Corumbá: o cativo, o rio, o velho casario

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por MÁRIO MAESTRI Doutor em História pela UCL, Bélgica. Professor do Programa de Pós-Graduação em História da UPF.

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Resenha Elaine Cancian de ALMEIDA. A cidade e o rio: escravidão, arquitetura urbana e a invenção da beleza - o caso de Corumbá (MS). Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo, 2006.

 

Corumbá: o cativo, o rio, o velho casario Em 1936, Gilberto Freyre publicou Sobrados e mocambos: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil, onde abordou a determinação da vida urbana pela escravidão, sobretudo no século 19. Nesse trabalho germinal, as moradias, as vias públicas, as praças, as relações intersociais etc. foram estudadas através de múltiplas e, para a época, inesperadas fontes. Por além da defesa apologética da escravidão, a importância da obra vem crescendo, enquanto desmaia a influência de Casa-grande e senzala, de 1933, que a manteve injustamente na sombra. Sobrado e mocambo, de Gilberto Freyre, demorou-se para parir descendência bibliográfica, sobretudo entre historiadores e sociólogos. Apenas a partir dos anos 1970, pesquisadores da história da arquitetura brasileira, como os arquitetos Jorge Goulart Reis Filho e Carlos Lemos, retomaram o bastão caído, para produzir trabalhos magníficos sobre as relações umbilicais entre a escravidão, a vida citadina, a moradia urbana no Brasil colonial e imperial. Nos anos 1980, o olhar dos historiadores deixou, finalmente, de fixar-se quase apenas no mundo rural. Após trabalhos germinais, como os de Mary Karasch, Slave life in Rio de Janeiro: 1808-1850, de 1987, e Leila M. Algranti, O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro (1808-1822), de 1888, seguiram-se estudos sobre a escravidão nas principais cidades do Brasil. Essas obras analisaram as relações sociais e de produção, sem incorporar comumente os estudos das relações entre a escravidão e as moradia eruditas e vernáculas urbanas. O Brasil foi a nação mais acabadamente escravista nas Américas, no que se refere à longevidade da instituição, à variedade dos bens produzidos com o braço cativo, ao número de africanos arrancados da África, à abrangência geográfica do trabalho escravizado, etc. De forma mais ou menos significativa, não houve Página 1 de 3

região do país que tenha ficado à margem da escravidão, praticamente até os anos finais da instituição. Em regiões do Brasil, a contribuição do braço negro escravizado foi incorporada, em geral em um viés apologético, às narrativas sobre o passado regional. Em outras, tudo foi feito para que o esforço do trabalhador escravizado fosse olvidado em prol de um pretenso exclusivismo do trabalho livre de origem européia ou, em último caso, nativa. Diversas regiões do Brasil onde a escravidão desempenhou papel essencial conheceram essa verdadeira invenção de um passado mais ou menos à margem da escravidão. Elaine Cancian de Almeida escolheu para tema de dissertação de mestrado a análise das determinações, pela escravidão, das diversas esferas da vida da cidade de Corumbá, situada às margens do rio Paraguai, por longas décadas porta de entrada e de saída extrema do meridião da capitania e província do Mato Grosso. Tema definido por muitos como temerário, pois a região foi apresentada comumente como refratária à escravidão, em virtude da situação geográfica, do perfil produtivo, da importância do braço nativo. Sob a direção atenta e segura da dra. Maria do Carmo Brazil, estudiosa da escravidão no Mato Grosso, a dissertação A cidade e o rio: escravidão, arquitetura urbana e a invenção da beleza - o caso de Corumbá (MS) foi defendida e aprovada, com nota máxima e recomendação à publicação, no Programa de PósGraduação em História da UFMS, no Campus de Dourados, em 12 de setembro de 2005. Tive o prazer de acompanhar a produção desse trabalho e conformar a sua banca examinadora, ao lado da orientadora e do Dr. Carlos Martins Júnior, destacado investigador da história urbana regional. Agora, tenho o privilégio de registrar a publicação da dissertação, sem modificações no que diz respeito ao título, ao texto e aos anexos bibliográficos e fotográficos, como décimo primeiro título da coleção Malungo da Editora da Universidade de Passo Fundo, dedicada exclusivamente à história dos mais diversos aspectos da escravidão colonial brasileira e americana. *** Elaine Cancian de Almeida opta por exposição sistemática de seu processo de investigação. Apresenta suas opções metodológicas e sua visão sobre o tema. Discorre criticamente sobre as principais fontes disponíveis para o desenvolvimento do estudo; sobre a historiografia da escravidão urbana; sobre as relações entre escravidão e arquitetura; sobre a historiografia da escravidão no Mato Grosso. Produz, assim, uma útil introdução ao tema, ao estudo da região, a novas investigações. Uma das grandes preocupações da autora é a reconstituição da complexidade dos nexos históricos entre os processos gerais, regionais e locais. A apresentação sistemática da ocupação luso-brasileira do Mato Grosso e do importante papel desempenhado pelo braço escravizado na região precede e enquadra, pertinentemente, a discussão da gênese e do desenvolvimento de Corumbá, o objeto específico do estudo. Página 2 de 3

O texto apresenta ao leitor a fundação de Corumbá, imediatamente após o Tratado de Santo Idelfonso, como um aldeamento de ocasião, de caráter militar; o grave incêndio de 1800, que destruiu as precárias construções de tetos de palha; o primeiro surto urbano e econômico, em virtude da liberação da navegação do rio Paraguai, nas primeiras décadas do século 19; o duro golpe sofrido pela aglomeração, com a ocupação, durante a guerra contra o Paraguai; a constituição da cidade como pólo exportador-importador após aquele confronto. A discussão sobre a verdadeira reconstrução de Corumbá, a partir dos anos 1870, sob o influxo do comércio de importação-exportação, apóia-se em pertinente investigação sobre a propriedade e a economia escravistas em naquela aglomeração, sobre o trabalho escravizado doméstico, no porto, nos serviços urbanos etc., empreendida com base na documentação arquival, na literatura ficcional, nos memorialistas, nas Posturas Municipais, nos monumentos arquitetônicos etc. Uma leitura realizada por Elaine Cancian de Almeida tem sentido claramente inovador, ao superar as visões tradicionais, centradas quase apenas nas grandes casas comerciais do porto, construídas em fins do Oitocentos, começos do Novecentos, na Cidade Baixa. Reintegra, assim, à história, os velhos sobrados, as humildes casas, os bairros populares da Cidade Alta, tradicionalmente desconhecidos pelo processo da construção de narrativas sobre a “beleza” cosmopolita de cidade de estilo “neoclássico italiano” e “nenhuma semelhança com as cidades brasileiras”. Na abordagem conclusiva da arquitetura urbana erudita de Corumbá de fins do século 19 e começos do século 20, a autora registra e discute a importância dos construtores italianos da cidade, as datações anacronicamente enobrecedoras de muitas moradias, as grandes identidades e importantes diversidades do patrimônio arquitetônico corumbaense em relação aos outros centros urbanos do Brasil da mesma época. Nesse sentido, aponta diversas questões a serem desenvolvidas por novas pesquisas. O estudo A cidade e o rio: escravidão, arquitetura e a invenção da beleza – o caso de Corumbá (MS), constitui útil introdução geral e levantamento da historiografia sobre o tema; segura discussão da conformação da sociedade mato-grossense, quanto às relações escravistas; estudo detidos da constituição de Corumbá e de seu patrimônio arquitetônico erudito; válida sugestão para novos trabalhos. O texto de Elaine de Almeida constitui também sensível homenagem ao passado, presente e futuro da cidade. A autora fala com sensibilidade dos recônditos esquecidos e vincos deixados na cidade pelo braço do trabalhador. Registra sentida que, não raro, ao realizar o levantamento dos prédios que estudou, caminhou entre os restos das construções apenas abatidas, total ou parcialmente. Sem pieguice, com o sentimento de quem tem consciência da perda, lamenta a destruição do rico patrimônio, sobretudo da parte alta da cidade, que encontra, em seu trabalho, valioso esforço de preservação  historiográfica. por MÁRIO MAESTRI

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