Cadernos de Paleografia, Número 1

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Descripción

A

Oficina de Paleografia - UFMG, em uma iniciativa conjunta com a Imprensa Oficial de Minas Gerais, traz ao público este audacioso projeto, que revela os enlaces entre três diferentes dimensões — manuscrito,

transcrição e narrativa histórica — caminhos estes que nem sempre estão claros no fazer historiográfico.

O principal objetivo da Oficina é reunir subsídios para a leitura de fontes manuscritas pertinentes à História

luso-brasileira. Pretendemos, então, consolidar um espaço permanente de estudo, discussão, exercício e troca de experiências no trabalho em arquivos e na leitura e transcrição dessas fontes. Todos(as) os(as) interessados(as) são convidados(as) a participar, independentemente de experiência prévia.

Acreditamos que o desenvolvimento da habilidade de ler e compreender os manuscritos importa, primei-

ramente, pelo seu caráter propedêutico: o de possibilitar o acesso direto a fontes de pesquisa, sem depender da publicação de transcrições e/ou comentários. Além disso, a leitura e transcrição paleográfica podem se constituir como campo de atuação profissional e como fonte de renda para aqueles que as dominam.

Nossas atividades se iniciaram com uma aula inaugural em 9 de abril de 2012. No dia 16 de abril, iniciamos

os nossos encontros semanais, ao longo dos quais pudemos repensar e aprimorar nossa metodologia de trabalho. Hoje contamos com a participação de alunos(as) e egressos(as) do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG partilhando suas experiências de pesquisa em fontes manuscritas. Essa metodologia, consolidada a partir do 2º semestre de 2012 e em constante revisão, tem por objetivo, ainda, promover a integração entre os diferentes níveis de formação, graduação, mestrado e doutorado.

Desde a nossa fundação, realizamos quatro aulas inaugurais, com público de até 80 participantes, dois

Seminários interdisciplinares e mais de 60 encontros semanais, contando com uma média de 30 participantes de diferentes cursos da UFMG e de outras instituições de ensino. A Oficina de Paleografia - UFMG é um projeto parceiro da Oficina de Paleografia - UFJF e da Oficina de Paleografia - UFOP. Contamos com o apoio do Centro Acadêmico de História (CAHIS - UFMG), do Colegiado de Graduação, do Programa de Pós-Graduação, do Departamento de História e da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG.

A presente obra conta com os textos de André Cabral Honor, Carmem Marques Rodrigues, Mateus

Frizzone, Emilly J. O. Lopes Silva, Marileide Lázara Cassoli, Carlos O. Malaquias, Gusthavo Lemos, Cássio Bruno de Araujo Rocha e Marcus Vinícius Duque Neves e prefácio do professor do Departamento de História da UFMG José Newton Coelho Meneses.

Essa realização não seria possível sem o inestimável apoio da Imprensa Oficial de Minas Gerais, que gene-

rosamente acolheu nossa proposta de publicação, inserindo-a como mais uma iniciativa de democratização da informação e difusão da história e cultura de Minas Gerais, projetos levados a cabo por esse órgão desde a sua fundação, em 1891. A equipe da Oficina agradece imensamente pela grandiosa oportunidade viabilizada por essa parceria.

Cadernos de Paleografia Número I

Organizadores: Douglas Lima, Fabiana Léo, Gabriel Chagas, Gislaine Gonçalves, Igor Rocha, Leandro Rezende, Ludmila Torres, Luíza Parreira, Maria Clara C. S. Ferreira, Mateus Frizzone, Mateus Rezende, Rodrigo Paulinelli

Cadernos de Paleografia Número I iª edição [versão eletrônica]

ISBN: 978-85-68687-01-7 ISBN da Edição Impressa: 978-85-68687-00-0

Imprensa Oficial de Minas Gerais Belo Horizonte, 2014

Governo do Estado de Minas Gerais Governador: Alberto Pinto Coelho Secretaria de Estado de Casa Civil e de Relações Institucionais Secretária: Maria Coeli Simões Pires

Imprensa Oficial de Minas Gerais Diretor-Geral: Eugênio Ferraz Chefe de Gabinete: Antonio Carlos Teixeira Naback

Cadernos de Paleografia: Número I Coordenação Editorial e Revisão dos Textos:

Transcrição Paleográfica e Revisão das Transcrições:

Douglas Lima de Jesus

André Cabral Honor

Fabiana Léo Pereira Nascimento

Cássio Bruno de Araujo Rocha

Gabriel Afonso Vieira Chagas

Douglas Lima de Jesus

Gislaine Gonçalves Dias Pinto

Emilly Joyce Oliveira Lopes Silva

Igor Tadeu Camilo Rocha

Fabiana Léo Pereira Nascimento

Leandro Gonçalves de Rezende

Gabriel Afonso Vieira Chagas

Ludmila Machado Pereira de Oliveira Torres

Gislaine Gonçalves Dias Pinto

Luíza Rabelo Parreira

Leandro Gonçalves de Rezende

Mateus Freitas Ribeiro Frizzone Mateus Rezende de Andrade

Igor Tadeu Camilo Rocha Ludmila Machado Pereira de Oliveira Torres

Maria Clara Caldas Soares Ferreira

Luíza Rabelo Parreira

Rodrigo Paulinelli de Almeida Costa

Marcus Vinícius Duque Neves Mateus Freitas Ribeiro Frizzone

Maria Clara Caldas Soares Ferreira Rodrigo Paulinelli de Almeida Costa Apresentação: Eugênio Ferraz Prefácio: José Newton Coelho Meneses Projeto gráfico, diagramação, tratamento de imagens e capa Daniel Dutra Finalização Editorial (IOMG) Fabiana Tinoco, com a colaboração de Joicely Agenor

Mateus Rezende de Andrade

Os textos e transcrições paleográficas contidos nesta obra estão licenciados sob uma Licença Creative Commons Atribuição - Não Comercial - Sem Derivações 4.0 Internacional. É permitido copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato para uso não-comercial, desde que se atribua explicitamente a autoria e se indique os termos desta licença. Para ver uma cópia da licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/. Os direitos de uso das imagens aqui reproduzidas devem ser verificados junto às respectivas instituições de guarda.

H897

Cadernos de Paleografia, Número 1 — Belo Horizonte : Imprensa Oficial de Minas Gerais, 2014. 264 p. ISBN: 978-85-68687-01-7 Vários autores. 1. Paleografia — Discursos, ensaios, conferências. 2. Brasil — História. 3. Portugal - História. CDD 417.7

“Sonho que se sonha só É só um sonho que se sonha só Mas sonho que se sonha junto é realidade” Raul Seixas Dedicamos este livro ao Felipe Damasceno, que teria sonhado todos esses sonhos conosco.

Agradecimentos

Agradecer é uma tarefa difícil, especialmente quando podemos contar com contribuições de tantas pessoas e em tão variadas formas. Primeiramente, gostaríamos de agradecer àqueles que nos apoiaram desde o engatinhar do nosso projeto, quando tínhamos mais sonhos do que realidades: Centro Acadêmico de História (CaHis), Colegiado de Graduação, Programa de Pós-Graduação e Departamento de História e Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FaFiCH) da Universidade Federal de Minas Gerais, bem como o seu corpo docente, discente e técnico-administrativo. Fundamentais na gestação dessa iniciativa foram o Prof. Dr. Eduardo França Paiva e os colegas Douglas Lima e Felipe Damasceno (in memoriam), que no segundo semestre de 2009 iniciaram o grupo de estudos então denominado Paleografia e Análise Crítica de Documentos Manuscritos, que tanto nos inspirou. Foram também muito importantes no decorrer de nossa caminhada o Prof. Dr. José Newton Coelho Meneses, que coordenou o PPGHis durante a maior parte desse tempo e tanto nos estimulou em todos os nossos anseios e até no que nem ousávamos imaginar, de modo que não poderia ser outra pessoa a prefaciar este livro, o Prof. João Euripedes Franklin Leal e a Prof.ª Dr.ª Maria Helena Ochi Flexor, referências no campo da Paleografia no Brasil, que tão carinhosamente nos acolheram e encorajaram a voar mais alto. Não podemos nos esquecer da equipe que organizou o II Congresso Brasileiro de Paleografia e Diplomática — CBPD, momento a partir do qual a Oficina teve a oportunidade de ser conhecida para além do que nós,

coordenadores, poderíamos imaginar naquela tarde de verão numa mesa da cantina em que nos reconhecemos como samideanos. Foram imprescindíveis no dia-a-dia da Oficina os frequentadores das nossas atividades, razão da nossa existência, bem como os convidados a partilhar suas experiências nos nossos encontros, alguns dos quais nos brindaram com as reflexões encontradas neste livro. Somos igualmente gratos aos convidados e participantes dos eventos que promovemos e que tanto enriqueceram nosso aprendizado, assim como aos que nos proporcionaram a possibilidade de estender nossos diálogos na academia e fora dela. Muito nos alegra, ainda, ver florescerem e darem frutos outras iniciativas discentes com quem compartilhamos um ideal de construção solidária do conhecimento, dentre elas as Oficinas de Paleografia da UFJF e da UFOP, a Revista Temporalidades, o Encontro de Pesquisa em História da UFMG — EPHIS e o Núcleo Interdisciplinar de Estudos Teóricos — NIET, aos quais desejamos sempre sucesso e longa vida. Não seria possível concretizar este e outros sonhos sem a amistosa sintonia entre os membros da coordenação, sem nos esquecermos daqueles que nos deixaram para alçar outros voos. É muito recompensador o trabalho coletivo em todas as suas dimensões, aprendendo com cada tropeço e comemorando cada pequena conquista como se fosse a conquista do mundo. Ao nosso diagramador, que fraterna e generosamente nos presenteou com este belíssimo projeto gráfico, só nos resta desejar que ao longo de seu caminho não lhe faltem mãos amigas como as que ele nos estendeu. Registramos nosso agradecimento, ainda, aos arquivos que guardam a documentação aqui reproduzida em fac-símile, a saber: Arquivo Histórico Ultramarino, Arquivo Público Mineiro, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Casa Setecentista de Mariana, Arquivo do IPHAN — São João del-Rei e Arquivo Municipal de Santa Bárbara. Finalmente, nosso muito obrigado à Imprensa Oficial de Minas Gerais e seu dedicado corpo de funcionários, que deram forma e matéria ao sonho da nossa primeira publicação. Muito nos honra o reconhecimento e apoio de tão prestimosa instituição, pioneira na difusão cultural em nosso estado. A Coordenação da Oficina de Paleografia — UFMG

Eugênio Ferraz Diretor-Geral da Imprensa Oficial de Minas Gerais

Apresentação

A Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, além de fomentar a história e a cultura de Minas, também cumpre o papel institucional de apoiar e divulgar o conhecimento em áreas importantes para a preservação de propagação de fazeres (e.g. o reaproveitamento de sobras de sua área industrial) e de saberes. Partindo dessa premissa, a Autarquia — que também construiu objetos para uso contínuo com restos descartáveis de carreteis e pedaços de papelão, sobras de madeira e aparas de papel — participou da produção da altruísta iniciativa intitulada Cadernos de Paleografia: Número 1. A obra se articula a partir da apresentação, transcrição e comentário de fontes manuscritas utilizadas pela Oficina de Paleografia, um projeto voluntário, coordenado pelos próprios alunos da Universidade Federal de Minas Gerais. Os capítulos que compõem esta publicação se originam de conferências apresentadas por convidados da Oficina, criada por alguns estudantes que sentiram a necessidade de buscar mais conhecimentos práticos no estudo de manuscritos antigos, e buscaram uma parceria para publicá-los. A participação da Imprensa Oficial nesta parceria com alunos e egressos da graduação e pós-graduação do Departamento de História da UFMG vem legar para a posteridade uma cultura e uma tradição que estava se perdendo, ficando esquecida. Com a publicação, resgatamos toda essa bagagem que não pode ser deixada adormecida. Em adição a este trabalho gráfico, oportuno em testes de novos equipamentos, o Grupo propiciará a servidores da Imprensa Oficial curso e oficinas de paleografia,

abertos a outros órgãos e a cidadãos interessados, conjugando, assim, a missão da Autarquia com a disseminação cultural, em um encontro de valores em benefício da sociedade. Aos membros do Grupo — e por extensão a seus professores, mestres que neles despertaram a paixão pelo tema — nossos mais efusivos parabéns pela profundidade, seriedade e respeito com que tratam a busca e disseminação do conhecimento. À Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, orgulha muito participar de um projeto dessa envergadura.

Sumário

José Newton Coelho Meneses

Marileide Lázara Cassoli

Prefácio 15

Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888 117

A Coordenação da Oficina de Paleografia — UFMG

Carlos de Oliveira Malaquias

A Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente 21

Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX 145

André Cabral Honor

Gusthavo Lemos

A Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo e a elite açucareira goianense: entre vitupérios e rezas 39

Fragmentos da paisagem rural brasileira: os Registros Paroquiais de Terra 173

Carmem Marques Rodrigues

Cássio Bruno de Araujo Rocha

Os Portugueses e os Mapas: relações históricocartográficas 61

O estranho sodomita 195

Mateus Freitas Ribeiro Frizzone

Marcus Vinícius Duque Neves

Os presos, os carcereiros e as péssimas condições da cadeia velha de Vila Rica (1734) 73

Peculiaridades da documentação sobre exploração mineral em Minas Gerais no séc. XIX 237

Emilly Joyce Oliveira Lopes Silva A censura literária em Portugal no Período Pombalino 93

Lista de documentos

Carta do capitão-mor de Itamaracá, José Fernandes da Silva, ao rei [D. João V], sobre o procedimento dos freis Miguel da Assunção e Manoel de São Gonçalo Disponível no Arquivo Histórico Ultramarino, notação AHU_ACL_CU_015, Cx. 34, D. 3164

Trechos do processo-crime de Joaquim Luís do Nascimento e Antônio de Miranda Magro. Disponível no Arquivo do Escritório Técnico II, Iphan, 13ª Superintendência, São João del Rei.PC 28-05, 1835. Data: 6 de maio de 1835, página 157

Data: 24 de setembro de 1726, página 51 Requerimentode José da Silva solicitando liberdade. Disponível no Arquivo Público Mineiro, Fundo Câmara Municipal de Ouro Preto, CMOP Cx. 06 Doc. 06

Trechos do processo-crime de José Antônio Marcelhas e Ana Joaquina de Faria. Disponível no Arquivo do Escritório Técnico II, Iphan, 13ª Superintendência, São João del Rei. PC 04-09, 1843. Data: 1843, página 165

Data: 23 de janeiro de 1734, página 79 Representação da Câmara de Vila Rica informando da dificuldade em conseguir carcereiros. Disponível no Arquivo Público Mineiro, Fundo Câmara Municipal de Ouro Preto, CMOP Cx. 07 Doc. 05

Trechos do Livro de Registros Paroquiais de Terra. Disponível no Arquivo Público Mineiro, Registros Paroquiais de Terra, 1854-1861. TP-1-160.Piranga, Nossa Senhora da Conceição do (Vila de), Distrito de Calambau. 1856.

Data: 31 de julho de 1734, página 83

Data: 1856, página 181

Petição do carcereiro de Villa Rica para que nomeie um médico para pestar assistência aos presos. Disponível no Arquivo Público Mineiro, Fundo Câmara Municipal de Ouro Preto, CMOP Cx. 07 Doc. 25

Trechos do Livro de Registros Paroquiais de Terra. Disponível no Arquivo Público Mineiro, Registros Paroquiais de Terra, 1854-1861. TP-1-159. Piranga, Nossa Senhora da Conceição do (Vila de). 1855-1856. Data: 1855-1856, página 189

Data: 31 de setembro de 1734., página 87 Censura por Antônio Pereira de Figueiredo. Disponível no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Real Mesa Censória, caixa 5, censura nº 55A. Data: 12 de junho de 1770, página 105

Trecho (Sentença) do Processo do Padre Frutuoso Alvares. Disponível no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo 5846. Código de referência: PT/TT/ TSO-IL/028/05846. Data: 7 de julho a 7 de agosto de 1593, página 215

Trechos do processo de liberdade de Antonio Avelar, escravo de Affonso Augusto de Oliveira. Disponível no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Ação Cível. Códice: 448. Auto: 9680. Ano: 1883. Iº Ofício. Data: 15 a 25 de maio de 1883, página 131

Trechos da Ação sobre o direito de posse da Lavra da Tartaruga entre Capitão José de Aguiar Leite Mendonça Vasconcellos e sua mulher versus Eufrázio Pereira da Silva e outros. Disponível no Arquivo Municipal de Santa Bárbara/MG. Cx. 63, 1849 — Embargos — Caethé — Santa Bárbara. Data: 6 de Junho de 1849, página 249

José Newton Coelho Meneses Professor Associado do Departamento de História da UFMG

Prefácio

Prefaciar este livro é antes de tudo uma alegria, além de uma honra dada a mim pelos alunos da Oficina de Paleografia do Curso de História da FaFiCH-UFMG. Alegria porque a edição é produto denotativo de uma experiência acadêmica discente concreta e rica, em um tempo em que tais iniciativas são pouco estimuladas e, em decorrência, pouco concretizadas. A honra me faz sentir ainda mais feliz, destacado que fui entre meus colegas docentes para fazer essa apresentação, mas com a plena consciência de que outros o fariam melhor. No entanto, fui eu, dentre os incentivadores da iniciativa, o premiado com a escolha dos alunos. É, então, como um presente ganho, que assumo essa responsabilidade. A retribuição a ele é meu compromisso com a continuidade de meu estímulo ao trabalho da Oficina. O meu texto será curto. Os que lhe seguem são os que, verdadeiramente, merecem e precisam ser lidos. As iniciativas acadêmicas dos discentes são atividades que merecem maior valorização no meio universitário. O que dizer, então, de iniciativa discente integradora que se amplia no espectro dos vários cursos (Graduação, Mestrado e Doutorado), incorpora a experiência docente, dialogando com ela e, ainda mais, se estabelece como interdisciplinar? Esse tipo de ação universitária, que integra níveis pouco dispostos à conjunção do ato cotidiano é, ainda, mais louvável e é dele que falamos nessa apresentação e que este livro apresenta como produto, de forma, a meu ver, original e inédita. É comum em nosso momento, no espaço da Universidade brasileira, uma corrida produtivista e, às vezes, tecnicista e competitiva que vem dificultando a valorização e a dedicação às iniciativas mais formadoras que, necessariamente, impõem

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necessidades de dedicação mais atentas ao cômputo amplo das partes que fazem a Universidade, seus corpos docente, discente e técnico-administrativo. Vivemos compartimentadamente esse nosso cotidiano na Universidade e discutir essa questão é, aliás, proposta que não ganha muitos adeptos na academia. Como historiador, tento compreender esse momento e o entendo. Como professor, busco aquilatar as propostas e os caminhos da formação universitária. Como pesquisador, quero dar ênfase às buscas instrumentais da pesquisa. Como cidadão, penso que a Universidade desempenha papel fundamental de aliar teoria e apreensão do real. Mas não sou um indivíduo partilhado de forma estanque nessas instâncias e faço escolhas que as tentam conciliar em uma complexa unidade intelectual e em uma difícil ação corriqueira na Escola. É a partir dessa tentativa de compreensão do nosso mundo e do nosso meio que avalio a experiência da Oficina de Paleografia dos estudantes do Curso de História da UFMG (Graduação e Pós-Graduação). Adiantando uma síntese, ela é, para mim, atividade rica para a formação disciplinar, e é ação acadêmica integradora. A Paleografia tem importância fundamental para a pesquisa histórica e, neste sentido, serve a várias disciplinas para além da História. É hoje, penso eu, mais funcional e pragmática, sem perder seu caráter teórico e compreensivo acerca da escrita e de sua inserção temporal nos processos sócio-históricos. A função pragmática de avaliação da autenticidade documental e da interpretação-tradução da linguagem antiga constituíram o lugar do paleógrafo e da Paleografia no mundo moderno. Ela, sobretudo, apresenta-se, para os estudiosos que fazem dela uma prática no processo de compreensão dos escritos antigos e de sua transcrição, um instrumento de memória poderoso e eficaz na guarda do feito original da escrita. Eficaz porque se presta, em sua essência, como instrumento analítico do documento histórico, atento à sua datação, sua procedência, à sua autenticidade e aos aspectos gráficos de sua construção. A leitura paleográfica é prática plena e exemplar de uma sabedoria que caracteriza o saber científico da modernidade. Como ele, é umbilicalmente ligada a uma utilidade humanista precípua: desvelar o mundo através da manipulação criativa e criadora desse próprio mundo, conhecer o homem pelos feitos do próprio homem. Desvendar o humano pela escrita do homem é a raiz da Paleografia. Ela é um dos instrumentos mais poderosos da ciência moderna, ciência essa que trata o aporte instrumental como elemento primordial do próprio saber teórico da ciência. Instrumentalizar para investigar e investigar a instrumentalização são ações distintas e diversas, mas se igualam em importância no processo do saber.

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Como utilidade primordial, a Paleografia se apega a objetivos que são, também, específicos. Daí a sua especialidade como “disciplina”: atender, por meio de parâmetros estudados, aos vários saberes que precisam da escrita antiga e às diversas formas de acessar essa escrita. Neste livro uma das formas possíveis, a fac-similar, que não constrói uma mediação entre o leitor e o texto antigo, é acrescida. No entanto, privilegia-se a transcrição do texto em sua forma estritamente paleográfica, onde a intervenção do autor respeita todos os aspectos testemunhais da escrita original. Os autores das transcrições, após apresentá-las, passam ao exercício mais pleno da mediação, viram intérpretes, exercitam a prática historiográfica, mostram-se historiadores. O livro que o leitor tem em mãos, quando observo sua proposta e procuro entendê-la, busca a técnica paleográfica e a sua compreensão, sua aplicação na interpretação historiográfica. Os textos, ainda, objetivam discutir, mesmo que minimamente, os suportes físicos, materiais dos conteúdos textuais antigos. Apresentam a experiência de uma oficina de leitura paleográfica, mesmo que não mostrem todas as atividades da Oficina que compreendem o levantamento, a catalogação, a higienização, a microfilmagem, a fotografia, a digitalização, além, é claro, do próprio exercício de transcrição, evidenciado nos “capítulos” que se seguem. O livro, também, pode denotar pouco atividades como a discussão acerca dos processos de tratamento de imagens e de preservação das fontes, mas o essencial é que evidencia as técnicas de transcrição, de acordo com a metodologia da disciplina paleográfica. Além disso ele denota claramente a importância da leitura documental para o historiador. Vem de muito tempo o valor da prática paleográfica, mesmo muito antes de a Paleografia ser vista como uma disciplina. A prática de historiar na Idade Média já apresentava transcrições, traduções, interpretações de alfabetos, coleções documentais escritas de tempos anteriores, utilizadas para a compreensão das realidades passadas. O nascimento da Paleografia moderna, no entanto, costuma ter seu marco cronológico plantado no século XVII. Atribui-se esse surgimento a uma necessidade jurídica de diferenciar documentos falsos e verdadeiros, para dirimir as disputas em torno de direitos civis e eclesiásticos, no âmbito dos tribunais de justiça. Seria um tempo onde a Paleografia e a Diplomática se confundiriam e apenas se iniciava uma preocupação em configurá-la como uma disciplina. Neste contexto, o embate religioso entre jesuítas e beneditinos acerca da autenticidade documental teria tido importância fundamental e fundadora. Em Antuérpia, os padres da Companhia de Jesus se dedicaram a construir uma coleção de textos sobre as vidas de homens santos, os Acta Sanctoru. O Jesuíta Jean Bolland (15961665) foi o responsável pelos primeiros volumes dessa coleção e os “bollandistas”

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seguiram seus passos. Um deles, o padre holandês Daniele Van Papenbroek (16281714) fez pesquisas em vários mosteiros pela Europa e, preocupado com a autenticidade de documentos, publicou, em 1675, como prefácio do segundo volume dos Acta Sanctorum, o texto Propylaeum antiquarium circa verí ac falsi discrimen in vetustis membranis (Princípios introdutórios para a discriminação entre o verdadeiro e o falso nos documentos antigos). Essa crítica diplomática colocou em evidência dúvidas sobre a autenticidade de documentos de alguns mosteiros beneditinos na França, principalmente os da Abadia de Saint-Germain-des-Près, nos arredores de Paris, pondo sob dúvida uma tradição secular beneditina. A resposta desta ordem vem por um de seus membros, Jean Mabillon (1632-1707). Ele publicou, em 1681, De re diplomatica. Tal obra propugna princípios e refuta argumentos de Papenbroek, sendo muito bem aceita e elogiada até pelo próprio padre jesuíta criticado. São princípios básicos da Diplomática que, na sua parte final propõe uma classificação sistemática das escritas, considerado como um primeiro tratado de Paleografia, sem, no entanto, utilizar essa palavra. Ela é introduzida na obra de outro beneditino, Bernard Montfaucon (1655-1741), em seu livro Paleographia Graeca sive de ortu et progressu Litterarum, de1708. Apesar disso, tem-se Mabillon como o pai da Diplomática e da Paleografia modernas. Tal atribuição vem do fato de que sua obra estimulou o aparecimento de vários outros textos que dialogaram com ele e aprimoraram as regras paleográficas na Inglaterra, Espanha, Alemanha e Itália. Na Itália, afinal, é que Scipione Maffei (1675-1755), a partir do estudo de códices de várias épocas da Biblioteca de Verona, publica, em Mântua, em 1727, o livro Istória Diplomática che serve d’introduzione all arte critica en tal matéria, base de uma nova classificação de textos antigos. O final do século XVII e o início do XVIII foi um tempo, portanto, onde se pode sediar o início da Paleografia disciplinar moderna. A partir daí, estudos paleográficos foram feitos e refeitos com uma frequência constante e rica em proposições disciplinares, começando, inclusive, a comporem cátedras nas universidades europeias. Em Gottingen, na Alemanha, por exemplo, em 1765, o professor Johann Christophe Gatterer (1727-1799), construiu uma classificação das escritas, inspirada em Lineu, onde dispunha uma hierarquia de escritas em regna, classes, ordines, series, partitiones, genera e species. É ao final do século XVIII, ainda, que surgem as Escolas Superiores de Paleografia. São exemplos delas, na Itália (Bolonha, Florença e Milão, em 1765), na França (École Royale des Chartes), na Espanha (Escuela Superior de Paleografia y Diplomática, em 1838), na Áustria (Instituto de Paleografia, em 1854) e na Inglaterra (Paleographical Spciety, em 1873). Neste tempo, assim, a Paleografia é vista como uma ciência.

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No final do século XIX, a fotografia surgiu como novo instrumento importante para a Paleografia e documentos começaram a ter sua reprodução em fac-símiles apresentadas ao público interessado. Nova forma surgiu para servir aos estudiosos e preservadores das escritas, e adquiriu grande importância em todo o século XX. Neste último século, então, a Paleografia, menos disciplinar e mais como técnica popularizada e pragmática, foi se incorporando aos estudos universitários de várias formações e ganhou força nas pesquisas históricas, o que se verifica até nossos dias. Esse comentários contextuais acima, mesmo que superficiais e rápidos, a título de apresentação ao leitor de outros campos que não os da História, nos servem para aquilatar a importância da iniciativa deste livro e sua fundamentação na busca de tratar o documento escrito com uma crítica criteriosa e com rigor investigativo. A complexidade da leitura paleográfica ultrapassa a simplicidade da simples busca pela autenticação. Ela é parte fundamental da crítica ampliada às fontes escritas. É instrumento sem o qual o historiador que utiliza tais fontes não investiga. O conjunto dos documentos e dos textos interpretativos aqui apresentados por graduados, mestrandos e mestres, doutorandos e doutores, nos mostra uma variedade documental interessante. Processos crimes ou embargos, acórdãos ou autos de censura, cartas ou processos de liberdade são substratos daquilo que verdadeiramente tratamos como fontes. Repertórios ricos de dados que permitem aos autores uma exploração criativa de informações, para transformá-los em interpretações plausíveis e em compreensões de um real que tenta escapar de nós. De arquivos nacionais ou de acervos arquivísticos locais, são escritas de outros tempos que permitem uma história viva, pulsante de presentes e de devires. Os autores dos textos que seguem, André Cabral Honor, Carlos de Oliveira Malaquias, Cássio Bruno de Araujo Rocha, Emilly Joyce de Oliveira Lopes Silva, Gusthavo Lemos, Marcus Vinícius Duque Neves, Marileide Lázara Cassoli e Mateus Freitas Ribeiro Frizzone, atentaram por atender ao objetivo deste livro e foram felizes ao construírem interpretações que evocam as possibilidades dos documentos transcritos, optando pela perspectiva e problema definidos. Os textos são claros e sintéticos para atender à demanda da Oficina. A despeito disso, são claramente produzidos com rigor e capricho, com vontade didática e criatividade reflexiva. Precede estes textos, diríamos, analíticos documentais, um necessário capítulo escrito a várias mãos pelos coordenadores da Oficina: Douglas Lima, Fabiana Léo, Gabriel Vieira Chagas, Gislaine Gonçalves, Igor Camilo Rocha, Leandro Gonçalves de Rezende, Ludmila Torres, Luíza R. Parreira, Maria Clara C. S. Ferreira, Mateus Frizzone, Mateus Rezende de Andrade e Rodrigo Paulinelli. “A Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente” aponta tudo o que poderíamos relatar sobre a iniciativa dos alunos. Historiam o trabalho da Oficina, justificando

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sua existência, refletem sobre os documentos escritos e seu papel na construção da narrativa histórica e, por fim, apresentam o pensamento do grupo a respeito da Paleografia no ensino de História. A edição deste livro apresenta uma experiência de oficina paleográfica desenvolvida por estudantes que valorizam esse saber-fazer e que o experimentam em seu cotidiano de pesquisa histórica. Saber, prática e uso cotidiano são aliados poderosos na consistência do que vai aqui exposto ao leitor. Ele não mostra tudo que esses estudantes vivenciam na experiência acadêmica da Oficina de Paleografia. Mais que técnicas e pragmatismos, a Oficina exercita o rigor no trabalho investigativo, a capacidade de abstração e as possibilidades problematizadoras dos objetos documentados pela escrita. Ao leitor atento, é salutar ler as páginas que se seguem com a humildade do aprendiz. Verá lições de jovens historiadores.

Paris (neste momento fria, mas com céu azul, depois de 24 horas de escuridão e chuva), 13 de outubro de 2014.

A Coordenação da Oficina de Paleografia — UFMG 1

a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente 2

Uma iniciativa discente pioneira No ofício do historiador, a leitura e a transcrição paleográfica são fundamentais, primeiramente, pelo seu caráter propedêutico: o de possibilitar o acesso direto às fontes de pesquisa, sem depender da publicação de transcrições e/ou comentários. Essas habilidades podem, ainda, se constituir como fonte de renda adicional ou principal para aqueles que as dominam. No entanto, a leitura paleográfica permanece como uma espécie de nicho, e são relativamente poucos os historiadores por formação que se aventuram nesse campo. É muito frequente que o trabalho com as fontes originalmente manuscritas se dê a partir de publicações impressas ou que a fase da pesquisa relativa à consulta às fontes seja “terceirizada”, deixada a cargo de estagiários e bolsistas ou de prestadores de serviço mais ou menos especializados. É difícil não atribuir esse descompasso entre a importância da leitura paleográfica na 1. ANDRADE, M. R.; CAMILO ROCHA, Igor Tadeu; CHAGAS, G. A. V.; COSTA, R. P. A.; FERREIRA, Maria Clara C. S.; FRIZZONE, M. F. R.; LÉO, Fabiana; LIMA, Douglas; PARREIRA, L. R.; PINTO, G. G. D.; REZENDE, L. G.; TORRES, L. M. P. O.. 2. Uma versão estendida deste texto foi submetida ao II Congresso Brasileiro de Paleografia e Diplomática, ocorrido em junho de 2013, pelos coordenadores Douglas Lima de Jesus, Fabiana Léo Pereira Nascimento, Gabriel Afonso Vieira Chagas, Igor Tadeu Camilo Rocha, Leandro Gonçalves de Rezende e Mateus Freitas Ribeiro Frizzone, com o título “O ensino da leitura paleográfica na Oficina de Paleografia — UFMG: relatos de uma experiência discente”.

a Oficina de Paleografia — UFMG: a construção de uma experiência discente

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pesquisa histórica e o domínio das habilidades a ela relativas pelos historiadores a uma patente lacuna nas grades curriculares dos cursos de graduação, associada à quase inexistência, pelo menos de maneira mais sistemática, de iniciativas extracurriculares nesse sentido. Em uma breve pesquisa sobre a existência de iniciativas de ensino de paleografia estruturadas nos cursos de História de outras instituições realizada no ano de 2013, buscaram-se informações sobre os cursos de graduação em História oferecidos em Belo Horizonte e nas nove universidades federais existentes no estado de Minas Gerais3. O trabalho se deu, quando possível, através do contato com alunos, ex-alunos e docentes; além disso, foram feitas pesquisas nos currículos e nas disciplinas ofertadas, a partir de informações disponíveis nos sites dessas instituições. O fato de não encontrar resultados positivos não significa, necessariamente, a inexistência de tais iniciativas. Porém é possível supor o caráter efêmero e, sobretudo, a baixa divulgação e circulação dessas experiências. Iniciativa de uma dupla de alunos do Departamento de História da UFMG que compartilhavam dificuldades e experiências na transcrição paleográfica entre si, o grupo de estudos então denominado Paleografia e Análise Crítica de Documentos Manuscritos surgiu no segundo semestre de 2009 como um grupo de ajuda mútua entre aqueles que trabalhavam ou pretendiam trabalhar com manuscritos, principalmente dos séculos XVIII e XIX, e se viam às voltas com o desafio de se capacitar, de maneira autodidata, para a leitura de suas fontes de pesquisa. Naquele momento, outros 6 alunos tiveram seu primeiro contato com documentação digitalizada, contato este que se revelou bastante profícuo, uma vez que a totalidade daqueles alunos de alguma forma passou a se envolver em atividades de pesquisa em manuscritos. Com o fim do semestre letivo, a incompatibilidade de horários e sobrecarga de tarefas acadêmicas impossibilitou a continuidade do projeto, que, no entanto, permaneceu vivo como memória de uma experiência modesta, porém bastante frutífera, de aprendizagem construída de maneira colaborativa. No início de 2012, a iniciativa foi retomada. Hoje a coordenação é formada por seis alunos do mestrado, um do doutorado, quatro da graduação e um egresso; desses, cinco são coordenadores desde o início. No seu formato original, ainda que com reuniões abertas ao público, se esperava uma participação pequena de novos interessados. O segundo nome do grupo 3. Foram pesquisados os currículos dos cursos de História das seguintes instituições: PUC MG, Uni-BH, Estácio de Sá BH, UFJF, UFSJ, UFV, UFU, UFTM, UNIMONTES, UNIFAL, UFVJM e UFOP. Vale ressaltar que o currículo do curso de História da Uni-BH prevê uma disciplina de paleografia, porém, segundo informações de docentes, tal disciplina já não é ofertada há algum tempo.

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corrobora com essa dimensão reduzida que fora planejada: Oficina Permanente de Paleografia. O fato de a palavra “permanente” estar presente na denominação aponta para uma vontade de consolidar o projeto de maneira duradoura — vencendo os primeiros encontros e tentando superar a efemeridade de parte considerável dos grupos de estudo criados até então — mais do que para o projeto, que acabou se realizando preterintencionalmente, de ampliação do público-alvo e diversificação das atividades. É importante ressaltar aqui que o público recebido extrapolou muito as expectativas iniciais, não só na quantidade, mas também em sua variedade. Inicialmente essa variedade se deu dentro do próprio curso de História, com participantes de diversos períodos, muitos sem nenhum contato com documentação manuscrita. A grande procura das atividades da Oficina por indivíduos cuja experiência na leitura documental e paleográfica tendia a zero exigiu uma contínua reelaboração de metodologia e objetivos. Essa reestruturação ainda não chegava ao oferecimento de um curso de paleografia propriamente dito, mas na inserção desses interessados nos debates do grupo — ainda compreendido como de ajuda mútua, apesar dessa primeira ampliação — dispensando uma parte do tempo das reuniões para discutir e trabalhar questões muitas vezes já tidas como conhecimento comum para o grupo fundador. Rediscutir esses aspectos de forma diluída ao logo dos encontros não foi, entretanto, penoso e enfadonho, e sim muito enriquecedor. Resultado disso foi a incorporação, de maneira permanente, dos componentes historiográficos e contextuais relacionados aos manuscritos trabalhados, que foram ganhando, como veremos adiante, um espaço maior nas discussões semanais. A Oficina passou, gradualmente, a se consolidar como um algo a mais do que um grupo de estudos, tornando-se um projeto de atuação cada vez mais multifacetada e plástica e, talvez por isso, não definível por nenhuma das nomenclaturas tradicionais para iniciativas extracurriculares no âmbito da universidade. A coordenação se estabeleceu propriamente como um grupo de estudos que planeja, estrutura e oferece um curso com componentes teóricos, historiográficos e práticos, visando promover com seu público treinamento na leitura elementar e crítica e na transcrição de fontes manuscritas modernas em língua portuguesa. Ao ampliar as atividades de modo a incluir público externo à universidade, de uma maneira inicialmente tímida, mas mais sistemática nos projetos futuros, é possível dizer que a Oficina vem se tornando uma espécie de guarda-chuva de projetos menores, atuando, assim, tanto no nível da pesquisa como do ensino e da extensão4 . 4. As atividades semanais da Oficina são gratuitas e abertas a todo o público interessado. O grupo também oferece minicursos em eventos acadêmicos, buscando sempre novas parcerias para ofertálos à comunidade em geral. Atendendo à solicitação de alguns professores do Departamento de

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Vale acrescentar ainda que o alto índice de interessados se deu pelo sucesso da divulgação oral, sendo importantíssima a contribuição de alguns professores do Departamento de História da UFMG. Além disso, a coordenação da Oficina utilizou extensamente as mídias sociais, começando pela internet, com a criação do site e da página na rede social Facebook5 e a maciça divulgação nesses meios, assim como a utilização das mídias institucionais da Universidade Federal de Minas Gerais. Para maximizar o alcance, era necessário simplificar o nome do projeto, buscando o seu enraizamento entre o público alvo. Dessa forma, chegamos à nossa terceira e última designação, Oficina de Paleografia — UFMG. A supressão do termo “permanente” refletiu a constatação de que a iniciativa havia extrapolado seus objetivos e desafios iniciais, gerando mais confiança quanto à superação do antigo risco de desintegração. A respeito da explicitação do recorte linguístico-temporal da atuação da Oficina (do termo genérico “paleografia”, contido na denominação do projeto, ao um pouco mais específico “paleografia portuguesa moderna”, que passou a constar na descrição da iniciativa tanto nos documentos de apresentação do projeto à universidade e seus interlocutores como nos canais de comunicação com o público-alvo) cabe ressaltar que ela é resultado de pelo menos 3 processos: (a) a consciência, cada vez mais clara, da extensão do campo do conhecimento que pode ser denominado Paleografia, em sua abrangência espaço-temporal e cultural, em seu caráter científico e teórico-metodológico próprio e em seus múltiplos diálogos e interinfluências com os mais variados campos do saber humano; (b) a percepção cada vez mais nítida da limitação da capacitação adquirida até então pelos coordenadores (baseada, como discutiremos adiante, no autodidatismo) combinada a uma limitação também da disponibilidade de tempo e materiais de estudo para acelerar essa capacitação, o que levou a definir objetivos diferenciados para o curto, o médio e o longo prazo e (c) a necessidade, diante do aumento e diversificação exponenciais do público interessado, de recortar e explicitar melhor a atuação possível, dentro da disponibilidade de materiais e capacitação da coordenação, no curto e médio prazo.

História e da Escola de Belas Artes da UFMG, ministrou aulas de introdução à paleografia em suas respectivas disciplinas de cursos de graduação. Finalmente, em 2014, desenvolveu um projeto paralelo no Colégio Pedro II, em Belo Horizonte, com alunos de Ensino Médio, projeto este que tem a perspectiva de se estender a outras instituições de educação básica da região. 5. Os endereços são: oficinadepaleografia>.



e

. Acesso em: 09 abr. 2014.

Documento 1 Carta do capitão-mor de Itamaracá, José Fernandes da Silva, ao rei [D. João V], sobre o procedimento dos freis Miguel da Assunção e Manoel de São Gonçalo Disponível no Arquivo Histórico Ultramarino, notação AHU_ACL_CU_015, Cx. 34, D. 3164

Data 24 de setembro de 1726

Resumo Carta do capitão-mor de Itamaracá, José Fernandes da Silva, ao rei D. João V, sobre o procedimento dos freis Miguel da Assunção e Manoel de São Gonçalo, do Convento do Carmo Reformado da dita vila, contra alguns religiosos e contra o ajudante de ordens Antônio Gonçalves Pereira. O dito capitão se queixa das condutas dos freis, tanto morais quanto no que se refere às interferências políticas na administração de Goiana. O documento foi digitalizado a partir do microfilme e apresenta muitas manchas e transferências de tinta.

1. Nota dos Transcritores: Esta transcrição, bem como todas as demais contidas nesta obra, foi elaborada para utilização nos encontros semanais da Oficina de Paleografia — UFMG e está de acordo com as Normas Técnicas para Transcrição e Edição de Documentos Manuscritos. Disponível em: . Acesso em: 19 de agosto de 2014.

[fl. 1]



1 Senhor

1

1. Nota de mão alheia..

2

2. Nota de mão alheia (caligrafia diferente da nota anterior).

2 Entrando no governo desta Capitania de Itamaracá, de que hê Donatário o Mar — 3 quês de Cascais em Julho do anno passado de 17253, que ocupaçoẽns do lu 4 gar deychey de dar conta a Vossa Magestade da inquietação muito antigua, que no 5 politico, e militar Cauza Frey Miguel de Assumpção, Frey Manoel de Saõ 6 Gonçallo, que há mais de 28 annos Se perpetuaõ Prelados alternativamente, 7 neste convento do Carmo da Reforma desta Vila de Goyanna, Rezidencia 8 dos capitoens Mores desta. 9 Estes dous Religiosos esquecidos do temor de Deos, e de Vossa Magestade inten 10 taraõ devertir4 Com amiaças ao meo Ajudante Antonio Gonçalvez Pereira para menam 11 obediser e menos e executar varias deligencias de prender Criminozos que 12 lhe avia emcarregado, SobLevando do Serviço de Deos, e de Vossa Magestade, e do 13 Socego desta Terra: e por que lhemandey pedir satesfaçaõ destes car14 gos, em vingança de naõ Ser Seo preçoadido dito Ajudante o deitaraõ fora 15 das terras do convento donde morava: Proferindo contra antençaõ do meo Lu 16 gar injurias, amiaças, e calunias actualmente escandalizaõ os Seculares 17 pella perpetuaçaõ que os ditos Religiozos Sobornaõ as Prelazias: por que Se hú 18 deixa de Ser Prior hú Irmão hê para que o outro lhessoceda dito[?] o cómissário 19 que Val o mesmo que o logar de Provincial, que agora neovamente Criaram por 20 isso traziam a muitos Riligiozos fugidos por Se conservarem melhor nos 21 Cargos que nunca Largão, Como exprimentam Reis [ilegível] Spiritu Santo 22 extraminando5 deste convento por não Sair nas eLeyçoens, e poir isso se es23 tão passando para os Carmelitas calçados maiores dos Seos religiozoz Com 24 menores gastos de Roma, deyxandolhes Seos dottes como grande perjuizo de 25 Seos Pais, e parentes que tudo Suportão pellos Res[guar]darem do cativeiro 26 em que vivem, e em nome destas pessoas Sepede a Vossa Magestade o Remedio ma 27 is [ta]nto o trabalho[?].

28 Naõ Concentem o natural do Brazil cargo algũ, nem pra 29 ticaõ a alternativa, que nas mais Religioins Costumaraõ entre huns, e outros na 30 turaes, Este hê o estados dos Seos Religiozos, ou Suas Reputaçoeñs: quanto a com 31 Servação dos Seos Patrimônios para seos uzos Reprovados hê taõ exceciva 32 mente pessimo, que em Suma direy o que todos estamos vendo: DeyxandoSelhes 33 o engenho de Japomina, vizinho desta Vila mointe, e conciente em nome 3. Nota dos Transcritores: Utiliza-se o grifo duplo quando o trecho está grifado no original (critério nosso), e o grifo simples para indicar o desenvolvimento de abreviaturas, como recomendam as Normas Técnicas. 4. Provavelmente corruptela de “advertir”. 5. Arrependimento na quarta sílaba.

[fl. 1v]

1 Derrendeyros que pagavão missas de SeisCentos mil reis por anno, 2 Com lavradores, canas, escravos, Cobres, bois, bestas, Terras de pastoz 3 e matos muitas obras de tijollo, e pedra, que mobia com agoa: e para[?] isso 4 fazenda principal, que tudo valia milhor de quarenta mil cruza 5 dos, estâ em tal estado pello Ser governo, gastos de Prelazias 6 pessoais, que pedra sobre pedra lhe não deycharam, que pasmos 7 o escandallo de tanta desolaçaõ.

8 Peor, e mayor escandallo padesse o outro emgenho cha 9 mado Jacarê tambem vizinho desta villa, que com Seos uzos 10 e Prelazias o tem destruhido, vendendolhe os escravos, cobrez 11 e pondoo em pastos de Gado alhu[re]s.

12 Sam tam escãdalozos estes dous Religiozos que 13 o dito Frey Miguel ConServa nas Suas terras do Acahû huma es 14 crava do convento para Seos uzos mundanos dando continua 15 mente aSiste alem de outras muitas que, para esse effeito Seguardaõ 16 e padecem enquistaçoens pello naõ ConSentirem impudicamente 17 Com mesmo escandallo vive o dito Frey Manoel 18 de São Goncallo Pois tem nesta Vila ajuntamento com muitas molheres 19 e filho de Certa molher Cazada Com Benedito Soares natural 20 do Reyno de quem a aPartou alem de outros ajuntamentos que conserva 21 vizinhos do Seo convento: tanto que as Sabindas Serresanberçe [sic] 22 nesta Vila.

23 O exercicio destes dous Religiozos hê trazêrem 24 Estes governannos emvolvidos com Juizes Seos pareites para os te 25 rem de Suas maũs para que naõ desse parte a Vossa Magestade dos Seos vicioz 26 no Seo Convento hê onde Secostuma goardar a Cayxa dos Peloyros 27 e todas as vezes que lhesparese Com os Seos embandeyradoz abrem 28 e fazen outros Peloyros afim de meterem por Juizes aos do seu Sequi 29 to Por estes vicios ja Vossa Magestade que Deos Guarde fas Servido mandar 30 extraminar desta Villa ao dito Frey Miguel; que tendo notica 31 desta ordem Ser[i]terou para o convento do Recife, e fingindoce doente, tan 32 to que a frota fez v[i]agem Setorno a Ricolher a esta Vila a fazer 33 pior do que fazia por que naõ pode passar Sem pacialidadez por 34 certas as cameras delle Sequeyxem, e que tudo Seacabase fomentã 35 do discordiar com os capitaens Mores todas as vezes que lhes nam 36 fazem Suas vontadez:

37 Por esta pedimos a Vossa Magestade a extraminaçaõ destes dous 38 Religiozos para os Seos Conventos da Parahiba, ou Pernambuco, e que Semi 39 formem [sic] para quem Vossa Magestade for Servido. Nosso Senhor Conceda a Vossa Magestade 40 a saude e, vida de que carecemos. Goyanna 24 de Septembro de

[fl. 2]

1 De 1726

2 Do Capitam Mor de Itamaracá Jozeph Fernandez da Silva

[fl. 2v]

1 Sua Magestade he Servido que ven[doce] 2 no Conselho as seis cartas incluzas do Capitam 3 mor de Itamaraca Joseph Fernandes da Silva, 4 Selhe consulte o que parecer sobre os pontos de que 5 nellas fas menção. Deoz guarde aVossa Mercê Paço, 6 22 de Abril de 1727.

7 Despacho de Merce Cosselho Real

8 Por[?] Antonio [perda no suporte]

Carmem Marques Rodrigues Mestre em História pela UFMG, bolsista CAPES

Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas

Os mapas das Grandes Navegações Quando as barcas portuguesas partiram em busca das ilhas lendárias do Atlântico e se depararam com o arquipélago das Canárias, uma nova relação entre o homem e o mar começou a ser construída. A partir do século XV, Portugal enxergou na imensidão do mar, que se alarga ao longo da sua costa, uma possibilidade de expansão1. Com o apoio financeiro de um rei da Península Ibérica, uma expedição marítima conduzida por marinheiros italianos parte em busca das ilhas que se dizia existirem em algum lugar do Atlântico. Guiados por mapas contendo uma mistura de elementos reais e imaginários, eles descobrem uma série de ilhas nas quais encontram uma sociedade pagã previamente desconhecida da Europa. Levam prisioneiros humanos, que acreditam interessar a mercadores da Europa. A notícia sobre as ilhas se espalha rápido e chega ao papa, que se considera no direito de conceder sua propriedade a quem julga apropriado — e, ao fazê-lo, provoca uma corrida entre diferentes monarcas ibéricos para investigar, explorar e cristianizar a região2. 1. Ver em: CORTESÃO, Jaime. História da expansão portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1993; RUSSELL-WOOD, A.J.R. Um mundo em movimento: os portugueses na África, Ásia e América (1415-1808). Lisboa: Difel, 1992. 2. LESTER, Toby. A quarta parte do mundo. A corrida aos confins da Terra e a épica história do mapa que deu nome à América. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p.137.

Os Portugueses e os Mapas: relações histórico-cartográficas

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Todavia o movimento de expansão não era realizado às cegas. Ao mesmo tempo em que utilizava o conhecimento naval e cartográfico de marinheiros italianos e catalães, Portugal, ao se lançar no mar, também carregava uma concepção geográfica que misturava conhecimentos práticos e imaginários. Nesse período, entre o final do século XIV e o início do século XV, os europeus vivenciavam um movimento de transformações em suas concepções cosmológicas que culminou na reestruturação da concepção geográfica do mundo que possuíam3. Com o incentivo dos humanistas italianos, vários manuscritos da antiguidade foram redescobertos, estudados e traduzidos, dentre eles, a Geografia, de Claudio Ptolomeu4. Sua redescoberta não só abriu as portas da geografia do mundo antigo, como também mostrou a chave para o conhecimento do mundo moderno. Assentado em cálculos matemáticos, Ptolomeu mostrou aos europeus um método muito mais eficaz de cartografar o mundo, baseado em coordenadas geográficas: European advances in seafaring were related to the revival of Ptolemaic cartography, which was indirectly reintroduced by the Muslims. (…) Portolan charts, which had originated in the thirteenth century, were also vital to the European cartographical renaissance. Their emphasis on scale and accurate depiction of coastlines was based on empirical observation (including use of the compass), a process quite distinct from Christian cartography prevalent at that time in Europe5.

Ao longo do século XV, o principal objetivo dos portugueses foi conquistar entrepostos na costa africana e, finalmente, alcançar uma rota marítima para as Índias6. O grande problema consistia na efetividade dessa missão, pois a rota marítima para a Ásia era desconhecida dos europeus. Para obter a certeza necessária e legitimar suas pretensões, Afonso V buscou o conhecimento dos renascentistas italianos sobre as possibilidades da rota marítima para as Índias via costa africana. 3. A expansão do mundo europeu e suas transformações podem ser vistas nas obras: COWAN, James. O sonho do cartógrafo. Meditações de Fra Mauro na corte de Veneza do século XVI. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. HARLEY, John & WOODWARD, David. (Orgs.) History of Cartography: Cartography in Pre-historic, Ancient, and Medieval Europe and Mediterranean; JACOB, Christian. The Sovereign Map: theoretical approaches in cartography throughout history; LESTER, Toby. A quarta parte do mundo. A corrida aos confins da Terra e a épica história do mapa que deu nome à América; LESTRINGANT, Frank. A oficina do cosmógrafo ou a imagem do mundo no Renascimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 4. LESTER, Toby. A quarta parte do mundo, p. 150-168. 5. KLINGHOFFER, Arthur J. The power of projections: how maps reflect global politics and history. Westport, Conn.: Preager Publischers, 2006, p.55. 6. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O início da expansão ultramarina (século XV). In: RAMOS, Rui (coord.), VASCONCELOS E SOUSA, Bernardo e MONTEIRO, Nuno Gonçalo. História de Portugal. 4ªed. Lisboa: Círculo de Leitores, 2010, p. 172-196.

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This knowledge that one could travel around Africa to Asia was secured from the Muslims by the Venetian cartographer Fra Mauro of San Michele, who had been hired by Afonso V of Portugal to produce a world map. Fra Mauro’s 1459 work, submitted to the Portuguese crown, depicted the sea passage to Asia and a rather accurate shape for Africa. Portugal therefore has a distinct advantage over Spain, which did not possess this information7.

O mapa de Fra Mauro era a confirmação que os portugueses precisavam de que as custosas viagens pela costa africana seriam recompensadas. O mapa de Fra Mauro é um híbrido magnífico, mas desvirtuado: um gigantesco mapa-múndi circular, com quase 1,80 metros de diâmetro, às vezes descrito como o último grande mappamundi medieval. Mas ele é muito mais que isso. Orientado com o sul no topo, ao estilo islâmico, o mapa reproduz a visão tradicional medieval cristã do mundo, mas sobrepõe-lhe uma riqueza de informações retiradas de outras fontes: cartas náuticas portuguesas e italianas, os escritos de Ptolomeu e Estrabão, relatos de comerciantes e mercadores árabes, as histórias de Marco Polo e Niccolò Conti, e mais. (...) Mauro não deixou nenhuma dúvida sobre a viabilidade de se navegar ao redor da África8.

Na década de 1480, um novo projeto de caminho para as Índias foi apresentado à Corte portuguesa pelo marinheiro Cristóvão Colombo. Com base nos cálculos e mapas construídos a partir das tábuas de Ptolomeu, Colombo afirmou que a circunferência da Terra possibilitava a navegação para as Índias, do leste para o oeste, ou seja, que a proximidade entre Europa e Ásia poderia ser transposta diretamente pelo mar, sem a necessidade de contornar a África. No entanto, os cosmógrafos portugueses, experientes na navegação, tinham seus próprios cálculos sobre a circunferência da Terra e alertaram o Rei sobre o perigo dessa empreitada. A persistência portuguesa foi coroada com a frota de Vasco da Gama que, em 1499, chegou às Índias via costa africana, desmentindo os cálculos de Colombo, afirmando a geografia moderna e prática dos portugueses. “Mapmaking had become a matter of politics and geometry, with no religious principles applied. The age of Christian cartography was over as European states moved in the direction of rationalism and empiricism — as well as global rivalry”9.

7. KLINGHOFFER, Arthur J. The power of projections, p.57. 8. LESTER, Toby. A quarta parte do mundo, p.244. 9. KLINGHOFFER, Arthur J. The power of projections, p.64.

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Durante o auge da expansão portuguesa, a cartografia recebeu atenção especial dos monarcas10. Além do trabalho dos cosmógrafos-mores, como Pedro Nunes11, Luís Serrão Pimentel12 e Manoel Pimentel13, que ditavam as regras da cartografia oficial e do ensino da cosmografia e da matemática, algumas famílias de cartógrafos desenvolveram um importante trabalho com a construção de vários Atlas e mapas-múndi14. A cartografia portuguesa era eminentemente uma produção oficial e sigilosa. Em função disso, a produção manuscrita se sobressaiu à impressa, fato que provavelmente dificultou a sobrevivência de muitos mapas. Todavia, a curiosidade das nações estrangeiras e o uso dos mapas tanto para decoração, como para o ensino proporcionaram uma florescente produção cartográfica impressa, principalmente 10. MARQUES, Alfredo Pinheiro. Origem e desenvolvimento da cartografia portuguesa na época dos descobrimentos. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1987. 11. Pedro Nunes (1502-1578) foi matemático, cosmógrafo-mor e professor da Universidade de Coimbra. Como homem de gabinete, traduziu alguns textos clássicos da época como O Tratado da Esfera, de Sacrobosco e o livro primeiro da Geografia de Ptolomeu. Também publicou obras originais como o Tratado de Certas Dúvidas de Navegação (1547), e o Tratado em Defensão da Carta de Marear (1539). 12. Luís Serrão Pimentel (1613-1679) ocupou os cargos de Cosmógrafo-mor (1644) e de Engenheiromor do reino (1671). No contexto da Guerra da Restauração da independência portuguesa trabalhou nas obras de fortificação das praças-fortes de Évora, Estremoz, Mourão, Portalegre, entre outras no Alentejo. A partir de 1647, foi professor da “Aula da Matemática” ou Aula de Fortificação e Arquitetura Militar na Ribeira das Naus, onde lecionou Matemática, Navegação e Arquitetura militar. Considerado uma das figuras mais importantes do meio técnico português do século XVII, foi autor da obra Methodo Lusitanico de Desenhar as fortificaçoens das Praças Regulares e Irregulares (1680). 13. Manuel Pimentel (1650-1719), graduado em Direito Civil e Canônico pela Universidade de Coimbra, foi cosmógrafo-mor e autor de Arte de Navegar (1712). Ver em: FERREIRA, Nuno A. M. Luís Serrão Pimentel (1612-1679). Cosmógrafo mor e Engenheiro mor de Portugal. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2009. (Dissertação em História) 14. Segundo Armando Cortesão, os Reineis foram a primeira família importante de cartógrafos de Portugal, Pedro Reinel e seu filho Jorge construíram várias cartas onde registraram os avanços científicos dos portugueses no além-mar. Juntamente como a família Homem, formada por Lopo Homem, e seus filhos André e Diogo, foram os principais cartógrafos portugueses do século XVI. Os Albernaz formam uma importante família de cartógrafos que produziu diversos mapas e atlas ao longo do século XVII. João Teixeira Albernaz I era filho do cartógrafo Luís Teixeira, a ele é atribuído o atlas Razão do Estado do Brasil datado de 1616 que tem várias cópias feitas em anos posteriores. Seu irmão Pedro Teixeira optou pela carreira na Espanha. João Albernaz II era neto de Albernaz I, ficou conhecido pelas atualizações que fez no Atlas do Brasil, mas principalmente pelo seu Atlas da África de 1665. Uma de suas cartas foi utilizada pelos diplomatas portugueses durante a Conferência de Badajoz (1681). Ver em: CORTESÃO, Armando. Cartografia portuguesa antiga. Lisboa: Comissão Executiva das Comemorações do Quinto Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1960 e ___. Cartografia e cartógrafos portugueses dos séculos XV e XVI. Lisboa: Edição da Seara Nova, 1935; CORTESÃO, Jaime. História do Brasil nos velhos mapas. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores, Instituto Rio Branco. 1965-1971.

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nas Províncias Unidas, na França, na Inglaterra e em algumas regiões da Itália e da Alemanha.15 Grande parte dessa produção se alimentava não só dos manuscritos portugueses, mas também de relatos de viajantes. Por isso, quanto ao Brasil, os mapas muitas vezes reproduziam vários mitos geográficos16. Pelo pouco conhecimento que se tinha do interior, o maior número de informações fidedignas se concentrava na costa e ao interior ficava reservada a imaginação dos cartógrafos. A política de segredo empreendida pelos monarcas inibiu o aparecimento em Portugal de uma cartografia impressa voltada para o consumo, produzida na França por geógrafos como D’Anville, que sintetizavam os mapas de grandes extensões de terra as informações levantadas no terreno por terceiros. Em Portugal, mapas eram produzidos principalmente para municiar o Estado e, em geral, permaneciam como manuscritos, desenhados pelos engenheiros-militares que realizavam seus próprios levantamentos topográficos.17

A febre cartográfica do século XVIII: o desenvolvimento da cartografia portuguesa A partir do final da União Ibérica, em 1640, Portugal deu início a um processo de articulação internacional para legitimar a nova casa reinante. Além de apaziguar os ânimos internos e consolidar a nova dinastia, também era preciso resguardar a posse das colônias que lhe restaram no Império, bem como recuperar algumas perdidas para os holandeses18. Mas foi a partir virada do século XVII para o XVIII que Portugal enfrentou três fatores que interferiram diretamente nos rumos políticos, econômicos e tecnológicos do Império ultramarino: a descoberta do ouro e dos diamantes no sertão brasileiro, a Guerra de Sucessão Espanhola e a Dissertação que 15. PEDLEY, Mary S. The commerce of cartography, p. 19-98; ALPERS, Svetlana. A arte de descrever: a arte holandesa do século XVII. São Paulo: Edusp, 1999, p. 241-318. 16. Entre os mitos geográficos mais famosos e duradouros do Brasil, está o mito da Ilha-Brasil que esteve diretamente ligado com a definição das fronteiras entre Espanha e Portugal na América. CORTESÃO, J. História do Brasil nos velhos mapas, p.115-160; HOLANDA, Sérgio B. Um mito geopolítico: a Ilha Brasil. In: Tentativas de mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 61-84; KANTOR, Iris. Usos diplomáticos da Ilha-Brasil: polêmicas cartográficas e historiográficas. In: Varia História: Belo Horizonte. v.23. n.37. p. 70-80, 2007. 17. FURTADO, Júnia F. Oráculos da Geografia iluminista: Dom Luís da Cunha e Jean Baptiste Bourguignon D’Anville na construção da cartografia do Brasil, p. 152. 18. MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste (16411669). São Paulo: Cia. das Letras, 2010; BOXER, C. Salvador Correa de Sá e a luta por Angola, 16021686. São Paulo: Cia. Editora Nacional, Editora da Universidade de São Paulo, 1973; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. A Guerra no império. In: RAMOS, Rui (coord.), SOUSA, Bernardo e V. e MONTEIRO, Nuno Gonçalo. História de Portugal, p. 316-322.

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o geógrafo francês, Delisle, publicou sobre a posição dos meridianos, que interferiu diretamente no posicionamento das conquistas portuguesas e espanholas19. Vejamos. As notícias das descobertas de ouro, por volta de 1696, e dos diamantes, em 1729, foram recebidas com alívio e, ao mesmo tempo, apreensão no reino20. Todavia marcaram a ascensão de Portugal na Europa pela opulência e pelo fausto das riquezas coloniais. Em Portugal, os Setecentos foram marcados pelo esplendor das riquezas oriundas das minas brasileiras. Se Luís XIV foi o Rei-Sol, dom João V foi o Imperador-Sol, pois o ouro brasileiro fez resplandecer seu império transoceânico. (...) Em Lisboa, a descoberta das tão almejadas gemas foi motivo de festa e procissões que mobilizaram o povo português. Felicitações chegavam de toda a Europa21.

O que antes era o incógnito sertão recebeu um verdadeiro rush de aventureiros de toda sorte. Rapidamente o interior do Brasil, antes espaço do maravilhoso, das lendas, dos índios ou mesmo do vazio22, se tornou importante para a sobrevivência do Império português. Era urgente a necessidade de traduzir aquela extensão territorial em mapas, para auxiliar a Coroa no processo de implantação de uma administração racional e eficaz. “Ou seja, era necessário organizar espacialmente o Brasil de uma forma lógica, o que não era possível fazer-se sem possuir mapas detalhados”23. A necessidade de conhecer e confirmar a posse das terras na América, que inundavam Portugal de ouro e pedras brilhantes, ficou ainda mais latente durante os conflitos da Guerra de Sucessão Espanhola. O conflito europeu se estendeu para as colônias, tendo claros reflexos nas bandas setentrional e austral do Brasil24. 19. Cf. FURTADO, Júnia F. Paris 1720-1740. In: Oráculos da Geografia iluminista: Dom Luís da Cunha e Jean Baptiste Bourguignon D’Anville na construção da cartografia do Brasil, p. 301-351. 20. ROMEIRO, Adriana. O negócio das Minas. In: Paulistas e emboabas no coração das Minas: idéias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008, p. 35-80, esp. 30-39. 21. FURTADO, Júnia F. Chica da Silva e o contratador dos diamantes, p.28. 22. FURTADO, Júnia F. O paraíso e seus mitos. In: O mapa que inventou o Brasil. São Paulo/Rio de Janeiro: Odebrecht/Versal, 2013, p.244-285; DELVAUX, Marcelo Motta. As Minas imaginárias: o maravilhoso geográfico nas representações sobre o sertão da América Portuguesa — séculos XVI a XIX, p. 71-132. 23. ALMEIDA, L.F. A formação do espaço brasileiro e o projecto do Novo Atlas da América portuguesa, p.80. 24. GUEDES, Max Justo. Os limites territoriais do Brasil a norte e nordeste. In: ALBUQUERQUE, Luis de (org.). In: Portugal no mundo. Lisboa: Publicações Alfa, 1989, v.5, p. 202-22.

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Portanto era essencial salvaguardar de invasões as fronteiras brasileiras para evitar que o interior, repleto de riquezas, fosse tomado. Tal constatação ficou ainda mais evidente durante as negociações do Tratado de Utrecht. Sofrendo com a falta de informações sobre a região amazônica, principalmente pela ausência de mapas, os diplomatas portugueses se desdobraram para anular os argumentos franceses e assegurar a navegação exclusiva do rio Amazonas, confirmando, assim, a fronteira entre as colônias no rio Oiapoque25. As negociações ficaram ainda mais difíceis quando o assunto girou em torno da Colônia do Sacramento. Nesse caso, os mapas tornaram-se ainda mais importantes, na medida em que constituiriam a fonte de legitimidade necessária para os portugueses na mesa de negociação. “Para tanto, o conhecimento geográfico deveria ser aprimorado e expresso numa cartografia mais aperfeiçoada, que representasse particularmente as regiões consideradas mais sensíveis e estratégicas para a coroa”26. O projeto de incentivar e revigorar a produção cartográfica portuguesa já era latente quando Guillaume Delisle27 apresentou um novo trabalho para a Academia Real das Ciências de Paris. Para piorar a situação portuguesa, Delisle contestava, com informações científicas — pois utilizou as recentes medidas de longitudes a partir dos eclipses dos satélites de Júpiter —, a posição da linha demarcatória do Tratado de Tordesilhas28. De acordo com a Détermination géographique de la situation et de l’étendue des différente parties de la Terre29, as áreas de pretensão francesa no Cabo Norte situavam-se foram da linha de Tordesilhas, portanto estavam indevidamente em posse dos portugueses. A mesma situação ocorria, ao sul, em relação à Colônia do Sacramento. “Seu impacto foi muito além das paredes da instituição, transformando, a partir de então, toda a arte da cartografia, pois provocou uma reorientação das terras pelo globo”30. Foi mais um golpe fatal às conquistas 25. Ver em: ALMEIDA, L. F. A formação do espaço brasileiro e o projecto do Novo Atlas da América portuguesa, p. 47-66; FURTADO, Júnia F. Oráculos da geografia iluminista: dom Luís da Cunha e Jean-Baptiste Bourguignon D’Anville na construção da cartografia do Brasil, p. 239-504. 26. FURTADO, Júnia F. Oráculos da geografia iluminista, p. 241. 27. Guillaume Delisle (1675-1726) foi um renomado cartógrafo francês, além de membro da Academia Real de Ciências de Paris, foi escolhido como Primeiro Geógrafo do Rei em 1718. Era um típico geógrafo de gabinete que contava com o mecenato real para a produção de seus mapas. DAWSON, Nelson Martin. L’atelier Delisle: l’Amérique du nord sur la table à dessin. Sillery, Quèbec: Editions du Septentrion, 2000; PELLETIER, Monique. Cartographie de la France et du monde de la Renaissance au siècle des lumiéres. Paris: Bibliotèque Nationale de France, 2001. 28. Ver em: FURTADO, J. Oráculos da geografia iluminista, p. 304-311. 29. DELISLE, M. Determination geographique de la situation et de l’etendue des diferentes parties de la terre. Des Sciences. Paris: Academie des Sciences de Paris, 1722. p. 365-384. 30. FURTADO, Júnia F. Oráculos da geografia iluminista, p. 304.

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portuguesas pelo globo, pois, assim como o Mares Liberum, de Hugo Grotius (1609), o trabalho de Delisle jogava por terra os limites impostos pelo Tratado de Tordesilhas ao avanço das demais potências europeias em direção às suas colônias. Diante dos fatos, Dom Luís da Cunha ressaltou a importância de concentrar esforços no desenvolvimento científico da cartografia em Portugal e no levantamento da geografia do Brasil, e defendeu que era essencial fazer “observações astronômicas recentes, uma vez que sem elas não era possível contestar a opinião de um geógrafo consagrado como Delisle”31. Diante de todos esses fatores, Dom João V deu início a uma verdadeira febre cartográfica, já que a produção de mapas tornou-se prioridade para a manutenção do Império português32. No reino, Manoel de Azevedo Fortes33, engenheiro-mor, foi o grande responsável pela reforma e incentivo ao ensino da engenharia-militar. Os tratados publicados por Azevedo Fortes foram o resultado concreto do impulso de renascimento da ciência do desenho geográfico promovido por D. João V e basicamente são uma síntese dos congêneres (...). A novidade dos seus tratados residiu na didática com que expôs o método mais prático de proceder aos levantamentos de campo e à maneira de transpô-los para o papel, fruto da sua experiência pessoas e da síntese dos manuais franceses.34

Em outra frente de trabalho, Dom João V foi buscar na Itália dois estudiosos jesuítas. Seu objetivo era que eles trabalhassem, em conjunto com jesuítas portugueses, no projeto do Novo Atlas da América portuguesa35. Assim os padres João 31. ALMEIDA, L. F. A formação do espaço brasileiro e o projecto do Novo Atlas da América portuguesa, p. 68. 32. BUENO, Beatriz P. S. Desenho e Desígnio: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822), p. 101-37. 33. Manuel de Azevedo Fortes (1660-1749) teve sólida formação letrada e entrou em contato com os tratados de matemática e engenharia que circulavam pela Europa, levou esse conhecimento para Portugal onde teve importante atuação. Publicou os manuais: Tratado do modo o mais fácil e o mais exacto de fazer as cartas geográficas assim na terra como no mar, e tirar as plantas das praças (1722) e o Engenheiro português (1729) e iniciou o projeto de construção da grande carta topográfica de Portugal. Ver em: BUENO, Beatriz P. S. Desenho e Desígnio: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822), p. 101-37; RIBEIRO, Dulcyene Maria. A formação dos engenheiros militares: Azevedo Fortes, Matemática e ensino da Engenharia Militar no século XVIII em Portugal e no Brasil. São Paulo: USP, 2009. (Tese, doutoramento em Educação). 34. BUENO, Beatriz P. Decifrando mapas: sobre o conceito de ‘território’ e suas vinculações com a cartografia, p. 207. 35. ALMEIDA, L. F. A formação do espaço brasileiro e o projecto do Novo Atlas da América portuguesa, p. 73-142; BUENO, Beatriz P. S. Desenho e Desígnio: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822), p. 311-17; COSTA, Antônio G. (Org.), RENGER, Friedrich E. FURTADO, Júnia F. SANTOS, Márcia M D. Cartografia das Minas Gerais: da capitania à província, p. 139-45.

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Baptista Carbone36 e Domingos Capassi37 foram contratados. Domingos Capassi e o jesuíta português, Diogo Soares, seguiram para o Brasil com o objetivo de estabelecer o meridiano do Rio de Janeiro e, a partir dele, fazer o levantamento cartográfico do Brasil. Por essa mesma época, o monarca intensificou a formação de uma Biblioteca Real e mandava comprar, em toda a Europa, instrumentos, livros, Atlas, estampas e todo o tipo de material necessário ao desenvolvimento científico38. A biblioteca real, no entanto, não era apenas um “lugar onde estão muitos livros em estantes”. Ela se constituiu como um espaço irradiador do programa científico joanino, aberto às Luzes, caracterizado pela renovação e abertura do conhecimento. (…) Desse ponto de vista, pode-se dizer que a livraria régia era a consolidação de um projeto científico mais amplo, de viés enciclopédico e iluminista39.

A instalação do observatório no Paço da Ribeira e a chegada dos padres matemáticos intensificaram ainda mais o trabalho dos diplomatas responsáveis pela compra e envio dos instrumentos matemáticos, necessários para realizar o levantamento cartográfico do Reino e do Brasil40. Para demonstrar publicamente a importância que o monarca dedicava ao conhecimento e à cultura das Luzes, bem como para equipar a elite pensante portuguesa com os livros, estampas, gravuras e mapas necessários à sua formação, dom João V organizou volumosas bibliotecas e ampliou outras já existentes, com vistas à modernização e o progresso do reino. (...) Essas livrarias deveriam ostentar as obras clássicas, mas também o que de melhor e mais novo estivesse sendo produzido tanto em Portugal quanto no exterior41.

36. João Baptista Carbone (1694-1750). Entrou para a Companhia de Jesus em 1709 onde teve sólida formação letrada. Natural da Itália veio para Portugal em 1722, onde permaneceu até sua morte. Realizou diversos trabalhos de observação, foi nomeado matemático régio, reitor do Colégio de Santo Antão e conselheiro de Dom João V. 37. Domingos Capassi (1694-1736). Entrou para a companhia de Jesus em 1710, atuou como professor em Nápoles, sua terra natal, e veio para Portugal junto com Carbone. Foi enviado para a missão no Brasil em 1729, ao lado do padre português Diogo Soares. 38. Sobre a biblioteca de Dom João V ver em: FURTADO, Júnia F. Oráculos da geografia iluminista, p.211-238 e FURTADO, Júnia F. Bosque de Minerva. In: O mapa que inventou o Brasil, p. 94-130. 39. FURTADO, Júnia F. O mapa que inventou o Brasil, p. 96. 40. ______. O mapa que inventou o Brasil, p. 105-19. 41. ______. Oráculos da geografia iluminista, p. 211-2.

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Em 1729, Domingos Capassi partiu para o Brasil com Diogo Soares42. Os dois deveriam seguir as vastas instruções do Rei43, que também foram encaminhadas ao vice-rei do Brasil, Vasco Fernandes César de Meneses, com o objetivo de repassá-las aos governadores das Capitanias. Na chegada ao Rio de Janeiro, o primeiro trabalho foi o de medição do meridiano do Rio de Janeiro, que serviu de base para todos os mapas construídos a seguir. Com os insistentes pedidos dos governadores do Rio de Janeiro e da Colônia do Sacramento, os padres se dirigiram para o extremo Sul do Brasil, onde fizeram diversas cartas e plantas de fortificações militares com o intuito de fornecer dados para guarnições militares da região. Dali seguiram para outra Capitania crítica, as Minas Gerais, onde fizeram medições e mapas principalmente do eixo minerador44. Capassi morreu de febres malignas, em 1736. Soares, sozinho, continuou na hercúlea tarefa até falecer, em 1748, na Capitania de Goiás. Os objetivos da missão dos jesuítas ficavam agora verdadeiramente explicitados: os mapas do Brasil eram necessários, não apenas por razões de segurança, devido ao conflito latente com a Espanha e aos potenciais interesses de outras nações estrangeiras, mas também para permitir uma melhor exploração dos recursos do território e a sua administração mais eficaz45.

O trabalho dos padres foi importantíssimo para o conhecimento da geografia do interior, principalmente das áreas críticas do Sul e do interior minerador. A preocupação de construir mapas precisos sobre o Brasil era enorme, pois os diplomatas portugueses sabiam que uma grande rodada de definições de fronteiras entre Portugal e Espanha na América estava próxima de acontecer e, para isso, deveriam estar bem preparados. O incentivo joanino à cartografia representou a mudança do domínio da arte de fazer mapas dos cosmógrafos (geógrafos de gabinete) para os engenheiros-militares. O objetivo dos cartógrafos era produzir mapas com base científica, ou seja, que

42. Diogo Soares (1684-1748), jesuíta, foi professor de Humanidades e Filosofia na Universidade de Évora e de matemática no Colégio de Santo Antão. 43. O decreto de nomeação dos padres de 19 de outubro de 1729 e a provisão real com as instruções, de 18 de novembro de 1729 foram publicados por Jaime Cortesão em História do Brasil nos Velhos Mapas, tomo II, p.213-216. Segundo Luís Ferrand de Almeida estes documentos estão, respectivamente, no AHU, Docs. Avulsos, Bahia, 1729 e em AHU, Docs. Avulsos, Rio de Janeiro, 1729. 44. COSTA, Antônio G. (org.), RENGER, Friedrich E. FURTADO, Júnia F. SANTOS, Márcia M D. Cartografia da conquista do território das Minas, p. 139-45. 45. ALMEIDA, L. F. A formação do espaço brasileiro e o projecto do Novo Atlas da América portuguesa, p. 104.

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fossem retratos fiéis e fidedignos da realidade. Dessa forma, poderiam ser utilizados pelo Estado como instrumentos diretos, norteando sua ação. Durante o século XVIII, a geografia de gabinete passou a depender cada vez mais dos levantamentos topográficos realizados pelos engenheiros-militares, baseados em novas técnicas e instrumentos matemáticos mais precisos. A partir da segunda metade desse século, a geografia de gabinete entrou em decadência com a crescente importância dos mapas construídos a partir de medições topográficas in loco. O conhecimento de campo ocupava, lentamente, o lugar do conhecimento do gabinete46.

Terra Brasilis. Atlas Miller, Lopo Homem, Reineis, 1519.

46. FURTADO, Júnia Ferreira. Oráculos da geografia iluminista, p. 176-177.

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Planisfério de Cantino, 1502

Sextans Astronomicus pro Distantiis Rimandis. J. Blaeu, 1664.

Mateus Freitas Ribeiro Frizzone Graduado em História pela UFMG

Os presos, os carcereiros e as péssimas condições da cadeia velha de Vila Rica (1734)

O sistema punitivo e, principalmente, o sistema prisional brasileiro atual são motivos de calorosas discussões. A contemporânea ideia de punição através da restrição da liberdade, que ainda prevalece — apesar de constantemente rediscutida — mostra-se cada vez mais esgotada. Os debates em pauta nos dias de hoje fomentam a curiosidade sobre o passado. Então, busca-se, neste texto, discutir as cadeias num período em que não eram as principais peças do sistema punitivo e em um espaço distante do centro emanador de justiça — o rei —, em que tais prédios eram utilizados tanto como símbolo do poder real quanto das peripécias dos poderes locais. Destacam-se aqui as constantes reclamações sobre a precariedade das cadeias nas comunicações político administrativas das câmaras. Liana Reis afirma que, no século XVIII, na fundação das primeiras vilas da Capitania de Minas Gerais “as cadeias públicas parece terem constituído mais um problema para as autoridades coloniais”1. Para tentar situar as cadeias na América Portuguesa é preciso entender duas características importantes do Antigo Regime no que toca à justiça e à punição. Em primeiro lugar, a justiça era tida como o maior atributo do governo, acreditava-se que a aplicação imparcial da lei pelo soberano junto com a honestidade nos deveres públicos implicaria no bem estar e no progresso do reino, caso contrário haveria 1. REIS, Liana Maria. Crimes e escravos na capitania de todos os negros (Minas Gerais, 1720 -1800). São Paulo: Editora HUCITEC, 2008. p. 99.

Os presos, os carcereiros e as péssimas condições da cadeia velha de Vila Rica (1734)

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punição pela justiça divina. Portanto, a função primeira do monarca era a aplicação Justiça, sendo ela equivalente à manutenção da ordem, o conhecimento e reconhecimento do justo de cada situação, À justiça correspondia à possibilidade que cada coisa tinha para realizar os fins para que fora criada (sufficientia corporalim bonorum) e, por outro, o respeito que cada coisa devia ter pelas criaturas que lhe eram vizinhas, não pretendendo mais do que lhe era devido2.

Em segundo, diferentemente da ideia contemporânea de punição individual, voltada para a reinserção do infrator na sociedade e baseada, sobretudo, na restrição da liberdade, a punição no Antigo Regime era corporal e pública, espetacularizada. A anunciação e a execução pública de penas como açoites, mutilação ou corte das mãos, língua, queimadura com tenazes ardentes, capela de chifre na cabeça, polaina ou enxaravia vermelha na cabeça e algumas das diversas formas de morte faziam parte de uma lógica de coerção e de purificação do corpo — que deveria sofrer para expurgar os crimes. Além disso, multas, confiscos, trabalho forçado e degredos eram outras penas recorrentes no Livro V das Ordenações Filipinas3, “trata-se de uma sociedade que ao mesmo tempo trata o corpo e exila”4. Considerando a punição parte significativa na atribuição real de ser justo e aplicar a justiça corretamente e sendo ela — a punição — intrínseca ao poder do soberano, é possível apontá-la como eficiente meio de afirmação desse poder. Como escreve Silvia Lara, “Punir, controlar os comportamentos e instituir uma ordem social, castigar as violações a essa ordem e afirmar o poder do soberano constituíam elementos inerentes ao poder real”5. A punição funcionava como forma de coagir os súditos, conquistando o respeito através do temor ao rei, muito mais do que punir, o espetáculo serve como exemplo. No entanto, com penas tão cruéis e a pena de morte prevista tantas vezes, conta-se que ao ler o Livro V, Frederico o Grande da Prússia havia perguntado se ainda

2. XAVIER, Ângela Barreto. “El Rei aonde póde, & não aonde quer” — Razões da política no Portugal seiscentista. Lisboa: Edições Colibri, 1998. p. 124. 3. As Ordenações Filipinas são divididas em cinco livros, sendo o último deles (Livro V) totalmente dedicado ao direito penal. Ele vigorou na América Portuguesa e posteriormente no Brasil entre 1603 e 1830 sendo o que teve menor duração de todos os cinco por ser considerado “bárbaro” e “monstruoso”. 4. MOTTA, Manuel Barros da. Crítica da Razão Punitiva: Nascimento da prisão no Brasil. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 14. 5. LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: Livro V. São Paulo, SP: Companhia Das Letras, 1999, p. 21.

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havia gente viva em Portugal6. Portanto, o cumprimento à risca dessas leis poderia gerar diversos problemas, desde questões de viabilização da execução até possíveis revoltas contra os excessos reais. Além do esvaziamento populacional pelas mortes e degredos, a incapacitação das mãos trabalhadoras, afinal, era aos peões que se destinavam às penas mais cruéis, ao mesmo tempo, também eram eles indispensáveis em uma sociedade em que o trabalho manual era desonroso. A pena de degredo ainda acarretava em possíveis meses de espera por uma embarcação que fosse ao destino desejado, ficando o condenado nas geralmente precárias cadeias7. É possível considerar, então, que o rei consistia em um dispensador de uma justiça virtual, muito mais do que da justiça quotidiana, esta última baseava-se em mecanismos mais periféricos: família, Igreja, pequena comunidade — o que não retira a importância e nem esvazia a centralidade do rei. Era preciso agir na tênue linha do reconhecimento do seu poder pela força, mas também por sua magnanimidade. “À justiça real bastava intervir o suficiente para ser lembrar a todos que, lá no alto, meio adormecida, mas sempre latente, estava a suprema punitiva potestas do rei”8. Como aquele que deve manter a ordem na casa, castigar e afagar, ser temido e amado, senhor da justiça e mediador da graça, o monarca aproxima-se ao papel do pai. Portanto, leis tão severas e punições tão “bárbaras” e “monstruosas”, como eram descritas por alguns, faziam parte de um sistema equilibrado em que, como afirma Hespanha: o segredo da específica eficácia do sistema penal do Antigo regime estava justamente nesta ‘inconsequência’ de ameaçar sem cumprir. De se fazer temer, ameaçando; de se fazer amar, não cumprindo. Ora, para que este duplo efeito se produza, é preciso que a ameaça se mantenha e que a sua não concretização resulte da apreciação concreta e particular de cada caso, da benevolência e compaixão suscitadas ao aplicar a norma geral a uma pessoa em particular9.

6. HESPANHA, A. M. Da “Iustitia” à “Disciplina” textos, poder e política penal no Antigo Regime. In: HESPANHA, A. M. (org.). Justiça e Litigiosidade — História e Prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 299. 7. As cadeias, comumente, ficavam no mesmo prédio que a Câmara, mas no primeiro andar, sendo uns dos maiores prédios das vilas e ocupando locais centrais das mesmas. 8. HESPANHA, A. M. Da “Iustitia” à “Disciplina”, p. 318. 9. ______. Da “Iustitia” à “Disciplina”, p. 311.

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Muito além de ser um local da Justiça Real, ou um simples depósito de condenados à espera do cumprimento da pena — seja ela o trabalho forçado10, ou o degredo — ou de escravos fugidos “aguardando o resgate” de seus proprietários, as cadeias funcionavam também como ferramenta do poder local. Eram parte importante desses mecanismos quotidianos de fazer justiça, distantes do rei e de sua lei. Nelas estavam, geralmente, pretos, brancos, homens, mulheres, homens bons e aventureiros. O respeito às hierarquias sociais, marcante na justiça do Antigo Regime, a priori, também estava presente nas prisões, os criminosos comuns eram destinados às cadeias das câmaras, os presos do bispo iam para o aljube e os presos do rei para as cadeias do rei. Porém, quando havia apenas uma cadeia na vila, o que não era raro, todos os prisioneiros iam para o mesmo prédio11. Voltemo-nos agora para Vila Rica, em 1734, mais especificamente para a cadeia velha. A única cadeia de uma das vilas mais importantes do Império Português estava povoada de homens e mulheres de todas as qualidades, que se dividiam em enxovias separadas, uma para brancos, uma pra mulheres e outra para negros, todas em péssimas condições. Já de antemão, é importante saber que a dita cadeia era alvo de controvérsias, sobretudo por sua fragilidade física. Aqui serão discutidos os três documentos que foram trabalhados na Oficina de Paleografia — UFMG, e que estão intimamente relacionados a essa precariedade do prédio, além disso, ao trabalho do carcereiro e sua relação com presos e camarários e à assistência, sobretudo médica, aos presos. Em representação ao Ouvidor da Comarca12, o Senado da Câmara de Vila Rica reclama da dificuldade de conseguir carcereiros, principalmente pela falta de segurança da cadeia e pelas constantes fugas de presos. Os carcereiros eram nomeados por designação dos vereadores e juízes ordinários, mas nem sempre estavam de acordo com as exigências do cargo, e como na dita representação se diz: “[...]por esta Razaõ nomeavamos a Joao Correa Madris que como Seja unico que que[ria] servir”13. 10. O trabalho forçado também era conhecido como pena de galés. As galés eram uma embarcação muito utilizada no Mediterrâneo desde a Antiguidade Clássica, utilizadas em Portugal entre os séculos XIII e XVII. Eram embarcações a remo, que, normalmente, utilizavam criminosos como remadores. Mesmo após entrarem em desuso, o nome da pena para trabalho forçado (independentemente do trabalho, geralmente trabalhos para o setor públicos) se manteve como “galé”. Também era a denominação dos condenados a essa pena. 11. SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1986. p. 118. 12. APM CMOP Cx. 07 Doc. 05. 13. Trechos de documentos transcritos neste texto seguem as Normas Técnicas para Edição e Transcrição de Documentos Manuscritos (1993).

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Ligados a patamares mais altos da hierarquia administrativa local, já que eram indicados e, ao mesmo tempo, próximos aos presos pelo convívio diário e por serem alguns dos funcionários menos graduados dessa administração, esses indivíduos transitavam entre ambos os grupos, administradores e presos14. Muitas vezes se envolviam em episódios de corrupção, liberação de presos e outros crimes, atos compreendidos por algumas autoridades da época como relacionados à proximidade diária com os transgressores. Liana Reis aponta para inúmeras peripécias em que se envolviam os carcereiros, como usufruir dos serviços de cativos presos em benefício próprio, e destaca um alvará régio de 1758 que impõe aos carcereiros envolvidos em determinadas falcatruas, suspensões e até a privação do ofício e a inabilitação para quaisquer outros serviços de Fazenda ou da Justiça15. Todavia os carcereiros, responsáveis pelo cuidado e manutenção dos presos comuns, eram, também, autores de muitas reclamações e pedidos de obras e de outras melhorias nas cadeias destinados às Câmaras. Como exemplo temos a petição do próprio João Madris16, na qual solicita ao governador a nomeação de um médico ou cirurgião para tratar os presos da cadeia porque estão os prezos que Seachaõ na Cadeya della [da Vila] experimentando muita mizeria, por que a Sua pobreza lhe deficulta os Meyos da aSistencia de Serurgiaõ ou medico, vendosse em maior dezemparo, a multidaõ de negros, que Seachão nesta cadeya: e Como os beñs do conselho devão aplicarce para as vtelidades publicas.

Segundo Madris, em todas as vilas e cidades existem médicos ou cirurgiões providos pela câmara para o “bom regimem do bem publico e remedio dos pobres”. Dessa forma, não se pode pintá-los apenas como corruptos e degenerados, em diversos casos fizeram pedidos que claramente visavam melhorar suas condições de trabalho, e também de permanência dos encarcerados. Acrescenta-se aqui que os carcereiros nem sempre eram pagos, muitas vezes tinham outras funções dentro da própria câmara. A principal reclamação [dos carcereiros, feitas ao Senado da Câmara do Rio de Janeiro] era a falta de pagamento e o pretenso caráter provisório do exercício da função que se tornava definitivo, pois as

14. Lembrando que estavam nas cadeias homens de diversos grupos (de escravos a clérigos), entretanto a maioria esmagadora era de homens pobres, sobretudo negros. 15. REIS, Liana. Crimes e escravos. p. 100-101. 16. APM CMOP Cx. 07 Doc. 25.

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autoridades não destacavam outros carcereiros para assumir a administração das cadeias17.

O terceiro documento trabalhado é um requerimento de José da Silva18 solicitando liberdade, pois alega estar sendo injustiçado, atesta ser inocente e não tem quem o sustente na cadeia. Os homens livres eram responsáveis pelo seu sustento enquanto presos, em alguns casos as Santas Casas de Misericórdia ajudavam nesse sustento e em muitas cadeias — talvez as que mais se aproximavam de um tipo ideal — as grades eram voltadas para a rua, para que, além do efeito exemplar destinado aos transeuntes, os presos pudessem pedir esmolas para o seu sustento. Ainda assim as perspectivas de sobrevivência por muito tempo nos cárceres não eram muito grandes. Considerando que Vila Rica era um dos principais centros econômicos da América Portuguesa no século XVIII e, portanto, deveria ter — mas não tinha — uma cadeia minimamente segura não é improvável que a situação das cadeias no resto do território fosse tão ruim, ou ainda pior. A não centralidade do encarceramento no sistema punitivo e jogos políticos locais aparecem como caminhos importantes para o entendimento dessa precariedade, mas decerto não são os únicos. Pensar as cadeias, os carcereiros e os presos no Antigo Regime e, especialmente na América Portuguesa, aponta ainda para um longo caminho de pesquisas e debates.

17. ARAÚJO, Carlos Eduardo M. de. Entre dois cativeiros: Escravidão urbana e sistema prisional no Rio de Janeiro, 1790 — 1821. In: MAIA, Clarissa Nunes. NETO, Flávio de Sá. COSTA, Marcos. BRETAS, Marcos Luiz. (org.). História das prisões no Brasil. Vol.1. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 226. 18. APM CMOP Cx. 06 Doc. 06.

Documento Requerimento de José da Silva solicitando liberdade. Disponível no Arquivo Público Mineiro, Fundo Câmara Municipal de Ouro Preto, CMOP Cx. 06 Doc. 06

Data 23 de janeiro de 1734

Resumo Requerimento de José da Silva solicitando liberdade, pois alega estar sendo injustiçado, pois atesta ser inocente e não tem quem o sustente na cadeia. Documento digitalizado a partir do microfilme. A caligrafia é tendencialmente humanística, com pouca ou nenhuma presença de enlaces e ligaduras e existem pouquíssimas abreviaturas.

[fl. 1]

< Visto Constar estar [p]or pecoas fidedignas estar o Suplicante ignocente na culpa que Refere o Alcaide desta Villa o Solta pacandoselhe para isso Alvara de Soltura pagando as deligências aos officiaes. Villa Rica em Camara de 23 de janeiro de 1734 [4 sinais públicos] >

1 Senhores Do Senado < pacousse Alva[rá] de Soltura >

2 Dis Jozeph da Silva morador no aRaal do Padre 3 faria que elle Suplicante Seacha prezo nesta Villa 4 a ordem Vossas Merces Sem que lhepareça ter Culpa al 5 gua esse Sim foj prezo Jnocente pois a mesma 6 pobreza em que viue a desculpa para naõ ter Lugar 7 de agracear a paçoa algua Coanto mais as ordêns 8 ou despachos de Vossas Merces quanto que[?].



9 Pede a Vossas Merces Sejaõ Servidos man 10 dallo Soltar pois não tem que gas 11 tar e menos quem oSustente 12 na Cadea

13 Espera Real Mercê

Documento Representação da Câmara de Villa Rica informando a dificuldade em conseguir carcereiros. Disponível no Arquivo Público Mineiro, Fundo Câmara Municipal de Ouro Preto, CMOP Cx. 07 Doc. 05

Data 31 de julho de 1734

Resumo Representação da Câmara de Villa Rica informando a dificuldade em conseguir carcereiros, devido a fuga de presos e a falta de segurança da cadeia. Documento digitalizado a partir do microfilme, com pequenas perdas no suporte. A caligrafia é tendencialmente humanística, com pouca ou nenhuma presença de enlaces e ligaduras e existem pouquíssimas abreviaturas.

[fl.1]

1 Por Reprezentacaõ que fes a Este Senado Antonio Ferreira 2 de que Seachava prezo a ordem de Vossa Mercê por cujo Motivo 3 naõ Estava apto para Exercer o dito Offício de Carcereiro E 4 nos pedia fizecemos Escolha se dava[?] que nomeava para [es] 5 ta Serventia cujas pecoas abonavaõ os fiadores A[tonio] 6 da Torre E Ventura da Costa por esta Razaõ nomeava 7 mos a Joao Correa Madris que como Seja unico que que[ria] 8 servir e assim os fiadores abonaõ justamente comviem nell[e]

9 Nenhuma obrigaçaõ tem Este Senado para Resp[onder] 10 pella fugida dos prezos aSsim pella graduaçaõ deste tri[bu] 11 nal como também por competir Esta deligêcia aos carcereiros 12 E quando estes achaõ pouca Seguranca na Cadea Recor[rem] 13 aos Menistros para que os mandem segurar cuja 14 deligencia pode Vossa Mercê fazer quando entender he percis[o] 15 o lho Requererem Desembargo a Vossa Mercê Villa Rica em Camara de 16 31 de Julho de 1734

17 [Assinatura ilegível] Domingos Francisco dos Reys 18 Martinho Ribeiro Diaz

Niculao[?] de Siqueira

19 Senhor Doutor Fernando Leite Lobo ouvidor 20 geral da Comarca

Documento Petição do carcereiro de Villa Rica para que nomeie um médico para presta assistência aos presos. Disponível no Arquivo Público Mineiro, Fundo Câmara Municipal de Ouro Preto, CMOP Cx. 07 Doc. 25

Data 31 de setembro de 1734.

Resumo Petição do carcereiro da cadeia de Vila Rica, João Correia Madris, ao Governador, Conde das Galveias, para que nomeio um médico para prestar assistência aos presos. Documento digitalizado a partir do microfilme. A caligrafia é tendencialmente humanística, com pouca ou nenhuma presença de enlaces e ligaduras e existem pouquíssimas abreviaturas.

[fl.1]

< O Senado da Camera veja o que Se Expoem nesta petiçaõ e lhe deffira comolhe parecer Justiça. Villa Rica 16 de Settembro de 1734

1Exelentíssimo Senhor

[sinal público] >

2 Reprezenta a Vossa Exelência o carcereiro da cadeya desta Villa 3 Joáo Correya Madris que avendo em todas as cidades e Villas Serurgions 4 e medicos justos pelas camaras para bom Regimen do bem publico e Remedio 5 dos pobres: Nesta Villa o náo hâ; por cujo Motivo estão os prezos que Seachaõ na 6 Cadeya della experimentando muita mizeria, por que a Sua pobreza lhe deficulta os 7 Meyos da aSistencia de Serurgiaõ ou medico, vendosse em maior dezemparo, a mul — 8 tidaõ de negros, que Seachão nesta cadeya: e Como os beñs do conselho devão a 9 plicarce para as vtelidades publicas, E o animo de Vossa Exelência Seja táo Pio 10 que todo Seemcaminha a dar providencia nas mais extremas nessecidades, Selhe 11 fas percizo expor a Vossa Exelência a justa carencia que hâ de que a camara Nomeé Serur 12 gião, que aSista aos doentes desta cadeya ordenando’o Vossa Exelência aSim por Ser 13 visso de Deos e esmolla aos pobrez

14 O Carcereiro João Correya Madrice

[fl. 1v]

1 Vista a justa Suplica do Carce 2 reiro despacho do Senhor Governador e Senado 3 Obra tão pia nomeamos ao Lecen 4 ciado Antonio Labidrene com cento e vinte e Seis 5 mil réis de Ordenado em cada hum anno cuja quantia 6 cobra dos bens do Conselho, Levandoo o corregedor 7 da Comarca em conta. Villa Rica em Camara de 9 de 8 Outubro de 1734 9 [5 sinais públicos]

Emilly Joyce Oliveira Lopes Silva Mestre em História pela UFMG

A censura literária em Portugal no Período Pombalino 1

Em Portugal, o surgimento da prensa móvel no século XV e, consequentemente, a maior circulação de informações, representou uma ameaça para o poder vigente, tanto no que diz respeito à política, quanto em matérias religiosas. De acordo com Maria Teresa Payan Martins: A invenção da imprensa de caracteres móveis, multiplicando até ao infinito a possibilidade de veicular informações, foi sentida em Portugal, tal como no resto da Europa, como uma ameaça ao poder instituído. O poder político, sempre em uma relação instável com o poder intelectual, só a partir do século XVI sentiu a necessidade de organizar oficialmente um aparelho de repressivo. Até a revolução tipográfica, coube à Igreja, em nome da Religião e da salvação das almas, exercer a compreensão ideológica.2

A organização do aparelho repressivo se deu ao longo do século XVI, sob a influência da Reforma Católica, principalmente do Concílio de Trento, visando à “aculturação do rebanho católico”, bem como à “repressão a tudo que cheirasse

1. O texto é parte da dissertação de mestrado intitulada No Caminho do Paradoxo: as contribuições de Antônio Pereira de Figueiredo para o Reformismo Ilustrado, defendida pela autora no Departamento de História da UFMG 2012, sob orientação do professor Luiz Carlos Villalta. 2. MARTINS, Maria Teresa Esteves Payan. A censura literária em Portugal nos séculos XVII e XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2005, p. 12.

A censura literária em Portugal no Período Pombalino

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à heresia”3. Em 1515, o decreto V do Concílio de Latrão determinou a censura prévia de todos os livros e, dois anos depois, o Ordinário — juízes eclesiásticos ligados às dioceses — assumiu a função de controlar as práticas de leitura. O Santo Ofício, criado em 1536, também se tornou responsável pelo exame de livros. Dessa forma, a tarefa esteve nas mãos da Igreja até 1576, quando o alvará assinado por D. Sebastião encarregou o Desembargo do Paço de representar o Estado na censura de livros. Assim, foi instituído o sistema tríplice de censura, no qual os livros passavam pelo crivo dos membros dos três órgãos supracitados e necessitavam de três licenças para circular. Nesse modelo, a Igreja detinha o controle sobre a circulação de livros, uma vez que o Santo Ofício e o Ordinário estavam sob sua jurisdição e apenas o Desembargo do Paço representava o poder régio4. A primazia dos clérigos no controle sobre as práticas de leitura não significou um abandono das questões políticas. Em muitos casos, “heresia e contestação de ordem política se misturavam numa mesma obra, com que a censura, primordialmente religiosa, assumiu um conteúdo político”5. Assim, o modelo tríplice representava a intervenção da Igreja em questões de cunho civil. Mais de dois séculos depois, o reformismo pombalino buscou centralizar e secularizar a censura. Pombal desenvolveu uma ofensiva absolutista, regalista e reformista, atacando tudo o que ameaçava a preeminência do trono e que entendia ser obstáculo à modernização que almejava. A domesticação da Inquisição, a subordinação da nobreza, as reformas econômicas, sociais e educacionais, o combate aos jesuítas e o ataque às teorias corporativas de poder foram episódios interligados dessa ofensiva, assim como a criação da Real Mesa Censória. A existência desses alvos e o caráter interligado dos mesmos encontram-se por demais evidentes na documentação relativa ao novo tribunal censório. 6

A partir da análise de Luiz Carlos Villalta, é possível verificar que a criação da Real Mesa Censória, em 1768, correlacionou-se aos princípios que guiaram o reformismo ilustrado português, dentre eles o objetivo de reduzir o poder dos clérigos no que diz respeito às questões do Estado. Isso não quer dizer que os critérios religiosos para proibição foram deixados em segundo plano, mas que o Estado passou a definir quais seriam os critérios adotados para o controle dos livros em Portugal e 3. VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: usos do livro na América Portuguesa. Tese (Doutorado em História) São Paulo: FFLCH-USP, 1999, p. 148. 4. MARTINS, Maria Teresa Esteves Payan. A censura literária em Portugal nos séculos XVII e XVIII, p. 13-14. 5. VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura:, p. 149. 6. ______. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura, p. 154.

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seus domínios. Além disso, a substituição do modelo tríplice buscou coibir, de forma definitiva, a circulação de obras de autoria de jesuítas no reino português. De acordo com Maria Adelaide Salvador Marques, a lei que funda a Real Mesa Censória apresentou uma série de razões para a secularização da censura. A principal delas diz respeito à ineficácia do modelo tripartido. A autora também destaca a importância de se convencer a elite culta — profundamente influenciada pelo estrangeiro e pelas ideias esclarecidas. Para esse grupo, a criação da Real Mesa representou a modernização da cultura, que aproximaria Portugal dos países do centro da Europa7. De fato, a lei de 5 de abril de 1768 traz uma série de motivos para a redefinição da censura em Portugal. A princípio, o documento defende o direito do monarca de controlar a censura de livros, indo ao encontro das teorias regalistas preconizadas pelo reformismo pombalino. O texto revela também o caráter anti-jesuítico do pombalismo, ao afirmar que os membros da Companhia de Jesus “conseguiram com as suas costumadas intrigas confundirem a inspeção de Livros, e Papeis entre o Ordinario, entre o Santo Officio, e entre a Meza do Desembargo do Paço”. Segundo a lei, os inacianos também impediram a circulação de obras de “famosos iluminados, e pios Auctores”, que foram substituídas por “Livros perniciosos” escritos pelos próprios jesuítas. Outro argumento — e talvez o principal deles — para a criação da Real Mesa é a impotência da censura compartilhada por três tribunais. A nomeação de “censores externos” para exame dos livros é a prova final do não funcionamento do modelo vigente até então, pois mostraria o despreparo dos censores e falta de critérios nas decisões tomadas pela censura tríplice. Por fim, o documento trata das críticas feitas pelas “Naçõens mais polidas, e cultas da Europa” ao Tribunal da Inquisição. Esse ponto revela a vontade de alinhar Portugal com os países europeus mais modernos8. Nas palavras de Maria Adelaide: Vê-se que a lei [de 5 de abril], apesar das considerações iniciais acerca da Autoridade Régia e a separação da Igreja, apresenta como verdadeiros motivos para a remodelação da Censura o pouco rigor com que esta era praticada, por motivo da separação em três tribunais: visava igualmente à quebra da patente influência jesuítica, prejudicial ao desenvolvimento cultural do país e contrária à boa “impressão” que as outras Nações poderiam ter de Portugal. Foram assim apresentadas razões essencialmente culturais e em parte religiosas.9

7. MARQUES, Maria Adelaide Salvador. A Real Mesa Censória e a cultura nacional. Coimbra: Universidade de Coimbra, [s. d.], p. 24-29. 8. BASTOS, José Timóteo da Silva. História da Censura Intelectual em Portugal: ensaio sobre a compressão do pensamento português. Lisboa: Moraes Editores, 1983. p. 69-72. 9. MARQUES, Maria Adelaide Salvador. A Real Mesa Censória e a cultura nacional, p. 24-25.

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O surgimento da Real Mesa Censória representou uma tomada de controle da censura por parte da monarquia lusitana, mas também a tentativa de otimização da eficácia dos setores administrativos da Coroa. Com a centralização da censura em um único órgão, acreditava-se que o processo de avaliação poderia se tornar mais rápido e eficaz. Nessa tentativa, definiram-se, no Regimento da Real Mesa Censória, dezessete regras que deveriam ser observadas no exame de livros. Analisando brevemente essas regras, podemos notar que: sete tratam das obras contrárias à religião; seis, dos livros que se opõem à monarquia portuguesa; três, referem-se à cultura de um modo geral; e duas preocupam-se com as questões morais. Todavia, é difícil separar esses critérios em categorias bem definidas, uma vez que eles estiveram profundamente relacionados no contexto político da época. Em resumo, a Real Mesa Censória deveria se ater a todos os livros que pudessem ir de encontro aos costumes, à política e à religião. O órgão também deveria representar os interesses do Estado no que concerne a esses assuntos, seguindo definições alinhadas com as políticas reformistas. Prova disso é a criação de um novo Índex Expurgatório. De acordo com o regimento da Real Mesa, a concepção do novo índice se amparava em diversos motivos: A falta que nos Meus Reinos ha de hum Index Expurgatório imparcial, e iluminado, que determine os Livros, que devem ser proibidos; a necessidade delle para tranquilizar as consciencias dos Meus Vassalos; o muito que a nossa Santa Fé, e o Estado Político, e Civil interessarão no facil, e exacto conhecimento dos Livros perniciosos, os exemplos dos Principes Christãos mais zelosos da Doutrina Evangelica, que com grande desvélo mandarão formar semelhantes Indices para o Governo dos seus Povos; e a estreita obrigação que Me incube de imita-los em hum ponto de tanta importancia para o bem Espiritual e Temporal dos Meus Reinos; não podião deixar de excitar em Mim o mais serio cuidado.10

No entanto, o documento não mostra que o novo Índex “deixava de se confundir com o proposto pelo Papa, pois a introdução do Índex pontifício no Reino de Portugal e seus domínios ficou condicionada à concessão do beneplácito real”11. Além disso, a partir de 1768, os índices emitidos pela cúria romana deveriam ser submetidos à aprovação da monarquia12. Dessa forma, a elaboração de um Índex de obras proibidas pela Real Mesa foi também uma forma de ampliar os poderes do rei 10. SILVA, Antônio Delgado da. Colleção da Legislaçao Portugueza: Legislação de 1763 a 1774. Lisboa: Typografia Maigrense, 1829, p. 161. 11. VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura, p. 155. 12. ABREU, Márcia. A liberdade e o erro. Fênix (UFU. Online), v. 6, 2009, p. 2.

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em relação à Igreja, mantendo-se, assim, a postura regalista que permeou a criação do referido órgão de censura. O surgimento da Real Mesa deu-se de forma a defender os interesses da Coroa, em uma perspectiva secularizante do poder, sem, contudo, abandonar as questões religiosas no que diz respeito à leitura e à cultura de um modo geral. A nomeação dos deputados do novo órgão de censura representou bem esse caráter conciliador. Dos vinte homens escolhidos, dez pertenciam a ordens religiosas e os outros dez eram funcionários da Coroa. Apesar dessa aparente paridade, os deputados ordinários, responsáveis por grande parte das decisões, eram seis laicos e quatro religiosos, enquanto os deputados extraordinários, que seriam convocados apenas em algumas ocasiões, eram seis religiosos e quatro laicos13. Assim, a monarquia conseguiria um maior controle sobre as deliberações da Real Mesa Censória. É preciso destacar ainda que esses censores, independentemente de suas origens, deveriam ser homens de grande erudição. De acordo com o regimento do órgão, eles precisariam saber perfeitamente “a Historia Sagrada, Ecclesiastica, Civil, e Literatura universal, e a particular da Nação Portugueza”, além de terem conhecimento sobre Direito, Filosofia, Lógica, Hermenêutica e das línguas mortas e vivas14. Com toda essa bagagem, os deputados teriam mais afinidade com o reformismo empreendido pela Coroa, principalmente no que concerne à modernização cultural. Além disso, poderiam julgar com mais propriedade o merecimento dos livros, em diálogo com a República das Letras e com as ideias em circulação no restante da Europa. No que diz respeito ao exame das obras, a Real Mesa Censória buscou agilizar o processo e torná-lo mais eficiente. Segundo Márcia Abreu, “os censores reuniam-se periodicamente a fim de apresentar sua opinião sobre manuscritos (que buscavam licença para impressão), sobre livros importados (que esperavam autorização para entrar em Portugal) e sobre obras impressas (que aguardavam o confronto com o respectivo manuscrito, previamente aprovado, para que pudessem circular)”15. Para analisar essas obras, foram definidos dois tipos diferentes de exame, a saber: exame simples e exame formal. O exame simples, também chamado de conferência, poderia ser utilizado em duas situações: a primeira delas, quando os livros em questão já tivessem passado pelo crivo da censura; a segunda, nos casos em que as obras fossem previamente avaliadas como inúteis para os leitores ou ofensivas à reputação nacional. O exame formal, por sua vez, era aquele voltado para as obras de “maior 13. MARQUES, Maria Adelaide Salvador. A Real Mesa Censória e a cultura nacional, p. 27-28. 14. SILVA, Antônio Delgado da. Colleção da Legislaçao Portugueza, p. 162. 15. ABREU, Márcia. O controle à publicação de livros nos séculos XVIII e XIX: uma outra visão da censura. Revista Fênix, Uberlândia, v. 4, n. 4, p. 2-3, dez. 2007, p. 3.

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consequência”, ou seja, todos os impressos e manuscritos que não foram analisados pelo exame simples. De acordo com o regimento, o objetivo do exame formal era a exacta averiguação dos merecimentos, utilidade, e pureza da Doutrina dos Livros. E por ser este objeto verdadeiramente o mais delicado, e digno de maior consideração: Devemos fazer-se com a devida formalidade, e com aquelle methodo, que mais possa segurar, e afiançar a sua exactidão.16

Assim, a análise criteriosa feita pelos deputados favoreceria a decisão dos mesmos a respeito da circulação das obras examinadas. De um modo geral, as decisões dos deputados da Real Mesa dividiam-se em três diferentes tipos: algumas obras eram totalmente proibidas, outras eram liberadas e, em alguns casos, os censores sugeriam a supressão ou alteração de alguns trechos do livro para que pudessem circular. Para se ler uma obra proibida pela Real Mesa Censória, era necessário portar uma licença autorizando a leitura. Antes da censura pombalina, as licenças para posse e leitura de livros proibidos eram obtidas por meio de breves apostólicos emitidos pela Santa Sé. Com a renovação do órgão de censura português, esses breves perderam a validade, e as licenças passaram a ser concedidas pela Real Mesa17. Assim, a concessão de licenças se tornou outro ponto de disputa entre a Igreja e a monarquia. Em defesa dos interesses da coroa, o regimento da Real Mesa põe fim ao uso dos breves romanos, colocando nas mãos do órgão a jurisdição sobre a concessão das licenças: Havendo grande numero de Pessoas, que com ob-repção, obrepção, e engano impetrarão Breves de Roma para poderem lêr livros prohibidos, não sendo verdadeiramente dignas de os terem por lhes faltarem os requisitos necessários; e tendo os injustamente impetrado por meio preces importunas, e alegações falsas, inaveriguaves, na Curia Romana: Não sendo justo, nem conforme á Santa intenção, e prudência dos Summos Pontifices, em cujos nomes se concederão, que eles valhão, e tenham execução no caso de se não verificarem as permissas, e haver perigo no efeito das graças: E devendo Eu [isto é, El-Rei] outro sim, como Protector da Religião, e dos Canones, e como Pai Commum dos Meus fieis Vassallos, impedir as prejudiciaes consequencias do abuso de semelhantes Licenças: Sou servido ordenar, que todos, e cada hum dos Meus Vassallos, que no tempo da qualificação das suas Livrarias apresentarem os referidos Breves, sejão qualificados, de sorte, que constando da verdade das alegações, e da idoneidade

16. SILVA, Antônio Delgado da. Colleção da Legislaçao Portugueza. , p. 168. 17. MARQUES, Maria Adelaide Salvador. A Real Mesa Censória e a cultura nacional, p. 46.

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dos Impetrantes; se lhes não embarace o uso das sobreditas Graças; e conhecendo-se o contrario, fiquem na Meza suprimidas.18

No caso dos breves já emitidos, era necessário que passassem pelo crivo da Real Mesa Censória para que tivessem validade. O regimento recomenda ainda que a concessão e inspeção das licenças fossem feitas com moderação e cautela, “informando-se primeiro das qualidades das pessoas, que as pedem; e facultando somente ás doutas, e prudentes, e em quem cesse moralmente todo o receio de perigo”. É importante salientar que essas autorizações distinguiam a posse e a leitura de livros: algumas pessoas estariam autorizadas a possuir e ler obras proibidas, enquanto outras obtinham licença apenas para ler livros defesos. A grande preocupação, no que diz respeito à posse, está na possibilidade de que essas obras circulassem por um público muito mais amplo. Por essa razão, os mercadores de livros, livreiros e impressores que detivessem a referida licença, deveriam manter as obras proibidas fechadas em estantes com chave e, caso infringissem essa condição, poderiam perder a autorização da Real Mesa19. Dessa forma, as licenças eram concedidas somente a um público muito pequeno, mas, ainda assim, criavam uma brecha nos critérios da censura para proibição de livros, facilitando, em certa medida, a difusão clandestina de obras proibidas. Além da censura prévia dos livros a serem publicados e/ou postos em circulação e da emissão de licenças para leitura de livros proibidos, outras funções foram dadas aos deputados da Real Mesa Censória. Os funcionários do órgão também eram responsáveis por inspecionar bibliotecas públicas e privadas, oficinas de imprensa e armazéns, bem como os mercadores de livros, livreiros e impressores do reino. A fim de realizarem essas tarefas, os deputados poderiam visitar esses estabelecimentos e realizar buscas para impedir a venda, impressão ou posse de livros suspeitos. A partir de 1771, o órgão passou a se responsabilizar também pela administração e direção dos estudos menores em Portugal e seus domínios20. Com essa medida, a Real Mesa se tornou o principal braço do Estado no que se refere às reformas educacionais, atuando não só no controle dos livros e, consequentemente, das ideias em circulação, mas também na formação dos súditos portugueses. Por essa razão, faz-se necessário pensar a censura para além de sua função repressiva. Mais do que coibir a circulação de livros proibidos, a Real Mesa procurou promover uma mentalidade afinada com o espírito reformista. 18. SILVA, Antônio Delgado da. Colleção da Legislaçao Portugueza, p. 171. 19. ______. Colleção da Legislaçao Portugueza, p. 171-172. 20. ARAÚJO, Ana Cristina (coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2000, p. 19.

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Em resumo, a censura pombalina buscou, a um só tempo, regular a entrada do pensamento das Luzes no reino português, assegurar a manutenção dos princípios do catolicismo e defender a monarquia absoluta, criando um equilíbrio delicado. Conciliar a Razão com os interesses do Estado e da Igreja exigiu um “malabarismo” constante, não só no âmbito da censura, mas em diversos aspectos da vida política lusitana. Na verdade, “a censura portuguesa chegou ora a perder de vista os interesses da monarquia, ora exorbitou-os ao ponto de colocar as Luzes que eram sua referência na penumbra da interdição, oscilando entre concessões excessivas e severidade demasiada”21. Tomando como base esse aspecto, e também as regras para funcionamento da Real Mesa Censória, analisaremos, a partir de agora, um dos documentos produzidos pelo órgão. Trata-se do emblemático parecer redigido por Antônio Pereira de Figueiredo para as Obras Completas de Voltaire22. O autor foi, certamente, um dos mais importantes censores portugueses. Durante todo o período em que atuou como deputado da Real Mesa Censória, examinou 316 títulos, permitindo a circulação de 161, proibindo 127 e optando por alterar 26 das obras analisadas23. Os números chamam a atenção, assim como a detença com que Pereira de Figueiredo realizava seu trabalho. Não são raros os casos de censuras que se desenrolam por várias páginas, com citações longas dos textos originais, diálogo com outros autores e argumentações minuciosas que justificassem a decisão da Real Mesa. No parecer selecionado, o censor não poupa um dos mais relevantes pensadores das Luzes, examinando suas obras com cautela e conhecimento de causa. O documento, redigido apenas para leitura de seus pares, conta com quase quarenta páginas manuscritas, nas quais ele confronta vários pontos da filosofia de Voltaire, decidindo, ao final, pela supressão da obra no reino português. Por que proibir a leitura de Voltaire? Essa parece ser a pergunta que guiou a escrita da censura. Ao final dos dois meses de leitura, Antônio Pereira de Figueiredo provavelmente estava convencido de que a obra não deveria circular entre os súditos da coroa portuguesa. Talvez por isso, inicie seu parecer com elogios e, ao mesmo tempo, com críticas contundentes ao trabalho do filósofo, afirmando, logo no primeiro parágrafo, que se trata de

21. VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura, p. 190. 22. O parecer foi coletado pelo professor Luiz Carlos Villalta, a quem agradecemos muitíssimo, e transcrito pela autora. 23. TAVARES, Rui. Antônio Pereira de Figueiredo: o ideólogo. Capítulo de obra não publicada, s/d., p. 33.

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hum homem de humma imaginação vivissima, e fertilissima, mas ao mesmo tempo sobre maneira extravagante e sobre maneira corupta: hum homem que não possuindo a fundo sciencia alguma, de todas quis tratar como mestre: hum homem que por esta ou aquella reflexão judicioza e solida que nelle se encontra, oferece um cento dellas vanissimas, exoticas e oppostas ao sentido comum dos sabios: hum homem finalmente, que parece que faz tymbre de mofar da Religião em que nasceo e em que foi educado, e de inverter todas as ideias que da virtude costumamos ter, todos os que nos prezamos cathólicos.24

Assim, as primeiras palavras de Antônio Pereira parecem antever sua decisão pela proibição. Ainda que reconheça alguma qualidade nos escritos de Voltaire, o censor se preocupa com a circulação das ideias perniciosas defendidas pelo autor e esforça-se por mostrar os motivos para que se suprima a obra. A partir da leitura do parecer, é possível constatar que o censor possui uma acentuada preocupação em justificar, com argumentação bem fundamentada, sua decisão de proibir a circulação dos escritos do grande filósofo francês. Ao fazê-lo, o deputado não só imprimiu um juízo sobre a obra de Voltaire, mas também dialogou com o que leu, confrontando o seu próprio pensamento com as ideias apresentadas pelo autor. Trata-se de uma clara reflexão literária e intelectual, sem a qual não seria possível julgar e definir o que chegaria às mãos dos leitores do Reino. Antes de tudo, o censor voltava sua atenção justamente para os possíveis leitores da obra, mostrando que era necessário protegê-los das ideias perniciosas contidas nos escritos de Voltaire. Não é raro encontrar em outras censuras a mesma preocupação, o que revela o principal objetivo da instituição de censura, a saber: delimitar o universo de leituras, a partir de uma ótica política, mas também moral e religiosa. Nesse sentido, a argumentação de Antônio Pereira servia para mostrar aos seus colegas de Real Mesa Censória a importância de conter a circulação de ideias, tais como as defendidas pelo polêmico filósofo. De acordo com o censor: O que desta applicação e discussão tirei [o censor se refere à leitura da obra] foi admmirarme de que estando as Obras de Mr. de Voltaire cheias de tanto veneno e de doutrinas tão perniciozas, como logo veremos seja ainda este Autor, o que ordinariamente anda nas mãos da mocidade Portugueza, e que forma o gosto e a base dos seus primeiros Estudos: quando eu pelo contrario em toda a extensão de Livros que tenho lido (e he notorio que tenho lido muitos e de diversas materias) posso e devo affirmar, que ainda não achei outros mais impios, mais capciozos, mais nocivos, que os de Mr. de Voltaire.25

24. IANTT, 1768, cx4, nº 123. 25. IANTT, 1768, cx4, nº 123.

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Portanto, Antônio Pereira de Figueiredo revelava sua preocupação com o público leitor, principalmente a “mocidade” que, em sua visão, podia ter seu gosto moldado pelas “doutrinas perniciosas” defendidas pelo autor, quanto mais que obras de sua autoria eram encontradas muito frequentemente entre ela. Na tentativa de mostrar que o seu juízo não se baseava em censuras vagas, o deputado da Real Mesa Censória buscou ordenar seus argumentos contra a circulação da obra de Voltaire ao longo das várias páginas do parecer por ele escrito. Com esse intuito, a censura se divide em cinco demonstrações principais, nas quais apresenta seus argumentos: “Demonstração Primeira: Mr. de Voltaire Panegyrista e Defensor de todas as Seitas perversas, Gentilicas, como Hereticas”; “Demonstração Segunda: Mr. de Voltaire não somente Tolerantista, mas tãobem Indifferencista de todas as Religioens”; “Demonstração Terceira: Mr. de Voltaire tratando de bagatelas e metendo a ridiculo os Dogmas mais Sagrados e mais Capitaes de nossa Religiao”; “Demonstração Quarta: Mr. de Voltaire negando ou pondo em duvida tudo quanto he vantajozo para o christianismo”; e “Demonstração Quinta e ultima: Mr. de Voltaire escrevendo indecorosamente do Ministerio de Portugal”. As quatro primeiras demonstrações apresentadas por Figueiredo são de caráter religioso, enquanto a última diz respeito a questões políticas. Entre os equívocos de Voltaire, figuram a defesa das religiões orientais e, portanto, o tolerantismo26, a crítica aos dogmas do catolicismo, o desrespeito à Sagrada Escritura, a contestação do inferno e o possível deísmo — chamado pelo censor de ateísmo. Esses motivos já seriam suficientes para suprimir a obra, mas o filósofo ousa ainda criticar o reino português e, indo além, a fazer elogios aos jesuítas. Com a censura, Antônio Pereira de Figueiredo consegue enquadrar os escritos de Voltaire em praticamente todos os critérios para proibição de livros da Real Mesa Censória. Conclui o censor: Pelo que e por tudo o mais que tenho até aqui apontado, concluo que todas as Obras de Mr. de Voltaire se devem prohibir, mais ainda que as de Lutero ou Calvino, por serem uma Colleção de tudo quanto ha de impio e blasfemo nos Autores heterodoxos mais atrevidos e mais detestaveis: e por ser a sua liçao tanto mais perigoza, quanto he maior a hypocrisia com que elle a cada passo se estâ inculcando por

26. O tolerantismo ou defesa da tolerância religiosa foi tido durante o século XVIII como heresia teológica. De acordo com Stuart Schwartz: “apesar da pressão sistemática e da definição da tolerância como heresia teológica e calamidade política existia uma antiga herança de liberdade de consciência e relativismo religioso que extraía sua força de diferentes fontes: as ideias católicas sobre a caridade e a lei natural, e também a indiferença religiosa que brotava da dúvida intrínseca às visões céticas e materialistas” in: SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

A censura literária em Portugal no Período Pombalino

[103]

hum homem bom e irreprehensivel Filho da Igreja Catholica [grifos nossos].27

A decisão de Antônio Pereira mostra que, se houve uma faceta ilustrada na censura pombalina, ela certamente não esteve alinhada com as ideias defendidas por Voltaire. No entanto, há um ponto do parecer que nos chama a atenção. Trata-se de um dos trechos da obra de Voltaire, transcrito pelo parecerista, no qual ele critica a monarquia portuguesa: Portugal por isso mesmo que ainda não recebeo as luzes que fazem brilhar outros muitos Estados da Europa, vive mais sogeito ao Papa que outro algum Estado. Não permitte a El Rey fazer condenar à morte pelos seus juizes hum regular parricida, porque lhe falta o consentimento de Roma. Os outros Povos estao do seculo decimo septimo: mas Portugal parece estar no duodécimo [grifos nossos].28

No trecho citado por Antônio Pereira, o filósofo acusa o Estado português de ser completamente sujeito ao poder do papa. Segundo Voltaire, a relação de dependência existente entre a monarquia portuguesa e a Igreja romana era responsável pela situação de atraso vivida por Portugal. O trecho deixa transparecer que, para o autor, a ingerência papal, vista no reino lusitano, era típica do período medieval e não do século das luzes. É interessante observar que essas ideias se assemelham, e muito, ao projeto regalista e secularizante que guiou as reformas pombalinas. O próprio Antônio Pereira de Figueiredo foi um dos maiores advogados dessa separação, defendendo uma maior independência do Estado em relação à cúria romana. Mais ainda, o censor e, de resto, o governo pombalino, viram no passado português, em que houvera uma submissão da coroa à cúria romana e, em particular, às injunções dos jesuítas, um fator determinante para o “atraso” contra o qual se voltavam. Na visão do censor, as acusações de Voltaire não procediam, pois o reformismo ilustrado rompeu com a ingerência romana. Ainda que o deputado em nada concordasse com os escritos do filósofo esclarecido, parece haver, mesmo que em um único ponto, uma coincidência entre o que defendiam os dois pensadores.

27. IANTT, 1768, cx4, nº 123. 28. IANTT, 1768, cx4, nº 123.

Documento Censura por Antônio Pereira de Figueiredo. Disponível no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Real Mesa Censória, caixa 5, censura nº 55A.

Data 12 de junho de 1770

Resumo Censura de autores libertinos e obras consideradas obscenas por Antonio Pereira de Figueiredo, membro da Real Mesa Censória.

[fl .1]

1 Os Livros de Autores Libertinos, que 2 por hora me ocorrem, e que devem 3 hir declarados no Edital prohibitivo, 4 que se está preparando por esta 5 Real Meza Censoria, são os seguintes.



6 A Encyclopedia. A Censura que a este 7 famozo Diccionario fes em prezença 8 de todo o Parlamento de Paris o 9 doutissimo e zelozissimo Procurador Geral, 10 Monsieur Joly1 de Fleury; reflectindo es11 pecialmente nos Artigos, Adorer, Di12 manche, Christianisme, Ame, Cons13 cience, Aius Locutius, Autorité, Athée, 14 Encyclopédie. E a que seguindo e pa15 rafrazeando o Discurso de Joly de 16 Fleury, publicou há onze annos o 17 Anonymo Abbade de quem corre 19 hum excelente Tratado impresso em A20 vinhaõ no anno 1759 e dedicado ao 21 Conde Passionei, com este titulo: L’Ame 22 ou Le Systeme des Materialistes, 8 volumes. 23 Estas duas Censuras, digo, pelas quais 24 vim no conhecimento, de que a Encyclo25 pedia he igualmente prejudicial à Religi26 ão que ao Estado: me obrigaõ a 27 votar, que este Diccionario se prohiba, 28 e que a sua lição e Retenção se 29 naõ permitta, senaõ a mui poucas 30 Pessoas, e estas de muita erudiçaõ e

1. Arrependimento na letra “o”.

[fl .1v]

1 de bom espirito.

2 L’Esprit. Segundo as ideias que 3 desta obra me daõ os mesmos dois 4 Escritores acima indicados, he ella huã 5 das mais pestillentes que athe agora 6 se hiraõ[?], por causa dos impios e es7 candalozos Principios, que estabelece, 8 tendentes todos a introduzir o Materi9 alismo, e o desprezo de tudo o que 10 he virtude e religiaõ. A Assembleia 11 do Clero Gallicano de 1765 a meteo 12 no catalogo dos muitos Livros, que 13 entaõ prohibio.



14 Theses Theologico Abbatis de Prades. 15 Contem pontos impiissimos contra a 16 verdadeira religiaõ e moral christaã. Foraõ 17 condenadas por Benedicto XIV, pelo Ar18 cebispo de Paris Beaumont, e pelo 19 Bispo de Auxerre Caylus, e pela 20 mesma Sorbona.



21 Apologia [e]arundem Thelium, pelo 22 mesmo Abbade de Prades.



23 L’Espion Turc, que eu ha pou24 co tempo Censurei.

[fl .2]



1 Todas as obras de Monsieur Voltaire, 2 que eu por ordem desta Real Meza 3 censurei o anno passado, sem exceptuar 4 as suas Poeticas. Porque a Henriade 5 está cheia de impiedades, e de he6 rezias, contra os dogmas mais capi7 taes do christianismo. As Tragedias 8 porem podem se permittir, a quem 9 tiver licença da Meza.



10 O Poema de Pope Sobre o Homem. 11 Elle já se imprimio em Lisboa tradu12 zido em Portuguez com permissaõ 13 desta Meza. Mas eu pelo que tenho 14 lido da substancia e artificio deste 15 Poema, nelle estabeleceo o Autor com 16 muita reserva e dissimulaçaõ o veneno 17 da libertinagem mais refinado; [1 palavra rasurada] 18 tanto mais prejudicial, quanto mais encûberto. 19 Para o que basta advertir, que hú Principio 20 capital de Pope he, que quando as paixo21 ens humanas chegaõ a hú tal excesso, que 22 neste estado naõ attende o homem nem 23 as liçoens nem as Leys da Rezaõ; devese 24 entaõ abandonar de todo a mesma Rezaõ, 25 por seguir o excessivo pezo das mesmas 26 paixoens, o qual se deve reputar huã ley 27 da Natureza, que por isso mesmo que he 28 da Natureza, he huã Ley boa, e Ley 29 por onde nos devemos governar. Outro1

1. A palavra inteira foi escrita em forma de arrependimento.

[fl .2v]

1 Principio he, que todo o uzo das paixoens 2 he conforme a boa Rezaõ, todas as vezes 3 que para conseguirmos o deleite, naõ 4 offendemos algum terceiro. Ambos mostra 5 das mesmas passagens de Pope o citado 6 Anonymo de Avinhaõ, pagina 219 até 7 pagina 222.

< 8.º >

< 9º >

8 Les Pensées et Les Essais 9 de Montagne: se bem que eu naõ 10 tenho delles o devido e inteiro conhecimento.

11 Tratado de Witby, Author Ju[g]ler, 12 publicado em 1713. Contra a existen13 cia do peccado original. Journal 14 des Sçavans, anno 17131 pagina 155. 15 e no Jndex, ver Peché Originel, 16 pagina 619.

17 Ad visto, que [a]pelas Actas da Assem18 bleia de Paris de 1765 que o Senhor 19 Frei Joaõ Baptista de São Caetano 20 tem em seo poder; e pelas do 21 Synodo de Utrech de 1763. Se 22 podem apontar outros Authores 23 Libertinos, que me lembra foraõ 24 alli condenados, e cujas obras 25 alli se exprimem. * 26 18 de Mayo, de 27 1770

28 Antonio Pereira de Figueiredo

1. Arrependimento nos algarismos “1” e “7”.

2

2. Continuação anterior.

da

anotação

[fl .3]

1 Juizo e observaçoens de 2 Antonio Pereira de Figueiredo, sob[r]e 3 os Authores Libertinos ou 4 Livros obscenos, que devem ser 5 Condenados pelo Edital desta 6 Real Meza Censoria.

7 Escrito a 12 de junho de 1770.

8 Sou de parecer, que sabendose 9 de certo o Author do Livro censu10 rado, se declare no Edital o seo 11 nome.

12 O lugar e o anno da impressaõ 13 naõ he necessário declararse: mas 14 se o titulo da mesma obra 15 variar, he rezaõ que a mesma 16 obra se exprima, segundo todos 17 os titulos, em que se acha impressa. 18 Como succedera com L’ Espion 19 Turc, que corre com diversos 20 titulos.

Marileide Lázara Cassoli Doutoranda em História pela UFMG

Nos campos de Têmis: senhores, escravos e ações cíveis. Mariana, 1850-1888

Campo jurídico, campo de batalha: o tortuoso caminho das intenções e das leis Palácio (...) 30 de Julho de 1875. Em resposta ao seu ofício de 27 do corrente mês, em que Vosmecê consulta qual a providência digo inteligência que deve dar ao § 3º do artigo 81 do Dec. nº 5:135 de 13 de Novembro de 1872, visto que uns entendem que essa disposição diz respeito unicamente aos libertandos e não aos senhores que defendem o seu direito de propriedade, porquanto estes, como partes, que são, estão sujeitos ao pagamento das custas, quer sejam vencedores ou vencidos, exigindo-se-lhes selo e preparo para todos os atos requeridos, cabe-me dizer-lhe que, sendo expresso n’aquele § que os processos de liberdade propriamente tais são isentos de custas, e não fazendo a lei distinção alguma, também não o tem distinguido na prática os Tribunais da Relação desta Capital e São Paulo, e é a melhor doutrina, segundo o Direito, Vol V; pág. 67; mas como não há esta Presidência dar uma decisão sobre o assunto, e em verdade tem havido opinião discordes, como se vê no do Aviso nº 40 de 8 de Junho finado, de que lhe remeto cópia, convém que Vosmecê de à citada disposição a inteligência que lhe parecer mais de acordo com o direito e prática dos Tribunais, facilitando às

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partes o uso de seus legítimos recursos para as entrâncias superiores na ordem da jurisdição da mesma natureza. Deus Guarde a Vosmecê. Pedro Vicente de Azevedo — Senhor Juiz Municipal e de Órfãos do Termo de Mariana.1

O caminho das intenções, das leis e dos meandros jurídicos mostrava-se tortuoso, ainda em meados da década de 1870, não apenas para os leigos. As leis, artigos, parágrafos, decretos e avisos tinham por objetivo final estabelecer uma ordem naquele que era considerado o “mais difícil problema” da segunda metade do século XIX, o fim gradual do trabalho escravo, sem que o caos econômico ou social se estabelecesse no país. A orientação acima, encaminhada ao Senhor Juiz Municipal e de Órfãos do Termo de Mariana, ganha luz ao ser inserida na lógica da “Ordem” ou, melhor dizendo, da “Razão de Estado”2. Facilitar o acesso à justiça “das partes” interessadas 1. Arquivo Público Mineiro (APM), Secretaria de Governo (SG), 150, p. 160. Grifos do documento. A transcrição dos documentos respeita a gramática e a pontuação original e atualiza a ortografia. 2. Segundo Silvia H. Lara, em uma sociedade onde todos possuíam, em diferentes graus, direitos e privilégios, mas também deveres e obrigações, a finalidade do monarca era garantir a harmonia entre esses diferentes poderes e assim alcançar o bem comum. A vontade do monarca, porém, era limitada pela doutrina jurídica que privilegiava o bem comum e por diversas práticas e usos jurídicos locais e senhoriais. LARA, Silvia Hunold. Senhores da régia jurisdição: o particular e o público na Vila de São Salvador dos Campos dos Goitacazes na segunda metade do século XVIII. In: LARA, Sílvia H. & MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (Orgs.). Direitos e justiças no Brasil. São Paulo: Editora UNICAMP, 2006. p. 60. A nosso ver, a diferença fundamental entre a noção de “Bem Comum” e “Razão de Estado” residiria exatamente na construção de um aparato jurídico que eliminasse os costumes e os localismos, mesmo que isso significasse transformá-los em direito positivo. Para o Brasil da segunda metade do século XIX, essa racionalização dos costumes e a eliminação dos localismos pode ser considerada fundamental no processo de construção de um Estado centralizador. Segundo BOBBIO, Norberto. et al. Dicionário de política. Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. Vol.2. p. 1067, a Razão de Estado aparece atrelada ao próprio desenvolvimento de momentos cruciais na história do Estado moderno na Europa como a progressiva concentração do poder, ou seja o monopólio da força física na autoridade suprema do Estado, que o subtrai às autoridades feudais, nobreza e livres comuns. Tal monopólio da força “permitiu à autoridade suprema do Estado impor coercivamente à população que lhe estava sujeita as regras indispensáveis à convivência pacífica, isto é, permitiulhe impor um ordenamento jurídico, universalmente válido e eficaz dentro do Estado, que obstasse a que as controvérsias entre os súditos fossem decididas pela mera lei da força”. O Estado visava assim, à progressiva interiorização de suas normas, à rejeição da violência privada na tutela dos próprios interesses, e o progresso econômico tornado possível com a certeza do direito. No caso do encaminhamento da questão escrava no Brasil, as “Razões de Estado” permearam as discussões políticas e foram utilizadas tanto pelos políticos defensores de uma reforma imediata da escravidão, encarada como problema de Estado, colocando o mundo privado da escravidão sob o domínio da lei, como pelos seus opositores, que acreditavam que a interferência exagerada do Estado provocaria a própria desordem. As “Razões de Estado” seriam definidas pela tranquilidade e segurança pública do país e o reconhecimento da importância econômica da propriedade escravista. PENA, Eduardo Spiller. Pajens da Casa Imperial. Campinas: Editora Unicamp, 2005. p. 271-272.

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nos processos de liberdade significava reforçar o papel do aparato jurídico e, em última instância, do Estado como mantenedor da ordem social e regulamentador das relações entre os senhores e os seus cativos. Temos por objetivo, neste artigo, por meio das ações cíveis envolvendo escravos, referentes ao Termo de Mariana3, entre 1850-1888, indicar os dados quantitativos e qualitativos que possibilitam analisar a atuação e a presença da justiça na administração dos conflitos cotidianos referentes aos senhores e aos seus cativos. Embora a delimitação espacial tenha, inicialmente, sido pensada estritamente para o Termo de Mariana, a própria dinâmica dos registros cartoriais acabaram por torná-la mais flexível. Chegavam aos registros cartoriais do município de Mariana processos, criminais ou cíveis, oriundos de Freguesias pertencentes a outros municípios. Em alguns casos tratava-se de escravos alegadamente fugidos que se refugiavam na circunscrição do Termo de Mariana, ou ainda, herdeiros de cativos, cujos inventariados eram residentes no referido Termo. Há casos, ainda, em que a demanda não é aceita por ter sido iniciada fora de sua jurisdição correta. As ações cíveis envolvendo escravos incluem as ações de liberdade. Considerando-se o período, 1850-1888, foram arroladas 107 ações cíveis envolvendo escravos que estavam registrados nos cartórios de Iº e IIº Ofícios do Termo de Mariana e que se encontram depositadas no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana4. Gostaríamos ainda de ressaltar que algumas ações de liberdade encontram-se catalogadas nos livros de registros de processos criminais, embora sejam causas cíveis. A amostragem utilizada foi contabilizada considerando os cartórios do Iº e o do IIº ofícios conjuntamente. Em primeiro lugar, porque foram vãos os esforços de definir qual o critério utilizado pela justiça para que os processos cíveis fossem encaminhados para um ou outro ofício; em segundo lugar, porque acreditamos que contabilizar os dados conjuntamente conferirá mais sentido à análise, principalmente no aspecto quantitativo, o que possibilita uma visão mais ampla das informações oferecidas pelo corpo documental. No universo de 107 ações cíveis, foram classificadas como “ações de liberdade” um total de 64. Optamos por essa distinção em função da própria classificação estabelecida pelos registros de documentação do 3. Apesar das variações territoriais sofridas pelo Termo de Mariana entre 1850-1888, em função da criação ou da transferência de Freguesias que a ele pertenciam originalmente para outros Termos, no decorrer do período, algumas localidades permaneceram vinculadas à sede municipal ao longo dos anos referidos, a saber: Nossa Senhora da Assunção de Mariana, sede do município, Nossa Senhora da Conceição de Camargos, Nossa Senhora de Nazareth do Inficcionado, Nossa Senhora do Rosário do Sumidouro, Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira do Brumado, São Caetano do Ribeirão Abaixo, Senhor Bom Jesus do Monte do Furquim, Nossa Senhora da Saúde, Nossa Senhora do Rosário de Paulo Moreira, São José da Barra Longa e o distrito de Passagem de Mariana. 4. Daqui para frente: ACSM.

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ACSM, assim como pela definição das autoridades da época que as diferenciavam das demais ações que envolviam escravos, mas que não se referiam à “sagrada causa da liberdade”5. As ações cíveis envolvendo escravos, excluídas as “de liberdade”, versavam sobre as disputas senhoriais em partilhas de inventário, solicitação à justiça de devolução de escravo preso (por fuga ou por crime, cuja pena já havia sido cumprida), recurso para troca de depositários6 (seja por senhores ou por escravos) ou para a efetivação do depósito (de pecúlio de escravos ou do próprio escravo), cobranças de quartamento, trocas ou devoluções de escravos entre senhores por questões de partilhas ou transações comerciais, protestos contra a atuação do Fundo de Emancipação, entre outros. Nessas ações o escravo tem uma participação passiva já que, na maioria dos casos, o próprio senhor é o demandante. Nos autos de liberdade, ao contrário, o escravo assume papel ativo, sendo o responsável pelo início do processo. Este corpo documental presta-se aqui como um rico informante das relações escravistas em sua dinâmica cotidiana, e, principalmente, em seu aspecto externalizado, ou seja, os arranjos rompidos, de forma violenta ou não, e tornados públicos através das demandas judiciais. Ao dar visibilidade aos desarranjos da sociedade escravista, indiretamente, estes autos judiciais trazem também à visibilidade os mandos e os desmandos na aplicação da justiça e da lei, e o impacto das leis relacionadas à escravidão pós 1850. Embora muitos destes processos, como veremos adiante, não apresentem a sentença conclusiva, acreditamos que tal fator não 5. Em função da periodização determinada para este trabalho, não foi feita uma comparação entre o número de ações cíveis envolvendo escravos e ações cíveis envolvendo apenas livres. O número de ações cíveis, somente para o IIº Ofício do ACSM, corresponde a 20.000 processos. Os dados de RODRIGUES, Tiago de Godoy. Sentença de uma vida: escravos nos tribunais de Mariana (18301840). Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura) — Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004. p. 81, referentes somente à década de 1830, são um indicativo do volume de ações cíveis de “livres”, o autor aponta a existência de 492 processos contra 40 processos envolvendo escravos (7,5% dos processos). Optamos por não calcular a relação entre as ações e o número da população escrava. Se analisado desta forma, o peso quantitativo das ações torna-se pouco significativo. Acreditamos que vislumbrar a evolução do número de ações durante todo o período torne a exploração quantitativa e qualitativa deste corpo documental mais pertinente à proposta deste trabalho de analisar os impactos do aparato jurídico relativo à escravidão, da segunda metade dos oitocentos, nas relações escravistas e na justiça como uma ampliação do espaço de negociação, entre os senhores e os seus cativos, para além do âmbito da casa. 6. Depositário: designa a pessoa a quem se entrega ou a quem se confia alguma coisa em depósito. Pelo contrato, o depositário assume a obrigação de conservar a coisa com a devida diligência, para o que será reembolsado das despesas necessárias tidas, e a restituição tão logo lhe seja exigida, sob pena de ser requerida, pelo depositante, sua prisão (...). Entretanto, casos há em que o depositário se investe no direito de reter a coisa depositada, tais sejam, se há embargo sobre ela, se há suspeita de ter sido furtada, ou se tem direito a indenizações por despesas ou prejuízos. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. P. 37. II vol.

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constitua obstáculo ou prejudique a análise a que nos propusemos. Mesmo desconhecendo o resultado final de várias demandas, a presença das falas dos Curadores7 dos escravos, dos advogados dos senhores, das testemunhas, e dos cativos envolvidos nas situações de crime ou cíveis, como as causas de liberdade, compõem um rico mosaico explicativo dos fatos que justificam a demanda e os processos nos tribunais. O libelo8, crime ou cível, constitui-se uma peça preciosa ao misturar a fala jurídica e culta do curador ou advogado à descrição da dinâmica cotidiana e dos fatos limites que transferiram o campo de batalha das relações sociais da “casa” para a “rua”. O depoimento das testemunhas coloca em cena as verdades possíveis e os códigos de comportamento definidos para os diversos agentes sociais. Mesmo filtrados pela pena do escrivão e correndo-se o risco de uma “visão oficial” dos acontecimentos, as entrelinhas, as falas, ou os silêncios acabam por “denunciar” os contornos, as vivências, os anseios e os rumos que a instituição escravista vai adquirindo no decorrer da segunda metade do século XIX. Ao abordar a criminalidade em São Paulo, entre 1880 e 1924, Boris Fausto, analisa os processos penais como uma fonte “cheia de peculiaridades”, merecendo então uma referência mais detida, ressaltando que, nos meios forenses, a introdução da datilografia de depoimentos sofreu resistências pelo risco que, se acreditava, acarretaria a perda de autenticidade do processo. Embora os recortes temporais, espaciais e de objeto do autor estejam distantes de nossa proposta, suas considerações acerca do processo penal como peça artesanal e informante indireto da dinâmica social são extremamente valiosas. Consideramos a fala do autor, que se segue, essencial para a compreensão valorativa da documentação de caráter jurídico e tomamos a liberdade de estendê-las às ações cíveis envolvendo escravos. 7. Curador: derivado do latim curator, de curare, possui o sentido etimológico de indicar a pessoa que cuida, que cura ou que trata de pessoa estranha e de seus negócios. Na técnica jurídica, outra não é sua acepção, desde que é tido para designar a pessoa a quem é dada a comissão ou o encargo com os poderes de vigiar (cuidar, tratar, administrar) os interesses de outra pessoa, que tal não pode fazer por si mesma. A autoridade do curador, ou seja, os poderes de administração que lhe são conferidos, em virtude dos quais se apresenta como mandatário ou representante do incapaz, encontram-se outorgados na própria lei, em que também se inscrevem os casos sujeitos à curatela. O curador se difere do tutor, visto que pode ser dado aos próprios maiores, desde que declarados interditos, aos não nascidos (nascituros), e referir-se somente à administração dos bens dos curatelados, enquanto o tutor é nomeado para representante legal do menor, durante a menoridade. Curador legítimo: assim se designa a pessoa, que, por lei, é indicada como o curador natural do interdito. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. p. 593. I vol. 8. O libelo civil constitui a dedução articulada constante do pedido do autor, para que se inicie a ação ou se promova a demanda. Em matéria penal, constitui a exposição articulada do fato ou fatos criminosos, narrados circunstancialmente, para que se evidenciem os elementos especiais da composição da figura delituosa, com a indicação do agente ou agentes a quem são imputados e o pedido de sua condenação, na forma da regra instituída a lei. ______. Vocabulário jurídico. p. 83. III vol.

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A peça artesanal contém uma rede de signos que se impõem à primeira vista, antes mesmo de uma leitura mais cuidadosa do discurso. Distinções espaciais expressam-se nos erros de grafia, na transcrição em conjunto dos depoimentos de várias testemunhas, indicando que um processo foi instaurado em um bairro distante, com marcas fortemente rurais. Pobreza e riqueza deixam por vezes nítidas pegadas distintivas. Em um extremo, a relativa uniformidade relativa da sucessão de declarações, que não é cortada pelas petições de advogado; os requerimentos em letra vacilante, ou assinados a rogo, onde os requerentes esclarecem que deixam de selar por falta de recursos. No outro, as transcrições dos diferentes atos processuais entremeados de petições de advogado, em papel linho timbrado; os memoriais impressos, distribuídos aos desembargadores; a peça de defesa datilografada que, sobretudo em épocas mais remotas, revela o prestígio do próprio defensor. Isoladamente, talvez o texto mais carregado de significações seja o documento de antecedentes, juntado em regra, pelo réu, valendo-se de sua rede de relações — vizinhos, patrões, colegas, compatriotas conterrâneos, fregueses. Ele serve para demonstrar, conforme o caso, a conformidade do acusado com o modelo sócio-familiar, sua origem respeitável etc. etc. Toda uma gradação da eficácia do documento se insinua, segundo quem o emite, a força do seu conteúdo verbal, os signos formais de que está revestido. “Papeluchos de favor”, escritos a mão, em papel ordinário, onde se enfileiram frágeis assinaturas anônimas contrastam com documentos na solene expressão do termo, em papel timbrado, datilografados, contendo a assinatura de pessoas influentes ou representantes de grandes empresas”. (FAUSTO, 1984: 20-21)9

Como afirmamos anteriormente, apesar de tempo, espaço e objetos diversos, as “pegadas distintivas” apontadas acima pelo autor são facilmente visualizadas em nosso corpo documental. O número de Juntadas10, os papéis timbrados e datilografados que aparecem mais ao final dos Oitocentos anexados por advogados de senhores, os “papeluchos sem valor” de subscrições arrecadadas para a compra da liberdade, os depoimentos fruto das redes de relações sociais, os códigos de comportamento esperados e os papéis atribuídos traçam não apenas o mapa das “verdades opostas” que se imbricam como também podem significar a diferença entre a liberdade e a escravidão, a absolvição e a condenação.

9. FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). 10. Juntada: derivado de juntar, jungere (unir, ligar), entende-se na técnica forense, o ato pelo qual se faz unir ao processo um documento ou uma peça, que lhe era estranha e passa a fazer parte dele e integrando-se em seus atos. Este ato é mencionado nos autos, pelo assento ou termo de juntada, escrito em que se menciona o que se fez, com a indicação do que se juntou ou uniu ao processo e da data em que se executou. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. p. 20. III vol.

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As distinções sociais aparecem nitidamente nos registros dos escrivães. Antecedendo o nome das testemunhas ou dos depositários, as qualificações distintivas possibilitam vislumbrarmos os locais de trânsito social, e, também “geográfico” de senhores e escravos: “cidadão’, “negociante”,“inglês de Nação grande, capitalista”, “fazendeiro abastado”, ou “vive de roças”, “vive de lavoura”, “vive de suas costuras”. Urbano ou rural, o local de “pertencimento” dos contendores delineava-se por meio das referências aos recursos utilizados para a sobrevivência de cada ator social envolvido nos autos. QUADRO 1: AÇÕES DE LIBERDADE E AÇÕES CÍVEIS DÉCADAS 1850-1859 1860-1869 1870-1879 1880-1888 TOTAL

NÚMERO DE AL* 7 12 23 22 64

NÚMERO DE AC** 9 5 10 19 43

% de AL 43,7 70,5 69,6 53,6 59,8

Fonte: Ações de Liberdade Iº e IIº Ofícios — ACSM — 1850-1888. *AL=Ações de Liberdade. **AC=Ações Cíveis envolvendo escravos. Excluídas as ações de liberdade.

O crescimento do número de ações cíveis corrobora para o Termo de Mariana os dados apontados por Grinberg11 apontando o crescimento das ações de liberdade, para o período de 1851 a 1870, que chegavam ao Tribunal da Relação do Rio de Janeiro. Por outro lado, a autora aponta a queda das ações propostas a partir do ano de promulgação da Lei de 1871, o que não ocorre para o Termo de Mariana, quando as ações de liberdade atingem o índice de 69,6% das demandas envolvendo escravos. Por corresponder a ações demandadas em primeira instância, nossa amostragem possibilita que observemos a evolução das causas da liberdade num quadro de maior regularidade, já que não se refere apenas às sentenças apeladas e encaminhadas ao Tribunal da Relação, que, para a província de Minas Gerais, passou a ser na cidade de Ouro Preto, a partir de 1873. A Lei de 1871 estabelecia ainda que os processos de liberdade deveriam ser julgados sumariamente, resolvendo-se as pendências nos tribunais de primeira instância. A soma destes dois aspectos certamente contribuiu para que o número desses processos apresentasse queda no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro12. Mesmo quando consideramos a queda dessas ações

11. GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 109 12. O Decreto Nº 2342 de 6 de Agosto de 1873, criou mais sete Relações no Império em função do crescimento populacional de algumas províncias e, consequentemente, para diminuir o número de

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para a década de 1880, conforme indicado no Quadro 1, não atribuímos esta queda a uma possível descrença, por parte dos escravos, nas soluções legais. Fatores como o Art. 32 §3 do decreto 5.135 da Regulamentação de 187213, que favorecia a classificação de escravos não envolvidos em demandas pela liberdade, a regularização do pecúlio escravo como meio legítimo de obtenção da alforria14, e, posteriormente, a permissão para a liberalidade direta de terceiros para a obtenção da alforria15, certamente contribuíram para que a liberdade fosse alcançada por outros trajetos legais, distintos das ações de liberdade. A evolução das sentenças obtidas pelos demandantes das ações cíveis envolvendo escravos demonstram alguns dos aspectos colocados acima. Vejamos o gráfico que se segue. EVOLUÇÃO DAS SENTENÇAS DAS AÇÕES CÍVEIS

Fonte: Ações Cíveis envolvendo escravos Iº e IIº Ofícios — ACSM — 1850-1888. Não foram contabilizados os processos inconclusos ou incompletos. *A partir de 1873 as apelações foram direcionadas para o Tribunal da Relação de Ouro Preto. **Incluem os acertos de alforria onerada e de aceitação de proposta do Fundo de Emancipação após 1872. ***Tratam basicamente de processos que envolviam disputas entre senhores.

processos que chegavam ao Rio de Janeiro. Coleção das leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1831, 1850, 1871, 1872, 1885. 13. O Artigo 32º, § 3º, estabelecia que “O escravo que estiver litigando pela sua liberdade, não será contemplado na execução do artigo 42; mas ser-lhes-há mantida a preferência, que entretanto tiver adquirido até a decisão do pleito”. O Artigo 42 do mesmo Decreto era referente à liberdade dos escravos classificados pelo Fundo de Emancipação. Ou seja, o escravo demandante de ação de liberdade contra seu senhor não teria direito aos benefícios estabelecidos pelos critérios de classificação para alforria, definidos pelo Fundo de Emancipação. Não descartamos aqui a possibilidade de outras vias, para além do caminho jurídico ou dos acordos pessoais, na busca pela liberdade. As fugas, os assassinatos, entre outros recursos, perpassaram as relações entre senhores e seus cativos durante toda a vigência da instituição escravista. Contudo, esses embates não constituem objeto deste estudo. 14. Lei de 28 de setembro de 1871, Art. 4º § 1 e 2. Leis do Império, 1871. 15. Lei de 28 de setembro de 1885, Art. 3º § 9. MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 1999. p. 413.

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Consideramos as sentenças conjuntamente, ou seja, o resultado apresentado é fruto da somatória das ações cíveis e das ações de liberdade. Embora contabilizadas em conjunto, o multiplicação das sentenças de liberdade e de acordos aponta claramente o crescente favorecimento à liberdade imediata ou à alforria onerada, a partir da década de 1870. Tal fato certamente se vincula à maior clareza dos requisitos e procedimentos para a obtenção da liberdade, acumulação de pecúlio, a liberalidade da alforria por terceiros e os consequentes acordos pela liberdade. Na década de 1880, os acordos pela liberdade ganharam força não apenas pelos acertos via Fundo de Emancipação, mas pela maior liberalidade da alforria por terceiros16. Em ambos os casos, acreditamos que esse crescimento dos acordos tenha sido influenciado pela crença na fatalidade do final da escravidão sem que houvesse qualquer tipo de indenização. Certamente os proprietários estariam mais propensos aos acordos indenizatórios, via Fundo de Emancipação, por pecúlio acumulado pelos cativos ou pela liberalidade de terceiros. Por outro lado, quanto à atuação da Junta Classificatória para o Fundo de Emancipação, escravos e senhores se mostravam atentos quanto à sua eficiência. Aqueles, pelo receio de serem preteridos em sua liberdade, estes, pelo receio das perdas financeiras. Em 1877, o advogado Egydio Antonio do Espírito Santo Saragoça representava a escrava Sebastiana e seus cinco filhos menores, em demanda contra a classificação realizada pela Junta, em que sua ‘curada’ teria preferência em relação a outros cativos que constavam da referida classificação. Além disso, o Curador denuncia, em correspondência ao presidente da província, que: A Junta Classificadora de Mariana é defeituosa em sua organização e em seus trabalhos (...) no começo de seus trabalhos figurou um membro incompatível (...) o Coletor era parente de senhores cujos escravos estavam sendo avaliados e classificados [assim como o Promotor Público] [o que o colocava] num círculo de ferro e de pressão dos mais imprecisos sentimentos de natureza, que o tornam incompatível até de ser Promotor Público da Comarca e Delegado de Instrução Pública (...) [Quanto aos trabalhos da Junta] não devia convidar aos Senhores para dar a lista ou a sua proposta dos valores, como se emancipação não fosse um benefício aos escravos e sim uma atribuição aos senhores para libertar aqueles que lhes parecessem nas condições de suas vontades (...) havendo no Município centenas de famílias para serem

16. Segundo o parágrafo 9º, artigo 3º da Lei nº 3.270, de 28 de setembro de 1885, conhecida como Lei dos Sexagenários: “É permitida a liberalidade direta de terceiros para a alforria do escravo, uma vez que exiba preço deste”. Ou seja, a “intervenção” de terceiros, certamente possibilitou que as redes sociais fossem mobilizadas pelos cativos em prol da obtenção da liberdade. Leis do Império, 1885.

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alforriadas, não devia preteri-las para classificar indivíduos, e alguns deles pertencendo aos parentes [do Promotor].17

No mesmo ano, Dona Anna Maria Benedita de Macedo demanda contra a Junta. Sua escrava Delfina e dois filhos menores, Marcelino, cativo, e Paulino, nascidos de ventre livre, haviam sido preteridos em favor de Leonor, outra de suas escravas, porém solteira. Segundo a proprietária, havia muitos outros escravos classificados indevidamente pela Junta “(...) só por que manifestava pecúlio (...)”18. Ainda em 1877, João Damasceno Correia, tutor dos filhos órfãos do falecido Francisco de Paula e Silva e de sua mulher, reclama a não classificação da escrava Josepha e seu filho Raymundo com mais ou menos oito anos e um outro, ingênuo, encontrando-se retirar: a ela grávida. Segundo o tutor, Josepha e seu filho possuíam, cada um, pecúlio de 50$000 réis. Tais denúncias e reclamações trazem em si uma dubiedade inerente. Quais os interesses realmente defendidos? Dos cativos? Dos senhores? Afinal, ao se reclamar contra as incongruências da Junta de Classificação, o benefício da liberdade a ser obtida torna-se também o benefício da indenização. As relações entre a Junta Classificatória e os senhores teriam sido pautadas não apenas pelas definições legais para a classificação dos cativos, mas também pelas redes de relações pessoais acionadas e os interesses financeiros do Fundo de Emancipação. Seriam estes aspectos os responsáveis pela emergência dos conflitos relatados acima. Afinal, para o Fundo, libertar Leonora, possuidora de pecúlio, era mais vantajoso, em função da indenização a ser paga pela própria escrava, que libertar Delfina, sem pecúlio registrado. Para Dona Anna Maria, certamente a liberdade indenizada de uma escrava e de seu filho menor garantia, pelo menos em parte, o retorno de seus investimentos antes que a possibilidade da abolição se concretizasse. Somado a isso, escravas que não mais “produziam” filhos escravos — após a Lei do Ventre Livre em 1871 — certamente diminuíram o interesse senhorial em mantê-las sob cativeiro. Fato é que, mesmo quando as insatisfações com o Fundo eram manifestadas, os arbitramentos para preço de escravo eram acordados. No caso da escrava Adriana e de sua filha Maria, ambas pertencentes a Joaquim Martins da Silva, o Coletor aceitou pagar o valor determinado pelo senhor, “por 17. APM, SG, 152. Para que a ação de libertação dos escravos fosse realizada através do Fundo de Emancipação, deveria ser constituída uma Junta Classificadora, que funcionaria localmente, e daria conta do controle dos cativos que seriam libertados. A composição dessa Junta variava, podendo ser encontradas autoridades civis e militares. De maneira geral, pelos documentos encontrados, o número de componentes era de duas pessoas, sendo na maior parte das vezes, formada pelo Promotor Público e pelo Coletor Estadual. 18. ACSM, ação cível, códice 389, auto 8497, ano 1877, Iº Ofício.

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tê-las visto e julgar razoável o preço pedido”19. Os acertos entre Joaquim Martins da Silva e o Fundo incluíram ainda a cessão, por parte deste, em benefício das escravas, da quantia de trezentos e cinquenta mil réis, logo, receberia por indenização um conto quatrocentos e cinquenta mil réis. Aparentemente sem incidentes que justificassem o arbitramento da justiça, a insatisfação senhorial acabava por se revelar em sua afirmação de que “(...) se não fora para a liberdade, não as vendia [mãe e filha] por preço algum (...)”20. Assim as histórias de Dona Anna Maria Benedita de Macedo e Joaquim Martins da Silva convergem para o mesmo ponto, a mediação do Estado, via aparato jurídico, nas relações escravistas. Jogar dentro das novas regras e beneficiar-se destas era um novo aprendizado para ambos os lados. Vale ressaltar ainda que, para a década de 1880, os acertos com o Fundo de Emancipação foram predominantes. Os acordos entre senhores e escravos corresponderam a 83,3% dos firmados via o Fundo. Os outros 16,6 % foram fruto da compra de alforria pelo próprio escravo. A alforria por terceiros, por sua vez, em nossa amostragem, aparece relacionada às relações familiares e às relações sociais. As relações sociais com certeza possibilitaram que a Irmã Martha Laverssiere [sic], Madre Superiora do Colégio da Providência da cidade de Mariana, tivesse sucesso na ação de liberdade movida em favor da escrava Catharina, de menor idade, pertencente a D. Maria Francisca do Carmo. A Superiora do referido Colégio amealhou, por meio da doação de pessoas “(...) desta Cidade a benefício da liberdade daquela menor, afim de ter ela uma educação mais conveniente para a sociedade e que como escrava não pode ter (...)”21, não apenas os 300$000 réis iniciais, como os 500$000 réis necessários para o fechamento do acordo com a senhora da escrava e a consequente alforria. A evolução das sentenças aponta nitidamente o crescimento das sentenças de liberdade, principalmente a partir de 1870, conforme dito acima22. Embora os acordos constituam também sentença de liberdade, afinal foram arbitrados em juízo, optamos por separar os resultados com o intuito de apontar as demandas envol19. ACSM, ação cível, códice 446, auto 9637, ano 1877, Iº Ofício. 20. ACSM, ação cível, códice 446, auto 9637, ano 1877, Iº Ofício. 21. ACSM, ação de liberdade, códice 316, auto 7557, ano 1881, IIº Ofício. Curiosamente, a ação transcorre em 1881, período anterior à Lei dos Sexagenários de 1885 que regulamentou a alforria por terceiros. 22. Mesmo considerando a impossibilidade de conhecer o resultado final de todas as ações componentes de nosso corpo documental, os números do GRÁFICO 1 apontam uma tendência que, acreditamos, manter-se-ia se as demandas incompletas ou inconclusas, hipoteticamente, apresentassem sentença final. Essa classificação foi feita por serem autos sem finalização, ou por terem sido enviados ao juiz para avaliação e sentença ou por estar faltando parte do documento, e não pelo abandono do processo pelos contendores.

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vendo o Fundo de Emancipação23. Excluídos os processos incompletos e as sentenças classificadas como “DEMAIS”, as ações com afirmação da liberdade corresponderiam a 30,7% das sentenças para a década de 1870 e 26,6% para a década de 1880. Porém, a pequena queda dessa afirmação apontada para a década de 1880 é compensada pelos acordos, que apresentaram um índice de 40% para o período, contra 23% para a década de 1870. Considerando a somatória das sentenças, liberdade + acordo, teríamos para a década de 1870, 53,7% e para a década de 1880, 66,6% de confirmações para a liberdade24. Para as décadas anteriores, 1850 e 1860, as sentenças de liberdade corresponderiam, respectivamente, a 25% e a 42,8%. Não se configuraram acordos para este período. Contudo, se avaliarmos a evolução das sentenças de liberdade, mesmo desconsiderando os acordos, da década de 1860 para as de 1870 e 1880, teríamos um aumento de 166,6% nas confirmações pela liberdade. O peso dos acordos nas sentenças de liberdade é evidente, principalmente via Fundo de Emancipação, o que nos permite inferir que, mesmo com as reclamações e possíveis favorecimentos pessoais, a opção pela aceitação dos valores arbitrados em juízo revelava a preocupação senhorial com o recebimento de algum tipo de indenização pela propriedade perdida. Como afirmamos acima, a Lei do Ventre Livre de 1871 e as suas regulamentações teriam levado senhores e escravos a se posicionarem diante de uma legislação que não se prestava apenas a solucionar os conflitos surgidos dos desarranjos, mas que normatizava procedimentos para a obtenção da liberdade. Sendo assim, mesmo que tais regulamentações possibilitassem um efeito “perverso” da lei, ou seja, o cerceamento da liberdade, pois, para obtê-la, o escravo deveria seguir todas as especificações determinadas legalmente, sua contrapartida era igualmente válida, ou seja, os senhores não cumpridores das regras que permitiam a manutenção da escravidão se viam cerceados em sua prerrogativa maior: o controle da alforria do escravo. As ações de liberdade e ações cíveis envolvendo escravos possibilitam desvelar muitas das estratégias, de senhores e escravos, que recorreram à justiça, seja para 23. De acordo com os dados de MARTINS, Roberto Borges. Minas Gerais, Século XIX: tráfico e apego à escravidão numa economia não-exportadora. In: Estudos Econômicos, São Paulo, v. 13, n. 1, jan.-abr. 1983. p. 203, o Fundo de Emancipação teria sido responsável pela liberdade de 629 escravos na província de Minas Gerais, no período de 1875 a 1880. Segue-se a distribuição, por região, dos escravos libertados: Metalúrgica 167, Mata 165, Sul 157 e Outras Regiões 140. Para Mariana e seu Termo, o corpo documental analisado aponta uma recorrência maior ao Fundo de Emancipação para a década de 1880. 24. Para o mesmo período, décadas de 1870 e 1880, as sentenças de não liberdade corresponderiam a 7,6% e 6,6% respectivamente. Os cálculos foram feitos a partir da somatória das sentenças por década, excluídos os processos classificados como Inconclusos ou Incompletos.

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preservar a propriedade ou vivenciar, mesmo que temporariamente, no caso dos cativos, situação diversa da qual se encontravam. O tempo prolongado das demandas jurídicas significou, para muitos escravos, a manutenção da unidade de famílias que se achavam na iminência de serem separadas por venda, o afastamento de um trabalho mais árduo ou de um senhor mais rigoroso. Mesmo sem caráter definitivo, a liberdade usufruída por meio do depósito, durante o tempo em que a demanda transcorria, foi certamente, a única experiência de liberdade provada por muitos cativos antes de 1888.

Documento Trechos do processo de liberdade de Antonio Avelar, escravo de Affonso Augusto de Oliveira. Disponível no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Ação Cível. Códice: 448. Auto: 9680. Ano: 1883. Iº Ofício.

Data 15 a 25 de maio de 1883

Resumo Em maio de 1883, Antonio Avelar, africano, estava preso por ordem de seu senhor, Affonso Augusto de Oliveira. Intenta-se uma ação de liberdade argumentando não poder ser ele escravo por ter sido importado posteriormente à lei de 1831, que extinguiu o tráfico atlântico. Pelo que se pode depreender dos trechos, no decorrer do processo se alega que a sua verdadeira idade é 56 anos, e não 35, como informado no termo de abertura. Durante o interrogatório, Antonio fala de sua família na África, da travessia do Atlântico e dos sucessivos senhores por que teria passado até aquela data. Informa também, estando o seu senhor presente no interrogatório, reconhecer ser escravo e nunca ter requerido a pessoa alguma que requisitasse sua liberdade.

[fl. 1]

1 1883 2 Autor 3 Antonio Africano competencia de seo Cura 4 dor o Advogado Joaquim da Silva Braga Breyner

5 Reo 6 Affonso Augusto da Oliveira

7 Accaõ de Liberdade

8 Escrivao ___________________________________________ Bazilio

9 Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Chris 10 to de mil oitocentos e oitenta e tres aos dezaseis dias 11 do mes de Maio do dito anno nesta Leal Cidade 12 de Mariana em o meo Cartorio ahi por parte do 13 do [sic] Autor Joaqu digo Autor Antonio Affricano com 14 assistencia de seo Curador nomeado me foi apresenta 15 do huma sua petição com o despacho nella profe 16 rido pelo Coronel João Paulo de Faria primeiro 17 Supplente do Juis Municipal d’orfons[?] mefoi apre 18 sentado huma sua petição com o despacho nella 19 proferido pelo dito Juis para effeito do seo [ser]vicio 20 authoado, e proseguir nelles mais comforme o di 21 to despacho, a qual por bem do mesmo despacho 22 e a Distribuicão assim feita o aceitei e authoei e aqui 23 ajunto athé a que ao deante coregiu. E para constar 24 faço esta authoacão Eu Manoel Bazilio do Espi 25 rito Santo Tabelião que o escrevî e assigno.

26 Manoel Bazilio do Espirito Santo

[...] [fl. 2]

1 1 Ilustríssimo Senhor Coronel Juis Municipal 1. Mudança na tinta.

1

1. Mudança na tinta.

2 Diz Antonio, Affricano, com a idade de 35 3 annos, preso na Cadeia desta Cidade á titulo 4 de escravo de Affonso Augusto de Oliveira, 5 que sendo livre por ter vindo de seu 6 paiz, ha muitos anos, depois da Lei que 7 abolio o trafico, naõ pode continuar 8 a soffrer injusta prisaõ, por naõ ter 9 commettido crime algum, e assim 10 requer á Vossa Senhoria que se sirva manda11 lo pôr em liberdade; e quando al12 guma suspeita paire a respeito da 13 condicçaõ do Supplicante, se sirva a 14 Vossa Senhoria nomear um Curador, que 15 requeira o deposito do supplicante 16 e defenda os seus direitos

2

17 Pede a Vossa Senhoria que destribuida 18 e Authoada esta prossiga em 19 seus termos 20 E Receberá Merce

2. Mudança na tinta e na caligrafia. 21 A rogo do Supplicante 22 José Francisco do Couto 1



1. Mudança na tinta.

[...] [fl. 5]

1 Ilustríssimo Senhor Juis Municipal

[2 selos: Imperio do Brazil, 100 réis] 1 1. Por sobre os selos. 2 Dis o escravo Antonio de Avelar per3 tencente a Affonso2 Augusto de Oliveira 4 que constando-lhe que o Cidadaõ Jose 5 Francisco do Couto apresentara a Vossa Senhoria um 6 requerimento assignado a rogo do supplicante 7 pedindo deposito de sua pessoa, para 8 intentar uma accaõ de liberdade, sobre 9 o fundamento de que é o supplicante importado 10 posteriormente a lei de 1831, vem declarar 11 que nada pedio ao referido Cidadaõ que 12 a seu rogo assignou, porquanto reconhece 13 que de facto é captivo visto como tem a 14 idade de 56 annos.

15 E como naõ se quer prestar para vingan16 ças alheias fas a presente declaraçaõ em pre17 sença das testemunhas abaixo menciona18 das e pedio a Olympio Donato Corrêa 19 para ella escrever e a seo rogo assignar

20 A rogo de Antonio Avelar 21 Olympio Donato Corrêa 22 Como3 testemunha David da Silva Pereira Coelho 23 “ “ Francisco Gomes de Oliveira 24 “ “ Manuel Vinhaõ[?] Leite Junior que vi 25 o supplicante comfirmando a allegada, com excepção da 26 circunstancia da idade, que para enquanto perciste per

2. Arrependimento na letra “s”. 3. Mudança de caligrafia.

[…] [fl. 7]

1 Auto de Interrogatorio

2 Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Chris 3 to de mil oitocentos e oitenta e tres aos vinte 4 cinco dias do mes de Maio do mesmo anno 5 nesta Leal Cidade de Mariana em a Salla das 6 audiencias aonde foi vindo o Cidadao Francisco Bap 7 tista Americano Presidente da Camara Mu 8 nicipal desta Cidade e seo Município servindo de 9 Juis Municipal no Impedimento de Juizes Muni 10 cipais Supplentes, comigo Tabeliao ao deante 11 nomeado corregnado[?] vim, para effeito de 12 proceder-se ao Interrogatorio ao escravo An 13 tonio pertencente a Affonço Augusto de Oliveira 14 comforme foi requerido pelo Curador do mes 15 mo, que tambem seacha presente, e apresen 16 ta o Senhor do escravo; Passando o Juiz em se17 guida a fazer as perguntas seguintes =

18 Qual o seo nome idade naturalidade e reziden 19 cia? 20 Respondeo chamar-se Antonio Avellar, 21 natural da Costa da Affrica e ter de idade mui 22 to mais de cincoenta annos não podendo pre 23 cizalla por ter vindo muito pequeno nesta Cida 24 de e he rezidente nesta Cidade.

25 Qual a sua proffis 26 saõ e meios de vida? Respondeo que ê jorna 27 leiro; Qual o seo estado. Respondeo que ê sol 28 teiro. Á quanto tempo seacha no Brasil e 29 quem foi o seo primeiro Senhor? Respondeo 30 que esta neste Paiz a muitos annos e serecorda que 31 quando estava ainda na Affrica na Naçaõ Con 32 go tinha Pay e May ainda mossos1 e que todos 33 os annos sua May tinha hum filho e que ao 34 todo já heraõ sette Irmaons sendo que hum 35 mais velho tiria oito para nove annos, e que sen 36 do elle o terceiro ca[ss]ula ter a defferenca de 37 dois a tres annos ficando ainda na Costa quatro 38 Irmaonszinhos sendo hum de peito ainda e elle 39 interrogado nesta Cidade veio para o Brazil

1. “Moços”.

[fl.7v]

1 Em companhia de seos dous Irmaons mais ve2 lhos, lembrandose de pertencerem como escra 3 vos ao defunto Joaõ Paulo de Carvalho ja falleci 4 do a muitos annos, e depois ao finado Luis Carva 5 lho, e ainda depois a finada Dona Antonia 6 Francisco de Carvalho, e o [ilegível] ês[?] escra 7 vo de Dona Maria da Conceiçaõ Maciel caza8 da com Affonco Augusto Maciel por heranca 9 que o mesmo ficou da finada sua viuva dita 10 Dona Antonia.

11 Perguntado quando veio da Costa 12 da Affrica se veio só ou se veio[?] com muitos compa 13 nheiros, se em Navio de Vella ou Vâpôr? Respon 14 deo que serecorda ter vindo em Navio de Vella 15 e que com elle vieraõ muitos mininos, e pessoas 16 maiores. Perguntado quando chegaraõ ao 17 Brazil, qual o logar ou Cidade em que se des 18 embarcaraõ? Respondeo que elle desembarca 19 ra em Macâẽ sendo que parte ahi ficou e elle 20 e outros embarcaraõ de novamente e vieraõ pa 21 ra o Rio de Janeiro desembarcando em Bota 22 fogo e dahi seguiraõ para o Mâr de Hespanha 23 ficando alguns no Rio de Janeiro.

24 Perguntado 25 se o Navio em que vinhaõ naõ foi perseguido 26 no alto mâr ou mesmo a Costa por alguma 27 embarcaçaõ estrangeira. Respondeo que nunca 28 foraõ perceguido por embarcacaõ alguma. 29 Sendo assim como disse qual a razaõ que prezu 30 me ter a dizer que ê livre por ser Affricano? 31 Respondeo que nunca disse coiza nenhuma por

32 que reconhece ser escravo. Perguntado como 33 ê que o Cidadaõ Joze Francisco do Couto ami 34 go delle respondente pedio hum Curador e hum 35 depozitario allegando ser affricano livre e em 36 vista de disso seacha elle depozitario? Respon 37 deo que nunca pedio a pessoa alguma para requerer

[fl.8]

1 Requerer por si a sua liberdade, môrmente agora 2 que seachava prezo por ordem de seo Senhor 3 que nunca vio e nam convercou ahi com o Senhor 4 Jozé Francisco do Couto; mas que ê verdade ter elle 5 vindo nesta Cadeia e procurado por elle respondente 6 naõ podendo converçar por estar o mesmo mui 7 to apressado. E mais naõ diz; como lhe foi pergun 8 tado, assigna elle Juis, e pelo respondente seassig 9 na a seo rogo Antonio Ferreira Ermelindo de 10 pois de tudo ser lido por mim Manoel Bazilio 11 do Espirito Santo Tabeliaõ que o escrevẏ

12 Americano. 13 Manoel Bazilio do Espirito Santo 14 O Curador Joaquim da Silva Braga Breyner 15 Antonio Ferreira Ermelindo 16 Affonso Augusto de Oliveira

18 Vista 19 Aos vinte nove dias do mes de Maio de mil oito 20 centos e oitenta e tres annos nesta Leal Cidade de 21 Mariana no meo Cartorio sendo ahi faco com 22 vista estes autos ao Advogado Joaquim da Silva 23 Braga Breyner Curador nomeado a Antonio Affri 24 cano. E para constar faço este termo. Eu Manoel Ba 25 zilio do Espirito Santo Tabeliaõ que os escrevÿ.

26 Ao dito Curador

Carlos de Oliveira Malaquias 1 Doutor em História pela UFMG

Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX

O uso de processos criminais como fontes para a História não é nenhuma novidade. No âmbito acadêmico brasileiro, podemos encontrar estudos que se valem desse corpus, pelos menos, desde a década de 19602. Desde então, os processos-crimes serviram para estudos sobre a criminalidade, a manutenção da ordem e o funcionamento do aparato judicial. Mais recentemente, a leitura cuidadosa desses documentos tem revelado detalhes importantes sobre as sociabilidades dos grupos subalternos, permitindo recuperar o cotidiano de escravos, pobres e trabalhadores3. 1. O autor deseja registrar seu agradecimento à Oficina de Paleografia - UFMG pelo convite para a conferência que originou este artigo, em especial reconhecer a dedicação de Mateus Frizzone e a paciência de Fabiana Léo. 2. As referências seminais são FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997, originalmente defendido como tese em 1964 e publicado em 1969; FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social. São Paulo: DIFEL, 1977 e FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: A Criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. 3. Sem a pretensão de esgotar os exemplos, uma pequena lista trabalhos de referência no uso desta documentação incluiria CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro na Belle Epoque. 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986; MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas 1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987 e da mesma autora MACHADO, Maria Helena P. T. O plano e o pânico: movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro/ São Paulo: Editoria da UFRJ/ Editora da Universidade de São Paulo, 1994; MATTOS, Hebe M. Das Cores do Silêncio. Os significados

Os processos-crimes: uma janela para o cotidiano do trabalho em Minas Gerais na primeira metade do séc. XIX

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Neste artigo, desejamos chamar atenção para as potencialidades desses documentos para o estudo das relações produtivas. Na medida em que o cotidiano do trabalho enfeixava uma larga diversidade de relações sociais, não é preciso muita perspicácia para apreender o universo da produção econômica a partir das informações dos processos criminais. Em muitos casos os ambientes de trabalho são cenários de crimes, as ferramentas aparecem como armas e disputas pela posse e uso de recursos surgem como motivações para agressões e furtos. Pode-se vislumbrar o quanto as ocupações diferenciavam socialmente os envolvidos ou como gênero e ofício se imbricavam. Dois aspectos colocavam as necessidades laborais nos espaços mais importantes do cotidiano mineiro oitocentista. Em primeiro lugar, a existência da escravidão, afinal, o escravo é antes de tudo alguém submetido à autoridade de um senhor que o coage ao trabalho. A escravidão engendrava uma lógica particular de controle do trabalho, em que o domínio do produtor escravo acontecia no âmbito privado sob a autoridade pessoal de um senhor4. Em segundo, deve-se recordar que nas sociedades pré-industriais não havia a atual dissociação entre espaço doméstico e espaço produtivo. Antes da industrialização e urbanização separarem a habitação e o trabalho, a noção de ambiente doméstico recobria não só a casa de vivenda, mas também os espaços produtivos onde labutavam escravos e outros dependentes do chefe do domicílio, engendrando uma unidade espacial peculiar, tipicamente pré-capitalista, na qual as funções de produção econômica e reprodução social mesclavam-se5. Essa realidade tornava a concepção de trabalho fundamental, pois recobria a maior parte da existência das pessoas e envolvia várias dimensões da vida — para ficar com algumas mais evidentes: as normas familiares e a constituição dos domicílios; os sistemas de herança e de transmissão de bens; as relações de parentesco e de solidariedade; as regras de propriedade da terra e outros meios produtivos; as dívidas etc. É nesse ponto que os processos-crimes podem ajudar a captar lampejos do cotidiano do trabalho: ao apresentar narrativas, explicações e/ou versões dos fatos criminais do qual tratam, os processos-crimes permitem recuperar visões e atitudes da liberdade no sudeste escravista (Brasil, séc. XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995; WISSENBACH, Maria Cristina C. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo, 1850-1880. São Paulo: Hucitec, 1998. 4. Dois trabalhos fundamentais para entender como a escravidão constituía-se em uma relação de dominação baseada no poder pessoal do senhor sobre o escravos são LARA, Sílvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750 — 1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte (7ª. impressão: 2009). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 5. RODARTE, Mario Marcos Sampaio. O trabalho do fogo: domicílios ou famílias do passado - Minas Gerais, 1830. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012 é uma referência atual que recupera os sentidos múltiplos dos domicílios do passado. A obra discute a principal bibliografia que trata do tema.

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dos sujeitos históricos sobre o trabalho que de outra forma restariam insondáveis ou só tangenciadas por outras fontes documentais. As fontes que apresentamos neste artigo são dois excertos de processos-crimes abertos na antiga Comarca do Rio das Mortes da Província de Minas Gerais na primeira metade do século XIX. No primeiro fragmento, apresentamos a queixa que fez Ana Joaquina de Faria contra o assédio, invasão e furto praticados por um vizinho; no segundo, discutimos o depoimento prestado por Jacinta Maria de Jesus sobre o assassinato da escrava Felicidade cabra6. Os processos-crimes eram maiores e mais informativos do que estes excertos. Nossa seleção visa oferecer uma amostra das diferentes partes constitutivas dessa fonte que é, na verdade, um maço de documentos gerados por vários atos jurídicos, cada um com regras próprias para sua construção. Para entender em que momento dos processos cada um desses excertos aparece e que interesses presidem a sua feitura, convém atentar para alguns aspectos da produção desses documentos.

A estrutura do documento Os processos-crimes são uma documentação serial e normativa da justiça criminal produzidos a partir da década de 1830. Antes dessa data, os fatos criminais poderiam ser encaminhados à justiça régia sob a forma de querelas ou de devassas — as primeiras tomavam lugar quando um súdito denunciava que estava sendo prejudicado pelas ações de outrem, enquanto as segundas eram investigações do governo a partir de uma denúncia. Os processos crime ganharam forma com o Código Criminal do Império de 16 de dez. de 1830 e o Código do Processo Criminal de 29 de nov. de 1832, com ligeiras mudanças com a Reforma do Código do Processo Criminal de 3 de dez. de 18417. Esses documentos têm, normalmente, duas partes principais: o Sumário de Culpa e o Julgamento, cada uma contendo subpartes8.

6. Arquivo do Escritório Técnico II, Iphan, 13ª Superintendência, São João del Rei (MG). Processos Crimes. PC.28-05 e PC.04-09. 7. Lei do Império de 29 de novembro de 1832 - Promulga o Código do Processo Criminal de primeira instancia com disposição provisória acerca da administração da Justiça Civil. Coleção das Leis do Brasil. 1832. V. 1, p. 186. Captado em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/ lim-29-11-1832.htm. Acesso em 01 nov. 2013. Lei Nº 261, de 3 de dezembro de 1841. Reforma do Codigo do Processo Criminal. Coleção das Leis do Brasil. 1841. V. 1, p. 75. Captado em https://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM261.htm. Acesso em 01 nov. 2013. 8. Uma explicação didática e sintética da estrutura desses documentos pode ser vista em FERREIRA, Ricardo Alexandre. Senhores de poucos escravos: cativeiro e criminalidade num ambiente rural, 1830 — 1888. São Paulo: Editora UNESP, 2005, p.25-26.

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O Sumário de Culpa substituiu as antigas quereles e devassas dos processos coloniais, sendo produzido a partir da queixa de um cidadão ou de uma denúncia a ser investigada pelas autoridades judiciais. O responsável pela produção desta parte do documento era o Juiz de Paz até 1841 e, depois, os Delegados e Subdelegados9. Segundo o Código do Processo de 1832, em seu Art. 79, a queixa ou denúncia deveria conter as informações fundamentais do crime — a descrição do fato criminoso com suas circunstancias, o dano sofrido, a identificação do delinquente e sua motivação. Essa parte serve como resumo do processo e sua leitura adianta vários dos temas tratados no documento10. À queixa ou denúncia seguia-se o auto de corpo de delito, em que os vestígios materiais do crime são apresentados, seja o exame do(s) ofendido(s), no caso de agressão física, ou a perícia do local do crime. O processo tem continuidade com a qualificação do acusado/réu e os depoimentos tomados às partes envolvidas e às testemunhas, em número de cinco a oito. Na parte final do Sumário de Culpa, o responsável pelo processo faz sua conclusão e delibera se existem motivos para citar criminalmente o(s) réu(s). Em caso afirmativo, o processo sobe uma instância, sendo remetido ao Juiz Municipal que deveria iniciar o Julgamento11. Essa é a parte mais burocrática do processo e onde entram em ação os advogados e promotores e a aplicação da legislação. Os estudos históricos que se preocupam com a atualização das leis, seu enfrentamento prático, e a realização da justiça usam essa parte dos processos privilegiadamente12. A 9. O Código do Processo de 1832 descentralizava a Justiça e dava maiores competências ao Juiz de Paz. Em função do processo de centralização de fins do Período Regencial e início do Segundo Reinado, no ano de 1841 a reforma do Código transferiu as principais atribuições dos Juízes de Paz passaram para os Delegados, Subdelegados e Chefes de Polícia. VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração da justiça: Minas Gerais — século 19. Bauru/São Paulo: Edusc/ANPOCS, 2004, pp.121-122 e pp.145-146. 10. Infelizmente ainda são raras iniciativas como a do Laboratório de Pesquisa e Conservação Documental (Labdoc) da UFSJ em catalogar e fornecer um resumo do acervo de processos-crimes da antiga Comarca do Rio das Mortes. Graças a esse trabalho, os processos das antigas vilas de São João e São José del Rei, Oliveira, Tamanduá (atual Itapecerica) e Queluz (atual Conselheiro Lafaiete) podem ser facilmente localizados. Mais informações em http://www.documenta.ufsj.edu. br//. Acesso em 01 nov. de 2013. 11. Até o ano de 1841, finalizado o sumário de culpa o processo seguia para o chamado 1º conselho de jurados, ou Júri de Acusação, que decidia se havia no processo suficiente esclarecimento do crime e seu autor para proceder a acusação. Essa instância foi abolida pela Reforma do Código do Processo para fornecer agilidade aos procedimentos jurídicos. Sobre a implantação do Júri no Brasil e sua atuação em Minas Gerais consultar o valioso trabalho de AMENO, Viviane Penha C. S. Implementação do Júri no Brasil: debates legislativos e estudo de caso (1823-1841). 147f. Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em História, Belo Horizonte, 2011. 12. FERREIRA, Ricardo Alexandre. Crimes em comum: escravidão e liberdade sob a pena do Estado Imperial brasileiro. (1830-1888). São Paulo: Editora da Unesp, 2011. AMENO, Viviane Penha C. S. Implementação do Júri no Brasil.

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primeira subparte do Julgamento é o libelo crime acusatório, em que o acusador (promotor público, advogado ou mesmo o delegado) oferecia ao Júri uma descrição do crime fundamentada na legislação que foi infringida. Nesse ponto, ocorria novo interrogatório ao acusado sobre os pontos do libelo e nova inquirição das testemunhas. A seguir, o defensor oferecia sua contrariedade ao libelo acusatório, sendo ouvidas as testemunhas de defesa. O Art. 269 do Código do Processo rezava que competia ao Júri decidir sobre o crime tendo em vista a ocorrência de ato criminoso, a culpa do réu e se havia lugar à indenização. O Juiz de Direito decidia sobre a pena e fixava o valor indenizatório. Para o estudo do cotidiano do trabalho, essa fonte é valiosa sobretudo por que oferece acesso às opiniões de homens pobres, mulheres, escravos e representantes de outros grupos que normalmente não deixavam registros públicos da sua passagem. Há, evidentemente, motivos para desconfiar do que se lê. A primeira, e mais óbvia, é que as vozes dos queixosos, dos réus e das testemunhas eram registradas pela pena do escrivão, que raras vezes indicava se o que seguia transcrito era a fala literal das pessoas. O uso de aspas era muito raro. Um sinal típico de transcrição da fala era o duplo travessão, que quase não aparece. Outra indicação da literalidade dos depoimentos é a descrição do gestual do depoente. Mas, em geral, não nos é dado saber se as palavras que aparecem nos depoimentos foram as mesmas usadas pelos indivíduos. A repetição de certos termos e de construções semelhantes de frases nos depoimentos de diferentes testemunhas sugere que o escrivão fazia também um trabalho de tradução dos depoimentos, adaptando a fala dos depoentes ao jargão jurídico. Outra questão sobre os depoimentos é quem nem todo mundo podia ser testemunha, isto é, nem todos os relatos tinham valor de prova, embora pudessem ser utilizados a títulos de informação. O Art. 89 do Código do Processo Criminal estabelecia aqueles que só poderiam ser informantes nos processos: “o ascendente, descendente, marido, ou mulher, parente até o segundo grau, o escravo, e o menor de quatorze anos”; os menores e os escravos só poderiam prestar informações sob um curador, o que coloca ainda mais um intermediário entre sua expressão e o registro escrito no documento. A segunda suspeita sobre as diversas vozes que o processo-crime apresenta é que elas estabelecem narrativas de acordo com os interesses das partes envolvidas e segundo a lógica dos interrogatórios. São muito comuns documentos em que os testemunhos, tomados mais de uma vez, acrescentam detalhes, retificam declarações e, até mesmo, mudam completamente de teor com o andamento do processo. Normalmente, a inquirição de um réu tomada pelo delegado de polícia é diferente daquela apresentada no julgamento, quando o réu já teve oportunidade de ter orientação de um advogado. Exemplo muito significativo, são os processos sobre revoltas

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de escravos em que os réus assumem a responsabilidade no primeiro interrogatório, mas num segundo momento afirmam que o líder/idealizador da revolta foi um escravo morto no episódio13. Na prática, para o historiador, o que chama atenção nas narrativas construídas nos processos é a forma como cada sujeito constrói discursivamente sua versão, que categorias ele maneja, que imagens e representações ele utiliza para convencer e como esses elementos referem-se ao universo mais amplo das relações produtivas14.

Ana Joaquina de Faria, solteira e chefe de domicílio O primeiro excerto selecionado é a página inicial de um processo-crime acompanhado da queixa proposta pela vítima (ou suplicante) contra o acusado (suplicado). Nesse documento, datado de 1843, Ana Joaquina de Faria dava parte de um seu vizinho, José Antônio Marcelhas, que lhe assediava — “para a consumação de atos libidinosos” — e, não sendo admitido, acabou invadindo a casa de Ana Joaquina, causando vários prejuízos e proferindo ameaças à sua vida. Embora a queixa fosse proposta por Ana Joaquina, não foi ela quem a produziu: analfabeta, a postulante rogou a Francisco de Souza Gaia que assinasse a queixa em seu nome. Possivelmente Ana Joaquina contou com a ajuda de algum rábula ou solicitador de causas para realizar sua demanda. Embora não seja a voz da personagem que esteja gravada no documento — produzido segundo as normas judiciais e embasado nos artigos do Código Criminal — ele apresenta elementos interessantes sobre a vida e o trabalho de um domicílio feminino no ambiente rural mineiro de meados do século XIX. Segundo a queixa, Ana Joaquina de Faria vivia com a mãe, “velha e doente”, e mais uma outra mulher não identificada. Domicílios de chefia feminina não eram raros em Minas, muito pelo contrário. Durante o Século do Ouro eram comuns

13. Como no processo dos escravos envolvidos na Revolta de Carrancas ocorrida em Minas Gerais em 1833 conforme ANDRADE, Marcos Ferreira. Elites regionais e a formação do estado imperial brasileiro - Minas Gerais - Campanha da Princesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008. Ou dos sete cativos que mataram seu senhor em Campos em 1871. PIROLA, Ricardo F. Escravos e rebeldes nos tribunais do Império: assassinatos de senhores em Campos dos Goytacazes (1873). In: VI Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2013, Florianópolis. Anais do VI Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2013. v. 1. pp. 1-14. 14. Uma referência útil para quem manipula documentação jurídica é GINZBURG, Carlo. “O inquisidor como antropólogo: uma analogia e as suas implicações”. In: ______. A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand, 1991, pp.203-14. Ver também a discussão proposta por CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade.

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mulheres forras que viviam de diversos tipos de comércio e se sustentavam sozinhas15. Em Minas Gerais nos anos 1830 pouco mais de um quarto das unidades domésticas eram comandadas por mulheres16. Esses domicílios, no entanto, não gozavam do mesmo status. Em geral, os fogos chefiados por mulheres viúvas eram mais ricos do que os chefiados por solteiras. Segundo um estudo recente, domicílios de mulheres solteiras eram mais comuns nas vilas maiores e nas áreas semi-urbanizadas dos arraiais, viviam de atividades artesanais, sobretudo a produção têxtil, enquanto os fogos de mulheres viúvas ocupavam-se mais tipicamente da agricultura e possuíam escravos mais frequentemente17. Outra questão é que as mulheres da elite, solteiras ou viúvas, tinham com alguma frequência a tutela de um homem da família — filho, irmão, genro — enquanto as mais pobres contavam com o amparo das relações de vizinhança que teciam18. O roubo e destruição perpetrados por José Antônio Marcelhas, narradas na queixa, descortinam o ambiente material e econômico de um domicílio de pequenas produtoras. Vestidos, colchas, lenços, um espelho, um urinol, uma “chicolateira” e algumas gamelas eram itens da casa de Ana Joaquina que foram levados por Marcelhas. Embora fossem artefatos simples, eram valiosos a ponto de serem objeto de roubo. Ana Joaquina também teve levado um machado e uma enxada, instrumentos de trabalho rural, nas plantações e na obtenção de lenha, o principal combustível usado nas casas naquele tempo. O roubo de meadas de fios nos revela a dedicação das mulheres do domicílio à fiação, uma atividade bastante disseminada na província de Minas, capaz de gerar rendas expressivas e participar do rol de exportações mineiras19. Fora da casa, onde a destruição não parou, a queixa 15. FIGUEIREDO, Luciano R. A. Barrocas Famílias: vida familiar em Minas colonial. São Paulo: HUCITEC, 1997. RAMOS, Donald. A mulher e a família em Vila Rica do Ouro Preto: 1754 — 1838. In: Congresso sobre a História da População na América Latina, 1989, Ouro Preto. Anais... São Paulo: Fundação SEADE, 1990. Ver também SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família: São Paulo, século XIX. São Paulo: Editora Marco Zero/Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo, 1989. 16. RODARTE, Mário M. S. O trabalho do fogo, p.183, tabela 24. 17. ______. O trabalho do fogo, pp. 181-224. 18. GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não: histórias de mulheres da sociedade escravista brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio. 19. Segundo o levantamento realizado por Douglas Libby, até 85% das mulheres livres e 55% das escravas ocupavam-se de atividades têxteis, seja a produção de fios, a tecelagem ou a confecção. LIBBY, Douglas C. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988, p.200, figura 20 e p.202. Conforme Bergad, os tecidos de algodão foram muito significativos na pauta das exportações mineiras durante a primeira metade do século XIX, alcançando um auge de 2,37 milhões de varas (ou 6,18 milhões de metros) exportadas em 1828. BERGAD, Laird. Escravidão e história econômica: demografia de Minas Gerais, 1720-1888. Bauru: EDUSC, 2004, p.93, tabela 2.3.

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oferece outras boas indicações de como os domicílios mineiros se sustentavam. José Marcelhas roubou galinhas, espalhou veneno misturado com fubá no entorno da casa para matar outras criações, roçou as plantas do quintal, derrubou muros e espargiu milho de engorda para chamar os porcos e concluir a depredação. Essa narrativa revela que a agricultura e a criação de pequenos animais eram os principais caminhos para manutenção da casa. Possivelmente, todo o alimento que a unidade doméstica consumia era de produção própria. Galinhas e porcos eram animais de trato descomplicado: eram criados soltos, buscavam sua própria comida ciscando nos matos e reproduziam grande número de crias. Os suínos, além da carne, forneciam a gordura que preparava outros alimentos e os conservava. As criações eram mantidas longe dos canteiros de hortaliças e das plantações — possivelmente milho e feijão — com os muros que Marcelhas derribou. Produzindo o próprio alimento, o domicílio de Ana Joaquina evitava gastos e podia usar integralmente as rendas da fiação para pequenas melhorias e itens de conforto — como os que Marcelhas subtraiu. Para concluir a análise deste excerto vale destacar algumas das concepções das relações de gênero que lhe subjazem. Todo o processo se desenrola quando o assédio de Antônio José Marcelhas não é admitido e ele se vê no direito de buscar Ana Joaquina dentro de sua casa. Ela, uma mulher que vivia sob si, sem a tutela de um homem, deveria, na visão do agressor, estar disponível ao avanço de um pretendente20. Não foi o caso e Marcelhas respondeu à frustração com violência e ameaças. O caso de Ana Joaquina de Faria chama atenção para o fato de que a institucionalização da Justiça no século XIX abriu uma oportunidade de defesa, um novo campo de luta para mulheres como ela. Como o texto da queixa requer, a punição do suplicado seria importante para “sua emenda e exemplo de outros”. O leitor atual pode ficar com a sensação de que a Justiça não defenderia uma mulher solteira e pobre contra um proprietário. Aqui vale uma observação sobre o final do processo-crime. Talvez pela lógica patriarcal e machista da sociedade e suas instituições, talvez para colocar “panos quentes” na situação, Ana Joaquina foi demovida do seu interesse em prosseguir com o processo contra Marcelhas. O Delegado Chefe de Polícia da vila aconselhou-a a tratar um termo de convenção em que Marcelhas lhe pagaria Rs 18$960 (dezoito mil, novecentos e sessenta reis), “o mais breve que puder”, em restituição aos prejuízos causados e se comprometeria a não mais lhe procurar, nem lhe perseguir. Se quebrasse o termo de convenção, Marcelhas pagaria multa de Rs 50$000 e sofreria oito dias de prisão. Segundo o escrivão do processo, Ana Joaquina, “reflexionando maduramente”, decidiu-se à 20. Sobre aspectos da violência nas relações de gênero, ver DIAS, Maria Odila. Quotidiano e poder. São Paulo: Brasiliense, 1984.

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convenção e Marcelhas livrou-se de ir a julgamento. Estava dentro das prerrogativas dos Juízes de Paz, Delegados e Subdelegados proceder a termo de bem viver quando diante de altercações que ameaçasse a “tranqüilidade pública” e/ou a “paz das famílias” e ofendessem os “bons costumes”21. Mas, no presente caso, o roubo e a destruição causadas por Marcelhas, além das ameaças proferidas contra Ana Joaquina, apresentavam conteúdo mais grave do que a perturbação ao sossego. Estes atos atentavam contra a propriedade e a vida da ofendida22. No entanto, conforme os homens da Justiça, era mais maduro a uma mulher solteira acertar-se com o agressor, sem levar o processo adiante. Apesar disso, o acesso à Justiça garantiu um acordo legal que prometia a Ana Joaquina a possível indenização dos prejuízos e, tão importante quanto, a promessa de viver em tranquilidade sem o assédio do vizinho. A abertura da Justiça à participação de pobres, mulheres e escravos era um instrumento de sedução, em que o Estado aparecia como instância legítima na regulação da sociedade23. A extensão do aparelho da Justiça imperial não visava equalizar os desníveis sociais — entre escravos e senhores, homens e mulheres, pobres e ricos — mas criar previsibilidade nas relações ao mesmo tempo em que interpunha o Estado como intermediário das relações sociais. Nem sempre os segmentos mais baixos viram seus desejos realizados, mas a Justiça constituiu-se numa nova dimensão de luta em que as discordâncias dos mais pobres puderam ser vocalizadas e paulatinamente construída a consciência de que se possui direitos24.

O infortúnio de Felicidade cabra Do processo que investiga o assassinato da escrava Felicidade cabra selecionamos o depoimento prestado por uma vizinha dos acusados Joaquim Luiz do Nascimento e sua mulher Margarida de tal. Antes de comentar esse excerto, algumas informações sobre o crime e os envolvidos podem esclarecer melhor a narrativa. Joaquim Luiz do Nascimento e sua esposa eram agregados do alferes Antônio de Miranda Magro, um imponente fazendeiro do distrito de São Francisco do Onça, na vila de São João del Rei. Joaquim plantava em terras cedidas pelo alferes Magro e, 21. Lei do Império de 29 de novembro de 1832, Art. 12, §2º . 22. Lei do Império de 16 de dezembro de 1830. Manda executar o Código Criminal. Artigos 209, 266 e 269. Captado em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm. Acesso em 01 de nov. de 2013. 23. VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem. 24. THOMPSON, Edward P. Senhores & caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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aparentemente, tinha boas relações com o mesmo. Felicidade cabra era escrava do alferes, tinha apenas 13 anos e foi mandada à casa de Joaquim para aprender a fiar com sua mulher. Novamente a fiação, uma ocupação feminina, aparece como atividade nos domicílios dos pequenos produtores. E dos grandes também, pois o alferes Antônio de Miranda Magro desejava que Felicidade aprendesse o ofício e, logicamente, trabalhasse para ele. Enquanto a escrava era treinada, Joaquim e sua mulher poderiam valer-se do seu trabalho, possivelmente para ajuda doméstica. No entanto, esse casal ou não carecia de traquejo para administrar disciplina a um escravo ou era um caso de sadismo. Em uma surra extrema acabaram matando a jovem escrava. Os acusados tentaram desincumbir-se da responsabilidade noticiando a morte ao senhor da escrava e justificando que ela estava doente. Mas as marcas de pancadas denunciavam um destino diferente e o exame de corpo de delito, bem como todos os depoimentos acusavam o espancamento de Felicidade cabra pelo casal Joaquim Luiz e Margarida de tal. O depoimento que selecionamos é de Jacinta Maria de Jesus, uma mulher parda e solteira que esteve em contato com a vítima pouco antes do seu passamento. Jacinta e sua irmã, ambas fiandeiras, foram chamadas a fiar em casa de Águida Maria de Jesus, uma vizinha “íntima de porta” dos réus. Além disso, Jacinta devia dinheiro a Joaquim Luiz procedente da compra de umas peneiras e, por isso, entrou na casa do mesmo e presenciou a agonia de Felicidade cabra. O breve relato de Jacinta Maria traz à cena um sentido comunitário que se engendrava em torno da atividade de fiação. É muito provável que ela e sua irmã se dirigissem à casa de Águida, outra mulher solteira que vivia do artesanato, para ajudar numa época de muito algodão para fiar, ou auxiliar na entrega de uma grande encomenda, certamente contando que quando precisasse poderia contar com semelhante auxílio. O registro desse tipo de trabalho extra-domiciliar e colaborativo não é frequente, embora acredite-se que ele fosse comum. Na obra pioneira de Maria Sylvia de Carvalho Franco os mutirões aparecem como momentos privilegiados de extravasamento de tensões. Os penosos trabalhos na construção ou colheita eram, muitas vezes, recompensados com álcool e à embriaguez seguia-se a violência25. No nosso caso, o depoimento de Jacinta Maria sugere a existência de relações de solidariedade que ultrapassavam os limites do domicílio e da família e ajudavam a sustentar a vida de mulheres solteiras no mundo rural oitocentista. O trivial pagamento das peneiras, por sua vez, aponta para o comércio e as relações de crédito no âmbito rural. Deve-se recordar que Joaquim Luiz era um agregado do alferes Antônio Magro, informação contida em outra parte do processo-crime. A 25. FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata, p.31-33.

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historiografia já apontou a complexidade do termo agregado e seu uso em diferentes situações, servindo para designar tanto moradores não aparentados ao chefe do domicílio que vivem sob sua tutela, quanto produtores que possuem seus próprios domicílios, mas dependem das terras de outrem26. No caso do réu Joaquim Luiz era complementado pelo artesanato em fibras, com a produção e venda de peneiras e a fiação desempenhada pela mulher de Joaquim. Outro aspecto importante sobre os depoimentos é que os depoentes tendem a ambientar no tempo e no espaço seu testemunho valendo-se das atividades que marcam a temporalidade e dos lugares que constituem o espaço. Assim, essas narrativas costumam reproduzir com muitos detalhes o cotidiano dos agentes do passado. Em poucas frases o depoimento de Jacinta Maria apresentou detalhes importantes sobre diferentes setores do artesanato mineiro do século XIX: a fiação, a atividade fora da agricultura que mais ocupava a força de trabalho feminina, era também desempenhada com o auxilio de mão de obra externa ao domicílio, sob a forma de mutirão; a produção de objetos de fibras (as peneiras) encontravam seu mercado consumidor localmente. Pormenores como esses geralmente não eram fundamentais para esclarecimento do crime, mas eram acessados como que para oferecer veracidade ao depoimento e, para nossa sorte, acabam por iluminar partes do cotidiano.

Considerações Finais Nas Minas Gerais da primeira metade do século XIX, quando predominavam as pequenas unidades produtivas, com poucos ou sem nenhum escravo, o cotidiano do trabalho era marcado pela diversificação das atividades, sendo a conjugação do agropastoreio ao artesanato a estratégia mais comum. As atividades de transformação complementavam os rendimentos do fogo e evitavam gastos. Se o pequeno comércio gerado pelo artesanato funcionava para expandir os ganhos do domicílio no mercado ou era apenas uma forma de buscar a autossuficiência é uma polêmica em aberto, que só será resolvida com vários estudos de caso que devem lançar mão de um rol variado de fontes. Os processos-crimes aqui em vista nos ajudaram a perceber alguns detalhes íntimos dessa economia. O trabalho nos domicílios mineiros ocupava todos os seus membros, sem deixar de fora as mulheres e as crianças. As mulheres desempenhavam papel fundamental no trabalho doméstico. Dentro das 26. SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura Canavieira, Trabalho Livre e Cotidiano. Itu, 1780-1830. São Paulo: Edusp, 2005, p.108; MOTTA, Márcia Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito de terra e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998, ver capítulo 02; BACELLAR, Carlos A. P. Agregados em casa, agregados na roça: uma discussão. In: Maria Beatriz Nizza da Silva. (Org.). Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil. Lisboa: Livros Horizonte, 2001, pp.187-199.

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casas, a gestação do sustento era obra feminina. Como ambos os excertos revelam, a fiação era uma atividade essencialmente feminina, praticada em várias unidades domésticas e capaz de gerar renda. Os processos-crimes são fontes importantes para desvendar a atuação pública das mulheres. Afastadas da política, consideradas dependentes do chefe do fogo, as mulheres teriam, na visão dominante, sua ação reservada ao âmbito doméstico27. Mas as muitas chefes de fogo solteiras, várias delas descendentes de escravas ou ex-escravas, desafiavam essas concepções. Muitas delas se valiam da fiação e do trabalho em tecidos para viver sobre si, fora da órbita da autoridade de um homem. Longe do poder de um esposo ou pai, as mulheres, no entanto, ficavam à mercê da violência de outros homens. No entanto, redes de solidariedade nos pequenos arraiais semi-rurais poderiam fornecer amparo e ajuda e o acesso à Justiça no século XIX franqueou outro campo de defesa aos grupos subordinados. Vale lembrar que a autoridade do chefe do fogo se estendia sobre todos os moradores do domicílio, assim livres como escravos. Uma das expressões desse domínio era a aplicação de castigos. No que se refere à situação dos escravos, os castigos físicos visavam punir um desvio e prevenir uma novo erro28. O espancamento de Felicidade cabra e sua consequente morte foi um sinal do exercício desmesurado de poder de um chefe de fogo que não era senhor de Felicidade, mas usava a força para garantir a disciplina da cativa. Casos como os trazidos pelas fontes em apreço destacam a centralidade do trabalho no universo das relações sociais nas Minas Oitocentistas. Os excertos aqui discutidos, no entanto, demonstram que a reprodução da existência não estava “descolada” das demais dimensões da vida. Pelo contrário, os processos-crimes mostram os laços sutis entre diferentes campos do fazer. Sua leitura cuidadosa é uma janela para o cotidiano mineiro do passado.

27. Como na França do século XVIII, as mulheres tomavam parte da vida econômica das cidades, embora estivessem afastadas dos conselhos ou assembleias. DAVIS, Natalie Zenon. Cultura dos povos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 67-68. 28. LARA, Silvia H. Campos da violência, p.96.

Documento Trechos do processo-crime de Joaquim Luís do Nascimento e Antônio de Miranda Magro. Disponível no Arquivo do Escritório Técnico II, Iphan, 13ª Superintendência, São João del Rei. PC 28-05, 1835

Data 6 de maio de 1835

Resumo A testemunha Jacinta Maria de Jesus relata que a escrava Felicidade estava havia pouco tempo na casa de Joaquim Luís do Nascimento e sua mulher para aprender a fiar. Aos 6 de abril de 1835, Jacinta ouvira gemidos vindos de dentro da casa de Joaquim Luís do Nascimento, e ao procurar saber o que ocorrera os donos da casa alegaram que a jovem Felicidade estava doente. No dia seguinte, constatou-se que a escravinha estava com muitos ferimentos, provavelmente por ter sido espancada, e veio a falecer.

1 Aos seis dias do més de Maio de mil 2 Oitocentos e trinta e Cinco, neste Curato de Saõ 3 Francisco da Onça Termo da Villa de São João d4 El Rey, em Cazas de Rezidencia de Joaquim Alves 5 Moreira, honde foi vindo o Forriel Jozé Ferrei 6 ra Baptista, Iuis de Pás, Suplente deste mesmo Cu7 rato e Commigo Escrivão do Seu Cargo Vim para 8 efeito de serem Inquiridas as ttestemunhas que 9 por parte da Devaça foraô notificadas na pre10 zente devaça dos quais Seus ditos digo nomes, e 11 pronomes, idade naturalidades, estados, mo12 radias Viveres, ditos e Custumes hé o que adi13 ante SeSegue de que para Constar faço este 14 Termo de ASentada e eu Joze Moreira da 15 Costa Escrivão que oesCrevi.



16 Jaçinta Maria de Jezus, Parda Solteira natu17 ral e moradora deste mesmo Curato que Vive 18 de fiar de idade que diçe ter quarenta e tanto 19 Annos ttestemunha Jurada aos Santos eVan20 gelhos na forma da Leẏ; e prometeo dizer a Ver21 dade do que Soubeçe e perguntado lhe foçe = 22 e dos Custumes nada diçe = Diçe ella ttestemu23 nha que no dia Seis de Abril do Corrente 24 Anno, indo com a sua Jrmam Anna Maria 25 da Silva a Caza de Aguida Maria de Jezus, 26 a chamado da mesma para fiarem; e Como mo27 ra esta Aguida, Vizinha intima de porta com 28 Joaquim Luis do Naçimento, e Como esta ttes29 temunha e Sua Jrmam já Referida tiveçe 30 de dar hum dinheiro ao Sobredito Joaquim

[...] [fl. 8v]

[fl. 9] 1Joaquim Luis do Naçimento, de humas Penei2 ras que lhe tinha Comprado e por esse motivo 3 chegaçem primeiro a Caza de Joaquim Luis 4 do Naçimento e emtrando para dentro da Caza 5 houviraõ hum piqueno gemido e perguntan6 do estas a dona da Caza quem estava gemendo 7 esta lhes respondeo que hera a Feliçidade que 8 esta doente = pois o que hé que ella tem? 9 perguntou a ttestemunha = Respondeo a dona 10 da caza = hé dór de hovidos = e emtrando ella 11 ttestemunha Com sua Jrmam Anna já refe12 rida para o quarto ahonde estava gemendo 13 a Feliçidade, e lhe perguntou = que tens Felici14 dade? mal lhepode respondér em baxa e qua15 ze imperçetivel Vós tenho passado muito mál 16 neste mesmo momento foi fazendo o primei17 ro Termo de Morte esta ttestemunha lheme18 teo a Vella na maô e fês o segundo Termo e es19 pirou esta ttestemunha e sua Jrmam já 20 Referida fizeraô quarto essa noite ao Corpo 21 e de madrugada hindo o mesmo Joaquim Lu22 is do Naçimento, dár parte da morte desta Fe23 liçidade, a Seu Senhor o Sobredito Alferes 24 Miranda: E logo que amanheçeo lhe vio a testa 25 fontes muito pizadas e lançando huma agoa26 dilha de sangue pela boca: e como estas quan27 do chegaraô a essa caza naô achaçem mais pes28 soa alguma senaô os mesmos donos da caza Joa29 quim Luis do Naçimento, e sua molher Mar30 garida de tal, e estes naô deçem sofiçiente Ra31 zaô a prova de taô funesto cazo aContiçido jul

[fl. 9v] 1 Julgaraõ sertamente ter sido feito pellos donos 2 da Caza já referidos: deClaram mais que sabia que 3 esta faleçida Feliçidade hera inda de menor ida4 de e que naô tinha ainda de Rezidencia hum 5 més em caza deste Joaquim Luis do Naçimen 6 to a pretexto de hir aprender Com sua molher 7 Margarida de tal, a Teçer Linho esta manda8 da pello Seu Senhor e elles aConduziraõ: e depo 9 is de ter amanheçido o dia deixou sua Jrmam 10 aSistindo o corpo e foi para a caza de Agui11 da Maria de Jezus, de donde Vio e conheçeo 12 Chegarem Cinco Escravos e huma Escrava cri13 oula Esmeria todas Escravos do Sobredito 14 Alferes Miranda, e aSim mais o Preto Jo15 aô Liberto Marido da dita Esmeria, para 16 mortalharem e Conduzirem o Corpo para a 17 Capella. E perguntando o Juis a ttestemunha 18 Se Sabia Se o delincoente Joaquim Luis do 19 Naçimento, estava prezo, afiançado, ou Rezi20 dindo neste Curato e Suas Circunvizinhanças 21 diçe que naô e que só sabia que setinha 22 auzentado: e mais naô diçe por ter dito tudo quan23 to sabia e sendo-lhe Lido o seu Juramento pel24 lo oachar Comforme ao que tinha Jurado 25 e por naô saber escrever pedio a Forriel Joze 26 Ferreira Baptista, que por ella SeaSignaçe [E] 27 eu Joze Moreira da Costa o escrevi. Baptista 28 A rogo de Jacinta Maria de Jezus Joze Ferreira Baptista

Documento Trechos do processo-crime de José Antônio Marcelhas e Ana Joaquina de Faria. Disponível no Arquivo do Escritório Técnico II, Iphan, 13ª Superintendência, São João del Rei. PC 04-09, 1843.

Data 1843

Resumo Queixa de Ana Joaquina de Faria sobre a destruição de roupas, móveis, pertences e outros bens de sua casa, no distrito do Bichinho, por José Antônio Marcelhas. Segundo a queixante, o dito destruiu seus bens após ter negada a sua tentativa de consumar atos libidinosos com ela.

[fl. 1]

1 1843 2 Anna Joaquina de Faria

Queixadora

3Joze Antonio Marcelha

Queixado



4 Queixa Crime

5 Escrivam 6 Pinto Junior

7 Anno do Nassimento de Nosso Se 8 nhor Jezus Christo de mil oitocen9 tos e quarenta e tres vigesimo se 10 gundo da Jndependencia do Jm11 perio do Brazil nesta Villa de Saõ 12 Joze Minas e Comarca do Rio das 13 Mortes aos dez dias do mez de Janei14 ro do dito anno em o Escriptorio 15 de mim Escrivam a diente no 16 meado e sendo ahy por Anna Jo 17 aquina de Faria me foi dada 18 humas sua Petiçam de Quei 19 xa contra Joze Antonio Mar20 celhas ambos moradores no Be 21 xinho deste Destrito e Termo, 22 desparada pelo Cidadam Bra23 zileiro o Alferes Joze Moreira 24 Coelho, o Delegado de Policia des 25 desta dita Villa e seu Termo, 26 pedindo me que eu Escrivaõ 27 aceitasse e authoasse para ter 28 os seus devidos termos e inteiro 29 comprimento; cuja Petiçam 30 aceitei, e faço o prezente ter 31 mo de Authoalam, e vai a di 32 ta Petiçam a diante juntar

[fl. 2] 1 Illustríssimo Senhor Dellagado

2 Diz Anna Joaquina de Faria moradora nos so4 burbios do Arraial do Bixinho do Districto desta Villa 5 de Saõ Joze, que sendo sollicitada por Jose Antonio Mar6 selhas, homem pardo cazado morador no mesmo Arraial, no 7 dia 23 de Dezembro de 1842, para consummaçaõ de actos li8 bidinozos, e naõ sendo admittido, foi elle no dia 28 do dito 9 mez e anno, com hum homem preto desconhecido armado de 10 pistolla a caza da Supplicante, e não na achando por ella haver 11 se ocultado delle, ficou desperado, e passou a dar hũa rigoro12 za busca por toda a caza, e athe por debaixo das camas, e 13 por caixas com huma vella aceza, por ser noite, sem at14 tençaõ a sua pobre Mâi velha e doente, e a outra mulher que 15 com ella seachava, comessou a revistar e a rasgar a sua roupa, 16 dizendo que assim faria a Supplicante se a encontrasse, e assim lhe 17 distruio, e carregou roupas e trastes como fossem vestidos, col18 xas, lenços, meadas de fio, espelho, ourinol, gamellas, chicolatei19 ra, enchada, machado, galinhas, e tudo quanto achou e pode a 20 panhar; naõ parando ainda aqui a sua maldade, e desespe21 raçaõ, espalhou veneno misturado com fubá em roda da ca22 za para lhe matar a mais creaçaõ, rossou-lhe as plantas do 23 quintal, derribou-lhe os muros com alabanca, espalhou mi24 lho para engodar, e chamar os porcos a acabar de o destruir. 25 E como similhante procedimento seja manifestamente con26 trario as terminantes e expressas despozições dos Artigos 257, e 27 266 do Codigo criminal, que o tornaõ crime de furto, e damno 28 pela Tirada e distruiçaõ da coiza alheia; vem a Supplicante delle 29 sequeixar a fim de ser punido o Supplicado para sua imenda 30 e exemplo de outros, e satisfaçaõ da Supplicante e da Justiça offen31 dida. Portanto requer a Vossa Senhoria se digne aceitar esta queixa

[fl. 2v]

1 Queixa, e sobre ella formar Auto de corpo de Dilito di2 reto no derribamento dos muros, rasgamento da roupa, no 3 mais que existir vistigios, perguntando testemunhas pelo dilicto 4 e pelo dilinguente quanto ao mais que naõ deixou signal, 5 sendo para este acto conduzido debaixo de vara o Supplicado 6 e procedendo-se em todos os mais the a pronuncia em confor7 midade das Leis, defferindo-se desde ja o juramento a8 Supplicante que protesta hir buscar ao respetivo Tribunal a 9 punição do Supplicado, e passando-se Mando para a condução do 10 Supplicado, e chamamento das testemunhas.

11 Pede a Vossa Senhoria seja servido 12 de assim o mandar

13 Espera Real Justiça



14 Nomeia por testemunhas

15 Antonio Ferreira Marques pardo cazado. 16 Joaõ de Souza Coimbra branco cazado. 17 Joaquim Joze de Miranda pardo cazado. 18 Anna Maria Faria Fernandez parda solteira, moradores todos 19 no mesmo lugar do Bixinho, Distrito desta Villa

20 Asino 1 a rogo da sobredita Anna Joaquina de 21 Faria, Francisco de Souza Gaӱa. Autuada. 1. Mudança de mão.

Gusthavo Lemos Doutorando em História pela UFMG

Fragmentos da paisagem rural brasileira: os Registros Paroquiais de Terra

Tão logo declarada a Independência, José Bonifácio revogou o instituto de sesmaria, que há muito não vinha sendo cumprido conforme prescrevia a lei. Sua ideia era levar o tema à Assembleia, para que se arranjasse um novo sistema de regulamentação do acesso à terra. No entanto, o processo fora arquivado indeterminadamente e, assim, de 1822 a 1850, o Brasil ficou sem nenhum aparato que garantisse a posse e a ocupação legal de terras. Em 1850, após quase uma década de discussões e disputas parlamentares, entra em vigor, no Brasil, a Lei de Terras. Levada a cabo por motivações externas à questão agrária, a Lei de Terras pode ser entendida como o produto final malogrado de um projeto modernizador que a ala conservadora da política nacional queria implantar. A primeira versão de tal projeto, apresentada à Câmara dos Deputados em 1842, contava com medidas “radicais” como a introdução de um imposto territorial, a venda de terras devolutas — tornadas propriedade estatal — somente mediante pagamento em dinheiro à vista, e a proibição das datas de sesmarias e posses. Tais medidas propostas pelo gabinete conservador, cujos membros e simpatizantes estavam concentrados na província do Rio de Janeiro, representam menos um esforço direto para a construção e a centralização do Estado Nacional do que uma preocupação imediata com a reorganização do panorama agrário das velhas zonas agrícolas, que enfrentavam sérios problemas de produtividade e falta de mão de

Fragmentos da paisagem rural brasileira: os Registros Paroquiais de Terra

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obra1. Baseado no modelo de Wakefield para a colonização da Austrália, o mote do projeto seria a mercantilização das terras devolutas para, a uma só vez, gerar divisas para o subsídio estatal da imigração europeia e cercear o acesso à terra a esses mesmos migrantes e, claro, ao corpo de trabalhadores nacionais que mais cedo ou mais tarde seriam abolidos do regime de escravidão sob o qual viviam. Transformado em lei, o projeto sofreu muitas alterações, as quais apontavam para uma suavização das medidas propostas. Essas alterações foram propulsionadas pelos membros liberais representantes da política/economia de Minas Gerais e São Paulo, que viram no projeto uma espécie de socialização, entre a classe senhorial, dos custos da imigração (cujos benefícios se restringiriam, num primeiro momento, apenas às áreas cafeeiras fluminenses). Enfim, a Lei de Terras, por um lado, deixou de contar com um imposto territorial e com medidas de expropriação e, por outro, incorporou medidas benéficas à classe senhorial, como a legitimação de grandes possessões e a venda de lotes a preços mínimos. No entanto, a premissa da lei — a separação entre terras públicas e privadas — fora mantida. Assim, embora não fosse suficiente para conter os apossamentos ilegais e os demais abusos, a Lei de Terras se tornou um aporte legal para a resolução de conflitos agrários relativos ao direito de posse e uso da terra2. Com isso, todos os proprietários de terra no Brasil deveriam procurar os órgãos competentes e registrar suas propriedades, provando sua posse mansa e pacífica. Porém, enquanto os imigrantes europeus desembarcavam nos portos brasileiros e se instalavam nas áreas que demandavam sua força de trabalho, muito pouco se avançou na tarefa de regularização das posses rurais. O Estado então resolveu agir, dando início, no ano de 1854, a um cadastramento nacional das terras. Desburocratizado e sem recursos para estender seu braço pelos rincões dos quatro cantos do país, o Estado repassa o trabalho de cadastramento para o corpo da Igreja Católica, que já tinha agentes assentados por toda a parte. Nasce assim o Registro Paroquial de Terras3.

1. Para uma discussão mais aprofundada da relação entre a questão agrária e a construção do Estado Nacional, ver: COSTA, Wilma Peres. A Economia Mercantil Escravista Nacional e o Processo de Construção do Estado no Brasil (1808-1850). In: SZMRECSÁNYI, Tamás; LAPA, José R. do Amaral. (orgs.). História Econômica da Independência e do Império. São Paulo: Edusp/HUCITEC/ Imprensa Oficial de São Paulo, 2002. 2. Ver, por exemplo, MOTTA, M. M. M. Nas fronteiras do poder. Conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura/Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998. 3. A discussão deste primeiro tópico está amplamente baseada em: CARVALHO, José Murilo. A política de Terras: o veto dos Barões. In: Teatro de Sombras: a política Imperial. Rio de Janeiro: Iuperj, 1998. p. 84-106.

Fragmentos da paisagem rural brasileira: os Registros Paroquiais de Terra

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O Registro Paroquial de Terras como fonte histórica O RPT é uma fonte de inegável relevância, antes de tudo porque se impõe como o único cadastramento nacional de terras do Brasil até a década de 19704. Para cada localidade (podendo ser vila, cidade, ou mesmo um distrito), o RPT apresenta registros individuais de cada proprietário que se mobilizou para regulamentar suas terras. Idealmente, cada registro deveria apresentar: 1) nome do proprietário; 2) tipo da propriedade (exemplo: “terras de cultura”, “porção de terras”, “fazenda”); 3) nome da propriedade; 4) nome da região na qual se situa; 5) extensão da propriedade; 6) formas de aquisição da propriedade; 7) descrição das divisas e dos nomes dos vizinhos. Como a maioria dos documentos públicos, o RPT segue, assim, uma fórmula padrão, que prima pela brevidade e funcionalidade do registro. Do ponto de vista da leitura paleográfica, temos aqui um ponto positivo, pois se torna possível “mecanizar” a leitura e transcrição do documento, seguindo a fórmula acima apresentada. Por outro lado, a fonte apresenta diversos complicadores, a começar pelo fato de ela ter sido elaborada por um corpo de agentes que não fora treinado metodicamente para essa tarefa. Como resultado, há uma enorme variação na precisão das informações e na organização da composição de cada registro, variação essa que se dá de acordo com o julgamento dos párocos de cada localidade e em razão do tipo de taxação a que era submetido o registrante. Isso reflete negativamente na pesquisa histórica — seja em investigações de caráter micro, que buscam o levantamento de dados qualitativos, seja em investigações mais abrangentes, que buscam na documentação informações passíveis de seriação. Ainda assim, o RPT lança luz sobre determinados fragmentos do passado rural brasileiro que são raramente detectados em outras fontes. Voltemos aos diferentes campos componentes do registro acima apresentados para traçar alguns caminhos de pesquisa histórica. Como seria tarefa muito dispendiosa explorar cada um dos campos minuciosamente, focarei em alguns deles e discutirei as aberturas e as limitações que apresentam. Em primeiro lugar, o fato de o registro ser nominal permite, por exemplo, o rastreamento de determinada família e, a partir do cruzamento de fontes, o seu acompanhamento intergeracional. Esse é um procedimento interessante para pesquisas de história da família cujos problemas giram em torno da formação/transmissão/ manutenção da riqueza. É interessante notar também que este primeiro campo do 4. LINHARES, M.Y.L; TEIXEIRA, F.C. História da Agricultura Brasileira: Combates e Controvérsias. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981. p.93.

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registro pode apresentar mais de um nome, denotando sociedades na posse de unidades agrícolas. Essas sociedades podem ser firmadas entre parceiros de trabalho, vizinhos e parentes. Nesse último caso, trata-se, em boa parte dos casos, de sociedades “forçadas”, em que a posse comum entre parentes está ligada a processos de transmissão patrimonial. O segundo campo — tipos de propriedade — é um terreno fecundo para o exame da paisagem rural. Através dele, o estudioso pode vislumbrar o mosaico fundiário que se formava em determinada localidade ou comparar as estruturas de diferentes áreas. Ver-se-á registros de fazendas — denotando unidades produtivas aparelhadas e geralmente com extensas faixas de terra cultivada —, de sítios e chácaras, de “porções” ou “sortes” de terras e de partes de terra de cultura — novamente apontando posse em sociedade com parentes ou parceiros agrícolas. O pesquisador que por aqui se enveredar também há de encontrar problemas. O mais evidente deles seria o significado de cada categoria descrita pelo pároco. O próximo problema seria a possível variação dessa classificação de acordo com cada pároco. Para saná-los, o próprio RPT dá pistas. Se cruzarmos as informações deste campo com as do quinto — extensão das propriedades —, o pesquisador pode formar um entendimento da relação entre o tipo de classificação e o tamanho da propriedade. Além disso, seria necessário recorrer a outras fontes, como dicionários históricos, para que se tenha uma visão mais global de cada termo. Em que pesem os problemas de representatividade, o quinto campo é de extrema valia para se entender a distribuição da terra no Brasil imperial. Em minha pesquisa de mestrado, tomei como foco algumas famílias tradicionalmente envolvidas com a produção da aguardente e procurei entender a sua ação sobre a organização do mundo rural de Guarapiranga, freguesia fronteiriça ao núcleo minerador de Mariana e Ouro Preto. Em capítulo dedicado ao entendimento da estrutura fundiária local, fiz um levantamento global da extensão das propriedades cadastradas no RPT. O resultado está expresso no gráfico a seguir.

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Distribuição da propriedade fundiária — Vila da Piranga Registro Paroquial de Terras de Piranga 1855-56 (alqueires)

Fonte: APM, Registro Paroquial de Terras de Piranga— 1855-56.

Temos aqui um exemplo gritante de desigualdade de distribuição da posse territorial. Na Vila de Piranga, “apenas 3,22% de todos os indivíduos que cadastraram suas terras detinham praticamente 50% das terras ocupadas. Em termos concretos, isso significa que apenas seis famílias estavam no controle da maior parte da área cultivável disponível”5. O sexto campo, referente às formas de acesso à propriedade cadastrada, talvez seja o mais profícuo ou, ao menos, o mais enfocado pela historiografia. Desde as pesquisas pioneiras de Hebe Mattos, o RPT passou a ser visto como um indicador do funcionamento do mercado de terras. Na condição de provar a legalidade de seu título de posse, o declarante deveria informar a forma pela qual se fez “senhor e possuidor” da propriedade declarada e, assim, sem saber, deixou um testemunho muito importante da dinâmica das transações patrimoniais. Em muitas localidades, como Guarapiranga, já era possível vislumbrar o funcionamento de um mercado de terras. Confiramos o gráfico que se segue:

5. LEMOS, Gusthavo. Aguardenteiros do Piranga: família, produção da riqueza e dinâmica do espaço em zona de fronteira agrícola. Minas Gerais, 1800-1856. Dissertação (Mestrado em História) — Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em História, Belo Horizonte, 2012. p. 148.

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Regime de aquisição de terras na freguesia de Piranga - Registro Paroquial de Terras, 1855-6

Fonte: Baseado em MENDES, Fábio Faria. Agrarian Change and Inheritance in Nineteenth Century Minas Gerais: a view from the 1855 Land Parish Registers. Guelph (CA.): Workingpaper, Rural History Workshop, 2010.

Muito se pode discutir a partir da análise do gráfico acima. Para não entrar em detalhes mais específicos da pesquisa, restrinjamo-nos a apontar a variedade das formas de acesso à terra e o papel predominante da herança e da compra. Tudo isso mostra um quadro fundiário complexo, permeado por interesses econômicos, pelo forte papel da família na cadência do mundo rural, por formas de solidariedade e por tensões inerentes à estrutura fundiária. Cabe lembrar, por fim, que o RPT, a despeito de sua importância, é uma fonte ainda pouco explorada. Apenas recentemente passou por um exame metodológico geral referente à província de Minas Gerais6, o que dá mais segurança ao pesquisador que quer se enveredar nos caminhos da história agrária ou agrícola. Há ainda alguns estudos monográficos cuja fonte-base foram os RPT. Muitos desses estudos estão vinculados à linha de pesquisa inaugurada por Maria Yeda Linhares, que tem como representante, hoje, a historiadora Marcia Menendes Motta. Essa linha de pesquisa foca muito mais em questões agrárias do que em problemas relacionados 6. LOUREIRO, Pedro; GODOY, Marcelo. Os registros paroquiais de terras na história e na historiografia — estudo da apropriação fundiária na província de minas gerais segundo uma outra metodologia para o tratamento do primeiro cadastro geral de terras do Brasil. História econômica & história de empresas. XIII.1 (2010), pp.95-132.

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à história agrícola, não apenas aqueles de ordem econômica, mas também os de ordem social e cultural. Portanto, essa última vertente dos estudos rurais carece de mais empenho por parte da historiografia brasileira. Os Registros Paroquiais de Terra, por sua riqueza e abrangência (para Minas Gerais, por exemplo, são cobertas 238 localidades7), são uma janela para o passado rural brasileiro e convidam jovens pesquisadores a se empenharem em analisá-los. Resta dizer que a este autor soa estranho o quase silêncio da historiografia nacional em relação ao passado rural, justamente em um país que gestou muitas de suas bases sociais, econômicas, políticas e culturais no campo, onde o latifúndio e os latifundiários ainda são símbolo e donos do poder, onde comunidades são dizimadas pela ganância por terras cultiváveis, onde recursos naturais preciosos são substituídos, sem resistência, por monoculturas.

7. Os RPT da Província de Minas Gerais estão integralmente disponíveis online no site do Arquivo Público Mineiro. http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/fundos_colecoes/brtacervo. php?cid=26.

Documento Trechos do Livro de Registros Paroquiais de Terra. Disponível no Arquivo Público Mineiro, Registros Paroquiais de Terra, 1854-1861. TP-1-160.Piranga, Nossa Senhora da Conceição do (Vila de), Distrito de Calambau. 1856.

Data 1856

Resumo Trechos do Livro Paroquial de Registros de Terras. Os registros contêm o nome do proprietário, os limites e o tamanho — a partir da unidade “plantas de milho” — da propriedade, passadas em duplicata devido ao artigo 93 do regulamento de 30 de janeiro de 1854. As folhas foram numeradas e rubricadas pelo Vigário Francisco de Paula Homem. Documento digitalizado a partir do microfilme. Encontramos o termo de abertura na folha de guarda. A caligrafia é tendencialmente humanística, com pouca ou nenhuma presença de enlaces e ligaduras e existem pouquíssimas abreviaturas.



1 Livro 2º

2 Hade este livro servir para nelle faser-se os registros 3 das terras possuidas nesta Freguezia, o qual 4 vai numerado, e rubricado por mim com estas 5 letras P.H., que querem diser Paula Homem. E 6 no termo de encerramento, que vai no fim con7 terá o número de folhas. Piranga 1º de Abril 8 de 1856 9 O Vigário Francisco de Paula Homem

[fl.1] 1 Número 308

2 Digo eu Manoel Gomes Chaves, que sou Senhor, e 3 possuidor de huma Fazenda de terras de cultu= 4 ra situada nas Margens do Rio Ch[o]potó no Dis= 5 tricto de Calambaú Freguezia, e Municicio da 6 Villa do Piranga: as quaes possuo por herança 7 de meus Paes, Joaquim Gomes Chaves, e Rhaquel 8 Maria de Jesus: e partem ou dev[i]zaõ com terras 9 de Antonio Alv[e]s [?] Pereira, e Antonio José 10 da Silva: servindo de limites o rio Chopotão calcu = 11 landose levar de planta de milho doze alqueres po 12 co mais, ou menos, e por verdade ser mandei pas13 sar o presente em duplicata em virtude do artigo 14 noventa, e tres do regulamento de trinta de 15 Janeiro de mil oittocentos, e cincoenta, e quatro: 16 e por eu não saber ler, e nem escrever pedi a 17 Humbelino José de Magalhães, que este por 18 mim fesesse, e assignasse. Calambaú deza= 19 sette de Abril de mil oitocentos, e cincoenta= 20 enta [sic], e seis. Humbelino José de Magalhaes 21 He o que continha o dito exemplar, e outro 22 que fica archivado, ao qual me reporto, e[u] 23 Mathias Homem da Costa, Escrivão dos 24 registros, que o escrevi. Vila do Piranga 22 25 de Abril de 1856 //. O Vigário Paula Homem

26 Número 309

< Distrito do Calambaú >

27 Digo eu Antonio Alves Pereira, que sou Senhor e 28 e possuidor de huma Fazenda e terras de cultura 29 situada nas margens do Rio Chopotó no Dis= 30 tricto do Calambaú, Freguezia, e Municipio 31 de Vila do Piranga: as quais possuo por com= 32 pra aos herdeiros do fallecido Antonio Al= 33 ves Pereira: e partem, ou devizaõ com Dona 34 Maria Joaquina da Silva, e com Lino Coelho 35 Duarte, e Antonio José da Silva; e servindo 36 o rio Chopotó: e calculando-se levar de planta 37 de milho cento, vinte alqueires, pouco mais, ou 38 menos, e por verdade mandei passar o presente

[fl. 1v]

1 em duplicata por Humbelino José de Maga= 2 lhaeñs, no qual só me assigno em verdade do 3 artigo noventa, e tres do regulamento de trinta 4 de Janeiro de mil oitocentos e cincoenta, e quatro 5 que vai por mim somente assignado. Calan= 6 baú dezessette de Abril de mil oitocentos, e cinco= 7 enta, e seis. Antônio Alves Pereira. Hé o que 8 continha o dito exemplar, e outro que fica ar= 9 chivado, ao qual me riporto, e eu Mathias Ho= 10 mem da Costa, Escrivaõ dos registros que o 11 escrevi. Piranga 22 de Abril de 1856.//

12 O Vigário Paula Homem 13 Número 310

< Distrito da Villa >

< Distrito da Oliveira >

14 Digo eu Antonio Martins Peres, que sou Senhor, e 15 possuidor com pleno dominio de hum sitio de terras 16 de cultura no Disctrito de Mestre de Campos da 17 Freguezia da Villa do Piranga denominado tres 18 cruzes: diviza por hum lado com Domingos da 19 Costa, e Anna da Costa, e Paracatú, e Maria 20 Clara; calcula levar seis alqueires mais, ou me= 21 nos; e por verdade passo o prezente em duplica= 22 ta em virtude do artigo noventa, e tres do regu= 23 lamento de trinta de Janeiro de mil oitocentos24 e cincoenta, e quatro: que vaõ a meo pedido 25 assignados o meu o nome por Jozé Bernar= 26 des de Souza. Mestre de Campos dezesseis de 27 Abril de mil oitocentos, e cincoenta, e seis. As28 signo, a pedido de Antonio Martins Peres, Jo29 zé Bernardes de Souza. He o que continha 30 o dito exemplar, e outro que fica archivado, ao 31 qual me reporto, e eu Mathias Homem 32 da Costa. Escrivão dos registro, que o escrevi 33 Villa do Piranga 22 de Abril de 1856.//

34 O Vigário Paula Homem 35 Número 311 36 Eu L[ino] Martins Teixeira possuo neste Distri 37 to da Oliveira Freguezia do Piranga dezeseis

Documento Trechos do Livro de Registros Paroquiais de Terra. Disponível no Arquivo Público Mineiro, Registros Paroquiais de Terra, 1854-1861. TP-1-159. Piranga, Nossa Senhora da Conceição do (Vila de). 1855-1856.

Data 1855-1856

Resumo Trechos do Livro Paroquial de Registros de Terras. Os registros contêm o nome do proprietário, os limites e o tamanho — a partir da unidade “plantas de milho” - da propriedade, passadas em duplicata devido ao artigo 93 do regulamento de 30 de janeiro de 1854. As folhas foram numeradas e rubricadas pelo Vigário Francisco de Paula Homem. Documento digitalizado a partir do microfilme. A caligrafia é tendencialmente humanística, com pouco ou nenhuma presença de enlaces e ligaduras e existem pouquíssimas abreviaturas.

[fl. 1] 1 Número 1º

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2 Digo eu Antonio Anacleto Varella que sou Senhor, e possuidor 3 com pleno dominio de Úmas terras de cultura, no lugar denominado= 4 Corrigo do Catanho no Districto da Villa da Piranga, cujas terras 5 que levaráõ de planta de milho dezaceis alqueires pouco mais, ou me= 6 nos, comprei a Felippe Pereira da Silva, e divisaõ por hum lado 7 com terras de Jozé Pereira de Barcellos, por outro com terras 8 do finado Jozé Caetano, e por outro com terras de Manoel 9 Camêllo, e com quem mais haja, e devo partir, e divisar e por ver= 10 dade mandei passar a presente em duplicata em virtude do Ar= 11 tigo noventa e trez do Regulamento de trinta de Janeiro de mil 12 oitocentos, e cincoenta, e quatro; que vaõ por mim taõ somente assig= 13 nados tendo sido escriptos á meu pedido por Manoel da Rocha 14 Soares Machado. Piranga vinte, e dous de Abril de mil oito= 15 centos, e cincoenta, e cinco. Antonio Anacleto Varella. 16 He o que continha o dito exemplar, e outro que fica archivado, ao 17 qual me reporto e eu Mathias Homem da Costa escrivaõ 18 dos Registros, que escrevi. Piranga 22 de Abril de 1855.

19 O Vigário Francisco de Paula Homem

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20 Número 2º 21 Digo eu Antonio Anacleto Varella, que sendo Senhor, e possuidor 22 com pleno domínio de huma Chacara, que levará oito alqueires 23 de planta de milho pouco mais, ou menos, sita no lu= 24 gar denominado = Bom Jardim, — a qual comprei á Dona 25 Ritta Ferreira Campos, e divisa por ũm lado com Fran= 26 cisco Ferreira Monteiro, por outro com o Alferes Antonio 27 Homem da Costa, por outro com Dona Francisca de 28 Paula Carneira, e com quem mais haja, e deva devizar, e por 29 ser verdade mandei passar a prezente em duplicata em 30 virtude do Artigo noventa e trez do Regulamento de trinta 31 de Janeiro de mil oitocentos, e cincoenta, e quatro, que vaõ 32 por mim taõ somente assignados, tendo sido escriptos á meu 33 pedido por Manoel da Rocha Soares Machado. Piranga 34 vinte, e dous de Abril de mil oitocentos, e cincoenta, e cinco. 35 Antonio Anacleto Varella. He o que continha o dito exem= 36 plar, e outro que fica archivado, ao qual me reporto, e eu=

[fl. 1v ] 1 Mathias Homem da Costa escrivaõ dos Registros que o es= 2 crivi Piranga 22 de Abril de 1855. 3 O Vigário Francisco de Paula Homem 4 Número 3º 5 Digo eu Antonio Anacleto Varella que sou Senhor, e possuidor com 6 pleno domínio de huma porçaõ de terras de culturas, que levará seten= 7 ta alqueires de planta de milho, no lugar denominado Perapitinga, 8 cujas terras comprei á Antonio Vieira, e divisaõ por um lado com 9 terras do mesmo vendedor, por outro, com as de Jacintho José 10 de Vargas, por outro com as de Antonio Diaz dos Anjos, José 11 Silvano, e Dona Thereza Altina Sandes de Barros, e com quem 12 mais haja de divizar, e por verdade mandei passar o prezente 13 em duplicata em vertude do Artigo noventa, e trez do Regu= 14 lamento de Trinta de Janeiro de mil oitocentos, e cincoenta, 15 e quatro, que vão por mim somente assignados, tendo sido escrip= 16 tas á eu pedido por Manuel da Rocha Soares Machado. 17 Piranga vinte dous de Abril de mil oitocentos, e cincoenta, 18 e cinco. Antonio Anacleto Varella. He o que conti= 19 nha o dito exemplar, e outro que fica archivado, ao qual 20 me reporto, e eu Mathias Homem da Costa escrivaõ dos 21 Registros, que o escrevi. Piranga 22 de Abril de 1855.

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22 O Vigário Francisco de Paula Homem 23 Número 4º 24 Digo eu, o Padre Manoel Francisco do Carmo, que sou Senhor, 25 e possuidor com pleno domínio de huma Fazenda de terras de 26 cultura, situada no Arraial da Oliveira, Municipio da 27 Villa da Piranga, que as possuo por compra que fiz aos 28 herdeiros do finado Joaõ Soares Ferreira, e divizaõ com Anto= 29 nio Francisco de Paiva, com Claudio José de Miranda, e com 30 a Viuva do finado Manoel Coelho de Magalhaêns, e com 31 quem mais haja, e deva partir, e confrontar, calculando-se 32 levar cincoenta alqueires de planta de milho pouco mais, ou 33 menos, e por verdade passei este em duplicata, em virtude 34 do Artigo noventa e trez do Regulamento de trinta de Janei= 35 ro de mil oitocentos, e cincoenta e quatro, que vai por mim só feito, 36 e assignado. Piranga quatro de Maio de mil oitocentos, e cin= 37 coenta, e cinco. O Padre Manoel Francisco do Carmo. 38 Hé o que — continha — o dito exemplar, e outro que fica archiva 39 do, ao qual me reporto, e eu Mathias Homem da Costa 40 Escrivaõ dos Registros, que o escrevi: Piranga 4 de Maio de 1855

41 O Vigário Francisco de Paula Homem

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Cássio Bruno de Araujo Rocha Mestre em História pela UFMG

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Quando o visitador do Santo Ofício Heitor Furtado de Mendonça aportou, adoentado, na cidade do Salvador da Bahia a 9 de julho de 15912, o padre Frutuoso Álvares era um homem já velho, contando 65 anos e com barbas brancas3. Portando 1. Neste texto, será problematizada a questão da sodomia em relação às hierarquias eróticas e de gênero vigentes na América portuguesa entre os séculos XVI e XVII. Todavia, como se verá ao longo do artigo, a sodomia era um conceito marcado mais pelo seu caráter movediço e incerto que por uma definição clara. Poderia significar tanto o homoerotismo entre homens e entre mulheres, quanto a prática de sexo anal entre homem e mulher. Pensando a relação entre masculinidade e homoerotismo no contexto e sobre o par conceitual sodomita/homossexual, o texto se centra, por meio do processo instaurado contra o padre Frutuoso Álvares, vigário de Matoim, na sodomia perfeita. 2. Segundo Rodolpho Garcia, em sua introdução à edição impressa das Denunciações de Pernambuco na Primeira Visitação, recapitulando as informações oferecidas por Capistrano de Abreu nos volumes anteriores dedicados às confissões e às denúncias feitas na Bahia, Heitor Furtado de Mendonça, tendo sido nomeado visitador dos bispados de Cabo Verde, São Thomé e Brasil (inclusive São Vicente e o Rio de Janeiro) por comissão especial do cardeal arquiduque e inquisidor-geral D. Alberto a 26 de março de 1591, chegou a Salvador enfermo devido às atribulações da viagem pelo Atlântico. GARCIA, Roddolpho. Introdução. IN: Primeira visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça — Denunciações de Pernambuco — 1593-1595. Introdução de Rodolfo Garcia. São Paulo, Paulo Padro, 1929. p. VII. 3. Ao longo deste capítulo, o estatuto erótico e de gênero da sodomia na Época Moderna será problematizado a partir da confissão feita pelo padre Frutuoso Álvares na Primeira Visitação e do processo instaurado contra ele pelo visitador Heitor Furtado de Mendonça a partir da denúncia de Jerônimo de Parada. O processo encontra-se digitalizado no site do Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa, sendo seu índice de referência PT-TT-TSO/IL/28/5846. Disponível em: http://ttonline.dgarq.gov.pt/dserve.exe?dsqServer=calm6&dsqIni=Dserve. ini&dsqApp=Archive&dsqCmd=show.tcl&dsqDb=Catalog&dsqPos=34&dsqSearch=(((text)=’frut uoso’)AND((text)=’alvares’)). Último acesso em: 10 de outubro de 2013. A referência à barba branca do padre está na página 13 do processo.

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um aspecto senhorial condizente com o ideal patriarcal que governava a masculinidade enquanto gênero performativo, o padre foi o primeiro a se confessar a Heitor Furtado no período da graça concedido a Salvador. Todavia, qualquer impressão que o semblante de Frutuoso Álvares possa ter causado no visitador, provavelmente foi logo desfeita pelo teor de sua confissão4. Em sua confissão, o padre Frutuoso Álvares narrou ao talvez pasmo visitador sua vida de encontros eróticos ilícitos com “muitos moços e mancebos que não conhece nem sabe os nomes”5. Nestes encontros, o padre trocava abraços, beijos, tocamentos diversos nos sexos dos parceiros e praticava o sexo anal tanto penetrando, quanto sendo penetrado — ainda que tenha alegado, em sua primeira confissão, que nunca efetuou o pecado da sodomia penetrando6. Seus parceiros parecem ter sido sempre jovens adolescentes de idade entre 12 e 18 anos, a quem Frutuoso Álvares atraía para a prática do nefando usando de vários subterfúgios, mas principalmente sua posição a princípio insuspeita de velho vigário de Matoim e amigo das famílias dos jovens. Como vigário da paróquia de Matoim, Frutuoso Álvares estava bem inserido na comunidade, conhecendo muitas pessoas e sendo por elas conhecido — o que já lhe causara problemas, como será visto abaixo. Conhecia, por exemplo, Pero d’Aguiar, morador em sua freguesia e pai de Cristóvão de Aguiar, mancebo que tinha 18 anos em 1591. Dois ou três anos antes, segundo relato do padre, ele o jovem tiveram tocamentos desonestos, abraçaram-se e beijaram-se, tendo polução7. Como padre, Frutuoso Álvares também conhecia, ainda que superficialmente, o mercador Fuão8 Siqueira, cujo sobrinho e criado, um moço chamado Antônio, teve seu pênis tocado

4. A esse respeito, o historiador Rodolpho Garcia (1873-1949), discípulo de Capistrano de Abreu, comentou que “logo a 29 ouvia a confissão do Padre Fructuoso Alvares, vigario de Matuim, (...) por mais de um motivo penosa para um convalescente de grave doença”, GARCIA, Roddolpho. Introdução. P.VII. O historiador demonstrou, nesta passagem, como o sentimento de abjeção ao homoerotismo sentido pelo visitador perpetuou-se na cultura brasileira através dos séculos, transformando-se de um horror ao pecado tão terrível que era nefando, do qual não se podia sequer falar o nome, em um ódio à figura moderna do homossexual. Para rápida biografia de Rodolpho Garcia, com índice de suas obras e seleção de textos, ver o site da Academia Brasileira de Letras, disponível em: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=350. Último acesso em: 10 de outubro de 2013. 5. VAINFAS, Ronaldo. (Org.). Confissões da Bahia: santo ofício da inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 47. 6. ______. Confissões da Bahia. p. 47-48. 7. ______. Confissões da Bahia. p. 46. 8. Nota dos Editores: corruptela de “Fulano” .

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pelo réu e confessante, carícia que não resultou em ejaculação de nenhuma das partes9. Sendo um homem de práticas sodomíticas notórias10, Frutuoso Álvares, mesmo assim, conseguiu cultivar amizades duradouras com os pais ou senhores de seus parceiros eróticos. Tal fato põem em questão a performance de gênero encenada cotidianamente pelo réu. Teriam homens ciosos de sua virilidade — como eram os homens da América portuguesa no período — estreitado amizade, recebendo em sua casa e permitindo que seus dependentes frequentassem a casa do padre, se a apresentação pública do mesmo — se sua performatividade de gênero — não se conformasse ao ideal hegemônico de masculinidade corrente? Tendo em vista o pesado estigma social associado ao feminino (matriz do pecado na tradição cristã), percebe-se que a identidade de gênero do padre Frutuoso Álvares, não obstante suas práticas homoeróticas, pautava-se pelos padrões culturalmente estabelecidos para a masculinidade. Por sua posição de vigário da paróquia do Matoim, o padre exercia funções de patriarca espiritual da comunidade, papel reforçado por sua idade avançada e aparência física. Como tal, foi capaz de articular uma rede de sociabilidade masculina que lhe angariava vantagens explícitas — como usar da hospitalidade dos amigos homens — e implícitas — ganhar a confiança de adolescentes e atraí-los para os prazeres nefandos. Se os prazeres carnais com rapazes não parecem informar a composição da identidade de gênero do padre Frutuoso, que lugar ocupavam tais práticas em sua visão de mundo? Nas suas palavras — conforme traduzidas pelo notário a mando do visitador: “(...) sabia muito bem quão grandes pecados sejam estes que tem cometido, e deles está muito arrependido e pede perdão”11. Suas experiências eróticas com jovens, traduzia-nas o padre Frutuoso Álvares como ações pecaminosas, as quais, devido à fraqueza da Carne, ele não deixava de cometer a despeito das sucessivas sanções sofridas ao longo da vida.

9. VAINFAS. Confissões da Bahia. p.46. 10. Além dos processos que sofrera ao longo de sua vida em Braga, Cabo Verde e Lisboa, o padre Frutuoso Álvares fora processado pelo ordinário do bispado da Bahia em pelo menos duas oportunidades, pelo ajuntamento carnal que mantivera com Diogo Martins (investigação que não logrou condená-lo) e por trocar tocamentos desonestos com os irmãos Antônio Álvares e Manuel Álvares — desta feita, a investigação, fundamentada em testemunhos de cinco pessoas, resultou em sua condenação com multa e suspensão das ordens por certo tempo. Segundo o relato do padre, a investigação mais recente fora realizada na visitação feita pelo provisor do bispo no ano de 1590, um antes da chegada da Inquisição à Bahia. Confissões da Bahia. p. 48, 50-51. 11. VAINFAS. Confissões da Bahia. p.49.

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As experiências do padre Frutuoso Álvares e o discurso montado pelo Tribunal do Santo Ofício a partir delas sugerem uma reflexão sobre as maneiras pelas quais se articulavam comportamentos eróticos desviantes e identidades de gênero na Época Moderna. Propor questões dentro desta problemática é o objetivo deste artigo, usando como pivô as (des)venturas do padre Frutuoso Álvares perante o Santo Ofício. Assim, o estatuto de gênero e sexualidade da sodomia no mundo português entre os séculos XVI e XVII será problematizado segundo os marcos da Teoria Queer, que permitem o deslocamento do binarismo de gênero e da heterossexualidade compulsória12, abrindo espaço para a percepção de vivências eróticas que não se conformem ao ordenamento direto e linear de sexo, gênero e desejo. É importante frisar desde já que, diante do volume da documentação existente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo sobre a sodomia (notadamente os Cadernos do Nefando, mas também uma vasta diversidade de processos, denúncias, regimentos e outras formas de documentação), este texto não pretende oferecer respostas definitivas (é isto possível na História?) acerca de como a sodomia era significada e experimentada pelos diversos atores e instituições sociais. O que se pretende é seguir o debate sobre como a sodomia se articulava a identidades de gênero e eróticas das pessoas. Trocando em miúdos, a pergunta central é simples, era o sodomita homossexual? Esta pergunta tão simplesmente enunciada diz respeito ao debate acadêmico transdicisplinar travado entre duas correntes de pensamento com visões antagônicas a respeito do erotismo e das identidades de gênero. Trata-se do debate entre

12. Monique Witting, nos marcos do feminismo materialista francês, desenvolveu o conceito da heterossexualidade compulsória para descrever a ação normalizadora exercida pelo conjunto de ciências e disciplinas (entre elas o campo das humanidades, em que se localiza a História) que formam o chamado Pensamento Heterossexual. Este conjunto de saberes científicos, na descrição da autora, é conformado por conceitos primitivos que instauram e mascaram a dominação de grupos sociais (as mulheres, as lésbicas, os gays e certos grupos de homens, por exemplo, os negros ou indígenas) a partir da construção dialética do Outro/diferente. Desse modo, ser homem e ser mulher são categorias cujos sentidos somente existem dentro do sistema totalizador do Pensamento Heterossexual — instaurador da heterossexualidade compulsória. Formas de relações de gênero e sexuais desviantes da ordem patriarcal não podem ser pensadas segundo os termos do Pensamento Heterossexual, exigem, portanto, um esforço de deslocamento e ruptura dos signos deste pensamento. Esforço empreendido já pelo feminismo materialista, mas que foi redimensionado pela teoria queer, ao reinserir as identidades desviantes no sistema heterossexual e mostrando como elas podem subvertê-lo a partir das relações de poder que, por meio da repetição performativa dos gêneros, as instauram. WITTING, Monique. El pensamiento heterosexual. IN: WITTING, Monique. El pensamiento heterosexual y otros ensayos. Tradução: Javier Sáez, Paco Vidarte. Barcelona: Editorial Egales, 2006. p. 49-57.

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as correntes essencialista e construcionista, que divergem sobre a historicidade das identidades eróticas e de gênero como as de sodomita e de homossexual. De acordo com a interpretação essencialista da dimensão erótica da experiência humana, existem essências humanas universais ou naturais subjacentes a qualquer análise das expressões eróticas de qualquer cultura em diferentes tempos e espaços, identidades que seriam dadas pela natureza13. Para a corrente essencialista, a homossexualidade é um dado exterior à sua delimitação discursiva; o marco apresentado por Foucault como seu começo nas sociedades industriais não seria mais do que uma nova nomeação a elementos que já existiam mesmo antes de serem nomeados14. Importante autor desta corrente de pensamento é o historiador estadunidense John Boswell, cujo livro Christianity, social tolerance and homosexuality (em que ele defende a equivalência entre sodomia e homossexualidade, postulando a possibilidade do uso e circulação do termo gay no idioma catalão-provençal para praticantes do sexo homoerótico desde o século XIII15), cuja obra foi constantemente citada por historiadores brasileiros entre a década de 1980 e 1990 para legitimar a igualdade entre sodomitas dos séculos XVI ao XVIII e homossexuais do século XX. Em seu texto, Boswell pretendeu desvendar as raízes culturais da intolerância devotada a alguns grupos cujas práticas eróticas desviavam da moral hegemônica. Intolerância que, usando de argumentos religiosos (cristãos), não se focava com a mesma intensidade em todos os grupos condenados pelas escrituras sagradas do cristianismo. Neste sentido, o autor comenta os diversos tratamentos dados pelos Estados cristãos da Época Moderna às prostitutas e aos sodomitas (aos quais ele sempre se refere como gays) — os dois grupos condenados com veemência semelhante pela Bíblia16. Porém, para atingir este objetivo, o historiador postula a universalidade da experiência homoerótica na história, aproximando as experiências gays do século XX com aquelas dos gais da região da Catalunha e da Provença entre a Baixa Idade Média e a Modernidade. Este movimento teórico justificar-se-ia, no entender de Boswell, pela circulação (que ele próprio reconhece como controversa e cuja história é lacunar e duvidosa) do termo gai (que poderia se referir a poesia, a 13. BARBO, Daniel. O Triunfo do Falo: Homoerotismo, Dominação, Ética e Política na Atenas Clássica. Rio de Janeiro: E-Papers, 2008. p .22. 14. GARCIA, David Córdoba. Teoría queer: reflexiones sobre sexo, sexualidad e identidad. Hacia uma politización de la sexualidad. IN: GARCIA, David Córdoba; SÁEZ, Javier; VIDARTE, Paco. Teoría Queer. Políticas bolleras, maricas, trans, mestizas. Barcelona, Madrid: Editorial Egales, 2007. p. 33-34. 15. BOSWELL, John. Christianity, social tolerance and homosexuality. The University of Chicago Press: Chicago; London, 1980. p. 43. 16. ______. Christianity, social tolerance and homosexuality p. 3-39.

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amantes em geral e a amantes homoeróticos) desde o sul da França entre os séculos XIII e XIV e a Inglaterra e os Estados Unidos no século XX17. O antropólogo, historiador e decano do moderno movimento gay no Brasil, Luiz Mott é talvez um dos maiores estudiosos da questão da sodomia no mundo luso-brasileiro na Época Moderna, tendo pesquisado exaustivamente os documentos inquisitoriais na Torre do Tombo em Lisboa. Defensor da perspectiva essencialista, o historiador e antropólogo usou em vários textos o estudo de Boswell como justificativa para o uso do termo gay como epíteto válido para se referir a sodomitas entre os séculos XVI e XVIII, como no trecho seguinte: Propositadamente emprego aqui a expressão “gay” pois de acordo com Boswell (1980:43), desde o século XII que na língua catalã-provençal se emprega o termo “gai” para referir-se a uma pessoa abertamente homossexual. Em seu livro sobre Cristandade, tolerância social e homossexualidade, Boswell emprega este mesmo cognome para referir-se aos sodomitas da Idade Média: “Gay people in Western Europe from the beginning of the Christian Era to the fourteenth century”. Para sermos mais fiéis a nossas raízes linguísticas, considero melhor o termo “gay” do que “homossexual” este último vocábulo somente tendo sido cunhado em 1869 por Benkert e divulgado em 1870 pelo médico alemão Westphal.18

Em seus muitos textos sobre a sodomia e os sodomitas, publicados desde a década de 1980, o autor emprega variados termos para se referir aos homens com práticas homoeróticas; tais como uranistas, pederastas, homófilos, terceiro sexo, nefandistas, ganimedes (para sodomitas mais jovens e efeminados), vício de Veneza ou vício italiano, amor socrático ou amor grego, amor sáfico, vício dos clérigos e amor que não ousa dizer seu nome. Vários destes cognomes demonstram o que Daniel Barbo considerou como sendo o forte peso dos estudos da cultura grega clássica durante o período de gestação da moderna categoria da homossexualidade19, como os amores socrático e sáfico, uranistas e ganimedes20. O termo “amor que não 17. BOSWELL, John. Christianity, social tolerance and homosexuality. p. 43, nota 6. 18. MOTT, Luiz. Escravidão, Homossexualidade e Demonologia. São Paulo: Ícone, 1988. p. 42, nota 6. 19. BARBO, Daniel. A emergência da homossexualidade: cultura grega, cientificismo e engajamento. IN: COSTA, Adriane Vidal; BARBO, Daniel. História, literatura e homossexualidade. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. p. 11-42. 20. Na mitologia grega, Ganimedes foi um herói troiano considerado o mais belo dos mortais. Enquanto pastoreava os rebanhos do pai, foi avistado por Zeus que, encantado com a beleza do jovem, raptou-o e levou-o ao Olimpo. Na morada dos deuses, Ganimedes recebeu a imortalidade e recebeu a incumbência de servir o néctar às divindades em suas assembleias, substituindo Hebe, deusa da juventude, nesta tarefa. Ao mesmo tempo, era amante de Zeus, senhor do Olimpo. Ver Dicionário de Mitologia Greco-Romana. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 80.

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ousa dizer o nome” refere-se ao escritor, dramaturgo e poeta inglês Oscar Wilde que, além de ter escrito diversas obras em que o homoerotismo tem presença fundamental (como O Retrato de Dorian Grey), foi processado e condenado à prisão e à trabalhos forçados na Inglaterra vitoriana por crime de sodomia. Oscar Wilde, por suas obras e por sua vida, tornou-se referência importante na cultura gay que se articulou no Ocidente a partir do século XX21. Duas críticas podem ser feitas à corrente essencialista. Em primeiro lugar, por tomar como pressuposto a existência de uma essência transhistórica para as identidades de gênero e eróticas, ela tece uma história marcada pela linearidade e pela teleologia. Em várias passagens, Luiz Mott explicita seu interesse em construir uma história para os homossexuais, articulando (como fundamentalmente semelhantes) dispositivos distintos de repressão ao homoerotismo. Um exemplo é a implícita comparação entre a perseguição inquisitorial aos sodomitas e ao extermínio de homossexuais promovido pelo nazismo: Se compararmos a legislação inquisitorial na caracterização do crime de sodomia, com as leis dos países protestantes da mesma época, da Holanda, Suíça ou mesmo Inglaterra, somos forçados a concluir que o Terrível Tribunal de Lisboa foi muito mais tolerante com a homossexualidade do que as justiças reformadas. Na Alemanha Nazista, simples pensamentos homoeróticos foram matéria suficiente para levar aos campos de concentração supostos homossexuais, avaliando-se em 300 mil os “schwul” (gays) assassinados pelo Nazismo.22

Uma história articulada deste modo corre o risco de gerar simplificações e anacronismos, pois as experiências de gays do século XX e de sodomitas dos séculos XVI ao XVIII guardam significativas diferenças — a começar pelos termos com que cada grupo significava suas práticas homoeróticas; os primeiros como condição mais fundamental de sua identidade de sujeitos humanos, os segundos como pesado e prazeroso pecado da Carne. A segunda crítica refere-se à construção de mitos engendrada pela essencialização da história da homossexualidade. Uma vez que a homossexualidade é um dado natural que atravessa épocas, culturas e continentes, recebendo diversos nomes, mas 21. Conforme Didier Eribon, “a condenação de Oscar Wilde provocou um verdadeiro abalo das consciências, e seu nome bem rapidamente vai se tornar, para muitos homossexuais — masculinos, pelo menos -, símbolo, a um só tempo, da cultura gay e da repressão que ela inevitavelmente suscita tão logo procura aparecer à luz do dia”. ERIBON, Didier. Reflexões sobre a questão gay. Tradução Procopio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008. p. 175. 22. MOTT, Luiz. O sexo proibido: Virgens, gays e escravos nas garras da Inquisição, Campinas, SP, Papirus, 1988. p. 114-115.

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conservando uma essência imutável, aqueles que praticaram o homoerotismo no passado (e foram por isso perseguidos, muitos executados) surgem como heróis e mártires da história e da causa homossexual23. Mais uma vez, Mott é explícito em sua intenção política: Alguns, modelos e paradigmas na luta contra o racismo, contra a intolerância inquisitorial, contestadores do machismo, os mesmos defeitos de nossa civilização judaico-cristã que ainda hoje causam a desgraça das minorias oprimidas. Que estes ilustres desconhecidos — agora identificados — também tenham o direito à história. E os oprimidos, seus heróis.24

A crítica ao essencialismo não significa desprezar as contribuições historiográficas dos seus autores — apenas pô-las em relação aos significados específicos das identidades eróticas e de gênero em questão, no caso, as dos sodomitas. Essa ressalva é de particular importância em relação ao artigo “Pagode português: A subcultura gay em Portugal nos tempos inquisitoriais” de Luiz Mott. Neste texto, o autor tece o panorama de uma Lisboa dos tempos inquisitoriais insuspeita, em que o homoerotismo dos sodomitas se desenvolveu em códigos culturais próprios e dedicados a permitir a continuidade de suas práticas nefandas mesmo contra os próprios muros da Inquisição — como nas portas de Santo Antônio e os Arcos do Rocio, na vizinhança das instalações do Santo Ofício em Lisboa. Entre lugares públicos e estalagens para encontros efêmeros, casas particulares que serviam de ponto de reunião para círculos de amigos que tinham em comum experiências performativamente subversivas de gênero (sodomitas efeminados que enfatizavam em suas vestes, falas e gestos essa característica), vocabulário específico a estes grupos e mesmo sodomitas intelectualizados capazes de se apropriarem dos discursos condenatórios da sodomia para construir uma positividade para esta prática erótica, a cultura portuguesa dos séculos XVII e XVIII ganha novos traços que atestam a força de incitação à discursificação do sexo era capaz, já na Época Moderna, de engendrar pontos de

23. Não se trata aqui de criticar-se o entrelaçamento da política e da militância com a historiografia. Conforme demonstrou Joan Scott, a oposição entre teoria e política é falsa e produtora de violências, pois silencia debates necessários acerca de qual teoria pode apresentar maior utilidade para determinada política, fazendo com que, em um movimento excludente, uma única teoria seja alçada ao posto de aceitável como política. Assim, não se critica a militância do historiador, apenas possíveis anacronismos que dela podem derivar sem a correlata reflexão teórica a respeito dos conceitos importados da práxis política. SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Ed. UNESP, 1992. p. 87-98. 24. MOTT, Luiz. Escravidão, Homossexualidade e Demonologia. p. 9..

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resistência expressivos da capacidade de estilização da existência mesmo de sodomitas ameaçados sempre pelo espectro da fogueira inquisitorial25. É também neste texto que Luiz Mott torna mais evidente seu alinhamento à corrente essencialista, apresentando um desafio ao construcionismo em geral e à teoria de Michel Foucault em particular. A sofisticação dos códigos comunicativos dos sodomitas em Portugal entre os séculos XVII e XVIII (interpretados pelo autor como uma subcultura gay não muito diversa daquela existente nas grandes cidades ocidentais durante o século XX) levou-o a concluir pela existência de uma condição homossexual única através dos séculos, colocando em xeque a proposição de Foucault de que a homossexualidade seria uma invenção do dispositivo da sexualidade nas décadas finais do século XIX. Nas palavras de Mott: Portanto, cremos que essa nossa primeira reconstituição da estrutura e dinâmica da subcultura gay em Portugal dos séculos XVI ao XVIII, permite-nos avançar na discussão sobre a história da homossexualidade, confirmando as teses dos essencialistas e realistas que defendem ser o homossexual não apenas o portador de um estilo de vida gay, mas detentor de uma verdadeira condição existencial suis generis. Os sodomitas em Portugal inquisitorial não eram apenas reincidentes no homoerotismo, como pretendem M. Foucault e os teóricos nominalistas-construtivistas.26

Diferentemente de Luiz Mott, o historiador Ronaldo Vainfas não rejeita tão peremptoriamente a opção construcionista. Na medida em que a teoria do incitamento à discursificação do sexo (e o modelo de poder a ela subjacente) conformam a interpretação do funcionamento do Tribunal do Santo Ofício em sua perseguição aos delitos morais27. A incerteza sobre o estatuto da sodomia era, segundo um autor, uma dúvida compartilhada entre os eruditos representantes dos poderes persecutórios e os sodomitas que a praticavam28. Mais além, é uma dúvida que também alimenta as pesquisas de estudiosos contemporâneos da questão. Ronaldo Vainfas leva em consideração a posição construcionista acerca da homossexualidade logo no início do capítulo quinto do seu Trópico dos Pecados, em que analisa as condições de existência do pecado nefando, e seus praticantes, na América portuguesa. Todavia, a ideia foucaultiana de que a sodomia seria antes de 25. MOTT, Luiz. Pagode português: a subcultura gay em Portugal nos tempos inquisitoriais. Ciência e Cultura. Vol. 40.1988. p.127-137. 26. ______. Pagode português. p .137-138. 27. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1989. p.50. 28. ______.. Trópico dos Pecados. p. 143-144.

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tudo um conjunto de atos que não caracterizam a cerne da identidade dos sujeitos é logo posta de lado pelo autor. A antiga sodomia, no entanto, embora designasse um ato ou um conjunto de atos pecaminosos, ofensivos a Deus e à lei jamais se limitou a esse significado, nem seus autores foram vistos simplesmente como praticantes de um crime ou desvio moral.29

Para o autor, o ambíguo conceito de sodomia desenvolvido pelos saberes escolástico e pelas percepções populares desde a Alta Idade Média invalida a tese de que a sodomia não foi mais do que um conjunto de atos pecaminosos e criminais praticados por algumas pessoas. No entanto, ainda que a sodomia não se resumisse a certos atos eróticos proibidos (mais ou menos graves se praticados com determinados parceiros) e envolvesse também comportamentos de gênero diversos que pudessem estar em desacordo com os padrões esperados de masculinidade e feminilidade, a hipótese de Foucault não ficaria invalidada. A diferença profunda entre homossexualidade e sodomia persiste, qual seja, de que a prática homoerótica experimentada por inúmeros homens e mulheres, antes do final do século XIX, não era percebida, sentida e experimentada como a verdade mais interna da identidade daqueles indivíduos como sujeitos. Michel Foucault aborda a questão da historicidade da homossexualidade a partir de sua análise dos mecanismos de funcionamento do dispositivo da sexualidade, postos em funcionamento a partir do século XVIII nas sociedades europeias em que o capitalismo se desenvolveu primeiro e mais fortemente. A sexualidade, para o autor, e, de modo correlato, a homossexualidade, não se destaca do sistema capitalista. A implementação perversa da sexualidade, ao longo do século XIX, se deu por meio de quatro operações das relações de poder, que alimentam uma a outra de modo contínuo e dinâmico, estando presentes ainda hoje nas sociedades ocidentais. A que mais de perto concerne à história da homossexualidade é a segunda operação, denominada especificação nova dos indivíduos30. Esta operação do poder funcionou pela incorporação, progressivamente mais profunda, das práticas eróticas periféricas aos indivíduos, ao ponto de tornarem-se a parte mais essencial da sua identidade. Práticas eróticas que até então não foram mais do que isso (práticas, atos) passaram a compor e a determinar a história, a morfologia, a anatomia, a fisiologia de indivíduos que, a partir de então transformaram-se em personagens de si mesmos. A função deste mecanismo é produzir 29. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. p. 144. 30. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Lisboa: Antropos, Relógios d’água, 1977. p. 41-55.

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objetos sobre os quais o poder pode exercer-se, criando, e disciplinando, corpos que justificam sua mera existência. Esta operação é, pois, um mecanismo de classificação dos indivíduos, transformados em novos personagens (perversos), uma nova realidade analítica, visível e permanente, semeando-a no real e incorporando-a nos indivíduos31. A categoria da homossexualidade é usada por Foucault como exemplar do funcionamento desta operação das relações de poder dentro do dispositivo da sexualidade. O momento de criação desta categoria seria, de acordo com Daniel Barbo, a década de 1860, em que começaram a ser produzidas as primeiras nomenclaturas que objetivavam classificar tipos específicos dentro da nebulosa de inversões sexuais. As duas principais categorias produzidas com este sentido foram a de urninge, em 1862, criada por Karl Heinrich Ulrichs, e a de homossexual, criada em 1869 por Karorly Maria Kertbeny. Se a categoria urninge de Ulrichs foi a princípio mais divulgada, a partir do início do século XX, o termo homossexual se consolidaria como o mais adequado para se referir aos amantes do mesmo sexo na estruturação da esfera axiológica da sexualidade32. Com estas categorias (que, não obstante, em suas formulações originais não eram totalmente sinônimas)33 que o tipo social do homossexual foi primeiramente caracterizado, não tanto com base em suas práticas sexuais, mas como alguém que invertia, em si, o masculino e o feminino. O homossexual passou a ser visto como aquela pessoa que apresentasse algo como um hermafroditismo da alma, em que a mentalidade e corpo tinham gêneros divergentes. Qualidade que o marcaria por inteiro em todas as suas ações, em toda a sua história de vida, em todos os seus gestos e palavras. Foucault diferencia o homossexual do sodomita argumentando que este era apenas um homem que 31. FOUCAULT, M. História da sexualidade 1. p. 46-48. 32. BARBO, Daniel. A emergência da homossexualidade: cultura grega, cientificismo e engajamento. IN: COSTA, Adriane Vidal; BARBO, Daniel. História, literatura e homossexualidade. p. 12. 33. A categoria de homossexual, conforme definida por Kertbeny, tinha o objetivo de mostrar que a homossexualidade era inata e imutável, não dizendo de um desvio moral dos homossexuais, que seriam mais que meros praticantes. Sua definição tinha a meta de garantir a não intervenção estatal (dentro de um entendimento liberal das funções do Estado) na vida privada dos homossexuais. O objetivo central de Kertbeny era derrubar a legislação alemã repressora da sodomia (o parágrafo 175 do código penal alemão). Finalmente, Kertbeny negava uma associação direta entre homossexualidade e efeminação. A categoria de urninge de Ulrichs, por outro lado, tinha como elemento central de sua definição a ideia de que a naturalidade do amor homoerótico era devida ao hermafroditismo da alma típico de todos os urninges, que teriam uma alma feminina confinada num corpo masculino. Sendo também militante dos direitos das minorias sexuais, Ulrichs, diferentemente de Kertbeny, tornou pública sua homossexualidade e lutou abertamente pela revogação da legislação anti-sodomia na Alemanha. BARBO, Daniel. A emergência da homossexualidade: cultura grega, cientificismo e engajamento. IN: COSTA, Adriane Vidal; BARBO, Daniel. História, literatura e homossexualidade. p .12-18.

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cometia certos atos pecaminosos (gravíssimos, mas que não diziam da sua natureza como um todo), enquanto o homossexual era definido enquanto sujeito prioritariamente por suas experiências (homo)eróticas, nas palavras de Foucault, “o sodomita era um relapso, o homossexual é agora uma espécie”34. O grande impacto do primeiro volume da História da Sexualidade de Foucault nos campos dos estudos de gênero e da sexualidade deve-se, também, a sua inovadora narrativa da história da homossexualidade. Ao deslocá-la para a posição de efeito discursivo das relações de poder, e não um dado da natureza a que o poder dedicar-se-ia infinitamente a reprimir, o filósofo o francês abriu espaço para que contra-discursos sobre a categoria pudessem ser analisados dentro dos próprios mecanismos da sexualidade, abordando esse dispositivo como uma dimensão da natureza proliferativa do poder — suas teorias sobre o funcionamento do dispositivo da sexualidade compõem sua famosa crítica à hipótese repressiva da sexualidade. Para ele, as sociedades ocidentais industriais e burguesas não se caracterizam por uma repressão sempre maior do sexo; ao contrário, são marcadas por um falar incessante deste sexo, que passou a compor a chave das identidades de todos os indivíduos nestas sociedades35. A corrente construcionista segue de perto a narrativa foucaultiana, trabalhando a partir da ideia de que a homossexualidade é mesmo uma invenção do século XIX burguês e industrial. Segundo David Halperin, importante antropólogo estadunidense da Teoria Queer, os processos que levaram ao surgimento da sexualidade foram dois. Um foi a separação do domínio erótico na vida dos indivíduos dos outros domínios culturais (como a religião, a moral e o direito) a que estava ligado antes, e sua conseguinte definição como um aspecto específico da natureza psicofísica dos indivíduos. O segundo processo foi a construção da ideia de que há uma essência interior do sexo dos indivíduos, a construção da ilusão da interioridade do sexo, que seria a raiz das identidades (performativas) de todos e de todas36. Deste ponto de vista, a corrente essencialista seria uma reiteração do mecanismo de poder de criação de identidades sexuais estáveis ao longo da história — cujo funcionamento autônomo seria natural, portanto dispensando intervenções políticas ou teóricas sobre as violências que engendram. Tendo em vista o complexo debate entre estas duas correntes, um nível de prudência na utilização das categorias homossexual e homossexualidade em contextos 34. FOUCAULT, M. História da sexualidade 1. p. 47. 35. ______. História da sexualidade 1. p. 19-53. 36. HALPERIN, David. One hundred years of homosexuality and other essays on Greek love. New York: Routledge, 1980.

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diversos do mundo Ocidental a partir do fim do século XIX é recomendável. Por essa razão, o termo homoerotismo ganha relevo na abordagem de comportamentos eróticos entre pessoas do mesmo sexo em diferentes momentos no tempo e no espaço. De acordo com psicanalista Jurandir Freire Costa, o emprego dos termos homossexual e homossexualidade oferece insegurança teórica, uma vez que remete ao vocabulário do século XIX37. O termo homoerotismo, por outro lado, contorna este ponto enfraquecedor da análise por ser mais flexível e não estar desde já carregada pelos investimentos de poder e pelos preconceitos sociais que saturam a categoria de homossexualidade. O homoerotismo é um termo cuja flexibilidade é mais adequada para descrever a pluralidade das práticas e desejos de pessoas por outras do mesmo sexo. Ele afasta também as referências a patologização destas práticas subjacente à categoria homossexualidade em seu contexto original de produção. O termo homoerotismo mantém a possibilidade dos sujeitos se relacionarem eroticamente de diversas maneiras com pessoas de seu sexo ou não38. O sociólogo argentino Carlo Figari igualmente defende o uso da categoria homoerotismo no estudo de prazeres e relações eróticas entre pessoas do mesmo sexo em sociedades que não o Ocidente ao fim do século XIX. Partindo também do ponto de vista construcionista, o autor propõe que o homoerotismo funcione como um elo significante entre os comportamentos eróticos envolvendo homens e mulheres entre si no passado e o aparato da heterossexualidade compulsória que orienta, no presente, a pesquisa a ser feita. Assim, a categoria, desprovida de significados, tem espaço para a interpretação de fenômenos em pontos diferentes no tempo e no espaço e que dizem respeito a práticas que, com sentidos muito diversos, coexistem no passado histórico e no presente do analista — como o amor e o prazer entre homens e entre mulheres39. Nesse deslocamento da categoria da homossexualidade na Época Moderna, desloca-se também, implicitamente, a heterossexualidade compulsória no presente. Estabelecidos os pontos de vista divergentes em relação ao estatuto erótico e de gênero da sodomia, há que se atentar também para o caráter ambíguo do conceito na tradição cristã desde o início do cristianismo até a Época Moderna. Esta não é uma discussão fácil ou encerrada. Ao contrário, desde os primórdios do cristianismo, o conceito de sodomia sofreu inúmeras transformações e, hoje, seu caráter 37. COSTA, Jurandir Freire. A inocência e o vício: estudos sobre homoerotismo. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 1992. p. 13-40. 38. ______. A inocência e o vício. p. 21-24. 39. FIGARI, Carlos. @s outr@s cariocas. Interpelações, experiências e identidades homoeróticas no Rio de Janeiro. Séculos XVII ao XX. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2007. p. 19..

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mutante enseja discussões historiográficas a respeito de seu estatuto em relação ao conceito de heresia e à ação inquisitorial40. O termo refere-se originalmente ao episódio bíblico da destruição da cidade de Sodoma pela ação da ira divina contra seus habitantes. Os primeiros teólogos da Patrística e, especialmente, São Paulo assimilaram a condenação divina ao comportamento homoerótico dos habitantes em relação aos anjos hóspedes de Lot41. Boswell argumenta que essa interpretação prevaleceu sobre outra que considerava a ofensa dos sodomitas aos anjos apenas como quebra das regras de hospitalidade — importantes na tradição hebraica42. Até a Baixa Idade Média, o conceito teológico de sodomia careceu de definição estrita. Era apenas mais um no vasto rol de práticas eróticas condenadas pela Igreja — que, a rigor, só permitia, e mesmo assim, com alguma dificuldade antes dos séculos XI e XII, o sexo entre cônjuges com vistas à reprodução. A sodomia confundia-se então com os conceitos mais amplos de luxúria e fornicação — ainda que a abjeção ao sexo anal tivesse destaque na tradição católica, sendo este o ato sodomítico principal43. A partir dos séculos XI e XII, a sodomia começou um movimento de ascensão na escala de gravidade dos pecados organizada pelos sábios da escolástica. Sua definição, ainda incerta, envolvia então todos os atos de desvio da genitalidade no sexo tanto entre parceiros iguais como em diferentes — e o sexo anal continuava sendo sua forma mais detestável. Entre os séculos XIII e XIV, assume a posição de pecado mais grave, confundindo-se muitas vezes com o pecado da bestialidade — o copular com animais44. Deste período até o século XVIII, os significados da sodomia oscilaram, nos saberes teológicos, entre uma definição centrada na morfologia do ato (a cópula anal com ejaculação interna) ou no homoerotismo (sendo mais perfeita a relação 40. Na historiografia brasileira, este debate foi protagonizado, como se verá a seguir, por Luiz Mott e Ronaldo Vainfas em artigos componentes da coletânea A Inquisição em xeque. Neste momento, acho válido destacar que a leitura dos textos dos autores revela exemplos de elegância e civilidade acadêmicas que deveriam ser emulados por qualquer estudioso. VAINFAS, Ronaldo; FEITLER, Bruno; LAGE, Lana. (org.). A Inquisição em xeque. Temas, controvérsias, estudos de caso, Rio de Janeiro, EdUERJ, 2006. 41. As condenações de S. Paulo ao homoerotismo encontram-se em suas epístolas, como em Romanos 1:24-31, I Coríntios 6:9-10 e I Timóteo 1: 10. Bíblia Sagrada. Rio de Janeiro: Catholic Press, 1967. (Barsa). 42. BOSWELL, John. Christianity, social tolerance and homosexuality. p. 96-97. 43. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. p. 145. 44. ______ . Trópico dos Pecados. p. 145-146.

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entre homens e entre mulheres)45. São Tomás de Aquino a considerou uma dos quatro clamantia peccata (pecados que clamam ao céu), definindo-a como a cópula entre pessoas do mesmo sexo e considerando o sexo anal entre dois homens com ejaculação interior sua forma mais perfeita — logo mais grave46. Segundo Ronaldo Vainfas, “Os saberes eruditos não limitaram sua concepção de sodomia à cópula anal, mas, prisioneiros desta última, ficaram a meio caminho da posterior definição de homossexualidade”47. Luiz Mott argumenta que debalde as mudanças sofridas pelo conceito de sodomia ao longo da Era Cristã, ele jamais foi identificado como heresia. Para o autor, a perseguição aos sodomitas empreendida pelo Tribunal do Santo Ofício na modernidade foi, mais que um combate a uma seita herética, uma tática de repressão à ameaça ao patriarcado, aos valores da família, da superioridade masculina e à autoridade da Igreja, representada pelo grupo — cujos membros seriam portadores de uma contracultura imoral e revolucionária48. Com isso concorda obliquamente Ronaldo Vainfas, que considera ter sido o movimento teórico empreendido por alguns tribunais do Santo Ofício para legitimar sua jurisdição sobre a sodomia mais sutil do que a simples identificação entre sodomia e heresia49. Diante da oscilação constatada pelo autor na definição de sodomia pelos saberes eruditos, Ronaldo Vainfas enfatiza que os inquisidores tinham mais dúvidas do que ninguém acerca deste pecado — tendo certeza apenas sobre sua enorme gravidade, que o tornava nefando, do qual não se deveria sequer falar. O historiador entende que sodomia e heresia não foram identificadas, mas assimiladas, isto é, deveriam ser tratadas de modo semelhante no cotidiano dos tribunais. A inclusão da sodomia na jurisdição inquisitorial (que, no caso português, ocorreu em 1553 por provisão do Cardeal e inquisidor-geral D. Henrique) fez parte de um processo mais amplo de consolidação e expansão do Santo Ofício em Portugal. Para tanto, a Inquisição operou a transformação, algo arbitrária, de vários pecados em divergências em matérias de fé que poderiam esconder doutrinas heréticas50. No caso da 45. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. p. 146-147. 46. FIGARI, Carlos. @s outr@s cariocas. p. 60. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. p. 146. 47. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. p. 147. 48. MOTT, Luiz. Sodomia não é heresia: dissidência moral e contracultura. In: VAINFAS, Ronaldo; FEITLER, Bruno; LAGE, Lana. (Org.). A Inquisição em xeque: Temas, controvérsias, estudos de caso, Rio de Janeiro, EdUERJ, 2006, p. 253-266. 49. VAINFAS, Ronaldo. Inquisição como fábrica de hereges: os sodomitas foram exceção?. In: VAINFAS, Ronaldo; FEITLER, Bruno; LAGE, Lana. (Org.). A Inquisição em xeque: Temas, controvérsias, estudos de caso, Rio de Janeiro, EdUERJ, 2006, p. 267-280. 50. ______. Inquisição como fábrica de hereges: os sodomitas foram exceção? p. 269-270.

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sodomia, as dúvidas sobre o caráter herético ou não dos pecadores eram somadas às dúvidas sobre o que constituía o pecado em si, uma vez que a ambiguidade do termo (entre a condenação ao sexo anal ou ao homoerotismo) não fora tampouco sanada51. Destarte, no momento da vinda do visitador Heitor Furtado de Mendonça à América Portuguesa, o Santo Ofício tinha mais dúvidas do que certezas em se tratando da sodomia. Embora sua forma mais perfeita, grave e abjeta fosse a penetração anal entre dois homens com ejaculação interna, ela também envolvia, de um lado, a cópula anal entre homem e mulher, a sodomia dita imperfeita, e o sexo entre duas mulheres, chamada sodomia foeminarum. De fato, Heitor Furtado ouviu denúncias, confissões e instaurou processos contra réus das três modalidades de sodomia. Neste contexto, torna-se difícil julgar que alguém como padre Frutuoso Álvares pudesse ter construído para si uma identidade centrada nos furtivos encontros homoeróticos que manteve, ao longo de várias décadas, com inúmeros rapazes. Se o conceito de sodomia era impreciso para os eruditos inquisidores, para o entendimento popular, não o era menos. Se para os moralistas herdeiros da tradição escolástica a cópula anal era a marca maior da sodomia, para as pessoas comuns, os sodomitas eram identificados principalmente por assumirem comportamentos atribuídos mais frequentemente às mulheres52. Ou seja, na cultura popular, a sodomia era caracterizada pela inversão performativa das marcas de gênero, confundindo a masculinidade e a feminilidade, desestabilizando-nas. Todavia, os contatos entre a cultura popular e a tradição escolástica — promovidos pela própria Inquisição por meio dos autos-de-fé, das leituras públicas das sentenças e pela publicação dos éditos e dos monitórios — fizeram com que o sexo anal também fosse reconhecido popularmente como símbolo da sodomia53. O padre Frutuoso Álvares fez longa confissão no período da Graça, porém, por não ter confessado todos as cópulas sodomíticas mantidas com o jovem Jerônimo Parada, foi instaurado processo contra ele pelo visitador. Jeronimo era estudante e contava 17 anos quando se apresentou, sem ser chamado, a Heitor Furtado de Mendonça para confessar suas culpas. O jovem baiano era filho de Domingos Lopez, carpinteiro de ofício, e de Lianor Viegas, todos moradores na cidade da Bahia54.

51. VAINFAS, Ronaldo. Inquisição como fábrica de hereges: os sodomitas foram exceção? p. 275-279. 52. ______. Trópico dos Pecados. p. 147-151. 53. ______. Trópico dos Pecados. p.148-149. 54. Processo do Padre Frutuoso Álvares, PT-TT-TSO/IL/28/5846, páginas 11-12.

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Em sua confissão, feita a 17 de agosto de 1591, descreveu o início de seu relacionamento com o padre Frutuoso, que logo evoluiu para trocas eróticas entre eles. O primeiro encontro carnal entre eles se deu em um domingo de Páscoa dois ou três anos antes — portanto em 1588 ou 1589 - em que Jeronimo foi a casa do padre. A razão da visita não foi dita, apenas que o sacerdote era amigo do pai e do irmão (e, como dirá a frente, de seu avô). Conversando os dois, logo o padre começou a dizer-lhe palavras meigas, elogiando-o como estava gordo (seria inadequado imaginar o jovem enrubescendo com os elogios do velho vigário?). Das palavras, o sodomítico padre passou à ação, logo procurando tocar o pênis do rapaz e tornando-o ereto (“e lle meteo a maõ pelos calções e lle apalpou a sua natura alvoracandollo com a maõ”55). Estando Jeronimo neste estado, não perdeu tempo Frutuoso em levá-lo para o quarto, onde deitaram-se na cama e, ajuntando suas naturas uma com a outra, masturbou-as ambas o padre. No entanto, segundo Jeronimo, desta feita nenhum deles tiveram polução — talvez por ter sido a primeira vez56. O segundo encontro dos amantes também foi na casa do padre Frutuoso, em uma ocasião em que Jeronimo precisou pernoitar em Matoim e para isso se abrigou na casa do vigário. Repetiram-se as carícias da primeira vez e novamente não houve ejaculação de nenhuma das partes57. Muitos dias depois, foi a vez de Frutuoso se deslocar a cidade da Bahia, onde se hospedou na casa do avô de seu jovem amante. Quando ficaram a sós, o sacerdote logo convidou Jeronimo a fazerem como das outras vezes. Desta feita, contudo, o jovem se negou. Negativa logo contornada pelo padre através da oferta de dois vinténs58. Vencida a resistência de Jeronimo, passaram os amantes às carícias, e, desta vez, foram além de tocamentos desonestos, pois o djtto clerygo Se dejtou cõ a barriga pera bayxo e djxe aelle cõfeSsante que Se pusesse Em cjma delle e aSsim o feZ E dormjo com o djtto clerjgo carnal mente por detrás conSumando o peccado de Sodomja metendo Seu membro deShonesto pello vaso traZejro do clerigo Como hum home faZ com huã moller moller pello vaso natural por diante E este peccado consumou tendo polução.59

55. PT-TT-TSO/IL/28/5846, página 13. 56. PT-TT-TSO/IL/28/5846, página 13. 57. PT-TT-TSO/IL/28/5846, página 14. 58. Pode-se ver aqui a exploração da miséria, típica de sociedades de Antigo Regime, que Vainfas identificou como característica das relações sodomíticas. VAINFAS, Ronaldo. Inquisição como fábrica de hereges: os sodomitas foram exceção? p. 121-122. 59. PT-TT-TSO/IL/28/5846, páginas 15-16.

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Estava consumado o nefando pecado da sodomia e, por força do demônio e fraqueza da Carne, consumada perfeitamente com ejaculação intra vas por parte do jovem Jeronimo da Parada. Como foi dito, a confissão de Jeronimo da Parada dificultou a situação do padre Frutuoso Álvares perante o Santo Ofício, pois esta cópula sodomítica não foi confessada por ele no Tempo da Graça. Foi somente em seu segundo depoimento a Heitor Furtado de Mendonça (feita a sete de julho de 1593) que o vigário assumiu esta culpa, pedindo misericórdia ao visitador60. Misericordiosa de fato foi a sentença emitida pelo visitador a 21 de julho de 1593. A sodomia era um crime gravíssimo nos regimentos da Inquisição e nas Ordenações do Reino. Era equiparado ao crime de lesa-majestade e o condenado poderia até mesmo ser relaxado ao braço secular para ser queimado vivo na fogueira. De acordo com as Ordenações Afonsinas, Sobre todosllos peccados bem parece Seer mais torpe, çujo, e desonesto o peccado da Sodomia, e nom he achado outro tam avorrecido ante DEOS, e o mundo, (...) E Segundo diSSerom os naturaes, Soomente fallando os homees em elle Sem outro algum auto, tam grande he o Seu avorrecimento, que o aar ho nom pode Soffrer, mais naturalmente, he corrumpido, e perde sua natural virtude. E ainda Se lee, que por eSte peccado lançou DEOS o deluvio Sobre a terra, quando mando a Noé fazer huã Arca, em que eScapaSSe el, e toda Sua geeraçom, per que reformou o mundo de novo; e por eSte peccado Soverteo as Cidades de Sodoma, e Gomorra, (...); e por este peccado foi estroida a Hordem do Templo per toda a ChriStandade em hum dia. E porque Segundo a qualidade do peccado, aSSy deve gravemente Seer punido: porem Mandamos, e poemos por Ley geral, que todo homem, que tal peccado fezes, per qualquer guiSa que Seer poSSa, Seja queimado, e feito per fogo em poo, e por tal que já nunca de Seu corpo, e Sepultura poSSa Seer ouvida memoria.61

O padre Frutuoso Álvares estava, portanto, diante da fogueira quando sua sentença foi emitida — aliás, como estavam todos os sodomitas portugueses62. No texto 60. PT-TT-TSO/IL/28/5846, páginas 23-26. 61. Ordenações afonsinas, Livro V, título XVII, Dos que cometem peccado de Sodomia. Disponível em: . 62. Não obstante a severa legislação repressiva, Luiz Mott argumenta que a Inquisição portuguesa foi bastante menos rigorosa com os sodomitas que suas congêneres espanholas e mesmo que tribunais civis nos reinos protestantes. Enquanto a Inquisição portuguesa, entre os séculos XVI e XVII, queimou por volta de 30 sodomitas (não tendo condenado nenhum à fogueira no século XVIII), a Inquisição de Saragoça queimou 15 sodomitas só no século XVI, enquanto em Genebra 31

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de sua sentença foi recapitulada sua confissão no Tempo da Graça, expondo suas várias culpas e, ao mesmo tempo, sua trajetória de vida63. Caso ocorresse leitura pública da sentença (o que não foi o caso), a humilhação do réu seria maior e o povo teria a oportunidade de saber quais crimes conduziram-no àquela situação de opróbio — e quais condutas deveriam ser evitadas, pois, para não ocupar futuramente o lugar de réu estigmatizado. Ainda que sua confissão na Graça tenha sido considerada diminuta64, o padre Frutuoso Álvares gozou da misericórdia e da complacência do visitador, no que pesaram sua idade avançada, sua condição de clérigo e cura das almas e ter feito longa, ainda que não inteira, confissão no período da graça. Foi, pois, condenado no modo seguinte. O cõdenaõ Em Suspem Saçaõ das ordens por tempo de cjnquo meSes Somente, et Em vjnte CruZados pera as despeSas dosanto offjcio e lle maõdaõ que cupra mais as penjtencjas espirjtuais Segujntes prjmejramente ConfeSsar Se a de ConfiSsaõ geral de toda Sua vjda a hum comfeSsor Letrado e docto que lle Sera nomeado nesta meSa pera lle curar Sua alma E despois disto ConfeSsar Ses, e cõmungar a de cõ Sello Sello de Seu cõfeSsor Em cada hum dos cjmquo meses de Sua SuspenSasaõ e reZar a mais cjnquo VeZes os Psalmos penjtencyais cõ Suas Ledajnhas e preÇes de Joellos (...).65

Condenado à suspensão das ordens sacras por cinco meses, a pagar 20 cruzados como custas do processo, a penitências espirituais e à confissão geral, o padre Frutuoso Álvares logo tratou de realizar a confissão, o que fez no dia 7 de agosto de 1593 (sendo que sua sentença foi publicada apenas no dia 2 do mesmo mês) ao padre frei Damião Cordeiro, indicado pelo visitador66. Estava o pároco talvez ansioso por livrar sua consciência e salvar sua alma, ou quem sabe apenas queria demonstrar ao visitador sua obediência e submissão ao tribunal? Não é possível saber, embora as opções não sejam excludentes. Essas são as últimas informações presente no documento sobre o aventuroso padre Frutuoso Álvares. Ao historiador fica a dúvida se ele terá acatado a advertência de Heitor Furtado de Mendonça de se afastar das práticas torpes que tantas vezes o conduziram às barras dos tribunais (no Reino, em Cabo Verde e na Bahia) foram executados entre 1444 e 1789 e, na Holanda, somente em um julgamento entre 1730 e 1732, 70 sodomitas foram executados. MOTT, Luiz. Pagode português: A subcultura gay em Portugal nos tempos inquisitoriais. p. 122-123. 63. PT-TT-TSO/IL/28/5846, páginas 31-34. 64. PT-TT-TSO/IL/28/5846, página 35. 65. PT-TT-TSO/IL/28/5846, páginas 38-39. 66. PT-TT-TSO/IL/28/5846, página 41.

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ou se, tão logo embarcou o visitador para Pernambuco, respirou aliviado o sacerdote e reiniciou a trocar tocamentos, abraços, beijos com os jovens de sua freguesia, deleitando-se ao permitir que eles o sodomizassem. A história de vida de Frutuoso talvez reforce a segunda opção, pois até seus 68 anos, nenhum juiz ou confessor conseguira salvar sua alma, retirando-lhe o gosto pelo pecado nefando. A dúvida do historiador é ainda mais profunda. Pode ser dito que o padre era homossexual? Em nenhum momento de suas confissões pareceu ele dar mais sentido aos seus atos com tantos jovens que não lhes sabia mais os nomes que não o prazer sentido por sua Carne e a culpa por sua alma e consciência. Em seu cotidiano, tampouco, e pelo que se pode vislumbrar por seus relatos, vivia ele de modo que seu gênero, perfomativamente reiterado em cada ato e em cada momento de sua existência, destoasse daqueles de outros homens em condições análogas — daí suas amizades duradouras com vários homens, eles próprios senhores viris em suas casas. As práticas eróticas do padre Frutuoso Álvares parecem surgir mais como desvios morais que, pesando-lhe na consciência como pecados que ele sabia que eram, não os podia evitar, pois fraca era a Carne perante os artifícios do mal. O vigário do Matoim, destarte, parecia antes assumir seus pecados do que uma identidade sexual que, aliás, dificilmente existia cultural e socialmente para tal. Não se pretende aqui que o caso do Padre Frutuoso Álvares imponha uma regra à complexa questão que envolve a sodomia e ao debate aberto entre essencialistas e construcionistas. O objetivo levado aqui a cabo foi não mais que demonstrar como o instrumental da Teoria Queer, notadamente o conceito de performatividade de gênero, pode lançar novas luzes sobre o problema, ao cruzar sua dimensão erótica com a problemática da constituição discursiva e performativa dos gêneros na Época Moderna. O vasto universo das fontes estimula a continuidade da discussão já milenar acerca da sodomia. A única conclusão necessária, neste momento, é a recusa da persistência do nefando silenciamento a que eram condenados os sodomitas pelos inquisidores e pelo braço secular. Considerando-os integrantes de uma essência universal da homossexualidade ou amantes homoeróticos obstinados em pecar contra a natureza, a pesquisa histórica tem o dever ético e político de, a partir dos documentos, recuperar amores, toques e penetrações que o calor das fogueiras não pode mais reduzir a pó.

Documento Trecho (Sentença) do Processo do Padre Frutuoso Alvares. Disponível no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo 5846. Código de referência: PT/TT/TSO-IL/028/05846.

Data 7 de julho a 7 de agosto de 1593

Resumo Sentença do processo do padre Frutuoso Alvarez, condenado por sodomia pelo Tribunal do Santo Ofício em visitação na Bahia. O documento, além de descrever a sentença, faz uma breve síntese da acusação, mostrando que o dito padre é reincidente no pecado de sodomia, tendo sido condenado não só no Brasil, mas também em Portugal e Cabo Verde por sodomia e “tocamentos torpes” com inúmeros “moços e mancebos”.

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1 Sentença

2 Acordaõ o bisitador1 Apostolico 3 do sancto offjcjo o Ordinarjo et 4 assessores que uistos estes Autos 5 e proua nelles dada contra 6 o Padre fructuosso Aluareß Cristaõ 7 belho natural de braga ujgario 8 de nossa Senhora da piedade de 9 matoim Reo que presente esta 10 Mostrase que no tempo da gra 11 ça, ueo a esta mesa e Reçebeo 12 Juramento sob cargo do qual Cõ 13 fessou suas culpas .§. que de qujnze 14 annos ate entaõ que auja que 15 estaua nesta Capitanja Come 16 teo as torpeßas2 dos tocamentos 17 torpes i deshonestos com al 18 guñs

1. É frequente neste documento a troca das letras ramistas, sobretudo “v” por “b”, “i” por ”j” e “u” por “v”. Como exemplo temos “bisitador” e não “visitador”, “offjcjo” e não “ofício” e “ujgario” e não vigário. 2. Não raras vezes o notário utiliza a letra ß (eszett) com função de “z”.

[fl. 16v] 1 guñs quarenta mançebos e moços 2 tocando com suas maõs suas 3 Naturas, et ajuntandoas com a sua 4 e auendo alguãs ueßes polucaõ 5 dos compliçes, e abraçandoos, et 6 bejjandoos, e tendo congresso por 7 djante, com alguñs, ajuntando 8 seus membros deshonestos, e dor 9 mjndo com alguñs delles na ca 10 ma alguãs ueßes, tendo com 11 elles cometimentos pelos seus 12 basos traßejros sendo ele o agente 13 e consentindo tambem que elles 14 ho temtassem no seu uaso traßejro 15 com seus membros deshonestos 16 sendo elle tambem pacjente fasen 17 do tambem da sua parte por efej 18 tuar

[fl. 17] 1 tuar ho horrendo e nefando pecca 2 do de sodomja posto que nunca 3 ho efejtuou penetrando e assim 4 Comfessou mais que em bragua 5 há mais de ujnte annos consumou 6 ho ditto peccado de sodomja com 7 hum moço e teue os dittos tocamẽ 8 tos torpes com outros pellos qua 9 is cassos foj na djtta Cjdade de 10 braga denuncjado perante o or 11 djnarjo e por elle foj condenado 12 em degredo pera as galles e sem 13 Comprir, o tal degredo se foj pera 14 a ylha do cabo uerde onde tambem 15 foj accusado por tocamentos 16 torpes que teue com dous man 17 cebos pellas quais Culpas e por 18 apresẽtar

[fl. 17v] 1 apresentar huã demjssorja falsa 2 foj emujado presso a Lixboa on 3 de foj condenado em degredo 4 perpetuo pera este brasil, e des 5 pois que esta nesta Capitanja 6 foj accusado e e denuncjado jaa 7 por estes mesmos peccados e toca 8 mentos torpes, e deshonestos, com 9 djfferentes moços, e mançebos, 10 perante o ordjnarjo tres ueßes 11 das quais, as prjmejras duas 12 ueßes que foj accusado, e denun 13 cjado, sahio absoluto por naõ 14 hauer porua bastante contra 15 elle e a tercejra ueß sahio con 16 denado em djnhejro, et em sus 17 pensasaõ das ordeñs por certo 18 tempo

[fl. 18] 1 tempo que ja lhe foj leuantado 2 A qual sobre ditta confissaõ que 3 ho ditto Reo feß nesta mesa no 4 tempo da graça he demjnuta 5 e naõ he Jntejra porque nella 6 dejxou de confessar a culpa ma 7 is prjncjpal e substancjal de 8 que elle foj delato nesta mesa 9 a qual he elle auera ora tres 10 ou quatro annos, ou cjnquo que 11 elle Reo selançou na cama com 12 hum mançebo e Lancandose elle 13 Reo com a barriga pera baẏxo se 14 pos en cjma delle — o ditto mançebo 15 e cõsumaraõ ho horrendo e nefan 16 do peccado de sodomja cõ efejto 17 sendo

[fl. 18v] 1 sendo elle Reo pacjente e posto que 2 o Reo djga na sua prjmejra sessaõ 3 sendo ja perguntado em juißo que 4 eh uerdade que feß o djtto pecca 5 do de sodomja a djtta ueß consuma 6 damente, mas que lhe esqueçeo de ho 7 confessar na djtta cõnfissaõ do tẽpo 8 da graça pareçelhe que lhe não de 9 uja esqueçer pois era acto de culpa 10 consumada tam graue e lhe lem 11 braraõ as outras torpeßas menos 12 graues e mais antiguas. Pello que 13 pois na ditta sua comfissaõ foj de 14 menuto e naõ confessou Jntejra 15 mente todas as culpas de que fez 16 delato mas dejxou ou a mais graue 17 e prjncjpal perdeo, o benefficjo da 18 graça

[fl.19] 1 graça que alcaçara se fißera con 2 fissaõ Jntejra. O que todo ujsto 3 e o mais que destes autos cõsta 4 e o Reo fez tam usejro, e costumej 5 ro a cometer os djttos peccados 6 sendo tantas ueßes Ja accusado 7 e condenado por elles em portu 8 gual, e no cabo uerde, e neste 9 brasil, e ser de ẏdade de seSenta 10 e ojto annos, e saçerdote e cura 11 de almas, e mostrar tam pouco 12 cujdado de sua saluaçaõ que ha 13 tam poucos annos que feß o djtto 14 peccado de sodomja desta bahia 15 porem respejtando a o Reo na 16 prjmejra sessaõ sendo pergũtado 17 confessar a djtta culpa ne 18 fanda

[fl.19v] 1 fanda de que foj dellato, e 1 fez uijdo 2 na graça comfessar as outras tor 3 peßas sen ser chamado e a outras 4 mais consideraçoĩs pias que se 5 tiueraõ querendo usar cõ elle de 6 mujta misericórdia o cõdenaõ em suspem 7 sação das ordeñs por tempo de 8 cjnquo meses somente et em ujnte 9 Crußados pera as despesas do santo offjcio 10 e lhe maõdão que cupra mais as 11 penjtencjas espirjtuais segujntes 12 prjmejramente confessarsea de 13 confissaõ geral de toda sua ujda 14 a hum comfessor letrado e docto que 15 lhe sera nomeado nesta mesa pera 16 lhe curar sua alma e despois disto 17 confessarsea, et cõmungara de cõ 18 selho

1. Elemento interlinear

[fl.20] 1 selho de seu cõfessor em cada hum dos 2 cjmquo meses de sua suspensasaõ 3 e reßara mais cjnquo ueßes os psal 4 mos penjtencjais cõ suas ledaynhas 5 e preçes de joelhos, e o amoestaõ que 6 naõ faça mais semelhantes peccados 7 e torpeßas, e se emmende faßendo 8 uida mujto exemplar pera tirar 9 o escandallo que tem dado porque 10 cahindo mais nas dittas culpas 11 sera mais asperamente castigado 12 com todo rjgor de justiça e pague 13 as custas dada nesta cjdade do 14 saluador na mesa da santa Jm 15 qujsiçam a ujnte e hum de julho de 16 mjl e qujnhẽtos e nouenta e tres 17 Heitor furtado de mendoça

[fl. 20v] 1 publicada foj a sentença atras ao Reo 2 nesta mesa estando nella o Senhor ujsitador 3 e o senhor bispo e os padres assessores e os offi 4 cjais foraõ testemunhas e asignara aquj cõ o Reo 5 aos dous djas de agosto de 93 na bahia 6 Manoel Francisco notario do santo offjcio nesta ujsitacaõ 7 o escreuj frutozo aluarez 8 Francisco deGouuea 9 Aluaro Lemos[?] boas[?] Barboza 10 gaspar de crasto [?] 11 publicada foj esta sentença na mesa 12 perante o senhor bisitador Bispo, e asseso 13 re e officjais aos dous djias do mes 14 de agosto de 93 Manoel francisco notario 15 do santo offjcio nesta ujsitaçaõ o escreuj.

Marcus Vinícius Duque Neves Mestre em História pela UFMG

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Considerações técnicas sobre o documento apresentado O trecho de documento apresentado para o exercício de paleografia se compõe das quatro primeiras páginas de uma réplica à apelação a um Embargo interposto, no ano de 1849, ao juízo da Comarca de Santa Bárbara, versando sobre a invasão de uma lavra aurífera ativa, por grupo de mineradores, na Fazenda da Barra - Lavra da Tartaruga — entre os municípios de Santa Bárbara e Caeté. Tal documento se encontra no Arquivo Municipal de Santa Bárbara, arquivado na caixa de número 631. O proprietário da lavra aurífera e da Fazenda da Barra, onde tal lavra se situava, era o Capitão José de Aguiar Leite Mendonça Vasconcellos, de tradicional família da região que as detinham desde meados do século XVIII. Os invasores foram comandados por Eufrázio Pereira da Silva, que encabeça como réu, entre vários outros seus comparsas, o pedido de reintegração de posse e o Embargo. O documento é escrito em letra cursiva típica da caligrafia setecentista e oitocentista, inclinada à direita, com “esses” dobrados (“ss”) diferenciados, o primeiro 1. APMSB — Arquivo Público Municipal de Santa Bárbara — MG. Ação de Embargos. Autor: Capitão José de Aguiar Leite Mendonça Vasconcellos e sua mulher. Réus: Eufrázio Pereira da Silva e outros. Cx. 63.

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maior que o segundo; “erres” (“rr”) inclinados parecidos com os “esses” das caligrafias do século XX; maiúsculas estilizadas; voltas largas em letras como o “g” e o “j”; letra “t” com corte pequeno, por vezes quase imperceptível; letras maiúsculas por vezes separadas do resto da palavra, enquanto algumas palavras que deveriam estar separadas foram escritas em continuidade, sem a retirada da pena ou caneta do suporte; grafia de algumas palavras com consoantes como o “l”, dobradas; diversas palavras escritas da forma antiga usual para o século XIX; conjugação verbal do “ão” e do “am” de forma usual para o mesmo período (ao contrário da regra atual); abreviaturas de uso jurídico, padrão do período em questão: estas são, em linhas gerais, as principais características da caligrafia presente. Esse padrão caligráfico não apresenta grande dificuldade ao paleógrafo principiante, já que o documento se apresentou bem conservado e conseguimos uma boa qualidade das fotografias. Porém, apresenta maiores desafios pelos estilos da escrita, pelos termos técnicos e pela compreensão do conjunto, exigindo, em diversos trechos, leituras e releituras atentas, apresentando ao paleógrafo a oportunidade de exercitar e desenvolver sua visão de conjunto e síntese na prática paleográfica, para além da mera observação atenta das palavras isoladas. A redação formal e apropriada ao exercício peticional junto ao Judiciário, conforme as regras e estilos de época, pode causar alguma dificuldade com abreviaturas, termos específicos e a intercalação de citação das folhas de outras peças juntas ao mesmo processo (fls). Entre os termos específicos da atividade jurídica que se apresentam nas quatro páginas iniciais do documento estão os seguintes: Embargos; esbulhados; efeito devolutivo; extravagantes (embargos); impugnados; apelação; Juízo da Superintendência; Guarda-mor; adjutório. Entre as abreviações temos as que se apresentam com sobrescrito de algumas letras finais de palavras compridas ou de uso reiterado, entre as quais se sobressaem duas que se assemelham e devem ser alvo de atenção: “Suppes” e “Suppdos”, que significam Suplicantes e Suplicados respectivamente, termos que designam as partes de uma apelação ou recurso. Apesar dessas palavras e abreviações serem facilmente reconhecíveis por historiadores com experiência em documentos cartoriais, não o são para o paleógrafo iniciante. Para o paleógrafo que irá trabalhar com esse tipo de documentação reiteradamente, o ideal é que se acostume com termos técnicos pelo uso constante de dicionários comuns e jurídicos durante o processo de transcrição, para evitar possíveis enganos, já que muitos termos jurídicos se parecem com outras palavras de uso mais comum na língua portuguesa.

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Singularidade e importância do documento O conflito em torno da propriedade de jazidas auríferas e de sua exploração durante o século XIX é mais comum do que se supõe comumente, já que é da formação geral dos historiadores de Minas Geris a leitura de inúmeros documentos e obras históricas que salientam o fim da riqueza aurífera em Minas Gerais ainda nos finais do século XVIII. Porém, para quem estuda os documentos sobre propriedade e conflitos de mineração no século XIX se descortina um panorama um pouco diverso: ainda que a abundância aurífera tenha terminado, com o virtual esgotamento ou destruição de aluviões e jazidas, a mineração aurífera esteve longe de desaparecer durante o século XIX, tanto como empreendimento de mineradores em tempo integral, de fazendeiros (muitos mineradores em tempo parcial), quanto de Companhias nacionais, mistas ou estrangeiras. Contudo, não é aqui o lugar, nem o momento, para discutir esse problema historiográfico em detalhes. Para entender a importância do documento apresentado é necessário compreender que as lacunas documentais sobre as explorações auríferas do século XIX em Minas Gerais são fruto de singularidades políticas e culturais, não da inexistência de jazidas sendo exploradas ativamente. Entre essas singularidades estão duas principais ocorrências: um acordo político entre os políticos mineiros (em sua grande maioria grandes proprietários) e o Príncipe Regente Pedro — depois, Imperador Pedro I — que em sua viagem às Minas em 1822 deu autonomia total aos proprietários em troca de apoio político para a guerra de independência e a reafirmação desse acordo sete anos depois, em um Decreto de 27 de janeiro de 1829; e em segundo lugar, o absenteísmo e práticas administrativas “frouxas” ou arcaicas dos fazendeiros do centro de Minas Gerais no século XIX, que em quase a totalidade dos casos não mantiveram registros contábeis ou de qualquer outra natureza sobre suas atividades, tanto por tradições sobre o entendimento da natureza das funções das elites proprietárias como pelo medo de caírem nas mãos dos poderes públicos e serem usados para fins tributários2. Um conflito de mineração que chegue ao Judiciário da época, como o que se apresenta no documento em questão, expõe à nossa análise mudanças e permanências entre os séculos XVIII e XIX para além de um conflito pontual. O documento descortina conflitos de competências na fiscalização da mineração que existiam no século XVIII e persistiram no século XIX; insinua redes clientelares e redes de 2. NEVES, Marcus Vinícius Duque. Modernizações, projetos econômicos e percepções locais: Mineração e siderurgia em Minas Gerais (1850-1921). Dissertação. (Mestrado em História). Universidade Federal de Minas Gerais. Belo, PPGHIS/FAFICH, Horizonte, 2010. MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal 1750-1808. 5ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

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sociabilidade divergentes em conflito, com uma família tradicional de proprietários em oposição a um grupo de menor poder ligado, porém, a outra tradicional estrutura de trocas de favores; descortina que a queda da produção aurífera pode não ter arrefecido as vontades em buscar essa riqueza muitas e muitas décadas depois, mantendo latentes oposições que estouravam em conflitos sempre que uma exploração antiga ou nova parecia dar lucros. Outro aspecto que nos interessa é o contexto econômico de Minas Gerais em meados do século XIX: ocorria então uma aceleração das dinâmicas econômicas que se refletia em um otimismo aos empreendedores dos mais diversos tipos, com aumento das exportações e grande frenesi legislativo com a produção de extensa legislação, promulgada no ano seguinte de 1850, com o novo Código Comercial, a Lei de Terras e diversas outras. A Lei de Terras, em particular, tinha como objetivo impedir ou dificultar a aquisição de propriedades por trabalhadores livres, tendo em vista a substituição gradual da força de trabalho escrava pelo trabalho livre. O tipo de conflito narrado pode ter relação com a ascensão e maior ação desse segmento de trabalhadores livres que aumentava em certos lugares da Província3.

Litígios de mineração, direito e práticas administrativas: precedentes São das Ordenações Filipinas os primeiros dispositivos legais sobre mineração no Portugal moderno, que lançaram, por meio de seus dispositivos, as bases constitutivas dos privilégios e da organização administrativa e fiscal para essa atividade. Porém, o fizeram em um momento anterior às grandes descobertas minerais na América Portuguesa. Com a vinda dos ibéricos às Américas, e em momento posterior, com a junção dos reinos espanhol e português sobre o Rei Felipe I (II na Espanha), mas principalmente durante o reinado de seus sucessores, Felipe II (III na Espanha) e Felipe III (IV na Espanha), a evolução dos acontecimentos nas colônias ibéricas fez editar novas Ordenações e modificações graduais às Ordenações existentes. Com a independência portuguesa sob a nova Casa Real de Bragança, a exploração mineral no Brasil mostra novas realidades, provocando mudanças através de alvarás, regimentos e bandos (modos de editar legislação de caráter regulamentar) que buscam resolver problemas de diversos tipos apontados na mineração e sua fiscalização nas

3. FREYRE, Gilberto. Vida Social no Brasil nos meados do século XIX. 4ª ed. São Paulo: Editora Global, 2008. SILVA, Lígia Osório. Terras Devolutas e Latifúndio: efeitos da lei de 1850. 2ª edição. Campinas: Editora Unicamp, 2008. pp. 181 e ss. MOTTA, Márcia Maria Menendes. Direito à terra no Brasil: a gestação do conflito, 1795-1824. São Paulo: Alameda, 2009.

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terras luso-brasileiras, nos períodos dos reis portugueses D. Pedro II (12/09/1693 a 09/12/1706) e D. João V (1/1/1707 a 31/07/1750)4. Nesse incerto período, devido às vicissitudes e problemas de um Império que se expandiu e esgarçou seu tecido humano e institucional ao máximo, os alvarás, regimentos e bandos são editados, de tempos em tempos, no intuito de dotar a atividade de mineração de autonomia e também tendo em vista, por outro lado, lhe impor a melhor fiscalização possível5. Tal fiscalização era composta por linhas de confiança, fios de sociabilidade e fios de sujeição que se cruzavam dentro desse tecido complexo, por vezes sujeito a romper-se em pontos não visíveis ou nas bordas distantes. Pode parecer que à Coroa os quintos estariam razoavelmente assegurados, desde que a fiscalização estivesse sob a autoridade de Reinóis de confiança, mas ao longo do XVIII essa percepção sofreu diversos impactos. A falta de indivíduos de formação, caráter e perfil para ocupar os principais cargos fiscais torna cada vez mais clara a incapacidade de conter os descaminhos. Entre os boatos e notícias de ouro e diamantes brasileiros contrabandeados que chegam a portos holandeses, ingleses e praças europeias, outros indícios dos extravios e contrabandos são recolhidos pelas autoridades nos territórios coloniais6. Portugal, com um Império construído desde o início em associação com grandes fortunas particulares, teve que ceder mais uma vez a aumentar a participação dos seus “associados necessários” para institucionalizar o que já ocorria na prática: dividir os lucros e prejuízos da exploração mineral de modo mais equitativo com seus funcionários, especialistas ou nomeados ad hoc, que na prática eram quase integralmente particulares interessados na mineração diretamente ou que a praticavam por meio de outrem, usando de redes familiares e associativas, apesar das proibições legais7.

4. ALMEIDA, Candido Mendes de. Codigo Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal recopiladas por mandado D’El Rey D. Philippe I. Tomo II. 14ª ed. Rio de Janeiro: Typographia do Instituto Philomathico, 1870. FERREIRA, Francisco Ignácio. Repertório Jurídico Mineiro: Consolidação alfabética e cronológica de todas as disposições sobre minas, compreendendo a legislação antiga e moderna de Portugal e do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1884. 5. HESPANHA, Antonio Manuel, História de Portugal Moderno — político e institucional. Lisboa: Universidade Aberta, 1995. 6. ANDRADE, Francisco Eduardo de. Com pés sobre as minas se devem decidir: poderes dos oficiais da minas do ouro, sul da América portuguesa. 87-108. In: ANTUNES, Álvaro de Araújo & SILVEIRA, Marco Antonio. (orgs.) Dimensões do poder em Minas (séculos XVIII e XIX). Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2012. 7. ARQUIVO NACIONAL. Fiscais e Meirinhos: a administração no Brasil Colonial. Coordenação Graça Salgado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

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Assim, os regimentos (a partir de 1702) obrigam aos fiscais e autoridades a trocar seus proventos, pagos pela Coroa, por direitos de exploração, em todos os cargos de fiscalização, menos o de Superintendente, este ainda remunerado na tentativa de manter olhos e bocas isentas não dominados pela “febre do ouro” que contaminava os fiscais mais próximos aos mineradores, que enriqueciam, por vezes, de forma espetacular e repentina8. A estrutura de fiscalização era muito ineficiente para apurar o real montante do ouro que as lavras produziam, já que a maior parte dessa fiscalização se limitava às “posses visíveis” dos mineradores, que eram as demarcações no terreno, para que não houvesse o “jogo de empurra” comum entre os mineradores de lavras confrontantes. Até 1702 o cargo máximo da estrutura de fiscalização da mineração era o de Administrador/Provedor das Minas, que foi substituído pelo de Superintendente com funções similares. Outros cargos que já existiam ou que foram criados durante a modernização da legislação foram: Tesoureiro; Escrivão/Provedor; Fiéis do tesoureiro (em número de dois); Mestres de Fundição; Oficial Mineiro Prático; Guardas (do Provedor); Guarda-Mor; Guardas-Menores; Meirinho9. Apenas alguns auxiliares técnicos: Mestres de Fundição; o Oficial Mineiro Prático e o Meirinho não tinham até 1702 entre as atribuições dos cargos a proibição explícita sobre a posse de lavras. Apenas o Superintendente ainda percebe remuneração após 170210. Independente dessa organização, a mineração era um foco de conflitos constantes e assim o foi durante todo o século XVIII. Os inúmeros bandos, regulamentos e alvarás demonstram isso, buscando regular todas as facetas do trabalho de mineração, principalmente no tocante ao acesso aos recursos e à administração da justiça, além de reiterarem diversas proibições no intuído de isolar as atividades mineradoras de tudo que a pudessem turvar. A Coroa Portuguesa parece ter confiado que administradores bem escolhidos para os cargos de Provedor, depois Superintendente, que soubessem explorar os conflitos e interesses conflitantes entre os mineradores mantivessem os descaminhos

8. EXPOSIÇÃO do Governador D. Rodrigo José de Menezes sobre o estado de decadência da Capitania de Minas Gerais e meios de remedia-lo — 1780. Revista do Arquivo Público Mineiro, Ouro Preto, v. 2, 1897. 9. ARQUIVO NACIONAL. Fiscais e Meirinhos. 10. ______. Fiscais e Meirinhos.

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em níveis baixos, utilizando-se de exemplares punições quando pelas vias da delação ou da fiscalização dos caminhos, aprendia-se algum contrabandista.

Consequências no sistema de fiscalização, após a diminuição da riqueza aurífera Como já se instituíra o fim da remuneração de certos cargos para, em teoria, instituir-se uma espécie de parceria forçada entre administradores e Coroa — que reduz os lucros de parte significativa dos mineradores que constituem a elite colonial, enquanto a Coroa insistiu em manter o nível de sua arrecadação — a primeira consequência é o aumento da desconfiança mútua entre Coroa e seus próprios fiscais. Nessa leitura, a tentativa de introduzir o sistema de captação é uma tentativa de passar a responsabilidade de grande parte do controle para os exploradores (entre os quais os administradores), evidência da necessidade (para a Coroa) de simplificar um sistema que se tornara de difícil fiscalização. Em conflito com os interesses dos administradores, a tributação começa a sofrer queda pela sonegação dos próprios administradores e abre-se mais uma rachadura no sistema político metrópole-colônia. A Inconfidência Mineira, entre outras coisas, pode ser considerada como um “termômetro” dessa oposição. A estrutura fiscal parece ter sido gradualmente corrompida nas duas décadas finais do século XVIII e na primeira década do século XIX, talvez pela própria autonomia e relações tecidas entre as novas elites “mazombas”11. A frouxidão e a leniência dos fiscais não podem ainda, porém, ser demonstradas cabalmente, já que não parece haver livros de Guarda-moria conservados em quantidade para um estudo aprofundado, nem dados fidedignos para estimar razoavelmente o número de lavras em atividade, com o detalhamento de suas atividades e produções, ainda que sejam explorações de pouca monta. Tornara-se a mineração do ouro uma atividade desinteressante? Algumas décadas depois, tal atitude desleixada não se parecia com desinteresse para o Barão de Eschwege que, ocupando o cargo de Superintendente das minas de 1812 até 1821, teve dificuldade de reunir dados sobre as explorações e colocou a culpa disso nas relações próximas entre seus próprios encarregados e os mineradores. Alguns desses subordinados de Eschwege, instados a levantar e entregar os dados detalhados de questionários que deviam preencher após entrevistar os mineradores

11. MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa.

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ignoraram solenemente seu superior de origem alemã e de caráter metódico, se negando a realizar a tarefa12. Da mesma forma, ao atuar como organizador e sócio explorador de minerações, entre a mais importante a Mina da Passagem no município de Mariana, teve experiência similar: O principal motivo de não haver conseguido auxílio algum para execução de meu plano, o principal motivo, repito, de ter sido contrariado e de ninguém interessar-se pelo meu projeto, nem mesmo pessoas que eu queria colocar na organização, logo que fosse instalada, (somente de má vontade haviam aceito, foi a organização administrativa da companhia. Com efeito, esta nem a uns deixava a esperança de poderem pescar em águas turvas, nem a outros se esqueciam de demonstrar que tudo seria feito de acordo com a lei, ao contrário do que acontecia então em todas as pequenas sociedades particulares de mineração e nos serviços em comum.13

Segundo Eschwege, a recusa em cumprir a lei, que significava informar dados que os proprietários se viam no direito de sonegar, assim como o impedimento de realizar negócios suspeitos independentemente de autorizações dos sócios, em nome da Companhia, afastavam os possíveis investidores nacionais, que desejavam liberdades e possibilidades de se manterem livres dos olhos do fisco e abertos a saírem da sociedade quando bem quisessem, além de negociar suas cotas da mesma forma.

Estruturas herdadas do período colonial, novas ideias e a “nova” magistratura As estruturas fiscais para a mineração no século XIX serão herdeiras daquelas estabelecidas no século precedente, com modificações diversas que são pouco perceptíveis na legislação, mas bem mais claras quando analisados os acordos políticos e o panorama geral que levará à Independência do Brasil e à estruturação das relações de poder na criação das monarquias de Pedro I e Pedro II, intercaladas pelo período conturbado das experiências regenciais descentralizadoras e liberais. A aparência de concessão de mercês, fruto da “sociedade do dom”, presente na repartição formal das lavras em datas que eram devidas ao descobridor, ao Rei e aos outros mineradores, e que até certo ponto justificava a cobrança dos quintos, 12. ESCHWEGE, Wilhelm L. von. Pluto Brasiliensis. Trad. de Domício de Figueiredo Murta. Vols. I. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/ Edusp, 1979. 13. _____. Pluto Brasiliensis, p. 47.

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de forma indireta, desapareceu oficialmente no Primeiro Reinado, no que toca à mineração em Minas Gerais, com o decreto de dezembro de 1829. Garantiu-se em seguida pleno direito à propriedade, pelo inciso XXII do art. 179 da Constituição de 1824. Enquanto outras práticas foram desaparecendo durante o século XIX, após o conturbado período das Regências, verdadeira experiência parlamentar, mantendo-se no Segundo Reinado, sem ameaças aos direitos adquiridos pelos proprietários até o final da década de 1860, outras se mantinham, ainda que pouco utilizadas, esperando momento mais propício. Em 1867, Dom Pedro II busca reafirmar seus direitos com lei que tenta revogar tacitamente o dispositivo de 1829 — para não afrontar diretamente os proprietários que eram o sustentáculo da monarquia em Minas — mas, sem sucesso14. Exemplo da resistência dos proprietários de terras contra os interesses régios foi a implantação do registro paroquial das terras, previsto no regulamento da Lei de Terras de 1850, e que ficou conhecido como o “Registro do Vigário”. Este poderia ter surtido efeitos sobre as explorações auríferas, em tese, por estar vigorando o Decreto de 1829 que dava o livre direito de explorá-las aos proprietários, portanto, fazendo delas, em tese, acessórias da propriedade. Porém, tal lei foi interpretada pelos juízes togados de forma muito diferente de sua intenção política: a Monarquia considerava que o poder do Padroado, dado aos reis portugueses e confirmado aos monarcas brasileiros, tornava regulares e legais os registros eclesiásticos cartoriais, como no passado era aceito com os registros de nascimentos e óbitos. Tal estrutura cartorial-eclesiástica também teria, assim, legitimidade para realizar e, portanto, com a mesma fé-pública, os registros necessários à regulamentação da lei de terras. Contudo, ao contrário, o entendimento maciço dos juristas era da sua impropriedade, ainda mais que a maior parte dos magistrados togados que tinham formação jurídica completa e ideário mais inclinado às “modernidades”, eram cada vez mais adeptos das ideias de uma estrutura cartorial e judicial leiga, escarnecendo do poder dado à igreja católica, negando validade às suas funções cartoriais, consideradas impróprias, ineptas e, com razão histórica, um resquício medieval15. A negação, pela estrutura judiciária togada, do passado jurisdicional dos poderes monárquicos — consubstanciado nas atribuições nebulosas do Poder Moderador — foi criando um movimento crescente de legalidade e legitimidade exterior aos poderes monárquicos durante o correr do século XIX, na onda da disseminação das modernas teorias políticas de substrato republicano, tornando cada vez mais contestada a ideia de um Monarca que governa em parte por conceder privilégios e mercês, 14. NEVES, Marcus Vinícius Duque. Modernizações, projetos econômicos e percepções locais. 15. SILVA, Lígia Osório. Terras Devolutas e Latifúndio, p. 181 e ss.

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ainda que na política os conservadores tivessem muito sucesso na manutenção do poder. Ainda assim a estrutura legal oriunda das tradições monárquicas subsistia, principalmente na aplicação prática de leis a contextos específicos. Na mineração a comprovação disso é o documento Manual do Guarda-Mor composto por Manuel José Pires da Silva Pontes G. M. Geral , manuscrito compilado e apresentado por Afonso Pena ao Arquivo Publico Mineiro em 1902, mas cuja data aposta, de 1870, comprova o uso dessas orientações e práticas antigas ainda nas décadas finais do século XIX16. Esse processo deve ser notado como algo de longo prazo, e a intervenção imprópria do Guarda-Mor Substituto, na lavra da tartaruga, nos anos finais da década de 1840, tem algo a dizer de uma estrutura de divisão e demarcação das datas nas lavras, cuja origem arcaica como as bases medievais do poder cartorial eclesiástico — ambos com esteios na “sociedade do dom” — eram igualmente combatidas e desautorizadas pelos magistrados togados. Tanto o Decreto de dezembro de 1829, quanto o surgimento de um grupo de magistrados de nova formação durante o século XIX, puseram em cheque as estruturas de concessão e fiscais de origem colonial e qualquer tentativa de retomada do poder Real para conhecer e tributar as explorações minerais particulares de proprietários nacionais. Porém, os cargos e a aparência dessas estruturas mantiveram suas existências dentro do quadro de manutenção de favores políticos e cooptação de grupos locais, como tradições sobreviventes da “sociedade do dom” que os monarcas brasileiros e seus aliados conservadores, durante o Primeiro e o Segundo Reinados, buscaram manter vivas ou trataram de reviver, como meio de manter-se no poder frente à crescente oposição de novas ideias políticas que se insinuavam entre grupos das elites. Entre estas coexistiam e se digladiavam o moderno e o arcaico; a tradição e a novidade17. Os direitos e costumes antigos conviviam de perto com os bacharéis que se constituíam na nova classe política, muitos deles republicanos ou abolicionistas, e que tinham como um dos naturais caminhos para a carreira política o ingresso nos quadros da magistratura, que passou cada vez mais a confrontar-se com o governo monárquico.

16. MANUAL do Guarda-Mor composto por Manuel José Pires da Silva Pontes G. M. Geral. Revista do Arquivo Público Mineiro, Ouro Preto, v. 7, p. 357-370, 1902. 17. NEVES, Marcus Vinícius Duque. Modernizações, projetos econômicos e percepções locais: Mineração e siderurgia em Minas Gerais (1850-1921). Dissertação. (Mestrado em História). Universidade Federal de Minas Gerais. Belo, PPGHIS/FAFICH, Horizonte, 2010.

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Pesquisar a história da mineração no século XIX: como processos históricos se refletem nas fontes e nos arquivos Na apresentação oral para a Oficina de Paleografia — UFMG foram focalizados os caminhos e os tipos de documentos que poderiam ser úteis às pesquisas da história das minerações do século XIX. Não citaremos aqui os fundos óbvios e mais conhecidos, acessíveis imediatamente por uma simples busca na Internet ou através de meia dúzia de obras de referência no assunto. Resumiremos aqui estas considerações ao que extrapola esse universo mais imediato de pesquisa. Em primeiro lugar, pesquisar minerações do século XIX pode se tornar uma árdua tarefa por que suas histórias nem sempre se relacionam com informações geradas dentro deste recorte temporal. Afirmamos que a manutenção de estruturas coloniais baseadas na legislação Filipina e nos regulamentos, bandos e alvarás do período colonial nos obriga a conhecê-los para entender como foram arguidos e utilizados no período seguinte, já que não revogados. A isso se acrescenta o fato que as minerações do século XIX em Minas Gerais, em grande parte, são reaberturas de antigas minerações do período colonial, e é lá que podem ser encontrados os dados iniciais que darão sentido aos acontecimentos e processos posteriores, ocorridos no século XIX, tanto da parte social quanto da parte técnica. Da mesma forma, ficou claro que as lacunas documentais sobre as minerações do século XIX são produto, em grande parte, da negativa dos proprietários de produzir documentos que tivessem o potencial de serem empregados pelo fisco ou por autoridades contra seus interesses e liberdades. Porém, se tais documentos não existem, a memória sobre muitas explorações sobreviveram algumas gerações e, em alguns casos, geraram registros a partir da República, quando a legislação mudou com a adoção do regime de acessão — onde o proprietário superficiário é o dono do subsolo e o que ele contiver — na letra do artigo 72 da Constituição Republicana de 1891. As negociações, ações judiciais e registros posteriores muitas vezes guardam linhas preciosas ditadas pelos descendentes aos advogados e funcionários públicos que as registraram, onde por vezes aparecem informações preciosas de acontecimentos, técnicas, duração das explorações, emprego de mão de obra, atividades e sucessões de proprietários durante o século XIX. As ações de demarcação e divisão de terras são especialmente ricas em informações do passado oitocentista dessas explorações. O Registro de Terras Públicas e os cartórios também são fontes muito importantes para nos apropriarmos da geografia das explorações e de informações sobre os proprietários, lembrando que no caso dos cartórios existem muitas informações importantes em livros que adentram muitas décadas do século XX. Da mesma

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forma podem ser pensados alguns periódicos especializados das décadas iniciais do século XX. Também devemos lembrar que muitos exploradores e proprietários de minerações foram longevos, falecendo apenas nas primeiras décadas do século XX. Em seus inventários e testamentos podem aparecer informações interessantíssimas e clarificadoras de dúvidas e lacunas históricas. A aceleração econômica do setor minerador, provocada pelas esperanças da reabertura das lavras e do início da extração de minérios industriais para exportação produziu farta documentação sobre as posses e propriedades pretéritas, ao necessitar da regularização legal das propriedades e sua delimitação.

Documento Trechos da Ação sobre o direito de posse da Lavra da Tartaruga entre Capitão José de Aguiar Leite Mendonça Vasconcellos e sua mulher versus Eufrázio Pereira da Silva e outros. Disponível no Arquivo Municipal de Santa Bárbara/MG. Cx. 63, 1849 — Embargos — Caethé — Santa Bárbara.

Data 6 de Junho de 1849

Resumo José de Aguiar Leite de Mendonça Vasconcellos, e sua Mulher Dona Emerenciana Claudemila Flávia afirmam serem donos por mais de vinte anos de uma lavra de minerar na Fazenda da Barra. Entretanto, em Eufrázio Pereira da Silva e outros invadiram a lavra, libertaram os trabalhadores e tomaram, à força, os serviços dos antigos donos como seus e passaram a desfrutar deles. Entrando então com uma ação para readquirir a posse da lavra, os antigos donos se queixam da demora do processo.

[fl. 69]

1 Ilustríssimo Senhor Doutor Juiz Municipal

2 Dis José de Aguiar Leite de Mendonça 3 Vasconcellos, e sua Mulher Dona Emerenciana 4 Claudemila Flávia, que sendo senhores 5 e possuidores por si á mais de vinte an6 nos, e por seos antecessores á mais de 7 Cincoenta de úm Corte de terras mine8 raes da comprehensão das da sua Fazen9 da da Barra, desfructando-a mansa e 10 pacificamente, trabalhando de m[i]neração, 11 Construindo Engenho, e os mais miste12 res para ahi extrahir o oiro, enfim13 praticando todos os actos possessorios 14 avista e face de todos, sem a menor op15 posição, ou contradição de Pessõa alguã, 16 acontecêo que em 12 de Janeiro de 1848, 17 Eufrazio Pereira da Silva, ora fallecido, 18 e outros invadirão os serviços dos Supplicantes, 19 expellirão á força os trabalhadores, que 20 ali se achavão, assenhorearão-se dos ser21 viços dos Supplicantes, e passarão a desfructa-l22 os como seos.

23 A vista de tão inaudito procedimento, 24 os Supplicantes não querendo repellir a for25 ça com a força, recorrendo aos meios 26 judiciaes, embargarão os serviços dos 27 referidos intruzos, e posteriormente pro28 poserão contra os mesmos a compe29 tente Acção para rehaverem a sua 30 Propriedade, e posse, de que havião

[fl. 69v] 1 sido violentamente esbulhados. 2 Os Supplicantes 3 suportão desde então os prejuizos resultan4 tes do expollio, que soffrerão, da cessa5 ção de seos trabalhos, e da ruina de su6 as Maquinas. etc.

7 O Embargo foi julgado subsis8 tente em 17 de Maio de 1848, e os em9 bargados intimados da Sentença a 23 10 do mesmo mez e anno, como consta dos 11 Autos respectivos a f12 e f12v.

12 Os Embargados embargarão 13 a Sentença a f14: os embargos forão im14 pugnados a f20 e f35v, sustentados a 15 f40 e f45, desprezados por segunda 16 sentença de f46 datada de 29 de novembro 17 de 1848, e intimada aos Supplicados em 4 18 de Desembro do mesmo anno, como 19 se vê nos ditos Autos a f48: os Supplicados 20 apellarão da segunda sentença em 21 7 de Desembro (f49): a appellação foi 22 recebida no effeito devolutivo somente 23 por Despacho de f57 e f57v, intimado 24 aos Supplicados, a f58: os Supplicados desistiraõ 25 da Appellação a f59 e f59v: a desistên26 cia foi julgada por sentença a f62: 27 os Supplicados vierão com segundos extra28 vagantes embargos de f64, desattendi29 dos a f66.

30

Existem pois nos Autos trez, ou

[fl. 70] 1 ou mais sentenças passadas em julgado, 2 mandando subsistir o Embargo, de 3 que se trata. 4 Acresce, que como dito fica, os Supplicantes 5 proposerão contra os Supplicados Acção ordina6 ria para rehaverem a sua Propriedade, 7 e posse, de que havião sido violentamente 8 esbulhados.

9 Esta Acção foi proposta em 6 de 10 Junho de 1849, como se vê do[s] Autos 11 respectivos e pendentes, que teem corri12 do todos os seos trammites ordinarios 13 perante este Juizo, que he ao mesmo 14 tempo o da Superintendencia, mas 15 comquanto se ache descutida de parte 16 á parte, ainda não se proferio Sen17 tença final, por terem havido repe18 tidas interrupçoẽs provenientes da 19 mudança no Pessoal dos Supplicados, e por 20 conseguinte reiteradas habelitações, 21 que tem demorado involuntariamente 22 a decizão do Pleito.

23 Os prejudicados com 24 a demora são os Supplicantes, que se achaõ 25 privados de sua propriedade, vendo 26 arruinar se as maquinas, e utensio 27 da Mineração, entretanto os Supplicados, 28 que aliás nunca requererão uma ha29 bilitação, das que tem sido necessa30 rias, que nunca promoverão o an-

[fl. 70v] 1 andamento da causa, como o mostrão os 2 Autos, são os que se apresentão queixo3 zos, fingindo atribuir a demora á 4 prepotencia dos Supplicantes, sem se lem5 brarem, que a prepotencia em tal 6 Cazo exercida por semelhante modo, 7 redundaria somente em prejuízo 8 dos Supplicantes, que são os que precizão 9 da Sentença, mandando resttituir10 lhes a propriedade e posse de suas 11 terras attentatoriamente úzurpadas 12 pelos Supplicados, que para chegarem á 13 seos fins se inculcão de posses, e 14 piquenos, sendo aliás poderozos pelo 15 numero, e pela proteção occulta, de 16 que teem disposto, para perseguirem 17 e encomodarem aos Supplicantes á seo 18 bel prazer.

19 Estando as cousas neste 20 ponto, e a questaõ toda affecta á 21 este Juizo, que he ao mesmo tempo 22 o da Superintendencia á quem com23 pete proferir as desizoẽs sobre as 24 materias contenciozas, como a de que 25 se trata, que he da mais alta indaga26 ção, dependente de discussão plenaria, 27 os Supplicados com cӱnismo espantozo, re28 correrão á um individuo, que se diz 29 Guarda mor substituto do Districto 30 da Penha do Município de Caéte, 31 requerendo absurdamente, que este 32 as ratificasse, e empossasse das vin-

[fl. 71] 1 das vinte Datas, que dizem ter no lugar 2 da questão, e esse indivíduo prompta3 mente deferio em data de 19 de Junho 4 do corrente anno, e logo no dia 22 do 5 mesmo mez e anno se apresentou 6 no lugar, metia mãos á obra, que 7 concluía á 27 do dito mez e anno, em8 possando os Supplicados do terreno, sobre 9 que versa a questaõ, digo, sobre que 10 versa o litígio, com o maior escan11 dalo, ousadia, e desrespeito das Leis, 12 que possivel he imaginar-se.

13 Os Supplicantes logo que forão citados 14 apresentarão ao tal Guarda Mor substituto 15 os Embargos, que juntos offerecem, mas 16 este com a maior obstinação, e com 17 o mais revoltante atrevimento á 18 Lei lha desattendeo, e seguio por dian19 te nos seos attentados ate consuma20 l-os, como se vê do seo despacho ex21 arado na sobredita Petição dos Supplicantes 22 offerecida por Embargos á estratégica 23 ratificação.

24 Se os Supplicados fossem sem discrepancia 25 os mesmos outr’ora embargados, e 26 não tivesse havido a escandaloza in27 tervensão, e a inqualificável adju28 torio do Guarda Mor substituto para os 29 intrometer de novo no terreno

Sobre os Organizadores

Douglas Lima de Jesus é mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduado em História pela mesma instituição (2011). Foi bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq de fevereiro de 2008 a julho de 2011 e nesse período atuou nos projetos “A mestiçagem e o universo cultural brasileiro: história, historiografia e representações” e “Africanos, crioulos e mestiços nas Minas Gerais dos século XVIII e XIX”. Atua como voluntário no CEPAMM — Centro de Estudos sobre a Presença Africana no Mundo Moderno. Faz parte dos Grupos de Pesquisa “Escravidão, mestiçagem, trânsito de culturas e globalização — séculos XV a XIX — UFMG”, liderado pelo professor Eduardo França Paiva, e “Elementos materiais da cultura e patrimônio — UFMG”, liderado pelo professor José Newton Coelho Meneses. É coordenador da Oficina de Paleografia — UFMG desde a sua fundação.

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Fabiana Léo Pereira Nascimento cursa o mestrado no Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, na linha de pesquisa em História Social da Cultura. É licenciada em História pela UFMG (2010) e em Filosofia pela PUC-Minas (2005). Participou do Programa de Mobilidade do Atlas Digital da América Lusa (LHS/UnB), projeto em que é colaboradora desde janeiro de 2012, do Conselho Editorial da revista Temporalidades (abril de 2012 a setembro de 2013) e da Comissão Organizadora do II Encontro de Pesquisa em História — EPHIS (junho de 2013). Fez parte da fundação da Oficina de Paleografia — UFMG e atua desde o primeiro semestre de 2012 como coordenadora da iniciativa.

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Gabriel Afonso Vieira Chagas é graduado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (2014). Pesquisa história de Minas Colonial, com ênfase em história da família, das elites e dos

casamentos endogâmicos. Foi bolsista de Iniciação Científica pelo CNPQ, e participa do grupo de pesquisa “História de Minas Gerais no Império luso-brasileiro no século XVIII: espaço cultura e sociedade”; também tem interesse por pesquisas na área de ensino de história, tendo desenvolvido projeto de extensão na área. Possui bom conhecimento de paleografia, tendo participado como ouvinte e coordenador da Oficina de Paleografia — UFMG desde março de 2012.

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Gislaine Gonçalves Dias Pinto é graduada e mestranda em História (UFMG), cujo trabalho tem como tema a Inquisição e os cristãos-novos. Iniciou essa pesquisa durante intercâmbio em Portugal (Universidade de Porto), em 2012. Atuou como pesquisadora do Instituto Histórico Israelita Mineiro, entre 2011 e 2014. Atualmente é bolsista CAPES pelo programa de Pós-Graduação em História da UFMG. É coordenadora da Oficina de Paleografia — UFMG desde 2013.

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Igor Tadeu Camilo Rocha é graduado e mestrando em História (UFMG), cujo trabalho tem como tema as ideias sobre tolerância religiosa investigadas a partir das fontes inquisitoriais do contexto do Iluminismo, trabalho iniciado na pesquisa de iniciação científica em 2009. Atuou como pesquisador no Arquivo Público Mineiro (2009) e participou como organizador do projeto História 50 anos (2007) e do Encontro de Pesquisa em História (EPHIS) 2014. Atualmente é bolsista FAPEMIG pelo programa de Pós-Graduação em História da UFMG. É coordenador da Oficina de Paleografia — UFMG desde a sua criação, em 2012.

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Leandro Gonçalves de Rezende é graduado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 2011. Atualmente é mestrando em História Social da Cultura no Programa de Pós Graduação em História da UFMG, com apoio da CAPES/Reuni. Em sua pesquisa analisa o repertório iconográfico das Ordens Terceiras do Carmo em Minas Gerais no século XVIII. Tem experiência na área de História, com ênfase em História da Arte, iconografia religiosa e ritos católicos, em especial irmandades e ordens terceiras mineiras nos séculos XVIII e XIX. Faz parte da coordenação da Oficina de Paleografia — UFMG desde seu primeiro semestre de atividade.

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Ludmila Machado Pereira de Oliveira Torres é graduada em História Bacharelado pela UFMG (2014). Foi estagiária do Laboratório de Arqueologia da Fafich/UFMG. Tem experiência em leitura paleográfica e é coordenadora da Oficina de Paleografia — UFMG desde o segundo semestre de 2013.

Luíza Rabelo Parreira é aluna do sexto período do Bacharelado em História da UFMG. Foi bolsista de iniciação científica FAPEMIG no projeto “Produção e uso de documentos manuscritos adornados no século XVIII em Minas Gerais”, da Profª. Drª. Márcia Almada. Atualmente, é bolsista de iniciação

científica FAPEMIG no projeto “Manifestações Culturais, Escatologia e Culto Santoral no Universo Luso-brasileiro”, sob orientação da Profª. Drª. Adalgisa Arantes Campos. Possui experiência em leitura paleográfica e na área de História, com ênfase em Arte e Cultura. Frequentou a Oficina de Paleografia como ouvinte desde a sua criação, em 2012. Ingressou como coordenadora da mesma no primeiro semestre de 2014

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Maria Clara Caldas Soares Ferreira é mestre em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais (2013). Especialista em Cultura e Arte Barroca pela Universidade Federal de Ouro Preto (2009). Bacharel e Licenciada em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (2006). Técnica em Conservação e Restauração de Bens Culturais pela Fundação de Arte de Ouro Preto (2006). Possui experiência em docência nos ensinos fundamental, médio e técnico, bem como em restauro de papel e digitalização de acervo. Atualmente, leciona as disciplinas “Iconografia Religiosa” e “História das Artes Plásticas no Brasil” no Curso Técnico de Conservação e Restauração de Bens Culturais do Pronatec-Coltec/UFMG. Faz parte da coordenação da Oficina de Paleografia — UFMG desde o primeiro semestre de 2014.

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Mateus Freitas Ribeiro Frizzone é licenciado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais e é coordenador da Oficina de Paleografia - UFMG desde o início de 2012. Tem experiência em leitura paleográfica e trabalhos sobre ensino de História e de Paleografia e sobre administração, justiça e punição na América portuguesa (Minas Gerais, séc. XVIII), sendo este último seu tema atual de pesquisa.

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Mateus Rezende de Andrade é Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal de Viçosa. Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutorando em História pela mesma instituição. Passou a integrar a coordenação da Oficina de Paleografia — UFMG no segundo semestre de 2014.

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Rodrigo Paulinelli de Almeida Costa é graduado em História pela Universidade Federal de Viçosa. É mestrando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais, onde desenvolve pesquisas relacionadas às relações interpessoais realizadas a partir do crédito na freguesia de Guarapiranga (1830-1865), com o fomento da FAPEMIG. Coordena a Oficina de Paleografia — UFMG desde o segundo semestre de 2014.

Composto em Sabon, Minion, Trajan, Helvetica e Andrade, na primavera de 2014

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