Coletânea oferece panorama generoso do jornalismo literário

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FOLHA DE S. PAULO, 8/01/2016 ILUSTRADA / CRÍTICA Coletânea oferece panorama generoso do jornalismo literário JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Século de Camus" é um dos lançamentos mais importantes de 2015. Não se trata de mero entusiasmo. A fim de avaliar a importância da reunião de artigos do livro, leiamos o prefácio da organizadora do volume, Luciana Viégas: "Mais de duas centenas de artigos publicados por Lucia Miguel Pereira em periódicos cariocas e paulistas, até então dispersos, foram localizados em 2012: 180 apareceram quinzenalmente entre 1947 e 1955, no "Correio da Manhã", e mais de uma dezena no "Suplemento Literário" de " O Estado de S. Paulo", em 1957. (...) Todos estão recortados e colados em quatro álbuns, com as devidas indicações de fonte e de data manuscritas pela própria autora. De tal achado resulta este livro." Citação longa, porém econômica, pois encapsula os méritos da pesquisa.

Ademais, a cena descortinada já é tão distante do universo digital nosso que chega a comover. Pois basta imaginar a autora recortando seus textos de jornais e revistas e compondo cuidadosamente seus álbuns para sentir a vertigem de um tempo remoto. Aquele cenário do presente de 1950 e esta cena da memória futura apontam as preocupações da autora. De um lado, o testemunho dos primórdios da hegemonia americana no plano da cultura. Em artigo de 1948, a ensaísta lamentava a "uniformidade que a civilização vai imprimindo a todos os povos". As consequências são desestimulantes: "toda a gente bebe Coca-Cola, conhece os artistas de Hollywood, possui rádios e geladeiras, leu romances como 'O Vento Levou'".

A sutileza não oculta, antes sublinha o desencanto: do refrigerante à literatura de entretenimento, passando pela civilização do eletrodoméstico, a diferença seria de grau, nunca de natureza! OUTONO DE UMA ÉPOCA No fundo, vivia-se o outono de uma época, como a autora reconheceu em texto de 1957. Ao saber da tradução de "Em Busca do Tempo Perdido", duvidou da oportunidade da tarefa, "já que leria certamente em francês toda a gente capaz de apreciar Proust". Contudo, rapidamente viu que, "afastada das novas gerações, não se dava conta exata do declínio da influência francesa". O "século de Camus", ironia suave, esqueceu o francês, sem necessariamente aprender bem o inglês. Em artigo de 1949, "O drama do escritor norte-americano", Pereira tocou em tema incontornável no Brasil atual. Eis o paradoxo formulado com agudeza: o mercado literário americano crescia, e os números impressionavam. No entanto, "o que mais espanta (...) é a falta de comunidade literária". Nesse contexto, seria praticamente "impossível na América um caso como o de Gide, por exemplo, que alcançou grande fama embora seus livros vendessem pouco no princípio". Nesse "mercado", o escritor jovem e bem-sucedido torna-se engrenagem do, digamos, "star system" das letras. Porém, o preço a ser pago é desproporcional: abandonar o risco inerente à literatura para "ser um fabricante de enredos ao gosto da massa". Aqui, a ensaísta apontava uma alternativa cada vez mais frequente no Brasil do século 21: "Não se resignando a ser assim industrializado, só resta ao escritor que não alcança imediatamente a celebridade o abrigo das universidades". Há mais no livro: análises pontuais, sempre lúcidas, das literaturas brasileira, francesa, inglesa, americana e alemã; exame certeiro dos impasses do tradutor; estudos pioneiros sobre "leitores em formação"; entre outros tópicos. Não posso concluir sem destacar uma seção, "Figuras femininas", e o ensaio de maior fôlego do livro, "As mulheres na literatura brasileira". Eis um texto antecipador e que merece ser trazido para o debate contemporâneo. Lucia Miguel Pereira acertou no alvo: na literatura brasileira o "primeiro assédio" foi propriamente póstumo, exercido por meio de uma memória que

naturalizou o preconceito. Ora, a autora palmilhou diligentemente os áridos cinco volumes da segunda edição de "História da Literatura Brasileira", de Sílvio Romero, e, surpresa, descobriu que, neles, "só foram incluídas sete mulheres". Paro por aqui para obrigar à consulta de " O Século de Camus". Melhor: concluo com uma provocação, recordando a pergunta à queima roupa da autora: "Mas quem sabe se poderia acusar de uma tal ou qual misoginia literária o grande crítico que foi Sílvio Romero?" Às leitoras e aos leitores, a resposta. (Ou o início do debate.)

JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA é professor de literatura comparada da UERJ O SÉCULO DE CAMUS AUTORA: LUCIA MIGUEL PEREIRA EDITORA: GRAPHIA QUANTO: R$ 65 (328 PÁGS.)

O escritor Albert Camus posa em Paris após ser anunciado como vencedor do Nobel, em 1957

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