BELAS, Carla A.. Cerâmica tradicional de Cascavel. Rio de Janeiro: Iphan/CNFCP, Sala do Artista Popular, v. 185, p. 8-33, 2016.

June 2, 2017 | Autor: Carla Belas | Categoría: Brasil, Artesanato, Ceramica, Moita Redonda
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Descripción

cerâmica tradicional de cascavel

Cerâmica de Cascavel

185

2016

sala do artista popular

S A P museu de folclore edison carneiro

Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular Iphan / Ministério da Cultura

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Presidente: Jurema de Sousa Machado

Programa de Promoção do Artesanato de Tradição Cultural – Promoart Coordenação Técnica: Elizabete Vicari Coordenação Administrativa: Cristiano Mota Mendes

Departamento de Patrimônio Imaterial Diretor: TT Catalão

Polo: Cerâmica de Cascavel Gestora: Elizabete Vicari

Ministério da Cultura Ministro: Juca Ferreira

Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular Diretora: Claudia Marcia Ferreira Parceria Institucional Vale Presidente: Murilo Ferreira

parceria institucional

realização

Apoio local Instituto 3 ARTE - Arte, Tecnologia e Educação Associação de Moradores da Moita Redonda Presidente: Tércio Araripe Associação Comunitária dos Moradores da Moita Redonda Presidente: Francisco Otávio Alves Dantas

Cerâmica no quintal das casas de Moita Redonda Cascavel

Setor de Pesquisa Programa Sala do Artista Popular

COORDENADORA Maria Elisabeth Costa PESQUISA E TEXTO Carla Arouca Belas Fotografias Carla Arouca Belas Acervo CNFCP Edição e revisão de textos Lucila Silva Telles Ana Clara das Vestes

C411





32p. : il. -- (Sala do Artista Popular ; n. 185).



ISSN 1414-3755



Catálogo da exposição realizado no período de 02 de junho a 10 de

julho de 2016.

DIAGRAMAÇÃO Daniele Bustamante Rafael Froitzheim (estagiário)



1. Cerâmica – Cascavel/CE. 2. Artesanato em barro. 3. Artesão. 4.

Moita Redonda – Cascavel/CE. I. Belas, Carla, org. II. Museu Vivo do Barro - Moita Redonda – Cascavel/CE. III. Série.

projeto de montagem e Produção da Mostra Luiz Carlos Ferreira Produção de trilha sonora Alexandre Coelho

Cerâmica tradicional de Cascavel / texto de Carla Belas. -- Rio de

Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2016.



CDU 738(813.1)

S A P

185

2 0 1 6

sala do artista popular

museu de folclore edison carneiro

A Sala do Artista Popular, do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/CNFCP, criada em maio de 1983, tem por objetivo constituir-se como espaço para a difusão da arte popular, trazendo ao público objetos que, por seu significado simbólico, tecnologia de confecção ou matéria-prima empregada, são testemunho do viver e fazer das camadas populares. Nela, os artistas expõem seus trabalhos, estipulando livremente o preço e explicando as técnicas envolvidas na confecção. Toda exposição é precedida de pesquisa que situa o artesão em seu meio sociocultural, mostrando as relações de sua produção com o grupo no qual se insere. Os artistas apresentam temáticas diversas, trabalhando matériasprimas e técnicas distintas. A exposição propicia ao público não apenas a oportunidade de adquirir objetos, mas, principalmente, a de entrar em contato com realidades muitas vezes pouco familiares ou desconhecidas. Em decorrência dessa divulgação e do contato direto com o público, criam-se oportunidades de expansão de mercado para os artistas, participando estes mais efetivamente do processo de valorização e comercialização de sua produção.

O CNFCP, além da realização da pesquisa etnográfica e de documentação fotográfica, coloca à disposição dos interessados o espaço da exposição e produz convites e catálogos, providenciando, ainda, divulgação na imprensa e pró-labore aos artistas no caso de demonstração de técnicas e atendimento ao público. São realizadas entre oito e dez exposições por ano, cabendo a cada mostra um período de cerca de um mês de duração. A SAP procura também alcançar abrangência nacional, recebendo artistas das várias unidades da Federação. Nesse sentido, ciente do importante papel das entidades culturais estaduais, municipais e particulares, o CNFCP busca com elas maior integração, partilhando, em cada mostra, as tarefas necessárias a sua realização. Uma comissão de técnicos, responsável pelo projeto, recebe e seleciona as solicitações encaminhadas à Sala do Artista Popular, por parte dos artesãos ou instituições interessadas em participar das mostras.

Casa da artesã Joelma Martins Camilo

Cerâmica tradicional de Cascavel carla arouca belas

A cerâmica é a principal referência de Moita Redonda, lugar com cerca de 800 habitantes (CENSO, 2010) localizado no município de Cascavel, no Ceará. Distante 60km de Fortaleza pela CE-040, este povoado possui uma rua central e oito transversais. Entre casas simples de alvenaria e taipa, chama a atenção os inúmeros fornos de queima de argila construídos pelos moradores em seus quintais. A paisagem local é marcada também pela areia em abundância e pelo vaivém de baldes transportados nas cabeças ou em carrinhos de mão. Na falta de água encanada, dois reservatórios localizados na rua central abastecem os moradores que não possuem poços em seus quintais. Nesta rua, encontramos também os principais equipamentos do local: a escola, a capela, o posto de saúde, uma pequena vendinha de gêneros de primeira necessidade, a lanchonete e sete lojas de venda de artesanato de cerâmica. O número aparentemente excessivo de lojas de artesanato está relacionado à tradição ancestral da modelagem do barro na localidade. Pode-se dizer que a história da produção de cerâmica em Moita Redonda se confunde com a história do

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povoamento do território onde se encontra hoje o município de Cascavel. Os artesãos não sabem precisar ao certo a origem dessa tradição, afirmam se tratar de um legado do tempo de seus avós, aprendido com povos indígenas. Quando os primeiros colonizadores iniciaram o povoamento da região, entre os séculos 17 e 18, as margens do rio Choró eram habitadas pelos povos Paiacu, Jenipapo e Canindé. Segundo Albuquerque, o contato entre indígenas e colonos nesta região, embora marcado por inúmeros confrontos e episódios de aldeamentos forçados, propiciou uma intensa troca cultural, incluindo o uso e, provavelmente, a confecção de utensílios de barro. [...] O resultado da mútua influência cultural se via em toda parte. As cozinhas, por exemplo, mesmo as das casas grandes de fazenda mais ricas, eram repletas de utensílios de barro. Se existiam “louças finas”, estavam bem guardadas, reservadas somente para ocasiões festivas. As cuias de cabaças serviam de bacias e outros condimentos. Cadeiras e tamboretes eram de couro e madeira, por outro lado, as camas de couro ou de varas conviviam e, muitas vezes, perdiam espaço para as redes indígenas (2002, p.78). A existência de barro de qualidade e em abundância na várzea do rio Choró e do rio Mal Cozinhado impulsionou de tal forma o desenvolvimento da atividade oleira que grande

parte das casas de Moita Redonda funciona, atualmente, como ateliê de produção de cerâmica. É na residência dos moradores que ocorrem os processos de armazenagem, tratamento, modelagem, pintura e queima do barro. A cerâmica tradicional de Moita Redonda tem como principais características identitárias a modelagem manual, a coloração avermelhada das peças e a decoração com desenhos de motivos variados na cor branca. Trata-se de colorações

Loja de venda de artesanato na rua principal

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naturais, obtidas por meio do uso de tipos diferenciados de barro encontrados na região. Esse padrão decorativo é aplicado especialmente na confecção de produtos utilitários como moringas, potes grandes e panelas. As panelas de barro in natura, sem qualquer tipo de coloração ou desenho, também são consideradas uma tradição local, com grande demanda de restaurantes da capital e de diversos municípios do Ceará. Nos últimos anos, entretanto, tem ocorrido um intenso processo de substituição da cerâmica tradicional identitária por artefatos de baixo custo, produzidos em série com o auxílio de torno e pintados com tinta acrílica. Os artesãos, com o apoio do poder público local e entidades não governamentais, como o Instituto Beija Flor (IBF), desde 2004, têm desenvolvido projetos em parceria com o Ministério da Cultura com o fim de encontrar alternativas para valorizar a produção ceramista e garantir a sua continuidade. Dentre essas iniciativas, se destacam a criação de um Ponto de Cultura e um Ponto de Memória1. O projeto “Lampião da Arte e da Cultura”, desenvolvido no âmbito do Ponto de Cultura, propiciou a realização de oficinas de transmissão de saber, a fim de favorecer a troca entre artesãos experientes e a nova geração. Essas oficinas, realizadas desde 2005, contam com a parceria da escola pública de Moita Redonda, resultando na participação de 100 jovens e 30 mestras artesãs2. O Museu Vivo do

Miaeiro cerâmica, artesã Tarina

Panela de barro, artesã Joelma Martins Camilo

Barro, Ponto de Memória fundado em 2012 com apoio e financiamento do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram/ MinC), é formado por 45 ateliês e uma pequena CasaMuseu, que têm suas localizações indicadas por meio de placas instaladas nas entradas das ruas do povoado. Dessa forma, foi criado o “Caminho do Barro”, uma rota de visitação turística às casas dos artesãos que busca promover e divulgar o modo de produção local e favorecer a venda direta por parte dos produtores. Embora o Museu tenha sido recentemente desativado por falta de recursos e dificuldades de gestão, as placas indicativas dos ateliês permanecem visíveis e servem de referência aos visitantes do local.

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Na atualidade, o artesanato em cerâmica no município de Cascavel gera renda para cerca de 200 artesãos da zona rural, especialmente nas localidades de Moita Redonda e Boa Fé. Os produtores são representados por duas associações: a Associação dos Moradores da Moita Redonda (Amore), que tem 45 associados, todos artesãos ceramistas; e a Associação Comunitária dos Moradores de Moita Redonda, que possui 40 associados, sendo 26 ceramistas. Apesar de não constituírem associações exclusivas de ceramistas, estas duas entidades reúnem a maioria dos artesãos de cerâmica da localidade. A adesão a essas associações, no entanto, não foi capaz de alterar a tradicional organização social e política

dos produtores, baseada em laços de parentesco. Decisões sobre o que, quanto e de que modo produzir, bem como o preço de venda não são coletivas, definidas em assembleias comunitárias, mas tomadas de forma independente, em cada núcleo familiar. Essas dificuldades de organização social refletem o contexto atual de massificação da produção, de desvalorização da cerâmica no mercado local e da crescente escassez de matériasprimas. Estratégias coletivas para a aquisição conjunta de equipamentos e matérias-primas, padronização de preços de venda busca por mercados diferenciados e sustentabilidade dos recursos naturais empregados na produção se fazem a cada dia mais prementes; são desafios que produtores e suas organizações devem enfrentar para garantir a continuidade da atividade ceramista local.

O barro Os artesãos de Moita Redonda utilizam três tipos de barro com colorações distintas, que assumem diferentes funções no processo de produção da cerâmica artesanal. O barro escuro, de coloração amarronzada, é usado para a modelagem; o barro vermelho, denominado de tauá ou (toá) vermelho, é utilizado para dar coloração avermelhada às peças; e, por fim, Placa do Caminho do Barro

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Museu do Barro integra o caminho do barro

o barro branco, denominado de (toá) branco, é usado para a elaboração de desenhos ornamentais. Estudos demonstram que essa diferença de coloração é resultado da composição do solo. Em áreas de maior incidência de óxido de ferro, por exemplo, é comum encontrar um barro mais avermelhado. O barro de cor branca é bem mais difícil de se obter, sendo geralmente extraído de profundidades maiores (Alves, 2005; Gordilho et al., 2012). Os artesãos de Moita Redonda obtêm esses três tipos de barro em diferentes áreas às margens do rio Mal Cozinhado e do rio Choró – que tem 205 quilômetros de extensão, banhando vários municípios do Ceará, e sua foz fica no limite entre Cascavel e Beberibe. De acordo com Tércio Araripe, presidente da Amore, o barro do rio Mal Cozinhado é usado na confecção de moringas e potes decorativos. O do rio Choró, considerado de melhor qualidade, serve à confecção de peças que serão usadas no fogão, como panelas e assadeiras. José Pereira da Silva, 62 anos, conhecido como Deca, é um dos poucos artesãos que ainda se dedicam à produção da cerâmica de modo tradicional. Conhece bem todas as etapas da confecção – extração das matérias

primas, tratamento do barro, modelagem e queima das peças. Deca começou a extrair barro ainda criança, acompanhando o pai ao barreiro. Foi seu pai quem lhe ensinou a identificar o local de extração do tauá branco, habilidade da qual ainda hoje se orgulha, embora reconheça que a cada dia se torna mais difícil encontrar esse tipo de barro na região: Quando meu pai era vivo a gente ia tirar o barro num riacho próximo daqui. Tirávamos uma grande carga de barro, passava o dia todo cavando e depois a gente deixava lá pra secar. Uns dias depois nós íamos buscar no lombo de um burro. O toá branco é difícil, não é todo mundo que sabe não. Quando meu pai tirava, ele me dizia: ‘meu filho, você sempre vai nessa veia de barro’. Toda vez que ele ia pegar barro, quando eu era pequeno, como eu gostava de tomar banho de rio, eu ia. Eu pegava uma enxadinha pequena Barro de cor vermelha

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e cavava aqui e ele do lado de cá... Ele disse ‘meu filho, você tem uma mente muito boa, num instante você encontra toá bom’. Eu ia cavando, enchia um saco, dois, e o que eu enchia era pra minha mãe. Nessa época nós íamos em animais, burro e cavalo, levávamos quatro animais. Eu tinha dez para 12 anos... O toá branco só encontra em lugar profundo e dentro da água, parece encantado, nem todo mundo tira... Eu, graças a Deus, um dia enchi 15 sacas. Comecei às oito horas, quando deu duas da tarde, já tinha 15 sacas colhidas! Eu cavava, botava pra cima e os meninos colhiam... dois metros de profundidade... Eu levava de seis a oito homens pra trabalhar, um cabra só não pode nada não. Antigamente, eu fazia essa empreitada pra colher, hoje nem pra comprar eu compro, porque não tem quem tire. Eu tenho que procurar o dono do sítio, pagar a ele e eu mesmo tirar... a parte mais difícil é o toá branco. Atualmente, a maioria das áreas utilizadas pelos artesãos para a extração de barro é de propriedade de olarias que fornecem matéria-prima para a construção civil. Inicialmente, as olarias permitiam o acesso dos artesãos às jazidas. Nos últimos anos, contudo, passaram a cobrar pelo fornecimento de todos os tipos de barro, como nos explica Nazaré Martins, a esposa de Deca: Deca preparando o barro

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Deca preparando o barro

Esses que nós estamos usando agora é só mais a tinta, porque o toá branco não existe mais. Nas localidades onde as pessoas tiravam, eram donos antigos que não faziam conta da pessoa tirar, mas esses sítios foram vendidos pra outros, pessoas ricas [proprietários das olarias], que não tem precisão disso e, quando a gente quer tirar, vendem muito caro. O dono do terreno dava pra qualquer um, mas não sabia pra que era... nós às vezes pegávamos um saco de açúcar, tirávamos e passava um bom tempo [sem tirar de novo]...

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A aquisição do barro comum, para a moldagem das peças de cerâmica, é medida em “carrada”, o que equivale a 6m3 da carroceria de um caminhão e custa de 300 a 600 reais, dependendo da qualidade do barro. Em geral, cada família utiliza entre uma e duas carradas por ano. O tauá branco, utilizado apenas na pintura das peças, é adquirido em menor quantidade: em média, compra-se, ao preço de 100 reais, uma saca com 60kg de matéria bruta, que ainda perde metade do seu peso depois da retirada das impurezas. Além de encarecer os custos da produção, as olarias são responsáveis pelo rápido esgotamento do barro e a redução de áreas para a obtenção dos de coloração vermelha e branca. Após a extração ou a compra, os artesãos armazenam o barro nos quintais das suas casas, mantendo-o ao ar livre até o momento da produção das peças. Antes da modelagem das peças, o barro armazenado passa por um processo de tratamento. Deca explica que o barro bom resulta da mistura do que eles chamam de “barro cortador” e “barro tremedor”. O primeiro tipo de barro, mais duro, é quebrado com o

Seu Muniz ao lado de forrageira

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auxílio de uma marreta e o segundo é peneirado. Depois de quebrado, o barro é posto num balde com água por mais ou menos uma hora para amolecer. Em seguida, mistura-se a isso o pó de barro, passando para a próxima etapa, o pisamento. Maromba de propriedade do artesão Berge O objetivo desse processo é garantir um barro mais macio e homogêneo para a modelagem. De acordo com Deca, é necessário em torno de uma hora e meia de pisamento para que o barro esteja pronto. Ele explica ainda que esse processo é fundamental para garantir a qualidade do barro e reduzir a chance de que as peças quebrem no momento da queima. O uso de equipamentos como a forrageira e a maromba, cada dia mais comuns entre os artesãos, tem facilitado o processo de produção, reduzindo o esforço físico dessas etapas mais penosas de quebrar, misturar e amassar o barro. A forrageira faz o trabalho equivalente ao que seria feito na marreta, deixando o barro tão fino que não há necessidade de peneiramento. Foi inventada pela família Muniz e apenas os artesãos desta família têm acesso ao equipamento. A maromba substitui a etapa do pisamento, na qual se amassa o barro para formar uma massa compacta, homogênea e

desairada. Atualmente a comunidade possui quatro máquinas, adquiridas com recursos do Programa de Promoção do Artesanato de Tradição Cultural – Promoart, que atendem os artesãos da comunidade em esquema de revezamento. Deca nos informou que, em um dia de uso contínuo da maromba são processados em torno de 700kg de barro. Essa quantidade é 3,5 vezes maior do que ele é capaz de processar em um dia de trabalho em que amassa o barro de forma manual. Tendo em vista o fato de a maromba representar um aumento significativo na capacidade de processamento do barro, ainda que se trate de um equipamento de grande auxílio aos produtores, sua introdução deve ser associada a estudos de impacto ambiental, no sentido de procurar conciliar o bemestar e a qualidade de vida dos artesãos com a sustentabilidade da atividade de extração do barro.

A modelagem das peças A modelagem manual pode ocorrer de diferentes modos a depender do tamanho da peça. As menores são, em geral, moldadas a partir de um único bloco de barro, enquanto para a produção das peças maiores, utiliza-se a técnica da sobreposição de rolos de barro. Nos dois processos o artesão trabalha sentado no chão, tendo posicionado entre as pernas Luciana Muniz

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um tipo de torno rústico que é formado por um disco de madeira apoiado em uma pedra. A modelagem tem início espalhando-se um punhado de areia sobre o disco, a fim de evitar que a peça grude no fundo. O artesão vai abrindo o bloco de argila que é posicionado em cima desse pequeno torno com o dedo enquanto gira o disco com o pé até que a peça adquira o formato desejado. A peça moldada é alisada com a ajuda de um pedaço de cuité, um tipo de cabaça fruto da cuieira3. Esse processo de alisamento com a cuia exige o umedecimento constante do barro, por vezes com a ajuda de um pano molhado. Além de ajudar no molde da peça, o alisamento possibilita reparar imperfeições, desfazer bolhas de ar e retirar pequenas pedrinhas que possam provocar a quebra da peça na hora da queima. Os artesãos mais experientes fazem esse processo com bastante rapidez. Luciana Muniz, por exemplo, chega a moldar 15 tigelas com 10cm de altura e 30cm de diâmetro numa única tarde. Para produzir os porrões, é necessário que o artesão acrescente camadas de rolos de barro, os chamados pavios. Maria das Graças, artesã experiente, nos explica que um pote com um metro de

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altura precisa, em média, do acréscimo de quatro pavios. A cada pavio acrescentado procede-se ao processo de alisamento com a ajuda da cuia, a fim de manter a uniformidade entre a parte acrescentada e aquela que já foi moldada, evitando marcas de sobreposição. A maior dificuldade no caso da produção dos porrões é manter o equilíbrio da peça, tendo em vista o risco de o barro molhado desabar à medida que novos pavios são acrescentados. Maria das Graças molda um pote de um metro de altura e 50cm de diâmetro no tempo médio de 20 minutos, mas afirma que é necessário esperar até o dia seguinte para finalizar o gargalo, que só pode ser feito com o pote completamente seco

Maria das Graças modela um porrão

Lucinete Silva realizando o processo de raspagem

para evitar que o peso acrescentado provoque o desabamento da peça inteira. Assim, a modelagem de um pote grande nunca é finalizada num único dia. Depois de totalmente pronta, já com o gargalo, a peça passa por um novo período de secagem antes de iniciar a próxima etapa, que é chamada de raspagem ou toramento. A secagem ocorre sempre de modo natural, à sombra, sem auxílio de qualquer equipamento. O processo de raspagem é feito com uma faquinha de metal e tem por objetivo retirar o excesso de barro, bolhas de ar e qualquer pedrinha que tenha passado despercebida no processo de alisamento. Em seguida, numa segunda etapa de alisamento, são utilizados um pano e um pequeno graveto de angélica – madeira lisa, sem nó e que não solta a casca – e os buracos surgidos no toramento são preenchidos. Finalizada

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esta etapa, a peça passa por novo período de secagem, ao qual se segue o polimento com uma pequena pedra ou com semente de mucunã, popularmente conhecida como olho-de-boi. Em alguns casos, pode haver ainda uma segunda etapa de polimento, feito com a ajuda de uma bucha. O último ato do artesão é a marca do carimbo com o seu nome ou o nome da família, como garantia da qualidade e da origem da peça. Em resumo, podemos afirmar que o processo de modelagem manual é composto por seis etapas principais, que podem se repetir em distintos momentos, a depender do tamanho da peça e das preferências dos artesãos: 1) modelagem; 2) alisamento; 3) secagem; 4) raspagem ou toramento; 5) polimento 6) identificação. Se considerarmos o tempo de desenvolvimento dessas etapas, acrescidos, em alguns casos, do tempo de pintura e ornamentação, é preciso entre dois e cinco dias para que uma peça seja considerada completamente pronta para a queima. Tendo em vista a dificuldade maior de algumas etapas em comparação a outras, é comum ocorrer a divisão do trabalho entre artesãos da mesma família. Em geral, a etapa da modelagem, a mais difícil, é reservada para os mais experientes. Com a prática, os artesãos aprendem a identificar exatamente a quantidade de barro que precisam para a confecção de uma

determinada peça. Por isso, não costumam utilizar qualquer tipo de medida para calcular o tamanho das peças que produzem. Luciana Muniz afirma que só usa uma régua de medição quando se trata de um modelo novo, feito por encomenda. A divisão do trabalho, com a especialização de funções, é vista pelos artesãos como uma forma de otimizar o tempo de produção e melhorar o acabamento da peça. É uma alternativa, sobretudo, no caso de grandes encomendas com prazos de entrega apertados. Uma vez que o conhecimento da integralidade do processo de produção é um dos elementos que até então tem diferenciado a produção artesanal da produção industrial, é importante refletir em que medida a especialização é uma escolha do artesão ou imposição das circunstâncias. Não se trata aqui de discutir a divisão de trabalho que ocorre naturalmente entre membros de uma família segundo gênero e idade, mas da produção em série, limitada a um tipo de peça ou mesmo partes de peças, ou a um tipo de atividade específica. Participar das diferentes etapas do processo de produção permite ao artesão tanto reconhecer a autoria de sua obra, vendo-a como uma criação exclusiva, quanto traz a possibilidade de que ele use grupos musculares diferenciados, ao invés de movimentos repetitivos que podem resultar em lesões e problemas de saúde. Numa estratégia para evitar permanecer muito tempo na mesma posição, Luciana Muniz afirma deixar o material de Maria do Socorro Soares Moraes fazendo o alisamento com pedra

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trabalho longe do alcance das mãos, o que a obriga a levantar constantemente para pegar água e repor a quantidade de barro, criando intervalos de trabalho. Contudo, reclamações em relação a dores frequentes nas costas e nas mãos foram recorrentes entre os artesãos, incluindo uma artesã que desistiu do ofício em decorrência desse tipo de problema de saúde.

Maria Lidiane Martins da Costa pintando os grafismos tradicionais da cerâmica de Moita Redonda

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A pintura em tauá branco e vermelho O processo de pintura é feito em duas etapas, para as quais se utiliza barro de colorações distintas. A primeira etapa consiste no revestimento da peça com o tauá vermelho e, a segunda, na decoração com desenhos produzidos com uso do tauá branco. A preparação da tinta, nos dois casos, se resume à dissolução do tauá em água. Entre uma etapa e outra, a peça passa por um período de secagem. Na Jarra pintada por Maria Lidiane, segunda etapa, a elaboração dos padrão gráfico cambito desenhos exige precisão, paciência e conhecimento do repertório de padrões gráficos. É um processo muito delicado, geralmente realizado por mulheres, embora atualmente poucas artesãs sejam reconhecidas como boas “riscadeiras”, ou seja, que apresentam habilidade suficiente para produzir, à mão livre, um risco firme e proporcional, do início ao fim. Maria Lidiane Martins da Costa, 31 anos, uma das riscadeiras mais conhecidas da comunidade, relata que se interessou pelo ofício quando ainda era criança, vendo o trabalho de outras artesãs.

A minha mãe tinha uma cunhada que riscava, já faleceu. Tinha outra vizinha que também riscava. Aí eu via aquilo e achava bonito. Eu disse: “um dia eu vou aprender a riscar!” A pessoa tem que ter um equilíbrio na mão, porque às vezes a gente começa a fazer e sai torto, um grande e outro pequeno. Eu via a minha tia fazendo... ela sentava, e eu dizia: “tia, me ensina.” Ela dizia: “pega o pauzinho e faça, que eu vou te ensinando.” Aí eu olhava Rosimeire Pereira de Silva para os outros e achava bonito, porque a minha não era igual. Mas eu continuei tentando. Ninguém aprende de uma vez, a gente aprende devagar... Eu tinha uns 10 anos... Para Lidiane, um dos segredos do bom risco é a preparação do pincel, que deve ser feito com um pedaço de pau fino, em geral palha de coqueiro, com algodão natural enrolado na ponta. Lidiane planta o próprio algodão no quintal, porque, conforme argumenta, o algodão industrial solta muitos fiapos, deixando o risco falhado. Ela afirma já ter tentado usar pincel industrial, mas também não gostou

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do resultado. Além do uso de algodão natural, Lidiane ressalta a importância de se umedecer o pincel na água antes de colocá-lo na solução com tauá, para aí, então, dar início à confecção dos desenhos. Outra riscadeira experiente, Rosemeire Pereira da Silva, 41 anos, conhecida como Meire, nos explica que o repertório de motivos gráficos não é extenso. Os riscos denominados ‘cambito’, ‘cobra’, ‘flor’ e ‘imbuá’ servem de base para combinações e variações – aberto, fechado, preenchido, vazado, etc – que configuram novos riscos. Da mesma forma que Lidiane, Meire também relata que aprendeu os riscos tradicionais na infância: Eu aprendi com a minha mãe, só riscava cambito. A gente riscava 50 jarras, tudo era com cambito. A risca antiga era cambito, flor, cobrinha, imbuá, pestana... Agora eu faço potes grandes e os desenhos eu mesma que crio. Eu vou criando e não dou um nome para o desenho... O risco pode ser fino ou mais grosso... Para uma peça grande, eu gosto de fazer mais grosso porque é mais adequado para o tamanho da peça. Cada peça tinha o seu risco, a gente usava cambito nas jarras e quartinhas. O repertório de desenhos apresenta uma clara inspiração no cotidiano da comunidade. Quando perguntada sobre o porquê do nome ‘cambito’, Lidiane respondeu: “Não sei por que cambito, já vinha da minha avó. Ela dizia que era tipo

cambitozinho de jumento, de cavalo”. O ‘cambito’ é uma espécie de forquilha de madeira em formato de V que tem por função a sustentação de cargas no dorso de animais. Também o padrão denominado ‘imbuá’, cujo desenho possui formato de espiral, parece ter origem no embuá, nome comum para animais como as centopeias, lacraias, bichos-bola e outros de corpo cilíndrico e flexível. Lidiane afirma que, embora tenha vontade de inovar, desenhando padrões diferentes do que aprendeu na sua infância, por uma questão de mercado não pode mudar muito. Afirma que o mercado para a cerâmica tradicional é muito restrito, tendo como principal comprador local o Centro de Artesanato do Ceará (Ceart), que adota o repertório de padrões tradicionais como um dos principais critérios na sua seleção de peças para a venda. Embora a demanda de mercado influencie a maior ou menor produção da cerâmica tradicional, atualmente, a maior ameaça a sua continuidade se refere ao esgotamento das reservas de tauá branco e vermelho. Os artesãos têm feito experiências com outros tipos de barro de coloração branca, mas até o momento nenhum conseguiu a mesma fixação do tauá. Em substituição ao tauá branco, encontramos com frequência peças pintadas com tinta acrílica branca. No que diz respeito à obtenção da coloração vermelha, os artesãos diluem o tauá em água e acrescentam

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um corante industrial vermelho em pó. Nazaré Martins, esposa de seu Deca, argumenta que nesses dois casos o resultado não é o mesmo que o alcançado com o uso dos pigmentos naturais: [...] Era um toá mais forte [tauá branco], que aturava muito tempo na louça. Agora o toá tá misturado com muita areia, então ele não fica mais, qualquer coisa solta. Quando a gente põe ele de molho pra desmanchar e coa pra pintar, ele fica totalmente uma areia... O toá vermelho, uns tempos atrás, até tinha por aqui , mas agora não tem mais. As pessoas às vezes compra um saquinho de toá, porque o meu marido vai para Quixadá pra entregar a louça lá, e no caminho é que tira. Mas também não é o toá perfeito como antigamente, porque justamente os que tinha, os senhores ricos [proprietários das olarias], que sabem que é pra artesanato, já ficam com o olho grande. Um pouquinho é 100, 150 reais. O vermelho, quando a gente passava, ficava bem vermelho; agora tem que misturar o Xadrez [marca de tintura]... A gente põe um pouco desse pó dentro pra peça ficar bem vermelhinha. Fica uma louça cega, morta... O uso da tinta sintética exige mudanças no processo de produção e nos tipos de peça produzidas. Em relação ao processo de produção, é necessário realizar a queima antes da pintura e não o oposto, como comumente ocorre. Além de não resistir

ao fogo, a tinta acrílica, em função de sua toxidade, não deve ser utilizada em utensílios de uso culinário, mudando a função das peças de utilitária para decorativa. Nesse contexto, a continuidade da pintura tradicional depende especialmente da realização de estudos de novos recursos naturais capazes de garantir a fixação das colorações sem prejuízo para a saúde dos artesãos e dos consumidores.

Queima da cerâmica Em Moita Redonda cada família tem o seu forno, por vezes mais de um, a depender do volume da produção a ser queimada. Os fornos são estruturas simples: uma espécie de cubo feito com tijolos de cerâmica, com duas aberturas embaixo para a entrada e saída da lenha, e totalmente aberto na parte de cima. Os tamanhos são variados, há estruturas grandes utilizadas para potes maiores e em grande quantidade, e estruturas menores, utilizadas para a queima de peças menores. Em geral, cada família realiza de três a quatro queimas por mês. A lenha é obtida em Brito ou outros municípios vizinhos a partir da poda de cajueiro e outras árvores frutíferas, como a mangueira. Para realizar a queima mensal, os artesãos adquirem 20 metros de lenha, ao custo de 500 reais. Afirmam que, embora não seja a melhor lenha, já que não alcança

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grandes temperaturas, é a única aceita pela Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Ceará. A aquisição da lenha e o controle da temperatura do forno é um trabalho geralmente realizado pelos homens. O design dos fornos e, ainda, o tipo de lenha utilizado fazem com que os fornos adquiram uma temperatura de até 600 graus, que não é considerada alta. Como os fornos são abertos, ficam à mercê do vento. Francisco Otávio Dantas, conhecido como Nildo, presidente da Associação Comunitária dos Moradores de Moita Redonda, associa a falta de controle da temperatura dos fornos ao alto índice de quebra de cerâmica no momento

Feira de Cascavel

da queima, de 10 a 40% das peças. Um controle maior também permitiria reduzir a quantidade de lenha e, assim, reduzir custos econômicos e ambientais. Para a queima, as peças são empilhadas no interior do forno, tendo os espaços preenchidos com caquinhos, e a parte de cima é fechada com cacos maiores. A técnica utilizada consiste no acréscimo gradual de lenha, com um pico três horas após o início, aproximadamente. Quando a fumaça começa a ficar com a cor esbranquiçada, é hora de retirar a lenha. Célia ressalta que, nesse momento, deve-se ter o cuidado de retirar toda a lenha para que as peças não fiquem manchadas. A queima pode levar de seis a dez horas, a depender do tamanho e da quantidade de objetos colocados no forno. Maria Célia Muniz da Silva, que conta com o auxílio do filho para a realização desse processo, explica que, após a retirada da lenha, as peças ainda devem passar a noite no forno, sendo retiradas apenas no dia seguinte. Todo o processo, desde a modelagem até a queima final da peça, leva de seis a dez dias.

Tons e sons: inovações entre o mercado e a cultura Moita Redonda encontra-se no caminho entre Fortaleza e algumas das praias mais famosas do estado, como Morro Branco e Canoa Quebrada. Os turistas que seguiam em direção ao litoral

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leste do Ceará eram responsáveis por grande parte da compra de cerâmica local. Entretanto, com a construção recente da nova rodovia CE-040, o tráfego foi desviado para fora da cidade, provocando uma drástica redução nas vendas. O mesmo ocorreu na Feira Livre de São Bento, outro local tradicional de vendas no município. Localizada no centro da cidade de Cascavel, reúne, todos os sábados, cerca de 800 feirantes, que vendem os mais variados tipos de produto. A cerâmica já foi o destaque dessa feira, que Transporte de lenha também tinha espaço para o artesanato em cipó e a renda de bilro. Hoje, a produção artesanal encontra-se numa área muito reduzida, espremida entre as barracas de produtos industrializados, especialmente roupas, cuja confecção encontra-se entre as principais fontes de renda de Cascavel. As reduções da demanda e dos espaços de venda têm obrigado os artesãos a investir no desenvolvimento de

produtos diferenciados em relação à tradição local. Os produtos utilitários da cerâmica tradicional, como quartinhas4, panelas, jarros, miaeiros5 e brinquedos, estão deixando de ser produzidos por falta de demanda. Antônia Pereira da Silva, 64 anos, ainda produz panelinhas, pratinhos, jarrinhas, mesas, cadeiras e fogareiros em miniatura para servir de brinquedo. Ela é, no entanto, uma exceção na localidade, onde, há alguns anos, muitas artesãs pararam de se dedicar à produção de brinquedos para serem vendidos na feira no período de Natal. Maria Pereira da Silva, 81 anos, conhecida como Santinha, que já produziu muitos brinquedos, hoje produz apenas casinhas como objeto de decoração, e diz que deixou de produzi-los por não ter público. Tarina, 73 anos, produz bonecas de barro muito mais como decoração do que propriamente como brinquedo, mas tem pensado em desistir devido à falta de compradores. Os produtos mais vendidos no mercado local atualmente são cogumelos, galinhas, flores e sapinhos de todos os tipos. Há uma febre dos sapos, que são produzidos nos mais variados estilos, formatos, cores e tamanhos. Os moradores locais dizem que é uma fase; tempos atrás, o mesmo aconteceu com

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Peças de cerâmica contemporânea

joaninhas. Tudo depende do mercado. Além disso, hoje, a produção é constituída, em sua maioria, por peças decorativas, tendo como característica a pintura com tinta acrílica em cores fortes. Esse tipo de cerâmica, por sua valorização no mercado local, passou a ser a preferida da nova geração. Karine Pereira dos Santos, filha de uma das mais reconhecidas riscadoras tradicionais da localidade, prefere fazer suas criações na tinta acrílica, desenvolvendo seus motivos a partir da inspiração de desenhos de revistas ou da internet, e

não tem interesse em aprender a pintura tradicional. Outro tipo de peça sem referência na história local que tem sido produzida com o fim de atender demandas de mercado é a cerâmica marajoara. Essa cerâmica, referência a peças arqueológicas da Ilha do Marajó, no Pará, chegou à localidade por meio de Antônio Iltemberg, conhecido como Berg, um paraense que foi morar em Cofre feito por Karina Pereira Moita Redonda ao se casar com dos Santos uma moradora do local. O uso do torno permite reduzir o tempo de produção e aumentar a escala desses produtos mais recentes, resultando em preços mais competitivos do que os da cerâmica tradicional. Joelma Martins Camilo afirma que a produção de um dia no torno equivale à produção de um mês à mão livre. Além do torno, moldes plásticos também têm sido utilizados, especialmente para a confecção de utensílios domésticos – potes, travessas e vasilhames. A utilização dos moldes tem por função tanto reduzir o tempo de produção quanto permitir a criação de peças com novos desenhos e padronagens – retangulares, quadradas, hexagonais e outras – que não podem ser moldadas por meio do torno.

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A fim de valorizar as peças utilitárias, tanto os modelos tradicionais quanto os mais recentes, Francisco Muniz, um dos artesãos mais empreendedores do local, desenvolveu uma pintura diferenciada: trata-se de um aplique no formato de renda pintado com tauá branco. Muniz relata que teve a ideia de fazer o aplique depois da sugestão de um consultor de um curso de design oferecido pelo Ceart, no ano 2000. Após esse curso, vários artesãos da região iniciaram um trabalho a partir da inspiração dos padrões das rendas locais, como o bilro, desenvolvendo o desenho à mão livre. Esse processo, no entanto, Berg fazendo uma peça com inspiração na era bastante demorado, e a cerâmica marajoara relação entre tempo e custo não compensava. As condições mudaram quando seu Muniz descobriu uma empresa em São Paulo que produzia moldes e ainda tinha o catálogo de vendas disponível na internet. A gente faz pedido diretamente de São Paulo, a empresa vende pra todo canto. A gente escolhe e chega o pedido. Vem uma peça

grande com o desenho e a gente bola o modelo. A gente tira da onde a gente quer tirar, a parte ideal para pintar. A peça sai cara porque se aplica de cinco a seis vezes, no máximo, e depois tem que jogar fora porque sai do padrão... É um desenho vazado, tipo aquela tela que passa na roupa. Eu descobri isso porque eu viajei para São Paulo. Fui numa exposição na CUT [Central Única dos Trabalhadores] e descobri. Eu fazia a renda desenhando na mão e era muito difícil, já tava pra desistir. Antes, a gente pegava um plástico, fazia um riscado em cima do plástico, aí ficava a marca pra pintar embaixo. Uso de moldes plásticos, ateliê da família Muniz O uso do molde na aplicação da tinta branca na cerâmica permitiu um aperfeiçoamento técnico exclusivo de seu Muniz. No ateliê de produção, que fica em sua residência, existe uma sala reservada para a pintura, e uma placa na porta mantém os curiosos distantes. Apenas os artesãos que realizam a pintura têm acesso a esta sala. A técnica é mantida

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em segredo e repassada a poucos membros da família. Conforme nos explica seu Muniz, a atividade requer muita atenção e paciência, e qualquer erro implica o recomeço de todo o processo. Depois de aplicar o branco, não pode riscar mais nada em cima. Quando borra, tem que ir pra novo acabamento; volta e refaz tudo de novo. Por isso, quando a pessoa tá trabalhando, tem que ter atenção total. Se alguém bate na porta onde tá pintando, o desenho foge da minha mão e tem que começar tudo de novo. Tem que passar uma pedra, ralar, e volta tudo no acabamento. A novidade do aplique de renda foi tão bem aceita no mercado local que acabou se tornando elemento indissociável da representação da cerâmica produzida em Cascavel. No que diz respeito à comercialização, tendo em vista as imensas dificuldades enfrentadas pela cerâmica tradicional de Moita Redonda, tanto em relação à concorrência de mercado quanto à sustentabilidade das matérias-primas, o aperfeiçoamento técnico desenvolvido por seu Muniz deu um novo tom ao que pode ser considerado como produto identitário local. Além da família Muniz, também merece destaque o trabalho de Raimundo, por seu caráter especialmente autoral. Raimundo aprendeu as técnicas de produção tradicional local com a mãe, dona Tarina, artesã reconhecida e bastante

respeitada na localidade. Da mãe, herdou o gosto por produzir figuras humanas, mas, em vez de bonecas, investiu em esculturas maiores, retratando pessoas e animais com um traçado bem particular. Se os apliques dos Muniz e as esculturas antropomorfas de Raimundo dão o tom da renovação da tradição ceramista local, o som é dado pela Orquestra de Barro do grupo Uirapuru, que revaloriza a cerâmica tradicional pelo seu uso no âmbito

Cerâmica produzida pela família Muniz

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cultural. A Orquestra – formada atualmente por 15 jovens de Moita Redonda, em sua maioria filhos de artesãos locais, com idades entre 12 e 22 anos – é resultado de um projeto idealizado em 2009 pelo pesquisador de instrumentos musicais Tércio Araripe, e contou com o apoio inicial da Fundação Nacional de Artes – Funarte, tendo se apresentado em diversos locais do Brasil a partir de novas parcerias. Esses jovens se revezam para tocar cerca de 20 instrumentos, dentre os quais viola, violino, baixo, guitarra, harpa, marimba, xilofones, bumbos, tímpanos, tambores, moringas, chocalhos e apitos. Os instrumentos de percussão, corda e sopro são confeccionados pelos próprios familiares dos integrantes do grupo a partir do modo tradicional de produção local. Na coordenação do grupo, Tércio conta com a parceria do maestro Luizinho, diretor musical responsável pela maioria das composições, e da artista plástica Sabyne Cavalcanti, sua esposa, responsável pelos cenários e figurinos dos espetáculos. O projeto da Orquestra de Barro resultou em uma ponte de respeito e admiração mútuos entre a nova geração e os artesãos tradicionais. Por um lado, as crianças se sentem orgulhosas de tocarem instrumentos produzidos por seus pais e familiares; por outro, os pais se sentem orgulhosos de verem seus meninos se apresentando com a orquestra Brasil afora. Embora ainda sejam muitos os desafios que se impõem à continuidade do ofício de ceramista ao longo das próximas

gerações – problemas de sustentabilidade das matériasprimas, de visibilidade e valorização comercial da produção, de valorização dos artesãos, de organização social –, novas identidades têm sido moldadas entre tons de esculturas e rendas e os sons da Orquestra. Enfrentar esses desafios certamente implica o desenvolvimento de estudos sobre novos recursos naturais para garantir o tingimento das peças com qualidade e de fornos que garantam não só a estabilidade da temperatura, mas também a diminuição da quantidade de lenha utilizada. Além disso, é preciso avaliar os impactos ambientais referentes ao uso do barro e da madeira, fortalecendo o associativismo local, para que um número maior de produtores tenham acesso a mercados que valorizem produtos identitários. O Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, por meio da exposição da Sala do Artista Popular, apoia os artesãos de Moita Redonda na inserção da sua cerâmica tradicional num mercado justo, que valorize não apenas os produtos, mas especialmente os seus produtores, respeitando a história e o meio ambiente local.

Esculturas de Raimundo

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Integrantes e instrumentos da orquestra de barro

Informações sobre Pontos de Cultura e Pontos de Memória encontram-se disponíveis em: http://www2.cultura.gov.br/culturaviva/ ponto-de-cultura/ e http://www.museus.gov.br/programa-pontos-dememoria/ (acesso em 25.01.2016). 2 Dados obtidos no site do Instituto Beija Flor: http://instituto-beijaflor.webnode.com/sobre-nos/ (acesso em 25.01.2016). 3 Árvore frondosa da família das bignoniáceas Crescentia cujete. 4 Nome local para moringa, recipiente utilizado para guardar água. 5 Nome local para recipientes destinados a guardar moedas.

PROMOARTE. Cerâmica de Cascavel. http://www.promoart.art.br/ polo/cer%C3%A2mica-de-cascavel-ce (Acesso em 25.01.2016).

Bibliografia

Contatos para comercialização

ALBUQUERQUE, Manuel Coelho. Seara indígena: deslocamentos e dimensões identitárias. Fortaleza, 2002. 162p. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará. Disponível in: http://www.historia.ufc.br/admin/upload/ Disserta%C3%A7%C3%A3o%20Manoel%20Coelho.pdf Acesso 24.11.2013.

Antonia Pereira dos Santos

Rosemary Pereira da Silva

(85) 988198688

(85) 987285242

Liduína de Sousa Dantas

Selma Pereira da Silva

(85) 988458946

(85) 988494695

Maria de Nazaré Martins Batista

Tercio Araripe Gomes da Silva

ALVES, Ângelo Giuseppe Chaves. Conhecimento local e uso do solo: uma abordagem etnopedológica. Interciencia, Venezuela, vol. 30, núm. 9, septiembre, 2005, pp. 524-528 Disponível in: http://www.redalyc.org/ pdf/339/33910802.pdf Acesso 24.11.2013.

(85) 986006362

(85) 988351205

Maria Helena da Costa Silva

Zeneide Pereira da Silva

(85) 989759528

(85) 986507361

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GORDILHO, V.;* DANTAS, G.; FRANGE, L. B. P.; SILVA, L. A. Pintando com o Tauá na Comunidade de Coqueiros: Possíveis Aproximações entre Arte e Química no “Projeto BTS” Rev. Virtual Quim., 2012, 4 (5), 534-550. Disponível in: http://www.uff.br/rvq Acesso 24.11.2013. PREFEITURA DE CASCAVEL. História de Cascavel. Disponível in: http://www.cascavel.ce.gov.br/ (Acesso em 25.01.2016).

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ISA. Jenipapo-Kanindé. Disponível in: http://pib.socioambiental.org/pt/ povo/jenipapo-kaninde/634 (Acesso em 25.01.2016). ROTTA, Vera Maria e COELHO, José H. Microprojetos mais cultura: semiárido: a cultura nas mãos/organização. Brasília, DF: Funarte; Ministério da Cultura, 2010.

Maria Lidiane Martins da Costa (85) 98600.6320 Maria Quirino da Silva – Mestre Tarina (85) 985173594 Raimunda Pereira dos Santos (85) 986186444

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