example of a partnership between the local authority, public services and private entities working towards the participative redevelopment of this neighbourhood/ modernist building on the outskirts of Rome. Keywords: Corviale; Modernism; Osservatorio Nomade/Stalker.

1. A GÊNESE A partir de 1871, ano em que Roma se tornou capital do então Reino de Itália, a cidade começou a expandir-se, devido às necessidades advindas da sua nova condição de capital. A criação dos Ministérios necessários ao seu novo estatuto fez com que houvesse um grande fluxo de imigração (classe dirigente, funcionários públicos e classe mais pobre, que virá a ocupar os cargos dos serviços terciários e da construção civil). É a partir deste momento que o problema da habitação em Roma se torna cada vez mais preocupante: são construídos prédios de rendimento (com a destruição de muitos conventos e parques pertencentes às ordens religiosas), a cidade começa a crescer duma forma não planeada e surgem numerosos bairros de lata. Em 1903 começa a reivindicação ao direito a uma habitação digna por parte dos funcionários públicos, organizados em cooperativas, e, ao mesmo tempo, multiplicam-se as iniciativas sociais e humanitárias. Para as classes operária e dos funcionários públicos, o problema da habitação era um ponto essencial, causa de mobilizações de massa. No mesmo ano de 1903 o governo funda a instituição pública Icp (Instituto Casas Populares), depois Iacp (Instituto Autónomo Casas Populares) e agora Ater (Agéncia Territorial para a Construção Civil Habitacional).

No dia 15 de Junho de 1955, em Paris, o Comité Olímpico escolhe Roma como cidade para os Jogos Olímpicos do ano de 1960. Este ano representou um momento crucial no desenvolvimento da cidade, outorgando-lhe o reconhecimento internacional de cidade moderna e organizada. Mas: «a fase seguinte tornou cada vez mais evidente a complexidade das necessidades em sintonia com a explosão da sociedade de consumo, o andamento não linear das experiências políticas, a fragmentação das opções muitas vezes inseridas numa conflitualidade não-governamental. As tentativas de reforma encontraram realizações parciais, enquanto a política perdeu completamente o controlo do desenho complessivo e das funções da cidade» (VIDOTTO, 2006, pag. 296). A história do novo PDM de Roma é emblema desta situação. Já depois da segunda Guerra Mundial (1945), sentiu-se a necessidade de definir um novo plano para a cidade, mas foi apenas em 1954 que o Conselho da Câmara Municipal aprovou alguns pontos do PDM; o plano definitivo foi lançado apenas no dia 18 de Dezembro de 1962 (e aprovado em 1965). Uma das questões fundamentais deste novo plano é a lei 167 de 1962, que introduz o Piano per l’Edilizia Economica e Popolare (PEEP), cujo projecto é aprovado em 1964 e prevê 72 planos de zona, para uma população estimada em 712.000 habitantes. A realização dos planos do PEEP não foi nem fácil nem rápida, tanto por causa do investimento económico necessário, quanto por causa do consenso político indispensável para obtê-los (VIDOTTO). A partir dos anos setenta começa a aparecer a nova cidade dos planos de zona e das obras públicas, que faz com que venham a surgir novas periferias na campagna romana1, que se torna, assim, um lugar áspero, onde aparecem grandes volumes de cimento descontextualizados. Paralelamente a este fenómeno, a cidade espontânea, feita de barracas e bairros abusivos, continua o seu desenvolvimento (fig1).

FIGURA 1- Bairro de lata em Roma, anos cinquenta. Fonte: VIDOTTO (2006).

Fundamental para perceber a situação hodierna da cidade de Roma é perceber que o crescimento da cidade nunca foi acompanhado por um desenho urbanístico concreto: os novos bairros, ilegais ou abusivos, sempre foram penalizados porque a sua construção não era acompanhada por uma estrutura viária, de meios de transportes públicos e de equipamentos colectivos projectados a priori. No limiar dos anos sessenta, o espírito de revolução do Maio de ’68 caracteriza, também, a luta pela casa. Em 1969, os sindicados promovem uma greve nacional para reivindicar o direito à habitação. Na primeira parte dos anos setenta, a luta pela casa intensificou-se, e criaram-se vários núcleos de acção, nem sempre ligados a grupos políticos. A “Guerra entre os pobres”, como era conhecido na altura o fenómeno, fez com que se viessem a criar enormes contrastes, fenómenos de ocupação das casas e de auto-redução das rendas. As ocupações acabavam muitas vezes com o desalojamento forçado, havendo, porém, entre os desalojados, grupos de pessoas com direito à habitação pública. As atribuições das casas nem sempre correspondiam às listagens oficiais de realojamento, o que fez com que surgissem contenciosos e lutas intestinas, que levaram a uma incapacidade, por parte dos habitantes, duma desejável autogestão. Foi assim que nos novos bairros criados pela lei 167, se juntaram pessoas das mais variadas proveniências e comportamentos sociais diferentes. Este fenómeno dificultou posteriormente a regulamentação e a 1

Por campagna romana entende-se a zona agrícola dos arredores de Roma

resolução das problemáticas. Para além das falhas dos próprios projectos urbanísticos para os PEEP, uma grande limitação surgiu com as dificuldades acrescidas pela concentração no mesmo lugar de pessoas com elevadas carências sociais (desalojados, desempregados, incapacitados) e, também, pelo mercado negro dos apartamentos não oficialmente destinados ou revendidos a terceiros. Mario Stroppaghetti, tendo a seu cargo uma família de dois filhos, uma mulher e um pai idoso, é o homem desempregado e desesperado, símbolo desta época. Personagem principal do filme Sfrattato cerca casa ad equo canone2, pode ser considerado como o representante desta época de luta pela habitação. Mario acabará por viver com a sua família num autocarro e, em seguida, ao lado dos caixotes do lixo, depois de ter pago a um falso funcionário público para conseguir uma habitação no complexo de casas populares do PEEP n.º 61: Nuovo Corviale (Fig.2).

FIGURA 2- Vista aérea. Fonte: GoogleMaps (retirada a 12/09/2010).

2. CORVIALE Em 1972 o arquitecto Mario Fiorentino, coordenando uma equipa de 28 arquitectos, projecta um edifício com o comprimento de 980 m, inspirando-se nas teorias modernistas, especialmente nas de Le Corbusier (fig.2). O complexo é constituído por três corpos: o primeiro, com nove pisos de altura mais dois pisos subterrâneos, é dividido no seu interior por galerias que correm pelos dois lados, criando um espaço intermédio para a entrada de luz e, no piso térreo, um pátio (hoje utilizado como lixeira). Ao longo das galerias, que dão acesso às habitações, distribuem-se numerosos espaços comuns. As escadas e os elevadores evidenciam a divisão do edifício em seis lotes, cada um dos quais tem uma sala de condomínio. O quarto andar tinha sido pensado como espaço comercial: uma galeria que deveria ser um lugar de encontro, com vãos amplos que permitissem a passagem do ar, da luz e da vista para o exterior. Nos pisos subterrâneos distribuem-se os estacionamentos e as caves (Fig. 3). A oeste do corpo principal, ao longo de todo o comprimento, corre um segundo volume, de casas em três pisos, com habitações da tipologia galeria, e três grupos de serviços de base para os quais tinham sido previstos uma creche, uma escola básica e um conjunto de actividades comerciais. Percursos pedonais sobrelevados, posicionados em correspondência com as cinco praças de entrada, permitem a ligação entre o corpo principal e os serviços de base.

2 Sfrattato cerca casa ad eco canone, Itália, 1983, de Pier Francesco Pingitore, com Con Pippo Franco, Anna Mazzamauro, Gigi Reder, Oreste Lionello, Marisa Merlini, Bombolo.

FIGURA 3- Corte. Fonte: GENNARINI SANTORI, PIETROMARCHI, (2006).

A este, um anel viário circunda um espaço que alberga a norte a igreja e um parque, a sul campos desportivos, e no centro um centro cívico, no qual estavam previstos um mercado, um centro de saúde, um teatro, um cinema, uma biblioteca, a junta de freguesia (apenas em parte realizados). Desde o centro cívico parte o terceiro corpo, direccionado a 45º, com a vontade de olhar para o preexistente. É um edifício mais pequeno que alberga habitações.

FIGURA 4- Corviale. Fonte: www.comunediroma.it (retirada a 20/02/2009).

O complexo (Fig.4) oficialmente oferece 1200 habitações. É inteiramente construído em betão e, o interior das casas, em painéis pré-fabricados (que impedem a alteração dos vãos e das divisões). No projecto original tinham sido previstos vários serviços de utilidade pública como, por exemplo, salas para reuniões, anfiteatro, laboratórios de artesanato, etc. As primeiras habitações foram entregues em Outubro do 1982, quando as obras ainda não haviam sido completamente acabadas, não existia um plano de transportes públicos para a zona, e ainda não existiam os serviços de base (supermercado, escola, espaço para a terceira idade). Já nos primeiros meses começaram as ocupações das habitações, por parte de cerca de setecentas famílias. O quarto andar ficou livre e o comércio nunca foi instalado, o que fez com que este espaço se tornasse numa zona de tráfico de droga, repleta de espaços esconsos, ideais para o proliferar de actividades ilegais. Este problema foi “resolvido” através da ocupação abusiva do espaço por parte de cerca de 68 famílias, que, se por um lado, invadiram o andar, por outro, lutaram contra as actividades ilícitas, e conseguiram conquistar o andar, limpá-lo e transformá-lo num lugar vivível. Com uma forma apenas aparentemente labiríntica, o quarto andar oferece para além das habitações, espaços comuns e semi-comuns realmente aproveitados pelos habitantes.

Construído no limite extremo da cidade, este enorme edifício constitui uma barreira entre Roma e o seu campo. Por um lado, olha a cidade, e por ela é visto; por outro, observa a campagna romana, criando obstáculos ao abusivismo, que não conseguiu ir além deste “monstro de cimento”. Os habitantes de Corviale aventuraram-se no campo abandonado, criando pequenas hortas ilegais, onde se dedicam ao cultivo e passam as tardes. Ao longo dos anos as pessoas foram-se apropriando do sítio, transformando-o em lugar, através dum processo de atribuição de significados que não tinha sido programado pela mente do arquitecto. 3. AS POLÊMICAS E AS PROPOSTAS DE INTERVENÇÃO Desde logo, Corviale transformou-se no símbolo da periferia má e perigosa da Itália dos anos oitenta. Provavelmente um dos grandes problemas é o facto de o edifício nunca ter sido realmente acabado, das casas terem sido atribuídas antes que houvesse um plano de transportes públicos e de serviços colectivos. Não existindo um condomínio e um administrador, todas as decisões têm que ser tomadas pelo Ater, proprietário do edifício, o que faz com que a resolução de todos os problemas tenha que passar por um complicado sistema burocrático. Corviale é: «maior e mais coerente que qualquer vila, porém não tem um presidente da Câmara; é maior do que qualquer condomínio, porém não tem um administrador» (ROMITO em GENNARINI SANTORI, PIETROMARCHI, 2006, p73). «Corviale tornou-se um ícone mediático negativo, o lugar duma insanável distopia, de alguma maneira um caso exemplar de marketing urbano ao revés: símbolo da periferia errada, incarnação do preconceito e do estereótipo, matéria útil para exercícios de moral. Em outras palavras, um lugar-comum» (PIETROMARCHI, em GENNARINI SANTORI, PIETROMARCHI, 2006, pag.54). Objecto privilegiado para a criação de mitos urbanos, conta-se que o Arqt.º Mario Fiorentino, logo depois de ter visto o edifício acabado suicidou-se, ou que a sua dimensão e a sua implantação nas margens da cidade bloqueiam o vento de poente, fazendo com que Roma não seja arejada durante o verão. Nos últimos anos falou-se muitas vezes da possibilidade de abatê-lo. Arquitectos como Massimiliano Fuksas e Paolo Portoghesi apoiaram esta tese; num convénio de 2001, organizado pelo Ater, propôs-se esta possibilidade como solução para a difícil e dispendiosa manutenção do edifício; em 2004, Corviale foi inserido pelo Ministério dos Bens Culturais numa lista de “ecomonstros” a abater, embora não abusivo, por ser símbolo de má urbanística (GENTILE, 2004). Porém, para outros, as numerosas intervenções dos média e a estereotipação que foi feita, tiveram o condão de aproximar os habitantes e de fazer com que se criasse um sentido de comunidade, orgulhosa de viver num lugar tão reconhecível. O que vai contra a ideia de demolir Corviale, são questões que apenas em parte têm a ver com a estética e a arquitectura, mas sim com o facto de o edifício, ao longo dos anos, ter vindo a ser um organismo vivo, com uma história própria, feita também de pessoas e dos seus problemas. «Qualquer proposta que lance Corviale para o futuro é um passo para a direcção que deveria transformar a percepção, por fora e por dentro. É uma desforra, antes de tudo, da imaginação, que investindo no que “poderia ser” evita a consideração de Corviale como uma entidade destinada a ficar sempre igual, enormidade urbana nascida do nada e incapaz de criar relações com a cidade que cresce à sua volta» (CATUCCI em GENNARINI SANTORI, PIETROMARCHI, 2006, pag.19). É nesta linha de pensamento que se insere o projecto Immaginare Corviale (2003-2006), promovido pela Fondazione Adriano Olivetti3, com o apoio da Câmara Municipal de Roma4, e com o trabalho do Osservatorio Nomade – Stalker5. A colaboração entre estes três actores fez com que Corviale se tenha

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www.fondazioneadrianolivetti.it Comune di Roma, Assesorato alle Politiche per le Periferie, per lo Sviluppo Locale, per il Lavoro; Dipartimento XIX - Politiche per lo Sviluppo e il Recupero delle Periferie 5 www.osservatorionomade.net 4

transformado num laboratório de hipóteses para a cidade contemporânea, no qual a perspectiva artística se tornou crucial para dialogar e, ao mesmo tempo, pôr em causa as hipóteses de futuro até então delineadas. O trabalho do Osservatorio Nomade (ON) baseia-se na ideia de que a aproximação directa ao contexto social e humano é condição essencial para orientar os processos de requalificação urbana. Fundamental, para se chegar a escolhas operativas, é passar por uma fase em que se “oiça” o território e as suas histórias, não se limitando em reconhecer as necessidades materiais, mas sim indagando as estruturas sociais e temporais que determinaram a sua identidade. Procurar conhecer a memória colectiva, as histórias de quem habita e de quem teve a possibilidade de se exprimir sobre o destino do lugar, são formas para definir uma identidade diferente «baseada no reconhecimento dum recurso capaz de incidir sobre as transformações em acto ou de reactivar aquela relação com a cidade que hoje funciona numa única direcção» (PIETROMARCHI, em GENNARINI SANTORI, PIETROMARCHI, 2006, pag.54).

4. O OSSERVATORIO NOMADE/STALKER E IMMAGINARE CORVIALE Conhecer Corviale não resulta imediato: simples e linear visto pelo exterior, revela no seu interior um conjunto de microcosmos e de micro transformações efectuadas pelos próprios habitantes. Oficialmente com 8500 inquilinos, não se sabe ao certo qual seja o número real dos habitantes. O quarto andar, inicialmente projectado para o comércio, foi inteiramente ocupado e transformado em habitações; existem apartamentos legalmente atribuídos, outros ocupados, outros subalugados ou indevidamente cedidos sob caução. Utilizado pela média como símbolo de degradação, poucos o conhecem realmente. O Osservatorio Nomade baseou o seu trabalho na ideia de que Corviale não necessitasse dum projecto vindo de cima, mas sim do conhecimento das vidas reais dos seus habitantes, com as suas expectativas e necessidades, e das micro transformações como indícios e sugestões para intervir sobre o edifício. Neste sentido, o objectivo de Immaginare Corviale, com todas as acções efectuadas e interligadas entre si, foi o de conhecer e dar a conhecer a verdadeira história do “monstro de cimento”. Como sublinha Francesco Careri, este monólito de cimento foi-se transformando numa «articulada cartografia de lugares, nomes e pessoas», em que «a geografia muda dia após dia», e onde as «micro transformações são tácticas de sobrevivência induzidas pelos muitos erros de projecto» (CARERI, em GENNARINI SANTORI, PIETROMARCHI, 2006, pag. 80-84). O Osservatorio Nomade, na sua vontade de descobrir as histórias do edifício e criar uma base de partida para uma nova projecção, começou por se instalar numa habitação de Corviale e, com a colaboração da senhora Loredana, que disponibilizou o apartamento, organizou uma série de almoços (fig.5), durante os quais foram convidados vários actores da história do edifício, arquitectos, artistas e críticos6. “Histórias comuns” (este o título do projecto) teve como objectivo recuperar as memórias e as valências positivas duma identidade projectual forte, entrevistando in loco, e numa dimensão doméstica (que determinou o tom das discussões evitando uma reconstrução académica da história da projecção), quantos contribuíram para a construção do edifício, bem como o lado humano e pessoal da relação de cada um deles com o projecto.

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Entre os quais assinalamos Stefano Boeri, arquitecto e urbanista; Achille Bonito Oliva, crítico de arte contemporânea; Giorgio Braschi, Giuseppe Cappelli, Gabriele de Giorgi, Romano De Simoni, Franca Ferriti, Roberto Secchi, colaboradores de Mario Fiorentino; Stefano Fiorentino, filho de Mario e autor do projecto de sinalética do edifício; Luigi Petrangeli Papini, dereitor entre o 1967 e o 1981 do Instituto Autónomo Casas Populares (Iacp).

FIGURA 5- Almoço. Fonte: GENNARINI SANTORI, PIETROMARCHI, (2006).

Foram organizados vários workshops (Corviale UniverCITY: (K)now! From Libetta to Corviale e Far West Corviale – em colaboração com a Penn State University – Corviale Beach e Microtrasformazioni – em colaboração com a Università degli Studi di Roma3). Foi criada uma televisão do bairro, Corviale Network, organizada com e para os habitantes. ON acompanhou o trabalho de vários artistas que procuraram inserir-se no tecido social (por exemplo, o workshop em colaboração com os alunos da escola básica Mazzacurati, organizado pelo músico Mario Ciccioli). Em todas as acções procurou-se a colaboração dos habitantes, com o propósito de criar uma relação directa com eles e organizando semanalmente laboratórios condominiais, durante os quais se discutiam os resultados dos estudos efectuados, e se imaginavam novas formas de gestão (fig.6).

FIGURA 6- Pormenor do mapeamento efectuado durante o workshop Microtrasformazioni. Fonte: STALKER (2005).

Um dos erros maiores do projecto original é o não aproveitamento da paisagem. Por isso, seguindo um percurso ideal, ON organizou um primeiro workshop, (K)now! From Libetta to Corviale, que trouxe os estudantes desde a sede do Osservatorio (Viale Libetta) até ao edifício de Fiorentino, atravessando caminhos não convencionais e procurando o skiline de Corviale nos escorços. Corviale Beach foi a aproximação seguinte, na procura duma relação directa entre o edifício e a paisagem, efectuada no terraço condominial (hoje em dia não utilizável por causa de infiltrações), a partir do qual a vista panorâmica é negada por causa dos altos peitoris. A cobertura foi identificada como um lugar abandonado, onde poderiam existir um parque ou até uma creche (como na Unité de Habitacion de Marselha). Como dissemos, esta “barragem de betão armado” conseguiu obstaculizar a especulação imobiliária, de certa maneira salvaguardando o campo que se estende para oeste, em direcção ao mar. Far west Corviale procurou explorar estes lugares, criando um mapa dos trilhos, das árvores e dos produtos comestíveis, dos animais, dos lugares abandonados e das lixeiras, dos sons e dos cheiros. Este mapa foi oferecido aos habitantes de Corviale para que estes pudessem conhecer melhor o território e desfrutá-lo.

Começou então a descoberta do interior do edifício, através de quatro seminários (Microtrasformazioni) coordenados por quatro grupos de arquitectos7 e realizados por estudantes da Università degli Studi di Roma3. O objectivo foi o de conhecer a realidade actual do edifício começando pelas micro transformações efectuadas pelos habitantes, para poder compreender a apropriação dos espaços do bairro por parte de quem o habita, na tentativa de descobrir a maneira em que o edifício, com a sua rigidez arquitectónica, foi livremente transformado para responder aos problemas dum modelo social e habitacional imposto. O resultado deste mapeamento foi a descoberta duma vida interior muito mais complexa que a imagem minimal do projecto de base, e da criação de projectos e ideias cuja finalidade foi a de englobar os processos de transformação numa nova forma de gestão. «Percorrer o edifício em todas as direcções pareceu a única maneira para conhece-lo. Durante algumas semanas, ao longo do workshop, pequenos grupos exploraram-no em todas as suas partes, foram hospedados nas casas, frequentaram Corviale quotidianamente para encontros e reuniões. Lentamente o monólito de cimento transformou-se numa articulada cartografia de lugares, nomes e pessoas. Os habitantes ensinaram-nos a raciocinar por lotes e por pisos e a interpretar as primeiras diferencias» (CARERI em CAMARDA, 2008, pag. 71) As intuições surgidas durante os workshops foram desenvolvidas nos projectos para o quarto andar (ellelab) e para as hortas (nicole_fvr/2A+P). Escolheram-se estes dois contextos por representarem os lugares de maior transformação do edifício, por oferecerem maiores possibilidades para o projecto, e porque estas soluções poderiam inserir-se nos projectos de requalificação lançados pela Câmara Municipal de Roma: o Contratto di quartiere8 para o quarto andar, e o Programma di recupero urbano9 para as hortas (Fig7).

FIGURA 7- Hortas. Fonte: STALKER (2005).

Originariamente destinado aos serviços, o quarto andar é hoje inteiramente ocupado por habitações ilegais, representando o lugar de maior experimentação por parte dos habitantes na transformação do espaço. Partindo dos pressupostos criados com o mapeamento da situação actual (resultado do workshop Microtrasformazioni), o grupo elelab organizou um laboratório de condomínio para envolver os habitantes. Com estes foi concluído o trabalho de mapeamento, instituiu-se um comité dos habitantes, como órgão indispensável e legalmente reconhecido. Elaborou-se então um projecto para o 5.º lote, em colaboração com o comité, para ser proposto como alternativa ao apresentado pelo Ater no âmbito do Contratto di quartiere. A oeste de Corviale estende-se um conjunto de hortas cultivadas e auto-regulamentadas por alguns habitantes que se aventuraram na sua conquista. Porém, muitas destas hortas estão cercadas com redes enferrujadas, ou estão abandonadas ou são utilizadas como lixeira. A faixa de cultivos corre paralela ao edifício, representando um limite físico entre Corviale e a paisagem. O grupo nicole_fvr/2A+P considerou o existente como um ponto de partida para propor novas utilizações dos espaços verdes. O projecto propõe novos lugares de relações que liguem o cultivo (reestruturado segundo uma lógica comum) a um parque público equipado que, com uma forma orgânica, permita ligar Corviale ao campo. 7

M_28 para as galerias; ma0 para o píso terreo e os pátios interiores; ellelab/stalker para o quarto andar; nicole_fvr/2A+P para as hortas. 8 Aprovado no dia 26 de Abril de 2006. Cfr. www.comune.roma.it 9 PRU Corviale art. 11 lei 493/93

5. CONCLUSÕES O trabalho do Osservatorio Nomade em Corviale acabou em 2006 e os problemas detectados ficaram por resolver. A Câmara Municipal de Roma aprovou um plano de recuperação de algumas partes do edifício, lançando várias intervenções e concursos públicos. As obras serão financiadas integralmente pelo Ater (quarto andar e sexto lote), ou co-financiadas pelo Ater e pela Câmara Municipal de Roma (requalificação do parque escolar, divisão em condomínios verticais em correspondência com os vãos de escadas). Estas intervenções, acreditando que sejam efectuadas, serão suficientes para melhorar a vida dos habitantes de Corviale? O que aconteceu nos seus espíritos após a partida do Osservatorio Nomade? Immaginare Corviale distingue-se como uma intervenção que, através do trabalho de campo, procurou encontrar a identidade do lugar, criando uma relação directa, constante e participativa com os habitantes e que demonstra como seja possível resgatar os espaços urbanos criados pelo modernismo promovendo a vida em comunidade (Fig.8). Considera-se, portanto, que o objectivo de Immaginare Corviale se tenha cumprido plenamente: os habitantes descobriram a sua própria identidade, foram acompanhados num processo que os levou a encontrar maneiras para se entenderem entre eles e com a cidade. Corviale Network conseguiu utilizar a televisão para mudar o imaginário negativo que os romanos tinham do bairro, e os média, que utilizavam Corviale como ícone negativo, em pouco tempo passaram a falar dele como um lugar de experimentação e produção artística. O “monstro” a abater transformou-se num exemplo para as periferias.

FIGURA 8- Maqueta da Unité de Habitación de Marselha nas mãos duma habitante de Corviale. Fonte: STALKER (2005).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAMARDA, Daniela. Stalker e gli spazi dell’abitare. Dissertação (Licenciaturas em Literatura). Urbino: Faculdade de Letras e Filosofia da Università degli Studi di Urbino, 2008. CARERI,Francesco. Walkscapes. Camminare come pratica estetica. Milano: ed. Einaudi, 2006. CARERI, Francesco. Constant, New Babylon una città nomade. Roma: ed. Universale di Architettura, 2001. GAMBARELLA, Cherubino. Abitare l’utopia. Area, Milano: Federico Motta editore, maio/junho 2003. pagg. 114137. GENNARINI SANTORI, Flaminia e PIETROMARCHI, Bartolomeo (edição curada por). Osservatorio Nomade, Immaginare Corviale. Milano: Bruno Mondadori, 2006. GENTILE, Cecília. Abbattere Corviale? Fantasie. Repubblica, 15 ottobre 2004, pag 3 INSOLERA, Ítalo. Roma moderna, un secolo di storia urbanistica 1870-1970. Torino: Einaudi, 2004. STALKER. Corviale. ON osservatorio nomade NO numero zero. Roma: Osservatorio Nomade, 2005. VIDOTTO, Vitorio. Roma Contemporânea. Roma: ed. Laterza, 2006.

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