Cadernos de gênero - UTFPR

July 26, 2017 | Autor: J. Correia Muzi | Categoría: Estudos de Gênero (Gender Studies), Interdisciplinaridade
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Descripción

Cadernos de Gênero e Tecnologia

2011

Números 21 e 22 (janeiro/fevereiro/março/abril/maio/junho - 2011) Cadernos de Gênero e Tecnologia Publicação trimestral Coordenação Editorial: Nanci Stancki da Luz e Lindamir Salete Casagrande Coordenação de Entrevistas: Lindamir Salete Casagrande e Cristina Tavares da Costa Rocha Conselho Editorial: Ana Paula Vosne Martins (UFPR); Carla Giovana Cabral (UFSC); Cristina Tavares da Costa Rocha (IEG/UFSC e GeTec/UTFPR); Emília Emi Takahashi (AFA); Fanny Tabak (PUC-RJ); Gilson Leandro Queluz (UTFPR); Iara Beleli (UNICAMP); Luciana Martha Silveira (UTFPR) Maria Cristina de Souza (UTFPR); Maria Rosa Lombardi (FCC); Marília Gomes de Carvalho (UTFPR); Maristela Mitsuko Ono (UTFPR); Nanci Stancki Silva (UTFPR); Marise Rodrigues (CEFET-RJ); Ronaldo de Oliveira Corrêa (UFPR); Sonia Ana Leszczynski (UTFPR) Diagramação: Felipe Araújo Capa: Ronaldo de Oliveira Corrêa Impressão: Gráfica da UTFPR Tiragem: 200 exemplares Indexada em: Dedalus - Banco de Dados Bibliográficos da Universidade de São Paulo. Clase - Base de Datos Bibliográfica de Revistas de Ciencias Sociales y Humanidades.

C122 Cadernos de gênero e tecnologia / Periódico Técnico-Científico do Programa de PósGraduação em Tecnologia da UTFPR. Ano 1, n.1 (fev./mar./abr.2005 2005- Trimestral)-. Curitiba: Editora UTFPR (denominação anterior: Editora CEFET-PR). N. 21 e 22 - ISSN 1807-9415 Publicação do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Relações de Gênero e Tecnologia – GeTec/PPGTE/UTFPR - 2011 1. Tecnologia e sociedade – Periódicos. 2. Mulheres e Estudos técnicos – Periódicos. 3. Educação tecnológica – Periódicos. 4. Antropologia – Periódicos. I. Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná. CDD : 373.246 CDU : 373.6

Cadernos de Gênero e Tecnologia Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Relações de Gênero e Tecnologia - GeTec Programa de Pós-Graduação em Tecnologia - PPGTE Universidade Tecnológica Federal do Paraná - UTFPR Av. Sete de Setembro, 3165 CEP-80230-901 - Curitiba - Paraná. Tel: (41) 3310-4711 Fax: (41) 3310-4712 e-mail: [email protected] homepage: www.ppgte.ct.utfpr.edu.br. Nº: 21-22

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Sumário Apresentação e Editorial ................................................ 7 Nanci Stancki da Luz

Contribuições Dos Estudos CTS Para a Educação Superior no Brasil: Uma Perspectiva de Gênero ... 11 Joyce Luciane Correa Muzi Nanci Stanki da Luz

Gênero, Performatividade e a Experiência Trans ...... 29 Jamil Cabral Sierra

A Polarização dos Corpos Desejantes .......................... 39 Guaraci da Silva Lopes Martins

Normas de Publicação .................................................. 49

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Apresentação Nanci Stanki da Luz [1]

Os Cadernos de Gênero e Tecnologia é uma publicação semestral, com caráter interdisciplinar que tem como escopo divulgar pesquisas e trabalhos acadêmicos que discutam as relações de gênero e tecnologia. A tecnologia é compreendida como construção social, resultante da atividade humana e, portanto, fruto de relações sociais, logo relações de gênero. O seu caráter interdisciplinar possibilita que gênero e tecnologia sejam abordados de forma ampla e em diferentes campos disciplinares, trazendo à tona a complexidade dessa temática e uma riqueza de olhares que contribuem para uma melhor compreensão das suas inúmeras intersecções. Esta publicação emergiu dos anseios do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Relações de Gênero e Tecnologia (GETEC) do Programa de Pós-graduação em Tecnologia (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) no sentido de contribuir para a reflexão das complexas relações entre gênero e tecnologia, divulgando pesquisas e, dessa forma, estimulando novos estudos e avanços teóricos nesse campo de conhecimento. Pensada inicialmente para dar visibilidade para a produção das(os) pesquisadoras(es)do GETEC, a publicação rompeu fronteiras, tornando-se importante veículo de divulgação de trabalhos de investigadores de diversas áreas que se dedicam aos estudos de gênero por meio de uma multiplicidade de abordagens teóricas e metodológicas. Durante os seus 06 anos de existência, trouxe importante reflexões sobre as formas como homens e mulheres têm construído suas relações e identidades em uma sociedade que é marcadamente tecnológica. Sempre considerou a tecnologia a partir do seu componente mais importante – o humano – e assumiu a sua construção como social e histórica, envolvendo relações de poder entre homens e mulheres, entre homens e homens e entre mulheres e mulheres. Nessas relações se fazem presentes hierarquias de classe, raça/etnias, geracionais, regionais, de gênero, sexo e de formas de vivência da sexualidade. Desigualdades entre homens e mulheres contribuíram para que o universo científico e tecnológico se configurasse como um espaço majoritariamente masculino. Movimentos feministas contribuíram para que as mulheres conquistassem direitos historicamente negados e que se reduzissem as discriminações de gênero presentes nos campos educacionais e laborais. A ciência e a tecnologia também recebem as “brisas” da igualdade e da democracia geradas nas lutas sociais, proporcionando condições objetivas para que as mulheres participassem na produção científica e tecnológica. No entanto essa participação ainda não ocorre de forma igualitária. Embora tenhamos grandes avanços no enfrentamento da desigualdade de gênero, esta ainda não foi erradicada. Desvalorização do trabalho feminino, violências de gênero e segregações das atividades femininas, dentre outras desigualdades ainda desafiam a efetivação de um mundo justo e igualitário. Estudos de gênero numa sociedade marcadamente tecnológica continuam atuais e de relevância inquestionável. Para novas conquistas, faz-se essencial a continuidade de pesquisas que objetivem analisar a realidade de homens e mulheres, desvelar processos de Nº: 21-22

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produção e reprodução de hierarquias de gênero, de sexualidade e sexo. Questionar, refletir, compreender para facilitar a transformação. Transformar para realizar projetos de justiça social, com respeito às diferenças. Dando continuidade ao processo de construção da igualdade de gênero, o GETEC permanecerá discutindo e refletindo a temática gênero e tecnologia, sendo esta publicação parte desse nosso empenho.

Editorial Nesta edição, os Cadernos de Gênero e Tecnologia traz três importantes contribuições que reforçam a relevância os estudos de gênero para a análise da realidade contemporânea. O primeiro artigo “Contribuições dos estudos CTS para a educação superior no Brasil: uma perspectiva de gênero” de autoria das pesquisadoras Joyce Luciane Correia Muzi e Nanci Stancki da Luz, traz uma reflexão sobre os Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (CTS) e gênero, destacando os processos de exclusão/inclusão das mulheres do campo científico e tecnológico. Apresenta o resultado de uma pesquisa realizada na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) que revela como ocorreu a participação feminina na construção dessa instituição de ensino superior e como as lutas feministas e o questionamento dos ideais da Ciência – neutralidade e objetividade, por exemplo – possibilitaram o acesso feminino à escolarização e a campos profissionais antes exclusivamente masculinos, possibilitando seu ingresso nas instituições de ensino superior (IES), seja como discente, docente ou pesquisadora. O segundo e o terceiro artigos, a partir de várias contribuições teóricas, particularmente da teoria queer, problematizam gênero, sexualidade e sexo. Esses trabalhos trazem importante reflexão sobre as normas que reiteram a dualidade de gênero, os modelos de corpos e a hetrossexualidade como modelo padrão. Conforme relata LOURO (2001) [2], os corpos não se conformam completamente às normas impostas, sendo necessário que tais normas sejam repetidas e reconhecidas sua autoridade para gerar efeitos, tendo as normas regulatórias do sexo um caráter performativo, ou seja, com poder de produzir aquilo que nomeia. As formas como isto se dá, bem como as resistências a esse processo podem ser observadas nos estudos que se seguem. O segundo artigo “Gênero, perfomatividade e a experiência trans” do pesquisador Jamil Cabral Sierra, apresenta uma discussão sobre gênero e de performatividade queer, articulando esses conceitos com a experiência trans (travestis, transexuais e transgêneros), com objetivo de verificar se esse universo constitui uma forma de resistência aos processos biopolíticos de controle dos corpos e da subjetividade. E, o artigo da pesquisadora Guaraci da Silva Lopes Martins, “A polarização dos corpos desejantes”, apresenta uma reflexão sobre as relações de poder associadas à subjetividade dos corpos, a partir de uma análise do filme Meninos não Choram – direção de Kimberly Pierce. Essa produção, baseado em uma história real, convida ao questionamento dos limites produzidos pela heterossexualidade compulsória e contribui para o questionamento de discursos que hierarquizam e para denunciar o controle moral e social sobre os corpos e a homofobia ainda reinante na sociedade. A partir dessa análise e de sua experiência docente em curso de licenciatura da disciplina “Estagio Supervisionado”, a autora do artigo constata a necessidade de adoção de estratégias pedagógicas voltadas para a efetivação da igualdade de direitos no ambiente escolar. Boa leitura!

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NOTAS [1] Editora da Revista Cadernos de Gênero e Tecnologia. Doutora em Política Científica e Tecnológica (UNICAMP). Professora do Programa de Pósgraduação em Tecnologia e do Departamento Acadêmico de Matemática da Universidade Tecnológica Federal do Paraná; vice-coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Relações de Gênero e Tecnologia. [2] LOURO, Guacira Lopes. Teoria Queer – uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas. no. 2/2001. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ref/v9n2/8639.pdf. Acesso em 02 ago 2011.

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CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS CTS PARA A EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL: UMA PERSPECTIVA DE GÊNERO[1] CONTRIBUCIONES DE LOS ESTUDIOS CTS PARA LA EDUCACIÓN SUPERIOR EN EL BRASIL: UNA PERSPECTIVA DE GÉNERO Joyce Luciane Correia Muzi[2] Nanci Stancki da Luz[3] Resumo Este artigo tem por objetivo entender como os estudos sociais da Ciência e Tecnologia (CTS) possibilitaram discussões em torno da condição das “excluídas” do fazer Ciência e Tecnologia (C&T), com foco numa instituição de ensino superior – a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Nesse sentido, considerando a universidade como espaço em que se faz C&T e do qual as mulheres ficaram durante muito tempo excluídas, faz-se necessário recuperar de que maneira elas conseguiram entrar em redutos antes reservados aos homens. Apresentamos uma breve revisão bibliográfica a respeito do campo CTS na América Latina, bem como da perspectiva de feministas a respeito desse campo de estudos. A seguir apresentamos alguns dados levantados durante a pesquisa para a elaboração de minha dissertação para o Programa de Pós-graduação em Tecnologia especialmente sobre a história da UTFPR e sobre a participação das mulheres nesta história. Como resultado, podemos dizer que, graças à interferência do movimento feminista e dos questionamentos em torno dos chamados ideais da Ciência – neutralidade e objetividade – a situação das mulheres em áreas antes inacessíveis foi modificada, permitindo especialmente que elas ingressassem como alunas e como profissionais nas instituições de ensino superior (IES), atuando inclusive na pesquisa científico-tecnológica. Palavras-chave: CTS, América Latina, educação superior, UTFPR, gênero. Resumen Este artículo tiene por objetivo comprender cómo los estudios sociales de la Ciencia y Tecnología (CTS) permitió discusiones alrededor de la condición de las “excluídas” del hacer Ciencia y Tecnología (C&T), centrándose en una institución de enseñanza superior – la Universidad Tecnológica Federal del Paraná (UTFPR). En este sentido, considerando la universidad un lugar en que se hace C&T y del cual las mujeres quedaron durante mucho tiempo excluídas, es necesario recuperar de qué manera ellas lograron entrar en reductos antes reservados a los hombres. Presentamos una breve revisión bibliográfica sobre el campo CTS en la América Latina, así como de la perspectiva de feministas sobre este campo de estudios. A continuación se presentan los datos recogidos durante la investigación para el desarrollo de mi tesis para el Programa de Posgrado en Tecnología en especial en la historia de UTFPR y la participación de las mujeres en esta historia. Como resultado de ello, podemos decir que gracias a la interferencia de los movimientos feministas y de las cuestiones relativas a los llamados ideales de la Ciencia – neutralidad y objetividad – la situación de las mujeres en zonas antes inaccesibles se ha modificado, sobre todo lo que les permite participar como estudiantes y como profesionales en instituciones Nº: 21-22

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de educación superior (IES), incluyendo el trabajo en la investigación científica y tecnológica. Palabras-clave: CTS, América Latina, educación superior, UTFPR, género.

Introdução Entendemos a Universidade como espaço em que a produção do conhecimento se configura como a ação primeira do fazer científico, logo, essencial. No caso específico da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, à formação industrial, tecnológica e profissional, foi unida a perspectiva humanista e, nesse sentido, cabe a nós pesquisadoras e pesquisadores investigarmos a respeito da apropriação dos preceitos da sociologia da Ciência neste meio de produção de conhecimento e assim tentar perceber de que maneira esta mudança proporcionou avanços e ganhos para a sociedade. A pesquisa que desenvolvemos para a qual o produto final será uma dissertação de mestrado se propõe investigar de que maneira as mulheres participaram do fazer científico em uma instituição que completou em 2009 cem anos de existência. Através de fonte bibliográfica encontrada em vários espaços da instituição, nossa pesquisa considera a história da instituição a partir da perspectiva de gênero – a entrada das meninas nos cursos de formação profissional/industrial e a existência de docentes que participaram do processo de construção da Universidade desde sua criação, pensando no resgate histórico que privilegia a atuação das mulheres enquanto atrizes que muito contribuíram para a consolidação da então Universidade no cenário científico-tecnológico brasileiro. A importância desse resgate está no fato de ser a universidade instituição que se propõe a fazer Ciência e Tecnologia. O campo CTS

Os social studies of science emergiram há mais de vinte anos, dos trabalhos de David Bloor, Barry Barnes, Michael Mulkay, como uma prática de análise das Ciências, particularmente britânica. Essa área disciplinar, hoje internacionalizada e institucionalizada, caracteriza-se por uma prática interdisciplinar que tem praticamente levado à invisibilidade as fronteiras entre História, Sociologia, Filosofia das Ciências. E, ao mesmo tempo que tem atraído a atenção e a ira de antropólogos/as, literatos/as, teóricas feministas, cientistas, muitos dos caminhos recentes da história e da filosofia das Ciências têm sido fundamentalmente moldados pelas possibilidades abertas ou pelos problemas colocados por este tipo de estudo. (LOPES, 1998, p. 354) Como posto por Lopes (1998), ainda que algumas questões não aparentem servir à causa das feministas, muitas das discussões atuais só são/foram possíveis graças ao Nº: 21-22

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engendramento dos estudos sociais da Ciência e Tecnologia (C&T). Os estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) “Transformaram radicalmente a noção estabelecida de que a Ciência tivesse qualquer tipo de status epistemológico especial, superior, racional e, portanto, universal” (LOPES, 1998, p. 354), por isso é tão importante tratar do campo e do que ele representa para a situação das mulheres em C&T. Ele se instituiu devido à necessidade de um campo de estudos que olhasse para as transformações a partir de uma lente social, com o interesse de colocar C&T no cenário das discussões que não são sociais somente, mas políticas também. A proposta é a de que se concebesse uma “sociologia da Tecnologia”, e, consequentemente, da Ciência, justamente porque havia o reconhecimento de que ela estava em todos os âmbitos de nossa vida, ora sofrendo ora fazendo intervenções (MACKENZIE e WAJCMAN, 1996). Cutcliffe defende CTS como um novo campo acadêmico, por entender que Ciência e Tecnologia são projetos complexos que se dão em contextos históricos e culturais específicos, nos quais valores culturais, políticos e econômicos nos ajudam a configurar os processos tecnocientíficos, os quais, por sua vez, afetam aos próprios valores e à sociedade que os sustentam (CUTCLIFFE, 2003, p. 18). Quando o autor fala em “valores culturais, políticos” ele toca em como estas questões sociais/culturais podem transformar os processos que ele vai chamar “tecnocientíficos”, e como estes por sua vez vão afetar aqueles valores e a sociedade como um todo. Como a sociedade é o espaço de todos os tipos de relações e interações, pensa-se que estas relações também são afetadas e os agentes destas relações – homens e mulheres – vão “sofrer” os processos e as transformações que deles decorrem. A opinião de alguns teóricos se complementa; Bazzo et al. (2003) ressalta que os estudos CTS são a “reação acadêmica contra a tradicional concepção essencialista e triunfalista da Ciência e da tecnologia, subjacente aos modelos clássicos de gestão política” (p. 119). Kreimer e Thomas (2004), por sua vez, veem no campo “...la posibilidad de realización de un escenario de democratización política y de desarrollo económico y social” (p. 76), referindo-se especialmente à América Latina, e considerando a interação nos diversos âmbitos da sociedade. Um ponto importante de toda a discussão pela consolidação do campo CTS é quanto ao “determinismo tecnológico”. Marx e Smith (1996) chamam nossa atenção ao fato de que historiadores, publicitários e artistas durante anos auxiliaram no processo de “crença” no “determinismo tecnológico” – eles foram difusores desta crença; palavras como progresso, eficiência, avanço, liberdade aparecem como destaques, sinônimas de C&T. Em Winner (1996) encontramos a questão de que a inovação tecnológica deveria ser avaliada, prevendo os impactos que ela terá na comunidade e que o que importa “no es la tecnologia misma, sino el sistema social o económico en el que se encarna” (WINNER, 1996, p. 1). Nesse sentido, estes autores caminham para desmistificar a Tecnologia, bem como os processos científicos por trás dela, prevendo que eles não são benéficos por si próprios, ou seja, a intervenção social pressupõe a (in)utilidade dos artefatos ou processos. Por sua vez Andrew Feenberg (1995) contribui ressaltando a importância de se apresentar o caráter filosófico e político do caminho percorrido pela Ciência e Tecnologia, além de questionar também as instâncias de poder que vão determinar esse caminho. Isso Nº: 21-22

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diz respeito à concepção de C&T: segundo ele, é necessário que se pense uma democracia, possibilitando a aproximação de outros atores no processo de construção dos artefatos. Os outros atores a que Feenberg se refere ainda não são citados para atender às questões de gênero, embora possamos entender que, quando ele fala em outros, está incluindo nichos da sociedade que não têm a possibilidade de influenciar no processo de concepção/construção dos artefatos, mesmo sendo consideradas de fundamental importância as intervenções dos reais usuários de determinado artefato. Ciência, tecnologia e sociedade na América Latina Uma breve revisão de alguns autores que trataram do campo CTS na América Latina se faz necessário para percebermos que houve a preocupação de alcançar uma autonomia nesta área, já que aqui havia particularidades que exigiam um tratamento diferenciado da Europa ou dos Estados Unidos, correntes mais fortes da área. Vários autores se preocuparam em evidenciar a importância deste campo de estudos na América Latina, dentre eles Bazzo et al. (2003), com a sua Introdução aos Estudos CTS; Cutcliffe, (2003), com o texto “La emergencia de CTS como campo académico”; e Mackenzie e Wajcman (1996), com o texto “Introductory essay and general issues”. Os textos fazem retrospectivas históricas que nos levam a perceber que não demorou muito a dar-se a devida importância aos estudos CTS no contexto da América Latina, já que estes pensam os antecedentes sociais e as consequências socioambientais voltados às mudanças científico-tecnológicas, estando estas moduladas por fatores sociais, políticos, econômicos, ambientais, éticos e culturais. A proposta é que estes estudos se fixem e permaneçam em todas estas esferas. Outros autores se preocuparam em registrar a história recente do campo na América Latina, dentre eles Dagnino et al. (1996) com o livro El Pensamiento en Ciencia, Tecnologia y Sociedad en Latinoamérica: uma interpretación política de su trayectoria, no qual descreve os caminhos percorridos pelo PLACTS (Pensamiento Latino Americano en Ciencia, Tecnología y Sociedad), uma não-teoria, que dentre suas propostas está a de ser uma crítica ao “modelo lineal” de desenvolvimento; Kreimer e Thomas (2004) com o livro Un poco de reflexividad o ¿de dónde venimos? Estudios sociales de la ciencia y la tecnología en América Latina; neste livro os autores deixam uma “memória crítica” que chega até o ano em que foi escrito, citando o texto de Dagnino et al. (1996) inclusive como um referencial que vai dar conta da produção CTS em três níveis: contexto, reflexão e política. Tanto o texto de Kreimer e Thomas como o de Dagnino et al. trazem reflexões sob uma perspectiva sociopolítica, pensando em por meio do estudo das origens do campo (últimos 40 anos do século passado) possibilitar a continuidade evolutiva, ou seja, que haja interesse pela evolução melhorada e constante dos campos de Investigação e Desenvolvimento. Defende-se que “en PLACTS los análisis se inician a partir del ‘escenario social actual’” (DAGNINO et al., 1996, p. 3), o que é exatamente contrário ao pensamento “oficial” daquela época, pelo qual se relegava o social ao segundo plano; mas foi também esta preocupação excessiva por esta “contextualização” que fez com que o “pensamento” chegasse ao “inmovilismo”. Ao chegar às décadas de 1980 e 1990, a realidade acusava as “novas tecnologias” como responsáveis pela “incertidumbre de la economia” (DAGNINO et al., 1996, p. 6) no âmbito da dinâmica tecnológica do período, pela “globalização”, que veio suceder a multinacionalização, e o aparecimento das agências reguladoras, no âmbito externo, e crescimento das exportações, “políticas de apertura” e “integración competitiva” (DAGNINO Nº: 21-22

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et al., 1996, p. 7) no âmbito interno. A reflexão que fazem os autores parte do paralelo das relações apresentadas cronologicamente: ·

anos 60 – sociologia + atividade científica;

·

anos 70 – estudos em CTS;

·

anos 80 – economia + tecnologia.

Os estudos seguem então uma tendência de “diálogo entre enfoques” (DAGNINO et al., 1996, p. 8), não fazendo mais sentido chamar PLACTS às linhas de estudo, pois estas vão “aproveitar” diversas visões de outras disciplinas (como exemplo a problemática ambiental, sociologia do trabalho, teorias econômicas); assim surge a proposta de “Estudios CTS aplicados a Latinoamérica (ECTSAL)”, caracterizados fundamentalmente pela diversidade proposta (DAGNINO et al., 1996). Kreimer e Thomas (2004), nesta mesma lógica, começam criticando a tendência ao debruçamento nas teorias europeias e estadounidenses, já que, por meio destas as comunidades científicas tentavam “resolver” problemas locais; havia portanto, segundo eles, uma necessidade de uma área de estudos sociais de C&T, como um subgrupo das Ciências Sociais. Para os autores, ao apresentar as décadas de 60 e 70, importava percorrer os aspectos sociais, cognitivos, institucionais, “generacionales” e espaços sociais de interação, tratando de nos mostrar por que áreas temáticas foi necessário que se passasse para chegar finalmente à formação do campo, enfocando abordagem histórica, perspectivas políticas, sociológicas e antropológicas, e quais aspectos institucionais eram importantes para tal configuração. As décadas seguintes foram determinantes para a expansão e consolidação do campo CTS. Kreimer e Thomas (2004) dividem o campo em três gerações: 1ª – os pioneiros do PLACTS; 2ª – pesquisadores latinoamericanos de formação “extranjera”; 3ª – pesquisadores e profissionais que se formaram em cursos criados pela segunda geração. Os autores vão chamar as décadas de 1960 e 1970 de “fase fundacional del campo”, em que surgiam propostas de novos conceitos e explicações “...más derivadas de la experiencia de los autores que de estudios sistemáticos de base empírica...” (KREIMER e THOMAS, 2004, p. 45); já os anos 80 a 2000 serão caracterizados pela ênfase na importância da sociologia e da história da Ciência que prioriza a análise empírica: “estudios de caso, entrevistas, reconstrucción de redes de actores, análisis socioinstitucional, estudios etnometodológicos” (KREIMER e THOMAS, 2004, p. 45). Tanto Kreimer e Thomas, quanto Dagnino et al., sugerem a importância dessa recuperação histórica como uma forma de consolidação de algo indispensável – uma relação interdisciplinar, com bases sólidas e úteis à sociedade. Por isso Dagnino et al. (1996, p. 12) chegam a manifestar que desejam que os caminhos percorridos até aqui sirvam para “…caracterizar la agenda futura de la reflexión latinoamericana en CTS”, deixando de incorrer nos mesmos erros do passado. Uma perspectiva de gênero Na tentantiva de se inserir nestas discussões que envolvem Ciência, Tecnologia e Nº: 21-22

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Sociedade, feministas buscaram bases epistemológicas que justificassem suas causas, em especial aquelas que se voltam a questionar o androcentrismo vigente em toda a Sociedade como também em C&T. No século XX, por exemplo, temos os movimentos feministas que se empenharam em recuperar a história das esquecidas ou apagadas da história “oficial” da Ciência e Tecnologia, fato que tenta apagar as marcas deixadas por esses campos que tinham como base a perspectiva de que as mulheres deles não participaram. François Graña diz que Los enfoques de género emergentes en la “segunda ola” del feminismo de los años ‘60 a los ’80, partían de la denuncia de la escasez de mujeres en las ciencias, para luego detenerse en el carácter androcéntrico del contenido de las ciencias y en los sesgos sexistas del lenguaje. Estos enfoques se orientaban de este modo hacia una revisión profunda de las relaciones entre ciencia y sociedad: “Ya no se trata únicamente de reformar las instituciones y de alfabetizar en ciencia y tecnología a las mujeres, sino de reformar la propia ciencia” (GONZÁLEZ GARCÍA, 1999, apud GRAÑA, 2004, p. 13). O campo da Ciência, enquanto campo de produção de conhecimento, e o da Tecnologia apresentam a mesma dinâmica. A respeito da Tecnologia especificamente podemos nos basear no que diz François Graña: ela é una actividad fuertemente masculinizada donde campea – al igual que en las “ciencias duras” – la ideología de la “neutralidad” y el conocimiento socialmente aséptico. Las investigaciones señalan una “cultura técnica masculina” como un importante componente identitario, y simétricamente, la incompetencia técnica, la inseguridad y el miedo a la tecnología como parte integrante del estereotipo de género femenino (GRAÑA, 2004, p. 20). As mulheres não surgem como protagonistas do avanço científico e tecnológico, ao contrário dos homens que seguem estando no centro do que François Graña (2004) vai chamar uma cosmologia que mostra a ciência como “una práctica viril activa y racional dirigida hacia el dominio de la ‘madre naturaleza’, considerada pasiva, emocional y carnal” (BONDER, 1996, p. 41). O que nos interessa é que os modelos ou os referentes históricos que estão disponíveis na sociedade são masculinos; estes vão então orientar a atividade científica, de modo que pareça que os homens estiveram e sempre estarão em todas as ordens do saber (GRAÑA, 2004). A Academia portanto como um espaço criado por homens para formação intelectual e construção masculina do conhecimento, representa hoje uma instituição que possibilitou as mudanças que ecoaram na sociedade em geral, isso depois de muita luta e resistência: La actual situación académica de las mujeres es el resultado complejo de uma incorporación tardía a las instituciones Nº: 21-22

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científicas, un incremento fulgurante de su participación en el último tercio del siglo XX, contribuciones “de alto nivel en algunos casos”, una moderada participación en la gestión, y en términos generales, uma discriminación que “...sigue teniendo lugar pero ha adoptado formas más sofisticadas...” (GONZÁLEZ GARCÍA, 1999, apud GRAÑA, 2004, p. 5). A autora chama sofisticadas justamente a discriminação que ainda existe dentro das Academias. La discriminación en el ámbito académico asume a menudo la forma de múltiples “micro-desigualdades” que tomadas de una en una parecen insignificantes, pero que contribuyen globalmente a la generación de cierto “clima hostil” que disuade o desmoraliza a las mujeres que han optado por el área científico-tecnológica: “... las mujeres son asignadas a los comités científicos con menos poder, disponen de menos recursos presupuestarios, les es más difícil obtener los servicios del personal de apoyo o se las ubica en oficinas que están lejos; carecen de acceso a las ‘redes de iniciados’ para obtener información sobre otras instituciones y, a diferencia de los hombres, no disponen de un grupo equivalente de mentores o de modelos a quienes pedir asesoramiento y apoyo” (AGUIRRE e BATTHYÁNY, 2000, apud GRAÑA, 2004, p. 5-6). Sabemos que ainda que explicitamente não vejamos nada que impeça o acesso das mulheres à Ciência, há um discurso científico que se pretende neutro, mantendo a desigualdade de gênero, impregnando a cultura moderna. A chamada Ciência moderna (positivista, racional, analítica e neutra) preza por suas qualidades nitidamente “masculinas”, em oposição à subjetividade, intuição, irracionalidade etc., características atribuídas às mulheres. A pretensão de “neutralidade” é para Graña “una clave explicativa del éxito fulgurante del discurso científico desde el Renacimiento hasta nuestros días, que lo impone por sobre cualquier otro discurso metafísico, religioso, ético, etc.” (SÁNCHEZ GONZÁLEZ, 1999; PUJAL e LLOMBART, 1996, apud GRAÑA, 2004, p. 8). O discurso científico, por sua vez, siendo androcéntrico, y esta situación perjudica tanto a las mujeres como a los hombres o a la propia ciencia. A las mujeres, porque les obliga a superar una serie de barreras, lo que se empieza a llamar la “barrera de cristal”, empleando en ello unas energías y una inteligencia que deberían utilizarse en la creación científica. A los hombres, porque no serán auténticamente libres para vivir y para crear mientras esta libertad no sea compartida con las mujeres. A la ciencia, en fin, porque si rechaza a la mujer, rechaza también un conjunto de valores imprescindibles para la Nº: 21-22

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creación científica, una parte del patrimonio cultural de la humanidad. El progreso humano y científico se logrará mejor integrando a las mujeres en el eje principal de la cultura dominante (VAN den EYNDE, 1994, apud GRAÑA, 2004, p. 13). Importante ressaltar que as críticas ao modelo que prevalece de Ciência servem para refletirmos o quão é importante chamarmos atenção para o que se pretendeu ao longo de décadas afirmar: que “el conocimiento en general, y el científico en particular, se caracteriza por su objetividad, por su neutralidad” (SEDEÑO, 2000, s.p.), e que ele se consolida como válido porque o método utilizado está isento de qualquer intervenção subjetiva, distinguindose exatamente pela “búsqueda desinteresada de la verdad mediante la formulación de hipótesis que son contrastadas después mediante técnicas muy elaboradas” (SEDEÑO, 2000, s.p. Grifos da autora.), o que garantiria o valor de seu produto final, livre de erros. Sedeño, relativizando estas questões, crê que, “a no ser que se adopte el ‘punto de vista de Dios’, es difícil aceptar que lo que sucedió en el pasado, no se volverá a repetir en el futuro y que lo que hoy es ‘ciencia buena’, conocimiento autorizado o certificado no vaya nunca a dejar de serlo” (SEDEÑO, 2000, s.p. Grifos da autora.). Pierre Bourdieu também se propôs a problematizar o interesse por trás da concepção de uma “Ciência neutra”: A idéia de uma Ciência neutra é uma ficção, e uma ficção [também] interessada, que permite fazer passar por científico uma forma neutralizada e eufêmica, particularmente eficaz simbolicamente porque particularmente irreconhecível, da representação dominante do mundo social (BOURDIEU, 1983, p. 148). Esta concepção do autor atende especialmente aos ideais da crítica feminista, que visam desmistificar e derrubar a dominação de um grupo que se identifica como “universal”, fazendo “Ciência para todos”: nas palavras de Stolte-Heiskanen, 1998, “a Ciência atual é sexista, e esse sexismo acarreta um número de conseqüências epistemológicas, ontológicas, metodológicas e, em última análise, sociais, para o conhecimento produzido” (apud TABAK, 2002, p. 59). As críticas feministas portanto servem de “base para cuestionar una ciencia neutra y libre de valores, así como la naturaleza misma del conocimiento y el poder que éste crea” (SEDEÑO, 2000, s.p.). Importante dizer ainda que “as pensadoras feministas vêm de há muito colocando em questionamento os parâmetros científicos definidores de quem pode ou não ser sujeito do conhecimento, do que pode consistir como conhecimento, ou mesmo o que pode ser conhecido” (SARDENBERG, 2007, s.p.), e isso só foi possível – questionar a hegemonia da Ciência – após longos anos de luta e empenho dos grupos de mulheres e das feministas, que terão na transformação dessa luta em causa política, que, por sua vez, terá no conceito de gênero[4] o cerne das discussões, algo que foi possibilitado pelos caminhos abertos pelos estudos CTS. Interessa-nos, finalmente, considerando as críticas feministas ou não, refletir se todos os interessados e interessadas estão fazendo parte dessa construção, passando então basicamente pelas “abordagens de construção social da Ciência e da tecnologia [as quais] argumentam que estas são instituições sociais e não agentes autônomos. A questão principal Nº: 21-22

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passa então a ser como a sociedade interfere na construção da Ciência e da tecnologia” (SILVA, 1998, p. 9), Como uma proposta de política de mudança, Silva (1998) defende que “A construção de um mundo no qual as mulheres não são subordinadas requer: (1) o reconhecimento de que existe subordinação de gênero; (2) o desenvolvimento de uma visão de mundo no qual isso seja possível.” (SILVA, 1998, p. 14). A educação superior: o caso da Universidade Tecnológica Federal do Paraná Em 2009 a Universidade Tecnológica Federal do Paraná completou 100 anos e desde a fundação, como Escola de Aprendizes Artífices (1909), ofereceu ensino profissional/ industrial e, posteriormente, tecnológico/científico aos garotos de camadas menos favorecidas da sociedade, os chamados “desprovidos da sorte”. As escolas originalmente apresentavam uma destinação social e humanitária, pois ensinar ofício àquela época garantia que os meninos pudessem sobreviver e sustentar a família. O tipo de ensino ofertado pela instituição estava intimamente ligado ao tipo de sociedade que se pretendia: ensinar ofício nas áreas de alfaiataria, sapataria, marcenaria e serralheria para os meninos exigia um corpo docente especializado, logo, composto por homens, o que não significava que as mulheres não estavam lá. Por visar primordialmente à formação profissional a Escola foi elevada ao estatuto de Liceu Industrial do Paraná, em 1937, tendo como grande avanço a instituição do ensino de 1º grau, atual ensino fundamental. O ano de 1942 foi determinante para mais uma transformação: a criação da rede federal de instituições de ensino industrial e a Lei Orgânica do Ensino Industrial criaram as Escolas Industriais, por isso o Liceu passou a ser a Escola Técnica de Curitiba. Com a mudança, o ensino passou a ser ministrado em dois ciclos, demandando contratação de novos professores para atuar, no primeiro ciclo de ensino industrial básico, mestria e artesanal, e no segundo, de ensino técnico e pedagógico. No ano seguinte é dado início aos primeiros cursos técnicos: Construção de Máquinas e Motores, Edificações, Desenho Técnico e Decoração de Interiores, que proporcionará o ingresso de alunas meninas na instituição, majoritariamente e basicamente nos cursos de Edificações e de Decoração de Interiores. Em 1959 a Instituição foi transformada em Escola Técnica Federal do Paraná, devido à unificação do ensino técnico a nível nacional. Em 1969, o Governo Federal autorizou as Escolas Técnicas do Paraná e de Minas Gerais a ministrarem Cursos Profissionais de Nível Superior de Curta Duração[5], sendo então criados os Centros de Engenharia de Operação. Os cursos de Engenharia de Operação tiveram tanto destaque que o MEC (Ministério de Educação e Cultura) propôs em 1978 a transformação da Escola Técnica em Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná (CEFET-PR), um fato de extrema importância, já que a partir daí aqueles cursos foram elevados a cursos modelos de Engenharia Industrial. A Lei 6545 de 30/06/78 cria os CEFETs que tinham como objetivos principais o de ministrar aulas nos níveis técnico, tecnológico, formação docente e aperfeiçoamento, e dentre estes o de realizar pesquisas na área técnicoindustrial. A partir desse momento então a Instituição começou a se destacar por sua pesquisa científica, que mais tarde ganhará força com a criação dos Programas de Pós-Graduação, já nos anos 80. Na década de 1980 destacamos que se assumiu em relatório trimestral 1984-1987 que até o ano de 1984 inexistia na instituição a “preocupação com a pesquisa a nível Nº: 21-22

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institucional e sistematizada”, o que foi corrigido a partir de então com a criação de uma estrutura que permitisse a realização de trabalhos de pesquisa que contassem com o auxílio de professores e professoras que voltavam de programas de pós-graduação do exterior. A pesquisa sofreu percalços em relação à mão-de-obra e espaço físico, no entanto se consolidou rapidamente no campo da pesquisa aplicada, desenvolvida especialmente por três setores: o Núcleo de Pesquisas Tecnológicas, o Núcleo de Engenharia Hospitalar e o Curso de Pósgraduação em Informática Industrial. O Núcleo de Pesquisas Tecnológicas se propunha a fazer pesquisa a partir de três objetivos: tornar o CEFET-Pr um centro de desenvolvimento de pesquisa aplicada; “desenvolver e adaptar equipamentos didáticos para uso nos laboratórios e oficinas do CEFETPr e de outras instituições de ensino, com vista à melhoria da qualidade de ensino; e desenvolver novas tecnologias para uso da Instituição e de entidades e empresas da comunidade.” (Relatório trianual 1984-1987, s.p.). O Núcleo de Engenharia Hospitalar por sua vez tinha como objetivo “Consolidar o Cefet-Pr como um polo regional de referência em Engenharia Biomédica, através de uma atuação eficaz em pesquisa básica, inovação e adaptação tecnológica e prestação de serviços na área de Engenharia Hospitalar, na forma de assessoria técnica e repasse e dissiminação (sic) de conhecimento à comunidade médico hospitalar” (Relatório trianual 1984-1987, s.p.). Como vemos nos objetivos destes dois núcleos é perfeitamente reconhecível o pragmatismo de suas pesquisas. Numa carta[6] do então diretor Ataíde Moacir Ferrazza ao Governador do Estado do Paraná para solicitar a incorporação de um dado espaço físico para ao CEFET-PR de modo a poder oferecer melhorias no ensino e ampliação do número de vagas nos cursos, o objetivo a respeito da pesquisa desenvolvida no Centro aparece com a seguinte redação: “promover a extensão dos benefícios de suas pesquisas e de sua ação à comunidade mediante cursos e serviços”. O olhar portanto, assim como nos primeiros anos da instituição, é de que os produtos por ela gerados deveriam ser revertidos para a sociedade. Um evento importante aconteceu ainda na década de 1980, mais especificamente em 12 de setembro de 1986: o III Encontro da Mulher[7], que teve por objetivo “identificar e discutir a situação da mulher ‘cefetiana’, de forma a buscar sua integração”. O resultado, segundo os dirigentes, foi eficiente “no sentido de proporcionar segurança no ambiente de trabalho feminino e em todo seu meio social”; uma forma de visibilizar a questão de gênero dentro da instituição que contava com uma média de 30% de quadro funcional feminino (entre funções de apoio, administrativas, docente e de direção). Na década de 1990, teremos a expansão do CEFET-Pr para o interior do Paraná, com a implantação de unidades descentralizadas de ensino. Nos anos de 1990 outra transformação marcou essa história: a partir do Decreto n. 2.208 de 17 de abril de 1997 que regulamentava dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação[8] (LDB), a oferta dos cursos técnicos integrados ficou bastante restrita, pois havia previsão de que “A educação profissional de nível técnico terá organização curricular própria e independente do ensino médio, podendo ser oferecida de forma concomitante ou seqüencial a este.” (art. 5º. Decreto 2.208/97), legislação que contribuiu para que a instituição implantasse o Ensino Médio e cursos superiores de Tecnologia e extinguisse os cursos técnicos integrados. Ainda nos anos 90 temos um dado interessante em relação à perspectiva da instituição enquanto uma aspirante à elevação à Universidade: em suas propostas é incorporada a questão humanística como algo imprescindível e esperada de todos os departamentos e núcleos, sejam eles voltados ao Ensino, à Pesquisa ou à Extensão. O discurso no sentido de formalizar e internalizar o slogan “Tecnologia e Humanismo” passa a ser reproduzido nos documentos institucionais oficiais, informativos, projetos, enfim, toda a Nº: 21-22

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comunidade se empenha pela proposta de ratificação da instituição como modelo voltado à sociedade. A esta altura, em relação ao corpo docente da instituição, temos o que Leszczynski caracterizou como “uma escola ‘masculina’ em suas áreas de excelência” (1996, p. 102). Silva (2000) acrescenta que apesar de um aumento considerável no número de professoras mulheres, a concentração está em áreas de educação geral e em algumas áreas específicas de educação técnica. A exceção colocada pela autora é o que diz respeito ao corpo docente do Departamento de Desenho Industrial (Dadin), originado do Departamento de Decorações, que desde sua origem já tem um número maior de mulheres (SILVA, 2000). Embora se possa pensar que a mudança de Centro Federal de Educação Tecnológica para Universidade tenha sido fácil, mesmo com toda a história e tradição do então CEFETPr, foi uma longa trajetória que iniciou nos anos 90 e durou sete anos até que o governo federal aprovasse como lei a transformação que ocorreu também devido ao projeto do governo de expansão do ensino superior no país. Em 7 de outubro de 2005 foi criada então a primeira Universidade Tecnológica do Brasil. O ano de 2005 também foi bastante importante em relação à formação técnica e tecnológica, pois, após sete anos de extinto o ensino médio integrado à formação de nível técnico, o presidente Lula assinou o Decreto 5.154/2004 que recupera a possibilidade de oferta do ensino integrado – o aluno e a aluna voltam a ter a chance de fazer um só curso e ter um certificado de nível médio-técnico, ou seja, apto a exercer uma profissão. Tendo se transformado oficialmente em Universidade, a UTFPR teve como grande preocupação dar continuidade a projetos de Ensino, Pesquisa e Extensão, tripé já garantido desde sua transformação em CEFET, nas décadas de 70 e 80. A transformação então ocorreu a partir da junção de inúmeros esforços, que veem nessa transformação o “atestado” da qualidade e liderança da Escola ao longo da história da educação profissional-tecnológica. Fruto de esforços de várias pessoas, a transformação nada mais é que consequência de anos de dedicação ao ensino técnico e tecnológico; além disso, tínhamos muitos defensores de que a Instituição estaria apta a se tornar Universidade e contribuir para a implementação de uma rede de educação tecnológica, e enquanto tal, integrada, ampliando a pesquisa de maneira a contribuir para a inserção do país no cenário internacional, que enxerga a tecnologia como fator preponderante para a consolidação da pesquisa científico-tecnológica. Atualmente com 11 campi, distribuídos nas cidades de Apucarana, Campo Mourão, Cornélio Procópio, Dois Vizinhos, Francisco Beltrão, Londrina, Medianeira, Pato Branco, Ponta Grossa, Toledo e capital, a Instituição expande cada dia mais sua oferta de cursos e vagas para discentes, consequentemente, implicando em aumento de vagas para funcionários, dentre eles mais professores e professoras, engajados na e para a continuidade dessa história. Vale destacar que a Instituição tem ampliado os cursos de licenciatura e bacharelados nas áreas de Matemática, Física, Química, Educação Física, Letras, Design, o que pode alterar a configuração de gênero do seu corpo docente. Nos 11 campi há a oferta de cursos de pós-graduação lato e stricto sensu, graduação, em todas as modalidades presenciais – tecnologia, engenharia, licenciatura e bacharelados, nível médio regular com cursos técnicos integrados e um técnico subsequente, além da oferta de nível médio na modalidade de Educação de Jovens e Adultos – Proeja. Acrescentamos também que nos 11 campi temos 1.393 professores, sendo no total 602 mestres e 340 doutores, 647 técnicos-administrativos e mais de 16.000 alunos matriculados. Os dados abaixo caracterizam especialmente o campus Curitiba em janeiro de 2010: Gráfico 1: Percentual de docentes segundo sexo no Campus Curitiba Nº: 21-22

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Fonte: www.utfpr.edu.br Por área do conhecimento, a distribuição fica da seguinte maneira:

Tabela 1: Percentual de docentes por área do conhecimento no Campus Curitiba Fonte: www.utfpr.edu.br Percebe-se que por se tratar de um campus em que dos 20 cursos de graduação ofertados atualmente 13 são em áreas de Engenharia e Tecnológicas (65%), a maioria dos professores são do sexo masculino e estes estão concentrados nas chamadas Ciências “duras”, fato difícil de ser modificado considerando a longa tradição mantida pela Instituição. Ainda assim com uma maioria masculina, podemos afirmar que desde os primeiros anos as mulheres participaram da construção de uma instituição que se tornaria a primeira e única Universidade Tecnológica do país, o que nos leva a confirmar que esta participação foi de extrema importância: no início de funcionamento da Escola elas atuavam diretamente na instrução primária e elementar dos meninos que nela ingressavam. Alguns anos depois, quando da entrada das primeiras alunas, o número de mulheres se mantém pela necessidade de instrução em cursos específicos, como é o caso do de Economia Doméstica e de Corte e Costura. Mais tarde, décadas após a abertura da Escola, quando a instituição se consolida como Centro Federal de Educação Tecnológica, temos ampliadas as áreas de atuação em ensino e pesquisa e vão se fundamentando as bases para a transformação em Universidade. Com isso, a pesquisa científica e tecnológica acaba surgindo como ponto alto de atuação dos e das docentes do Nº: 21-22

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Foto 2: recorte de mídia impressa 1984. Fonte: Arquivo Nudhi.

Foto 1: recorte de mídia impressa 1984. Fonte: Arquivo Nudhi.

antigo CEFET-PR. O que vemos, no entanto, é que ao iniciar suas contribuições na área de pesquisa era baixa ou quase nula a divulgação de pesquisas científicas e tecnológicas feitas por mulheres, seja na condição de líderes ou de colaboradoras. No Relatório trianual 1984-1987 supracitado não há nomes de participantes dos núcleos e tampouco a designação de líderes das pesquisas elencadas nos relatórios; no entanto, quando se tratava da divulgação em mídia impressa (jornais de circulação regional) das pesquisas feitas no CEFET-Pr, havia a identificação dos pesquisadores e em todos eles encontramos somente homens (fotos 1 a 3). Isso nos leva a questionar se isso se deu por que elas não participavam do fazer científico ou se elas não tinham a mesma visibilidade interna que possibilitasse a divulgação em outros meios.

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Foto 3: recorte de mídia impressa 1984. Fonte: Arquivo Nudhi.

Recentemente, por outro lado, podemos afirmar que isso se dá de forma mais equitativa: em artigo intitulado “Entre cursos e discursos: um olhar sobre mulheres e Ciência na Universidade”[9], constatamos, ao analisar um canal de informação impresso interno da Universidade no qual buscamos verificar se houve no período de um ano divulgação sobre ciência que incluíssem as mulheres, que há divulgação de pesquisas lideradas por homens e mulheres. Com a análise qualitativa de cinco edições do jornal UTFPR Notícias percebemos a preocupação em divulgar sua produção científica, bem como sua concepção de Ciência com vistas a atender ao restante da sociedade; além disso, havia nas edições analisadas, o que nos parece mais importante, considerando o histórico da Instituição e a história da Ciência e da Tecnologia, a preocupação por divulgar o trabalho tanto de homens como das mulheres cientistas, algo que, ao nosso ver, caminha no sentido da equidade esperada, no que tange à visibilização dos atores e atrizes que participam dos processos de construção de C&T. Considerações finais Ainda que ao olharmos para a história da UTFPR cheguemos à mesma conclusão de inúmeras outras autoras de que a universidade e os próprios campos da Ciência e da Tecnologia tenham se pautado sobre bases androcêntricas e excludentes de pelo menos metade da população, os avanços surgem quando nos debruçamos em análises mais recentes. No contexto apresentado, vemos que as atuais pesquisas produzidas dentro da UTFPR são divulgadas, sejam elas lideradas ou executadas tanto por homens quanto por mulheres. Não se pode fechar os olhos à trajetória e aos anos de exclusão, porém cabe a nós pensarmos que após os movimentos feministas, ou mesmo dos cientistas interessados pelo fortalecimento do campo CTS, houve inúmeras modificações, a começar pela relativização dos determinismos científico e tecnológico, que propiciaram às mulheres a atuação na Universidade, o avanço em carreiras científicas e tecnológicas, a conquista por novos espaços, enfim. Atualmente a UTFPR tem 95 grupos de pesquisas cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa no Brasil na base do CNPq, e 27 são liderados por mulheres, o que representa 28% do total. Deste total com liderança feminina, a distribuição nas diversas Nº: 21-22

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áreas de conhecimento é a seguinte: Tabela 2: Liderança feminina nos grupos de pesquisas da UTFPR cadastrados na base do CNPq _________________________________________ Área do Conhecimento

Líderes mulheres

Ciências Humanas

41%

Ciências Exatas e da Terra

22%

Engenharias

18%

Ciências Agrárias

11%

Ciências Biológicas

4%

Ciências Sociais

4%

Total 100% _________________________________________ Fonte: Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil[10]. A tendência apontada por outras pesquisadoras de que as mulheres se concentrem nas Ciências Humanas e menos nas Engenharias aparece nesta tabela; entretanto o número de mulheres nas Engenharias e nas Ciências Exatas e da Terra somados – 40% – chega quase ao mesmo percentual de mulheres nas Ciências Humanas, o que nos leva a acreditar que um crescente equilíbrio pode estar se configurando. Diante do exposto, podemos afirmar que não há dúvidas da participação feminina em toda a história da Instituição. Além disso, elas também participam n científica e tecnológica há uma consciência de que as mulheres contribuem significativamente para o avanço, a notar o número de pesquisas lideradas por mulheres divulgadas no ano de 2009 no veículo de comunicação interno. O que se divulga a respeito de Ciência, Tecnologia e mulheres na instituição se configura como uma vitrine na qual podemos ver que todos e todas participam. Isso pode significar que o campo CTS está cada dia mais aberto a outros atores que não aqueles que sempre estiveram à sua frente. NOTAS [1] Este trabalho é parte da dissertação de mestrado da autora deste artigo e foi apresentado nas VIII Jornadas Latinoamericanas de Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia em Buenos Aires, de 20 a 23 de Julho de 2010. [2] Mestre em Tecnologia pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná e Mestre em Ciências da Educação pela Universidad del Norte – PY. Professora do Instituto Federal do Paraná. [email protected] [3] Doutora em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE) e do Departamento de Matemática (DAMAT) da Universidade Tecnológica Federal do Paranáo (UTFPR). [email protected] [4] Falar de gênero social atualmente é bem comum, mas a construção do que se entende hoje por gênero é bastante complexa. Adota-se nesse trabalho a concepção de gênero como relacional, constituinte das relações sociais que se estabelecem sobre as diferenças entre sexo feminino e masculino e como uma forma primária de dar significado às relações de poder (SCOTT, 1995, p. 72).

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[5] No caso da ETF-PR, foram criados os cursos de Construção Civil e Elétrica, especialmente com o intuito de atender às necessidades regionais do mercado de trabalho da capital. [6] Na carta não há data, mas imagina-se que ela tenha sido escrita no final da década de 1980 quando o professor Ataíde Moacir Ferrazza estava nos seus primeiros anos como diretor. [7] Ainda que seja o terceiro encontro, não encontramos vestígios dos anteriores nos documentos analisados. [8] O Decreto regulamentava o § 2º do art. 36 e os artigos 39 a 42 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (LDB). [9] Trabalho apresentado no VIII Congresso Iberoamericano em Ciência, Tecnologia e Gênero em 2010, em Curitiba. Entretanto os dados são do ano de 2009. [10] Disponível em: Acesso em: 07 jan. 2010.

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n. 10. Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero-Unicamp, 1998, p. 7-20. SILVA, Nanci Stanki. Gênero e trabalho feminino: estudo sobre as representações de alunos(as) dos cursos técnicos de Deseho Industrial e Mecânica do CEFET-PR. Dissertação (Mestrado em Tecnologia) – Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná. 2000. TABAK, Fanny. O laboratório de Pandora: estudos sobre a Ciência no feminino. Rio de Janeiro: Garamond, 2002.

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GÊNERO, PERFORMATIVIDADE E A EXPERIÊNCIA TRANS GENDER, PERFORMATIVITY AND TRANS EXPERIENCE Jamil Cabral Sierra

[1]

RESUMO: A partir de Foucault, dos Estudos de Gênero e das teorizações queer, este texto faz uma reflexão sobre a noção de gênero e de performatividade queer, especialmente no que se refere à articulação desses conceitos com a experiência trans (travestis, transexuais e transgêneros), a fim de mostrar em que medida o universo trans se constitui (ou não) como forma de resistência aos processos biopolíticos de controle dos corpos e da subjetividade. Palavras-chave: Gênero. Performatividade. Experiência Trans. ABSTRACT: Based on Foucault, on gender studies as well as on queer theories, this article intends to reflect about gender and queer performativity, specially relating these concepts to trans experience (transvestite, transsexual, transgender), in order to discuss in what ways the trans environment is established (or not) as a way to show resistance to biopolitics process of body and subjectivity control. Key-words: Gender. Performativity. Trans Expirience.

Chamam-me de Agrado porque, a vida inteira, só pretendi tornar a vida dos outros agradável. Além de agradável, sou muito autêntica. Olhem só que corpo. Tudo feito sob medida. Olhos amendoados: 80 mil. Nariz: 200 mil. Jogados no lixo, no ano seguinte ficou assim depois de outra surra. Sei que me dá muita personalidade, mas, se soubesse antes, não mexeria nele. Continuo. Peitos: dois, porque não sou nenhum monstro. 70 mil cada um, mas eles já estão superamortizados. Silicone em: lábios, testa, maças do rosto, quadril e bunda. O litro custa 100 mil. Calculem vocês, porque eu já perdi as contas. Redução de mandíbula: 75 mil. Depilação definitiva a laser. As mulheres também vêm dos macacos. Tanto ou até mais que os homens. 60 mil por sessão. Dependendo de quanto cabeluda se é. O normal é entre duas a quatro sessões. Mas, se é uma diva do flamenco, precisará de mais, claro. Bem, como eu estava dizendo, sai muito caro ser autêntica. E, nestas coisas, não se deve ser avarenta. Porque nós ficamos mais autênticas quanto mais nós nos parecemos com o que sonhamos que somos[2]. O que quero ensaiar nesta análise[3] tem a ver com o deslocamento da distinção entre o que é masculino e feminino, até porque tais noções não se dão por características sexuais propriamente ditas, mas pela maneira como essas características estão representadas, valorizadas ou, ainda, a partir do que se discursa sobre o que é ser homem ou mulher em Nº: 21-22

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uma dada sociedade, num dado corte histórico. Desse modo, foi a partir dos reclames do movimento feminista, especialmente quando as mulheres, por volta da década de 60 do século XX[4], começam a questionar os inúmeros discursos que produziram a invisibilidade pública feminina, que questões sobre gênero e sexualidade começam a fazer parte de reivindicações de natureza não só política, mas também de preocupações acadêmicas, especialmente daquelas/es ligadas/os às Humanidades. Isto foi importante porque se, inicialmente, os trabalhos destas/es teóricas/os foi o de inventariar e denunciar as condições sociais, trabalhistas e domésticas nas quais a mulher estava submetida, eles puderam, posteriormente, fazer vir à tona não só o grito de uma parcela de gente que ao longo do tempo viveu no silêncio, mas também fazer emergir as vozes apaixonadas (e é bom que se frise isto, pois estas vozes não eram decididamente mornas, pelo contrário, eram marcadamente políticas) de mulheres dispostas a saírem do cárcere-lar e a transformarem “as até então esparsas referências às mulheres – as quais eram usualmente apresentadas como exceção, a nota de rodapé, o desvio da regra masculina – em tema central” (LOURO, 1998, p. 19), contribuindo, sobremaneira, para o redimensionamento do fazer acadêmico, já que a objetividade, imparcialidade, isenção são postas em xeque por elas, bem como para o embaralhamento das noções de esfera pública/ privada, de família, de casamento, de sentimento, de prazer, de corpo e, é claro, para a revisão de nossas sexualidades. Por isso, mesmo que num primeiro momento a discussão em torno de categorias de gênero e sexo tenha se dado no sentido de marcar a diferença entre um e outro, a partir, inclusive, de obras como as de Simone Beauvoir, por exemplo, a tentativa de apregoar a ideia de gênero (gender[5]) como termo distintivo para sexo (sex) foi importante para o argumento que rejeitava o determinismo biológico implícito em expressões como “sexo” ou “diferença sexual”, bem como se fez determinante para compreensão de que há uma construção histórica, social e cultural produzida sobre a biologia, que até então era tida como o destino. No entanto, esta divisão tende a se esfumaçar em trabalhos que se seguiram a esse primeiro momento da compreensão de gênero/sexo, como é o caso das reflexões de Judith Butler, que apontam aprimoramentos nesta conceituação, especialmente no sentido de explicitar que tal cisão - entre sexo e gênero - foi necessária, inicialmente, a fim de deslocar a ideia de que o biológico é o limite, mas que outras formulações precisavam ainda se colar a esta, uma vez que da maneira como de início foi desenvolvido o argumento, dava a impressão de que o gênero era um constructo cultural que se estabelecia sobre o sexo – ainda entendido como algo natural. O que se propõe no pensamento de Butler e de muitas/ os estudiosas/os hoje é o de que o sexo também se faz/existe como tal a partir da codificação que fazemos dele via linguagem, ou seja, são os processos de significação que definem o suposto binarismo macho/fêmea. Esta perspectiva destece o argumento de que somente sobre corpos masculinos pode se dar a construção de homens e, vice-versa, que a construção de mulheres seja entendida apenas em relação a corpos femininos. Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante, com a conseqüência de que homem e masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino. (BUTLER, 2003, p.24-25) Nº: 21-22

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Vejam que é preciso desnaturalizar o sexo, deixar de entendê-lo como prédiscursivo, como precedente à cultura, como algo imutável. “Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio constructo chamado ‘sexo’ seja tão culturalmente construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma.” (BUTLER, 2003, p. 25). Por isso é que não cabe dizer que o gênero se forja na cultura e o sexo se molda na natureza, como se este fosse uma espécie de terreno politicamente intocável, não maculado, onde/sobre o qual se ergueriam os agentes culturais. Insistir no sexo como elemento a priori só faz fortalecer o discurso que enrijece sua casca dual, garantindo, assim, que sua edificação binária permaneça sedimentada. Além disso, tomar o sexo como algo que recebe as marcas da cultura significa, no percurso deste processo, fazê-lo inexistir, uma vez que, assumidos pelo gênero, os significados sociais atribuídos ao sexo o tornam um local fantasioso, ou seja, o tornam somente linguagem. O argumento de que a sexualidade seria dada pela natureza se apoia numa concepção que se fundamenta na exterioridade do corpo, que seria usado por todos nós de igual maneira. Interessante que nossa sexualidade “envolve rituais, linguagens, fantasias, representações, símbolos, convenções” (LOURO, 2001, p.11) que, de maneira alguma, dão ao sexo e ao corpo esses contornos naturais. Por isso, o gênero não pode ser, de maneira alguma, entendido como uma manifestação cultural que se assenta sob uma natureza corporal ou sexual - pois o sexo é regulado pelas normas que determinam o processo de significação da matéria. Há ainda, para radicalizarmos mais o argumento de que o sexo não é esta superfície sobre a qual se reveste a cultura, mas que ele é efeito do poder que materializa os corpos, a experiência trans (de transexuais, de travestis, de transgêneros). Berenice Bento (2003) defende que os corpos “já nascem ‘maculados’ pela cultura”, ou seja, ao desenvolver sua aposta, a autora vai apontando que aquilo que se julga natural é resultado dos processos de interpelação que fazemos desde antes mesmo do nascimento. Diz ela que diálogos como: “Já sabe o sexo do bebê? – É um menino! - Então, te mostrarei a sessão para os homenzinhos”, ajudam a compor todas as expectativas, gostos, comportamentos que se espera que o bebê tenha/assuma a partir do momento que vir a luz. Assim é que a autora vai dizer que os corpos-sexuados são revelados discursivamente pelas interpelações que possuem efeitos protéticos. “Analisar os corpos enquanto próteses significa livrar-se da dicotomia entre corpo-natureza versus corpo-cultura e afirmar que, nesta perspectiva, as/os mulheres/ homens biológicas/os e as/os mulheres/homens transexuais se igualam” (BENTO, 2003). Somos, portanto, corpos cirurgiados, cuja primeira intervenção é justamente esta: a cirurgia que nos constroi como homem ou como mulher. E isto de natural não tem nada. Talvez seja por isto que a experiência trans [6] seja importante para a descaracterização biológica das identidades de gênero/sexuais, uma vez que elas/eles se colocam, talvez mais que quaisquer outras/os, na fronteira, no liame, na confluência tênue que escapole ao panoptismo [7] dos gêneros que vigia e força todos os corpos à heteronormatividade. Vejam que fugir do binóculo heteronormativo institucionalizado na Família, na Igreja, no Estado, na Justiça, na Escola, na Mídia, ou produzido pelos saberes da Biologia, da Medicina, da Biomedicina, da Psiquiatria, da Psicologia, da Pedagogia é extremamente difícil diante dos discursos que naturalizam as relações hétero como modelo de normalidade. E os sujeitos trans, de certo modo, conseguem desfocar as lentes do binóculo justamente porque vivem confluindo, metamorfoseando-se entre uma banda e outra, estão sempre num devir-corpo-homem e num devir-corpo-mulher, desalojando aquilo que era Nº: 21-22

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entendido como certo em termos de identidades de gênero/sexuais, deslocando os lugares sociais destas identidades, invalidando os costumes, destratando as verdades introjetadas não suficientes para garantir-lhes uma identidade segura. Ou, como nos sugere a personagem de Almodóvar, talvez a vivência trans possa mesmo questionar a ideia de autenticidade dos corpos, no momento em que ela subverte a fé depositada na legitimidade do que aprendemos a ver como homem ou mulher. Quando Agrado diz que “ficamos mais autênticas quanto mais nós nos parecemos com o que sonhamos que somos” é para mostrar que o corpo é móvel, plástico, remembrável, desdobrável, protético, cirúrgico, de modo ser impossível falar numa autenticidade natural dos corpos. As marcas que autenticam um corpo como masculino ou feminino são fabricadas, implantadas, extraídas, modificadas, recortadas, costuradas, rasgadas, tatuadas, apagadas, num processo de questionamento permanente da ideia idílica de origem e de construção do corpo híbrido, do homem-máquina: O ciborgue é uma criatura de um mundo pós-gênero: ele não tem qualquer compromisso com a bissexualidade, com a simbiose pré-edípica, com o trabalho não alienado. O ciborgue não tem qualquer fascínio por uma totalidade orgânica que pudesse ser obtida por meio da apropriação última de todos os poderes das respectivas partes, as quais se combinariam, então, em uma unidade maior. Em certo sentido, o ciborgue não é parte de qualquer narrativa que faça apelo a um estado original, de uma “narrativa de origem”, no sentido ocidental, o que constitui uma ironia “final”, uma vez que o ciborgue é também o telos apocalíptico dos crescentes processos de dominação ocidental que postulam uma subjetivação abstrata, que prefiguram um eu último, libertado, afinal, de toda dependência – um homem no espaço. (HARAWAY, 2000, p. 42-43) Neste sentido, a experiência trans – mesmo daquelas/es não submetidas/os ao bisturi que lhes dariam uma vagina ou um pênis e, assim, terminaria o empreendimento que se iniciou com os hormônios, o silicone e tantas outras próteses (permanentes ou móveis) – é indispensável para mostrar como as formas de resistência ao projeto de normalização dos corpos persistem, apesar das estratégias biopolíticas (FOUCAULT, 2001a, 2002b, 2002c) de captura dos corpos e da subjetividade serem ferozes, vorazes, inclusive porque criam o desejo de ajustamento à normalidade. É claro que, por conta do desejo de normalidade, da vontade de se reconhecer e ser reconhecido como normal, do anseio em poder ser decodificado, lido e interpretado pelo olhar inquisidor da normalidade como um corpo traduzível, como um corpo-mulher e um corpo-homem “de verdade”, muitas/muitos transexuais, por exemplo, depois de operadas/ os e com suas novas anatomias redesenhadas, embarcam nessa mesma lógica e reclamam respeito. Talvez seja por isso que [...] os/as transexuais que reivindicam as cirurgias não são motivados, principalmente, pela sexualidade, mas para que as mudanças nos seus corpos lhes garantam a inteligibilidade social, ou seja, se a sociedade divide-se em corpos-homens Nº: 21-22

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e corpos-mulheres, aqueles que não apresentam essa correspondência fundante tendem a estar fora da categoria do humano. (BENTO, 2003) A cirurgia é desejada, portanto, mais por fatores ligados à aceitação social – é preciso ser vista/o como mulher/homem senão não é possível conseguir emprego, frequentar a escola, o clube etc. A vagina e o pênis são requeridos porque sem eles não há maneira de habitar a normalidade, não há jeito de receber o aval necessário que garanta o lugar social, a inclusão na norma e o estabelecimento de ações que vão desde a escolha de que banheiro usar na escola ou restaurante até o direito de serem chamadas/os pelo nome feminino/ masculino que adotaram. Casos como o de Roberta Close, que foi capa da revista Playboy em maio de 1984, também são interessantes para mostrar como é latente esse desejo de se enxergar/sentir inteligível, uma vez que o perturbador (e ao mesmo tempo provocador de interesse/desejo, eu diria) em alguns corpos trans, por exemplo, é justamente a indefinição, a convivência de seios com pênis, composição esta que torna este corpo inclassificável do ponto de vista médico, social, religioso (mas ao mesmo tempo fonte de curiosidade e atração, eu também diria). Se Roberta Close pôde deixar fotografar sua nudez para uma revista dirigida aos homens heterossexuais - mesmo antes da operação que lhe esculpiria uma vagina - foi porque, de uma certa maneira, ela já era considerada, através de uma série de outras inscrições feitas no seu corpo (cabelo, unhas, peitos, depilação...), muito mulher[8]. Com a operação, um tempo depois (e talvez por isso muitas/os transexuais a desejam) a construção da vagina lhe abriu ainda mais as portas para uma vida longe do disformismo que a deixava em indefinição, em suspense. E a lógica é esta mesma, isto é, discursar que para ser mulher é preciso ter vagina e peito, pois assim se fortifica o apelo à heteronormatividade que, repetindose, reiteirando-se, citando-se, interrompe a situação de fronteira. Quando digo reiteirandose, citando-se, estou querendo dizer que a produção de corpos-homens ou corpos-mulheres, ou o estabelecimento de atos performativos que ancoram identidades hegemônicas, bem como as linhas de resistência criadas como contraponto a tal hegemonia, acontece por aquilo que Butler (2001, 2003), firmada na ideia de citacionalidade[9] de Derrida, chamou de performatividade, ou seja, repetições e citações fora do contexto hegemônico, determinante, natural, que tentam romper com a normatização das práticas de gênero a partir de contradiscursos ao processo de normalização dos corpos. Tento desenvolver isto melhor: para Butler (2001, 2003), a assunção de uma identidade de gênero/sexual, longe de se dar de maneira congênita, é imposta por mecanismos que compõem um “aparato regulatório” da heterossexualidade, conjunto de técnicas estas que estão dispostas e que reiteram a si mesmas através da produção forçosa do sexo, de modo que a assunção da sexualidade é, desde o começo, forçada a se constituir da maneira como quer este aparato, esta lei reguladora dos corpos e das práticas de gênero/sexuais. No entanto, a significação deste corpo que está submetido a esta lei não se faz necessariamente porque a lei o obriga a ser como é, mas sim porque a lei mobiliza ações que, através do acúmulo citacional que se repete, gera os corpos comandados por ela. Quer dizer que a norma regulatória age como um tipo de poder que ao marcar, diferenciar, classificar é capaz de produzir os corpos que controla, de modo que a materialização do sexo num corpo não é simplesmente resultado de uma plástica estético-fisiológica, mas sim da reiteração discursiva que se impõe e interpela este corpo. Deixe-me ver se consigo dizer isto de outro jeito: quando, por exemplo, ouvimos as futuras mamães dizerem - naquelas reuniões de trocas de experiências e presentes antes Nº: 21-22

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de o bebê nascer – que não veem a hora de saber o sexo da criança para assim poderem compor o enxoval azul, se for menino, ou rosa, se for menina; ou quando os pais respondem a perguntas como “mas é menino ou menina?”, com uma afirmação bastante categórica do tipo “é um baita homenzinho”; ou ainda, quando se diz para uma criança coisas como “não, isto não pode, boneca e casinha não são brincadeiras de menino”, uma série de citações são recuperadas e reiteradas de tal forma que, ao serem trazidas à lembrança, elas acabam produzindo o “masculino” e o “feminino” normatizado pela heterossexualidade. O próprio ato de falar constroi aquilo que nomeia e talvez, por isso, a sensação de apagamento da historicidade destes enunciados e a fé de que são eles naturais. Desse modo é que [...] a performatividade dever ser compreendida não como um ‘ato’ singular ou deliberado, mas, ao invés disso, como prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia. [Portanto] [...] as normas regulatórias do ‘sexo’ trabalham de uma forma performativa para constituir a materialidade dos corpos e, mais especificamente, para materializar o sexo do corpo, para materializar a diferença sexual a serviço da consolidação do imperativo heterossexual. (BUTLER, 2001, p. 154) Portanto, ao dizer “menina não pode jogar bola”, por exemplo, não se está simplesmente descrevendo um ato ou dando um conselho, mas sim se está inscrevendo no corpo as marcas que produzem a mulher da heteronormatividade: o corpo sexuado é criado, assim, através de forças políticas que geram um efeito discursivo que se reitera como natural e verdadeiro. Acontece que, como já disse, há sempre neste processo fissuras que acabam rompendo com tal projeto, e aí o tiro sai pela culatra, isto é, a experiência da performatividade, por desenvolver resistências à heteronormatividade[10], vai desestabilizar a lei hegemônica e apontar as inúmeras outras possibilidades de materialização do sexo: eis que surgem as/os travestis, as/os[11] transexuais, os transgêneros com suas perucas, seu salto alto, suas próteses, seu silicone, seus hormônios e muita purpurina, rasgando o verbo e estufando o peito para mostrar a instabilidade dos corpos, a fluidez do sexo e o caráter nominal que transforma uma criança num ser dicotomizado em menina ou menino. A maneira como esses corpos experienciam a vida escancara a dimensão linguística da construção dos gêneros e faz ver como a nomeação trabalha para reiterar de forma espetacularizada, via diferentes instâncias pedagógicas, inculcadoras da norma (Família, Estado, Escola, Medicina, Mídia...), e durante muitos intervalos de tempo, o estabelecimento da trincheira, da cerca. Essas vidas apontam, ainda, para as possibilidades de desestabilização das regras que definem o “humano”, na medida em que suas existências escorregam e escapam do domínio da linguagem que tenta instaurar a ordem dos gêneros. Todos estes argumentos e experiências são importantes, pois afastam qualquer conotação de cunho essencialista, transcendental sobre a construção das identidades de gênero: elas se dão, de fato, de maneira espiralada, num processo de construção que precisa levar em conta não só as diferenças sócio-culturais, mas também, a multiplicidade (étnica, racial, de classe, religiosa) encontrada no interior de uma mesma sociedade. Neste caso, é preciso entender o gênero como elemento constituidor (assim como outros elementos) da identidade dos sujeitos. É por isso que as identidades são sempre plurais, múltiplas, mutantes, paradoxais e é, por conta disto, também, que elas estão sempre diferindo: a pós-modernidade Nº: 21-22

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impele com força o sujeito em diferentes direções, ora para sua condição de homem, ora para sua condição de negro, ora para sua condição de homossexual, ora para sua condição de brasileiro e, assim, sucessivamente, de maneira que sonhar com uma “identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.” (HALL, 2001, p.13). Se o sujeito pós-moderno é múltiplo, ele pode exercer sua sexualidade de várias formas (com pessoas do mesmo sexo, com pessoas do sexo oposto, com pessoas de ambos os sexos, com pessoa nenhuma), ou seja, seus desejos, prazeres e atos sexuais podem ser exercidos de diferentes modos, mas todos, de alguma forma, constituindo isso a que chamamos de identidade sexual deste sujeito. Diante disto, cabe dizer que o gênero masculino não é um constructo fixo, estável, homogêneo, do mesmo modo que o gênero feminino também não é um conjunto rígido, seguro, harmônico, já que, ambos, estão sempre em constante processo de relação/ diferenciação. Essa hipótese serve para desconstruir a oposição binária entre homem-mulher, especialmente porque sempre há, numa perspectiva colocada em pares, o privilégio do primeiro em relação à subordinação do segundo. Despolarizar essa dicotomia vale, portanto, porque se presenciamos a pulverização do sujeito a manutenção da ordem dicotômica inviabilizaria a ideia de que diferentes formas de masculinidade e feminilidade são possíveis de se constituir socialmente e, consequentemente, ratificaria posições de anulação de pessoas que não coubessem neste esquema dual, ou seja, expulsaria sujeitos que experienciam uma posição oblíqua em relação à condição de homens e mulheres considerados de verdade, uma vez que há inúmeras possibilidades de construção destas identidades: [...] elas [as identidades de gênero] estão continuamente se construindo e se transformando. Em suas relações sociais, atravessadas por diferentes discursos, símbolos, representações e práticas, os sujeitos vão se construindo como masculinos ou femininos, arranjando e desarranjando seus lugares sociais, suas disposições, suas formas de ser e de estar no mundo. (LOURO, 1998, p. 28) Desse modo, as identidades de gênero/sexuais se constituiriam a partir de inúmeras possibilidades de vivências sexuais (homossexual, heterossexual, bissexual, pansexual...). Entender isso é importante para não se deixar levar pelas narrativas homofóbicas que sugerem a ideia de que os homossexuais, por exemplo, fazem parte de um gênero, digamos, defeituoso, imperfeito, anormal. São filhotes destas narrativas, aliás, outras que tentam construir a imagem do gay masculino com trejeitos femininos e das lésbicas com características masculinas, como se todas/os lésbicas e gays correspondessem a estes atributos. Importante é dizer que o interior de cada gênero não é uno, não possui uma gênese, não há no gênero masculino uma essência de homem (homo ou hétero) pronta e no feminino uma essência de mulher (homo ou hétero) acabada, o que implica, inclusive, em descartar os argumentos estéreis – bêbados que estão da heteronormatividade - que insistem em tentar dizer/afirmar sobre as possibilidades de “causas” que, conjecturamente, seriam responsáveis pela homossexualidade. Precisamente da mesma forma que, por muitas e contraditórias razões, não faz sentido discutir o que “causa” a heterossexualidade, também não faz nenhum sentido – nem mesmo como projeto político – discutir as “causas” da Nº: 21-22

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homossexualidade. Nenhuma identidade sexual – mesmo a mais normativa – é automática, autêntica, facilmente assumida; nenhuma identidade sexual existe sem negociação ou construção. Não existe, de um lado, uma identidade heterossexual lá fora, pronta, acabada, esperando para ser assumida e, de outro, uma identidade homossexual instável, que deve se virar sozinha. Em vez disso, toda identidade sexual é um constructo instável, mutável e volátil, uma relação social contraditória e não finalizada (BRITZMAN, 1996, p.74) Parece que o que Deborah Britzman propõe é a ideia – e me alio a ela - de que, em se tratando de desejos, afetividades, amor, não há regulamentação capaz de determinar que as identidades trafeguem nos trilhos dos discursos hegemônicos da biologia, da medicina, da normalidade. Aliás, quando o que está em jogo são nossas práticas sexuais, afetivas e amorosas, a diferença tem a força de flagrar-se desenvolvendo estratégias que lhe afastam de qualquer imposição contratual, de qualquer tentativa de predição, de qualquer forma de normalização, no sentido de que – estando a diferença continuamente em devir – ela possa, com esse tornar-se ininterrupto, escapar da armadilha da fixidez armada pelo pensamento determinante. NOTAS [1] Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Maringá – UEM. Graduado em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Professor Assistente da UFPR, onde desenvolve pesquisas e orientações na área de Letras e Educação, com ênfase nas temáticas de Educação e Relações de Gênero e Teoria Queer. Pesquisador do Núcleo de Estudo de Gênero da UFPR. [2] Monólogo da personagem transexual Agrado, extraído do filme “Tudo sobre minha mãe”, de Pedro Almodóvar. A tradução de Espanhol para Português foi feita por mim, a partir dos diálogos transcritos do DVD do filme. [3] Este texto é resultado de alguns excertos de minha dissertação de mestrado, intitulada “Homossexuais, Insubmissos e alteridades em transe: representações da homocultura na mídia e a diferença no jogo dos dispositivos contemporâneos de normalização”, defendida em agosto de 2004, no Programa de Pós-graduação em Letras, da Universidade Estadual de Maringá – UEM. [4] “Será no deslocamento da assim denominada ‘segunda onda’ – aquela que se inicia no final da década de 60 – que o feminismo, além das preocupações sociais e políticas, irá se voltar para as construções propriamente teóricas. No âmbito do debate que a partir de então se trava, entre estudiosas e militantes, de um lado, e seus críticos ou suas críticas de outro, será engendrado e problematizado o conceito de gênero.” (LOURO, 1998, p.15) [5] O termo “gender” foi usado pela primeira vez como distintivo de “sex” pelas feministas anglo-saxãs, conforme Joan Scott (1995). [6] Sei que há diferenças tanto de ordem político-identitária na experiência do sujeito trans, especialmente entre a transexualidade e a travestilidade. Sei que cada sujeito, seja a/o transexual, seja a/o travesti se enxerga e enxerga o outro de forma diferente, reclamando para si, inclusive, status de feminilidade e masculinidade diferentes. No entanto, na presente análise, não entrarei nessa questão complexa que envolve tanto jogos de imagens e representações como reclames políticos de asseguramento de direitos civis (o que seria assunto para outras conversas). Para esse momento, o que me interessa marcar é que a experiência do sujeito trans (seja transexual, seja travesti, seja transgênero) é que perturba e, por isso mesmo, são estas vivências alvo de constantes tentativas de policiamento, enredamento, captura pelos saberes médico-biológicopsiquiátrico-pedagógicos. [7] Panoptismo vem da ideia de panóptico que, segundo Foucault (2001b), a partir da figura arquitetural de Benthan, representaria todo um conjunto de técnicas disciplinares que visam o corpo e o controle deste corpo por meio dos mais sutis

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e incisivos mecanismos de observação e vigilância, que acabam, por sua vez, gerando saberes sobre o outro com efeitos de poder sobre esse outro e sobre si mesmo. [8] Na época, a edição da Revista Playboy com Roberta Close na capa causou muita polêmica, inclusive por conta do slogan da edição que foi: “Incrível. As fotos revelam por que Roberta Close confunde tanta gente”. Evidentemente que a revista não mostrou fotos de sua genitália. Outra frase comum na época era: “A mulher mais bonita do Brasil é homem”. [9] A ideia de citacionalidade derridiana é derivada de uma releitura da elaboração do conceito de Atos Performativos de Austin (1990), que estabelece como acontecem os processos de repetição na linguagem, a partir da ideia de que ao se proferir um enunciado, por exemplo, ao fazê-lo não se está simplesmente descrevendo o ato que se estaria praticando no momento da fala, mas sim se está construindo a própria ação. Neste sentido é que, segundo Bento (2003), Derrida, tomando a escrita como um processo repetível, vai dizer que é justamente esta possibilidade que a linguagem tem de se reduplicar, mesmo que longe do produtor ou de um suposto interlocutor, que vai lhe permitir este caráter de independência. [10] É importante dizer que, obviamente, não tomo heterossexualidade como um constructo homogêneo e/ou uniforme. Pelo contrário, sei que, como todo conjunto identitário, o heteronormativo (assim como o homossexual) também possui fissuras, já que as identidades são construídas discursivamente, pelos processos de significação. [11] Uso ambos os artigos - “a” e “o ” - para me referir aos sujeitos trans não só por uma questão de fazer marcar a possibilidade desses sujeitos poderem construir um corpo-mulher ou um corpo-homem, mas também porque há, entre esses sujeitos, lingüisticamente falando, posicionamentos diferenciados em como elas/eles querem ser chamadas/os ou, até mesmo, em como elas/eles se auto referem. Para saber mais, ver: BORBA, 2006.

REFERÊNCIAS AUSTIN, John. Quando o dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. BENTO, Berenice. Transexuais, corpos e próteses. Labrys, Estudos Feministas. nº 4, ago/dez 2003. Disponível em: . BORBA, Rodrigo. Alteridades em fricção: a construção discursiva de identidades em interações entre travestis e mulheres na prevenção de DST/AIDS. Dissertação de Mestrado, RJ: UFRJ, 2006. BRIZTMAN, Deborah. P. O que é esta coisa chamada amor – identidade homossexual, educação e currículo. In: Educação e Realidade. jan./jun., 1996, vol. 21, n. 1, p.71-96. ISSN: 0100-3143 BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O Corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 152-172 _______. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2002a. ______. Em defesa da sociedade. Trad. de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002b. ______. História da Sexualidade: a vontade de saber. V. 1. 14 ed. Trad. de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2001a. ______. Os anormais. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002c. ______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 24 ed. Trad. de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2001b. HALL, Stuart. A identidade Cultural na pós-modernidade. 5ed. Trad. de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: SILVA, Tomaz Tadeu (org.) Manifesto do ciborgue. As vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 37-129 LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 2ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. ______. Pedagogias da Sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O Corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 7-34 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação e Realidade. Jul/dez, 1995, vol. 20 n. 2, p.71-99. ISSN: 0100-3143 SIERRA, Jamil Cabral. Homossexuais, insubmissos e alteridade em transe: representações da homocultura na mídia e a diferença no jogo dos dispositivos contemporâneos de normalidade.Maringá: UEM, 2004. Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Maringá, 2004.

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A POLARIZAÇÃO DOS CORPOS DESEJANTES Guaraci da Silva Lopes Martins[1]

Resumo O presente artigo resulta do interesse na investigação sobre as relações de poder associadas à subjetividade dos corpos. Para tanto, desenvolveu-se uma análise com base no filme Meninos não Choram sob a direção de Kimberly Pierce, obra artística que contribui para o processo de questionamento de discursos que tendem à manutenção de hierarquias socialmente construídas e manifestadas em diferentes formas de opressão contra o feminino. Ainda que seja alvo de discriminação, de exclusão, de evasão escolar, esta temática permanece à margem das discussões no ambiente escolar. Considera-se que ao contrariar normas e regras que transitam pela via dos discursos, tal como Brandon/Tenna, protagonista do referido filme, muitos estudantes também desestabilizam limites de fronteira entre o masculino/ feminino. Assim, o filme analisado é um estímulo à reflexão sobre as identificações consideradas arbitrárias acerca da heteronormatividade e sobre a urgente necessidade de estratégias políticas e pedagógicas comprometidas com novas abordagens sobre os processos socioculturais envolvidos na construção das identidades. Palavras-chave: educação; arte; identificações.

Abstract This article is the result of an investigation on bodies subjectivity linked to power relations. For that, a study of this picture Boys don’t cry, by Kimberly Pierce has been developed. In fact, that film is a major source for some specific speeches concerning social hierarchy maintenance, built and also shown in different forms of oppression against the female gender. Since this gender keeps on being discriminated, as well as being put aside, and somehow doesn’t fulfill all school years, this theme is not supposed to be focused in conversations at school. It is to be considered that this motion picture character, Brandon/Tenna can be compared to a number of students who are not able to deal well with male/female gender boards. Thus, this film turns out to be an utter point for reflexion on arbitrary thoughts towards heteronormativity. Besides, Boys don’t cry invites people to think over urgent political and pedagogic needs due to new approaches on social cultural processes linked to the construction of identities. Keywords: school education; art; identifications.

INTRODUÇÃO Desde o ano de 2009 esta pesquisadora participa do Grupo de Estudos e Pesquisas em Relações de Gênero e Tecnologia – GETEC do PPGTE/UTFPR, grupo este que contribui para o aprofundamento da reflexão de todas/todos as/os envolvidas/os sobre as relações de Nº: 21-22

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poder associadas à subjetividade dos corpos. Em um desses encontros quinzenais que acontecem ao longo do ano, a discussão sobre este tema foi desenvolvida com base no filme Meninos não Choram sob a direção de Kimberly Peirce. Seguindo a organização estabelecida pelo grupo, naquele momento específico o debate se iniciou com a fala desta pesquisadora, a partir da análise prévia com determinados apontamentos sobre o referido filme. Esta experiência culminou com o interesse da mesma na elaboração do presente artigo com o intuito de contribuir no processo de questionamento de discursos que tendem à manutenção de hierarquias socialmente construídas e manifestadas em diferentes formas de opressão, de violência contra o feminino em diversas instituições sociais, incluindo-se o espaço escolar. Assim sendo, acredita-se que ao contrariar conceitos, normas e regras que transitam pela via dos discursos, num ato eminentemente político, a/o protagonista do referido filme Brandon/Tenna desestabiliza conceitos demarcadores dos limites de fronteira entre o masculino/feminino. O filme aqui analisado, é um convite para a reflexão sobre as identificações consideradas arbitrárias à heteronormatividade, e também sobre a urgente necessidade de estratégias políticas e pedagógicas comprometidas com novas abordagens sobre os processos socioculturais envolvidos na construção das identidades. Baseado em uma história verídica, logo no início do filme Os Meninos não Choram dirigido por Kimberly Peirce, a personagem Brandon/Teena anuncia a subjetividade corporificada que se constrói em um movimento em direção ao “outro”. Assim, com a sua própria imagem, ela/ele convida os espectadores ao questionamento dos limites produzidos no campo da heterossexualização naturalizada dos corpos. Para Judith Butler (2003), quando se age e se deseja reproduzir o homem ou a mulher de verdade, espera-se que cada ato seja reconhecido como aquele que nos posiciona legitimamente na ordem de gênero, fazendo-se funcionar um conjunto de verdades que se acredita estarem fundamentadas na natureza. De fato, as expectativas por parte do outro estão intimamente relacionadas às idealizações dos gêneros: verdades que definem os comportamentos, os desejos e os pensamentos apropriados para homens e para mulheres. A relação das personagens centrais em Meninos não choram abala a pequena comunidade na medida em que contraria a lei de perpetuação da espécie que rege as relações sexuais e reifica as noções binárias de gênero. Quer-se explicitar que o filme leva para o espaço da cena a relação afetivossexual de duas pessoas que rompem com a rígida fronteira estabelecida aos corpos, o que vem a desestabilizar o sistema de troca sobre o qual a regra da exogamia se legitima. Diante daquele relacionamento, as próprias mulheres, constituídas como tais dentro das normas da heteronormatividade compulsória demonstram a sua indignação e o seu repúdio contra aquela relação considerada como anormal, antinatural. Nesse sentido, o filme denuncia o status quo de controle moral e social ainda presente na atualidade. Um homem ou uma mulher “de verdade” deverá ser necessariamente heterossexual, sob o risco de ser exilada/exilado das relações sociais, punida/punido com a morte, a exemplo de Meninos não choram. Ainda se parte de uma noção de corpo como alvo passivo sobre o qual se inscreve um conjunto de significados culturais e se reforça a ideia de uma essência naturalmente masculina ou feminina, inscrita na subjetividade. Em Berenice Bento (2006) lê-se que o corpo é um texto socialmente construído, um arquivo da história do processo de produção-reprodução sexual que ganha inteligibilidade por intermédio da heterossexualidade condicionada e circunscrita pelas convenções históricas. Gradativamente, o corpo se molda às convenções que foram social e culturalmente estabelecidas para o gênero, marcadas pelo binarismo homem/mulher e determinantes também na forma de as pessoas manifestarem os seus sentimentos, emoções e desejos: “Nascer homem ou nascer mulher, em nossa sociedade, cria uma identidade em oposição à Nº: 21-22

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do sexo que não é o seu (o sexo oposto), distanciando-se dele e negando-o.” (AUAD, 2003, p.57). Esta é a ordem a ser obedecida no sistema binário dos gêneros produtor e reprodutor da ideia: a de que o gênero reflete o sexo e todas as outras esferas constitutivas dos sujeitos estão associadas à naturalização dos corpos. Por outro lado, para Guacira Lopes Louro, “na medida em que várias identificações — gays, lésbicas, queers, bissexuais, transexuais, travestis — emergem publicamente, elas também acabam por evidenciar, de forma muito concreta, a instabilidade e a fluidez das identidades sexuais”. (2001, p. 31). De fato, na vida em sociedade, assim como no mundo da ficção especialmente por meio das linguagens artísticas, é possível constatar o amplo leque de manifestações que gradativamente evidenciam o caráter inventado, cultural e instável das identificações. Tal como a/o personagem Brandon/Tenna, determinados sujeitos que também se constroem no espaço da resistência às normas regulatórias, “afetam, assim, não só seus próprios destinos, mas certezas, cânones e convenções culturais.” (LOURO, 2008, p. 2425). Ao se identificar no terreno da masculinidade, esta personagem contraria as formas socialmente estabelecidas ao sujeito “desejante” e assume a condição de “desviante” da norma e isso interrompe a linha de continuidade e de coerência que se supõe natural entre corpo, sexualidade e gênero. Com efeito, uma ação política por excelência, mas “nas atuais condições, um ato que ainda pode cobrar o alto preço da estigmatização”. (LOURO, 2001, p.31). O diretor Kimberly Peirce expõe ao espectador a homofobia levada às últimas consequências com a morte da personagem Brandon/Tenna, vítima de variadas formas de violência física, moral e psicológica ao longo de todo o desenrolar desta obra cinematográfica. O ESPAÇO ESCOLAR NO PROCESSO DE MUDANÇA A escola faz parte integrante da sociedade em que se vive e muitas vezes ela reforça e reproduz códigos de condutas circunscritas a modelos de vigilância e de controle, produzindo também o indivíduo da sociedade disciplinar. Contudo, a instituição escolar é um espaço ideal para oferecer condições necessárias para que os estudantes desenvolvam o exercício de questionamentos de pressupostos pautados no senso comum. Este que oferece condições para que as pessoas operem sobre a realidade circundante, ao mesmo tempo em que as orienta na busca do sentido da existência. Entretanto, de acordo com as autoras abaixo: O senso comum não é refletido: impõe-se sem críticas ao grupo social. Por ser um conjunto de concepções fragmentadas, muitas vezes incoerentes, condiciona a aceitação mecânica e passiva de valores não-questionados. Com frequência, o senso comum se torna fonte de preconceitos, quando desconsidera opiniões divergentes. (ARANHA e MARTINS, 1992, p. 56)

Os signos possuem uma característica dinâmica; portanto, considerar o seu conteúdo único implica a eliminação das contradições sociais pela imposição de um só sentido para a realidade. Os processos políticos e culturais implicados na reprodução de ideologias e nas práticas sociais opressivas em todos os aspectos da organização escolar e da vida diária da sala de aula merecem o urgente envolvimento das/dos docentes em suas ações docentes. Tal implicação precisa estar pondo em xeque as diferentes formas de feminilidade e masculinidade constituídas socialmente, e nesta esteira, a naturalização e a superioridade Nº: 21-22

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da heterossexualidade. Importa esclarecer que, por mais de uma década esta pesquisadora exerceu a função docente no Ensino Médio no Colégio Estadual do Paraná onde ministrou a disciplina de Artes norteada pela área específica de formação dela. Dessa forma, nas aulas de teatro teve-se a oportunidade de observar que os papéis sociais e padrões de comportamento estabelecidos pela sociedade marcadamente heteronormativa são levados para o espaço da cena pela grande maioria das/dos adolescentes. Acrescente-se que desde o ingresso na FAP esta estudiosa ministra a disciplina curricular obrigatória – Estágio Supervisionado – no terceiro ano do Curso de Licenciatura em Teatro quando a/o aluna(o) desenvolve o seu estágio em instituições de ensino regular nos anos finais do Ensino Fundamental e Médio. Os depoimentos obtidos ao longo do estágio realizado pelas(os) alunas(os) em processo de formação e também a supervisão empreendida no campo de atuação deles/as constatam a urgência da adoção de estratégias pedagógicas voltadas para a igualdade de direitos na escola, no interior da ordem social existente. Mais uma vez foi possível observar a marcante presença de estereótipos em torno do corpo naturalizado e reproduzido nas atividades teatrais desenvolvidas pelos estudantes do Ensino Básico. Lembro que as diferenças existem e é a partir delas que se é posicionado e se posiciona. É na minha disponibilidade permanente à vida a que me entrego de corpo inteiro, pensar crítico, emoção, curiosidade, desejo, que vou aprendendo a ser eu mesmo em minha relação com o contrário de mim. E quanto mais me dou à experiência de lidar sem medo, sem preconceito, com as diferenças, tanto melhor me conheço e construo meu perfil. (FREIRE, 2004, p.134)

Contudo, o reconhecimento das diferenças muitas vezes é utilizado para criar desigualdade; principalmente nas sociedades ocidentais que tendem a transformar o que é diferente em desigual; então, estabelecem uma hierarquia de poder entre os diferentes, apresentando uns como superiores e outros como inferiores. Essa é uma lógica política que tende à dominação de uns sobre outros, e que muitas vezes tende a ferir a cidadania plena dos sujeitos. A regulação de conduta também se inscreve nos discursos do currículo, que autoriza ou desautoriza, legitima ou deslegitima, inclui ou exclui. Na perspectiva dos Estudos Culturais, as/os professoras/es definem o seu terreno político porque oferecem às/aos estudantes discursos alternativos e práticas sociais críticas, cujos interesses estão em dissonância com o papel hegemônico da escola e com a sociedade que a mesma apoia. Entende-se que a escola é um espaço que precisa caminhar “de mãos dadas” com todos os processos que se inclinam a uma sociedade mais justa e igualitária, especialmente porque os pressupostos de universalidade, responsáveis pela prescrição de um único modelo familiar, matrimonial e amoroso permanecem na sociedade contemporânea, marcada por fortes reações, geralmente pautada em bases religiosas, autodefinidas como defensoras da família verdadeira, legítima, sagrada e natural. É importante salientar que o reconhecimento social de experiências de multiplicidade afetivossexuais e de novas modalidades familiares está efetivamente ocorrendo. Em sua pesquisa sobre as novas famílias, Luiz Mello (2005) refere-se à variedade histórica que evidencia as dificuldades de construção de conceitos gerais e unívocos de família e de casamento. O autor discute o número cada vez maior de gays e lésbicas que Nº: 21-22

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decidem de variadas formas tornar pública a sua orientação sexual, na tentativa de superação da discriminação: “não omitindo de seus parentes, amigos, vizinhos e colegas de trabalho, a existência de um cônjuge do mesmo sexo em suas vidas, numa atitude claramente política”. (MELLO, 2005, p.21). Nesse contexto, as lutas políticas dos homossexuais no que se refere ao reconhecimento de suas relações afetivossexuais estáveis como de ordem familiar, é o resultado de questionamentos e transformações importantes para a dissociação do exercício da sexualidade das demais esferas do casamento e da reprodução. Essas lutas evidenciam a compreensão da família e dos cônjuges como construções socioculturais dinâmicas e mutáveis. Concordando com Mello (2005), na transcendência dos limites das fronteiras, por meio de suas vivências amorosas e sexuais, muitos sujeitos acabam por desafiar os fundamentos básicos da normatividade social. É oportuno mencionar um importante movimento, cuja meta é estimular e garantir medidas legislativas, administrativas e organizacionais, para que em todo sistema brasileiro de ensino seja assegurada a inclusão do nome social de travestis e transexuais nos diários escolares. Em uma de suas recentes reportagens, o jornal “Gazeta do Povo” de maior circulação no estado do Paraná, divulgou uma nota na primeira página com a seguinte manchete: “Transexual ganha na Justiça o direito a mudar de nome sem cirurgia de sexo”. Na reportagem, o leitor é informado ter o Judiciário paranaense tomado uma decisão inédita no Estado, no sentido de autorizar a mudança do nome masculino de uma transexual feminina, sem que esta tenha realizado a intervenção médica para a readequação de sexo. No corpo da matéria, a advogada da transexual, C.A., declara: “Eu convivi com ela e presenciei situações constrangedoras. Teve de abandonar os estudos pelo preconceito que sofria (...)” (GAZETA DO POVO, 08/01/2009). Na mesma página, a manchete “Entidades querem que escola use o nome social”, trata sobre situações discriminatórias contra as/os transexuais, tal como texto abaixo selecionado: O preconceito e o constrangimento são algumas das causas que levam transexuais a abandonarem a escola. Muitos não completam sequer o ensino fundamental e na fase adulta acabam sem profissão definida. (GAZETA DO POVO, 08/01/09, p. 8)

Na mesma matéria encontra-se o depoimento de Keila Simpsom, atual presidente da Articulação Nacional dos Travestis, Transexuais e Transgêneros (ANTRA), por meio da qual ela nos esclarece: “A evasão escolar em razão do preconceito é uma realidade. Eles não estudam porque não querem, mas porque as escolas se fecharam”. O jornal acrescenta ainda que: As associações não dispõem de estatísticas referentes ao universo de travestis e transexuais em fase escolar. Mas, segundo Keila, há estimativas indicando que 90% dos travestis e transexuais estão na prostituição, enquanto um percentual de apenas 3% a 5% estuda. (Gazeta do Povo, 08/01/09, p. 8)

Para Mary Garcia Castro Castro et al (2004), a discriminação contra homossexuais, além de ser abertamente assumida, em particular por jovens alunos, é valorizada entre eles, “o que sugere um padrão de masculinidade por estereótipos e medo ao estranho próximo, o Nº: 21-22

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outro, que não deve ser confundido consigo” (Ibid., p. 280). É possível afirmar, voltando-se ao filme Meninos não choram que Brandon/Teena carrega consigo um inaceitável comportamento de conduta imoral e favorece aos que o rodeiam a oportunidade do massacre: ele/ela feriu os padrões previamente estabelecidos pela convenção social. Para as pessoas que o/a perseguem ele/ela estaria contrariando a natureza; por isso, deve ser destruído/ destruída. Ora, a violação do direito de ser e de estar neste mundo, tal como aconteceu com Brandon/ Teena permanece muito presente no contexto social dos dias atuais. Observa-se que, enquanto aqueles/aquelas que buscam seus/suas iguais biológicos/biológicas como parceiros afetivossexuais, permanecerem sob o estigma doença-pecado-crime – o monopólio do desejo permanecerá restrito à relação homem-mulher. Nessa perspectiva, obras de arte como Meninos não Choram são de extrema relevância na medida em que desafiam generalizações e contribuem para a reflexão das/ dos espectadoras/espectadores sobre questões pertinentes à ambiguidade, multiplicidade e fluidez das identificações de gênero e sexualidade. O QUEER NO CENÁRIO EDUCACIONAL CONTEMPORÂNEO Ao estender a hipótese da construção social para o domínio da sexualidade, a teoria queer problematiza a identidade sexual considerada normal: a heterossexualidade compulsória da sociedade. Para Nádia Perez Pino (2007), essa teoria se interessa pelos gestos ou modelos analíticos que evidenciam as incoerências da suposta relação estável e revelam que a heterossexualidade não é natural, mas é o efeito do poder, do controle e da regulação social. Acrescente-se que a teoria queer não se resume na afirmação da identidade homossexual, mas contribui para o desenvolvimento de novas perspectivas, na medida em que ela aponta para a multiplicidade das subjetivações e das práticas, o que contraria conceitos pautados na coerência e na estabilização de identidades. Ela contribui para o questionamento de verdades que definem os comportamentos, os desejos e os pensamentos apropriados para homens e para mulheres. Tal como a teoria queer, quando norteada por uma metodologia de análise e compreensão do conhecimento e das identificações sexuais, a pedagogia queer o possibilita a problematização das classificações e dos enquadramentos que impõem limites à concepção de gênero e de sexualidade. Para Louro (2008) uma pedagogia e um currículo queer possibilitaria o questionamento da polarização heterossexual/homossexual, pondo em xeque a naturalização e o caráter superior produzido em torno da heterossexualidade. De fato, a pedagogia queer propicia o olhar mais ampliado sobre a fluidez das identidades, sugerindo ainda “novas formas de pensar a cultura, o conhecimento, o poder e a educação” (Ibid., p. 47). Saliente-se que o amplo campo teórico existente hoje em torno do sexo, gênero e sexualidade se mantém inexplorado no ambiente escolar. Mesmo em se tratando dos temas transversais que integram os Parâmetros Curriculares Nacionais, esta temática é direcionada principalmente para a prevenção da gravidez entre as/os adolescentes e das doenças sexualmente transmissíveis com enfoque mais direcionado para a AIDS. CONSIDERAÇÕES FINAIS Na mesma medida em que os discursos sobre a sexualidade estão se modificando e se multiplicando, também os mecanismos de resistências pautadas em ideias conservadoras se desdobram com novos tipos de intervenção social e políticas; elas buscam, com efeito, a preservação da concepção fortemente polarizada dos gêneros. Os efeitos de doutrinas naturalistas e conservadoras culminam na violação de direitos humanos praticada contra Nº: 21-22

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determinados sujeitos que interrompem a linha de continuidade e de coerência que se supõe natural entre sexo, gênero e sexualidade. No filme, Meninos não Choram, a trágica morte da protagonista é apenas um exemplo dentre tantos outros atos de violência perversamente cometidos contra determinados sujeitos na cena da vida cotidiana. Frequentemente os meios de comunicação deste país estampam manchetes relacionadas a atos desumanos, incluindo agressões e assassinatos contra pessoas em função de sua orientação sexual. Contudo, não se pode perder a capacidade de indignação diante de situações que violam os princípios básicos de uma vida cidadã. Entende-se que pensar em Direitos Humanos em pleno século XXI significa refletir sobre os aspectos éticos, socioeconômicos, culturais, normativos e de relação com o poder que se apresentam em nosso cotidiano. Significa pensar nas formas de opressão vivenciadas por segmentos historicamente ausentes do circuito de direitos e sobre as demandas no campo da diversidade. Convive-se com uma pluralidade de interpretações e de construções de subjetividade com significados múltiplos, ao contrário do que alguns discursos apontam para afirmar as identidades monolíticas e coerentes. Acredita-se que os primeiros passos para se lidar com as questões de gênero se encontram em propostas que permitam a compreensão ampliada em termos de pluralidades e de diversidades. Este processo de mudança necessita partir de uma epistemologia capaz de contribuir para a subversão de esquemas que impedem as pessoas de se expressarem ou vivenciarem suas relações, seja dentro ou fora dos padrões da heterossexualidade. A escola precisa articular-se com as novas necessidades, com as novas situações e reformular as diretrizes de seus objetivos, visando a resultados além das competências cognitivas e intelectuais para atingir também o espaço das competências morais e afetivas. Assim, é imprescindível que as teorias e práticas educacionais forneçam as condições necessárias para que cenas de violência vivenciadas por Brandon/Teena sejam questionadas visando a minimização das injustiças e das relações sociais de desigualdade. As configurações de gênero devem se fazer presente no currículo escolar de todos os níveis de educação como uma área legítima de conhecimento no processo de formação do sujeito. Nesta perspectiva, a partir das primeiras etapas da vida acadêmica, a escola possibilitaria uma melhor relação da criança com as diferenças de gênero, com os tabus relativos ao corpo. Cabe o investimento em processos de ensino e aprendizagem potencialmente críticos e transformadores, para que as/os estudantes desenvolvam a oportunidade de aprender os conhecimentos e as habilidades necessárias para a vida em uma autêntica democracia. É possível afirmar que a instituição educacional pode viabilizar o questionamento da concepção fortemente polarizada dos gêneros. O desafio está no entendimento dos/das professores/as de que as identidades são cambiantes, contestáveis e discursivamente construídas, para que possam estender essa discussão para o espaço da sala de aula. Na medida em que o estudo sobre a construção e as práticas identitárias devem incorporar-se no currículo das escolas é fundamental que essa temática se faça presente no processo de formação inicial e continuada do professorado.

NOTA [1] Especialista em Didática para o Curso Superior-PUC/PR; Mestre em Educação-Universidade Tuiuti do Paraná; Doutora em Artes Cênicas-UFBA; docente da Faculdade de Artes do Paraná – FAP; líder do Grupo de Pesquisa Arte, Educação e Nº: 21-22

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Formação Continuada; integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas e Relações de Gênero e Tecnologia – GETEC do PPGTE/CEFET-PR.

REFERÊNCIAS ARANHA, Maria Lúcia; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de filosofia. São Paulo: Moderna, 1992. AUAD, Daniela. Feminismo: que história é essa? Rio de Janeiro: DP&A, 2003. BENTO. Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. BOREK, Vinicius Direitos Humanos: Transexual pode trocar de nome sem fazer cirurgia. Curitiba: Gazeta do Povo, 08 jan. 2009, p.8. BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CASTRO, Mary Garcia et al. Juventudes e Sexualidade. Brasília: UNESCO, 2004. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 30 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004. LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da sexualidade. In: O Corpo educado: pedagogias da sexualidade. (org.) ______. et al. Belo Horizonte: autêntica, 2001. ______. Um corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. MELLO, Luiz. Novas familias. Conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. PINO, Nádia Perez. A teoria queer e os intersex: experiências invisíveis de corpos des-feitos. In: Cadernos Pagu. Campinas, n. 28, p. 149-174, Jan./Jun. 2007. ISSN 0104-8333. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n28/08.pdf. Acesso em: 13 abr. 2011. SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. 9 reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

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