«Corpos em Letras. Sobre a Poesia de António Franco Alexandre e de Juan Antonio González Iglesias», Espaço/Espacio Escrito, vol. 19-20, Junta de Extremadura, 2001, pp. 139-147.

July 26, 2017 | Autor: Pedro Serra | Categoría: Poesía, Literatura Portuguesa, Poesia, Literatura española e hispanoamericana
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CORPOS EM LETRAS Sobre a poesia de António Franco Alexandre e José Antonio González Iglesias

Pedro Serra Universidade de Salamanca

CORPO & HOLOGRAMA No último conjunto poemático de Quatro Caprichos, de António Franco Alexandre, Pã e Syrinx desgarram as vozes, numa distribuição dual de tempos que lembra, precisamente, a estrutura formal do capriccio. A série azul, atribuível à ninfa, devolve-nos um Corpo desejado sempre outro, sem passado ou presente: «Acordo cada dia com um corpo / que não aquele com que me deitei / e nunca sei ao certo se sou hoje / o projecto ou memória do que fui» [65]. Syrinx estará, precisamente, pelo informalidade metamórfica da «vida». O pânico, por seu turno, é a vocalização do Desejo. Esta voz ou «canto» desejante é figurada como enclausuramento: «Tenho na boca o aço / do pesadelo real / fiquei preso à voz do eco / é banal! Ao telefone / só, de plástico, etc., / procura, sigilosa, desejável foto / (enfim, por fax, a cores)» [66]. O Outro desejado é tomado por sucedâneos: «eco», «telefone», «plástico», «foto» ou «fax». Como no mythos, o corpo inacessível da ninfa é sobrelevado pelo fetiche, o instrumento que infinitamente repetirá uma posse «quebrada» [cf. 69]. Num poema marcado já pela despedida desse «canto», Pã [só redivivo em regime de «pastiche», i.e., cadaverizado] auto-biografa-se: «Fez-me a vida este corpo de rã seca / a debitar no charco um som de flauta» [70]. O «som de flauta», a mediação, comporta distância: «ah e quantos terão sido / os meus amores, amantes, abraçados / uns aos outros na roda dos sentidos! / Mas ninguém como tu, mas ninguém como eu / à infinita distância de dois metros / que nos separa» [78]. É como imaginação ou ficção que também se pode dizer «mistura» ou «toque»: «Não havendo limite ao que podemos / imaginar, as bocas facilmente se tocam / e duas diferentes línguas se / respondem» [31]. Este «centro opaco» do contacto, contudo, é negado [cf. 45]. A imaginação de uma coisa é, também, a «coisa naturalmente / separada de si» [60], o «corpo espesso»

separado da sua «sombra de água» [cf. 45]. Syrinx, neste sentido, é o nome do vital sempre conservado aquém/além da imagem: «Podes pegar em mim, pesar-me na balança / do sim e não, medir-me às polegadas a bondade; ainda eu guardo o coração em sítio seco / e fresco, e longe das palavras» [79]. Este «coração» é a vida que sempre retorna, sempre outra, e, neste sentido, está pelo habitante que alimenta/é alimentado pelo Desejo representado no «canto». Assim, dirá ainda a ninfa: «sou teu igual, não mais, e no meu corpo / inteiramente novo é que perdura / a liberdade, glória do teu canto» [83]. Syrinx tem em Pã a residência; e Pã tem em Syrinx o resíduo. A questão do Corpo passa, pois, pela incomensurabilidade da «carne» e da «imagem». O métron que as difere - não são quantidades mutuamente aferíveis - activa o modo do «colosso» [tematizado, e.g., no primeiro capricho, pelo de Rodes]. O sujeito poemático, por exemplo, diz a inadequação das medidas da representação em relação às medidas do representado: «já também desta imagem me separo / deste céu amplo onde nem os ossos me cabem / nem a sombra tão maior do que o corpo» [44]. Tanto B. como G., no primeiro e terceiro caprichos respectivamente, figuram essa extrema grandeza corporal que, todavia, não é sem contornos. O informe e a forma cotejam-se ao infinito. O Corpo, lançado neste movimento de coincidência/dissidência, reverbera a conjunção/disjunção da Natureza como separada de si mesma. Em «rosencrantz: episódio dramático», a tópica de um Teatro que se substitui ao Mundo, neste sentido, figura a condição estetizada da realidade: isto é, uma realidade como contínuo de imagens produzidas. Assim, o Teatro é o Mundo. É, ainda, e este é o ponto que me interessa aqui desenvolver, a inflação da imaginação corpo: «Humanamente pensei como seria / o contacto tri– ou tetra–dimensional do meu corpo / ou de outro corpo, com o corpo de G., a mistura / do meu corpo, ou de outro corpo, com o corpo de G., deitados / possivelmente, na estreita cama do meu quarto estreito / de paredes nuas / a campo de ourique?» [55, sublinhados meus]. O corpo físico é comutado por um corpo como coisa «deslumbrante». Dizê–lo «deslumbrante» é dizê–lo, noutro lugar do livro, «carne [que] se transforma em luz» [77]. É subsunção do táctil por um extremo visível – que diria ascético [cf. 54–55]. Assim, este corpo de G. em todos os «palcos», todas as «televisões», em todos «os livros», em todos os «jornais», em todas as «fotografias», em todos os «estádios» ou «arenas», em todas as

«línguas» [passim], é a reificação da «cena». Leio, uma vez mais: «noite após noite revelava / a natureza de todas as coisas, e a naturalidade / da natureza de todas as coisas, e a natureza / e a naturalidade de todas as pessoas humanas / sentadas, em silencioso terror, nas plateias do mundo» [56]. Outras palavras que são utilizadas no poema para dizer a incomparabilidade, o «deslumbramento», desse «corpo» : «modelo» [54], «conciso» e «exacto» [57], «infinito» e «ubíquo» [ibidem], «memória [sem] fim» [59] ou «morte» [61]. É, a sua, uma grandeza incomparável, em regime de sublime matemático [cf. Silvestre 1994: 131-132]. Situa-se num mais além do sensível. Por seu turno, B., uma das personae de «le tier exclu: fantasia política», em relação a A. e ao «homem suíço», é também a figuração da irredutível outridade do Outro, infinitamente distanciado e só apropriável por uma sua imago. B. é, neste sentido, o ausente. O modo de o texto dizer esta cadeverização da presença, é precisamente o da inscrição da alteridade no «corpo», ou, o que vem a ser o mesmo, o corpo de B. como alteridade. Neste sentido, as propriedades da sua língua são também as propriedades deste seu «corpo», dito pelo avesso: «o corpo inteiramente vestido de B., inteiramente escuro / e outro dentro da roupa, o avesso inteiramente outro / da roupa de B. no corpo de B., escondido / do homem suíço e escondido de mim» [vv. 139–142]. Reitero, pois, que este outro «escondido», figura da sua ausência ao dizer, é apenas representável, i.e., dizível. O Corpo, no último livro de António Franco Alexandre, é mostrado, deste modo, subsumido por diferentes modos da sua representação que, neste sentido, comutam a fisicidade por uma condição «holográfica»: «um pouco nítido holograma» [81]. O corpo físico e a sua desrealização. Por outro lado, podemos encontrar modulações, que convergem com o que acabo de dizer, dos motivos do «duplo» e da «metamorfose». Em jeito de balanço, temos uma pregnante situação do corpo nos limites do imediatamente físico e do mediatamente virtual. Um supor: do biológico e do electrónico. Assim, o contacto entre corpos - o livro é percorrido por uma constante tensão entre o Eu e o Outro, tensão privilegiadamente sub specie erótica - é figurado pelo «encontro», i.e., pela co-presença física; um «encontro», na verdade, convocado quer pela sua anticipação prospectiva em modo de «anúncio», quer pela sua consignação retrospectiva em jeito de «relatório» ou «sumário». Antevisão e retrovisão devolvem-nos um Mundo cuja experiência é

derrogada pela sua mediação totalizadora. No poema I de «syrinx, ficção pastoral», lêem-se estes termos: Vou pôr um anúncio obsceno no diário pedindo carne fresca pouco atlética e nobres sentimentos de paixão. Desejo um ser, como dizer, humano que por acaso me descubra a boca e tenha como eu fendidos cascos bífida língua azul e insolentes maneiras de cantar dentro da água. Vou querer que me ame e abandone com igual e serena concisão e faça do encontro relatório ou poema que conste do sumário nas escolas ali além das pontes E espero ao telefone que me digam se sou feliz, real, ou simplesmente uma espuma de cinza em muitas mãos [64]

O «encontro» só nos é representável, é rastreio, o real vai-se formando por imagens que, instrumentais, o perdem. A «vida», que tem espessura e sujidade, é opaca; a «cena» do imagético define-se, antes, como lumínica e cristalina, é um «sopro». A tensão entre «cena» e «vida» é paralela à do Desejo e Objecto do desejo, o primeiro regimentado como falta e o segundo como resto: «agora a vida real, vestida de trapos, / a suja, a mal cheirosa, mas real, / vem sentar-se na primeira fila dos teatros e abanar / e abanar a cabeça do ódio e dizer não / a tanta fantasia e pesadelo (também ele / real, mas não tão real como a vida real), / aos gestos dos actores que não sabem / mexer-se! falar! como gente genuína, / esquecem o imposto, o exame, a taxa, / e se vestem a cores! e escrevem / com a boca fechada! e querem / estar vivos, nem que seja / para mostrar a cansativa chaga! / que são feitos de palavras, se apaixonam palavras, / e hão-de morrer palavras para sempre! enquanto / imperecível, de cristal, é a vida real, / o corpo da vida real ao telefone, no avião, no metro, / o sangue real da vida real a apertar-nos a garganta / até sermos o sopro, apenas o sopro / de um instrumento inútil no cenário» [48]. Configura-se, aqui, uma topologia em que o «cenário» é o território absoluto. A «vida», no proscénio, é subsumida/subsumível pela cena.

Este (des)envolvimento - «As árvores inclinam-se / ao vento do cenário» [61] - não creio que se estruture em função de um logos que, por resolução finalista, enfraquecesse os termos. O modelo da tensão «vida»/«cena» é talvez melhor dado pelo «salto quântico», explicitado por Pã: «Está tudo errado, tudo, ou quase: na verdade, apenas / um salto quântico de computador, / um fio trocado na electrónica mente / que manda nos horóscopos, e já se perde / a metamorfose de outro sapo» [74]. Obedece ao «erro», isto é, ao «errático» [cf. Diogo 2001]. O vital informe e a imagem formal coincidem/distanciam-se no espaço: «a coincidência espacial do ginásio e do palco» [60]. Há sempre um ínfimo «quântico» que desequilibra a stasis do «horóscopo» e a dynamis da «metamorfose». Syrinx, neste sentido, enunciará os termos de uma arte vital: «enrolar-me no cheiro dos corpos que se trocam / na esquina municipal, esquecer-me por dentro / da carne e do modo como se transforma em luz» [77]. Os informais Corpo e Mundo, em tensão pela coincidência e a dissidência dos seus duplos formais, [só] são restituíveis num incidente sem «memória». CORPO & LIVRO O «tigre» que vamos encontrando em diferentes poemas de Esto es mi cuerpo de Juan António González Iglesias, cita texto de Borges, colocado em epígrafe ao livro. Identifico, ainda, outro intertexto, um bem conhecido poema de William Blake, intitulado justamente «The Tyger». O bestiário que podemos compilar na poesia de González Iglesias, ainda que minimal, desempenha um papel determinante. Remete-nos para algo como um estado pré-lapsário, em que o humano e o animal se alinham num mesmo plano de imanência: «el animal se siente en el mundo como el agua en el agua» [9] e o sujeito poemático vai afirmando uma instintualidade que lhe permite comungar com os animais: «Todos esos indicios de que en ti prevalece / el instinto, inconsciente los emites, son ciertos, / son los signos del tigre, que en tu cuerpo se estira» [25]. Todavia, como podemos observar, não se trata de uma insciência. A par de se dizer «cerca del jaguar y de los pájaros» [36], é determinante também a afirmação de tudo isto como conhecimento: «he comprendido / que es necesario el ciervo, y es necesario el tigre» [13].

Dos «signos del tigre», que antes víamos emitidos por inconsciência, formula-se também: «De los signos que son inteligibles / descifro solamente los del tigre» [31]. Assim, os motivemas pastorais activados no livro não passam pela nostalgia do regresso a um bon sauvage rousseauiano. Não se separa Natureza e Cultura, i.e., uma passividade sensorial de uma actividade intelectual. O sujeito poemático instala-se na posteridade de um processo de aprendizagem: «Ahora he comprendido / que es necesario el ciervo, y es necesario el tigre» [13, sublinhado meu]. Creio que podemos assimilar esta ciência - o presente é o estado da sua consumação - da imperatividade do «cervo» e do «tigre», em González Iglesias, ao par «lamb»/«tyger» do poeta de Songs Of Innocence e Songs of Experience. Estes binários convocam, neste sentido, uma espécie de pastorícia política, ao jeito daquela que também podemos encontrar no discurso iluminista de uma felicidade independente do mundo e da fortuna [cf. Calafate 1994]. O signo dominante deste notável livro de poemas assenta no que chamaria, com alguma liberdade, lógica da afirmação. Não se fazem concessões a uma dialéctica de/da negação. Em formulação estilizada e mínima, o seguinte verso condensa toda uma poética: «Afirmo todo aquello que negué» [13]. Neste sentido, ainda, não deixa de ser significativo que num livro de celebração whitmaniana do «Corpo», se opte pelo silêncio num poema intitulado «Los enemigos del cuerpo» [42]. Depois de «catalogar», no poema imediatamente anterior, os «Amigos del cuerpo», o sujeito poético não emudece. Em nota-derodapé, o poeta revela ter escrito o poema. A página deixada em branco não obedece a uma injuntiva mallarmeana. O «branco» decorre de um acto editorial: a auto-recusa do imprimatur é ética: (i) preserva a «inocência do livro»; (ii) permite «denunciá-los» melhor. Não se trata, pois, da negação de uma Tradição que, ela sim, negou o «Corpo», uma Tradição que, de resto, passa também pela Tradição poética. O que está em causa, na verdade, é preservar o corpus poemático de transportar os «nomes» da viciação do «Corpo». O livro é moral - nada que se assemelhe a um moralismo nocional, verdadeiramente imoral [cf. Deleuze 1994: 157] - porque se atém àquele carácter afirmativo do dizer poético. Com Blake, esta «inocência» não equivale a «ignorância»: «Innocence dwells with Wisdom, but never with Ignorance» [apud Bowra 1976].

Este carácter afirmativo do dizer poético passa por uma notável re-visão de inúmeros pares dicotómicos vertebradores do pensamento ocidental. O dizer poético é livre - talvez por Valéry - porque liberta contrários: «me he librado otra vez de algunas contradicciones que nunca tuve» [9]. Os «contrários» vão-se dizendo, desvinculando o que neles os dialectizasse em regime de «contradição». Respigo alguns: corpo/espírito, paganidade/religiosidade, Virgílio/Cristo, acção/contemplação, livros/músculos, humilde/sublime, maravilhoso/real, épica/publicidade, biologia/mística [cf. 9-10], dor/alegria [16], dentro/fora [24], coração/corpo [67], caos/luz [17], dizível/indizível [35], no man's land/céu [74], pornografia/Platão [76], conhecer/não conhecer [76], belo/confuso [24], futuro/passado [13], capitel/trigal [30], canção do verão/Eneida [18], igualdade/diferença [65], intimidade/exibicionismo [61], resenha/fábula [67]. Aqui, segundo penso, a lição vem por Whitman, figura tutelar do livro: «Out of the dimness opposite equals advance... Always substance / and increase, / Always a knit of identity... always distinction... always a breed / of life» [1988: 26-27]. A reflexão metapoética é uma das constantes de Esto es mi cuerpo. Não assenta numa dubitatio que nos devolvesse uma figuração do poeta em sede oficinal da escrita. É verdade que podemos encontrar um verso como «¿Cómo haré mi poema?» [15], estrategicamente colocado no arranque do livro. Contudo, o que se irá destacar é a contundência da palavra poética precisamente como fazer. Estamos perante uma poesia declaradamente performativa, algo que é, de resto, programático: «Este libro es un momento más de una serie de actos artísticos» [9]. A palavra poética sucede, é plena, de modo que «Nada como un poema. No hay objeto más valioso / que este mosaico / que torpemente ordeno para ti» [76]. O valor intrínseco da forma «poema» traduz-se num dictum cuja positividade é dada pela ausência de um qualquer nihilismo que descontinuasse forma e conteúdo. Sucedem-se fórmulas como «Aquí soy» [9], «Aquí está» [9], «He percibido» [13], «Existe» [16], «he aprendido» [16], «Me complacen» [32], «Amo» [68], «Yo soy» [68], «Soy verdadero» [31], «Soy poeta» [32], «anuncio» [32], «yo declaro» [20], «afirmo» [46] ou «He cumplido» [13]. Digamos que o dizer é indistinguível do dito; a verbalidade, mesmo que gramaticalmente imperfectiva, é sempre perfectiva. Configura-se como algo implacável.

Esta plenitude discursiva decorre do influxo que a promove e nela ganha expressão: o «amor». É um «mandato» universal, um imperativo, que «tiene la certidumbre del axioma: su cumplimiento es implacable» [63]. Não se trata de um indizível - noção muito elástica que valeu na Modernidade -, pois entre o Verbo e o Amor há um inextricável laço de identidade: «No es cierto que la plenitud del amor sea indecible / Yo la voy a decir» [35]. Digamos que, consequente com a antropologia imanentista a que já aludi, ao sujeito só é possível dizer a verdade. Se é dito, existe; o que não existe não é dito porque não existe. Não há cesura temporal ou tropológica entre eu/mundo: «Así que no podemos decir ni una vez más / que no pertenecemos a este mundo, / porque somos reales, tan reales / como los que administran / la realidad, o más, porque nosotros / somos la claridad» [20]. Não se trata de um consubstancial realismo que viesse por, digamos, inércia subjectiva. Sujeito e Mundo são tanto «luz» como «caos», tanto «ordem» como «desordem». É este saber que fundamenta um arcadismo nada ingénuo: «El mundo es hermoso y confuso, / no de otro modo puedo pra ti nombrarlo / darle orden, acepta el amor caudaloso: / sólo puedo apresar su esplendor y escribirlo / si utilizo palabras hermosas y confusas» [24]. Antropologia, gnoseologia, poética, erótica, tudo devolve a um mesmo motor: «Sea / la medida de todo el corazón» [13]. O «coração» como métron é, pois, uma cosmologia: «No se sacian los astros de moverse, / y en qué se cifran sus itinerarios / sino en amor. También ellos conocen / la diagonal que lleva / hasta el otro, y dependen / uno de otro. Giran / sobre sí mismos, y / en torno al otro» [80]. A analogia que une microcosmo/macrocosmo percorre o livro, palpitando nele um antropocentrismo, diríamos, renascentista. «Soy un hombre» [22], enuncia o poeta, sendo que a condição projectual do Homem [cf. 72] não invalida a sua consumação: «puedo decir que me he cumplido» [37]. O discurso poético como performance, modo de acção, como que provê à suspensão da tropologia. Enunciando-se uma «claridade» que é da «fala» [cf. 65], quer situar-se aquém de uma retórica da temporalidade. O sujeito poemático situa-se num plano temporal sem crise, que lhe permite, por exemplo, o verso «No escribo mi futuro / ni mi pasado» [13]. Numa poética que afirma também o negado, o contrário da proposição também vale. A temporalidade abarca a «perda», mas também a consciência de que não é completa [cf. 22]. Assim, o «um» e os «outros», a unidade e a outridade não se horizontalizam numa linha

que historizasse um processo de negação. E isto porque «Es todo simultáneo» [24]. O individual e o social não se excluem. O sujeito lírico tanto diz: «No cabrá ninguna unidad de medida / infinitesimal entre nosotros. / Atanor corporal, éramos uno solo» [36]; como declara, com dicção que de novo reverbera Whitman, «Yo soy ellos. Soy todos los demás, / del mismo y limpio modo / que todos los demás también son yo» [68]. O cordão relacional que conduz do Eu ao Outro, como nos diz o poeta, não passa por um paradigma «filial» [cf. 75]. Não assenta numa lógica de modelo/cópia. A «proximidade» que os une não anula a diferença. A união é divisão. Nos seguintes versos encontramos a formulação, quase proposicional, destas noções: «Y tú, que eres mi imagen (yo la tuya), / porque estás descifrando estas extrañas / imprecisiones de vocabulario. / Esta pradera en la que nos amamos. / Largo será el catálogo, el fulgor / de uno en el otro, igual que un dimidiado» [17]. Sobrelevo esta figura do «dimidiado», que se repete ainda em mithói como o «centauro» [cf. 36]. Não se hierarquiza o «corpo a corpo». A relação com o Outro poderia ser figurada como um modo de boxe em que os atletas encarnam identidade e diferença: «Somos iguales, somos diferentes» [65]. O ring do contacto físico é assimilado a lugares do sexo: «He traído un pijama de boxeador, dijiste» [29]. A singularidade que define os ginastas tanto pode ser enunciada pelo sujeito poemático, como provir do contendor. Assim, tenham-se como exemplos: (i) o eu do poema ora diz «Me complacen sus bíceps, aunque no más que los míos» [32, sublinhado meu], (ii) ora recolhe as palavras do Outro que o incluem: «Este muchachito / desconocido que en la discoteca / me comunica sonriente: somos / los reyes de la pista» [17]. O Outro não funciona como um alter ego que preencha uma qualquer incompletude do Eu, ou vice-versa. Não opera a lógica do suplemento. Não há faltas ou excessos: «Somos iguales. Nuestros cuerpos tienen / 0% de materia grasa» [32]. No poema a que pertencem estes últimos versos, lemos ainda: «Él es mi holografía acariciable» [ibidem], imagem que estabelece, com esta outra, uma clara simetria: «Crezco en su piel» [ibidem]. Há uma «linha» sensível, uma signature [cf. Foucault 1997: 34 e ss.], que figura os limites do sujeito e dos sujeitos, algo «limpo» e «exacto». Ela é dada como uma «tatuagem» [cf. 19-20 e 29]. É a fronteira onde a inteligibilidade dos indivíduos é, simultaneamente, a sua sensorialidade. A ontologia do «corpo», dos «corpos», não segmenta

ou descontinua interior/exterior, anímico/físico. O eu poemático reconhece essa linha no Outro: «Tiene una cicatriz en el costado / como un hilo» [34]. Não se trata de um estigma, pois também ela percorre o sujeito: «Mis limites humanos coinciden exactamente / impecablemente con mi piel» [37]. A matriz é, pois, a de um Humano que não exclui a fisicidade do «corpo». Define-se exactamente por ela. É nessa «pele», nessa membrana, que o Homem e o Mundo se fecham sobre si próprios, se dobram sobre si próprios. O poemário de González Iglesias evocanos, precisamente, nomes que configuram uma Tradição para este modo do Humano, em que figuram, entre outros, os esquimós, Whitman, Scott Fitzgerald, Yourcenar ou Duras. Valha por todos eles, ainda, «Homero, que utiliza / una sola palabra para la piel y el cuerpo» [40]; e, também, Cristo, «que una tarde dijo esto es mi cuerpo» [38]. É a esta diacronia de «amigos» que o poeta se junta. O corpo que é pele ergue-se, assim, como o mediador do Todo num mundo sem transcendência. O sujeito é simultaneamente contentor/continente desse sentido de totalidade pela lógica de uma corporalidade «0% de matéria grasa», isto é sem resto ou restos: «No quiero más lugares fuera de mis caricias» [26]. Essa corporalidade é um caminho de verdade: «Perdido el absoluto, cada uno / busca en su propio cuerpo cierta vía / que le conduzca al Todo ( la mayúscula / es mía)» [67]. É nesta religio da pele que se cria um espaço de «liberdade»: «Ahora puede elegir, su piel es libre» [36]. Ela é, ainda, a mediação do Belo: «Amo a los delincuentes, que no tienen / otra belleza que la de su cuerpo. / Yo soy ellos» [68]. A mesma ideia é enunciada nos seguintes versos: «Los inmortales van en un descapo- / table. Su cuerpo tiene investidura / de belleza» [49]. Mediador sensível da Verdade, do Belo - o «esplendor» [cf. 24] do mundo é, como já vimos, plenamente cifrável na poiesis: «Margem al Resplandor: eso es poema» [16] - é também a representação do Bem, da virtu. Isto é, da «inocência», a que já aludi. Percorre Esto es mi cuerpo, efectivamente, uma moral do corpo que agencia um modo de «felicidade». É um vocábulo que, insistentemente, se vai repetindo de poema para poema. É verdadeiramente polivalente, mas com atributos bem nítidos. Não se trata de uma passio que se instale na mundividência poética em regime de ausência. Isto é, não é votada a uma preterição que determinasse canto um canto elegíaco, em jeito maneirista. Não é, tão-pouco, uma paixão prospectiva, posposta a um futuro, por exemplo, teológico. Quer

dizer, não instala o sujeito num presente em perda, esforçando-lhe uma psicologia patológica. Talvez os versos que melhor definam esse modo de «felicidade» sejam os seguintes: «Una felicidad sin entusiasmo, / sin acontecimientos» [50]. Não há arrebatamentos ou inspirações divinas lembremos, precisamente, a etimologia de «entusiasmo». É uma felicidade «libre de euforia» [51], apostada não na «exultação» mas sim na «plenitude» [cf. 37]. É feita de «serenidade» e «muy humildes / condiciones (esto es inexplicable)» [77], passando pelo «elementar» [54] e o «simples» [46]. Sobretudo, é uma felicidade activa, e não por assentar numa busca que colmate uma incompletude do indivíduo. Uma vez mais, reitero que estes fundamentos decorrem de uma experiência, que priva a isotopia inocência/felicidade/amor, que estrutura Esto es mi cuerpo, de uma como que naiveté. Essa experiência é, essencialmente, a certeza da posse do presente: eis aqui o carácter activo da felicidade. Co-ocorre com a «Tristeza de saber que no regresaremos / a la ternura, la serenidad, / al fulgor de Virgilio» [18]; ocorre, ainda, junto à consciência da melancolia: «Quién nos redime / de la totalidad de la melancolía, / de la totalidad de la tristeza, / de la totalidad / del dolor en el alma, sino Tú, / tu delicada perpendicular / hecha sólo de amor?» [48]; convive, por último, com a «incerteza»: «No sé si la he tenido. No recuerdo. / He encontrado dos líneas en que pido / una felicidad libre de euforia. / Y, si no la he tenido, me pregunto / por qué sé describir tan justamente / ese país en el que nunca he estado» [51]. A felicidade, pelos termos destes últimos versos, só pode ser... formulação que recorda Parménides: «Força é que o que se pode dizer e pensar seja» [apud Pereira 1982: 130]. O esquecimento é sobrelevado pelo dictum poético que, recordo, é intrinsecamente activo. Daí que, justamente, a síntese do modo desta felicidade venha dado em regime assumidamente declarativo: «yo declaro / que lo maravilloso, la inocencia, / esa felicidad que a veces somos, / la hermosura extendiendo su luz sobre la tierra, / todo lo que soñamos / sucederá algún día, / porque nosotros hemos sucedido» [20]. O presente está aberto ao futuro porque a experiência decorre de uma vivência «perfectiva» do presente: «hemos sido». É esta a felicidade mediada pela corporalidade. A experiência está contida toda nela: «No quiero más lugares fuera de mis caricias» [26]. A felicidade é imputável a um Humano dado/potenciado pelo «limite» da pele.

Gostaria de voltar à ideia, que já enunciei, de um discurso poético performativo que coloca entre parêntesis a tropologia. Passa por este gesto de des-ficcionalização do discurso poético o grande interesse do livro de González Iglesias. A lição do corpo que transporta, recordo, é também a dos «esquimós». Creio que são eles também os citados no seguinte verso: «Aquí el cielo es tangible. No hay metáfora. / La cúpula sencilla del iglú» [74]. Ora, a proposta poética de Esto es mi cuerpo é a de ler ad litteram o título. O deíctico «isto» não aponta um interior/anterior do/ao livro replicado por uma tiragem de n livros. Pelo contrário, referencia cada exemplar material do livro [o objecto comprado e, por exemplo, assinado pelo comprador como marca de posse]. Assim, leia-se a seguinte proposição-programa, que alia teoria poética, teoria do livro e teoria do corpo: «El libro de poemas no es una metáfora del yo, sino su difusión física. Su tacto y su cuerpo son los del poeta» [10]. O livro, a sua tactilidade e corporalidade - extensão física, objecto sensível, locus ocupando as dimensões do espaço e do tempo - é o poeta. Perde a sua condição mediológica para, destacando-se na sua materialidade, disseminar capilarmente o poeta como corpo físico. Vale a pena transcrever integralmente o belo poema que encerra a colectânea, com título homónimo: ESTO ES MI CUERPO Esto es mi cuerpo. Aquí coinciden el lenguaje y el amor. La suma de las líneas que he escrito ha dibujado no mi rostro, sino algo más humilde: mi cuerpo. Esto que tocas es mi cuerpo. Otro lo dijo mejor. Esto que tocas no es un libro, es un hombre. Yo añado que esto que te toca ahora es un hombre. Soy yo, porque no hay ni una sola sílaba que esté libre de amor, no hay ni una sola sílaba que no sea un centímetro cuadrado de mi piel. En el poema soy acariciable no menos que en la noche, cuando tiendo mi sueño paralelo al sueño que amo.

No mosaico, ni número, ni suma. No sólo eso. Esto es una entrega. Soy pequeño y grande entre tus manos. Ésta es mi salvación. Éste soy yo. Este rumor del mundo es el amor [81]

Esta assimilação do «sujeito» ao «livro» in-tensifica ainda mais os termos de uma noção de representação - «No hay metáfora» - assente numa temporalidade definida, como já vimos, sem crisis: «Es todo simultáneo» [24]. É muito interessante, neste poema, a comutação da «rostricidade» pela «corporalidade». O «rostro» é figura tradicional da ficção do Sujeito. Ora, o «tocado» não é a face de um sujeito como mónada. Dizer-se «eu» é dizer-se «corpo» - ou Homem, pois como vimos este é dado como corporalidade - tocável e múltiplo. Mas não apenas. Esta objectualidade recorda a daqueles objectos que, como dizia W. Benjamin, nos devolvem o olhar: «Yo añado que esto que te toca ahora es un hombre» [sublinhado meu]. Aqui, o tropo é a prosopopeia, «el tropo maestro del discurso poético» [De Man 1996: 33]. Por outro lado, ao negar o livro, cumpriu-se o livro como metáfora: «o livro metafórico [constitui-se] através da referência ao oposto que exclui» [Baptista 1998: 42]. Em Esto es mi cuerpo, a física do livro é a sua metafísica.

BIBLIOGRAFIA A. ALEXANDRE (1999), António Franco, Quatro Caprichos, Lisboa, Assírio & Alvim. GONZÁLEZ IGLESIAS (1997), Juan Antonio, Esto es mi cuerpo, Madrid, Visor. B. BAPTISTA (1998), Abel Barros, Autobibliografias. Solicitação do Livro na Ficção e na Ficção de Machado de Assis, Lisboa, Relógio d' Água. BOWRA (1976), C. M., The Romantic Imagination, Oxford, Oxford University Press. CALAFATE (1994), Pedro, A Ideia de Natureza no Discurso Iluminista do Século XVIII em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda. DE MAN (1996), Paul, Escritos críticos, Madrid, Visor. DELEUZE (1994), Gilles, Lógica del sentido, Barcelona–Buenos Aires– México, Paidós. DIOGO, Américo António Lindeza, «Sem-família. Sobre Quatro Caprichos de António Franco Alexandre», in AA. VV., Ave Azul, nº 3-4, 2001. FOUCAULT (1997), Michel, Las palabras y las cosas, Madrid, Siglo XXI. PEREIRA (1982), Maria Helena da Rocha, Hélade. Antologia da Cultura Grega, 4ª ed., Coimbra, Instituto de Estudos Clássicos. SILVESTRE (1996), Osvaldo Manuel, Slow Motion. Carlos de Oliveira e a Pós-Modernidade, Braga-Coikmbra, Angelus Novus. WHITMAN (1988), Walt, Leaves of Grass, New York-London.

«Corpos em Letras. Sobre a Poesia de António Franco Alexandre e de Juan Antonio González Iglesias», Espaço/Espacio Escrito, vol. 19-20, Junta de Extremadura, 2001, pp. 139-147.

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