Cistinose nefropática: diferentes apresentações clínicas Nephropathic cystinosis: different clinical presentations Cistinosis nefropática: presentaciones clínicas diferentes

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Cistinose nefropática Brunn DD, et al.

Pediatria (São Paulo) 2002;24(1/2):65-8

Relato de caso Case Report Relato de Caso

Cistinose nefropática: diferentes apresentações clínicas Nephropathic cystinosis: different clinical presentations Cistinosis nefropática: presentaciones clínicas diferentes

Danielle Dias Brunn1, Maria Helena Vaisbich2, Luís Carlos Ferreira de Sá3, Vera Hermina Koch4 Unidade de Nefrologia Pediátrica do Instituto da Criança do Hospital da Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil

Resumo Objetivo: alertar os pediatras para as diferentes apresentações clínicas da cistinose nefropática. Descrição: relato da história, exame físico e dos principais exames complementares de três crianças com cistinose nefropática. Um paciente apresentou-se com fraqueza muscular intensa (por hipopotassemia), outro apresentou raquitismo (renal), e um terceiro teve desidratação de difícil manejo clínico. Conclusões: as diferentes apresentações clínicas observadas decorreram de distúrbios metabólicos e hidroeletrolíticos resultantes do comprometimento das funções do túbulo proximal (síndrome de Fanconi). Ressalta-se a evolução natural desfavorável da doença e a perspectiva de benefício com o diagnóstico precoce e tratamento específico com bitartarato de cisteamina. Descritores: Cistinose, diagnóstico. Síndrome de Fanconi. Cisteamina, uso terapêutico. Criança.

Abstract Objective: to draw pediatrician’s attention to different clinical presentations of nephropathic cystinosis. Description: the clinical history, physical examination and laboratorial tests of three patients with nephropathic cystinosis were reported. The first patient was seen with muscular weakness (by hypopoptassemia), the second presented a nephropatic rickets, and the third had severe dehidratation. Conclusions: the different clinical presentations result from metabolic and hydroelectrolytic disturbances established by proximal tubular disfunction (Fanconi syndrome). It is important to emphasize the unfavorable natural evolution of this disease and the possible benefits with an early diagnosis and cysteamine bitartrate treatment. Keywords: Cystinosis, diagnosis. Fanconi syndrome. Cysteamine, therapeutic use. Child.

Resumen Objetivo: alertar a los pediatras sobre las diferentes presentaciones clínicas de la cistinosis nefropática. Descripción: son relatados la historia clínica, examen físico y los principales exámenes complementarios de tres niños con cistinosis nefropática. Uno de ellos presentó flaqueza muscular intensa (hipopotasemia), el otro presentó raquitismo (renal) y el tercero deshidratación de difícil control clínico. Conclusiones: las diferentes presentaciones clínicas observadas decorrieron de disturbios metabólicos y hidroeletrolíticos resultantes del comprometimiento de las funciones del túbulo proximal (síndrome de Fanconi). Se resalta la evolución natural desfavorable de la enfermedad y la perspectiva de beneficio con el diagnóstico precoz y tratamiento específico con bitartarata de cisteamina. Palabras clave: Cistinosis, diagnóstico. Sindrome de Fanconi. Cisteamina, uso terapéutico. Niño. 1

Complementanda da Unidade de Nefrologia Pediátrica do Instituto da Criança do HC- FMUSP Doutora em Pediatria. Médica Assistente da Unidade de Nefrologia Pediátrica do Instituto da Criança do HC- FMUSP 3 Médico Oftalmologista do Instituto da Criança do HC-FMUSP 4 Doutora em Pediatria. Médica Chefe da Unidade de Nefrologia Pediátrica do Instituto da Criança do HC-FMUSP 2

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Cistinose nefropática Brunn DD, et al.

Introdução A cistinose nefropática é uma doença sistêmica, genética, com herança autossômica recessiva, causada pelo acúmulo intracelular (intralisossomal) de cistina em diversas células do organismo1,2. Pode comprometer a função de diversos órgãos, o que ocorre mais precocemente no túbulo contornado proximal do rim, levando à síndrome de Fanconi. A apresentação clínica é rara no período neonatal, manifesta-se geralmente em torno de 6 a 18 meses de idade, mais comumente com deficiência de crescimento e de ganho de peso, episódios de febre e desidratação. Também pode ser precoce a ocorrência de quadro clínico de hipotireoidismo e a fotofobia por deposição de cristais de cistina na córnea e/ou conjuntiva3. Outros órgãos e sistemas são acometidos mais tardiamente, em geral na 2a ou 3a décadas da vida, como o pâncreas, musculatura esquelética, fígado e sistema nervoso central4. Nesta fase, o acometimento glomerular pode levar à insuficiência renal. A doença tem, portanto, caráter progressivo, que pode ser impedido através do diagnóstico e tratamento precoces. O diagnóstico pode ser estabelecido através da observação de cristais de cistina na córnea ou conjuntiva, na medula óssea (mielograma) ou no rim (biópsia renal). Também pode ser feita a medida do conteúdo de cistina nos leucócitos ou fibroblastos. O objetivo do presente artigo é relatar três casos com diferentes apresentações clínicas da cistinose, no sentido de alertar o pediatra para esta doença, que pode assemelhar-se clinicamente a outras mais freqüentes.

Descrição Caso clínico 1 I.H.F.J., 1 ano e 5 meses de idade, masculino, branco, procedente de São Paulo, SP, filho de pais consangüíneos, previamente hígido, com desenvolvimento neuropsicomotor adequado para idade. Procurou o Pronto Socorro do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (ICr HC-FMUSP) por apresentar, há 15 dias, dificuldade para deambulação e tendência à flexão da cabeça. No interrogatório dirigido foram relatadas poliúria, polidipsia e fotofobia. Ao exame físico de entrada encontrava-se em regular estado geral, hipoativo, descorado ++/4+, com peso de 7850 g (abaixo do percentil 5), estatura de 75 cm (abaixo do percentil 5), com hipotonia de membros inferiores e 66

superiores5. Na avaliação bioquímica foi detectada acidose metabólica com intensa hipopotassemia. A extensão dos exames mostrou hipofosfatemia, proteinúria, glicosúria, elevado pH urinário e baixa reabsorção tubular de fósforo (Tabela 1). Este conjunto caracteriza uma síndrome de Fanconi. Na investigação desta síndrome (Fanconi) foi realizado exame oftalmológico com lâmpada de fenda, que mostrou cristais de cistina nas córneas, estabelecendo o diagnóstico de cistinose nefropática. Como tratamento, foi iniciada reposição de potássio por via endovenosa, dieta rica em potássio e suplementação de soluções de bicarbonato de sódio e de fosfato e carbonato de cálcio. Houve melhora progressiva do distúrbio hidroeletrolítico, inclusive dos níveis de uréia e creatinina séricas e desaparecimento do quadro clínico da apresentação. Caso clínico 2 J.L.A., 3 anos e 9 meses, feminino, negra, procedente de São Paulo, SP, pais consangüíneos. Paciente eutrófica até 2 anos de idade quando iniciou quadro de dificuldade de marcha, deambulando apenas com apoio, associada à desaceleração do crescimento e deformidade dos membros inferiores (genu varum). Procurou um serviço médico onde foram realizados exames e foi encaminhada ao Ambulatório de Nefrologia Pediátrica do ICr HC-FMUSP para investigação. Ao exame apresentava-se em bom estado geral, com peso de 13900 g (entre os percentis 10 e 25)5, estatura de 92,5 cm (abaixo do percentil 2,5), fronte olímpica, alargamento das epífises distais, genu varum e fígado palpável a 3 cm do rebordo costal direito, com consistência normal. A avaliação óssea radiológica mostrou alterações compatíveis com raquitismo. Durante a investigação foram realizados exames bioquímicos que revelaram um quadro de síndrome de Fanconi (Tabela 1). O exame oftalmológico com lâmpada de fenda mostrou cristais de cistina depositados na córnea, caracterizando o quadro de cistinose. Caso clínico 3 T.S.A., 1 ano e 1mês, sexo feminino, negra, procedente de São Paulo, SP, foi atendida no Pronto Socorro do ICr HC-FMUSP para onde veio transferida de outro serviço por apresentar um quadro grave de desidratação com acidose metabólica e hipocalcemia. Havia poliúria intensa e dificuldade para correção dos distúrbios hidroeletrolíticos. Ao exame físico inicial, encontra-

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va-se desidratada, descorada ++/4+, desnutrida, com peso de 6230 g (abaixo do percentil 2,5), estatura de 69,5 cm (abaixo do percentil 2,5)5. A diurese era intensa, alcançando 45 ml/kg/hora. Os exames bioquímicos realizados denotaram um quadro compatível com a

síndrome de Fanconi (Tabela 1). Foi iniciada correção das alterações hidroeletrolíticas e metabólicas com melhora das condições clínicas e parâmetros laboratoriais. Na investigação do paciente o exame oftalmológico com lâmpada de fenda mostrou cristais de cistina na córnea.

Tabela 1 – Resultados dos principais exames laboratoriais realizados em três pacientes com cistinose nefropática por ocasião do primeiro atendimento no Instituto da Criança do HC-FMUSP. São Paulo, SP. Gasometria venosa

Resultados sangüíneos Eletrólitos e outras substâncias no sangue

Caso

pH

PCO2

Bic

BE

Na

K

Cl

Cai

P

1 2 3

7,29 7,33 7,30

36,5 35,2 16,5

18,2 18,5 12,3

-7,6 -8,5 -9,5

138 130 138

1,6 3,7 3,5

110 108 102

0,93 1,15 1,10

2,9 3,2 1,7

Resultados urinários

FA

U

Cr

G ur

D ur

pHu

Pu

RTP #

469 2458 608

73 37 20

1,7 0,4 0,4

+ + +++

1005 1010 1005

7,0 7,5 8,0

+ + ++

72 75 15

Valores de referência: pH = 7,32 a 7,43; pCO2 = 38 a 50 mmHg; Bic = bicarbonato - 22 a 29 nmol/L; BE = excesso de base ± 2 mEq/L; Na = sódio – 135 a 147 mEq/L; K = potássio - 3,5 a 5,0 mEq/L; Cl = cloro – 97 a 107 mEq/L; Ca i = cálcio iônico - 1,12 a 1,32 mmol/L; P = fósforo - 3,8 a 6,5 mg/dL; FA = fosfatase alcalina - 25 a 500 U/L; U = uréia – 10 a 42 mg/dL; Cr = creatinina - 0,23 a 1,02 mg/dL; G ur = glicosúria qualitativa negativo; D ur = densidade urinária - maior que 1010; P ur = proteinúria qualitativa - negativo; # RTP = reabsorção tubular de fosfato - 80-95%.

Discussão A cistinose nefropática é a causa mais freqüente de síndrome de Fanconi na infância6. Esta doença genética tem herança autossômica recessiva, decorrente de mutações ou deleções no cromossomo 17, em sítio responsável pela formação da cistinosina, proteína transportadora da cistina intralisossomal para o citoplasma das células6. Como resultado, a cistina, pouco hidrossolúvel, acumula-se dentro dos lisossomos formando cristais que podem ser observados em diferentes tecidos olhos, rins e medula óssea, entre outros locais2. As manifestações clínicas e laboratoriais são decorrentes do acúmulo e cristalização intracelular da cistina e aparecem, geralmente, entre 6 e 18 meses de idade. O quadro clínico inicial da cistinose pode ser variado. Neste relato de casos, foram observadas 3 diferentes apresentações da doença. No caso 1 houve alteração neurológica aguda, com parada súbita da marcha, decorrente dos distúrbios hidroeletrolíticos pela síndrome de Fanconi. Também no caso 3 a manifestação foi aguda, mas com um quadro grave de poliúria, desidratação e alterações eletrolíticas e metabólicas. No caso 2 a queixa foi de deformidades ósseas, dificuldade para deambulação e deficiência de crescimento, revelando um quadro mais insidioso. Nestes três casos as manifestações clínicas decorreram de acometimento renal. De fato, o rim é precocemente afetado na cistinose, originando disfunção do túbulo proximal, denominada síndrome de Fanconi. Esta se caracteriza, principalmente, pela presença de glicosúria, hiperaminoacidúria, acidose tubular proximal, hipofosfatemia (por diminuição na reabsorção tubular de

fosfato), deficiência de carnitina, proteinúria de baixo peso molecular e deficiência na concentração da urina (Tabela 1). Sem tratamento específico, ocorre comprometimento glomerular progressivo e insuficiência renal crônica até, em média, os 10 anos de idade3. A deposição ocular de cristais de cistina determina fotofobia que pode levar à úlcera de córnea e amaurose4. Também, um quadro de hipotireoidismo pode necessitar de reposição hormonal permanente4. A lesão das glândulas sudoríparas provoca intolerância ao calor. Outras manifestações clínicas podem ocorrer posteriormente: Diabetes Mellitus, insuficiência hepática, perda de força muscular (inicialmente distal e depois generalizada) e dificuldade de deglutição (esôfago/faringe). Por vezes há alterações neurológicas, por atrofia cerebral4. A anemia é bastante freqüente, desproporcional ao grau de déficit de função renal e ocorre, preferencialmente, por depósitos de cristais na medula óssea. O diagnóstico deve ser suspeitado pela história e exame físico e salientado pelos achados bioquímicos descritos. A confirmação é, de modo geral, simples pela observação dos cristais de cistina ao exame oftalmológico com lâmpada de fenda. Em casos especiais, através de mielograma ou biópsia renal. Um método diagnóstico preciso e de grande importância para acompanhamento do tratamento, é a medida do conteúdo de cistina em leucócitos7. Em gestantes com filhos portadores de cistinose está indicado 67

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este exame em amostra de vilo coriônico, entre 8 e 10 semanas de gestação. O tratamento paliativo da cistinose envolve, basicamente, a correção dos distúrbios causados pela síndrome de Fanconi, com reposição das substâncias perdidas na urina. Em alguns casos podem ser essenciais o hormônio tireoideano, papa de hemácias e diálise. O tratamento dirigido à causa da doença tem sido desenvolvido. É conhecido que a cistina é formada por duas moléculas de cisteína unidas por uma ponte de enxofre. Em 1976, Thoene et al.8 demonstraram que a beta-mercaptoetilamina ou cisteamina era capaz de provocar o rompimento desta ponte, permitindo que a cistina deixasse o lisossomo através do transportador da lisina. Desde então, vários estudos vêm demonstrando grande benefício da cisteamina no tratamento da cistinose, tornando-a droga de escolha. Markello et al.9 mostraram uma redução marcante na velocidade de instalação da insuficiência renal e do acometimento tireoideano. Estudos em adultos também revelam menor acometimento extra-renal, inclusive do sistema nervoso central4.

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No período corrente, estão em tratamento 20 crianças com cistinose na Unidade de Nefrologia do ICr HCFMUSP em uso de cisteamina. De forma preliminar, observa-se uma diminuição efetiva no número de internações, melhora na velocidade de crescimento e ganho de peso, especialmente naqueles em que o tratamento foi iniciado antes dos 2 anos de idade. A medicação empregada é o bitartarato de cisteamina (Cystagon®, Millan Pharmaceuticals) em dose que deve ser ajustada de acordo com a medida da cistina intraleucocitária, objetivando deixá-la em torno de 1 nmol de cistina/mg de proteína10.

Conclusões O presente relato alerta os pediatras para que suspeitem da ocorrência de cistinose frente a diferentes quadros clínicos compatíveis. A importância da precocidade no diagnóstico tornouse maior à medida que um tratamento específico da cistinose é hoje possível.

Referências 1. Schneider JA, Rosembloom FM, Bradley KH. Increased free-cystine content of fibroblasts cultured from patients with cystinosis. Biochem Biophys Res Commun 1967;29:527. 2. Gahl WA, Tietze F, Bashan W. Defective cystine exodus from isolated lysossome-rich fractions of cystinotic leukocytes. J Biol Chem 1982; 257:9570. 3. Gahl WA. Cystinosis coming of age. Adv Paediatr 1986;33:95-126. 4. Theodoropoulos DS, Krasnewich D, Kaiser-Kupfer MI, Gahl WA. Classic nephropathic cystinosis as an adult disease. JAMA 1993;270:2200-4. 5. Hamill PVV, Drizd TA, Johnson CL, Reed RB, Roche AF, Moore WM. Physical growth: National Center for Health Statistics Percentiles. Am J Clin Nutr 1979;32:607-29. 6. Town M, Jean G, Cherqui S, Attard M, Forestier L,

Endereço para correspondência: Maria Helena Vaisbich Instituto da Criança do HC-FMUSP Rua Enéas de Carvalho Aguiar, 647 CEP 05403-900 - São Paulo - SP - Brasil Tel.: (0xx11) 5572-8333 / 3069-8586 / 3069-8512 TeleFax: (0xx11) 3069-8503 e.mail: [email protected], [email protected]

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Whitmore AS, et al. A novel gene encoding an integral membrane protein is mutated in nephropathic cystinosis. Nat Genet 1998;18:319-24. 7. Vaisbich MH, Magnanelli AC, Sá LCF, Silva ACS, Diniz JSS, Franco HL, et al. Resultados preliminares do uso de cisteamine em pacientes brasileiros portadores de cistinose nefropática. J Bras Nefrol 2001;23:197-204. 8. Thoene JG, Oshima RG, Crawhall JC, Olson DL, Schneider JA. Cystinosis: intracellular cystine depletion by aminothiols in vitro and in vivo. J Clin Invest 1976;58:180-9. 9. Markello TC, Bernardini IM, Gahl WA. Improved renal function in children with cystinosis treated with cysteamine. N Eng J Med 1993;328:1157-62. 10. Schneider JA, Clark KF, Greene AA, Reisch JS, Markello TC, Gahl WA, et al. Recent advances in the treatment of cystinosis. J Inherit Metab Dis 1995;18:387-97.

Recebido para publicação: 03/01/2002 Aceito para publicação: 01/03/2002

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