Conversación con Javier CERCAS

September 3, 2017 | Autor: Fernanda Vilar | Categoría: Spanish Literature, Javier Cercas, Literatura española e hispanoamericana
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Descripción

Javier Cercas é um dos escritores espanhóis mais lidos e comentados
da atualidade. Nascido em uma cidade próxima a Cáceres, Estremandura,
acabou escolhendo a Catalunha para viver, mais especificamente a cidade de
Girona. Seu sucesso como autor começou quando lançou o livro Soldados de
Salamina (2001), que retrata um episódio particular da guerra civil
espanhola. Nele Cercas apresenta-nos uma interessante personagem deste
período: Rafael Sánchez Mazas (1894-1966). Escritor, jornalista, ativista
político, Sánchez Mazas, durante sua fuga em direção à fronteira francesa,
escapa de um fuzilamento em massa. Este momento fundamental e curioso de
sua vida representa o centro deste relato. Ficção ou realidade? Esta
pergunta quase que não pode ser respondida, diz ele, "é realidade na medida
em que o romance foi escrito a partir de relatos de pessoas reais, mas
seria tudo verdade o que elas contam? Quanto de fantasia não há nesses
relatos? " É com esse tipo de interrogação que começamos a entrevista.
Nosso encontro com Cercas aconteceu em um hotel de Lyon, durante um
evento literário, a AIR (Assises Internationales du roman). Seguiram-se à
esta entrevista cinco horas de conversa, durante um jantar ao qual, pouco a
pouco, vários escritores presentes no evento foram se juntando. Conversamos
sobre vários assuntos: falamos do saibro azul que foi usado no torneio de
tênis de Madrid, de sua admiração por Rafael Nadal (Cercas é um grande fã
do tênis), de futebol, de literatura, dos anos que passou nos EUA, do
Brasil, da Espanha.
Ele nos fez perguntas sobre o Brasil e nos lembrou que será um dos
autores convidados da Feira Literária de Paraty (FLIP). Já tem a certeza
que vai se apaixonar pelo país e que ficará por aqui. O problema será
convencer sua mulher a pegar um avião e se mudar, pois ela não gosta tanto
assim de voar. "Brasil é um país que vai devorar tudo! A Espanha está numa
neurose total! Deram-me um papel para entrar no país, disseram que é devido
aos problemas do aeroporto. Um papel extraordinário, muito cerimonioso,
pedem para que deixem entrar esse espanhol! Nós, espanhóis, somos e sempre
fomos uns tontos. Fomos muito maus com os imigrantes. Agora os outros nos
cobram, é natural! Enfim, ao trabalho! Vamos para a literatura."
Falou-nos também dos escritores brasileiros que conhece, dos que já
leu. "Conheço pouquíssimo da literatura brasileira. Conheço Machado de
Assis, Guimarães Rosa, Jorge Amado não li, mas ouvi falar. Machado e
Guimarães são escritores brutais! Tem um muito engraçado, que conheci na
Colômbia, não me lembro do seu nome. Tenho um livro de João Ubaldo Ribeiro.
Ah, o poeta, João Cabral de Mello Neto. Da literatura portuguesa conheço
mais, há o [José Luís] Peixoto, o [Gonçalo] Tavares, além dos clássicos
como [Fernando] Pessoa, mas também se lê muito Antonio Lobo Antunes, [José]
Saramago".
Cercas também é professor de literatura na Universidade de Girona,
além de ser tradutor e colunista do jornal El país. Aliás, dessa atividade
como jornalista surge seu interessante livro de crônicas, Relatos Reales.
Foi professor de língua espanhola nos Estados Unidos, quando era estudante
de doutorado, época que está indiretamente representada em seu livro El
inquilino. Essa experiência no estrangeiro permitiu-lhe compreender um
pouco melhor o seu próprio país. Talvez por isso mesmo seus romances lançam
um olhar crítico sobre a história da Espanha. Ele nos disse que "para saber
se alguém é espanhol basta lhe perguntar: qual é a sua versão da história
sobre o evento de 23 de fevereiro? Foi daí que me surgiu a ideia do livro
(Anatomia de um instante), pois cada um tem uma versão dos fatos. Eu quis
ir além, pesquisar profundamente o que aconteceu aquele dia. A imagem
daquela pessoa sentada no centro da assembléia (e que é a capa do livro na
edição espanhola) ocupa a mente de todos na Espanha. Por que ele não se
jogou ao chão como os outros? Mas o que aconteceu de verdade? É isso que eu
queria saber, por isso falo no livro sobre esse instante, sobre a escolha
dessas três pessoas em resistir às ordens".


1- É muito interessante ler o conjunto de sua obra, sobretudo quando
reparamos na maneira como o senhor mistura os gêneros: relato histórico,
narrativa literária, crônica – existe uma diferença muito sutil entre
eles em seus livros. Gostaria de começar perguntando-lhe se antes mesmo
de publicar seu primeiro livro o senhor sabia que comporia sua obra desta
maneira.
Não, nunca pensei, claro que não! Levando em consideração que sou
alguém que venho da província, de uma cidade muito pequena, onde não havia
nenhuma tradição literária e que minha família não tem nada a ver com a
literatura, são do campo. Meu avô gostava de ler, mas não tem ninguém de
letras. Fui morar em Girona, não conhecia nenhum escritor. Para mim
escritor era Kafka, Borges, ser escritor para mim era como alguém que ganha
na loteria, não dá para todo mundo conseguir sê-lo e não se encontra com um
pela rua todos os dias! Era uma opção muito remota e o escritor também era
uma figura longínqua. Eu nunca pensei que eu viveria de literatura. Até os
40 eu nunca fui lido. Lembrei há pouco de uma história curiosa. Eu tinha 39
anos quando publiquei Soldados de Salamina. Até então tinha escrito umas
histórias que a minha mãe e alguém mais tinha lido. Eram poucos, mas bons
leitores. Roberto Bolaño era muito amigo meu. Bolaño tinha um sentido muito
aguçado da literatura, eu tinha outra visão, ele dizia que era importante
ter amigos na literatura. Eu tinha 38 anos quando se publicou um livro que
se chamava Páginas Amarillas, sabe o que é não? É como uma agenda
telefônica. Onde se encontram todos os nomes. Pois bem, lançaram esse livro
com TODOS os escritores da minha geração. Salvo eu, o único que não estava.
Bolaño me liga e diz "Viu? Você tem inimigos muito poderosos" Eu disse "Mas
Roberto, eles me suprimiram porque não me conhecem!" E era verdade. Eu não
sou como o André Gide, que antes de escrver já tinha todos os seus livros
na cabeça. Mas não a pergunta era sobre a obra, nunca pensei nela assim.


2- O senhor inspirou-se em alguém para compô-la dessa maneira?
Vamos ver, a wikipedia diz várias coisas sobre mim. Elas são todas
incorretas. Ela diz que eu vivi em Tarragona, estudei com Jesuítas... Bom,
eles também dizem que eu virei escritor por Jorge Luis Borges e a verdade é
o contrário! Eu demorei muito a ser escritor por causa do Borges. Porque
foi um escritor muito importante para mim. Eu tinha 15 anos quando o lia,
quando o descobri com meus amigos e com uma professora. Eu lia aquele tipo
e eu pensava "ninguém pode fazer algo melhor, isso é fabuloso!" e isso me
deixou louco! Não só era um escritor fabuloso, mas escrevia na minha
língua. Auden diz que escolher um grande escritor como modelo pode ser
fatal. Ou seja, alguém com 17 anos que escolha Shakespeare como modelo está
perdido, não será escritor nunca em sua vida. Ele dizia que para ele Thomas
Hardy, que é um bom poeta menor, era uma inspiração, ele não seria capaz de
aplastar-lhe como pode fazer Shakespeare. Mas isso estava bem, porque se eu
tinha medo ao me afrontar com esses gigantes, como Kafka e Dostoievsky, eu
tive que me tornar um leitor, um grande leitor.




3- Mas alguém serviu-lhe de inspiração?
Cervantes, Borges. O romance é uma mescla de gêneros, um gênero de
gêneros, um gênero degenerado. Mas por exemplo, o Quichote, que é o
primeiro romance moderno e provavelmente o melhor, o que esgota o gênero.
Kundera diz que ele é um banquete com muitos pratos. É como um cocido
(prato espanhol comparável à feijoada)! Há uma tradição romanesca que vem
de Cervantes e cheguei a ela de alguma maneira, mas não sei por qual via.
Mas Borges e a sua mescla de ensaio e ficção me inspirou.


4- Como o senhor reage às classificações de sua obra? O senhor acha justo
determiná-la como autoficção?
Autoficção é uma moda atual e universitária. Essa palavra não era uma
moda e eu não havia ouvido falar nela, mas por meus caminhos eu cheguei aí.
Um escritor vai sozinho traçando seus caminhos. Não se vai em busca de
copiar algo, mas se encontra algo. O Livro del buenamor foi fundamental
para mim. E o autor é o protagonista do livro. Um curso de Francisco Rico
em Madrid dizia que ele é uma autofição total! Eu chego a essa solução por
caminhos particulares... Mas porque eu dizia isso? Mas não tem nada de
vaidade nisso que escrevo. A vaidade é muito perigosa para o autor. O
orgulho e a humildade são indispensáveis, mas a vaidade é letal.


5- Há uma grande diferença entre contar sua vida e fazer literatura...
Claro! Dizer eu transei com não sei quem e vi não sei quem mais, isso
não é literatura, é um diário! Rembramdt, por exemplo, agora saindo um
pouco da literatura. Ele tem uma série de autoretratos. É como dizer que
Rembramdt fazia esses autoretratos porque gostava muito de si mesmo! Dizer
isso é idiota. Ele busca aí algo que é genial, ele utiliza a si próprio
como modelo. Como o faz Proust, Montaigne,... não, Montaigne não é auto-
ficção. Quantas vezes sai o nome de Marcel em Em busca do tempo perdido?
UMA! Gerard Genet diz duas, mas eu vi uma! Provavelmente pode-se ler como
um tipo de auto-ficção. Não serve para nada fazer uma teoria geral sobre
auto-ficção.


6- Seus livros recebem críticas muito positivas. Como foi a recepção de seu
primeiro livro e qual o maior medo de um autor iniciante: a crítica
negativa ou a indiferença?
Eu não sei. Eu sei que meu primeiro livro teve uma resenha e uma
pequena nota. Me pareceu normal, lógico. Tem um equívoco em alguma parte, a
gente não pode pensar que vai escrever um livro e ganhar muito dinheiro,
desculpa, mas não é assim. Você escreve um livro sem ter leitores, é
natural! O que aconteceu com Hemingway é muito raro na vida de um escritor!
E vou te dizer a verdade: eu nunca reclamei de não ter leitores, eu sabia
que era assim, minha mãe e mais algum amigo, era óbvio que iria ser assim!
Eu só conhecia escritores catalães até 1998 e me parecia lógico isso. Eu
não poderia imaginar que meu primeiro livro poderia ter mais leitores ou
mais críticas. Não sei o que preferiria, que não falem ou que falem mal?
Uma resenha negativa, talvez, pelo menos seria uma resenha. Mas eu não me
senti frustrado! Quando eu publiquei El inquilino (seu segundo livro), ele
teve uma quantidade de críticas entusiastas na Inglaterra, mas na Espanha
não. Eu escrevia numa enorme liberdade, eu achava normal que não me
conhecessem. Só me descobriram por casualidade, eu não sei porque Salamina
se converteu em best-seller. Ele é o responsável por eu poder viver de
literatura.


7- Como você lidou com o sucesso repentino ?
Eu creio que para mim foi muito bom não ser um escritor conhecido até
os 40 anos. Eu me dediquei somente a escrever, não havia o mundo
literário,não havia nada. Aí está a chave do que eu escrevo, do que
escrevi. Eu não conhecia ninguém, era um OVNI. Até hoje não formo parte da
vida literária espanhola, nunca fiz parte. Aos 17 anos eu teria adorado,
mas aos 40 eu sei que é muito perigoso você conhecer um escritor. As
decepções podem ser terríveis! Há uma coisa genial que diz Proust : Aqueles
que creêm que saindo com um escritor você se torna escritor, acreditam que
o fato de sair com um médico bastaria para a cura de sua doença.

8- Além desta mistura de gêneros, em seus livros existe uma barreira tênue
entre a realidade e a ficção, como em Soldados de Salamina.
Nos meus livros, no Quichote, na Recherche, em todos os lugares. O
jogo entre realidade e ficção forma parte da literatura. A literatura é
essencialmente uma ilusão. Cada livro, para mim, é um jogo. O que fazemos é
inventar um jogo. O trabalho dos escritores consiste em encontrar as regras
exigidas por seus livros e ser fiel a elas. Esta é uma concepção
"Oulipiana" da literatura. Cada livro, para que seja um grande livro, deve
ter regras diferentes dos outros. Falando de realidade e ficção, podemos
citar Salamina. Este livro é uma falsa crônica, o narrador diz que ele é um
relato real. Porém, o que devemos aprender é que nem tudo que diz o
narrador é verdade. Esta é, portanto, uma regra fundamental do livro. Se o
narrador estabelece esta norma, todos os nomes das personagens devem
corresponder a personagens reais. Esta é uma consequência lógica das
contraintes que determinei ao livro. Ela é a razão pela qual o protagonista
chama-se Javier Cercas. Salamina é um episódio muito pequeno da história
espanhola. Existia pouquíssima documentação sobre ele. Aqui temos um
episódio ideal para que opere a imaginação de um escritor. É ela que pode
iluminar a escuridão deixada pela história. Nada mais pode ser descoberto
com os instrumentos historiográficos. Aí a liberdade é total. Você deve ser
fiel aos fatos históricos. Aquilo que não podemos saber com os recursos
historiográficos pode ser iluminado pela imaginação do escritor.
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