Charles Reeve - Os movimentos indignados e as lutas de classes (entrevista com Stephane Julien e Marie Xantrailles)

July 21, 2017 | Autor: Daniel Cunha | Categoría: Marxismo, Indignados, Luta De Classes
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[-] Sumário # 11 vol. 1 EDITORIAL

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OS MOVIMENTOS INDIGNADOS E AS LUTAS DE CLASSES

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Entrevista de Charles Reeve a Stephane Julien e Marie Xaintrailles

ARTIGOS ANTICAPITALISMO PARA O SÉCULO XXI Um breve panorama da nova crítica do valor Joelton Nascimento

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ESTAMOS PERDENDO! Do altermundialismo à indignação multitudinária: balanço da resistência global quinze anos após Seattle Raphael F. Alvarenga

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A CATÁSTROFE COMO MODELO Agronegócio, crise ambiental e movimentos sociais durante o decênio 2003-2013 André Villar Gomez Marcos Barreira

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SOCIALISMO OU BARBÁRIE? Daniel Cunha

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A ESPUMA, A ONDA E O MAR DA REAÇÃO Cruzando o fantasma autoritário brasileiro Bob Klausen

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O OTIMISMO E O PÊNDULO O duro aprendizado de caminhar em terreno movediço Douglas Anfra

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DESTINOS DO ÓDIO SOCIAL E A ENCRUZILHADA DA ESQUERDA Bruno Klein

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“FOGO AMIGO” A incubadora petista da avalanche conservadora Paulo Marques

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PASSEIO PELAS GREVES PARANAENSES DA EDUCAÇÃO EM ALGUMAS NOTAS G. Émeutes

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SOBRE A MAIORIDADE PENAL Uma ação preventiva do capital Atanásio Mykonios

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GERAÇÃO SARRAZIN Breve esboço da gênese da nova direita alemã Tomasz Konicz

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ESTADO DE PESTE / ESTADO DE SÍTIO Para reler A peste, de Camus Cláudio R. Duarte

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O QUE É UM COLABORADOR? Jean-Paul Sartre

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MISÉRIAS DO PRIMITIVISMO Resenha de Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins Daniel Cunha

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COMUNIZAÇÃO NO PRESENTE Théorie Communiste

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OS MOVIMENTOS INDIGNADOS E AS LUTAS DE CLASSES Entrevista de Charles Reeve a Stephane Julien e Marie Xaintrailles

Charles Reeve é o pseudônimo de Jorge Valadas, português exilado na França desde os anos 60, após desertar do exército colonial português. É autor de várias obras de reflexão política de tendência libertária, participante nos Cadernos de Circunstância (1969-71) e no jornal Combate (1974-78). Nesta entrevista são abordadas as lutas operárias na China e a crise capitalista atual e as suas consequências qualitativas para as lutas sociais, em especial os novos movimentos dos ―Indignados‖.

Você escreveu vários livros sobre o capitalismo de Estado chinês. A China se converteu em uma potência comercial no capitalismo mundializado. Alguns o explicam pela não-convertibilidade de sua moeda e seu regime repressivo. Por outro lado, há lutas operárias, ou ao menos é o que se diz. Na ausência de sindicalismo independente, as greves são sempre selvagens ou a situação é mais complexa? São sempre lutas reduzidas a uma única empresa ou existem formas de coordenação ou de extensão a setores produtivos ou cidades? Para começar... pode haver sindicalismo independente e greves selvagens. Uma greve é selvagem em relação à estratégia da burocracia sindical, ainda que esta seja independente dos partidos. E um sindicato independente que funciona segundo o princípio da negociação e da cogestão se opõe a toda ação autônoma dos assalariados que possa incomodar a sua natureza ―responsável‖ e ―realista‖. A greve selvagem é uma ação que mostra que os interesses dos trabalhadores não coincidem necessariamente com os objetivos do sindicato, instituição negociadora do preço da força de trabalho. Inversamente, houve na história do movimento sindical greves selvagens com objetivos

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reacionários, às vezes até racistas, como nos Estados Unidos e na África do Sul. Na China a situação é certamente complexa. O sindicato único (ACFTU, All China Federation of Trade Unions) está ligado ao partido comunista e fez o papel de polícia da classe trabalhadora durante e após o maoísmo. Depois da ―abertura‖ (ao capitalismo privado), se converteu em uma gigantesca máquina de gestão da força de trabalho a serviço das empresas, incluindo as empresas estrangeiras nas Zonas Econômicas Especiais. Está totalmente desacreditado entre os trabalhadores. Ele é percebido como polícia e como apêndice da direção das empresas. Há alguns anos a burocracia do Partido Comunista fez esforços para restituir algo de sua credibilidade ao sindicato. Por exemplo, foram feitas campanhas demagógicas para ―organizar‖ os mingong, ou seja, para introduzir certo controle do partido nessas comunidades operárias marginalizadas, formadas por imigrantes do interior sem papeis dentro do seu próprio país. Mas não houve nem efeitos e nem consequências e a imagem do ACFTU entre os trabalhadores não mudou. Às vezes o poder central pressiona para que as instâncias do ACFTU se posicionem contra esta ou aquela direção de uma empresa de capital estrangeiro. Por outro lado, em lutas recentes se voltou a ver os capangas do sindicato atacarem os grevistas e piquetes em defesa dessa mesma empresa. Isso prova que essa organização, pela sua natureza, segue sendo, no fundo, reacionária e está ao lado do poder, de todos os poderes. Curiosamente, algumas organizações de espírito sindicalista independente, tais como a China Labour Bulletin (Hong Kong, http://www.clb.org.hk/en) continuam, na contracorrente e contrariamente ao que eles mesmos analisam, falando de uma possível transformação do sindicato único em um ―verdadeiro sindicato‖ de tipo ocidental. Se apoiam na atitude de alguns burocratas locais e regionais (sobretudo no sul, em Guangdong) que tentam desempenhar um papel negociador a fim de apaziguar a explosiva situação existente. Os militantes dessas organizações independentes (como o China Labour Bulletin) compartilham a visão tradicional do movimento operário. Para eles, a organização ―natural‖ dos trabalhadores é o sindicato, e apenas o sindicato pode expressar a consciência dos trabalhadores, que sem a ajuda dos ―políticos‖ não pode superar a consciência meramente sindicalista. Conhecemos o discurso. São os

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valores e princípios do velho movimento operário que se aferra à velha ideia socialdemocrata. Na China não existe sindicalismo independente, e não existirá enquanto a forma política do Partido-Estado perdurar. Considerando a força do movimento grevista há anos, a ausência de organizações criadas a partir da base explica o grau de repressão do poder. E todas as greves são, por definição, selvagens, pois devem ser feitas sem autorização e controle do ACFTU. Pois bem, todo movimento, toda luta, implica uma organização, princípio da luta operária. Na China, nos encontramos com organizações efêmeras, comissões de greve informais, formadas pelas trabalhadoras e pelos trabalhadores mais militantes. Essas organizações sempre desaparecem depois da luta. A maior parte do tempo, os trabalhadores mais ativos e valorosos pagam caro; são presos, desaparecendo no universo carcerário. Existe a impressão, faz algum tempo, de que o poder está mais tolerante, menos feroz na repressão. Essas organizações informais não são reconhecidas, mas são menos reprimidas. Essa mudança de atitude corresponde à crise profunda e complexa da classe política chinesa, de suas divisões internas. Uma das facetas dessa crise é a fratura existente entre os poderes locais e o poder central, chegando este último por vezes a apioar os grevistas para debilitar os potentados locais. Por sua parte, também os grevistas tentam atuar sobre essas divisões e antagonismos para satisfazer as suas reivindicações. E o sindicato único, atravessado pelas divisões e frações do poder político, está cada vez mais paralisado. A última tentativa de criação de uma estrutura operária permanente, de espírito sindicalista e independente do Partido Comunista, data de 1989, quando da Primavera de Pequim, com a constituição da União Autônoma dos Operários. O massacre de Tiananmen, em 4 de junho, golpeou particularmente esses militantes. 1 Hoje existe uma rede de ONG's, criadas majoritariamente em Hong Kong, que preenchem o vazio e desempenham um papel sindical, evitando com precaução

Charles Reeve e Hsi Hsuan-wou, Bureaucratie, bagnes et business, Insomniaque, 1997. http://www.insomniaqueediteur.org/publications/bureaucratie-bagnes-et-business 1

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qualquer confronto político com o poder.2 Até recentemente as lutas operárias ficavam bastante isoladas em empresas ou regiões. Não obstante, é preciso relativizar esse isolamento e reconhecer que a situação muda. Isolamento não quer dizer separação. Há uma unificação que se realiza mediante reivindicações comuns, pela consciência de compartilhar o enorme descontentamento social, de pertencer à sociedade dos explorados, de opor-se à máfia do poder e dos capitalistas vermelhos. O papel das novas tecnologias, da blogosfera em particular, é primordial.3 Quase estaríamos tentados a dizer que as informações circulam hoje mais depressa na China do que em sociedades de ―informação livre‖ como as nossas, onde se pode dizer e saber tudo e não se diz nem se sabe de nada; onde a informação está submetida ao consenso do que é ―importante‖, do que se considera ―informação‖. Na China, graças à rede das novas tecnologias, uma luta importante, uma revolta popular ou manifestações contra uma fábrica poluidora são rapidamente compartilhadas por centenas de milhares de trabalhadores. Não é habitual que existam ―forma de coordenação‖, e as que existem são totalmente clandestinas. Não obstante, hoje podemos constatar uma nova tendência nessas lutas: a sua extensão. Há algum tempo as lutas saem rapidamente das empresas e se dirigem aos centros de poder local, locais do partido, polícia, tribunais... Igualmente observamos como se estendem e generalizam as lutas nas zonas industriais. Aumenta a solidariedade de classe e há trabalhadores que se deslocam para apoiar os que lutam em outro lugar. A presença dos mingong, comunidades de trabalhadores sem direitos, violentamente explorados, desempenha um papel importante nessa extensão. É um processo em curso, vivido muito conscientemente, e muito político, no sentido de que transborda rapidamente das reivindicações imediatas e enfrenta os órgãos de repressão e de decisão da classe dirigente. Político também no sentido de que essas lutas expressam o desejo de uma sociedade diferente, de uma sociedade não desigual, não repressiva, não controlada pela máfia Pun Ngai, Avis au consommateur, Insomniaque, 2011. http://www.insomniaqueediteur.org/publications/avis-au-consommateur 3 Les mots qui font peur, Insomniaque. http://www.isomniaqueediteur.org/publications/avis-au-consommateur 2

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do partido. Com efeito, o projeto democrático parlamentar de tipo ocidental, defendido por correntes dissidentes, pode fincar raízes. É inevitável e lógico. Que possa impor-se, encerrando toda perspectiva de emancipação social, também é possível. Tudo depende, em última instância, da amplitude e radicalidade dos movimentos sociais.

Na nota biográfica sobre Paul Mattick (pai) que publicou em “Marxisme, dernier refuge de la bourgeoisie?”, você fala de um “esgotamento do projeto keynesiano”. É mais ou menos o que dizia Pierre Souyri em seu livro póstumo e inacabado “La dynamique du capitalisme au XX siècle”: a utilização do Estado para “domar” a luta de classes e dinamizar o investimento e a produção não sobreviveu aos avatares da crise petrolífera e à mobilidade mundial do capital. Desde então o Estado parece ter se tornado o alvo. Mas não se veem sinais do esgotamento do projeto neoliberal que substituiu o keynesianismo, quando as populações resistem aos excessos privatizadores dos serviços e os capitalistas têm as suas reservas sobre o capital fictício a partir da crise de 2008? É uma ótima ideia partir de Paul Mattick4 para voltar a falar de Pierre Souyri.5 Dois teóricos próximos, apesar dos caminhos diferentes e dos distintos contextos históricos. Os dois são bem pouco conhecidos, quase nunca estudados, ignorados fora de pequenos círculos radicais. Souyri ainda menos que Mattick, apesar de ter uma carreira universária depois da sua participação em Socialisme ou Barbarie (onde assinava como Pierre Brune). Souyri era sensível às ideias de Mattick, de quem era leitor atento. O seu livro póstumo La dynamique du capitalisme au XX siècle (Payot, 1983) passou quase desapercebido e quase nunca é citado. Mattick e Souyri compartilham a mesma teoria da crise capitalista, fundada sobre a queda da rentabilidade do capital e as dificuldades de extração de mais-valia necessária para a acumulação. Ambos consideravam que, ao contrário do que

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Paul Mattick (1904-1981): http://bataillesocialiste.wordpress.com/mattick-1904-1981 Pierre Souyri (1925-1979): http://bataillesocialiste.wordpress.com/souyri-1925-1979

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mantinha a maior parte das correntes do marxismo radical (em relação à socialdemocracia), o problema que a acumulação capitalista enfrenta é o da extração de mais-valia, e não o da sua realização. Eles se distinguiram daqueles que explicam a crise a partir do subconsumo, que eram e seguem sendo, no essencial, marxistas keynesianos... ou keynesianos marxistas. As ideias defendidas por Mattick formam parte de uma corrente mais ampla, da qual fazem parte, entre outros, Souyri na França e Tony Cliff na Grã-Bretanha. Souyri via na crise petrolífera de 1974 o indício de uma inversão no ciclo da acumulação capitalista ocorrido depois da guerra.6 Em Le jour de l'addition7, Paul Mattick filho (que foi companheiro político de seu pai, outro ponto em comum com Souyri pai e filho...) demonstra igualmente como a crise de 1974 significou um giro a partir do qual o capitalismo tentou superar a sua crise de rentabilidade mediante o recurso constante e crescente do endividamento. Para Souyri, o marxismo clássico (a socialdemocracia e a sua esquerda bolchevique) subestimou as transformações do capitalismo e a sua capacidade de integrar a classe trabalhadora. Por sua parte, Mattick analisou incessantemente o papel que desempenhavam as organizações do marxismo clássico nessa integração. O debate sobre a função e os limites do keynesianismo parte de constatar dita subestimação. Souyri se interessou pela questão da transição ao capitalismo planificado, onde o Estado interviria não apenas para corrigir os desequilíbrios da acumulação, mas também conduziria uma economia racionalizada. Sabemos que essa ideia é compartilhada por eminentes teóricos da socialdemocracia, como Hilferding. Para Souyri, essa transição tornaria necessária a integração capitalista do proletariado, já que a persistência da luta de classes tornaria impossível a planificação. E é por isso que, nos anos 70, pensava poder concluir que essa transição, essa capacidade do Estado para planejar a economia, não ocorreria. ―La Crise de 1974 et la riposte du capital‖ Annales, nº 4, 1983 http://bataillesocialiste.wordpress.com/2010/06/18/la-crise-de-1974-et-la-riposte-du-capital-souyri1979-1-linflation-et-lattaque-contre-les-salaires 7 Em Le Jour de l‟addition (Insomniaque, 2009) http://www.insomniaqueediteur.org/publications/le-jour-de-laddition Uma versão ampliada desse texto foi publicada nos Estados Unidos em 2012, editada pela Reaktion Books, e na Alemanha, pela Edition Nautilus. 6

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Como podemos confrontar essa ideia com o período atual? Mais do que integrado, o proletariado atual está cambaleante, devido às medidas de reestruturação capitalista. A classe capitalista não endossa esse projeto de racionalização da economia; voltou, antes, a ideia do laissez faire, da mão invisível do mercado. Portanto, é preciso voltar a colocar a questão sobre outras coordenadas. É o que fazia Souyri, para quem, para além dos antagonismos de classe, há um ―problema mais profundo: o da rentabilidade do capital e sua decadência‖ (La dynamique du capitalisme au XX siècle, p. 29). De outra parte, Souyri afirmava que a ação reguladora do Estado só foi possível em períodos de crescimento, e que quando ele se interrompia os limites da intervenção do Estado se tornavam visíveis, ―... os primeiros sintomas da desestabilização do sistema permitem estabelecer que as verdadeiras barreiras que fazem frente à acumulação contínua do capital são aquelas que limitam a extração de uma quantidade suficiente de mais-valia‖ (p. 30). ―A crise de 1974 demonstra com clareza que a planificação de um crescimento contínuo é um mito que desaba assim que a taxa de crescimento se contrai‖ (p. 38). Portanto, é no problema da rentabilidade e da queda tendencial da taxa de lucro do setor privado que se deve procurar o esgotamento do projeto keynesiano, de suas veleidades reguladoras do capitalismo. Aqui Souyri converge com a análise dos limites da economia mista analisados por Mattick. Para Souyri e para Mattick ―a rentabilidade do capital privado sofreu uma erosão gradual que lhe retirou a capacidade de autoexpansão‖ (p. 35). O que Keynes também reconhecia, e por isso pretendia contribuir com uma ―solução‖ capaz de evitar uma possível ruptura social e os seus perigos

revolucionários.

Pois

bem,

argumenta

Mattick,

essa

―solução‖,

o

intervencionismo econômico, faz desaparecer as condições mesmas que a torna eficaz, se converte no novo problema. O crescimento da demanda através da intervenção do Estado atua sobre a produção global sem chegar a restaurar a rentabilidade do capital privado e tampouco a continuidade da acumulação. Aumenta o endividamento e coloca ainda mais peso na insuficiência dos lucros privados. Hoje, enquanto vivemos os efeitos de uma profunda crise do capitalismo, os debates sobre a sua natureza são raros ou se desenvolve em meios secretos. Ainda se fala em ―crise monetária‖ sem explicá-la. A crítica do keynesianismo vem

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essencialmente dos neoliberais. E as vozes que se apartam do discurso oficial são de economistas neokeynesianos. Esse é o caso, na França, do círculo Les économiste atterrés ou de Fréderic Lordon, cujos discursos ocupam um lugar central na esfera de influência pós-ATTAC e no Le Monde Diplomatique. Em um de seus últimos artigos, Lordon propõe ―um grande compromisso político, o único que pode tornar o capitalismo temporariamente admissível, o mínimo que deveria reivindicar uma linha socialdemocrata minimamente séria (...)‖, que no essencial se resumiria na aceitação da desestabilização criada pelo capitalismo em troca de um compromisso dos capitalistas para ―assumir danos colaterais‖, ―fazer o capital pagar o preço das desordens que ele recria incessantemente na sociedade com as suas relocalizações e reestruturações‖. Esse ―grande compromisso‖ neo-socialdemocrata seria uma pálida cópia daqueles do passado; nem sequer se trata de ―corrigir‖ ou ―evitar‖ as crises, mas de ―viver com elas‖ e de ―pagar pelas desordens‖ engendradas pelo sistema (Fréderic Lordon, ―Peugeot, choc social et point de basculhe‖, Le Monde Diplomatique, agosto 2012). Frente a essa ruína programática da ―esquerda‖ se pode medir a importância da obra de Paul Mattick e da sua crítica do keynesianismo de um ponto de vista anticapitalista. Escreve Souyri: ―Entre uma economia onde o setor público está limitado e subordinado ao capitalismo monopolista e uma economia onde o setor estatal é predominante enquanto o setor privado tende a ser residual, existe uma diferença quantitativa que tende a ser qualitativa. A sociedade burguesa não pode estatizar completamente a economia sem deixar de ser sociedade burguesa‖ (Ibid., p. 18). Esse debate, sobre a dinâmica do capitalismo e sua evolução possível em direção a uma forma de capitalismo de Estado também está presente na obra de Mattick. Ele considerava que os limites da economia mista podem colocar, no longo prazo, o problema da expropriação do capitalismo privado pelas deduções do Estado, transferências de lucros privados para o setor público. Tal dinâmica não pode deixar de gerar a oposição da classe burguesa. E a ―diferença qualitativa‖ suscita uma questão política importante. O neoliberalismo atual é uma recriação ideológica militante frente a essa tendência e esse perigo; é o reconhecimento pelos economistas burgueses dos limites da economia

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mista. Porém, e apesar do impacto desse discurso antikeynesiano, o nível da intervenção do Estado desde o final da Segunda Guerra nunca foi tão alto. E, como destacava Mattick, a diminuição dessa intervenção conduz as economias à recessão. A asfixia do projeto neoliberal se encontra nessa margem estreita entre a ausência de ―capacidade de autoexpansão‖ do capitalismo privado e a impossibilidade de continuar aumentando a intervenção do Estado na economia. Assim sendo, esse perigo que ameaça a sociedade burguesa explica que os capitalistas privados não possam contemporizar com as tendências intervencionistas. E que as tendências políticas neoliberais não cedam. No longo prazo, a sobrevivência da burguesia depende disso. O Estado não é a sua presa, ele segue sendo a sua instituição política, da qual se servem para saquear o conjunto da economia, para salvaguardar e fazer funcionar as redes de especulação, para apropriar-se dos benefícios sem, para isso, reativar a acumulação. Não obstante, podemos imaginar uma situação de levante social frente à qual a única forma de preservar o modo de produção capitalista seria uma volta ao intervencionismo generalizado, a uma estatização da economia, onde inclusive a burguesia se alinharia taticamente com um programa ―socialista de Estado‖. Dotando novamente de sentido uma frase de Rosa que Mattick retoma em uma epígrafe de seu último livro: ―A classe burguesa trava o seu último combate sob uma bandeira impostora, a da própria revolução‖. Mas a bandeira da socialdemocracia, do capitalismo de Estado disfarçado de ―socialismo possível‖ está hoje em dia muito desacreditada. A socialdemocracia se extraviou no pântano do neoliberalismo. Tendo em vista o estado de desenvolvimento das sociedades e a experiência histórica acumulada, podemos esperar que tal situação abriria a porta a outras possibilidades, a uma luta pela emancipação social. Mas ainda não chegamos nesse ponto. Nesse momento os capitalistas se assanham para aumentar a taxa de exploração, com a esperança de aumentar substancialmente os lucros e inverter a tendência ao desinvestimento. Mas já em 1974 escrevia Souyri: ―Uma política excessivamente reacionária em matéria de salários poderia fazer crescer no proletariado uma desesperança e uma ira perigosas, sem com isso modificar sensivelmente a taxa de lucro de uma maneira positiva‖ (―La crise de 1974 et la riposte du capital‖, ibid). É a situação na qual nos encontramos hoje.

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Se a depressão das economias se aprofunda, isso provocará a desorganização das sociedades. Também as lutas sociais sofrerão uma modificação qualitativa. A resistência não será suficiente, a subversão da antiga ordem social aparecerá para alguns como uma necessidade. Do ponto de vista do capitalismo, visto o nível de acumulação a que se chegou, para reestabelecer a rentabilidade será necessário algo mais do que a superexploração, uma destruição gigantesca de capital e de força de trabalho. As guerras isoladas, delimitadas, como as que estão acontecendo, não serão suficientes, enquanto o capitalismo, com a sua tecnologia nuclear, se encontra a partir de agora frente à sua capacidade de autodestruição. Estamos assistindo ao alvorecer de um longo período no qual o capitalismo voltará a demonstrar a sua periculosidade como sistema. Ainda não somos capazes de imaginar as consequências políticas. A alternativa ―emancipação social ou barbárie‖ volta a colocar-se em evidência. As formas que adotará um possível movimento emancipador serão novas, assim como as da barbárie política, pois tampouco são atuais as do velho fascismo, sistema político e social da contrarrevolução, variante totalitária do intervencionismo de Estado. Ler hoje em dia Mattick e Souyri, entre outros, pode nos ajudar a discernir onde nos encontramos e os caminhos a evitar.

As mobilizações atuais contra as medidas de “austeridade”, sob formas diversas, como o movimento “Occupy” nos Estados Unidos ou os “indignados” em outros países, constituem, para você, uma nova forma da luta de classes? De maneira mais geral, como você analisa as reações dos trabalhadores frente às consequências da crise capitalista que as classes dirigentes nos fazem sofrer? Podemos começar pelo final. Na Espanha, em 2011, os bancos arrancaram de suas casas entre 160 e 200 pessoas por mês, evidentemente com a ajuda da polícia. Esses números continuam aumentando. Ao mesmo tempo, o número de despejos impedidos pelas mobilizações coletivas foi da ordem de um por dia. Se a desproporção é enorme, isso não desfaz o fato de que existe um forte movimento de oposição aos despejos. A partir daí ocorrem articulações com o desenvolvimento de ações de

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trabalhadores na rua para ocupar – ―liberar‖, como dizem – imóveis vazios que pertencem a bancos e sociedades imobiliárias. Grandes propriedades agrícolas (pertencentes à agroindústria ou aos bancos) começam também a ser ocupadas pelos assalariados agrícolas e desempregados, sobretudo na Andaluzia, na província da Córdoba. Essas ações diretas são exemplos de novas formas de ação realizadas por trabalhadores que sofrem diretamente os efeitos das políticas de austeridade. Na Europa, o caso espanhol é, sem dúvida, onde as lutas estão se radicalizando mais. E essa radicalização, a popularidade dessas ações, não podem ser separadas do impacto dos movimentos dos indignados, na Espanha no 15M. Nos Estados Unidos, onde o movimento Occupy foi esmagado por uma forte repressão do Estado federal e das autoridades locais, os grupos locais que ainda se reivindicam como Occupy estão empenhados, igualmente, na luta contra os despejos nos bairros populares. Essas lutas se caracterizam porque saem do marco puramente quantitativo da reivindicação imediata. Se dirigem contra a legalidade e colocam a questão da necessária reapropriação das condições de vida para aquelas e aqueles que fazem funcionar a sociedade. Os movimentos dos Indignados percorreram o seu caminho, com diferenças e contradições, segundo as condições específicas de cada sociedade. Estão cheios de contradições e ambiguidades, mas são diferentes de todos os que conhecemos antes. Onde a sua dinâmica foi mais intensa, onde o movimento conseguiu ocupar por mais tempo o espaço público, na Espanha e nos Estados Unidos, as divergências acabaram tomando uma forma organizada, entre reformistas e radicais. Progressivamente, esta última tendência, oposta ao eleitoralismo e à negociação, investiu a sua energia e a sua criatividade em ações diretas, como o apoio a greves e ocupações de edifícios vazios, ações contra os despejos, contra os bancos. Se diferenciam de formas de ação precedentes, incorporam os becos sem saída e as derrotas do passado recente, discutem os princípios do compromisso e das táticas de negociação. Muito críticos da classe política e da corrupção e ela associada, questionam, de forma mais ou menos extrema, os fundamentos mesmos da democracia representativa. Buscam novas vias, se interrogam sobre a prioridade do enfrentamento físico com os

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mercenários do Estado e são particularmente sensíveis à necessidade de ampliar o movimento. Duvidam dos projetos de gestão do presente, rechaçam a lógica produtivista capitalista atual e colocam a necessidade de uma sociedade diferente. 8 Essas preocupações são claramente antinômicas da atividade consensual e normativa das instituições partidárias e dos sindicatos tradicionais. A energia criativa liberada por esses movimentos propiciou a sua extensão social, às vezes para além do que se poderia prever. Um exemplo recente: o grande movimento estudantil que está sacudindo a sociedade do Quebec, apesar de ter começado com simples reivindicações corporativas.9 Entre as ideias aportadas por esses movimentos, a da Ocupação parece ter encontrado amplo eco. Assim como a proposta segundo a qual os interessados devem atuar diretamente, por si mesmos, para eles próprios, para resolver os seus próprios problemas. A insistência posta na organização de base foi um elemento motor desses movimentos, pela constituição de coletividades não hierárquicas, que desconfia das manipulações políticas, insubmissas ao carisma dos chefes. Quando a imprensa mais contemporizadora (Paris Match e Grazzia, para citar apenas dois exemplos recentes) se interessa de maneira paternalista pelos Indignados, é para lamentar que se tenham distanciado da vida política tradicional e tenham rechaçado munir-se de chefes, carências que, evidentemente, são apontadas como a causa principal do seu fracasso. Nos Estados Unidos o impacto do movimento Occupy e suas ideias foi enorme, e é muito cedo para analisar o seu alcance e as suas consequências. 10 Se de início afetou sobretudo os jovens estudantes-trabalhadores precários, que constituem uma fração crescente da ―classe trabalhadora‖ em termos sociológicos, o movimento atraiu em seguida, como na Espanha, a grande massa de precarizados do capitalismo contemporâneo, de excluídos, sem teto e outros itinerantes da vida. Em muitas cidades grandes eles ao final constituíam uma parte importante dos acampados na rua. Mas o

Grupo Etcétera, ―A propos du caminar indignado‖, Barcelona, março de 2012, publicado em Courant Alternatif, maio 2012: http://oclibertaire.free.fr/spip.php?article1177 9 ―La grève étudiante québécoise générale et illimitée: quelques limites en perspective‖. http://oclibertaire.free.fr/spip.php?article1215 10 Charles Reeve, Occupy, cette agaçante interruption du “business as usual‖. http://www.article11.info/?Occupy-cette-agacante-interruption#a_titre 8

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Occupy também cativou os setores mais combativos do movimento operário, os sindicalistas de base. Isso diz muito sobre o estado de desenvolvimento no qual se encontram os trabalhadores conscientes do beco sem saída do sindicalismo frente à crise e à violência do ataque capitalista. O mote ―we are the 99%‖, para além do seu simplismo redutor, destroçou a expressão ideológica da ―classe média‖, categoria na qual se havia integrado todo assalariado, todo trabalhador com nível médio de consumo, obviamente a crédito. Revelou igualmente a tendência atual do capitalismo, a concentração da riqueza e do poder em uma ínfima parte da sociedade. Assim, portanto, depois do Occupy, os conceitos de exploração, de classe, de sociedade de classes voltaram à superfície do discurso público. Em um vasto território-continente como os Estados Unidos, onde conflitos, greves, mobilizações estavam cada vez mais separados uns dos outros, a palavra Occupy constitui a partir de agora uma referência unificadora em toda luta local ou setorial. A ocupação da rua não é a ocupação de um local de trabalho. Mas nos Estados Unidos e na Espanha, o espírito do Occupy e do 15M contaminou o ―mundo assalariado‖. Encontra eco nos trabalhadores conscientes o fato de que a luta sindical do passado não aspira a derrocada, nem mesmo o enfraquecimento dos movimentos do capitalismo e das decisões agressivas dos capitalistas. O seu único objetivo diante da decadência dos setores industriais é lograr um salário melhor, vender a própria pele por um bom valor. Nesse sentido, a luta dos trabalhadores da Continental é um exemplo. Empenhar-se para tornar viável uma empresa qualquer, um setor qualquer, só leva ao adormecimento das vítimas. A ideia de ―autogestionar‖ uma empresa isolada parece hoje mais irrisória, dada a mundialização do capitalismo. Veremos que forma e conteúdo terá a luta futura na indústria automobilística francesa; se conseguirá unificar outras lutas, outros setores onde a classe capitalista golpeará. Em um primeiro momento o governo e os sindicatos se limitam a um discurso de ―reestruturação‖, ainda que o setor automobilístico esteja submetido a uma competição mundial nos mercados já saturados. Os militantes da esquerda sindical (a última tarefa histórica dos trotskistas!) farão o que sabem fazer e sempre fizeram: criar um comitê de luta, ter acesso aos livros da empresa e reivindicar a proibição das demissões. Para além disso,

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não têm nada a dizer, ou se autocensuram por considerações táticas sobre o sentido social, humano e ecológico da produção de automóveis e sobre como e por que salvaguardar tal lógica, uma produção que consome os homens e as sociedades. Podemos, é claro, criticar os movimentos dos Indignados, ressaltar as suas contradições e ambiguidades. Mas como podemos comparar esses movimentos que sacodem por alguns meses as sociedades modernas, com o estado letárgico das lutas operárias, onde atualmente não aparece a menor proposta alternativa, a menor ideia de um mundo diferente, a não ser a resistência e o desejo de uma volta ao passado recente, o mesmo que disparou o estado presente? Os movimentos Indignados são ―uma nova forma de luta de classes‖? São, efetivamente, uma forma de luta que corresponde ao período atual da luta de classes. Despertam a sociedade e os explorados mais conscientes fazendo-lhes ver os perigos do capitalismo, da necessidade de abandonar a litania clássica da reivindicação imediata para colocar questões sobre o futuro da sociedade. O movimento operário está velho e não pode oferecer nem oposição e nem alternativa aos ataques capitalistas em curso. Está morrendo, e é vão querer remediá-lo. É preciso construir um novo movimento a partir das lutas daquelas e daqueles que se demarcam dos velhos princípios e formas de ação. Isso levará algum tempo. O Occupy e o 15M, entre outros, abriram caminhos, formas de ação. O trabalho da toupeira fará o resto. É apenas um breve adeus, e as formas e conteúdos desses movimentos reaparecerão transformados, em outro lugar e outro momento, em outros movimentos, com novas dinâmicas.

(Entrevista concedida em 15 de agosto de 2012, publicada originalmente em: La Bataille Socialiste: (https://bataillesocialiste.wordpress.com/2012/08/16/entretien-avec-charles-reeve/) e Trasversales 27: (http://www.trasversales.net/t27reeve.pdf ) . (Traduzido da versão em espanhol por Daniel Cunha.)

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