Cantos de Chuva publicado

May 22, 2017 | Autor: F. Costa P Resende | Categoría: História Oral, Memória social, Religiosidade popular, Preservação das Tradições
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ARTIGO

CANTOS DE CHUVA1

FERNANDA ELISA C. P. RESENDE*

Resumo: antes de 1952, na cidade de Correntina, região oeste da Bahia, ocorria um evento de caráter religioso e popular, rico de simbolismos e tradição, que eram as novenas para pedir chuva. Dessa manifestação popular, permaneceu na memória dos antigos moradores o que eles chamam de Cantos de Chuva. Vivo apenas nas letras dos cantos e das rezas, o ritual foi reconstituído a partir da reunião de pessoas dessa cidade, com o objetivo de fazê-las recordar de suas infâncias, das cantigas e fatos presos apenas na memória. A conclusão é queesse rico ritual fez parte, não somente do folclore local, mas do conjunto de bens intangíveis que constituem o patrimônio imaterial daquela comunidade. Palavras-chave: Cantos de chuva.Religiosidade popular. Memória oral. Folclore.Patrimônio imaterial. UM EVENTO NA MEMÓRIA

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ada uma das manifestações religiosas e folclóricas identificadas hoje no Brasil traz em seu conteúdo uma síntese de usos e costumes antigos de diversas origens. De uma forma

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Quando ocorriam longos períodos de estiagem, o povo buscava clemência divina. Quando não chovia, ele sofria, vendo minguar a vida dia-a-dia, pois que vivia da mão para a boca... (Hélvertom Baiano2)

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geral a base religiosa de todas as tradições brasileiras se situa longinquamente no passado, antes mesmo de serem trazidas de Portugal e terem se misturado, na constituição da cultura brasileira. São elementos de origem grega, romana, egípcia e outras, ainda observados como traços persistentes, que teimam em permanecer ditando regras e delineando o caminho de populações no interior do país. Dentre estes costumes populares, um em especial chama a atenção: as novenas, cantos e preces para pedir chuva. Essa manifestação, que ainda ocorre em locais pontuais do Brasil, aqui é apresentada como parte da memória de um grupo de idosos que, na tentativa de se recordarem de suas infâncias, da vida e trabalho no campo, conseguiram remontar e contar como era um dos rituais do tempo de seus pais e avós, já quase esquecido. Morais Filho (1999), pesquisador do final século XIX, descreveu essa mesma manifestação ocorrendo no antigo Rio de Janeiro, nas vilas e povoados pelo interior do Estado. Mas, apesar de apresentarem a mesma função, os rituais eram bem distintos. O ritual por ele descrito aparece como ato de penitência e iniciativa da Igreja que instigava os fiéis ainiciá-lo. Resguardadas as devidas diferenças, como o fato de ser por ele descrito como uma manifestação de multidões, com a presença de inúmeros símbolos que não aparecem neste evento aqui levantado, o ato tem como caráter principal rogar a Deus e aos Santos pelo apaziguamento de um sofrimento que atingia toda a população, a seca. Em síntese,para melhor compreensão, o evento constituía-se de procissões ricamente melódicas e religiosamente ornamentadas, que ocorriam no tempo de estiagem, quando a população, tendo como meio de produção a agricultura e revestidos de grande devoção e tradição religiosa, organizava ardorosas demonstrações coletivas de fé, resignação e ditosa clemência. Ainda assim, eram manifestações festivas e que celebravam a vida. Para que não conste apenas a descrição minuciosa da tradição, assim tornando-a um procedimento habitual do

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campo dos estudos do folclore, este trabalho traz abordagens que dão às manifestações populares um sentido de nacionalidade, levando em consideração a sociedade e a história na qual o evento se insere. O que se segue, é a descrição e análise de um antigo rito religioso comum a algumas comunidades brasileiras, sobretudo da caatinga e em sua divisa com o cerrado, onde a seca castiga o solo e mata plantas e animais, levando a população ao sofrimento. Os aspectos exóticos e tradicionais foram observados dentro de um contexto cujo sentido é mostrar a dinâmica do cotidiano popular, onde as aflições e necessidades advindas de um trabalho sofrido expressam ainda uma condição de opressão e dominação. Preces para pedir chuva,aqui descritas, ocorriam anualmente em Correntina, Região Oeste da Bahia, centro do Brasil. Pelas lembranças, a última manifestação aconteceu em 1952 ou 1953. De lá para cá ficaram apenas as letras dos cantos e de uma ladainha em latim, guardadas na memória de um grupo que conduz outra manifestação religiosa, hoje peculiar do local, que é a Encomendação das Almas3, que ocorre no período da quaresma. Ao acessar esse grupo para a coleta de informações acerca dessa devoção, surgiram ainda outras memórias, que reunidas permitiram a descrição da manifestação chamada de Novenas de Chuva ou Cantos de Chuva. Dos relatos colhidos,observou-se que nos períodos de janeiro e fevereiro, quando a seca se intensificava, o sol ficava muito mais intenso e o céu completamente azul, sem nenhum sinal de nuvem. O nível do Rio das Éguas, que corta caudalosamente a cidade, baixava muito e as “pedras de lavar”4 ficavam distantes da água. Nas casas, as cisternas começavam a secar, e dos campos, se tinha notícias de que a seca matava as plantações e os animais, ameaçando e avisando que poderia também atingir os homens, caso a situação perdurasse. Os fins de tarde pareciam fornalhas, com um vermelho intenso no horizonte, prenúncio de mais uma noite quente e seca. Nos

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“Gerais”,5 o mato se incendiava sozinho e, as cinzas, atingiam a cidade trazendo o cheiro da desolação. No entendimento geral, havia chegado o tempo do povo se lembrar do mau que podia ter feito e que fazia com que a natureza se irritasse, castigando os viventes. Tempo de se voltar mais a Deus e aos santos e pedirpor clemência. Moraes Filho (1999) relatou tradição semelhante ocorrendo em uma época ainda mais remota, desde o tempo da colônia até meados do século XIX. Descreveu que os sacerdotes e vigários das freguesias geralmente iniciavam esse período de penitências instigando o povo para as novenas. A exortação dos fiéis se estendia, outras igrejas faziam o mesmo e pequenos grupos saíam, iam se encontrando e, ao longo das tardes, multidões se formavam em romaria. Ele relatou ainda, que havia presença de situações de flagelação, açoitamentos de fiéis que se castigavam em busca de aplacar o castigo dos céus por meios das humildes demonstrações e dos dolorosos sacrifícios. Pierson (1959) e sua equipe de pesquisadores, na obra O Homem no Vale do São Francisco (1972),percorrendo a região do rio São Francisco, durante a década de 1950, também descreveu manifestação semelhante com as mesmas características de penitência. Diferentemente, em Correntina há relatos de que a população se organizava sozinha.As mulheres, mais velhas e mais religiosas, sinalizavam para o início das novenas, indicando quando deveriam reunir os vizinhos para o início das procissões. Na data escolhida saiam de suas casas e,à medida que iam andando, iam chamando mais pessoas, até constituírem o grupo. H.Baiano( 1996) descreve: Em fila, mulheres e crianças com jarros d’ água na cabeça, à frente carregando um quadro emoldurado ou pequena imagem de santo, percorriam as ruas da cidade entoando cantos sacros, rogando a Deus que mandasse chuva para fazer crescer a plantação...

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...faziam uma grande parada obrigatória no cruzeiro do pé da ponte, onde concentravam rezas, cânticos e orações implorando chuva, confiantes em que o Senhor, após aquele ato, mandaria do céu a riqueza da água, que faz crescer a esperança de continuar vivendo.

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A novena continuava, dia após dia, do mesmo jeito que começara. Para algumas famílias, esse também era um período de jejuns e orações. O grupo recordou ainda de outra situação integrante do mesmo contexto: relataram que algumas mulheres faziam uma brincadeira com os santos para que a chuva caísse mais rapidamente. Elas “roubavam” os santos de uma amiga ou vizinha, os levava para casa e escondia em um armário fechado e escuro. Porém, antes diziam ao santo que ele só retornaria para seu dono e para seu altar quando chovesse. Era uma forma de “castigar o santo” para que o mesmo ajudasse a chuva cair. A pessoa roubada não sabia

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O grupo de pessoas, que no presente relata a manifestação, conta terem sido as mulheres que ainiciavam, mas que a maioria dos integrantes eram crianças, havendo ainda a participação de alguns homens que, eventualmente, acompanhavam suas famílias. Cada pessoa deveria sair de sua casa carregando um jarro ou garrafa cheia de água e com um ramo de flores para depositar aos pés dos cruzeiros. Saíam logo após o almoço, com o sol a pino, todos descalços, inclusive as crianças,percorrendo todos os cruzeiros da cidade. Sobre isso Baiano(1996, p. 126) relata que acidade era cercada por cruzeiros, sendo na época designado por nomes como o “Cruzeiro do Morro da Estrema, do Cancelão, do Cemitério Novo, da Torre,do Bom Jesus, havendo ainda o cruzeiro da porta da Igreja, o do pé da ponte e o da saída para a Chácara”. Assim, o grupo seguia cantando e ao pé de cada cruzeiro fazia uma oração, jogava um pouco da água e depositava flores, seguindo com a procissão.Baiano relata:

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quem o fizera e nem onde estaria seu santo, não tendo como buscá-lo de volta ao lar. Morais Filho (1999) conta que nas manifestações por ele observadas, os santos eram retirados dos altares das igrejas e ficavam ausentes, até cair a primeira chuva. Ao final dos nove dias o milagre: as nuvens se formando e a chuva caindo. Primeiro caindo mansamente e aumentando o volume a cada dia. Contam que na maioria das vezes as novenas eram tão bem sucedidas que poderia chover antes de se completar o período. Como não podiam interromper a novena, ela seguia até o final. Aí, então, caía muita chuva, enxurradas varriam a cidade, as cisternas novamente se enchiam, assim como o rio e as pedras de lavar ficavam quase cobertas. Mas, se a chuva não caísse, a procissão e a penitência tinham de continuar até cair o primeiro pingo. Quando este viesse, precisavam parar de imediato, pois a continuidade traria tempestades de vento, raios e trovões, que destruiriam as casas. Vinha então a festa, todos nas ruas gritando e cantando, tomando banho de chuva e devolvendo, aos donos, os santos roubados. Como as pessoas não sabiam quem lhes roubara o santo, era hora da surpresa: “... estava com você? eu nem imaginava...”; “...eu pensei mesmo que era você quem tinha roubado...”. Assim, seguiam agradecendo e se recompensando dos sacrifícios. Anotações preservadas nos diário de campo (não publicados) colhidas pela equipe do professor Dr. Levy Cruz6, em 1950-52, complementam os dados de hoje, retirados das memórias grupais e individuais na região estudada, preenchendo uma lacuna na memória atual que se têm acerca desse passado. Histórias e explicações que já não pertencem ao conjunto de lembranças dos que hoje relatam a tradição e completam o quadro exposto, como se verifica a seguir: 22/02/1952 – O cortejo de 4 mulheres e umas 10 crianças sai da igreja, mais ou menos ao meio dia. Antes de saírem, ajoelham-se e rezam. Saem cantando. As crianças levam uma garrafa

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O FOLCLORE DOS CANTOS DE CHUVA

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As novenas e cantos de chuva, ainda que de caráter religioso, fizeram parte do folclore da região por abranger um conhecimento coletivo, constituírem uma realidade concreta e dinâmica, que passou por adaptações e transformações, assumindo formas novas, ao longo dos anos de sua existência.

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na cabeça, as moças levam uma imagem ou quadros de santo. Percorrem todos os cruzeiros da cidade. Ao chegarem ao cruzeiro que fica perto da ponte, enchem as garrafas no rio, derramam água no cruzeiro, ajoelham-se e cantam. Persignam-se, levantam-se e vão cantando em direção ao cruzeiro da rua do Riacho. De lá vão a um outro cruzeiro e encerram o ciclo no cruzeiro que fica na Praça da matriz. À frente do cortejo vai um menino (ou menina) carregando uma cruz; uma toalha franjada pende dos braços da cruz. A cruz pertence à igreja. A prece é feita 9 dias seguidos (anotação da estagiária Aparecida.) 24/02/1952 - 11 pessoas ao sair da igreja, o grupo que tem rezado para chover; mais adiante juntou-se mais uma. Todos adolescentes e adultos; hoje não havia criançada dos outros dias. (anotação do Dr. Levi Cruz) 25/2/1952 - O grupo da prece voltou hoje, com cachos de flores amarelas, uma que está dando ultimamente. Algumas levavam as flores enfiadas dentro das garrafas. (anotação do Dr. Levy) 08/03/1952 –Quando é pra fazer a prece eu saio de casa em casa e falo com as meninas ou com os pais. Mas é melhor falar mesmo com os pais porque eles tem a obrigação de mandar elas. Arranjo o menino da cruz (que carrega a cruz). Reunimo na Igreja. Da igreja vomo pro cruzeiro do outro lado (do rio), daí pro cruzeiro da fuzaca (da rua da fuzaca), depois pro cruzeiro do Bom Jesus, depois o cruzeiro das almas (do cemitério), depois pro cruzeiro da igreja (defrente da igreja). Quem quer enche a garrafa em casa, quem quer deixa prá encher no rio. A gente enche no rio e leva pros outros cruzeiros(Anotação da estagiária Aparecida. A depoente se chamava Valderez).

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Segundo André Varagnac (apud PRIORI, 1994, p. 10),“o folclore é um conjunto de crenças coletivas sem doutrinas e de práticas coletivas sem teorias...”. O folclore, como campo de estudo, é alvo de divergências por ser, às vezes, considerado uma ramificação da antropologia, responsável por evidenciar e explicar os elementos simbólicos e rituais das manifestações culturais, demonstrar e revelar todo o conjunto de mitos, crenças, histórias populares, lendas, tradições e costumes que passam através das gerações e constituir a cultura popular, considerada a expressão mais legítima de um povo7. (Revista Jangada Brasil) O Anuário do Folclore (1993) indica que as principais características do fato folclórico compreendem “ser popular e emanar do saber cultural, ter caráter universal e ser oriundo da criatividade livre e espontânea de um povo”. Este Anuário aponta ainda que é necessário que a manifestação: 1- Seja anônima; 2 - Faça parte de um conhecimento coletivo; 3 - Seja transmissível pela oralidade e pela prática; 4 - Constitua-se em uma tradição; 5 - Tenha funcionalidade e se espelhe em uma situação ou ação. Fazendo uma alusão ao que esse Anuário do Folclore salienta, e analisando ponto a ponto, conclui-se que, as novenas e os cantos de chuva constituíram,realmente,um importante fato folclórico, pois respondem aos requisitos preconizados. Os enquadramentos podem ser observados a seguir: 1) Sobre o anonimato, a manifestação claramente não teve autor conhecido. De origem muito antiga, compreendeu fusões de elementos através da história do local e como, naturalmente, tudo tem um princípio, foi feito por alguém, deveria apresentar um autor, mas este se perdeu através dos tempos. 2) Sobre a aceitação coletiva, o fato de a manifestação ser aceita pelo povo despersonaliza o autor, ou seja, o fato é do povo, que o toma para si, considera-o seu, o modifica ou transforma, dando origem a inúmeras variantes. Os cantos

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e preces apresentam trechos diferentes quando cantados por elementos isolados do grupo. Daí, como diz a própria voz do povo: “Quem conta um conto, acrescenta um ponto”. No entanto há uma estrutura que determina o eixo central que a manifestação devia seguir, e as modificações não invalidam o modelo. 3) Sobre a característica da transmissão oral, significa que sua estrutura passou de boca em boca, pois os mais antigos não dispunham de outro meio de comunicação para essa transmissão. Nessas circunstâncias se apreende os elementos, e somente se aprende por ouvir dizer. Dessa transmissão oral faz parte toda a história dos cantos de chuva, assim como na mesma região também é o caso da Alimentação e Encomendação das Almas, e do povo que a expressa. Eles fazem a conexão dos elementos com o mesmo objetivo pelo qual se faz a manifestação, facilitando a apreensão e a conservação. É o entendimento da situação, explicada aos filhos, muitas vezes desde o berço, e a sua fixação através da prática frequente ou imitação espontânea. 4) Sobre a tradicionalidade, pode-se dizer que é neste item que as pessoas se prenderam para justificar seus atos. As informações vindas de um passado de mais de cem anos é que corroboraram as ações do momento no qual a manifestação ainda existia,a 50 anos atrás. Resolve-se grande parte das situações acessando os mais velhos no grupo, para lançar mão de sua sabedoria, do modo vivo de se adquirir conhecimento. É claro que é mais fácil ouvir de alguém como se faz, do que tentar inúmeras vezes até o acerto final. A palavra “tradicional” pode querer indicar uma situação de velho, ou engessado no tempo, e aqui não é essa idéia que se quer passar, mas a idéia de garantia da unidade grupal. Está na tradição a força que garante a permanência dos valores daquela cultura. No entanto, elementos de outras culturas, a todo o momento, exercem pressão no sentido de forçar a entrada de novos elementos na cultura local. De certa forma conseguem, pois as ma-

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nifestações não são fechadas, ao contrário, são um campo aberto às influências externas e, por sua dinâmica normal sofreu, evidentemente, impacto de outras culturas. 5) Sobre a funcionalidade da manifestação, é bastante claro que nada se realiza sem um motivo. Tudo que ocorre nesse sentido precisa ter uma determinante ligada ao comportamento, à norma psico-religiosa-social, cujas origens, como foi visto, se perderam no tempo. A expressão integrou um contexto. Porque o povo canta? Para rezar, para pedir chuva, para enterrar seus mortos, para agradecer a colheita, para fazer a criança dormir... Além disso, o motivo também é necessário que seja justificado. Para que pedir chuva se ela já está caindo? Para que cantar para o morto se ele ainda está vivo? Para que cantar músicas de ninar para a criança que acaba de acordar? Da mesma forma que as manifestações têm seus cantos e danças, também têm o seu devido tempo. Os Cantos de Chuva eram necessários quando a seca era uma ameaça à vida de cada um, quando não se tinha saneamento na cidade e quando a água não chegava pelos canos independentemente do período de estiagem ou de chuva. Mas, o que acontecia por detrás desse evento? Para essa análise, torna-se necessário levantar algumas situações referentes à história e cultura do local. Correntina se chamou inicialmente Freguesia de Nossa Senhora do Rio das Éguas, fundada em 1806. O catolicismo predominou desde o início. A entrada de outras formas religiosas só veio acontecer em 1940, sendo, portanto o catolicismo a religião predominante na região por mais de um século. O historiador HélvertonBaiano, filho de Correntina, mostra em sua obra(1996) como a região apresenta características próprias de um povoamento miscigenado, com imigrantes de diversas regiões do país se encontrando no passado, na corrida pelo ouro no Rio Correntina.

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Assim, a religiosidade, sempre muito presente, influenciou a formação social e cultural do local. Até hoje as festas religiosas são muito marcantes na região. O clima de teologia popular está inserido em todos os ritos locais de uma forma geral e atinge as procissões, os cumprimentos de promessas, os ex-votos, a devoção às almas, os reisados e outros eventos comunitários, assim como ocorre em outras regiões do país. Van Gennep (1976), após estudar vários ritos concluiu que todos eles têm fases invariantes e que mudam de acordo com a transição que o grupo pretende realizar. Ritos não ocorrem somente nos momentos marginais considerados de passagem de fases da vida, mas acontecem ainda atrelados a outros fatos que não são específicos da vida do indivíduo, mas da situação que a coletividade vivencia. Assim,os ritos têm ainda momentos anteriores e preparatórios, depois o momento do rito em si, e a seguir, momentos posteriores e finais, que juntos fazem compreender melhor os fatos. Sem um entendimento do que ocorre por detrás de cada um dos eventos rituais da sociedade, não é possível se concluir qual é a função do rito, pois a combinação das fases é que fornece as chaves para sua significação. Em estudos que tratam da origem e identidade da religiosidade popular, a água aparece como um elemento fundamental de estruturação da religião. Desde a antiguidade esse elemento pode ser considerado como a mãe que dá origem a todo tipo de vida, estando associado aos partos, à agricultura, aos sofrimentos, aos aparecimentos das Santas e Senhoras, representando o arquétipo feminino responsável pela origem de tudo. Associadoà figura masculina estão as águas que caem dos céus, e esta tradição portuguesa, chegou ao Brasil na forma de prantos em favor da chuva. (Espírito Santo,1988; Câmara Cascudo,toda a obra; Donald Pierson,1959; Moraes Filho,1901). Espírito Santo (1988) conta que em antigas tradições, como a talmúdica, onde a onipotência de Deus se manifesta no dom da chuva, havia três chaves que Deus não confiava a

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nenhum intermediário: a chuva, o parto e a ressurreição dos mortos. Daí, a crença universal para quase todas as culturas de que, Deus, detentor da chave das chuvas, abre seu precioso tesouro mediante o amor e a misericórdia, assim, renovando a favor de seus filhos, a obra da criação. Uma vez que o homem não venha a cumprir com sua parte na manutenção desses bens e na conservação dos recursos que a natureza lhe oferece, ele é castigado. Entende-se, então, a origem destes rituais de penitência. Se faltar a água os homens se recobrem de culpa e se redimem através da provação de sua fé, conquistando novamente o direito à chuva como recompensa. Da Matta (apudVAN GENNEP,1978, p. 14) sugere que ritos como o Canto de Chuva, passam pela vertente explicativa da redução ecológica e geográfica. O mundo social, em determinado momento, é reduzido à dinâmica do clima, dos solos, da vegetação, ao regime dos ventos e da chuva. Assim, alguns elementos naturais passam a ser socialmente significativos para a comunidade que lança mão deles para se organizar. Os Cantos de Chuva foram muito comuns em várias cidades, nos povoados e nas roças do nordeste e de outras partes do Brasil. Com característica de cultura popular e uma religiosidade que, embora procurando seguir alguns ditames da Igreja tradicional, mesclou vários elementos de outras formas religiosas, que levou à ocorrência de um sincretismo religiosoque conviveu pacifico com o catolicismo tradicional. Priore (1994), sobre a cultura e religiosidade popular, faz a seguinte referência: “...a cultura e religião populares expressam os legítimos sentimentos de nossa gente. As manifestações e festas, material do rico folclore brasileiro, fazem com que historiadores e outros pesquisadores estudem melhor este domínio de conhecimento coletivo, que é também uma realidade concreta e dinâmica em constante readaptação às novas formas assumidas pela sociedade brasileira...”

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Geertz (2000) diz que em qualquer cultura pouca coisa é tão poderosamente concreta quanto a religião. Ditando o sistema de visão de mundo, o jogo de valores e identidades entre o eu e o outro, ela atua como orientadora cotidiana das inter-relações. Geertz ainda acrescenta que a religião, não leva somente à compreensão do que ocorre no mundo e na vida das pessoas, mas também leva o povo a entender aquilo que não se compreende. Leva-as a aceitar as penúrias da vida como um ato de purificação da alma. De certa forma, as convence que, quanto mais ela sofre mais obterá um galardão no futuro. A religião surge para colocar uma ordem e dar conta das grandes questões de natureza cósmica, reintegrando o indivíduo nessa ordem cósmica. Quando não se consegue resolver os paradoxos, a religião entra em cena e permite, ao menos, conviver com eles. Geertz (2000) defende que a religião e seus símbolos sagrados servem para sintetizar o ethosde um povo (o tom, o caráter, a qualidade de vida, o estilo, as disposições morais e estéticas) e sua visão de mundo. Vem para trazer uma idéia de ordem a esse povo. Da Matta (apud VAN GENNEP,1978, p. 11) lembra que os ritos e atos teatrais tornam a rotina diária mais suportável e mais justa, revestem-na com um toque de mistério, dignidade e até elegância. Eles não resolvem os problemas da vida social, mas, sem eles, a sociedade humana não existiria como algo consciente. A vida social pressupõe ritualização e os ritos se não são a chave, pelo menos são elementos críticos da vivência em sociedade. Ele diz que se trata de uma dimensão a ser vivenciada e não simplesmente vivida, e ocorrem concomitantemente aos gestos mais pesados do cotidiano. Essas cerimônias são sempre etapas de um ciclo. No caso aqui lembrado, finda com o árduo período de seca e inaugura uma nova vida social após a apatia que a carência de água infringiu. Van Gennep (1978) diz que no mundo civilizado percebe-se uma dominância do sagrado sobre o profano e, dessa forma,as sociedades, de forma geral, têm muito mais

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comemorações religiosas, sendo que todas as festas profanas, ainda que timidamente, são precedidas ou completadas com ritos de contemplação de um momento especial religioso ou de arrependimento no final e pedido de perdão pela exaltação. Todo o ritual dos cantos de chuva foi marcado por preces que, com o passar de 50 anos, ainda vivem nas lembranças de quem, na infância, participou da manifestação.Mauss (1909), falou sobre a importância e funções da prece dizendo ser um tipo especial de expressão oral de sentimento, um fenômeno social marcado por uma manifestação não espontânea da mais perfeita obrigação. Ele ainda descreve:“de todos os fenômenos religiosos, poucos são os que dão, de maneira tão imediata quanto a prece, a impressão de vida, de riqueza e de complexidade... ela é um dos fenômenos centrais da vida religiosa... participa, ao mesmo tempo, da natureza do rito e da natureza da crença... na prece o crente age e pensa...” Todavia, com o passar do tempo o ato se acabou,vítima da ausência da necessidade coletiva de exercer esta manifestação.Com a repercussão natural do desenvolvimentodas cidades, a água passou a chegar tratada pelos canos, atingindo a maioria da população; nas lavouras dos “gerais baianos” as mega-plantações irrigadas tomaram conta do espaço. Independentemente da chuva a vida segue trilhando caminhos modernos, reduzindo a necessidade dessa manifestação. Com o seu fim, restou apenas a lembrança das preces cantadas, que hoje, namedida em que são lembradas, fragmentos vão se juntando e, por fim, recuperou-se o conjunto de letras que as compunham. Remetendo novamente aos escritos de Mauss (1979) que diz que “os progressos da prece são os progressos da religião”, não se pode fazer comparações, como ocorreu com as letras recuperadas da Alimentação e Encomendação das Almas, que é uma manifestação ainda viva. Neste caso, aqui estudado, esta foi a última possibilidade de recuperação de elementos de mais um patrimônio

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cultural brasileiro, perdido com o passar do tempo, pela perda de suas funções. O ritual descrito concentra a população em torno da religião masculmina com a festividade ao seu final, quando recebe a benção da chuva, passando da penitência e sofrimentoao gozo pela conquista da graça e à festa. Del Priori (1994) que diz:

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Del Priori (1994) cita ainda Lévi-Strauss, destacando que a festa deve responder a uma necessidade e preencher uma função. Nas novenas para pedir chuva e a celebração da chuva, que cai ao final, a necessidade de água e alimento constitui a orientação do ritual. O perigo ou risco iminente de seca duradoura ou perpétua, ainda que não sendo uma condição perene, visto quemais diamenos dia a chuva vem em seu ciclo natural, conduz a população a um ato extremo, à penitência e à exposição de suas crianças, no preenchimento de uma função: a de exercer a religiosidade, marcar um espaço social das minorias, da mulher, da juventude e das crianças. Em meio a outras tantas manifestações que povoam o calendário anual religioso e profano do lugar e, uma vez que em poucas ocasiões as mulheres e as crianças se fazem presentes como autores de um evento, este foi um de seus raros espaços de expressão.

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...O tempo da festa tem sido celebrado ao longo da história dos homens como um tempo de utopias... Reflexo de reivindicações dos vários grupos que compõem uma sociedade. As festas e rituais possuem uma função social: permitem às crianças, aos jovens, aos espectadores e atores introjetar valores e normas da vida coletiva, partilhar sentimentos coletivos e conhecimentos comunitários. Servem ainda de exutório à violência contida e às paixões, enquanto queimam o excesso de energia das comunidades... Elas ajudam as populações a suportar o trabalho, o perigo e a exploração; reafirmam laços de solidariedade ou permitem aos indivíduos marcar suas especificidades e diferenças. (pp10/11).

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Este evento também foi marcado por momentos de solidariedade e, segundo EcléiaBosi (apud RIBEIRO JR,1982, p. 12): “... as festas de solidariedade exprimem a situação e a consciência de classe...”. As procissões tiveram a função de conferir à população uma idéia de tranquilidade, segurança e proteção. Todas as necessidades constrangedoras das quais a comunidade é vítima, como falta de chuva, epidemias e outras, vinham a ser supridas através da procissão, dos lamentos, das rezas, cantos, flagelamentos e outros sofrimentos, sendo quea dança e a festa encerram os períodos difíceis, como que fechando com chave de ouro os eventos devido a recompensa final. Essa é uma síntese desse rito procissional. Analisando de uma forma geral, a origem das festas em quase todas as culturas nasce das formas de culto atribuído, geralmente, às divindades protetoras das plantações, sendo realizados em tempos e locais específicos, determinados pela comunidade que as expressam. Posteriormente, a Igreja determinou dias a serem dedicados ao culto divino, considerando-os dias de festa, os quais formaram em seu conjunto o ano eclesiástico. Isso veio a ser a forma pela qual o cristianismo organizou e estabeleceu seu controle sobre a população e seus eventos, antes soltos e com pequenas diferenças nos tempos e locais dentre as diferentes comunidades. Indo ainda mais longe no domínio exercido pela Igreja e em sua interferência, Priori (1994, p. 23) diz que “ao lidar com a demanda pietista dos colonos, que viam nas procissões um apoio espiritual, a Igreja passa a lhes dar justificativas históricas e teológicas. Mas aproveita também para disciplinar e controlar as populações”. Sobre essas festas populares e suas funções na comunidade, a autora ainda completa: ...A festa revela a riqueza de funções com as quais as populações do passado dela se apropriam...tanto a Igreja quanto o Estado, ao perceberem que não podiam suprimir as festas, decidem

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Burke (apudPRIORI,1994, p. 12) diz que até o século XVI, tanto a elite quanto o povo participavam de uma mesma cultura e explicitavam tal comunhão por ocasião das festas. No caso de Correntina, aqui descrito, percebe-se que a situação, pelo menos nesta região, durou muito mais tempo, sendo que até hoje a elite local participa junto com a comunidade em seus eventos. Todavia, ao contrário do que Priori fala sobre a concessão da festa, que sempre tinha que estar sob a regência do Estado ou da Igreja, e que seus porta-vozes geralmente precisavam ser ou estar ligados ao poder, nas novenas para pedir chuva em Correntina ficou claro, através dos inúmeros depoimentos, de que a população era a única responsável por dar início à procissão, estabelecendo, ela mesma, como e quando começar e finalizar. Quando iniciada pela população, a ela se integrava alguns membros fieis da igreja como freiras e algum padre, não no comando, mas misturado à comunidade, subindo e descendo ruas, de cruzeiro em cruzeiro. Pelos relatos, as mulheres e as crianças que saíam para as procissões pertenciam a todas as classes sociais da cidade, até mesmo porque se houve na região uma diferença de classes essa foi sutil em sua inserção no meio como um todo. As famílias dos prefeitos, juízes, médicos, comerciantes, proprietários maiores de terras na região, o vigário e as freiras das irmandades, sempre estiveram junto da comunidade, acompanhando e participando com os mais humildes. Priori (1994, p. 28) diz:

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Espiral é o sentimento de participar da festa, que contaminava diferentes segmentos da sociedade, mais intimando do que

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integrá-las à vida social das populações mediante regras do que seria considerado um bom comportamento. Oferecem, portanto, uma bula sobre a forma de bem utilizar tais celebrações. A Igreja fez tentativas de ordenar o inordenável, que é a festa popular (PRIORI, 1994, p. 89).

convidando-os a partilhar de um evento, no qual o brilho da colaboração individual poderia sobressair contra o cenário coletivo da festa... Considerando as dimensões das culturas, a antropologia revela que os cantos de chuva, assim como outros acontecimentos locais, demonstram claramente as relações de interação e comunicação dessa comunidade, dando um status aos relacionamentos sociais capaz de evidenciar as diversas ligações possíveis entre o povo, seu ambiente, seu semelhante, seus amigos e inimigos, e, inclusive, entre ele e o cosmo. Essa rápida análise antropológica vem ratificar que cada povo tem e constrói sua própria cultura. Esses momentos vêm permitir que se analisem os elementos formadores de uma “cultura de povo”, desta localidade especificamente,e Priori (1994, p. 10), citando Edson Carneiro, diz que “...esses rituais é que vêm expressar os legítimos sentimentos de nossa gente...”.

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A PARTICIPAÇÃO DOS INOCENTES Uma das partes mais marcantes da manifestação foia presença de crianças, observada também por Priori (1994, p. 73) em seu trabalho, quando diz que:“a infância se faz, ao mesmo tempo, espectadora e protagonista... ela é colocada no centro das preocupações da sociedade cristã...”. À crença de que as crianças, na qualidade de mais puras, são mais ouvidas por Deus, e sua inocência encobre o pecado dos adultos,Del Priore indaga: “Será que Deus, mesmo quando irado, se voltaria contra um povo cujos primeiros da fila são crianças?”. Assim, a criança sempre encarnou a pureza e a sabedoria natural, fora do alcance do mal. Trata-se ainda de uma manifestação de sacrifício, uma vez que ocorria com sol a pino,logo após o almoço, envolvendo longas caminhadas e expondo, sobretudo as crianças, na tarefa da interseção, como se a ajuda das mesmas fosse comover mais a Deus para que ele lhes atendesse rapidamente seus pedidos.

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A VOZ E O CANTO

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Turnner (1974) diz que a vida imaginativa e emocional do homem é sempre, em qualquer parte do planeta, rica e complexa. Em lugares muito distintos, articulando experiências muito diferentes, o ser humano é capaz de criar e de se expressar de modo que se faça compreender. Aliando aos cantos, que por si só também produzem essa mesma ca-

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Crianças de pés descalços, andando sobre a terra escaldante, carregando garrafas cheias de água e flores, o que por si só já é uma forma de ressaltar o sacrifício, visto que o período era de seca e que cada garrafa representava o pouco da água que ainda se tinha nas casas. Cantando e rezando sob o sol e, por fim, depositando ao pé do cruzeiro a água e as flores. Nessa comunidade o que mais se observou como reminiscência do passado, e que até hoje tem lugar de destaque, foia participação da infância. Dr. Levi Cruz, nas pesquisas de 1950, relatou inúmeros episódios de velórios e sepultamentos de crianças, onde os principais atores também eram crianças, vestidos e ornamentados de acordo com um tema, vestimenta e cores escolhidas para o falecido. O que foi relatado no passado, remete no presente à comparação com os atuais eventos de aniversário infantil, onde os pais escolhem para seus filhos determinados temas, fantasia e suas cores próprias. Quando Dr. Levy destaca a importância da presença das crianças em diversos eventos e nas situações familiares,ressaltando sua importância nos ritos de morte, e quando se observa ainda hoje a presença das mesmas em outra manifestação recentemente recuperada pela população, os ternos natalinos, revelaque aquela população ainda deposita em seus inocentes um papel de extrema importância no seio social. A infância colocada no centro das preocupações da sociedade cristã, como vital intercessora, é uma importante ferramenta de súplica.

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pacidade de se fazer compreender, esse ritual se universaliza, mantendo sua característica de comunidade. Turner afirma que a comunidade consiste de uma multidão de pessoas que não estão apenas lado a lado, mas umas com as outras. Aqui a comunidade não apenas existe mas acontece, e nesse ritmo, percebe-se que mesmo após o fim da manifestação, após quase sessenta anos de sua ausência, ela permanece viva nos cantos que são lembrados, estrofe a estrofe, cada um lembrando uma parte até fecharem o todo, tanto das letras dos cantosquanto de sua história. Souza,Paiva e Freire (2000) fazem a seguinte ponderação:“A voz é um importante instrumento da alma... condutora de sentimento está conectada à alma humana... ela soa como um pedido a ser ouvido, a ser guardado. E o canto é a única maneira de exprimir muito mais do que as palavras podem conter...”.Desse modo,nessa região estudada, celebra-se através do cantoa passagem dos mortos ao outro mundo, como também ocorremoutras manifestações de rezas cantadas, como é o caso dos Cantos de Chuva. Esses rituais têm sempre a mesma função ao abrandarem uma forma de dor, sentida pelo corpo, como a seca e a fome, ou pela alma, quando da ocasião do vazio da morte. Assim, a dor, a saudade e outros sentimentos semelhantes, são abrandados no canto, e o vazio é preenchido, ainda que em parte. Dos mesmos autores, uma análise da voz, que dá a perfeita significação do fato em Correntina: “... estudar o canto é estudar a voz particular, a voz que se perde e se confunde com o uivo do vento, conduzindo a imaginação e as crenças de todo um povo, que faz chover e até chorar”. Essa é a voz do sertão, do nordeste brasileiro. É a mesma voz que se encontra no canto das lavadeiras, nas ladainhas, nas cantigas de ninar, na encomendação das almas, nas romarias, nos reisados, nas festas do Divino e tantas outras. Algo que se encontra no cerne da cultura humana e extravasa coletivamente no momento certo.

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Roberto da Matta (apud VAN GENNEP,1978, p. 11) diz que os ritos sugerem e insinuam a esperança na vontade de passar e ficar, esconder e mostrar, controlar e libertar e, assim, ocorre a transformação do mundo e de si, traduzindo isso em viver em sociedade. Ele ainda afirma que, se para a magia e a ciência, existe o poder, para a religião há a fé, a adoração, o sacrifício e a solidariedade. A. Bosi (apud RIBEIRO JR, 1982, p. 23) diz que na cultura de um povo não há separação entre a esfera simbólica e a espiritual. Misturam-se aí as relações de parentesco, a forma de criar os animais e plantas, as maneira de conviver socialmente, os provérbios, danças, os cantos que tornam indivisíveis o corpo e a alma, as necessidades orgânicas e necessidades morais. Ribeiro Jr. (1982) completa esse pensamento, defendendo que esta filosofia que penetra as classes ou estratos mais pobres, traduz-se pelo que ele chama de “materialismo animista”, e justifica o uso da palavra e da idéia de materialismo dizendo que para o povo trata-se do mais puro senso do real. Ele diz: ...uma praticidade a partir de suas tarefas diárias, onde há uma íntima convivência com a matéria, que lhe confere uma arraigada sabedoria empírica. Contudo, este realismo não é desencantado pois na mente do povo há uma convivência íntima com as forças superiores, numa relação de sincretismo religioso.Ecompleta ainda: ‘...nascido e transmitido no meio rural, este materialismo animista encara respeitosamente os ciclos da natureza que chegam a informar a visão popular da história, cujo ritmo cíclico não é mecânico, mas pontilhado de passagens, riscos, acelerações e retardamentos...’ (RIBEIRO JR., 1982, p. 24).

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Portanto, o que vem a ser o sacrifício, e posteriormente a festa, para osatores é a mais pura manifestação de fé através

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O ATO SOLIDÁRIO E O SACRIFÍCIO DO POVO

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do arrependimento, do reconhecimento da necessidade de ser humilde e de colocar seus esforços na demonstração de sua sabedoria popular. A comunidade reconhece que deve respeito aos ciclos naturais e realizam sacrifícios também por aqueles que foram, em algum momento, transgressores. Para a população manifestante, isso se traduz no ato de solidariedade, a voz, a caminhada exaustiva e a exposição dos inocentes.Representa o apelo, um pedido para se redimir daquilo que pode ter sido esquecido, o sentimento comunitário de fé. Somente lembrando a todos que se deve sair às ruas, rezar e cantar fará com que todos se voltem à união. Não seria a mesma coisa se todos rezassem no íntimo de seus lares ou se fossem apenas às missas e fizessem as novenas. O sacrifício do povo, assim como ocorre nas encomendações de almas onde um grupo “especializado” é invocado a pedir aos céus aquilo que é impossível ao homem comum, é que tem importância e significado para o sucesso do intento. Mais do que simplesmente pedir chuva, ou pedir pela paz da alma do morto, esses ritos envolvem a população trazendo à tona os sentimentos de humildade, resignação e respeito. Não basta trabalhar, plantar e colher. Deve haver o tempo de lembrar que o recurso (natural) pode vir a faltar, pelo esquecimento do senso de criatura. Existe um criador e seus auxiliares, também responsáveis, cada qual, por determinadas tarefas, que necessitam desse sacrifício para, em troca da fé, enviarem suas recompensas. Cantar pela chuva e rezar para os mortos é o mínimo que se pode fazer em troca dos benefícios.Segundo Ribeiro Jr. (1982): A situação geral de opressão, decorre para o povo uma fadiga concreta e diária a impregnar toda a extensão de sua cultura... não há compreensão possível do espaço e do tempo do trabalhador manual se a fadiga não estiver presente e a fome e a sede que dela nascem... As alegrias advém desta participação no mundo através do suor e da fadiga... Essa relação parce-

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A seca chega e com ela o desânimo do trabalhador. A fadiga se torna quase insuportável. A família está ameaçada pela sede e pela fome que podem advir do prolongamento da situação. Quando o homem não pode fazer mais nada além de esperar a chuva chegar, é hora de congregar os vizinhos, buscar nova força na família para rogar por ajuda. Enquanto pais de família se encontram na lida enfrentando a seca, mulheres e crianças fazem sua parte na intercessão aos céus. Ainda cabe referir que o roubo dos santos, e outras brincadeiras possíveis que aparecem são também observadas por Ribeiro Jr, que completa:“... essa inversão admite elementos como o erotismo e a ironia, convivendo num mesmo evento com a dimensão mística, com a celebração de esferas abrangentes da vida...” Sobre esse roubo provisório e prévio, pode-se dizer que aparecem também, com relativa freqüência, nos rituais portugueses. Oliveira (1984), fala dessas situações e cita ainda Van Gennep, sobre um “direito ao roubo”, observado em antigas manifestações daquela cultura. Oliveirafaz ainda duas importantes citações:

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... em muitas terras portuguesas existe o costume, em diversas datas, de roubarem objetos, alfaias, santos e vasos de flores para levarem a qualquer outro local da povoação, fazendo com que os respectivos donos os procurem e os levem de novo a seus lugares de origem, ou a suas casas...[e] ...vemos o roubo ritual referido a determinados objetos como modo obrigatório de lhes conferir virtudes sobrenaturais, necessárias para o devido cumprimento de promessas específicas de certas romarias...”

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lada e desfigurada com o trabalho e com a vida podem gerar tensão e desembocar na desesperança e apatia. Desta forma para contrabalançar estes efeitos negativos, a cultura do povo às vezesconsegue criar um universo simbólico em que a Ordem Social é invertida...

O MOMENTO RITUAL

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Brandão (apud RIBEIRO JR, 1982, p. 31) apresenta que festas e rituais mantém uma oposição à rotina, pois rompem com sua lógica e a linguagem.Durante as tardes escaldantes, uma rotina de meses a fio torna-se, ainda mais, uma rotina ameaçadora. Assim, os rituais nascem da rotina e a ela retornam, posto que a manifestação, também,torna-se rotina, mesmo que anual, sazonalmente atrelada a uma condição natural. Sabe-se que é tempo de seca, e que ela deve um dia acabar, mas, seu fim fica amarrado na quebra da mesma pelo ritual. Voltando novamente a Ribeiro Jr (1982, p. 31), faz-se uso de seus pensamentos quando diz que os rituais e a sociedade se articulam em três níveis diferentes que, ás vezes,convivem num mesmo evento: O ‘momento de identificação’,onde a sociedade homenageia ou rememora personagens, símbolos ou acontecimentos com os quais ela se identifica nos momentos de rotina...e que nestas ocasiões procura-se empregar formas simbolicamente exclusivas acerca da organização social e dos modos de ser próprios daquela sociedade... No caso específico os santos constituem símbolos, a seca o acontecimento que desencadeia o ato, mulheres e crianças reforçam seu espaço e importância social.Rezar aos pés dos cruzeiros, para essa comunidade em 1950, tinha um significadoespecial, visto que os cruzeiros, na época demarcadores do espaço urbano,estavam todos de pé e tinham,inclusive, a função de serem espaço de sepultamento dos inocentes pagãos. O rio Correntina, que significa a vida da cidade e dos povoados que o margeiam, é sempre reverenciado e lembrado; rezar na beira do rio é lembrar-se do possível esgotamento do bem mais sagrado, a água, e assim pedir chuva é salvar o rio, salvar a própria vida. Usar crianças e flores representa o que

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a comunidade tem de mais belo e puro. Tudo isso configura as formas simbólicas exclusivas daquela sociedade. O‘momento de legitimação’, onde a sociedade recria através da linguagem festiva ou ritual a própria ordem e ideologia. Ao dizer como e porque cada momento da festa pode ser reproduzido, a sociedade se legitima. Invocar o início da novena e quando começá-la, marcou e conferiu um poder simbólico às mulheres e crianças fora do âmbito religioso e político do lugar. Não cabia ao padre, às freiras ou a qualquer outro líder da cidade, começar o rito que, nascendo da rotina, se tornou tradição e rotina daquela sociedade. Um poder naturalmente conferido aos cidadãos comuns e, portanto, respeitados.

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Mulheres e crianças, anônimas e voltadas a seus afazeres de rotina, saem, convocam as novenas e festejam as glórias ao final do tempo de sacrifícios. Brandão (1974) diz: “Assim, os rituais servem para a contradição: ora legitimam a ordem dominante, ora promovem uma reorganização social a partir do dominado.” Ao fim de todas as análises anteriores, retorna-se aos símbolos com destaque. Água, crianças, cruzeiros, flores, santos, cruzes com toalha bordada, pés descalços, os cantos e outros, todos destacados de algum outro contexto, para suprirem uma necessidade pontual daquela comunidade. A vigência da duração desses elementos é o exato momento no qual eles são necessários como coadjuvantes da encenação do ritual. A seca, a ameaça da sede e da fome, a falta de saneamento básico no meio urbano, é o que garante seu uso enquanto representação da fé.

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O‘momento da possibilidade de reorganização social’,no qual a festa cria alternativa e mudanças no sistema de ocupação de posições e papéis dotados de significação social...

O santo do altar caseiro é transformado em símbolo pela dramatização. As crianças com suas flores configuram a transformação do que é natural em símbolo do ritual. Mas, ao focalizar o elemento rotineiro, o ritual faz despertare alerta em virtude de, principalmente, colocar a rotina do lugar de “ponta-cabeça”. Ribeiro Jr (1982) destaca:

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...símbolo, etimologicamente é unir o que foi destacado. Retirar um elemento de um contexto e inserir em outro. O processo se dá pela sociedade e a duração ou vigênciado evento ocorre enquanto for socialmente necessária. Indo mais além, os rituais são ameaçadores ao sistema dominante, uma vez que instigam a coletividade para enxergar seus problemas, instiga os governantes por esses não fazerem o que deveria ser feito. A ponto de a comunidade recorreràs forças cósmicas para olharem para seus sofrimentos. Ribeiro Jr (1982) destaca: “... ao focalizar um elemento rotineiro o ritual coloca em alerta, desperta a consciência... Também o ritual legitima as formas populares de ação e organização...” Ao realizar as novenas de chuva, a população fazia, veladamente, um apelo às autoridades e à população mais esclarecida para as necessidades de um mínimo de ação social e política que viesse minimizar o sofrimento da seca. A partir dos eventos, muitas atitudes foram iniciadas e desenvolvidas no sentido da implantação de melhores condições e qualidade de vida. Ribeiro Jr coloca ainda que: “A cultura dos povos é uma necessidade para a sua libertação”. Assim, percebe-se que perpassando anos, gerações, séculos inteiros e tamanha barreira geográfica, indo mais longe, por transmissão oral, esses elementos chegam e se instalam na cultura local de forma a tornarem-se parte dela. E isso é o que se observa ocorrer por detrás do evento aqui apresentado.

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Dentro da festa, na pluralidade de eventos que se realizam, outro aspecto merece ser destacado: a presença do “milagre”, que vem designar-lhe a função de sagrada. A festa passa a distinguir-se por ter resultado em “tal ou qual” milagre. Choveu! E esse milagre une “as gentes” a Deus por meio do encanto e do maravilhoso ali manifestado ao final do período sacrificial. Estado insólito, cujo registro fica na memória popular como umaaliança entre Deus e o povo, entre os santos e o povo. Ao final, quando a chuva cai, ocorre a celebração e, “celebrar é fazer a afirmação da vida e da alegria, a despeito do fracasso e da morte” (PRIORI,1994). Está realizada a utopia; deu certo o ato. Assim, como dizia Del Priori, “a festa utópica, apontando na direção da esperança, em busca de um novo tempo ou um mundo novo, sai da situação de opressão para a celebração da vitória”.Depois disso, a esperança deixa de ser ingênua e dá prosseguimentona luta diária, até que novas necessidades venham, e ciclicamente novas vitórias sejam celebradas. Assim, ano a ano foram-se realizando as procissões para pedir chuva, até que a modernidade veio, e o “dominador” tomou para si a responsabilidade de cuidar da distribuição da água. Na cidade o progresso trouxe o saneamento, que colocou a água nos canos, não deixando que a mesma faltasse nas casas. As cisternas, mesmo secando, não eram mais um problema. E assim, a cada ano, os efeitos da seca foram sendo minimizados, mascarados pelo fato da água não mais faltar, esquecendo-se a população de que precisava se reunir para pedir chuva. MEMÓRIA, O GR ANDE ELO DA HISTÓRIA

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Por fim, o “milagre da recordação”. A junção de frases e estrofesfoi induzida, e trouxeram de volta a história

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O MILAGRE FINAL

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e todos os outros elementos, refletindo uma cultura local e montando um quebra cabeças sobre uma manifestação que já não ocorre a mais de 50 anos, na cidade de Correntina. A memória conduzida por esse grupo de pessoas acerca de um passado de meio século foi ainda observada com o intuito de considerar as lembranças como um ponto crucial de sustentação de tradições e preservação de patrimônios culturais. O que se observou com mais ênfase foi o fato de a comunidade não ter se esquecido. O ato foi tão importante que todos os que tinham idade suficiente para dele se lembrarem, não apagaram as lembranças. Os mais jovens se referem ao fato como se dele tivessem participado. Uma memória não vivida, mas repassada pelos pais e avós com tamanha ênfase que por várias vezes se tinha dúvidas se os depoentes haviam vivido ou apenas ouvido os relatos. Os jovens assim aprendem com os velhos perpetuar sua cultura e dela tomam conhecimento o suficiente para relatá-la como se a tivessem vivido. Sobre essa última análise, Bergson (apud CONNERTON, 1999, p. 27) defende dois tipos de memória; aquela que vem do hábito, e aquela que vem da recordação. Para ele a segunda é a verdadeira memória. Já Connerton(1999) defende uma memória pessoal, vivida pelo indivíduo, uma memória que chama de cognitiva, que não é objeto da recordação própria, por não ter ocorrido especificamente com o sujeito, mas em seu tempo. Ele ainda se refere a uma memória hábitus, que se trata da capacidade natural de recordar e reproduzir uma ação. É aquela que tem todas as marcas do hábitomasnão se sabe quando e onde foi seu início. Outro autor, B. Russel (apud CONNERTON, 1999, p. 27), vai mais além e separa a memória hábitus da memória verdadeira, pois para ele,à medida que recordar se torna um hábito, a memória-conhecimento entra em cena. E essa memória é o mesmo que “a nossa crença” naquilo que se recorda, e essa seria então a verdadeira memória.

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Completando essa análise, Pollak(1992) fala da memória dos acontecimentos vividos pela pessoa e da memória “vivida por tabela”, onde o grupo viveu o acontecimentoe assim, para as pessoas que pertencem àquele grupo, embora não tendo vivido o fato, a memória passa a lhes pertencer. Fala ainda que não é raro observar que, para algumas pessoas, a relevância dos fatos é tanta que torna-se quase impossível que elas próprias consigam saber se participaram ou não do acontecimento. Assim ocorreu com o Canto de Chuva aqui analisado, pois tanto os idosos, que de fato participaram enquanto crianças, quanto algumas mulheres mais jovens, cujas idades revelam que não chegaram a participar, possuem a lembrança do ritual. Pollak (1989)destaca as memórias conflituosas onde a sociedade não entra em acordo quando analisada indivíduo a indivíduo, pois em memórias conflitantes se observa uma carga de negatividade, de não aceitação dos fatos. Isso não foi observado no canto de chuva de Correntina, tanto das pessoas isoladamente acessadas quanto nos momentos de integração, quando foram congregadas em um mesmo ambiente para se lembrarem dos fatos. Houve consenso e complementação, mas em nenhum momento conflitos acerca das ocorrências lembradas. Também, a lembrança desse ritual teve, sem dúvida, um caráter formador de consciência, de história e de cidadania. Lovisolo(1989) ressalta que todos os modelos explicativos, os símbolos, as vidas exemplares, os rituais religiosos e cívicos, dentre outras manifestações, entram na formação do cidadão. No caminho da modernidade, o ritual deixou de ser necessário, mas ainda faz parte da memória coletiva porque fez parte da formação daqueles indivíduos e continua ditando valores de ordem, de justiça, de união e de respeito no seio da comunidade. Por fim, para que servem os rituais a não ser para demonstrar uma carga de conhecimento transmitido por gerações? Connerton (1999) diz que as imagens e todo o conhecimento

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recolhido do passado são transmitidos e conservados através das performances, nesse caso, via ritual. Por este mesmo caráter de importância dada às manifestações e ao legado da cultura, é que ainda se mantém muitas tradições locais pelo interior do Brasil. Enfim, como Connerton(1999) relatou, as cerimônias comemorativas permitem que as imagens do passado e todo o conhecimento acumulado,sejam transmitidos e conservados. Essa é a principal função prática e social desses rituais. No entanto, nesse caso peculiar aqui relatado, o ritual não é mais realizado, pois se perdeu a necessidade prática, mas a função da recordação ainda vive, mesmo que apenas em uma frágil e tênue lembrança, mas que segue recontada aos netos e bisnetos. Uma memória que deixou de encontrar lugar na ritualização e muito provavelmente deixa de ser contada nas próximas gerações. Assim justificando a necessidade desse relato, para que não morra totalmente após ter sido tão vivo e fervoroso, tão rico de simbolismos e de fé. R AIN SONGS Abstract: Novenas for rain were a kind of popular and religious manifestation, rich in symbolism and tradition that took place in the city ofCorrentina, located in the western state ofBahia in Brazil before 1952. Thispopular event, also called rain songs remainedin the memory offormer residents. Alive onlyin the lyricsofsongs andprayers, the ritual was reconstituted fromthe meeting ofpeople of this city, in order tomake themremember theirchildhoods, the songs and facts that still remain in their memory.The conclusion is thatthis richritualwas partnot onlyof the local folklore, but also was the set ofintangibleassets that is immaterial patrimonyof that community. Keywords: Rain songs. Popular religiosity.Oral memory. Folklore.Immaterial patrimony.

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Notas 1 Entre os anos 2000 e 2003 a população da cidade de Correntina e dos povoados rurais do interior dos “gerais”, na região oeste da Bahia, foi estudada com vistas a se analisar a manifestação cultural da “Alimentação e Encomendação das Almas”, foco de outro trabalho. Este relato dos Cantos de Chuva surgiu durante as coletas da memória oral acerca das rezas e ladainhas. Em um primeiro momento houve uma mistura de lembranças que com o passar das entrevistas foi sendo separado como pertencendo a outro ritual, o das novenas de chuva, aqui relatado. 2 Hélverton Baiano é jornalista e escritor, natural de Correntina. Fez extensa pesquisa acerca da cidade, da região e dos antigos costumes locais. Suas análises são muito usadas neste texto, pois se referem a levantamentos orais únicos, realizados ao longo de vários anos e com remanescentes das famílias pioneiras.

4 Grandes pedras no leito e na beira do rio Correntina, que sempre foramusadas pelas lavadeiras para lavar, quarar e secar roupas. Até hoje esta é uma prática comum na região. 5 Gerais: denominação popular da região do oeste da Bahia, uma extensa faixa de terras entre Goiás e o sertão baiano, mistura de fitofisionomias de cerrado e caatinga. Essa região tem solo arenoso, rios que correm paralelamente em direção ao grande rio São Francisco. Os Gerais eram considerados terreno infértil devido às areias, e por muitos anos, abrigou população espalhada ao longo dos rios. Com o desenvolvimento agrícola essas terras foram testadas na sua capacidade produtiva e, com irrigação artificial, constituiu-se num dos principais produtores de grãos do país. Hoje os Gerais baianos estão quase totalmente tomados por grandes empresas agrícolas que ali cultivam soja, milho e outros grãos.

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6 Dr. Levy Cruz foi pesquisador da equipe do Dr. Donald Pierson, e por toda a década de 1950 estudaram a vida ao longo do vale do rio São Francisco. O trabalho foi encomendado pela SUVALE, Superintendência do vale do São Francisco, do Ministério do Interior Brasileiro. O resultado desse estudo foi um livro dividido em três

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3 “Alimentação e Encomendação das Almas, Um Patrimônio Cultural do Brasil” - dissertação apresentada pela autora para a conclusão do curso de Mestrado em Gestão do Patrimônio Cultural do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da Universidade Católica de Goiás. O texto descreve amplamente esta manifestação em Correntina, cuja ocorrência é considerada como única no Brasil, por preservar inteiramente as características do passado.

grandes tomos, publicado em 1972, intitulado O Homem do Vale do São Francisco. 7 Povo: A revista eletrônica i-folclore, criada e coordenada na cidade de Olímpia, SP, por pesquisadores apoiados pela prefeitura municipal local, depois de mais de três décadas de pesquisas, explica esta palavra da seguinte forma: POVO é a gente que, embora de várias raças, possui um modo de vida comum e habita um mesmo território. Confunde-se com outra categoria que á a de Nação. Porém povo é usualmente utilizado para indicar a gente mais comum, pertencente à camada social mais desfavorecida na sociedade, econômica, social e culturalmente. Usado ainda para indicar grupos em estado mais simples ou natural. A “Sabedoria do Povo” vem a ser tudo que o povo faz, pensa e sente. Este conjunto de comportamentos resulta em um conjunto de crenças e práticas que se ligam às atividades, às técnicas e às normas sociais.

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* Mestre em Gestão do Patrimônio Cultural. Pesquisadora e professora do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Ex-professora das Faculdades Objetivo e Universidade Paulista, nas cadeiras de antropologia da imagem e fotografia.

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