Brutalidade Delicada: a Trilogia de Guerra de Gianikian e Ricci Lucchi

June 28, 2017 | Autor: Miriam De Rosa | Categoría: Avant-Garde Cinema, Film Studies, Italian Cinema, Art and Independent Cinema, Documentary Film
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Descripción

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BruTALiDADE DELiCADA: A TriLoGiA DA GuErrA DE GiANiKiAN E riCCi LuCCHi” MIRIAM DE ROSA

Conflito representa um tema central por toda a obra de Angela Ricci Lucchi e Yervant Gianikian. Eles o abordam respeitosamente quando sua câmera captura as vítimas, com compaixão ao filmar os derrotados, exercendo um olhar distante, porém, severo sobre os opressores, atentamente como seu trabalho reconstrói os eventos e enfatiza quando atribui um tom narrativo a eles via trabalho de edição e manipulação cromática do filme. O resultado é uma extraordinária habilidade para retratar o conflito em sua essência multifacetada: nos é apresentada a injustiça realizada com relação às minorias, a violência provocada pelo colonialismo, a agressão do homem com a natureza e os animais e – sobretudo – as atrocidades cometidas durante as guerras mundiais. A atenção dos dois cineastas está focada especial-

mente na Primeira Guerra Mundial, à qual eles consagraram como a Trilogia da Guerra.

A Tríade composta por Prigionieri della guerra (1995), Su tutte le vette è pace (1999) e Oh! Uomo (2004), que foi selecionada para a Mostra Cineastas na Fronteira, representa, de fato, um acesso denso e privilegiado ao trabalho dos cineastas e a uma complexa, no entanto fascinante, reflexão sobre sua elaboração cinematográfica da ideia de conflito. A Trilogia da Guerra fornece uma meditação perspicaz sobre a implicação da história do passado no presente e futuro, bem como um ensaio magistral sobre a materialidade corpórea da guerra.

Os três filmes são baseados em arquivos de imagens de filmes que englobam amadores e militares do Império Austro-húngaro e do Czar. Em Prigionieri della guerra, as imagens mostram as condições de vida da população nos dois lados opostos das linhas inimigas, trazendo à tela grande o que geralmente é deixado fora do quadro, pois os Gianikians não selecionam várias sequências de batalha, mas preferem reservar uma atenção específica para o que hoje seria chamado de “efeitos colaterais” da guerra. Deslocando-se da linha de frente para o que é deixado para trás, são apresentados os rostos dos refugiados, dos prisioneiros e dos cadáveres caídos.

Em Su tutte le vette è pace – que é considerada a continuação do filme anterior – sofrimento e crueldade são particularmente enfatizados, a imagem permanece nos soldados desgastados marchando na neve enquanto carregam canhões pesados, a paisagem de montanha devastada por bombas e trincheiras, os objetos abandonados no campo de batalha, como se fossem sobras sinalizando a presença recente de seus proprietários e ao mesmo tempo sua abrupta ausência. Mas a importância radical de testemunho através de traços, ruínas e

cicatrizes encontra sua expressão mais poderosa em Oh! Uomo, onde os diretores parecem descer plenamente às profundezas infernais da guerra. Esta é uma jornada epidérmica, ao longo da qual o olho do espectador é guiado por um catálogo horrível de rostos deformados, membros mutilados e próteses mecânicas, carnes e tecidos cortados, monstruosos pontos desenhando linhas desfiguradas de dor na pele de soldados e sobreviventes. Tais imagens exibem os sinais desumanos deixados pela guerra no corpo do homem, sendo o epítome do processo de desconstrução do ser humano através de seu corpo e sua posterior reconstrução artificial. Os Gianikians constroem estas figuras de sofrimento carnal ao examiná-los detalhadamente, graças à sua câmera analítica10 que retarda o ritmo furioso da guerra ao tomar o tempo para observar e refletir, para destacar os aspectos da imagem que, caso contrário, seria perdida para procurar a humanidade residual na aberração, para reconhecer um destino universal nas histórias do indivíduo e para negociar uma aceitabilidade impossível no que não poderia parecer um ícone de uma brutalidade profunda que simplesmente é sem rima ou razão . A tentativa de traçar uma conexão entre histórias particulares e uma reconstrução mais ampla dos eventos é encontrada basicamente nas entrelinhas de muita filmografia do casal. No caso das memórias da Primeira Guerra Mundial, a Trilogia da Guerra faz cinematograficamente visível o agrupamento de documentos e diários desenvolvidos pelos historiadores, como no caso da representação desesperada de Felix Hecht da condição extrema de viver na geleira Adamello, à qual é dedicada a uma sequência de Su tutte le vette è pace. A história de um soldado austríaco representa um exemplo emblemático das experiências traumáticas comuns e os processos Notre caméra analytique

de desumanização a que todos os que participaram do conflito foram expostos. Ante as atrocidades da guerra e a dificuldade de falar sobre elas, os cineastas foram capazes de traduzir os resultados de tais pesquisas em uma forma mais expressável; de acordo com Robert Lumley, a representação fílmica dos Gianikians finalmente permite que memórias e histórias pessoais entrem dentro do reino da “história pública”11. Esta é uma maneira de tornar a natureza indescritível da guerra mais acessível e paradoxalmente ‘suave’, para desvendar a relação importante de consubstancialidade entre passado, presente e futuro que está no cerne do cinema dos cineastas. Eles explicaram este conceito muito claramente:

[...] ‘nosso trabalho é ‘fluido’. Tem um valor ético. Encontramos as imagens [nas quais trabalhamos] extremamente atualizadas.

exibida de forma abstrata, como foi ‘escasseada’, um fato

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associar [uma à outra], fazê-las dialogar, entrar em conflito, interagir; [queremos] produzir ‘choques elétricos’ naqueles que olham para elas. As imagens devem desencadear uma elaboração: isto é onde cada espectador é

As imagens de violência apresentadas pela Trilogia da Guerra desafiam o espectador e se referem precisamente a seu pensamento moral e ao compromisso com a história a qual ele também faz parte.

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Tal questão ética gira em torno de sua real possibilidade de preservar a memória do passado e, mais importante, aprender as lições do passado para melhorar sua condição atual e, possivelmente, o futuro. A ênfase sobre a dimensão (dimensões) temporal e a influência entrelaçada que alguém reciprocamente exerce sobre o outro representam uma ponte simbólica que conecta o tempo do filme e as filmagens encontradas para a administração e, por sua vez, para o espectador. Da mesma forma, a grosseira caracterização da visão da carne humana dilacerada e os ossos esmagados implicam o espectador ao chocá-lo. A sensação corpórea produzida pela visibilidade detalhada da dor faz alusão à representação também corporal sobre a realidade incorporada pelo espectador.

Schoonover formula esta categoria em seu brilhante estudo sobre o cinema italiano do pós-guerra, encontrando no neorealismo o locus a partir do qual esta atitude parece brotar, com o objetivo de localizar, no mesmo contexto, a especificidade histórica do humanismo brutal do espectador, olhando ao mesmo tempo além do parâmetro nacional, destacando uma relevância recentemente avaliada do neorealismo em si dentro do panorama fílmico extranacional. Minha proposta é que na verdade humanismo brutal pode ser recuperado no cinema antigo, como as filmagens encontradas e retrabalhadas pelo Gianikians em seus filmes, assim como no cinema recente, como demonstrado pela Trilogia da Guerra (1995; 1999; 2004), e, portanto, essa noção pode ser novamente prorrogada.

Em consonância com a tentativa de Schoonover de expandir em termos espaciais a centralidade do neorrealismo ao estudo do cinema por meio do conceito de humanismo brutal, sugiro que uma expansão temporal da noção de humanismo brutal em si pode fornecer um fundo histórico mais profundo ao processo de representação da corporalidade como uma figura-chave no quadro de um determinado regime de presença e uma política específica do olhar – um processo que posteriormente encontra sua conclusão no neorrealismo e ainda inerva os filmes contemporâneos que compartilham da mesma postura ética e relacionamento forte com a história. Desnecessário dizer que este é o caso dos filmes dos dois cineastas.

12 - Entrevista pessoal com os cineastas conduzida em 2012.

Como discutido anteriormente, sua obra não só permite reconstituir uma trajetória que liga o indivíduo ao elemento universal, mas também aproveita o aspecto rítmico típico apresentando seus filmes para propor o que poderia ser entendido como sua interpretação pessoal

Entering the frame: cinema and history in the films of Yervant Gianikian and Angela Ricci Lucchi,

que apenas temos acesso à nossa humanidade comum em momentos que vemos o sofrimento dos outros. 13

que a corporalidade excepcional do corpo em perigo

[...] a estranha simbiose de violência e humanitarismo,

O que quero discutir, então, é que, se por um lado os filmes dos Gianikians habilitam o observador a desenvolver sua ethos, à qual eles buscam para seu engajamento e, assim, permite que expresse sua humanidade compassiva e construtiva; por outro lado eles parecem garantir um acesso real e um convite para participar da história pública, especialmente através da imagem do corpo atormentado. Em outros termos, a natureza delicada e poderosa da humanidade aqui é inerentemente vinculada à exibição da brutalidade. Esta é uma política visual (e ética) que Karl Schoonover propõe chamar de “humanismo brutal.” O termo é definido como:

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do humanismo brutal: o movimento lento da imagem sublinha os traços concorrendo em compor uma “microfisionomia do rosto”14 capaz de abrir uma perspectiva anatômica da guerra, mostrando a persistência do pesar. Ao fazer isso a câmera analítica literalmente funciona como um dispositivo, que estabelece uma posição de observação segura para o espectador. O observador situa-se em segurança no local Hans Blumenberg notavelmente descrito15, designado por Schoonover como alguém também em uma posição de outsider, no entanto, a Trilogia da Guerra parece implicá-lo novamente. Retardando o tempo da imagem, os Gianikians oferecem-lhe tempo e propõe-lhe ser afetado pela imagem, dando-lhe a oportunidade de se tornar corporalmente e eticamente implicado. Claro, deixar as margens seguras implica o risco de um naufrágio, mas a ausência de uma temporalidade apressada e corrida dá ao espectador um vislumbre, o encantamento que ele pode experimentar. Compartilhando a mesma reverência respeitosa perante a imagem, Angela Ricci Lucchi e Yervant Gianikian quase ritualmente expressam, em seu meticuloso trabalho sobre o filme, o espectador oferecido à oportunidade preciosa de perder-se ao encantamento, de descobrir a conclusão de sentir-se engajado, de tomar nas mãos o privilégio de tomar uma decisão, de escolher e estabelecer seu próprio “direito de olhar.”16 E, possivelmente, de divulgar o significado do delicado poder de mentir além da brutalidade. Estou em dívida com Greg de Cuir Jr. pelos seus comentários generosos e pelas longas e estimulantes discussões sobre os filmes mencionados. Devo, também, a Rinaldo Censi e Toni D’Angela a chance de encontrar o meu glimpse de encantamento ao escrever este texto. Brutal vision 14 - Entrevista pessoal com os cineastas conduzida em 2012. Shipwreck with spectator: The right to look.

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