Colocando a ciência para trabalhar

July 24, 2017 | Autor: Júlio Fontana | Categoría: Tecnologia
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Descripción





Colocando a ciência para trabalhar*
David Miller
Tradução de Júlio Fontana

RESUMO
O propósito deste artigo é esclarecer a relação entre as ciências teóricas por um lado, e a tecnologia e a engenharia por outro. A minha tese é a de que essa relação é bastante assimétrica e, que, a influência da tecnologia sobre a ciência é geralmente positiva, enquanto a influência da ciência sobre a tecnologia é inteiramente negativa. Não se quer diminuir a importância do serviço prestado pela ciência teórica à tecnologia, mas situá-lo corretamente. Isso nos permite, também, identificar em que sentido a tecnologia se constitui numa aplicação da ciência e como ela compartilha plenamente de sua racionalidade.

0. Introdução
O meu artigo trata precisamente da questão da relação entre a tecnologia e as ciências básicas, e a influência que elas exercem uma sobre a outra. A interação delas é raramente bem descrita, e por trás dos usuais mal-entendidos pode-se vislumbrar um erro filosófico muito antigo e de grande notoriedade. Tenho a intenção, nesse artigo, de lançar alguma luz sobre a questão, e resolvê-la de uma modo agradável e interessante.
Todos, eu espero, podem provisoriamente concordar com a caracterização da diferença entre ciência básica e tecnologia dada pelo cientista político canadense Jack Grove, que escreveu (1989, p. 46): "A tecnologia, diferentemente da ciência, não trata das coisas como elas são, mas das coisas como elas poderiam ser." O filósofo Henryk Skolimowski afirmou num sentido semelhante: "Na ciência nós investigamos [...] a realidade; na tecnologia, criamos uma realidade conforme nosso projeto." O que essas observações não explicam é como a ciência é utilizada na tecnologia, ou como a tecnologia é usada na ciência. Compreender o envolvimento da ciência com a tecnologia é o nosso principal problema aqui.
A ciência e a tecnologia certamente tem muito em comum. Ambas são dedicadas a solução de problemas, mas isso não nos diz muito. A atividade política também é dedicada a solução de problemas, assim como, às vezes, o casamento. As ciências básicas e suas aplicações práticas são habitualmente confundidas pela opinião pública e pela imprensa, a ponto da ciência receber tanto os elogios como as censuras que pertencem, a rigor, à tecnologia. A relação entre as duas, porém, não é simétrica. Embora eu mantenha que, de fato, a influência das ciências básicas sobre a tecnologia é quase universalmente mal compreendida, em detrimento da tecnologia, não possuo nenhuma intenção de menosprezar a importância prática da ciência. Espero que aquilo que eu virei a expor lance uma luz satisfatória (e mais verdadeira) sobre ambas as atividades, a a ciência básica e as ciências aplicadas.
1. As ciências básicas e as ciências aplicadas
Devo dizer que eu tenho usado os termos "ciências básicas" e "ciências aplicadas" com muito receio. Juntos, eles sugerem que a ciência precede lógica e temporalmente a tecnologia, e que o engenheiro não faz nada mais do que aplicar a ciência básica, assim como, por exemplo, eu emprego um saca-rolhas para abrir uma garrafa de vinho, ou utilizo um processador de textos para formatar o que digitei no teclado. Se fosse tão simples assim! Até eu poderia ser um engenheiro sob essas condições. Mas, como vocês sabem, e eu realmente não preciso dizê-lo, a situação é muito diferente. Eu prefiro a expressão "ciência teórica" e "ciência explicativa" ou, quando não há perigo de confusão, simplesmente "ciência". Evitarei, de agora em diante, a expressão "ciência aplicada". Quanto aos termos "tecnologia" e "engenharia", distinguirei mais adiante o desenvolvimento de artefatos que são próprios da produção em massa, que chamarei de "tecnologia", e o empreendimento particular de construção de projetos, que chamarei de "engenharia". Por enquanto, os dois termos podem ser comprendidos intercambiavelmente.
Antes de tudo, apresentarei quatro considerações que põem em questão a precedência lógica e temporal da ciência em relação à tecnologia. A primeira consideração é ingênua e zoológica, a segunda é informal e cotidiana, a terceira é extraída da história da ciência. A consideração final, que é a mais eloquente, consiste numa inspeção, simples mas reveladora, da forma lógica das teorias científicas. As duas primeiras considerações (§ 1.0, § 1.1) sugerem que o conhecimento científico não é necessário para a tecnologia; as outras duas (§ 1.3, § 2) sugerem que não é suficiente.
1.0. Os passáros, castores e toupeiras
Os passáros constroem seus ninhos para abrigar seus ovos e suas crias. Os castores constroem represas para controlar e redirecionar os riachos. As toupeiras, tatus, e outros animais, cavam sistemas intricados de túneis subterrâneos – isto é, eles também tentam adaptar o mundo as suas necessidades. Essas criaturas são engenheiros, mas não são cientistas.
Podemos admitir que "não há animais que usam fogo, nem há animais que construam regularmente novas ferramentas, melhorem o design dos antigos utensílios, utilizem utensílios para fazer outros utensílios, ou passem o conhecimento técnico acumulado aos seus descendentes." [Basalla, 1988 (2001), p. 13 (14)] Devemos resistir à conclusão (enunciada por Basalla mas não sancionada por ele explicitamente), de que "a tecnologia não é necessária para se satisfazer as necessidades dos animais [do homem]" (loc. cit).
1.1. A culinária, a música e o cabeleireiro
Um ramo da tecnologia que é familiar a todos é a culinária, que é uma atividade que não é essencialmente diferente de outras intervenções humanas no meio ambiente. Como afirmou Grove, a culinária "não trata das coisas como eles são, mas das coisas como poderiam ser", embora, infelizmente, ela frequentemente falhe em alcançar a aspiração de Skolimowski de criar "uma realidade conforme nosso projeto". A culinária pode certamente ser descrita como química aplicada, mas essa descrição manifesta exatamente o sentido do verbo "aplicar" que tenho objetado. Poucos cozinheiros de sucesso conhecem os elementos da química (ou da física de materiais, ou da anatomia). O mesmo, pode-se dizer sobre a agricultura, apicultura, pecuária, metalurgia, e outros ramos da tecnologia que surgiram numa época anterior ao alvorecer da ciência teórica.
Outro exemplo, mas, um pouco diferente, é a música. A música talvez seja melhor descrita como uma técnica em vez de uma tecnologia, porém, ela revela um contraste semelhante entre teoria e prática. A ciência que é relevante para a música é em parte uma teoria matemática (conhecida pelos gregos antigos), e em parte uma coleção de teorias físicas (das ondas, da elasticidade, do som e da acústica). O que é verdade, nesse caso, é que algum conhecimento da teoria musical é geralmente uma vantagem para um músico, se intérprete ou compositor. A música folclórica mostra, no entanto, que esse conhecimento não é essencial. Não devemos nos esquecer que, a poucos meses de sua morte prematura aos 31 anos de idade, Schubert inscreveu-se num curso de contraponto (Gombrich 1982/1996, p. 563).
O que esses exemplos mostram é que nós não podemos caracterizar os casos corriqueiros de tecnologia como sendo aplicações do conhecimento científico. Os animais não possuem conhecimento científico, mas podemos supor que eles possuam uma competência inconsciente que se desenvolveu evolutivamente. Mesmo que haja um conhecimento teórico que afete o seu trabalho prático, é improvável que o cozinheiro esteja ciente dele, implícita ou explicitamente, e, certamente não o aplica direta e automaticamente. No caso do cozinheiro, em contraste com o caso do músico, não é evidente que seja proveitoso aprender o conhecimento científico que explique suas façanhas, como, por exemplo, uma assado bem feito. Um antigo colega, um engenheiro que é atualmente membro da Sociedade Real de Londres [Fellow of the Royal Society of London, FRS], relatou-me que na sua juventude teve que ministrar um curso intitulado "A química para cabeleireiras". Às vezes, me pergunto, se as suas alunas tornaram-se melhores cabeleireiras por entenderem melhor os efeitos das tinturas e dos peróxidos utilizados no salão de beleza. Embora os diligentes estudantes fossem capazes de aplicar substâncias químicas com algum conhecimento científico, não se pode dizer que, assim procedendo, aplicavam as teorias científicas da química.
1.2. Kelvin, Rayleigh e Rutherford
Há vários exemplos na historia da ciência de cientistas ilustres que tinham ideias inteiramente erradas quanto às potencialidades práticas inerentes às suas teorias. Lord Kelvin [William Thomson] e Lorde Rayleigh, que fizeram contribuições independentes e significativas à ciência da hidrodinâmica, não acreditavam na possibilidade de voo de máquinas mais pesadas que o ar, ou seja, na viabilidade dos aeroplanos (Meuring Thomas 2001, p. 105). Em 1902, juntamente com o seu colega Frederick Soddy, Lorde Rutherford usou a teoria da desintegração espontânea do átomo para explicar o misterioso fenômeno da radioatividade, e uma década depois, eles propuseram a teoria nuclear do átomo. Em 1933, não obstante, Rutherford escreveu (loc. cit.): "Alguém que espera uma fonte de poder da transformação dos [núcleos dos] átomos está falando disparates". A propósito dessa afirmação de Rutherford, é interessante ressaltar que ele não possuía uma reputação especial pelo pensamento abstrato, divorciado da realidade material. Pelo contrário, era um homem profundamente prático, de quem disse Niels Bohr uma vez: "Rutherford não é um homem inteligente; ele é um grande homem". [Veja Crowther e Whiddington 1947, p. 22]
Não obstante sua compreensão intuitiva de como funciona o mundo, esse grande homem não foi capaz de imaginar uma técnica pela qual a energia dentro do átomo pudesse ser liberada. Fala-se o mesmo de Max Planck, Albert Einstein e Niels Bohr. Um exemplo menos extremo é encontrado nas contribuições individuais do engenheiro britânico Thomas Newcomen e do cientista francês Denis Papin para o desenvolvimento do motor a vapor. Segundo Basalla,
Newcomen não tinha nem a educação nem a inclinação para levar por diante um estudo desinteressado do vácuo, e Papin não tinha nem o interesse, nem o conhecimento técnico e nem a imaginação para transformar a sua demonstração de laboratório num motor prático. [1988 (2001), pp. 95f. (100)]
Tais exemplos certamente deixam em dúvida o clichê de que a ciência fornece inspiração para a tecnologia. Como afirma Basalla,
Seria um erro concluir que Papin, ao descobrir o princípio do motor atmosférico, deu mostras de maior originalidade e gênio do que Newcomen [...]. Nem é correto pressupor que Newcomen se limitou a pôr em prática a teoria, que fez o óbvio ao seguir o trabalho de Papin. (loc. cit.)
Resumidamente [op. cit., pp. 91f. (p. 96)]: "Os proponentes da pesquisa científica têm exagerado a importância da ciência, afirmando que ela é a raiz de praticamente todas as principais todas as principais mudanças tecnológicas."
1.3. Resumo
Existem muitos outros exemplos que lançam dúvida sobre a opinião comum de que "a invenção [consiste] ... exclusivamente na aplicação do conhecimento científico à tecnologia", como Hatfield escreve incredulamente no seu livro muito informativo O Inventor e seu mundo (1948, p. 59). Ele continua:
Não existe caso mais instrutivo na história da tecnologia que o desenvolvimento dos aeroplanos. É muito duvidoso se Lilienthal [...] já sonhava com a possibilidade de voar por horas a fio sem motores. Este desenvolvimento não era de maneira alguma o resultado da aplicação de princípios científicos ... .
Na mesma página, ele menciona o caso dos barcos Vikings, cujas "linhas [...] quase não podem ser aperfeiçoadas hoje" e o do motor a vapor. Nesses casos, foi a ausência de uma teoria científica que forçou o inventor a proceder sem ajuda teórica, mas há um exemplo mais vigoroso de independência da ciência. Escrevendo em 1948, Hatfield convidou seus leitores a considerarem "os avanços na utilização de catalisadores que têm ocorrido nos últimos anos. Existem muitos compêndios sobre as teorias (dos catalisadores), mas alguém já encontrou o catalisador correto por meio dela?" (op. cit., p. 146)
Além disso, a sugestão de que a ciência não tem relevância para a tecnologia não é crível. Não me atrevo a desafiar de maneira tão radical suas experiências como alunos de engenharia. Para iluminar mais este tema, é preciso investigar brevemente alguns dos aspectos lógicos do problema.
2. As leis e as teorias da ciência
Desde o tempo de Aristóteles se sabe que o nosso conhecimento científico consiste não apenas de uma grande coleção de fatos singulares, mas também de generalizações empíricas e leis universais. Essas generalizações ou leis são universais por afirmarem algo sobre todos os elementos de uma determinada classe. Um exemplo simples é a lei putativa 'Todos os asnos são teimosos'. Para os nossos propósitos hoje, não importa se escolhermos exemplos que não são leis genuínas; se há asnos serviçais, então temos de encontrar outro exemplo. Evidentemente, nem o princípio da gravitação de Newton é universalmente verdadeiro, mas é conveniente considerá-lo como uma lei. O que importa para nós é que a ciência aspira a formular leis universais; inicialmente as leis empíricas (como 'Todos os asnos são teimosos'), que lidam com as coisas cotidianas, e posteriormente, as leis teóricas (como a lei da gravitação e a mecânica quântica) que lidam com coisas fora da nossa experiência ordinária. Uma lei típica da física moderna assevera algumas relações funcionais entre quantidades matemáticas. Deve-se notar que, em muitos campos da física e da biologia (a genética, por exemplo) parece que o objetivo determinado é muito ambicioso e inacessível; nestes campos intencionamos mais propriamente leis estatísticas. Esse ponto, porém, não é importante. O mal-entendido sobre o papel das leis e das teorias científicas na tecnologia não se dissolveria se essas leis fossem assertivas estatísticas.
2.0. Uma amostra da lógica formal
Para escrever uma sentença universal na lógica formal utilizamos vários caracteres familiares da matemática e dois símbolos técnicos especiais: um símbolo que representa a expressão condicional 'se ... então', e um símbolo que representa o quantificador universal 'todos'. Por meio destes símbolos podemos escrever a lei 'Todos os asnos são teimosos', como x (Ax Cx), onde a letra 'x' é chamada de variável, que percorre um domínio de valores (aqui não estabelecido explicitamente). Qualquer letra pode servir essa função, assim como podemos substituir 'j' na expressão j=0100yi e 'y' na expressão 0 f(y)dy por outras letras. Alerto que a sentença 'Todos os asnos são teimosos', na linguagem natural afirma algo categórico ou universal sobre todos os asnos (a saber, que eles são teimosos) é representando no formalismo pela sentença que afirma algo condicional sobre todos os elementos do domínio (a saber, que eles são asnos se são teimosos). Num juízo similar, podemos dizer a sentença 'Todos os asnos são teimosos' como 'Algo é asno é serviçal', e escrevê-lo como x (Ax Cx). O símbolo é chamado de quantificador existencial, e , com o qual podemos representar o oposto não-C de uma expressão C, é chamado de negação.
As teorias científicas podem ser formuladas como condicionais universais, embora a maioria são condicionais de forma mais complexa. A lei da gravitação de Newton, por exemplo, pode ser expressa da seguinte forma: Se x e y são dois corpos distintos, então a força f entre x e y é o produto da constante G e as massas mx e my das massas de x e y, dividido pelo quadrado da distância dxy entre x e y; resumidamente, xy [B(x) B(y) x y) fxy = Gmxmy/dxz2]. Uma formulação mais estreitamente correta dessa lei toma a forma de um misto de quantificação: ' se x e y são quaisquer dois corpos distintos, então há uma força f entre x e y cujo valor é ... ; em símbolos, xy [B(x) B(y) x y) f [F(f) fxy = Gmxmy/dxz2]. Outras formulações, mais explícitas e mais exatas, são possíveis. A versão simplificada é exata o bastante para nossos propósitos.
Na expressão formal a fórmula representada por chama-se antecedente do condicional, e a fórmula representada por é seu consequente. Os lógicos afirmam que o antecedente é condição suficiente para o consequente, e o consequente é uma condição necessária para o antecedente.
2.1. Causa e efeito
O que é crucialmente importante para uma compreensão precisa da função que as leis científicas desempenham na tecnologia é que, na maioria das leis naturais que conhecemos o antecedente lógico A é também um antecedente temporal do consequente C, ou, mais genericamente, o antecedente A fornece, em princípio, um meio através do qual podemos obter o consequente C. Diz-se usualmente que o antecedente de uma lei natural descreve uma causa do efeito descrito por C. A ordem temporal certamente não é reversível: se A é anterior a C, ou é uma causa de C, então C não é anterior a A e não é uma causa de A. Podemos assumir também que na maioria dos casos, a ordem instrumental não seja igualmente reversível.
Um exemplo meramente ilustrativo é a lei 'Sempre que um automóvel A rodopia fora de controle numa ruma movimentada, ocorre uma colisão C'. Soltar o freio de um carro sem condutor por um tempo é suficiente para produzir uma colisão num momento posterior. A é suficiente para C, e pode causar C por meio de A. Um exemplo de uma lei y (Ay Cy) cujo antecedente Ay e consequente Cy são simultâneos, é a lei psicozoológica formulada anteriormente: 'Todos os asnos são teimosos'. Talvez forçamos um pouco o uso linguístico ao dizer que ser um asno é uma causa para ser teimoso, mas, se a lei é verdadeira, ela fornece um método eficaz, mesmo que não eficiente, de se obter um animal teimoso; ou seja, de se obter um asno. Em contrapartida, não há nada na lei que sugira um método para se obter um asno. Não é suficiente para se obter um ser que é teimoso; há outros seres teimosos, por exemplo, todas as mulas e alguns animais semelhantes. Como eu disse há pouco, a ordem instrumental geralmente não é reversível.
3. Por que a ciência não nos diz o que devemos saber?
Uma lei ou teoria científica nos diz qual o efeito se segue (lógica e cronologicamente) de uma determinada causa. Na prática, porém, numa situação típica, o que conhecemos, mais ou menos, é o efeito que queremos produzir, mas não conhecemos nenhuma causa desse efeito. Caso tenhamos muita sorte, conhecemos uma lei y (Ay Cy) que atribui o efeito desejado C a uma causa anterior A que podemos implementar. Nesta situação afortunada, o problema tecnológico já está resolvido, pelo menos em princípio. O que é mais provável é que não conheçamos nenhuma lei relevante. Ou conheçamos somente uma lei cujo antecedente não podemos colocar em prática; em suma, conhecemos uma causa do efeito desejado, mas não sabemos como ocasionar essa causa. Apesar de o problema tecnológico ter certamente mudado, dificilmente foi resolvido.
Dado um efeito C, como podemos descobrir uma lei y (Ay Cy) cujo consequente é o mesmo C e cujo antecedente A é realizável? É aqui, sugere a crença popular, que a ciência pode nos ajudar.
Minha resposta é: Absolutamente não!
Não estou dizendo que a ciência nunca implica tais generalizações empíricas como y (Ay Cy). Pelo contrário, uma invenção bem sucedida não seria explicável cientificamente se não existisse tal consequência lógica, verdadeira ou aproximadamente verdadeira das teorias científicas em nossa posse. O que eu afirmo é que a ciência pode ajudar só em circunstâncias bastante incomuns. Admito, também, que a ciência (como a natureza, a literatura, o mito, e até mesmo os sonhos) pode fornecer sugestões frutíferas para a prática. Mas, são apenas sugestões, não inferências: a teoria atômica sugere a presença de um vasto estoque de energia não liberada, porém, não indicou como podemos liberá-la. A situação do engenheiro é uma forma aguda do problema de alguém que quer identificar uma pintura, ou um poema, ou uma melodia. Se o título da peça é conhecido, um catálogo ou uma enciclopédia expõe rapidamente como parece ou como soa. Contudo, o catálogo é de uso limitado se o que se conhece é como a pintura se parece ou como a melodia soa, e o que você quer, é identificar o seu título.
Neste momento já deve estar evidente que a ciência é tecnologicamente estéril.
Embora as leis e teorias da ciência nos deem permissão para inferir os efeitos das causas, o que precisamos é de permissão para inferir as causas dos efeitos. Seja T nossa teoria, e C o efeito desejado. Identificar um estado de coisas realizável A tal que T implique y (Ay Cy) não é uma tarefa da lógica dedutiva. Há somente duas possibilidades a se seguir: a primeira é enumerar as consequências lógicas de T até que se encontre um condicional cujo consequente é C, e a outra é tentar conjeturar um antecedente apropriado A. A primeira possibilidade, embora operacionalizável, não é uma tarefa sensata, por razões bem conhecidas. Produziria uma quantidade avassaladora de condicionais sem nenhum interesse concebível; por exemplo, a teoria T implica um condicional y (Ay Cy) quando T afirmar que nada possui a propriedade A. Fazer uma conjetura, ou seja, ter uma ideia brilhante, é a única opção realista.
Essa afirmação pode ser colocada de modo diferente se levarmos em conta que a contrapositiva y (Ay Cy) de uma lei y (Ay Cy) é logicamente equivalente a ela. Se Ay precede temporalmente Cy, então o antecedente Cy da contrapositiva vem após seu consequente Ay. Entretanto, nós não podemos empregar a contrapositiva diretamente, visto que o antecedente é simplesmente vago demais para ser utilizado. Para aplicar nosso conhecimento científico a fim de enviar o homem a Marte, por exemplo, ... . Uma teoria científica pode ser aplicada somente se existir algo específico ao qual aplicá-la.
Por isso, chegamos a uma conclusão que todos vocês já conhecem. Para ser um engenheiro bem sucedido, é preciso ser preceptivo, imaginativo e arguto. Como também já sabem, ser apenas inventivo não basta. Não se esqueçam de que, além de possuir estas propriedades lógicas, o antecedente tem que ser algo realizável na prática. Tem que funcionar também.
Antes de explicar a maneira pela qual a ciência pode servir à tecnologia, apesar dessa conclusão negativa, vou citar alguns exemplos, tanto característicos como excepcionais.
3.0. Cervejas e boliches
Uma leitura atenciosa de um manual de química teórica não ajudará muito a quem quiser manufaturar a maioria dos coloides que se consomem no lar: nem o pão, nem a manteiga, nem a geleia, nem o sabão, nem a cola, nem a tinta, nem a cerveja. Você não encontra num livro texto nenhuma lei da natureza que afirma 'Se você fizer A, então terá cerveja'. Assim que um método de fazer cerveja for desenvolvido, você pode formular uma receita cheia de orientações detalhadas; e quando um mestre-cervejeiro segue a receita, aplica essas orientações. Mas ele não aplica as leis da química teórica, exceto no sentido de que não as viola.
Esse caso é típico. Nossas teorias não nos instrui a como produzir os analgésicos, nem os arranha-céus, nem os chips de memória, nem os chips de tortilha, nem as petecas, nem os boliches, nem inúmeras outras coisas e substâncias sem as quais a vida moderna não seria reconhecível.
3.1. O pêndulo
Há exemplos, entretanto, de leis na física e em outras ciências que estabelecem uma condição A como necessária e suficiente para um efeito C. Podemos representar essas leis com a ajuda de um bi-condicional: A C é definido como a conjunção (A C) (C A). Pode-se lê-la 'se, e somente se'. Um exemplo familiar a todos é a lei do pêndulo: 'todos os pêndulos simples de comprimento l têm um período t = 2π (lg), que tem uma forma mais explícita: 'cada pêndulo simples tem o comprimento l se e somente se tem o período t = 2π (lg)'. Podemos aplicar essa lei [que é no máximo uma aproximação, como observa Wilson (1993, nota 7)] para obter um pêndulo de período t, porque cada período t é associado com um comprimento l= t2g4π2. Indubitavelmente é mais natural dizer que o comprimento l é 'uma causa' do período t do que o contrário, por ser mais fácil arranjar o comprimento que o período. No entanto, poderia se um exercício interessante de projeto mecânico chegar ao período de um pêndulo ao determinar o seu comprimento.
Devo mencionar que há uma maneira trivial de transformarmos qualquer sentença condicional na forma bicondicional: y (Ay Cy) é equivalente a y (Ay (Ay Cy)). Em outras palavras, 'todos os asnos são teimosos' se e somente se o conjunto de 'todos os asnos' e o conjunto de 'todos os asnos teimosos' coincide. Parece óbvbio que tal reformulação não serve a nenhum propósito tecnológico.
Não há outro sentido no qual podemos aplicar a lei do pêndulo diretamente aos problemas tecnológicos; parece que, eventualmente, José Arcadio Buendía realizou isso (García Márquez 1967/1972, p. 79; perto do fim do capítulo que começa 'A nova casa, branca como uma pomba, ...). Se ele imaginou que o pêndulo era um móvel perpétuo que poderia providenciar trabalho ilimitado, então ele estava errado em mais de uma opinião sobre as potencialidades da lei do pêndulo.
3.2. A vida
Finalmente deve ser admitido que existem algumas leis causais y (Ay Cy), em biologia, em cosmologia, e em outras ciências históricas, em que aquilo que acontece num certo momento é necessário, mas insuficiente, para o que ocorre a seguir, ou seja, o consequente C, que é uma condição necessária para a ocorrência de A, é anterior no temporalmente a A. Até a invenção da inseminação artificial, o coito era necessário para a concepção. Os casais que queriam procriar sabiam bem o que tinham que fazer. O problema usual não era a ignorância do modus operandi, mas a sua falibilidade. Da mesma forma, para se desfrutar de um carvalho majestoso no quintal, é necessário, mas não suficiente, haver plantado uma semente muitos anos antes. Se tomarmos o cuidado de evitar qualquer sugestão de que a natureza de comporta intencionalmente, podemos dizer que ela já resolveu, através de uma variedade extraordinária de diferentes métodos, o problema tecnológico da produção dos novos organismos. Nós não fazemos mais do que clicar um botão.
Esses exemplos não perturbam a minha tese de modo algum. Em qualquer caso, eles não esclarecem muito sobre o papel da ciência na tecnologia. Eu sustento que tais exemplos são atípicos e que na maioria dos casos de interesse tecnológico nós somos compelidos a ampliar nosso conhecimento de modo a realizar nossos objetivos práticos. Que é, nós pensarmos em alguma coisa que não havíamos pensado antes.
Deixe-me repetir algo que eu disse acima, que o mundo natural, como a ciência teórica podem fornecer muita inspiração para a prática. A tarefa do engenheiro é inventar maneiras de transformar essas inspirações em propostas concretas. Mais que um conhecimento da teoria eletromagnética é necessário para o envio de mensagens por rádio. Desde Dédalo, os homens quiseram voar como pássaros, mas a aviação é um empreendimento sensivelmente diferente do bater de asas com penas. Dizer que os pássaros e os 747s obedecem aos mesmos princípios de aeronáutica não nos diz nada, pois as pedras obedecem-nos também.
4. Como a ciência pode servir à tecnologia e a engenharia
Apontei que a posse de uma teoria T, e de uma descrição C de um estado futuro de mundo, não nos dá qualquer pista sobre uma condição inicial A tal que a lei y (Ay Cy) esteja entre as consequências de T. No entanto, se a teoria implica y (Ay Cy), então T, juntamente com C, implica diretamente a negação A do antecedente A. A regra de inferência aqui usada, que nos permite inferir a conclusão Ay de y (Ay Cy) e Cy, é conhecida como a regra modus tollendo tollens. O seu significado para o nosso problema é enorme.
Se sabemos que o nosso objetivo C não foi alcançado na ocasião em que fizemos a intervenção A, então podemos concluir a partir de C, sem qualquer dificuldade, que A, como forma de produzir C, é um fracasso. Nós não devemos concluir que podemos produzir C por meio de A (ou excluindo A).
Em circunstâncias onde temos uma teoria T que implica o condicional y (Ay Cy), não há nenhuma necessidade de implementarmos A para descobrirmos se C ocorre ou não, quando A ocorre. Mais genericamente, para determinar se A é um passo útil, basta considerar as consequências na presença de T. Se algumas dessas consequências são inaceitáveis, então novamente devemos descartar a intervenção A. Em outras palavras, as leis e teorias da ciência não nos dizem o que devemos fazer, mas do que devemos abster-nos. A ciência não prescreve, mas proscreve.
A verdade é que a engenharia e a tecnologia utilizam o conhecimento científico para diagnosticar, controlar e eliminar erros em suas iniciativas práticas, não para gerar essas iniciativas. A ciência serve a uma função crítica, ao invés de uma função construtiva.
4.0. A análise científica dos problemas tecnológicos
A descrição acima do papel da ciência teórica como crítica e proibitiva em relação à tecnologia é exata comparando-se nesses casos àqueles onde a análise científica é capaz de lançar luz sobre um problema prático antes de qualquer solução ser vislumbrada. A investigação microbiológica de um resfriado comum, por exemplo, mostra que a doença é viral mais propriamente do que bacteriana, o que sugere (embora possa não implicar) que a administração de antibióticos não é o medicamento apropriado para tratá-la. Um grupo substancial de possíveis soluções pode ser excluído simultaneamente. Conclusões similares se seguem para muitos outros exemplos da medicina. Uma análise das causas ocultas de todos os sintomas de uma doença não revela, ela mesma, uma cura possível (a menos que a cura já seja conhecida por outro contexto), mas é possível indicar que muitas linhas de combate não surtirão efeito.
4.1. A tecnologia contrastada com a engenharia
No começo desta conferência sugeri uma distinção entre engenharia, que tem por tarefa resolver um problema que é mais ou menos único ou sui generis, e a tecnologia, que tem por tarefa resolver, por assim dizer homogêneo, uma turba de problemas similares. Nessa terminologia, que está sendo adotada por conveniência, o engenheiro projeta e constrói pontes suspensas e aceleradores lineares, e o tecnólogo inventa e produz remédios, computadores, pistolas e liquidificadores. O tecnólogo que projeta e constrói um dispositivo que resolve adequadamente um problema prático, testa o dispositivo, e prepara um guia ou manual (que deveria consistir de instruções que podem em princípio serem seguidas automaticamente) para seu uso. Em resumo, o tecnólogo produz um novo tipo de objeto físico, e formula em termos universais uma lei empírica (uma generalização tecnológica) esboçando os detalhes de sua operação. O único aspecto universal de um projeto de engenharia pode ser, em contraste, um universalidade quase-temporal. Uma vez que um artefato que funcione tenha sido desenvolvido, entretanto, nós podemos tentar formular leis empíricas adequadas, e um dia então dar uma explicação científica de suas funções.
Em outros termos, a farmacologia é um ramo da ciência teórica, a farmácia é um ramo da tecnologia, mas a medicina, especialmente cirúrgica, é um ramo da engenharia.
4.2. A explicação científica do sucesso tecnológico
O trabalho de integrar na ciência teórica uma lei empírica que descreve a operação de uma descoberta é raramente urgente, e pode não ser plenamente realizado por muitos anos. Há uma ilustração divertida no maravilhoso artigo "Uma análise de estresse de um vestido de noite sem alças" ['A Stress Analysis of a Strapless Evening Gown'] (Siem 1956) que se publicou muitos anos depois da elaboração bem sucedida do primeiro vestido nesse estilo. Outro exemplo interessante de uma "solução tecnológica que desafia a compreensão atual" [Basalla op. cit., p. 28 (); ver também Boon 2006, §3.1] encontra-se na resposta dada em 1954 por Sir Alexander Fleming a um pedido de cura eficaz para o resfriado comum: "Um bom trago de uísque quente na hora de deitar" – não é muito científico, porém, ajuda". Há uma abundância de casos desse tipo, por exemplo, o mecanismo no qual o hidróxido de alumínio, quando utilizado como um coadjuvante farmacêutico em algumas vacinas, contribui para a produção de uma grande quantidade de anticorpos (Bhattacharya 2008).
5. Por que isso não é bem conhecido?
Em 1935 Karl Popper comentou que "quanto mais um enunciado proíbe, mais ele diz acerca do mundo da experiência" [1959, § 35 (p. 129)]. Isto é, o poder proibitivo de uma lei ou de uma teoria é uma medida de seu conteúdo (e seu interesse). Em 1944, escreveu no seu livro A miséria do historicismo [1944, § 20 (49)] que:
... qualquer lei natural pode ser expressa por meio de uma assertiva de que determinada coisa não pode ocorrer, ou seja, por uma sentença em forma de provérbio: 'Você não pode transportar água em uma peneira.'Assim, a lei da conservação da energia pode assumir a forma: 'Não é possível construir máquina de movimento perpétuo'; e a da entropia, a forma: 'Não é possível construir uma máquina cem por cento eficiente'. Essa maneira de formular as leis naturais torna óbvia a sua significação tecnológica e pode, portanto, ser chamada de "forma tecnológica" de uma lei natural.
A doutrina de que as leis científicas têm uma força puramente negativa (de interdição) não é propriamente nova. Ninguém, contudo, parece perceber o seu grande alcance. Mesmo Popper passou a invertê-la quando, pouco antes da passagem citada acima, afirmou que "uma tarefa característica de qualquer tecnologia é a de apontar aquilo que não pode ser concretizado" (loc. cit.). E na sua idade avançada, quando discutiu o chamado "problema pragmático da indução", falou insistentemente (como o fizeram todos os outros filósofos) das teorias científicas como uma "base para a ação" [1972, capítulo 1, § 9 (p. 32)]. É a ciência que tem por tarefa característica apontar o que não pode ser feito. A tarefa característica da tecnologia é mostrar (por exemplo) o que pode ser feito.
Parece-me que nós podemos encontrar quatro razões para essa incompreensão geral: uma histórica, uma psicológica, uma sociológica e uma filosófica.
5.0. A história da tecnologia
A explicação histórica deriva do fato lógico de que, nos casos mais familiares, o uso das leis e teorias da ciência para excluir uma proposta tecnológica nunca é essencial. Em vez disso, é sempre possível simplesmente testar a proposta de maneira empírica, como um alfaiate faz um terno. Se você acredita que uma peneira possa carregar água, tente fazê-lo. Não há necessidade de uma lei proibitiva para mostrar que a sua ideia deve ser descartada. No século passado, porém, métodos teóricos de crítica tornaram-se recomendáveis, e em muitos casos, imprescindíveis, por causa do aumento dos custos e dos riscos de testes diretos. Anos antes, a situação era diferente. Um estudo da história da interação da ciência com a tecnologia, destacando a sua dimensão crítica, seria muito valioso. Como outros escritores, Bassalla observou [op. cit., p. 102 (107)] que "antes do Renascimento, e durante vários séculos depois, os avanços tecnológicos foram alcançados sem a ajuda do conhecimento científico." Tal como os outros, Basalla não ofereceu a explicação simples que, em épocas passadas, o trabalho de eliminação (de soluções) desempenhou-se mais facilmente por um teste empírico do que por uma análise teórica.
Eu sugiro que, para uma grande parte da história, a tecnologia aprendeu pouco da ciência, e que o intercâmbio se dava, na maioria dos casos, na direção oposta; por exemplo, no projeto de um equipamento de laboratório. Basalla é perspicaz para investigar "a natureza da interação da ciência e da tecnologia" [op. cit., p. 92 (96)], mas em nenhum ponto ele fornece aos seus leitores os detalhes de qualquer ação científica. Sobre o trabalho do Newcomen, quem ele mencionou um pouco mais a frente, ele escreve: "Há muito pouco no instrumento de Papin que tivesse servido de guia ao inventor inglês, enquanto este planeava a construção do motor atmosférico a vapor" [op. cit., p. 95 (100)]. A afirmação de que "a ciência dita os limites da possibilidade física de um artefato, mas não prescreve a forma final do artefato" [op. cit., p. 92 (96)] agrada-me, mas não sei se o que ele se refere é a proibição física ou a uma proibição teórica. Sem dúvida "A lei de Ohm não ditou a forma e os pormenores do sistema de iluminação de Edison" [loc. cit.], porém, não há dúvida que o mundo é igualmente descrito por essas leis que ditaram os "limites da possibilidade física". Outra questão é em qual extensão as elucubrações imaginativas de Edison foram revisadas e refinadas pela contemplação intelectual das leis de Ohm.
Assim, a influência potencial crítica da ciência, como a influência crítica da matemática tem sido quase invisível. O mito de que a ciência seja mais básica do que a tecnologia tem sido insidiosamente reforçado com a conclusão inevitável de que a ciência tem os méritos dos sucessos instrumentais da tecnologia e a responsabilidade por suas falhas e horrores.
5.1. A repressão
Outra explicação para o anonimato da força negativa (de interdição) da ciência vem da nossa propensão em considerar a perpetração de erros, não como um constituinte essencial da aprendizagem, mas como algo vergonhoso. Consequentemente, quando finalmente nós atingimos um objetivo intelectual ou prático, estamos ansiosos para esquecer-nos de quantas vezes erramos. "É tão óbvio", dizemos, e não nos lembramos das dificuldades que experimentamos previamente. Talvez possamos explicar científica ou teoricamente o conteúdo de nosso sucesso e supomos erradamente que podemos explicar de maneira as nossas descobertas. Essa aversão aos erros é ela mesma um erro grave, mesmo que seja um erro natural.
5.2. O cientista hoje
Uma terceira explicação sobre o equívoco de como a ciência é aplicada é o fato de que atualmente, a maioria daqueles que são chamados de cientistas, até nas universidades, são tecnólogos ou engenheiros disfarçados. Eles participam de uma atividade que Thomas Kuhn no seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas batizou de "ciência normal" [1962, capítulo 3 (p. )]; não no desenvolvimento de novas teorias, mas na resolução de quebra-cabeças e na ampliação do domínio explicativo das teorias que já são comuns. Quando lemos num jornal que os cientistas fizeram um avanço, por exemplo, no tratamento do câncer, podemos estar confiantes de que a descoberta é de fato uma invenção tecnológica. A mesma confusão é evidente na expressão "ficção científica". Não há dúvida de que este gênero literário deve ser chamado de "ficção tecnológica" ou "ficção de engenharia".
Aqui está um exemplo que é mais cômico do que profundo. "Cientistas fazem um ovo que avisa quando está pronto", anuncia uma manchete na página 3 da edição de 31 de julho de 2006 do jornal Metro, que é distribuído gratuitamente aos passageiros de transportes públicos por toda a Grã-Bretanha. Segundo o jornalista John Higginson, o truque consiste em usar uma tinta que é sensível a uma determinada temperatura, mudando de cor quando o ovo está pronto.
Para ser justo, e mostrar que a distinção entre ciência e engenharia não está totalmente turva, posso mencionar alguns outros exemplos relevantes de notícias na mesma edição de Metro.
(a) No item (p. 09) na seção intitulada "A ciência e a descoberta de hoje em resumo" relata, a sugestão do eternamente fascinante Harry Potter, que "engenheiros estão trabalhando num escudo que faz as coisas invisíveis devido a curvatura da luz." (Acrescenta de maneira tranquilizadora que "o objeto ainda existiria, porém, estaria oculto para a visão ...".
(b) Em outra coluna, chamada "Mitando" (p. 19) refuta "o mito" que uma moeda deixada durante a noite em Coca-Cola 'derreterá'." Como dissipar este mito? Simplesmente testando. Não se verifica. Para aqueles que tem disposição científica, a Coca-Cola contém ácido cítrico e ácido fosfórico, porém os ácidos contidos não são tão fortes para dissolver uma moeda numa noite. Decepcionantemente, o diário não faz relação entre esta revelação com a informação de fundo da coluna acerca dos ovos, que, "se um ovo cru é submergido em vinagre por 3 dias, a casca se dissolverá".
Evidentemente, esse uso popular do termo "cientista" pode ser um efeito assim como uma causa do mal-entendido da relação entre a ciência explicativa e a tecnologia. Os maus hábitos frequentemente florescem em pares.
5.3. O justificacionismo
Para concluir, voltemos por um momento à doutrina filosófica que está no fundo de todos esses equívocos, a velha doutrina do justificacionismo. O justificacionismo sustenta que o nosso conhecimento, se é conhecimento autêntico, deve ser confiável, seguro, em outras palavras, justificado – ou pela razão ou pela evidência empírica. Esta doutrina provém de Platão, e tem constituído o núcleo da teoria do conhecimento desde então.
A tradição justificacionista afirma que o nosso conhecimento matemático assenta-se numa lógica dedutiva, enquanto o nosso conhecimento empírico baseia-se numa lógica indutiva, ou seja, um sistema de regras que permite inferir as causas dos efeitos e as leis naturais da experiência. Há muitas confusões nisso, as quais não tenho tempo para expor e desmascarar aqui. Devo remeter-lhes às obras do meu mestre Karl Popper que mostrou com uma força incomparável os erros e as inadequações de toda forma de justificação, especialmente de todos os ensaios para se desenvolver uma lógica indutiva. A ciência, segundo Popper (1959, 1963), é um sistema de conjecturas audaciosas que não são de nenhuma confiabilidade. As atividades principais da ciência consistem nos testes empíricos, cuja meta é descartar essas conjecturas, e na invenção de novas conjecturas que, com sorte, estarão mais próximas da verdade do que as anteriores.
Contudo, a crença geral é a de que nosso conhecimento prático tem que ser seguro. A conclusão natural é a de que a ciência teórica desempenha o papel das agências de segurança. Infelizmente, as teorias científicas não são dignas de confiança, e portanto, não podem fornecer nenhuma segurança às iniciativas tecnológicas cujo sucesso explicam. As ligações entre ciência e (algumas partes) da tecnologia podem ser dedutivas, mas a ciência, ela mesma não é segura.
Na sua forma indutivista, o justificacionismo assume que a ciência teórica surge a partir da experiência, e que está baseada firmemente nela. Por razões lógicas, essa crença é equivocada. Como Popper anunciou com muito vigor, na ciência a experiência não é uma fonte de ideias, nem uma garantia de verdade; sua função principal é eliminar erros. Na sua forma dedutivista, o justificacionismo assume que a tecnologia e a engenharia surgem a partir da ciência teórica e que estão baseados firmemente nela. Essa crença é igualmente equivocada. Na tecnologia e na engenharia, a ciência teórica não alimenta nenhuma fonte de ideias, nem é garantia de sucesso; sua função principal é eliminar os erros. Nem a experiência na ciência, nem a ciência na tecnologia podem determinar como um problema seja resolvido de maneira ideal. O melhor que podemos dizer é que poderíamos ter feito pior.
Essas duas doutrinas do justificacionismo, a indutivista e a dedutivista, são expressões de preconceitos superficiais e perigosamente enganosos. Sugiro abandoná-las.





















REFERÊNCIAS





* Tit. orig.: "Putting science to work".
Na versão original (em inglês e espanhol) deste artigo a presente seção discute a questão do indutivismo. Porém, por sugestão do próprio autor, a discussão do justificacionismo representa mais de perto suas ideias atuais.

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