Arte, Subjetividade e Virtualidade: ensaios sobre Bergson, Deleuze e Virilio

July 9, 2017 | Autor: Jorge Vasconcellos | Categoría: Gilles Deleuze, Henri Bergson, Paul Virilio, Ontología, Estética contemporânea
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Descripción

JORGE VASCONCELLOS

ARTE, SUBJETIVIDADE E VIRTUALIDADE: ensaios sobre Bergson, Deleuze e Virilio

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Copyright© 2005 por Jorge Vasconcellos Título Original: Arte, Subjetividade e Virtualidade: ensaios sobre Bergson, Deleuze e Virilio Editor Tomaz Adour Editoração Eletrônica Luciana Figueiredo Capa Júlio Pereira

VASCONCELLOS, JORGE. Arte, Subjetividade e Virtualidade: ensaios sobre Bergson, Deleuze e Virilio. Rio de Janeiro: PUBLIT, 2005, 138 pp. 1.Estética. 2. Filosofia. 5. Teoria do Cinema.

3. Filosofia Francesa. 4. Teoria da Arte.

6. Bergson, Henri, 1859-1941 Virilio, Paul, 1932.

7. Deleuze, Gilles, 1925-1995

I. Título. II. Livro. III. Filosofia Contemporânea.

PAPEL VIRTUAL EDITORA Rua Miguel Lemos, 41 sala 605 Copacabana - Rio de Janeiro - RJ - CEP: 22.071-000 Telefone: (21) 2525-3936 E-mail: [email protected] Endereço Eletrônico: www.papelvirtual.com.br 2

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à Silvia e ao Guilherme

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SUMÁRIO

Apresentação .......................................................................... 7 Vitalismo e Virtualidade: uma introdução ao bergsonismo ..... 9 A Ontologia do virtual: a metafísica da mudança em Henri Bergson ................................................................................ 19 Bergson e Godard: a percepção cinematográfica do real ........ 31 Porcelana e Cristal: arte e ontologia em Gilles Deleuze ......... 51 F’ de Falso, ‘M’ de Mentira: Ficção e Falsificação no Documentário Cinematográfico .................................................................. 65 A Crise do especular: ou considerações acerca do problema da representação na pintura. ...................................................... 77 A cidade sob controle: sociedade de controle e novas tecnologias do virtual. Wim Wenders e o “O fim da violência” .............. 93 Subjetividade & Velocidade, Deleuze e Virilio e o tempo presente .............................................................................. 103 Campos de guerra, campos de mídia: Virilio e a Logística da Percepção ........................................................................... 111 Ver Sem Os Olhos - apontamentos acerca da noção de ‘máquina de visão’ em Paul Virilio. .................................................... 121 Por Uma Cronopolítica Do Poder, ou apreciações sobre os meios de virtualização do mundo em Paul Virilio. ........................ 129 MATRIX, o filme: a virtualização da realidade.................... 135

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APRESENTAÇÃO

Os textos que compõem este livro foram escritos em diferentes períodos de meu percurso profissional, sempre como professor de ‘filosofia’, ‘estética’ e ‘teoria do cinema’, sendo que eles são o efeito de intervenções dos mais variados propósitos. Isso, desde escritos com o objetivo de servir a comunicações acadêmicas, passando por resenhas de livros, críticas cinematográficas, artigos para periódicos e textos para utilização em sala de aula. À parte isso, pode-se ver neles um fio condutor: desde o mais antigo, “A crise do especular: ou considerações acerca do problema da representação na pintura”, de 1994 - palestra na Escola de Belas Artes da UFRJ, época em que lá lecionava ‘Estética’; ao mais recente, “‘F’ de Falso, ‘M ‘de Mentira’: Ficção e Falsificação no Documentário Cinematográfico”, em sua versão final, de 2004 - texto de comunicação a um congresso acadêmico e que doravante serve de introdução às minhas aulas de ‘teoria do cinema’ e ‘introdução ao documentário’. Esse fio condutor são as relações entre as formas constitutivas da arte, em especial do cinema, da literatura e da pintura, sob um prisma: a crítica à representação clássica, que subordina a elaboração da arte ao modelo da semelhança e do mesmo, fazendo da arte imitação e duplicação do mundo, mimeses. 7

Isso elaborado sob uma vigorosa crítica política, que procura articular a seguinte questão: a arte e seu “fazer” são, de fato, operadores da constituição de subjetividades? Dessa questão deriva uma outra: toda arte é, necessariamente, ‘ética’ e ‘política’? Nesse sentido, há uma contundente crítica filosófica à representação clássica, isto é, ao pensamento metafísico e às suas formas políticas de dominação que ensejam dispositivos de poder, biopolíticas sobre os corpos e “controle” sobre o cidadão. O livro se articula sob o signo de três pensadores contemporâneos: Henri Bergson, Gilles Deleuze e Paul Virilio. Esses artigos, muito mais do que textos escritos para esclarecer determinados aspectos da obra e do pensamento daqueles filósofos franceses, procuram pensar – com eles, os filósofos – questões contemporâneas, questões do nosso tempo, de nosso tempo presente. A idéia de “virtualidade”, desdobrada em uma perspectiva ontológica – uma ontologia do virtual, pensada a partir de Bergson e Deleuze – e sob o prisma de seus desdobramentos no mundo contemporâneo – a emergência das novas tecnologias do virtual, pensada a partir de Paul Virilio, unifica nosso ponto de vista acerca das relações entre arte e subjetividade no tempo presente. Defendo que Bergson, em certa medida, inaugurou um conjunto de idéias sobre o virtual que têm em Deleuze e Virilio dois importantes continuadores. Enquanto Deleuze apropriou-se do pensamento do virtual sob a perspectiva do tempo, Virilio desdobrou a ontologia do virtual sob o signo da velocidade. Em ambos, Deleuze e Virilio, a presença do conceito bergsoniano de “virtualidade” é constitutivo em suas filosofias. Este livro apresenta, em forma de ensaios que pensam a arte em sua relação com a produção de novas subjetividades nas sociedades contemporâneas, uma leitura da idéia de virtualidade. Noção já muito falada e discutida, tanto nos bancos universitários quanto nas médias, mas ainda pouco problematizada em seus fundamentos filosóficos. Este livro pretende propor, a partir desta relação entre arte e subjetividade, pensar o virtual como crítica às formas de representação clássica. 8

VITALISMO E VIRTUALIDADE: UMA INTRODUÇÃO AO BERGSONISMO

Cinco são as idéias-força fundamentais do pensamento bergsoniano: duração, memória, virtualidade, élan vital e intuição. A idéia de duração já aparece em seu primeiro livro, Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência, onde Bergson estabeleceria a chave para o entendimento dos mistos a partir da noção de multiplicidade. Duas são as multiplicidades: aquelas que dão conta da espacialidade, das coisas, da matéria e aquelas que se apresentam no tempo, nos afectos, no espírito. Às primeiras multiplicidades ele chamou de quantitativas e às segundas de qualitativas. Saber ver as diferenças de natureza entre o que é quantitativo do que é qualitativo é tarefa primeira do pensamento, é o fazer fundamental da filosofia. Pois é dessa maneira que a filosofia começa a esculpir seu objeto de investigação e seu campo problemático de questões. É preciso, segundo Bergson, recolocar em outras bases os problemas para que possamos entender o que seja filosofar problematicamente. A duração é o conceito que nos serve de porta de entrada para esse filosofar a que se propõe o bergsonismo, pois é nela que encontramos os elementos para chamar o pensamento bergsoniano de uma filosofia do tempo. 9

Podemos apontar duas características gerais para a duração: a continuidade e a heterogeneidade. A maior preocupação bergsoniana ao pensar o misto, ou seja, o dualismo em que de fato estamos imersos – a matéria e o espírito – é vencer qualquer forma de psicologização disso que ele chama “ espírito”. Daí sua invenção conceitual ao propor multiplicidades que possam dar conta simultaneamente da matéria e da espacialidade – o quantitativo; e do espírito e da temporalidade – o qualitativo. Assim, é possível dizer que a duração é continuidade e fluxo. Ela é uma linha que sustenta o ser em puro devir. E por outro lado, ela é heterogeneidade que engendra as mudanças e a diferença. As características gerais da duração propostas por Bergson são na verdade um diálogo com a filosofia crítica. Se em Kant espaço e tempo são o a priori de toda experiência possível, em Bergson toda experiência possível é fundada no espaço e no tempo, em sua dupla duração. O bergsonismo nos apresenta uma duração de dupla face: uma interna e outra externa. A primeira é uma sucessão puramente interna, sem exterioridade, já que ela encontra-se no tempo; enquanto a outra é uma duração externa ou exterior, implica-se com o espaço, construindo uma exterioridade sem sucessão. A duração interna possibilita uma visão direta do espírito pelo espírito, ou seja, uma maneira imediata de chegar às coisas. A duração é o ponto de acesso ao bergsonismo, mas não seu centro. O coração da doutrina bergsoniana é sua concepção de memória. A memória como coexistência virtual. Matéria e Memória é o livro mais desconcertante de Henri Bergson. Seu primeiro capítulo nos apresenta uma curiosa concepção da matéria: “a matéria é um conjunto de imagens”. Imagens que formam um universo acentrado onde se dão os encontros, os encontros dos corpos. Ao problematizar o papel do corpo e investigar a seleção das imagens para a representação, Bergson abriu novos horizontes para uma série de questões: as relações sujeito/objeto, percepção/conhecimento, cérebro/consciência. Questões que foram deslocadas de um eixo psicológico para se 10

tornarem problemas ontológicos. A força de sua argumentação nos faz novamente voltar à duração e às suas relações com a memória e o tempo. A identidade entre memória e duração é apresentada de duas maneiras: a primeira nos diz que ela é conservação e acumulação do passado no presente. Dito de outro modo, o presente contém distintamente a imagem de seus cessar todos os seus passados, sendo esses passados a testemunha para sua contínua mudança de qualidade. Ou ainda: a memória, sob essas duas formas, tanto recobre um tecido de lembranças em um fundo de percepções imediatas quanto contrai uma multiplicidade de momentos. Essas duas tendências fazem a duração se distinguir de uma série descontínua de instantes que se repetiriam idênticos a eles mesmos: de um lado, o momento seguinte continua sempre mais que o precedente, que a lembrança faz; de outro lado, os dois momentos se contraem e se condensam um sobre o outro, já que um não pára enquanto o outro continua. Essas duas memórias, esses dois aspectos da memória são indissociáveis. Dito de outro modo, a memória se expande e se distende a partir das ações e reações e de pontos de afecções suscitados pelos encontros de corpos; por outro lado, ela é pura concentração e intensidade capaz de redobrar-se sobre si mesma infinitas vezes. De um lado uma memória extraordinariamente distentida, de outro uma memória absolutamente contraída. É possível chamar a esse desdobramento da memória em Bergson de “memória-lembrança” e “memóriacontração”. Para melhor entendermos a concepção de memória e tempo em Bergson precisaremos necessariamente de sua noção de virtual. Bergson, em sua luta para resgatar à metafísica um novo sentido, não mais associada ao ser e a permanência mas ao devir e à mudança, contrapôs a dualidade esculpida por Tomás de Aquino a partir do Aristotelismo – da relação entre o real e o possível - por um novo dualismo. No bergsonismo, o real e o possível somente podem ser pensados junto à espacialidade e à 11

matéria. O tempo e o espírito precisam de novas categorias para serem expressos, e para tanto Bergson propôs: o atual e o virtual. A idéia de virtualidade é signatária da potência do tempo e da memória; memória aqui entendida como tempo, como tempo puro. O tempo se faz constitutivo das durações, nas durações qualitativas, assim como o espaço surge das durações quantitativas. Na virtualidade todas as durações coexistem, elas estão emaranhadas, coladas, praticamente imbricadas. Essa simultaneidade das durações é o que possibilita à própria virtualidade ganhar vida no bojo de seu processo de atualização: as múltiplas virtualidades se abrem em um sem número de atualizações. Assim, ao falarmos da consciência bergsonianamente, não estamos falando de uma consciência doadora de sentido determinado, provedora de razão, e intencionalmente dirigida a uma finalidade projetiva, pois isto retiraria a virtualidade do seu campo de atualizações. A consciência bergsoniana acaba por se tornar um produto dessas durações, ou seja, ela está sujeita às virtualidades do descentrado universo de imagens que constitui a matéria. Uma consciência é um centro de ação de fato e não de direito, já que a consciência também é uma imagem, como todas as outras consciências e, por conseguinte, como todos os demais viventes do mundo material. O que a consciência possibilita é o aparecimento das afecções para o corpo, já que ela tornar-se, mesmo que por instantes, um centro de indeterminação, centro esse que teria o papel de promover o nascimento de representações. Dito isto, afirmamos que Bergson produziu um conceito de consciência que prescinde quase que por completo da idéia de sujeito. A consciência bergsoniana não é mais a ancoragem de um eixo pessoal, mesmo que seja residual; o que temos, bergsonianamente falando, são extratos de consciência, feixes de memória, fragmentos de subjetividade, ou seja, partículas de tempo, algo como jorros de lembranças, que também são, por sua vez, imagens. Dessa maneira, o psicológico, enquanto retrato inteiro do eu, torna-se inócuo para o bergsonismo. 12

A filosofia de Bergson está bem próxima do empirismo clássico, mas também diríamos demasiado distante. Apesar de se valer da mesma fragmentação do “eu-pessoal” e do eclipse da “forma-homem”, o bergsonismo não se utiliza da combinação dos elementos nem da associação entre os dados, como faz o empirismo inglês. A idéia de impressão, tão cara a um empirismo como o de David Hume, é por demais limitada para Bergson; ela dá conta do mundo material, mas é insuficiente para pensar o espírito. Pois a grande ambição do bergsonismo é a de propor um pensamento a espiritualizar a matéria. Para isso, o conceito fundamental é o afecto, e seu motor é a virtualidade. A virtualidade nos dá a possibilidade teórica de afirmar que o empirismo de Bergson implica em um processo de “resubjetivação”, ou seja, na retomada de novos processos de subjetivação, ou ainda, na invenção de novos modos-de-vida e na configuração de novas subjetividades. O empirismo bergsoniano aspira a todo momento ao novo. A virtualidade abre um grande campo de possibilidade para pensarmos as relações entre sujeito e objeto, extinguindo-os como referências de conhecimento e também como pressupostos da representação clássica. A objetividade e a subjetividade foram substituídas por Bergson pelas multiplicidades quantitativas e pelas multiplicidades qualitativas, pelo material e pelo espiritual. Há uma interseção entre o material e o espiritual, ou se quisermos dizer de outra maneira, entre a matéria e a memória. Para apreendermos as distinções entre as durações é preciso destacar a principal entre diferenças de natureza: aquela que distingue o mundo material (as imagens) do espírito ou memória (as interseções das durações entre as imagens: seus encontros). Pois há matéria no mundo, mas a matéria do mundo não explica o mundo. O que explica o mundo é o espírito, daí a importância da espiritualização da matéria. Assim, a matéria constitui o mundo mas não o faz mover-se. A matéria funda o mundo mas não é o seu fundamento. Da matéria nasce o novo, mas não é a matéria 13

que produz essa novidade. Tanto que há diferenças de grau no mundo - as multiplicidades quantitativas: um homem alto e outro baixo, um homem gordo e outro magro. Porém, o que deve interessar, preferencialmente, para o pensamento tornar-se criativo, são as diferenças de natureza - as multiplicidades qualitativas: a rosa vermelha, o lírio branco. Isso explica o quanto a capacidade de renovação e instauração de novas formas de viver, novos modos-de-vida, é fundamental para o bergsonismo. O novo não pode sair da matéria; ele parte desta, mas somente se dá pela potência do espírito. Em resumo, há em Henri Bergson uma física de grau (as multiplicidades quantitativas) da matéria; e uma metafísica de natureza (as multiplicidades qualitativas) do espírito. As multiplicidades, tanto quantitativas quanto qualitativas, nos apontam o caminho trilhado pelo bergsonismo para combater todas formas de psicologismos. As querelas travadas por Bergson com a emergente psicologia do final do século XIX, início do século XX, daí advêm. O vivente não fica à mercê dos caprichos de uma consciência definidora, nem mesmo do cérebro que funciona como um órgão de atenção à vida. Para Bergson, ambos são imagens - no caso da consciência, uma imagem privilegiada, mas ainda assim uma imagem. Não se trata, todavia, de confundir cérebro e consciência. A consciência está para o espírito como o cérebro está para a matéria. O cérebro obedece aos ditames da matéria e por isso é o órgão mais essencial à sobrevivência do vivente; por sua vez, a consciência é a faculdade que nos possibilita ligar o cérebro ao pensamento, a instância realmente importante para dar sentido à vida, já que para o bergsonismo o pensamento é o lugar da diferenciação, da produção e gestação do novo: pura invenção. O pensamento é o que desencadeia o élan, o élan vital. Porém, o erro mais comum das leituras sobre a obra bergsoniana foi o de querer identificar élan à alma, alma que seria uma designação psicológica da consciência. Desta leitura errônea concluiu-se que o bergsonismo seria dualista, proposição exatamente oposta às intenções da filosofia bergsoniana. Isto tan14

to é fato que Bergson não se sentia à vontade, inclusive, para se utilizar de categorias humanistas ou animistas: homem e alma não são, definitivamente, noções bergsonianas. Um dos grandes projetos do bergsonismo é enfraquecer o “eu-pessoal”, possibilitando assim um maior potencial de criatividade e invenção para o vivente. Para isto, segundo Bergson, precisamos estar atentos à passagem do sensório-motor - a ação e reação dos corpos sobre os corpos - para o ótico e sonoro puro - o intervalo ou a hesitação que o vivente produz entre o agir e o reagir perante o dado. Neste curto espaço de hesitação, um quase nada pode esconder um enorme feixe de criações - é a potência enlouquecedora, quase aberrante da vida, sempre aberta ao criar, sempre aberta às virtualidades. Apesar do “eu-pessoal”, territorializado sobre seus sentimentalismos, apoiado pelo bom senso e protegido pelo senso-comum, a vida continua a criar, a reinventar-se a todo momento. É somente com a idéia de virtual que podemos compreender o bergsonismo como uma filosofia do tempo. Em Bergson, o passado é a duração intensivamente concentrada e o futuro é a duração extremamente expandida, e o presente faz o papel de atualizador das virtualidades, em relação tanto ao passado quanto ao futuro. Isto demanda que entendamos melhor o papel do presente no bergsonismo. O sentido de presente contrasta, de uma certa maneira, com a idéia de atual. O atual é diferente do presente, apesar de todo presente ser uma atualidade. Enquanto o presente é uma espécie de espacialização, dura, maciça, da virtualidade, o atual é uma corporificação, uma máscara, um “dublê de corpo” do virtual. As virtualidades se atualizam e as atualizações podem se presentificar, ou seja, tornarem-se existentes, palpáveis a qualquer forma de experiência. O que o empirismo clássico, de forma ainda ingênua, viu, era apenas esse primeiro momento: a presentificação das atualidades; não o momento mais fundamental, segundo o bergsonismo - a atualização das virtualidades. Então, o pensamento para ser criativo, inventar e aspirar ao novo, deve buscar o caráter das atualizações. E preciso ver o 15

presente como uma atualidade. Esse presente atualizado nos leva à coexistência com o passado, ou melhor, com todos os passados, logo, com o virtual e suas atualizações. O presente em Bergson é um ponto entre os passados e os futuros. O presente está sempre grávido de todos os futuros e tem em seu seio, contraído, todos os passados. A contração do passado no presente e o futuro que se estende todo à frente é a síntese perfeita do tempo bergsoniano. E através dessa síntese que poderemos verificar o trajeto das imagens que passam de um tempo psicológico para o tempo puro, para a pura memória, ou ainda, para o ontológico. No tempo puro ou ontológico, as imagens não se apresentam a partir de representações, elas não são efeito de um modelo ou dublês de quaisquer paradigmas. Atrás das imagens existem apenas outras imagens, e atrás destas imagens mais outras imagens, em uma sucessão infinita, como o tempo. Assim, mesmo que em um dado momento haja a necessidade da intervenção do psicológico (as imagens que se fazem um centro de indeterminação), logo depois, ou quase simultaneamente, há o deslocamento para o ontológico, para o puro tempo (as imagens passam, novamente, a compor o universo acentrado). Esse talvez seja o momento mais rico da vida: o liame, a fissura, o intervalo que separa (e por isso mesmo une) a passagem do psicológico para o ontológico. Essa passagem só é possível por que somos, além de matéria, memória. A memória pura é a fundação do tempo em Bergson. O quarto grande conceito do bergsonismo é o élan vital. A noção que melhor caracteriza esse conceito bergsoniano é a tendência. A vida não busca ou não se afirma por fixação, ela é um jorro incessante de tendências que ora encaminha os viventes para uma direção, ora os encaminha para outra direção, dependendo sempre do conjunto de encontros que esses viventes manterão ao longo de sua existência. O bergsonismo foi a primeira das grandes filosofias a valorizar um saber novo que foi gestado no século XIX: a biologia e a teoria da evolução das espécies. Contudo, 16

Bergson não deixou de criticar certos pressupostos gerais tanto da biologia quanto da teoria da evolução, opondo-se ao caráter mecanicista que esse saber tinha no século XIX assim como à pouca maleabilidade proposta para as terias darwinistas. O que existe são tendências entre os viventes e o processo seletivo se dá em meio às injunções do meio, mas fundamentalmente orientado por um élan que se realiza como instauração de uma singularidade. Dito de outra maneira, os viventes, pensados como espécie, se afirmam como tal diferenciando-se, tornandose o que são. Um processo de diferenciação é o que caracteriza o élan vital. O élan vital é em última instância o virtual que se atualiza e se realiza simultaneamente, fazendo um feixe de tendências a se abrir nas direções mais variadas. A vida é antes de mais nada criação incessante da diferença. Mas se podemos dizer que a diferenciação é o modo original e incessante pelo qual uma virtualidade se realiza, também podemos inferir que o élan vital é a duração que se diferencia e, por conseqüência, que a própria duração é a virtualidade. Em suma, o bergsonismo comporta um vitalismo irrigado pelo virtual. A filosofia de Henri Bergson colocou na ordem dia a vida como fonte inesgotável para o aparecimento do novo. Se o nascimento da novidade para a vida é o horizonte que se descortina ao pensamento para o bergsonismo, a tarefa da filosofia será encontrar meios para chegar de modo imediato a esse novo. Esse deve ser o método da filosofia, ter acesso imediato às coisas, à essência das coisas, ao Absoluto. Porem, um Absoluto não sujeito às regras da representação clássica. Um Absoluto que se exprime em sentido estrito como virtualidade. O método do bergsonismo é a intuição. A intuição como método seria o procedimento mais rigoroso para chegarmos de forma direta às coisas, abandonando qualquer mediação para termos acesso ao real. Esse método implica uma multiplicidade qualitativa e virtual. A intuição se desdobra e nos dá a ver a posição e criação dos problemas; a descoberta das 17

várias diferenças de natureza; e a apreensão do tempo real. A intuição é o método da metafísica. A metafísica, como entende Bergson, é sinônimo de filosofia. A intuição, como método filosófico, compreende regras precisas: a primeira implica na análise dos problemas para o pensamento, denunciando os falsos problemas. Essa primeira regra enseja uma regra complementar: os falsos problemas seriam de dois tipos - os problemas inexistentes cujos termos implicariam confusão para “mais” ou para “menos”; e os problemas mal colocados - cujos termos seriam mal analisados. A segunda regra é a luta contra a ilusão, e o encontro das várias diferenças de natureza em suas articulações com o real. Também a segunda regra consigna uma regra complementar, em que o real não se estabelece somente seguindo as articulações naturais ou as diferenças de natureza, pois ele também se comporta seguindo as direções convergentes para um mesmo ponto ideal ou virtual. E, por último, a terceira regra: colocar os problemas e resolvê-los em função do tempo mais que do espaço. Resumiríamos dizendo que a intuição é: essencialmente problematizante (critica os falsos problemas e a invenção das verdades); diferenciante (se coloca a partir da diferença); e temporalizante (pensa em termos de duração). A colocação do problema é uma das grandes questões apontadas por Bergson ao longo de sua trajetória filosófica. Trata-se de aprendermos a distinguir um verdadeiro problema de um falso problema. E mais, trata-se não só de identificar os verdadeiros problemas como também de colocá-los com a devida precisão e rigor. A filosofia de Henri Bergson é um pensamento vertiginoso, com toda a vertigem que um vitalismo do virtual pode ensejar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERGSON, Henri. Oeuvres. Paris: PUF.

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A ONTOLOGIA DO VIRTUAL: A METAFÍSICA DA MUDANÇA EM HENRI BERGSON

Falar de metafísica na obra do filósofo Henri Bergson é produzir uma investigação de ordem rigorosa e precisa, que nos leve a colocar em xeque alguns conceitos canônicos da história da filosofia. Os primeiros seriam o de imagem e matéria. Pois, em Bergson as imagens é o que constitui todo o universo material. Dito de outro modo, tudo o que existe é imagem. Para entendermos a posição bergsoniana frente à imagem, precisamos explicitar idéia de virtualidade, assim como entender o que seja “afecto” para o filósofo, a fim de compreender sua concepção empirismo. Denominaremos essa concepção de “empirismo superior”, porque Bergson construiu uma posição filosófica que procurou ‘espiritualizar’ a matéria. Dito de outra maneira, ainda aqui enigmática, seu empirismo é fruto das afecções em seus jorros de virtualidades. O que jorra, então? As imagens em seu fluxo contínuo. A idéia de virtualidade é postulada a partir da potência do tempo e da memória, a memória aqui entendida como tempo, como tempo puro. O tempo se faz aparecer nas durações, nas durações qualitativas, assim como o espaço surge das durações quantitativas. 19

Na virtualidade todas as durações coexistem, elas estão emaranhadas, coladas, praticamente imbricadas. Essa simultaneidade das durações é o que possibilita à própria virtualidade ganhar vida no bojo de seu processo de atualização: as múltiplas virtualidades se abrem em um sem número de atualizações. Assim, ao falarmos da consciência em Bergson não estamos falando de uma consciência doadora de sentido determinado, provedora de razão e intencionalmente dirigida a uma finalidade projetiva, pois isto retiraria a virtualidade do seu campo de atualizações. A concepção de consciência na filosofia bergsoniana é produto das durações, ou seja, ela está sujeita às virtualidades do descentrado universo de imagens que constitui a matéria. Uma consciência é um centro de ação de fato e não de direito, já que a consciência também é uma imagem, como todas as outras consciências e, por conseguinte, como todos os demais viventes do mundo material. O que a consciência possibilita é o aparecimento das afecções para um “corpo”, já que ela se torna, mesmo que por instantes, um centro de indeterminação. Este teria o papel de promover o nascimento de representações1 . Dito isso, afirmamos que Bergson produziu um conceito de consciência que prescinde quase que por completo da idéia de sujeito. A consciência bergsoniana não é mais a ancoragem de um eixo pessoal, mesmo que seja residual; o que temos são extratos de consciência, feixes de memória, fragmentos de subjetividade, ou seja, partículas de tempo, algo como jorros de lembranças, que também são, por sua vez imagens. Dessa maneira, o psicológico, enquanto retrato inteiro do eu, tornase inócuo para o bergsonismo. Nesse ponto, a filosofia de Bergson está bem próxima do empirismo clássico, mas dele se distancia:

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Essas representações para Bergson nada devem àquelas no sentido metafísico platônico, às que simplesmente se alojam na duplicação do real. Elas são produto das interseções das durações, da hesitação produzida entre uma ação e uma reação, na verdade, as representações são filhas das afecções. 20

apesar de se valer da mesma fragmentação do “eu-pessoal” e do eclipse da “forma-homem” que marca o empirismo inglês, Bergson não se vale da combinação dos elementos nem da associação entre os dados. A idéia de impressão, tão cara ao empirismo como o de David Hume2 , é por demais limitada para Bergson; ela somente daria conta do mundo material, nunca do espírito. Pois a grande tarefa do bergsonismo talvez seja, como dissemos, a de espiritualizar a matéria. Para isso, a idéia possibilitadora é o “afecto”, e seu campo conceitual é a virtualidade. A virtualidade, então, nos dá a possibilidade teórica de afirmar que o empirismo de Bergson implica um processo de “resubjetivação”, ou seja, a retomada de novos processos de subjetivação, ou ainda a invenção de novos modos-de-vida e a configuração de novas subjetividades. O empirismo bergsoniano aspira a todo momento ao novo. A virtualidade abre um grande campo de possibilidade para pensarmos as relações entre sujeito e objeto3 , extinguindo-os enquanto referências de conhecimento e _____________________________________________ 2

Cf. DELEUZE, Gilles, Empirisme et Subjectivité. Paris: PUF, 1953. Essa questão do subjetivo e do objetivo também nos remete ao próprio mote da filosofia bergsoniana: a espiritualização da matéria (como já mencionamos). Em Bergson, não há uma hierarquia entre o material e o espiritual, ou entre a matéria e a memória; mas há, isto sim, uma diferença de natureza entre o mundo material (as imagens) e o espírito ou memória (as interseções das durações entre as imagens: seus encontros). Há matéria no mundo mas a matéria do mundo, não explica o mundo. O que explica o mundo é o espírito, daí a importância da espiritualização da matéria para Bergson. Assim, a matéria constitui o mundo, mas não o faz moverse. A matéria funda o mundo mas não é o seu fundamento. Da matéria nasce o novo, mas não é a matéria que produz esta novidade. Tanto que há diferenças de grau no mundo - as multiplicidades quantitativas: um homem alto e outro baixo, um gordo outro magro; mas o que interessa preferencialmente a Bergson são as diferenças de natureza - as multiplicidades qualitativas: a rosa vermelha, o lírio branco. Isso explica o quanto a capacidade de renovação e instauração de novas formas de vida é fundamental ao bergsonismo. O novo não pode sair da matéria; ele parte desta, mas somente se dá pela potência do espírito. Em resumo, há em Bergson, uma física de grau (as multiplicidades quantitativas) na matéria; e uma metafísica de natureza (as multiplicidades qualitativas) do espírito. 3

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também enquanto pressupostos da representação clássica: a objetividade e a subjetividade foram substituídas por Bergson pelas multiplicidades quantitativas e pelas multiplicidades qualitativas. As multiplicidades, tanto quantitativas quanto qualitativas, nos apontam o caminho trilhado pelo bergsonismo para combater todas as formas de psicologismos. As querelas travadas por Bergson com a emergente psicologia do final do XIX, início do XX daí advêm. O vivente não pode, para o bergsonismo, ficar à mercê dos caprichos de uma consciência definidora: ela é indicada como imagem, como mais uma imagem. Porém, o erro mais comum das leituras feitas sobre a obra de Bergson foi o de querer identificar élan à alma, alma que teria uma designação psicológica da consciência. Desta leitura errônea concluiu-se que o bergsonismo seria dualista, proposição exatamente ao avesso das suas intenções. Tanto isso não é verdade que Bergson não se sentia à vontade, inclusive, para se utilizar de categorias humanistas ou animistas: homem e alma não são, definitivamente, noções bergsonianas. Um dos grandes projetos do bergsonismo é enfraquecer o “eu-pessoal”, possibilitando, assim, um maior potencial de criatividade e invenção para o vivente. Para isso, precisamos estar atentos à passagem do sensório-motor - a ação e reação dos corpos sobre os corpos para ótico e sonoro puro - o intervalo ou a hesitação que o vivente produz entre o agir e o reagir perante o dado. Nesse curto espaço de hesitação, um quase nada pode esconder um enorme feixe de criações - é a potência enlouquecedora, quase aberrante da vida, sempre aberta ao criar, sempre aberta às virtualidades. Apesar do “eupessoal”, territorializado sobre seus sentimentalismos, apoiado pelo bom-senso e protegido pelo senso-comum, a vida continua a criar, a reinventar-se a todo momento. Dessa maneira, podemos dizer que a idéia de mudança é essencial ao bergsonismo. Essa capacidade de mudar fez dele uma filosofia do novo. O enfraquecimento do “eu-pessoal” na explosão torrencial que é a vida nos deixa ver o quanto o bergsonismo tenta, a todo custo, mostrar a inoperância do psicológico para explicar as imagens 22

que constituem o universo material: há uma clara “desantropomorfização” das imagens em Bergson. Logo, o pensamento deve procurar fugir de um modelo determinado, mesmo que seja ele a “forma-homem”. O pensamento deve revestir-se de ‘coragem’ para ir em direção ao novo. Esta é a tarefa à qual o bergsonismo se propôs. O que é o novo, então? A novidade está em sua origem associada a que lado da vida? É possível o novo na matéria? Estas questões somente podem ser respondidas se esclarecermos alguns pressupostos gerais do pensamento de Bergson. Apesar de não hierarquizar a matéria frente ao espírito, o pensamento bergsoniano coloca a necessidade de fazermos uma distinção entre ambos. Uma distinção que não foi feita pelo empirismo inglês. É fundamental saber que há uma diferença de natureza entre a matéria e a memória, e não uma diferença de grau. O mundo material não se estende em uma continuidade, alicerçado pelas impressões produzidas a partir das coisas para chegarmos na ordem do espírito. Isso não é possível para Bergson. É preciso haver uma ponte para unir essas duas instâncias que, de fato, não se separam, mas que, de direito, se abrem em dois leques. Esse elemento unificador é a intuição. É através da intuição que o vivente pode estabelecer um liame que unifique, de fato, as durações quantitativas da matéria e as durações qualitativas do espírito. Dessa forma, estamos preparados para afirmar que o novo é a irrupção da diferença no seio da vida. Esse desabrochar se faz pela proliferação de novas imagens que se produzem no interstício entre a matéria e a memória, ou melhor dizendo, no intervalo que se produz entre a ação e a reação frente ao mundo, ou entre o espírito e a matéria. Afirmamos que, em última instância, o novo, para o bergsonismo, é fruto de uma hesitação do vivente. E essa hesitação somente pode ser lida pela intuição. Só a intuição pode nos levar ao Absoluto. O Absoluto, em Bergson, nada tem a ver com a abolição das diferenças e a supremacia da identidade; o sentido bergsoniano 23

de Absoluto é o corolário da própria diferença. Este Absoluto não implica em universalidade, e sim em continuidade: ele é fluxo. O Absoluto provoca uma aliança entre Bergson e o spinozismo Absoluto como potência de ser e pensar, que no bergsonismo pode ser lido como devir e pensar. Assim, também o Absoluto não se daria na matéria, mas no espírito, ou seja, chega-se ao Absoluto pela ordem do espírito. Porém, esse esforço de captação do Absoluto só pode ser atingido pela intuição. De forma imediata, como que de assalto, como por um salto: em um esforço único, duradouro e simultaneamente fugaz, ultrapassando em muito as formas perceptivas, que se instaura pelas vias da intuição. Temos, então, uma visão do Todo. Entretanto, esse Todo não é um processo de totalização fechado; ele é, na verdade o Aberto. À intuição do Absoluto, Bergson denomina “simpatia”. Esta não é um processo de intelecção, não estando presa à matéria ou subordinada à vida - seu salto é sempre qualitativo, logo, temporal. A simpatia não é o tempo da transcendência, nem o tempo da onisciência: a simpatia é o tempo do encontro, do encontro afectivo. A simpatia é simultânea ao próprio acontecimento. Ela se abre sobre múltiplos leques, produzindo infinitas possibilidades para os viventes. Estamos, com a simpatia, diante da virtualidade e não do possível. Em suma, o Absoluto em Bergson aspira à simpatia, ultrapassando em muito os limites do real e do campo do possível. Seu grau de efetiva participação entre os corpos se efetua nas miríades de virtualidades que podem desembocar em atualizações. Dito de outro modo, o Absoluto se abre virtualmente em atualizações, constituindo-se aí em imagens. Imagens no tempo, não imagens temporárias. Essas imagens se imbricam e ganham sentido através da intuição, ou seja, sabemos de sua atual existência por um processo simpático, não intelectual. Estamos diante de um certo grau de “divinização” das coisas, ou como queria Bergson, em um processo de ‘espiritualização da matéria’.

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*** A metafísica bergsoniana é o esforço do pensamento para deslocar o campo de atividade do vivente do habitual para o criativo. A metafísica em Bergson é sinônimo de movimento, e não de imobilidade. Dito isso, algumas apreciações podem ser feitas sobre as relações entre o conceito de metafísica em Bergson e a idéia de virtualidade, tão importante para demonstrarmos o caráter ontológico das imagens bergsonianas. O virtual, em certo sentido, é o mesmo que o ontológico em Bergson. Para entendermos esta associação entre ontologia e virtualidade, é fundamental falar do novo sentido dado pelo bergsonismo para palavras já consagradas na história da filosofia: “metafísica” e “ontologia”. Bergson tenta re-escrever a palavra metafísica, aplicandolhe um novo sentido. Para tal, seu primeiro esforço foi dissociá-la da metafísica de origem platônica. Seu esforço foi o de ‘imanentizar’ o ‘transcendente’, isto é, mostrar que a metafísica pode, a partir de novas bases explicar a matéria. Este explicar da matéria precisa passar pelo espírito. Em primeiro lugar, a metafísica passa a ser um ato do pensamento, capaz de lidar com o múltiplo e com o devir, deixando de lado o uno e o ser. Temos aí, claramente, um deslocamento do paradigma metafísico clássico. Enquanto a metafísica de origem platônica se esmera em lidar com a identidade - o uno e o ser - a metafísica bergsoniana se atém à diferença - as multiplicidades e o devir. O pensamento em Bergson não remete ao ser, e conseqüentemente ao não-ser. Em Bergson, estamos diante do esforço da vida para pensar o tempo e o movimento. A metafísica bergsoniana é uma metafísica da mudança, não da imobilidade. Para Bergson, a “questão do ser” apresenta, necessariamente, seu avesso - o nada. Diria um metafísico clássico: “por que o ser e não o nada?” No bergsonismo este é um falso problema, 25

logo, um obstáculo ao pensamento ou uma ilusão, como no sentido nietzschiano. A questão do nada é quimérica. O Nada não existe. Em seu bojo, a idéia de Nada traz todo um processo de negação, que implica na impossibilidade de vermos o pensamento como criação. O pensar bergsoniano é por si afirmativo, almeja a positividade. Para demonstrar a inaptidão da idéia de Nada e de sua negatividade para pensar a vida, Bergson se utiliza de uma argumentação empirista: ... para um espírito que seguisse pura e simplesmente o fio da experiência, não haveria o vazio, não haveria o nada, mesmo relativo ou parcial, não haveria negação possível. Um tal espírito veria os fatos sucederem-se aos fatos, os estados aos estados, as coisas às coisas. Aquilo que se conheceria a cada instante seriam as coisas que existem, os estados que se manifestam, os fatos que se produzem. Viveria dentro do atual e, se fosse capaz de julgar, só seria capaz de afirmar a existência do presente.4

Bergson fala como um empirista - a premência da experiência, mas ainda como um empirista que não sentiu a brisa do tempo através de sua face. Esse empirismo ainda está preso em demasia à matéria, apesar de vislumbrar que há algo que escapa à experiência e pode, por conseguinte, torná-la ontológica, tornála temporal. Mas o sentido de presentificação nos dá a ver um bergsonismo preocupado com o falso problema do Nada, com o perigoso problema do Nada, que pode nos levar às ilusões da consciência e à negatividade no pensar. O sentido de presente colocado por Bergson contrasta, de uma certa maneira, com a idéia de “atual”. O atual é diferente do presente, apesar de todo presente ser uma atualidade. Enquanto o presente é uma espécie de espacialização, dura, maciça, da _____________________________________________ 4

BERGSON, H. “L’Évolution Créatrice”, in Oeuvres, p. 743. 26

virtualidade, o atual é uma corporificação, uma máscara, um “dublê de corpo” do virtual. As virtualidades se atualizam e as atualizações podem se presentificar, ou seja, tornarem-se existentes, palpáveis a qualquer forma de experiência. O que o empirismo clássico, de forma ainda ingênua, viu, era apenas esse primeiro momento: a presentificação das atualidades; não o momento mais fundamental - a atualização das virtualidades. Então, o pensamento para ser criativo, inventar e aspirar ao novo, deve buscar o caráter das atualizações. É preciso ver o presente como uma atualidade. Este presente atualizado nos leva à coexistência com o passado, ou melhor, com todos os passados, logo, com o virtual e suas atualizações. Bergson prossegue em sua argumentação apontando os passados no horizonte do presente: Concedamos a este espírito a memória, e sobretudo o desejo de se apoiar no passado. Confiramos-lhe a faculdade de dissociar e de distinguir. Deixará de verificar apenas o estado atual da realidade que passa. Representar-se-á a passagem como uma mudança, e portanto como um contraste entre aquilo que existiu e aquilo que existe.5

O presente em Bergson é um ponto entre os passados e os futuros; ele está sempre grávido de todos os futuros e tem em seu seio, contraído, todos os passados. A contração do passado no presente e o futuro que se estende todo à frente é a síntese perfeita do tempo bergsoniano6 . É _____________________________________________ 5

BERGSON, H. “L’Évolution Créatrice”, in op. cit., pp. 743-744. Deleuze vai chamar esta síntese perfeita do tempo em Bergson, de segunda síntese do tempo: o passado puro. Nela, encontramos o tempo feito memória, memória pura. Deleuze diz: “O hábito é a fundação do tempo, o solo movente ocupado pelo presente que passa. Passar é precisamente a pretensão do presente. Mas o que faz com que o presente passe e que se aproprie do presente e do hábito deve ser determinado como fundamento do tempo. O fundamento do tempo é a Memória.” DELEUZE,Gilles, Différence et répétition. 5a. ed., Paris: PUF, 1985, p. 108. 6

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através desta síntese que poderemos verificar o trajeto das imagens que passam de um tempo psicológico para um tempo puro, para a pura memória, ou ainda, para o ontológico. No tempo puro ou ontológico, as imagens não se apresentam a partir de representações, elas não são efeito de um modelo ou dublês de quaisquer paradigmas. Atrás das imagens existem apenas outras imagens, e atrás destas mais outras imagens, em uma sucessão infinita como o tempo. Assim, mesmo que em um dado momento haja a necessidade da intervenção do psicológico (as imagens que se fazem um centro de indeterminação), logo depois, ou quase simultaneamente, há o deslocamento para o ontológico, para o puro tempo (as imagens passam, novamente, a compor o universo acentrado). Este talvez seja o momento mais rico da vida: o liame, a fissura, o intervalo que separa (e por isso mesmo une) a passagem do psicológico para o ontológico. Esta passagem só é possível porque somos, além de matéria, memória. A memória pura é a fundação do tempo em Bergson. A virtualidade faz uma associação sem par com a memória. Porém, a memória lembrança é o ponto de contato com o virtual, nunca a memória hábito. O virtual não aparece preso ao hábito. O hábito produziria uma outra síntese do tempo, desvinculada da virtualidade7 . Somente as lembranças podem servir como uma espécie de suporte para os canais que levem uma memória já desprovida de sonhos, devaneios e lembranças, a tornar-se, de direito, memória pura. Esta memória pura é um outro nome para a virtualidade, pois está sempre grávida de uma infinidade sem número de virtuais imagens, que podem ou não se atualizar. Bergson nos diz que essa memória, na verdade, existe de direito e

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Deleuze apresenta uma outra síntese do tempo para falar do hábito. Essa síntese não está ligada, propriamente, a Bergson e sim a David Hume. Ele a chamou de primeira síntese do tempo: o presente vivo. Cf. DELEUZE, G., Différence et répétition, p. 96. 28

não de fato, mas exatamente por isso, pelo seu caráter de virtualização, encontramos nela o mais puro tempo: o tempo ontológico. O tempo é a resposta ontológica para o aparecimento das imagens no mundo. Ontologia é sinônimo de tempo e virtualidade em Bergson. O tempo puro é o tempo ontológico. Um tempo que não reivindica a univocidade da identidade nem a clausura do ser; mas um tempo que dialoga com as multiplicidades da diferença e espelha o fluxo do devir. Essa ontologia das imagens do real, que faz de Bergson o escultor de uma metafísica, não prima pelo ser ou pela imobilidade, mas implica uma metafísica que persegue o devir e que almeja o movente. Em Bergson, estamos diante de uma metafísica da mudança, isto é, uma ontologia do virtual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BERGSON, Henri. Oeuvres - Éditions du Centenaire. 4ª ed., Paris : PUF, 1984. DELEUZE, Gilles. Différence et Répétition. 5ª ed., Paris: PUF, 1985. _____________ . Empirisme et Subjectivité. 5ª ed., Paris: PUF, 1993. _____________ . Le Bergsonisme. 5ª ed., Paris: PUF, 1994.

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BERGSON E GODARD: A PERCEPÇÃO CINEMATOGRÁFICA DO REAL

1. a percepção e o problema da consciência Bergson formulou vários enunciados de combate às teses do realismo e do idealismo, no que concerne ao problema da percepção. Ambas as teses seriam excessivas e acabariam por esbarrar no mesmo erro: percepção = conhecimento. Na hipótese bergsoniana não podemos, de modo algum, associar percepção e conhecimento; haveria uma clara diferença de natureza entre o conhecimento e a percepção. A percepção estaria indissoluvelmente ligada à ação. Sendo que a ação estaria para o tempo, assim como a percepção estaria para o espaço. Quer dizer, toda a percepção é espacializada, engendra um topos, aspira a um lugar; enquanto a ação almeja à temporalidade, sem “fazer-se” no tempo. A ação seria o ponto de contato dos viventes com as coisas, com os corpos, com a vida. Vive quem pode instaurar-se em uma atualidade, ou melhor, a vida busca a atualização. Essa atualização é necessariamente indeterminada, já que o corpo é um modo centrado em um universo de imagens acentradas. No movimento de “acentramento” e “reacentramento” deste corpo, ele torna-se um centro de ação, logo um centro de indeterminação. Bergson nos diz que: 31

A parte de independência de que um ser vivo dispõe, ou, como diremos, a zona de indeterminação que cerca sua atividade, permite portanto avaliar a priori a quantidade e a distância das coisas com as quais ele está em relação. Qualquer que seja essa relação, qualquer que seja portanto a natureza íntima da percepção, pode-se afirmar que a amplitude da percepção mede exatamente a indeterminação da ação consecutiva, e conseqüentemente enunciar esta lei: a percepção dispõe do espaço na exata proporção em que a ação dispõe do tempo.8

De princípio Bergson postulou uma lei rigorosa que ligaria a extensão, daquilo que o filósofo chamou de percepção consciente, à intensidade de ação de que dispõe o vivente. Ao falar de percepção consciente, o que pretendia o pensador? A nosso ver, Bergson já aqui começa a propor uma nova maneira de entender o processo perceptivo dos viventes. O filósofo já iniciava uma tentativa de descolar, de separar, as percepções das lembranças. Isto foi feito quando ele propôs, de direito, uma percepção pura. Por que a percepção pura existe de direito e não de fato? Ora, sabemos que nossas percepções, mesmo as mais banais, as mais cotidianas e viscerais, estão impregnadas de lembranças. A percepção é um “torvelinho” de flashes e “relâmpagos” que clareiam e, por conseguinte, obscurecem uma determinada ação de um determinado vivente. Pelo simples fato de estarmos mergulhados, imersos em uma ‘duração’ - em que o presente é contemporâneo de todos os passados - nada mais “natural” que nossas mais elementares percepções estejam imbricadas de souvenirs. Então, nosso filósofo, para melhor entender o processo perceptivo, achou por bem criar a possibilidade de pensarmos uma percepção sem os múltiplos signos que impregnam os acontecimentos. Criar uma percepção pura. _____________________________________________ 8

Bergson, Oeuvres, p. 183. 32

Restabeleçamos, ao contrário, o caráter verdadeiro da percepção; mostremos, na percepção pura, um sistema de ações nascentes que penetra no real por suas raízes profundas: esta percepção se distinguirá radicalmente da lembrança; a realidade das coisas já não será construída ou reconstruída, mas tocada, penetrada, vivida; e o problema pendente entre o realismo e o idealismo, em vez de perpetuar-se em discussões metafísicas, deverá ser resolvido pela intuição.9

A intuição foi a tentativa de Henri Bergson de esculpir, metodicamente, uma forma imediata de acesso às coisas. Uma espécie de anterioridade à própria consciência. A intuição possibilitaria ao corpo apropriar-se de algo como que por um salto qualitativo: como que de assalto. Por isso os racionalistas estranham a pergunta bergsoniana: como algo que não é consciente, pode estar antes da consciência? Mas também estranham os nãoracionalistas e signatários da tese que defende que a vida seja governada por forças impulsivas e anímicas: como algo que é anterioridade à própria consciência, não é consciente, pré-consciente, ou mesmo inconsciente? Na verdade, a intuição é a possibilidade mais “rápida” do ser de “fazer-se” presença - visitar as coisas. Não como propõe a fenomenologia de Husserl e de Merleau-Ponty, que em sua démarche, nos diz que as coisas são como que fundadas pela consciência. O bergsonismo nos propõe exatamente o oposto: as coisas fundariam a consciência, as coisas desenhariam o próprio ser. Podemos inclusive afirmar, sem temor, que Bergson inverteu a célebre máxima fenomenológica: “toda consciência é consciência de alguma coisa”10 ;

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op. cit. p., 216. “Portanto, não é preciso perguntar-se se nós percebemos verdadeiramente um mundo, é preciso dizer, ao contrário: o mundo é aquilo que nós percebemos.” Merleau-Ponty, Maurice, Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 13-4. 10

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em Bergson esta máxima ganharia outras cores: “toda consciência é alguma coisa”.11 A orientação bergsoniana para o problema da consciência traz a nu as contradições da própria fenomenologia. Essa orientação, não só coloca em xeque a idéia da percepção como doadora de sentido, ou produtora de conhecimento, mas também questiona a capacidade que teria o processo perceptivo de criar as condições de possibilidade para a efetuação plena da presença, como nos indica a fenomenologia. Essa corrente de pensamento tão influente em nosso tempo, ao tentar elidir do mundo a contradição cartesiana do sujeito e objeto - o clássico dualismo metafísico - nada mais fez que criar uma espécie de “pan-dualismo” transcendental, ao fincar na intencionalidade (que somente poderia ser do “Eu”) o sentido do real. A consciência, para a fenomenologia, acabou por reproduzir, de modo distinto, as prerrogativas cartesianas do “Grande Racionalismo” do século XVII: a razão (consciência) pode tudo. Por seu lado, Bergson pergunta o que pode a consciência? O filósofo responde que ela pode amparar a luz, e servir de suporte para a emergência de uma manhã. A consciência não é o algoz da noite, que com sua “auto-iluminação” nos furtaria das trevas. A consciência, em Bergson, é a tela negra, a placa opaca, que garante o aparecimento redentor do dia. A consciência, no pensamento bergsoniano, nos dá a ver a _____________________________________________ 11

“Há aí uma ruptura com toda tradição filosófica, que situava a luz antes do lado do espírito, e fazia da consciência um feixe luminoso que tirava as coisas da sua obscuridade nativa. A fenomenologia ainda participava inteiramente desta tradição antiga; simplesmente em vez de fazer da luz uma luz de interior, abria-a para o exterior, um pouco como se a intencionalidade da consciência fosse de uma lâmpada elétrica (“toda consciência é consciência de alguma coisa...”). Para Bergson, é exatamente o contrário. São as coisas que são luminosas por si mesmas, sem nada que as ilumine: toda consciência é alguma coisa, confunde-se com a coisa, isto é, com a imagem de luz.” Deleuze, Gilles, L’Image-Mouvement, p. 89-90. Nesta citação do livro de Gilles Deleuze, procuramos deixar claras, as posições fenomenológicas e bergsonianas no que se refere ao problema da consciência. 34

possibilidade da garantia ao corpo de segurar o fio incessante da memória. Este é um de seus papéis mais importantes. O papel teórico da consciência na percepção exterior, dizíamos nós, seria o de ligar entre si, pelo fio contínuo da memória, visões instantâneas do real. Mas, na verdade, não há jamais instantâneo para nós. Naquilo que chamamos por esse nome existe já um trabalho de nossa memória, e conseqüentemente de nossa consciência, que prolonga uns nos outros, de maneira a captá-los numa intuição relativamente simples, momentos tão numerosos quanto os de um tempo indefinidamente divisível.12

Desta maneira, a consciência impediria a volatização do real e a perda das lembranças, logo, a efetuação da duração. Está feito o embate: bergsonismo versus fenomenologia.13 Bergson explicitamente nos fala que o sujeito e o objeto se unem a partir da contração da memória: É numa percepção extensiva, ao contrário, que sujeito e objeto se uniriam inicialmente, o aspecto subjetivo da percepção _____________________________________________ 12

Bergson, Oeuvres, p. 216-17. “A refutação das ‘teorias fisiológicas’ da memória, em Bergson por exemplo, situa-se no terreno da explicação causal; ela consiste em mostrar que os traços cerebrais e os outros dispositivos corporais não são a causa adequada dos fenômenos de memória; que, por exemplo, no corpo não encontramos com o que dar conta da ordem na qual as recordações desaparecem em casos de afasia progressiva. A discussão assim conduzida certamente desacredita a idéia de uma conservação corporal do passado: o corpo não é mais um receptáculo de engramas, é um órgão de pantomima encarregado de assegurar a realização intuitiva das ‘intenções’ da consciência.” Merleau-Ponty, M., Fenomenologia da Percepção, p. 553. Como podemos ver por esse texto, Merleau-Ponty, sustenta um combate às teses bergsonianas, tanto da memória e do corpo, quanto da consciência. O fenomenólogo, acredita que o corpo pode tudo, que a consciência é doadora de sentido, e que a memória, como que recolhe as impressões dos acontecimentos do dia-a-dia. Bergson, com certeza, não concordaria com tais afirmações. A consciência bergsoniana não é mais que um écran, como uma tela cinematográfica. Ela recebe a luz, e a projeta... e aí sim, se faz o sentido. 13

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consistindo na contração que a memória opera, a realidade objetiva da matéria confundindo-se com os estímulos múltiplos e sucessivos nos quais essa percepção se decompõe interiormente. Tal é, pelo menos, a conclusão que se tirará, esperamos, da última parte deste trabalho: as questões relativas ao sujeito e ao objeto, à sua distinção e à sua união, devem ser colocadas mais em função do tempo que do espaço.14

Merleau-Ponty e os fenomenólogos teriam uma outra posição: a intencionalidade da consciência garantiria para eles o fim da cisão sujeito e objeto.15 Por fim, entendemos que Bergson produziu um novo modo de ver a percepção das coisas. Pensou em uma nova possibilidade para compreendermos os viventes, ao colocar a percepção ao lado da atenção à vida e não do conhecimento. Ao colocar a percepção do lado da ‘matéria’ e não da ‘memória’. _____________________________________________ 14

Bergson, Oeuvres, p. 217-18. Duas citações de Merleau-Ponty talvez nos ajudem a situar melhor as discussões da fenomenologia com o bergsonismo: “O erro de Bergson é acreditar que o sujeito meditante possa fundir-se ao objeto sobre o qual ele medita, o saber se dilatar confundindo-se com o ser; o erro das filosofias reflexivas é acreditar que o sujeito meditante possa absorver em sua meditação, ou apreender sem sobras, o objeto sobre o qual medita, nosso ser se reduzir a nosso saber. Nunca somos, enquanto sujeito meditante, o sujeito irrefletido que procuramos conhecer; mas também não podemos nos tornar inteiramente consciência, reduzir-nos à consciência transcendental. Se fôssemos a consciência, deveríamos possuir, como sistemas de relações transparentes, o mundo diante de nós, nossa história, os objetos percebidos em sua singularidade.” op. cit., pp. 97-8. Aqui Merleau-Ponty evoca a ineficiência do bergsonismo para elucidar o dualismo metafísico do sujeito e objeto, e toma o partido da consciência para solucionar este problema que se arrasta por séculos na história do pensamento ocidental. O pensador nos diria ainda: “O tempo constituído, a série das relações possíveis segundo o antes e o depois não é o próprio tempo, é seu registro final, é o resultado de sua passagem que o pensamento objetivo sempre pressupõe e não consegue apreender. Ele é espaço, já que seus momentos coexistentes diante do pensamento, é presente, já que a consciência é contemporânea de todos os tempos.” op. cit., p. 556. O fenomenólogo, mais uma vez, coloca a consciência como o epicentro de seu pensamento: a consciência tornar-se o oscopo da temporalidade, engolindo assim, a duração. 15

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Poderíamos resumir, com efeito, nossas conclusões sobre a percepção pura dizendo que há na matéria algo além, mas não algo diferente, daquilo que é atualmente dado. Sem dúvida a percepção consciente alcança a totalidade da matéria, já que ela consiste, enquanto consciente, na separação ou no “discernimento” daquilo que, nessa matéria, interessa nossas diversas necessidades. Mas entre essa percepção da matéria e a própria matéria há apenas uma diferença de grau, e não de natureza, a percepção pura estando para a matéria na relação da parte com o todo. Isso significa que a matéria não poderia exercer poderes de um tipo diferente daqueles que nós percebemos.16

*** Gilles Deleuze apropriou-se da idéia de “percepção pura” e a transformou em um poderoso conceito: o “percepto”. Aqui não estamos mais em Bergson, nem nos encontramos mais a discutir as querelas da fenomenologia frente ao bergsonismo, no que toca o problema do aparato perceptivo. Estamos em uma outra zona de problemas, não mais metafísicos (o modelo e a cópia) ou relativos ao conhecimento (o sujeito e o objeto); nosso campo de investigação caminha em direção ao percepto deleuziano e ao problema da obra de arte. O que é um percepto? É preciso que se diga: os perceptos não são percepções, assim como os afectos não são afecções, nos ensinam Deleuze e Guattari17 . Esses elementos, perceptos e afectos, _____________________________________________ 16

Bergson, op. cit., p. 218. “Os perceptos não mais são percepções, são independentes do estado daqueles que os experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afectos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido. Existem na ausência do homem, podemos dizer, porque o homem, tal como ele é fixado na pedra, sobre a tela ou ao longo das palavras, é ele próprio um composto de perceptos e afectos. A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si.” Deleuze, Gilles e Guattari, Félix, O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, p. 213. 17

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são fundamentais para a arte e não para o conhecimento. Eles não estão para o corpo como estão uma percepção e uma afecção. Eles não são o efeito dos encontros dos corpos, seja esse efeito externo (percepções), seja esse efeito interno (afecções). Os perceptos, e aqui no caso os afectos, compõem blocos, “blocos de sensações”, que possibilitam a emergência de um “fazer artístico”. Quando Cézanne pintou maçãs sobre uma mesa, essas frutas não foram retiradas de sua imaginação, não foi obra de intensa emoção ou sentimentos, muito menos essa imagem lançada sobre a tela foi produto de alguma reminiscência da infância. O campo perceptivo é limitado para entendermos este problema. Torna-se necessária a construção de uma nova categoria que possa, ao mesmo tempo, abarcar “o fora” (as percepções) e “o dentro” (as afecções). Uma categoria que se mobilizasse em função do “extra-real” sem deslocar-se da realidade. Uma categoria que inventasse uma paisagem anterior ao homem, na ausência do homem18 . Esta categoria é o “percepto”. A pincelada do pintor, a sintaxe do escritor e o plano de composição do músico somente são possíveis porque há um desprendimento desses homens, de certa forma, de tudo o que há de homem neles. Como se precisassem deixar o humano para se tornarem “inumanos” no momento próprio ao criar, no momento da emergência da obra. A obra os engole, solapa seus “egos”, minimiza seus “eus”, faz a percepção contrair-se e a afecção encolher-se: surgem, então, afectos e perceptos; surge, então, um “monumento” - a obra de arte. Quando um cineasta como Jean-Luc Godard passeia sua câmera por sobre Paris (com um filme positivo, o que faz a cidade tornar-se um mar de escuridão e penumbras), como em Alphaville (1965), o que vemos não é mais Paris, é Alphaville, mas ainda _____________________________________________ 18 “O percepto é a paisagem anterior ao homem, na ausência do homem.” BERGSON, op. cit., p. 219.

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assim, continua sendo Paris. O cineasta-pensador reelabora a cidade como um demiurgo e a faz ser outro ser. Passamos então, a não mais perceber Paris, e sim “Alphaville”. O percepto pode cumprir o enunciado do pintor Paul Klee: tornar visível o invisível, ou como querem Deleuze e Guattari, tornar sensíveis as forças insensíveis.19 Como o cinema seria a arte a dar maiores contribuições para inaugurar novas formas perceptivas, nada melhor que a associarmos ao percepto. Principalmente o cinema moderno e, em especial, o cinema de Jean-Luc Godard. Porém, antes de iniciarmos uma investigação mais rigorosa acerca da máquina-cinema e do cérebro-cinema-godardiano, é preciso explicitar a noção de “ilusão cinematográfica” em Bergson e destacarmos a invenção do cinematógrafo.

2. a “ilusão cinematográfica” e o cinematógrafo Uma primeira imagem se combina a uma segunda imagem, que por sua vez, se combina a uma terceira imagem, que se combina ainda com uma quarta imagem, e esta se combinaria a uma quinta imagem... as combinações continuariam sem fim, em uma relação de múltiplas combinações e imbricações de imagens... De que falamos? Talvez de um caleidoscópio - aquele pequeno instrumento cilíndrico, em cujo fundo há fragmentos móveis de vidro colorido, os quais ao se refletir sobre um jogo de espelhos angulares dispostos longitudinalmente produzem um número infinito de combinações de imagens, de cores e de variedades. Mas além do caleidoscópio poderíamos estar falando da vida, das relações entre os viventes, dos encontros dos corpos, como nos propõe Henri Bergson. Na verdade, os corpos (as imagens) _____________________________________________ 19 “Não é esta a definição do percepto em pessoa: tornar sensíveis as forças insensíveis que povoam o mundo, e que nos afetam, nos fazem devir?” op. cit., p., 235.

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quando centradas engendram movimento, que acabam por produzir uma visão caleidoscópica do real. Há um sistema de imagens que chamo minha percepção do universo, e que se conturba de alto a baixo por leves variações de uma certa imagem privilegiada, meu corpo. Esta imagem ocupa o centro; sobre ela regulam-se todas as outras; a cada um de seus momentos tudo muda, como se girássemos um caleidoscópio.20

Essa percepção caleidoscópica da realidade é produto de um “reacentramento” que uma determinada imagem privilegiada (um corpo) obteve quando do seu efetivo centramento, mesmo que momentâneo. Como se disséssemos que as imagens se pusessem a desfilar a ‘olhos vistos’ quando uma determinada imagem (um corpo) ganhasse o estado, momentâneo, de centro de indeterminação. Criar-se-ia, então, uma “máquina de visão”21 . Bergson - o filósofo das “máquinas de visão” - ao relacionar percepção e movimento de imagens ele abriu caminho para interrogarmos o que seria “o ver”. Mas o ver, aqui, não é a matéria de nossa meditação. Estamos interessados em desvendar, isto que o autor de L’Énergie Spiritualle, chamou de “mecanismo cinematográfico da percepção”. O ponto de partida da reflexão bergsoniana é a discussão sobre o movimento em L’Évolution Créatrice, especificamente em seu quarto capítulo: Le mécanisme cinématographique de pensée et l’illusion mécanistique. Apesar do título do capítulo referir-se explicitamente ao problema do então totalmente novo cinematógrafo, neste texto Bergson discutiria à exaustão o problema do Nada (néant) e os paradoxos de Zenão de Eléia. O que nos parece curioso é que o filósofo em seu primeiro livro enalteceu _____________________________________________ 20 21

Bergson, Oeuvres, p. 176. Cf. VIRILIO, Paul. Máquina de visão (?). 40

o papel insurgente do cinema, então em sua mais tenra aurora. Já no livro que lhe valeu o Nobel de Literatura houve uma espécie de acerto de contas, de regressão de opinião. Quero dizer que, se em Matière et Mémoire o cinema ganha ares enobrecedores e fundadores, em L’Évolution Créatrice o cinematógrafo passa a ser não mais que uma mera ilusão: a “ilusão cinematográfica”. Aplicada que foi à percepção natural ou habitual, houve um enfraquecimento do “fazer cinematográfico” no texto de 1907 para o filósofo. Nós perguntamos: por que? Tentemos então perseguir “a letra” da escritura bergsoniana em L’Évolution Créatrice e busquemos o esclarecimento para o problema proposto: como equacionar a questão da “ilusão cinematográfica”. A introdução do exemplo cinematográfico se dá em certa altura do quarto capítulo da L’Évolution Créatrice, quando o pensador tenta nos explicar os movimentos qualitativos diferenciados do devir. Ele demonstra que nossa atitude “natural” diante das coisas não tem outra opção senão perceber a multiplicidade da vida. Como? Bastaria olharmos a realidade à nossa volta. Uma flor e um fruto, por exemplo. Os movimentos que iriam da flor para o fruto seriam qualitativamente diferentes daqueles que iriam da ninfa à larva... Libertemos a crisálida, como diria Bergson em La Pensée et le Mouvant. Deixemos a lagarta transformar-se em borboleta, ou ainda mais explicitamente: restituamos ao movimento sua mobilidade, à mudança sua fluidez, ao tempo sua duração, nos diz Bergson. Precisamos entender o movimento pela sua mobilidade e não pelo repouso; a mudança pelos fluxos intermitentes que enchem de vida o real; e pensar o tempo, necessariamente, ligado à duração. Esta discussão se prolonga até o momento em que o filósofo exemplifica seu problema com uma cena animada reproduzida em uma tela: o desfile de um regimento. Em primeiro lugar, para dar conta do movimento poderíamos recortar figuras representando os soldados, imprimindo a cada uma delas o movimento de marcha, projetando na tela este conjunto 41

- os soldados a marchar. Mas existiria uma segunda maneira bem mais eficaz: “bater” instantâneos (fotos) em séries que seriam substituídas rapidamente por outras para realçar a impressão de mobilidade do regimento: teríamos o cinematógrafo. Portanto, e em resumo, o processo consistiu em extrair de todos os movimentos próprios a todas as figuras um movimento impessoal, abstrato e simples, por assim dizer o movimento em geral, em introduzi-lo no aparelho, e em reconstituir a individualidade de cada movimento particular pela composição desse movimento anônimo com as atitudes pessoais. É esse o artifício do cinematógrafo. E é esse também o do nosso conhecimento. Em vez de nos prender ao devir interior das coisas, colocamo-nos fora delas para recompor o seu devir artificialmente. Temos visões quase instantâneas da realidade que passa e, como elas são características dessa realidade, basta-nos alinhá-las ao longo de um devir abstrato, uniforme, invisível, situado no fundo do aparelho do conhecimento, para imitar o que há de característico nesse mesmo devir. Percepção, intelecção, linguagem, em geral procedem assim. Quer se trate de pensar o devir ou de o exprimir, ou até de o percepcionar, o que fazemos é apenas acionar uma espécie de cinematógrafo interior. Resumiríamos portanto assim tudo o que atrás ficou dito: o mecanismo do nosso conhecimento vulgar é de natureza cinematográfica.22

Nossa maneira mais comum de perceber a realidade imitaria um filme. Mas não é esta a questão que particularmente nos interessa aqui, e sim, como se dá este processo “cinematográfico” da percepção. A percepção garante o movimento de exterioridade dos viventes em Bergson. Percebemos as coisas por nos movimentar-nos em direção a um “de-fora”, do mesmo modo que somos afetados _____________________________________________ 22

BERGSON, op. cit., p. 753. 42

pelas ações de refluxos dos movimentos perceptivos. O que estamos tentando dizer é que, na verdade, a concepção bergsoniana de percepção enseja a possibilidade para pensar o percepto deleuziano. Como? Ora, quando falamos deste “de-fora”, estamos afirmando que existiriam, de direito, em Bergson, duas formas perceptivas, que o próprio filósofo, batizou de percepção pura e percepção natural. A percepção pura nos coloca no campo dos acontecimentos cotidianos e faz as vezes de instrumento de “atenção à vida”. Mas a percepção pura, queremos crer, nos dá a possibilidade de pensarmos a vida como “paisagem”, como “percepto”. O percepto não é a percepção do homem, assim como o afecto não são os seus sentimentos. Percepto e afecto são novas possibilidades subjetivas, ou se quisermos ainda, eles ensejariam novas subjetividades. Subjetividades sem nenhum compromisso com qualquer forma de humanismo. Subjetividades inumanas. Acreditamos que a noção de “ilusão cinematográfica” nos dá a ver o percepto e não a percepção. Como se mudássemos a ordem das coisas. Esses novos ângulos, perspectivas, volumes e luzes, criados pelo cinema moderno, devem muito mais a Bergson do que o próprio cinema pode imaginar. Esta visão bergsoniana das relações entre o cinematógrafo e o aparato perceptivo encontra um diálogo com a fenomenologia23 . No entanto, a fenomenologia de Merleau-Ponty _____________________________________________ 23 “Diga-se, inicialmente, que um filme não é uma soma de imagens, porém uma forma temporal. É o momento de recordar a famosa experiência de Pudóvkin, (Merleau-Ponty se refere, neste momento, às experiências de Lev Kulechov, divulgadas na França por Pudóvkin, que por lá viajou e fez conferências, fato que provavelmente ocasionou o equívoco na citação) que coloca em evidência a sua unidade melódica. Certo dia, ele tomou um grande plano de Mosjúquin impassível e projetou-o, precedido, a princípio, de um prato de sopa, em seguida, de uma jovem morta em seu caixão e, finalmente, antecedido por uma criança a brincar com um ursinho de pelúcia. Notou-se, de início, que aquele ator dava a impressão de olhar o prato, a jovem e a criança e, depois, que fitava o prato com ar pensativo, a jovem, com tristeza, e a criança, mediante um sorriso radiante e o público ficou surpreendido pela variedade de suas expressões, quando, na verdade, a mesma tomada havia sido utilizada três vezes e era flagrantemente inexpressiva. O sentido de uma imagem

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não compreende a revolução que foi o cinema moderno fazendo de suas referências cinematográficas, referências clássicas narrativas.

3. a máquina-cinema, um cérebro-cinema Mas então tentemos responder: o que é o cinema? Com certeza mais que a ilusão retiniana. Mais que a impressão de realidade. Mais que a tecnologia das imagens. De qualquer forma, o cinema também é a ilusão retiniana, a impressão de realidade e uma tecnologia de imagens. Vemos imagens em movimento porque a visão humana não consegue identificar as muitas imobilidades que compõem um filme. Sabemos que um filme é uma série de fotografias, feitas seqüencialmente, a partir de uma máquina (o cinematógrafo), que projetadas a uma determinada velocidade (vinte e quatro fotos - fotogramas - por segundo) nos dá a impressão de movimento. Essa impressão de movimento é, na verdade, uma impressão de realidade: será que o cinema, realmente, copia a vida? Será que o cinema chegou para ocupar o espaço deixado pela pintura retratista e pela fotografia, como forma exemplar de representação do real? É duvidoso pensarmos que sim. O cinema é, antes de mais nada, uma forma de expressão estética que se ancora em imagens e signos. “Tudo é imagem”, nos diz Bergson. O cinema enriqueceu a história das técnicas na passagem do século XIX para o XX. Tudo começou com a lanterna mágica... _____________________________________________

depende, então, daquelas que a precedem no correr do filme e a sucessão delas cria uma nova realidade, não equivalente à simples adição dos elementos empregados.” Merleau-Ponty, “O Cinema e a Nova Psicologia” in A Experiência do Cinema. Xavier, Ismail (org.). Rio de Janeiro: Graal, 1983, pp. 110-11. Por esta citação, ficou evidente a associação que Merleau-Ponty faz entre cinema e montagem. O artifício de recortar e colar, e novamente, recortar e colar as imagens, seria para o fenomenólogo, a essência do “fazer cinematográfico”. Esta concepção de cinema ainda está trabalhando no registro das imagens que Gilles Deleuze chama de imagens-movimento, aquelas que estariam presas ao aparelho sensório-motor e à ação e reação frente ao dado. Ou seja, para a fenomenologia, o cinema moderno ainda não havia nascido. 44

para nascer o cinematógrafo. Antes dele existiram outras engenhocas maravilhosas: o Kinetoscope de Thomas Edison foi uma delas. Mas em dezembro do ano da publicação de Matière et Mémoire (1895), era feita a primeira exibição pública de cinema. Rara forma de sedução, o cinema viria para ficar e se desenvolver. Construir uma linguagem, com Griffith e Eisenstein: a montagem tornar-se-ia, nesse momento, o coração do cinema. Imitando os movimentos da vida, agindo e reagindo aos acontecimentos, viviam os personagens. Mas uma revolução estava a caminho. Esta revolução corresponde a dois nomes: Roberto Rosselini e o Neo-realismo italiano, e Orson Welles e seu Cidadão Kane. Daqui em diante o cinema se transformou, os personagens não mais agiriam e reagiriam frente ao dado, agora os personagens deixariam as coisas acontecerem, o tempo passar... Um cineasta particularmente nos interessa: Jean-Luc Godard. O mais importante inventor do cinema moderno. Foi através das lentes de Godard que configurou-se o que de mais radical se fez no cinema do pós-guerra. Godard provocou uma revolução cinematográfica. Primeiro com seus artigos-filmes nos Cahiers du Cinéma, depois com seus filmes-artigos. O filósofo do cinema construiu verdadeiros “sintagmas” cinematográficos-filosóficos. Antes de falarmos propriamente de Godard, precisaremos discutir aqui o “inimigo” godardiano, ou aqueles elementos que o fizeram construir uma cinematografia radical, e como tal, revolucionária. Falamos do chamado cinema clássico narrativo. O cinema clássico narrativo durante muito tempo foi confundido com o cinema hollywoodiano, ou com o cinema produzido nos Estados Unidos da América. Claro, há um fundo de verdade nesta afirmação. Se quiséssemos fazer uma genealogia do Cinema Clássico Narrativo teríamos que retornar ao cinema norte-americano, em particular a um de seus fundadores: D. W. Griffith. Griffith produziu duas obras-primas: Nascimento de Uma Nação (1913) e Intolerância (1916). Este último filme foi fundamental 45

para o desenvolvimento da linguagem cinematográfica. Uma técnica foi ali gestada e executada: a montagem paralela. Griffith contou quatro histórias simultaneamente e, através da montagem, as enredou de tal maneira que garantiu um convincente fluxo narrativo para a obra. Até Intolerância, o cinema ainda copiava o teatro. A câmera na maioria das vezes era fixa e toda a ação dramática era desencadeada em poucos planos. Havia pouca variação de ângulos e perspectivas. Com Griffith, tudo mudaria. O cinema como linguagem ganhou um enorme impulso. Este impulso, por incrível que pareça, foi retirar a arte cinematográfica da égide teatral e jogá-la nos braços da literatura, particularmente, da arte romanesca. É sabido pelos estudiosos da vida e da obra de Griffith que o cineasta pretendia, na verdade, tornar-se um escritor profissional, um romancista. Esta fascinação pelas letras, provavelmente, o levou a elaborar com muito mais rigor que seus contemporâneos os roteiros e histórias a serem filmados. E mais, algumas técnicas romanescas passaram a ser incorporadas pelo autor na tentativa de esculpir uma linguagem para o cinematógrafo. Uma linguagem que mais tarde viria a ser chamada de cinema clássico narrativo. Mas então, nos perguntamos: como identificar o Cinema Clássico Narrativo? Basicamente, o cinema clássico narrativo é o discurso hegemônico das imagens-movimento. Um discurso rígido, quase uma gramática. Por exemplo, ao plano de um rosto far-se-ia necessário acompanhar uma voz que fale. A um plano de conjunto, por sua vez, a música da trilha deveria ocupar seu espaço. Todos nós estamos completamente “habituados” às formas narrativas clássicas do cinema e, conseqüentemente, a estas mesmas formas que aparecem nas Tvs e em todas as demais espécies de imagensem-movimento. Godard foi crítico de cinema e intregou um grupo escrevia na prestigiosa revista Cahiers du Cinéma. Este grupo de então jovens e irreverentes intelectuais interessados em cinema era com46

posto dos seguintes nomes: François Truffaut, Eric Rohmer, Jacques Rivette, Claude Chabrol. Todos tornar-se-iam cineastas e criariam um movimento cinematográfico batizado de Nouvelle Vague. Mas foi Godard quem construiu, talvez, a carreira mais sigiificativa dos cincos citados. Por que? Porque foi com as idéias e imagens godardianas que o cinema cinema clássico narrativo seria colocado em xeque. A narratividade foi o primeiro problema a ser atacado pelo cineasta, daí sua já célebre frase: “Todo filme deve ter começo, meio e fim, mas não necessariamente nesta ordem”. O cinema clássico narrativo prima pela continuidade narrativa, pela lógica da causalidade em que toda causa implica um efeito. É um cinema ainda aristotélico. Com Godard, este seria reflexionado e, conseqüentemente, questionado. Outra questão colocada em xeque pelo cinema de Godard é o naturalismo do cinema clássico narrativo. Para este cinema, um filme deve fazer parecer ao espectador a própria realidade. O processo de identificação deve ser imediato, e assim ficaríamos passivos diante deste “espetáculo”. Em Godard isto jamais ocorre: a todo momento o cineasta nos avisa que estamos diante de um filme. Por exemplo, em Sauve qui peut (la vie) de 1979, a vemos uma ciclista a passear por uma estrada próxima a uma campina e ouvimos uma suite sinfônica. De repente, aquela música que servia de trilha como que se corporifica na tela, já que a orquestra aparece mais à frente, na própria campina. E ficamos sabendo de imediato que aquele som é, na verdade, uma imagem-som. Os artifícios do cinema são como que colocados a nu na obra de Jean-Luc Godard. Godard quebra a metáfora; nada representa nada, ou seja, não há a possibilidade de uma arte representacional na obra do cineasta franco-suíço. Em Les Carabiniers, de 1963, dois jovens vão à guerra e os seus superiores lhes prometem tudo o que conseguirem pilhar. Mais tarde eles retornam à cidade de onde partiram com uma mala cheia de postais. Então, pelos postais eles têm 47

a Torre Eiffel, um belo carro, belas roupas, etc. Não há metáfora. Em Vivre sa vie de 1962, Godard nos conta a vida de uma prostituta, Nana. Em um determinado momento, ela está em um café a conversar com um homem. Este homem começa a lhe falar de Platão. Ficamos sabendo, por letreiros, que o homem é o filósofo Brice Parain. O filósofo a falar de um filósofo não é um ator “representando” um filósofo. Ele é um filósofo. Não há metáfora em Jean-Luc Godard. Este cinema feito por Jean-Luc Godard é o que chamei de um “cinema-cérebro”, um cinema de pensamento. A arte cinematográfica serve de suporte para o cineasta fazer-se pensador, inaugurando novas maneiras de pensar o próprio cinema, a arte e a vida. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERGSON, Henri. Ouvres - Édition du Centenaire. 4ª ed., Paris: PUF, 1984. CAHIERS DU CINÉMA. Spécial Godard - trente ans depuis. Paris: Éditions de l’Etoile, 1991. DE LATTRE, Alain. Bergson une ontologie de la perplexite. Paris: PUF, 1990. DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Editora Perspectiva, Coleção Estudos, 1982. DELEUZE, Gilles. L’ Image-Temps. Cinéma 2. Paris: Les Éditions de Minuit, 1985. DELEUZE, Gilles. L’ Image-Mouvement. Paris: Les Éditions de Minuit, 1983. DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. DELEUZE, Gilles. Différence et répétition. Paris: PUF, 1985, 5ª ed. DELEUZE, Gilles. Le Bergsonisme. Paris: PUF, 1968. 48

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mille Plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. GODARD, Jean-Luc. Godard par Godard - Les années cahiers. Paris: Éditions de l’Étoile - Cahiers du Cinéma - Flammarion, 1989. HARDT, Michael. Gilles Deleuze - an apprenticeship in Philosophy. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1993. JANKÉLÉVITCH, Vladimir. Henri Bergson. Paris: PUF, 1959. MERLEAU-PONTY, Maurice. L’union de L’ame et du corps chez Malebranche, Biron et Bergson. Paris: Libraire Philosophique J. Vrin, 1978. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994. MOUTSOPOULOS, E. La Critique du Platonisme chez Bergson. Athénes: Éditions Grigoris, 1980. PARENTE, André (org.). Imagem Máquina. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. PRADO JÚNIOR, Bento. Presença e Campo Transcendental. São Paulo: Edusp, 1989. XAVIER, Ismail (org.). A Experiência do Cinema - Antologia. Rio de Janeiro: Graal-Embrafilme, 1983. XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico - A Opacidade e a Transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, 2ª ed. revisada.

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PORCELANA E CRISTAL: ARTE E ONTOLOGIA EM GILLES DELEUZE

Começo por colocar uma questão: há, propriamente, uma estética ou uma filosofia da arte em Gilles Deleuze? Ou dito de outro modo: as palavras “estética” ou “filosofia da arte”, aqui utilizadas como sinônimos, podem ser propostas como uma das vertentes do pensamento deleuziano? Não pretendo imediatamente responder a estas indagações, mas isto sim, colocá-las como problema a ser enfrentado, buscando elementos para nos forçar a pensar seu sentido. Inicialmente, talvez devêssemos nos perguntar: o que é uma estética? Proposições sobre a arte? Análises de objetos? Crítica de autores? Reflexão sobre o sentido estético? Normalmente utilizamos algumas destas definições, senão todas, para designar a dimensão estética do real. A questão que se coloca é: seria a estética um conjunto de discursos propositivos, análises de objetos determinados, crítica e reflexão? Seguramente nenhuma destas alternativas contempla uma boa definição para o que problematizamos como sendo a Estética. Ao percorrer diversos manuais de história da estética ou das filosofias da arte, quase todos os chamados grandes filósofos e seus conceitos que foram celebrizados nesse domínio da filosofia 51

são citados. Em especial: Platão e a noção de cópia e seus simulacros; Aristóteles, a catarse, a tragédia e a mimeses; Kant, o gosto, o sublime e o gênio; Hegel e as figuras da arte; Nietzsche, o apolíneo e o dionisíaco; Heidegger, o mundo e a Terra; A Escola de Frankfurt, a aura e a industrial cultural. Estes autores, via de regra, são os preferidos para serem propostos, analisados e criticados enquanto pensadores dos fenômenos e da experiência estéticos. Eles são os eleitos, tanto dos manuais quanto das aulas de Estética, o que nos leva perguntar, simplesmente: por quê? Isto porque apenas Hegel escreveu uma “estética” propriamente dita. Claro, considerando suas lições de aula, mais tarde compiladas e preparadas como livro. Mesmo no maior dos metafísicos modernos, a arte ocupa um lugar relativamente pequeno em relação à sua obra (apesar dos volumes que compõe sua Estética). Perguntaria ainda: e Nietzsche? - o “profeta sem morada”, aquele que escreveu poemas e compôs partituras, legando-nos a “boa nova” do super-homem artístico, tensionando o campo de forças da vida em direção à superação dos valores universalizantes. Sim. Nietzsche, nos legou o apolíneo e o dionisíaco, mas não é propriamente de música, nem mesmo de arte, que trata O Nascimento da Tragédia: estamos aqui diante de uma obra ética e de um texto histórico. Uma história ética de uma queda, que o filósofo chamará mais tarde de genealogia. Genealogia do começo do fim da plenitude dos valores nobres e aristocráticos do guerreiro, para em seu lugar nascer a moral do sacerdote contida em gênese na ironia socrática. Arrisco dizer que a chamada “metafísica do artista” presente em O Nascimento da Tragédia é bem mais que apenas o prenúncio da genealogia nietzschiana. Ela aponta muito menos para uma estética de objetos e muito mais para uma ética da experiência estética, uma espécie de estética da existência. Mesmo Heidegger, apesar de falar de Van Gogh e de Höderlin em A Origem da Obra de Arte, nos dá a ver que o que está em jogo não é a pintura e o pintor, ou a poesia e o poeta, mas a verdade e o ser. Como bem diz o filósofo da Floresta Negra: “A 52

arte, enquanto o pôr-em-obra-da-verdade... A verdade é a desocultação do ente como ente. A verdade é a verdade do ser.”24 Isso sem falar na “má-vontade-ontológica” de Platão para com o sensível, em especial com a experiência estética. Ou mesmo das análises aristotélicas do fenômeno social da tragédia, onde a “socialidade catártica”, isto é, o público e suas inclinações, interessam tanto ao Estagirita quanto as categorizações dos diversos tipos de poesia em sua Poética. Em Kant, pensador que serve de referência às reflexões sobre a experiência estética, o que importa, propriamente falando, não é propriamente a arte, mas a questão do conhecimento: o subjetivo e o objetivo, o desinteresse, ou melhor dizendo: como analisar objetivamente uma experiência que se ancora na subjetividade. Mesmo todo o idealismo alemão não fugiu a essa regra, subordinou o sensível ao inteligível, a matéria bruta da arte ao conceito. E nossos contemporâneos, os frankfurtianos, o que dizer deles? Eles, que construíram uma meditação crítica sobre a sociedade, foram extremamente injustos com uma das manifestações mais ricas, exuberantes, e por que não dizer sangüíneas, da música do século XX – o jazz. A arte da improvisação musical acabou sendo exilada do status estético por esses autores. Resumindo: parece que os filósofos sempre pensaram a arte como um fora, um não pensado, ou ainda, um a ser pensado, ou melhor dizendo: pensaram a arte como um aquém de ser pensado. Arrisco ainda uma indagação de gravidade extrema: será que podemos dizer que realmente existe essa “seção” da filosofia denominada de estética? Até que ponto não houve, na verdade, na história da filosofia, um consenso discursivo que propôs, no limite, um divórcio das formas estéticas em relação às experiências _____________________________________________ 24 HEIDEGGER. Martin. A origem da obra de arte. Tradução de Maria da Conceição Costa. Lisboa: Edições 70, 1992, p. 30.

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sensíveis? Apesar de ser fato que a produção efetiva da arte parta do sensível, a vocação das reflexões sobre as manifestações artísticas impetradas por uma certa tradição da história do pensamento tendeu a colocar a arte em posição secundária ou no mínimo desprivilegiada em relação a outras dimensões da filosofia, como por exemplo, em relação ao conhecimento. Nietzsche, aqui seja dito, foi uma das grandes exceções entre os filósofos. Mas não apenas ele. Falemos de Gilles Deleuze. A posição de Gilles Deleuze é bastante interessante nesse sentido. Tampouco em Deleuze encontramos uma reflexão sobre a arte, mas há em sua filosofia um componente bastante original frente às demais posições filosóficas ao analisar os fenômenos estéticos. Em Deleuze há uma intervenção da arte na filosofia, isto é, a arte serve de intercessor à filosofia na tentativa de colocar movimento no pensamento. Nesse sentido, arrisco dizer que há mais que uma concepção de arte na filosofia deleuziana. Digo que a filosofia de Deleuze criou um circuito fundamental em sua própria démarche, que faz da arte um elemento constitutivo de seu próprio pensar. Este caráter estético da obra deleuziana pode ser apontado de dois modos. Em primeiro lugar, os conceitos próprios à arte ocupam espaço privilegiado em sua filosofia; e em segundo lugar, a própria articulação que a filosofia deleuziana faz com as expressões artísticas, sejam elas, a pintura, a música, a literatura ou o cinema. No que diz respeito aos conceitos próprios à arte, Deleuze nos fala de perceptos, afectos e sensações: Os perceptos não são mais percepções, são independentes do estado daqueles que o experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles. As sensações, percepções e afectos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido. Existem na ausência do homem, podemos dizer, porque o homem, tal como ele é fixado na pedra, sobre a tela ou ao longo das palavras, é ele próprio um composto de perceptos e 54

de afectos. A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si.25

Os perceptos são como paisagens - grandes extensões não geográficas, paisagens não humanas, produzidas como que à revelia de nossa percepção habitual. Por sua vez, os afectos são encontros e extrapolação de encontros, um algo que dá, para além de uma subjetividade doadora de intenção. E a sensação? Sim, o que é a sensação? Elemento fundamental da arte, sua última partícula. Onde ela se manifesta, como conceito, na obra de Deleuze? Estamos querendo dizer que a noção de sensação em Deleuze, no que tange a um pensamento da arte, excede em muito o livro que nosso autor escreveu para problematizar essa noção: o livro sobre a pintura de Francis Bacon e sua “estética do grito”. É como se quiséssemos enunciar que esta noção - a sensação - é a idéia fundamental da arte. Mas não são as sensações misturadas ao cotidiano e ao banal, mas uma espécie de sensação pura, mais de direito que de fato. Nas obras de Deleuze, entre seus muitos livros, a arte e seus criadores despontam em vários títulos: LITERATURA:

CINEMA:

- a literatura anglo-americana26 - Proust27 - Kafka;28 - o Cinema Clássico Narrativo29 e o Cinema Moderno;30

_____________________________________________ 25 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Les Éditions de Minuit, 1991, pp. 154-5. 26 DELEUZE, G. & PARNET, Claire. Dialogues. Paris: Flammarion, 1977. 27 DELEUZE, G. Proust et les signes. Paris: PUF, 1970. 28 DELEUZE, G. & GUATTARI, Félix. Kafka - Pour une littérature mineure. Paris: Les Éditions de Minuit, 1975. 29 DELEUZE, G. Cinéma 1 - L’image-mouvement. Paris: Les Éditions de Minuit, 1983. 30 DELEUZE, G. Cinéma 2 - L’image-temps. Paris: Les Éditions de Minuit, 1985.

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PINTURA: TEATRO:

- o Barroco31 - Francis Bacon;32 - Carmelo Bene.33

Thomas Hardy, Melville, Stevenson Virginia Woolf, Lawrence, Fitzgerald, Henri Miller, Kérouac e James Joyce, muitos nomes, muitos autores, grandes escritores. Estes artistas, para Deleuze, apresentam uma enorme superioridade literária, omas especificamente de uma certa literatura, da anglo-americana. Não propriamente por seus estilos, ou idéias literárias, mas pela força de vida que emanam de suas obras. Mesmo destacando o privilégio desta literatura, Deleuze não ignora a potência de outras literaturas e literatos, como por exemplo, Proust, Kafka e Sacher-masoch. Em Proust, o que está em jogo são os conceitos de signo e sentido. A Recherche proustiana seria um grande sistema de signos, orientado pela idéia de sentido. Como se em Proust tudo pudesse fazer-se enquanto signo. Signos mundanos, amorosos, sensíveis e artísticos. Em Kafka temos a linha de fuga, o agenciamento, a literatura menor. E para não sair da literatura, poderíamos ainda citar o seminal texto deleuziano que resgata Sacher-Masoch como o avesso de Sade. Masoquismo de modo algum é um contrário complementar do sadismo, como desejou nos fazer crer a psicanálise. Temos em frente uma vítima em busca de um carrasco, e que precisa formá-lo, persuadi-lo e fazer com ele aliança para a

_____________________________________________ 31 DELEUZE, G. Le Pli. Leibniz et le baroque. Paris: Paris: Les Éditions de Minuit, 1988. 32 DELEUZE, G. Francis Bacon: Logique de la sensation (2 vol.). Paris: Les Éditions de la Différence. 33 DELEUZE, G. & BENE, Carmelo. Superpositions. Paris: Les Éditions de Minuit, 1979.

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mais estranha empreitada. É o porquê dos anúncios fazerem parte da linguagem masoquista enquanto são excluídos do verdadeiro sadismo. É o porquê também do masoquista elaborar contratos, enquanto o sádico abomina e rasga todo tipo de contrato. O sádico precisa de instituições, mas o masoquista, de relações contratuais.34

Impossível encontro: um sádico, um masoquista. No cinema, temos os dois grandes grupos de imagens desenvolvidas a partir de Bergson: as imagens percepção, ação e afecção, que compõem as imagens-movimento em suas três principais aferições; e temos as imagens lembrança, sonho e a imagemcristal, a constituir as principais vertentes das imagens-tempo. Na pintura, Leibniz é articulado ao barroco, e a estética do grito disforme e aberrante de Francis Bacon serve a Deleuze como ponto de partida para pensar a sensação. Seja falando das características gerais da pintura, a fugir de toda figuração, inaugurando o figural, seja nos falando de estruturas, figuras e contornos. Isto, para ainda ressaltarmos o teatro de Bene, para subtrair personagens, criando um teatro do menos, sem, contudo, enfraquecer-se enquanto força dramática. No entanto, arrisco dizer, a maior “estética-artística” de Deleuze - e nem por isso, menos filosófica - é a Lógica do Sentido. Jogos de paradoxos. Psicanálise e filosofia. Estóicos e Lewis Carroll. Acontecimentos, corpos e incorporais. Imagens de filósofos. Imagem do pensamento. A arte como potência do simulacro. O que se coloca aqui não é apenas um dos mais importantes livros de filosofia de século XX, que chegou a arrancar de Foucault a já célebre máxima de que um dia “o século seria deleuziano”. Estamos diante de um dos livros mais belamente escritos por um filósofo. _____________________________________________ 34

DELEUZE, G. Apresentação de Sacher-Masoch. Tradução de Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Taurus, 1993. A edição original francesa data de 1967, das Éditions de Minuit. 57

Um livro que, como o Zaratustra de Nietzsche, pode e deve ser lido também como uma obra literária, pelo prazer do texto. O que estamos tentando dizer é que não há propriamente uma estética na obra de Gilles Deleuze, apesar de sua obra prestar-se a leituras estéticas. Seu interesse primordial é a própria filosofia, seu problema fundamental é o pensamento. Isto é, formulando de outro modo: quais as formas pelas quais o pensamento ganha expressividade? Essa expressividade traz em seu bojo uma proposição: a tarefa mais radical da filosofia seria reverter uma certa imagem do pensamento que faz do pensar um ato voluntário, espontâneo, igualmente compartilhado por todos os homens, que almejaria à semelhança e à verdade. Reverter esse modelo do que significa pensar indica o sentido de toda filosofia futura. A arte, nessa perspectiva, coloca-se como um poderoso intercessor da filosofia para Deleuze. Exemplificarei mais detalhadamente com a literatura e o cinema, utilizando duas noções criadas pelo filósofo que nos dão a ver a intercessão do não-filosófico com o filosófico em seu pensamento. Falo de Porcelana e Cristal, da fissura e da imagem-cristal. Da literatura de F. S. Fitzgerald, The Crack Up (“A derrocada”), e do cinema de Orson Welles, The lady from Shangai (“A dama de Shangai”). Fitzgerald começa um de seus mais impactantes contos com uma frase que ressoa terrível: “Toda vida é, obviamente, um processo de demolição”. O que há de atemorizador e curiosamente muito belo nesta frase, não é tanto o fato de a vida configurar-se como um processo de derrocada, mas sobretudo o seu “obviamente”. Deleuze se pergunta por que o álcool, a droga, o suicídio arrastam o escritor. Beber até morrer. Drogar-se até transformarse em um contínuo entre a droga o drogado, saltar para um mergulho final nas águas turvas de um rio com pedras amarradas ao corpo. Ou mesmo fazer do sexo o sentido e o fim da existência. Seja para Fitzgerald, Lowry, Virginia Woolf ou mesmo Henry Miller, escrever é aderir integralmente ao processo de derrocada que é viver. E viver é criar linhas de fuga, zonas de escape que 58

inaugurem novos modo de vida, fugindo dos fascismos da existência ordinária. Deleuze vê na literatura anglo-americana um antídoto e o remédio contra esses fascismos, uma forma de cunhar um modo de vida não-fascista. Não obstante, traçar linhas de fuga não é fugir nem simplesmente viajar, não é um processo de desterritorialização incessante. É preciso reterritorializar, buscar caminhos, pois a derrocada não é uma autodestruição. Diz Deleuze: Como fazer para que a linha de fuga não se confunda com um puro e simples processo de autodestruição, alcoolismo de Fitzgerald, desencorajamento de Lawrence, suicídio de Virginia Woolf, triste fim de Kérouac. A literatura inglesa e americana é atravessada por um processo sombrio de demolição, que arrasta consigo o escritor.35

Se em Dialogues Deleuze nos aponta a superioridade da literatura anglo-americana, em Lógica do Sentido, na série “Porcelana e Vulcão”, ele nos mostra como Fitzgerald fez deste enunciado radical “Toda vida é, obviamente, um processo de demolição”36 o desenvolvimento de toda sua obra. O álcool, as bebedeiras, o jogo, o sexo, a depressão, a doença, a morte, são vividas e narradas intensamente, sem lamentações, aderindo por completo à dimensão trágica da existência. A literatura torna-se uma linha de fuga, uma fenda, uma fissura para o que é belo e frágil como porcelana: a vida.

_____________________________________________ 35 DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Diálogos. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998, pp. 52. 36 FITZGERALD, F. Scott. The crack-up with pieces and stories. 1936. Há uma tradução para o português pela Editora Civilização Brasileira do Rio de Janeiro, ano de 1969, intitulada A derrocada e outros contos e textos autobiográficos. A tradução de Álvaro Cabral suavizou um a tanto quanto o impacto da frase inicial do conto que dá título a coletânea: “Claro, a vida é toda ela um processo de derrocada...”. Em nosso entender, seguindo o que Deleuze escreve em Lógica do Sentido, é fundamental que haja na frase o “obviamente”, mostrando, assim, o caráter trágico da existência.

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As imagens-cristal talvez sejam as mais belas das imagenstempo. Afinal, o que é um cristal? Verdadeira preciosidade mineral, advinda do opaco e duro quartzo, que se transforma em bela transparência e insustentável leveza. As imagens-cristal são as imagens da transparência, cujo exemplo mais célebre, popularizado pelo cinema, é o espelho. Nesse sentido, nenhum objeto a define melhor. Então, nada mais justo do que, cinematograficamente falando, o espelho configurar o objeto de cena por excelência da imagem-cristal. Não que todos os filmes em cujo quadro que surge um espelho sejam configurados por uma imagem-cristal, mas toda imagem-cristal comporta a idéia do espelho, do especular. Desde A dama de Shangai (The Lady from Shangai, 1948), de Orson Welles, a O espelho (Zérkalo, 1974), de Andrei Tarkovsky, ou Coração de cristal (Herz aus Glas, 1975) de Werner Herzog, o cinema tem produzido inúmeros exemplos em que o objeto de cena especular nos dá a ver uma imagem-cristal em seu esplendor. Da célebre seqüência do jogo de espelhos do parque de diversões no filme de Welles à mulher que lava os cabelos junto a um muro úmido, a imagem-cristal mostra-se presente. Ela é atualidade da presença do personagem de Rita Hayworth e virtualidade de suas imagens especulares que singram rotativamente expostas pela câmera bailarina de Welles. Na imagem-cristal, temos a coalescência de uma imagem atual com sua imagem virtual. É a protagonista ou sua imagem especular que configura essa nova forma de duelo na sala de espelhos do parque? Welles ser torna um mestre da imagem-cristal com esse filme. No entanto, a imagem-cristal já está presente em Cidadão Kane, na pequena bola de vidro que se parte com o magnata moribundo. Tanto na porcelana que confere leveza à literatura de Fitzgerald quanto no cristal que torna transparente o cinema de Welles, temos uma intercessão da arte na filosofia em Deleuze. Não se trata de refletir sobre o cinema ou mesmo sobre a literatura, mas de articular filosofia e arte, fazendo com que esta última atue sobre a primeira. O que importa para Deleuze são os devires 60

recorrentes que habitam tanto a escritura de Fitzgerald quanto o cinema de Welles. Devires que aparecem tanto nas linhas de fuga traçadas pela literatura anglo-americana quanto no cinema moderno. Nesse sentido, para melhor articular estética e ontologia em Deleuze, precisarei dizer algumas palavras sobre o sentido da palavra “devir” em sua filosofia. O problema do devir e do ser do devir é de fundamental importância para entendermos as relações entre arte e ontologia em Gilles Deleuze. Em Deleuze, o ser se diz do devir, que é o mesmo que dizer: o ser é a afirmação do devir: Ora, é preciso refletir longamente para compreender o que significa fazer do devir uma afirmação. Sem dúvida significa, em primeiro lugar, que só há o devir. Sem dúvida é afirmar o devir. Mas afirma-se também o ser do devir, diz-se que o devir afirma o ser ou que o ser se afirma no devir.37

Este enunciado merece de minha parte alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, quando se diz da afirmação do devir para se falar do ser, o que está em jogo para Deleuze é mostrar que na verdade não há nada para além do devir, isto é, o ser, O QUE É, não pode ser visto como uma preexistência calcada no princípio do idêntico e do mesmo, que venha por seu intermédio dar _____________________________________________ 37

Nietzsche et la Philosophie, p. 27 [19]. Segundo Peter Pál Pelbart, em seu estudo sobre a concepção de tempo na obra deleuziana – O tempo Não-reconciliado: imagens de tempo em Deleuze, São Paulo, Perspectiva, 1998 –, nem sempre o termo devir teve em Deleuze um prestígio expressivo como ele demonstra em Nietzsche e a filosofia. Em O bergsonismo, por exemplo, o filósofo recusava enfaticamente o termo, considerado então apenas uma combinação de conceitos contrários (o Um e o Múltiplo) tomados no grau extremo de sua generalidade. Seguindo Bergson, Deleuze contrapunha ao devir a idéia de Duração. O devir comportaria apenas uma multiplicidade qualitativa. É no seu estudo sobre a filosofia de Nietzsche, dissociado de seu sentido dialético, o devir pôde ser reapresentado precisamente como multiplicidade, diferença e sobretudo como objeto de plena afirmação da vida. 61

sentido ao real. A multiplicidade é sua principal característica, isto é, o real é multiplicidade, que se afirma enquanto tal como devir. Em decorrência, o devir não pode ser visto como aparência ou ilusão: “Pois não há ser além do devir, não há um além do múltiplo, nem o devir são aparências ou ilusões.”38 Deleuze então me permite dizer que o devir é o próprio movimento de constituição e desaparição das singularidades, a emergência do mundo em toda sua multiplicidade, em toda multiplicidade. Isso significa que o devir é sempre o que está entre dois, isto é, entre dois termos, entre dois pontos: a abelha e a orquídea, Acab e a baleia, eu e minha infância; nesse sentido, não é a operação de substituição de um termo por outro ou a transformação de um em um outro, por imitação, semelhança ou identificação. Entre um termo e outro, entre um e outro, cria-se uma zona de indiscernibilidade, de vizinhança, como, por exemplo, um devir entre um homem e um inseto, ou um devir entre um homem e um lobo: um devir-animal. Um devir é sempre um devir-outro em Deleuze. Um devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco é ele uma semelhança, uma imitação e, em última instância, uma identificação. Toda crítica estruturalista da série parece inevitável. Devir não é progredir nem regredir segundo uma série. E sobretudo devir não se faz na imaginação, mesmo quando a imaginação atinge o nível cósmico ou dinâmico mais elevado, como em Jung ou Bachelard. Os deviresanimais não são sonhos nem fantasmas. Eles são perfeitamente reais. Mas de que realidade se trata? pois se o devir animal não consiste em se fazer de animal ou imitá-lo, é evidente também que o homem não se torna ‘realmente’ animal, como tampouco o animal se torna ‘realmente’ outra coisa. O devir não produz outra coisa senão ele próprio. É uma falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos ou somos. O que é real

_____________________________________________ 38

Op. cit., p. 27 [19]. 62

é o próprio devir, o bloco de devir, e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna.39

Então, pensar deleuzianamente a arte não é propriamente fazer uma estética, mas localizar os devires presentes nas articulações que filósofo faz com a experiência estética. Digo então que o pensamento da arte em Gilles Deleuze é, antes de uma estética, uma ontologia, mais precisamente falando, uma ontologia dos devires que atravessam as artes.

_____________________________________________ 39 DELEUZE, G e GUATTARI, F. Mille Plateaux, Paris, Minuit, 1980, p. 291. [vol. 4, p.18].

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‘F’ DE FALSO, ‘M’ DE MENTIRA: FICÇÃO E FALSIFICAÇÃO NO DOCUMENTÁRIO CINEMATOGRÁFICO

Algumas questões podem ser levantadas acerca do cinema documentário e de suas relações com as noções de falso e falsificação. Entretanto, antes propriamente de abordar o formato do documentário a partir dessa perspectiva é preciso enunciar do que trata efetivamente esse tipo de cinema que, apesar de sua longevidade [tão longa que se confunde com o próprio cinematógrafo] suscita inúmeras dificuldades em sua definição. Então, a primeira das questões diz respeito ao próprio sentido do filme documentário, ou dito de outra maneira, o que nos leva a caracterizar o documentário cinematográfico. Ou ainda, de que modo podemos reconhecer um filme de não-ficção? Temos então já uma gama de nomes para o documentário: cinema documental, filme documentário, documentário cinematográfico e filme de não-ficção. O que a princípio parece apenas um conjunto de sinônimos para esse tipo de cinema já nos indica as dificuldades de sua definição que esse cinema comporta. Se ele é um cinema documental, temos então um tipo de cinema (observem bem que falei em tipo e não em gênero cinematográfico) que busca documentar, isto é, mostrar a realidade tal qual ela é, procurando na medida do possível não interferir no 65

processo mesmo de documentação do real. A palavra “documento” remete à prática do historiador, aquele pesquisador que busca a verdade dos fatos da e na história (passada ou presente) a partir de fontes que ele chama de documentais. Por sua vez, um filme documentário, apesar de parecer um mero sinônimo do primeiro exemplo, não o é. Por quê? Simplesmente pelo sentido que a palavra “filme” aqui possui. Afinal, um filme é uma produção que parte, via de regra, da aspiração ético-estética de um ou mais realizadores, seja o produtor-diretor da indústria americana cinematográfica, por exemplo, ou dos filmes autorais de realizadores independentes de qualquer parte. Se a idéia de filme está presente e antecede a de documentário, temos então uma certa contradição em termos, já que o próprio sentido de documentar é buscar uma verdade fria e distante dos fatos. Quase o mesmo pode ser dito de documentário cinematográfico, pois temos a palavra “documentário” como primeiro termo e “cinematográfico” como segundo, praticamente invertendo a primeira das definições comumente utilizadas para esse tipo de cinema. O documentar torna-se o eixo fundamental da produção, podendo, desse modo, ser um filme (o documentário cinematográfico) ou uma reportagem jornalística, ou mesmo um trabalho de historiador ou antropólogo. Assim, estaríamos mais perto do documento que do cinema. E, por último, a idéia de filme de não-ficção é a mais problemática, pois enseja uma questão de difícil resposta: como distinguir o que é ficcional do que não é ficcional? Como não conseguimos avançar muito a partir dos termos que normalmente definem o tipo de cinema em questão, talvez devêssemos tentar estabelecer o que esse cinema não é antes de tentarmos enfrentar o problema que consiste em defini-lo com o rigor e a precisão que a questão exige. A primeira não definição do cinema documental pauta-se sobre o fato de que não estamos diante de mais um gênero cinematográfico, como, por exemplo, a comédia, o policial, o faroeste, o suspense, o musical ou qualquer outro. Por mais que se tente 66

enquadrar o documentário em um gênero, essa definição mostrase pobre, pois, perde-se o mais fundamental: esse enquadramento por gênero não responde à questão essencial: o que um documentário tem que nenhum outro modo de produção e realização cinematográfico possui, diferenciando-o sobremaneira do filme de ficção? A segunda não definição do filme documentário diz respeito à própria gramática do cinema clássico narrativo: a de que o cinema ficcional teria um roteiro predefinido, enquanto o documentário não teria roteiro, já que este último busca documentar um determinado problema, situação, contar a vida de um personagem real ou exibir as paisagens de uma determinada localidade, prendendo-se dessa forma, especificamente à realidade mesma. O mais forte argumento contra essa definição, o que faz dela então uma não-definição é que pode existir muito bem uma ficção sem roteiro e um documentário roteirizado. Uma terceira não definição para o documentário cinematográfico diz respeito às linguagens utilizadas por esse tipo de cinema em contraposição ao cinema de ficção. Se existe uma corrente de realizadores de documentário que defende que este deve ser sempre meio “sujo”, isto é, realizado no calor das filmagens, evitando-se sempre a utilização de recursos que denotem uma manipulação das imagens fora da captação das mesmas, dizendo que isto somente viria a fazer com esse tipo de cinema mostrasse sua adesão à realidade, diferenciando-se agudamente da ficcionalização do real; por outro lado, uma série de jovens realizadores de documentários, como o brasileiro Marcelo Masagão, autor do ótimo “Nós que aqui estamos por vós esperamos”, inviabiliza tornar esse pressuposto como uma regra geral. Masagão se utiliza sem prurido ou pudor de recursos da computação para compor suas imagens (deixando claro ao espectador esse procedimento), o que fez com que inúmeros críticos apontassem para a impropriedade de sua obra, isto é, o que o autor teria realizado é tudo, menos um documentário; todavia, também disseram, que não se 67

tratava de um filme de ficção [O filme de Masagão havia sido inscrito em um festival de documentários, aclamado pelo público e detratado pelo júri]. Também poderíamos abordar a difícil distinção entre cinema ficcional e filme de não-ficção, diferença esta que se assentaria no papel do realizador cinematográfico ou do diretor do filme. É comum se dizer que um diretor de documentários é, entre os realizadores cinematográficos, aquele que menos deve aparecer, procurando negar qualquer apelo autoral ou marca pessoal neste tipo de produção para audiovisual. Que caberia ao diretor do filme de ficção, segundo os preceitos da “teoria do autor” desenvolvida pelos críticos-cineastas dos Cahiers du Cinèma, desenhar com cores fortes impressões e idéias sobre o real, tecidas através das imagens cinematográficas do filme de ficção, fazendo, assim, de um conjunto de filmes, uma obra. Bem, creio que aqueles que já tiverem a oportunidade de ver os filmes de Eduardo Coutinho, realizador brasileiro de documentários, devem ter vislumbrado sem dificuldades um forte assento pessoal em seus filmes, além da presença marcante de sua persona cinematográfica, atrás e à frente da câmera. Talvez um ponto de convergência para o início da discussão sobre o documentário é colocar em questão dois pontos: esse tipo de cinema como fonte de informação e sua relação com a verdade. Em distinção ao filme de ficção, o documentário, quase sempre, pretende passar informações sobre seu objeto de investigação [a palavra – “investigação” – foi aqui utilizada de modo proposital]. Por exemplo, filmes como Hiroshima Mon Amour de Alain Resnais e um documentário como Corações e Mentes. O primeiro consiste sem sombra de dúvidas em uma ficção: pelo tratamento dado pelo diretor, pelos atores em cena atuarem em papéis que não são os seus e por toda a atmosfera de sonho e desejo presente na obra. Entretanto, o filme dirigido por Resnais é intercalado por imagens reais da explosão da bomba atômica 68

naquela cidade e de seus efeitos sobre os moradores, buscando assim levar o espectador do espanto à reflexão, passando pela indignação, para que estes tomem partido de modo contundente contra os horrores da Guerra. Em Hiroshima Mon Amour as imagens documentais são utilizadas como um recurso ficcional. Por sua vez, em Corações e Mentes, a Guerra do Vietnã é exibida da forma mais cruel possível, em seqüências terríveis, como o bombardeio de napalm sobre crianças indefesas, procurando levar os espectadores ao horror, já que sabemos não se tratar de uma obra de ficção: aquelas crianças estavam mesmo sendo alvejadas e seus corpos estavam mesmo em chamas, queimados “realmente” por intermédio de bombas incendiárias lançadas pela força área americana. É importante ressaltar que, se em Hiroshima Mon Amour o documental serve à ficção, em Corações e Mentes, o documento serve à emoção e à catarse do espectador. Elide-se a metáfora na ficção com Alain Resnais: tudo acontece como se realmente estivéssemos em Hiroshima diante do horror da bomba atômica. Adota-se a metáfora no documentário que é Corações e Mentes: tudo acontece para que o espectador se comova diante do horror da Guerra. Portanto, é possível dizer que há mais pontos em comum unindo o filme de ficção ao documentário do que pontos a separálos. Mesmo se porventura fôssemos distinguir um documentário televisivo ou um realizado para o cinema, essas diferenças seriam muito pouco importantes, pois os realizadores deste tipo de cinema o fazem utilizando recursos tanto do cinema digital [com é hoje em dia realizado para a TV] ou a película [como anteriormente eram os realizados especificamente para Cinema]. Não importa. Talvez o que importe seja o que o realizador cinematográfico almeja destacar em sua obra: seus ideais, suas idéias, sua visão de mundo, mais que isso, construir seu próprio mundo. Seja através da ficção, seja por intermédio do documentário cinematográfico. Em suma, o que importa é o que pensa o cineasta, como pensa o diretor, o que importa é “quando pensa o cinema”, 69

isto é, justamente como os realizadores expressam seu pensamento, por intermédio da criação de suas imagens, das imagens e sons de seus filmes. No entanto, uma questão daí se infere, a da relação entre o que é falso e verdadeiro em um documentário cinematográfico. Explico-me através de uma questão: ressaltando a dificuldade em definir, no bojo da realização cinematográfica, o filme de nãoficção, como falar então do processo de ficionalização dos filmes documentais? E mais, como enquadrar as obras que estão em uma região limítrofe entre a ficção e não-ficção, criando no espectador uma indiscernibilidade quase intransponível? Como se não soubéssemos jamais em determinadas obras se estamos de diante de uma ficção ou não. Talvez precisássemos então da noção de falsificação. Ou ainda, da idéia, nova para a teoria do cinema, de narrativas falsificantes. Essas narrativas podem ser chamadas de narrativas falsificantes ou falsificadoras por se oporem às narrativas ditas verdadeiras. O cinema moderno foi pródigo na construção dessas narrativas falsificantes. Antes de continuarmos a falar sobre as relações entre falsificação e cinema, destacaremos o essencial desta distinção tão importante proposta pelo filósofo Gilles Deleuze entre o clássico e a modernidade cinematográfica. O primado do cinema moderno sobre o cinema clássico, no Projeto Cinema de Deleuze40 , nada tem a ver com gosto pessoal, apreço a tais ou quais cineastas, menos ainda com quaisquer tentativas de hierarquização entre os criadores de imagens. Deleuze, ao privilegiar o cinema moderno, vê, na virada histórica que a arte do cinematógrafo produziu no pós-guerra com o Neo-realismo

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O que aqui estou chamando de Projeto Cinema em Gilles Deleuze, trata-se dos dois livros que o filósofo dedicou a arte cinematográfica publicados em meio ã década de 1980 – Cinema1. A imagem-movimento – abordando o Cinema Clássico Narrativo e – Cinema2. A imagem-tempo – sobre o Cinema Moderno. 70

italiano e com Cidadão Kane de Orson Welles, uma nova configuração de imagens que, além de fortalecer sua produção conceitual, corrobora sua tese de uma nova imagem do pensamento. O cinema moderno possui uma série de características a partir das quais é possível pensar uma reversão de uma imagem representativa do pensamento que se encontraria nas imagensmovimento do cinema clássico: 1) o desmoronamento do esquema sensório-motor; a recusa da montagem e do extra-campo como redimensionamento do Todo; a substituição da narratividade pela descrição; 2) o reencadeamento dos cortes irracionais no lugar do encadeamento dos cortes racionais; 3) a imagem-som é configurada pela “legibilidade” da imagem e pela “visibilidade” do som, que em outras palavras pode ser chamada da disjunção entre a imagem e o som. O cinema clássico não foi capaz de pensar uma imagem direta do tempo por estar preso ao modelo da recognição. O cinema moderno rompe com esse modelo e, com suas conquistas, libera o tempo em direção às imagens-tempo que possibilitam novos ângulos e perspectivas do real, cujo ápice se dá na obra dos cineastas Alain Resnais, Hans-Juergen Syberberg e Jean-Luc Godard. Os cinemas de Syberberg, Resnais e Godard apresentam três grandes características que os colocam como pontos de convergência das imagens-tempo. Em primeiro lugar, encontramos uma disjunção do sonoro e do visual: uma dissociação objetiva entre o que é dito e visto, uma dissociação subjetiva entre a voz e o corpo dos personagens. Em segundo lugar, o visual e o sonoro não reconstituem um todo, mas entram em relação “irracional”, seguindo direções dissimétricas. E, por último, é possível falar em uma imagem-som, para além do sonoro, e do que eu chamaria de uma imagem-luz, para além do visual, que são disjuntivas, irracionais e relacionam-se de modo indireto e livre. Segundo Deleuze, o cinema moderno cria novas imagens que evitam os recursos do flashback e do extra-campo, inventando outros meios que estabelecem novas relações nos planos do tempo e do espaço cinematográficos. 71

E nessas relações entre o visual e o sonoro, estão presentes alguns dos aspectos mais relevantes da ultrapassagem das imagens-movimento para as imagens-tempo: O cinema moderno matou o flash back, tanto quanto a voz off e o extra-campo. Ele só pôde conquistar a imagem sonora impondo uma dissociação desta e da imagem visual, disjunção que não deve ser superada: corte irracional entre ambas. E, no entanto, há uma relação entre elas, relação indireta livre, ou relação incomensurável, pois a incomensurabilidade designa uma nova relação e não uma ausência. Eis que a imagem sonora enquadra uma massa ou uma continuidade da qual se vai extrair o ato de fala puro, isto é, um ato de mito ou fabulação que cria o acontecimento, que faz ascender o acontecimento aos ares, e ele próprio (ato) se eleve numa ascensão espiritual. E a imagem visual, por seu lado, enquadra um espaço qualquer, espaço vazio ou desconectado que ganha novo valor, pois vai enterrar o acontecimento sob camadas estratográficas, e fazê-lo descer como um fogo subterrâneo sempre recoberto. Logo, a imagem visual nunca mostrará o que a imagem sonora enuncia.41

O cinema, segundo Deleuze, não é uma língua universal ou primitiva, nem mesmo uma linguagem. O cinema deve ser pensado como materialidade, como uma matéria pensante, autônoma, que o filósofo chama de matéria inteligível. Essa matéria inteligível traz à luz movimentos e processos de pensamento (imagens pré-lingüísticas) e pontos de vista tomados sobre esses movimentos e processos (signos pré-significantes). Essas imagens pré-lingüísticas e esses signos pré-significantes fazem do cinema uma psicomecânica que possui uma lógica própria. Partindo deste parti pri, segundo Gilles Deleuze, o cinema moderno prima pela arte da falsificação. É um cinema de falsários, _____________________________________________ 41

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo, p. 330. 72

de prestidigitadores, de videntes. É preciso que se explique, antes de mais nada, o sentido que está sendo dado aqui aos termos falsário, prestidigitador e vidente. Os criadores do cinematógrafo, em uma de suas realizações iniciais, produziram duas intrigantes imagens. A primeira mostra um grupo de trabalhadores saindo da porta da fábrica dos irmãos Lumière, seus próprios inventores; a segunda ‘documenta’ a chegada de um trem a uma estação francesa. O cinema, em seus primórdios, parecia aspirar a uma reprodução quase jornalística da realidade. Contudo, a partir dos filmes de Georges Méliès o cinema esboçou a primeira tentativa de contar uma história, iniciando um fecundo diálogo com as práticas ilusionistas e de falsificação do real. Desde o pré-cinema, cuja narratividade ainda estava por se desenvolver, os criadores de imagens se sentiram atraídos pela possibilidade de transbordar as fronteiras que separariam a realidade do sonho. No filme Voyage à la lune, de 1902, Méliès brinca com as possibilidades de subverter os princípios que regem nossa percepção cotidiana, apresentando aos incrédulos espectadores do início do século XX outros modos de ver através da ilusão fotográfica em movimento. Embora as práticas cinematográficas de Méliès ainda não configurem o cinema narrativo, já encontramos elementos daquela que constituiria a característica que considero mais relevante do cinema moderno: a invenção de novos mundos, partindo da criação de novos cinemas, de cinemas novos. Para que isso se desse, foi necessário desenvolver a narrativa cinematográfica, subvertendo-a, semelhante a um mágico nos confundindo com seus números, uma vidente lendo o ilegível, um falsário nos levando ao engano: todos passageiros da errância. O prestidigitador, o vidente e o falsário são, portanto, os verdadeiros personagens do cinema. Deleuze os incorporou à sua análise da arte cinematográfica e privilegiou os paradoxos do mágico, a clarividência do vidente e a astúcia do falsário. Trata-se aqui então de um novo procedimento de realização cinematográfica. 73

Orson Welles e sua obra constituem-se bons exemplos cinematográficos desse procedimento, isto é, a instauração das narrações falsificantes, colocando em xeque a veracidade do filme documental. Temos com o seu cinema o elogio à falsificação, a disponibilidade à errância e a inoperância da dúvida, subvertendo, assim, as regras das narrações verídicas. Isso se dá na medida em que nos filmes de Welles há a presença maciça de ladrões, escroques, estelionatários que subvertem a ordem dos acontecimentos, gerando caos na vida dos demais personagens. Não há como assegurar que tudo que estamos assistindo na tela é verdade. Este procedimento fica mais explícito e é levado às últimas conseqüências em seu filme F for Fake (Verdades e mentiras), de 1975, que pode ser chamado de um pseudo-documentário. O filme a princípio é sobre um impostor: um falsificador de quadros de mestres da pintura, Elmyr de Hory, e sobre seu biógrafo, Clifford Irving, também um falsário. Além desses personagens e suas histórias, outras subtramas, intercaladas, também são apresentadas: um passeio com uma atriz, Oja Kodar; sobre Welles, como locutor de rádio através da encenação cinematográfica da célebre narração da Guerra dos mundos que tanto pânico causou, tamanha a veracidade da narrativa wellesniana; além de mencionar as acusações que sofreu porque supostamente teria roubado os créditos do escritor de Cidadão Kane; e, finalmente, um suposto encontro de Oja Kodar com Picasso em uma pequena cidade francesa. Welles discorre sobre seus propósitos no início do “documentário” e já dá pistas do que nos espera nas próximas duas horas de projeção: “É um filme sobre esperteza, fraudes e mentiras.” E mais, ele continua, lançando um aviso ao espectador que, ironicamente, parece querer provocar: “Na próxima hora, tudo o que você escutar é verdade e baseado em fatos reais.” Quando Oja Kodar o interpela: “Você e seus velhos truques de novo?”; Welles responde, sintetizando sua estética dos falsários: “Por que não? Sou um charlatão.” 74

Verdades e mentiras começa com o próprio Welles apresentando-se como um prestidigitador, um ilusionista, a um menino, fazendo truques, mostrando para ele que contar uma história é uma forma de trapacear. Após uma série de truques e mágicas, Oja o interpela dizendo-lhe que ele é um ótimo ator, logo, um trapaceiro. Welles afirma que o filme que está para ser exibido é verdadeiro. O que é curioso, pois o cineasta fala como se já não estivéssemos “dentro” de suas imagens, isto é, ele empreende um diálogo com seu espectador para mostrar que realmente estamos diante de um filme, e como tal, de uma obra de ficção, mesmo quando estamos dizendo “a verdade”. A verdade em questão é sobre o mercado de arte, isto é, sobre um mercado de ilusões. O fato de Elmyr pintar falsificações, e estas ganharem valores astronômicos, servindo à voracidade de colecionadores, mostra claramente que este fato decorre da própria natureza constituinte do mercado de arte e da má-fé de seus experts, que teriam por papel atestar o que é verdadeiro ou falso, autêntico ou fraudulento, modelo ou cópia. Todo o filme gira em torno da tensão entre o que é verdadeiro ou falso. Trata-se de mostrar que não temos como determinar com exatidão o estatuto de veracidade da arte ou buscar um sentido de autenticidade, sem recorrer a jogos de poder e interesse. Mais que isto, o filme toma partido na afirmação da grandeza do falso, mostrando a genialidade dos falsários. Seja através de Elmyr, o gênio falsificador, escroque e bon vivant, ou de seu biógrafo, que escreveu uma falsa biografia sobre célebre personalidade americana, Howard Hughes, aviador que atravessou o Atlântico; seja o próprio Welles, ao levar pânico a Chicago em sua transmissão radiofônica de A Guerras dos mundos de H. G. Wells. Uma interessante anedota sobre Picasso narrada pelo cineasta, no derradeiro episódio de Verdades e mentiras, é emblemática para mostrar o elogio à falsificação e sua relação com a arte. Welles nos conta uma história, que não sabemos ser verdadeira ou falsa, do mestre espanhol, que teria ido a uma exposição sua e, zeloso, 75

constatou várias falsificações de seus quadros. No entanto, um amigo lhe diz que presenciara Picasso pintar aqueles quadros e que, portanto, toda a série seria de legítimos picassos, ao que o artista retrucou: “Tenho certeza de que esses quadros são falsos, porque eu mesmo os pintei”. Os picassos falsos foram pintados pelo próprio Picasso. Orson Welles, com seu filme F for Fake, estabelece uma tênue linha que, a rigor, não deixa separar o falso do verdadeiro, a verdade da mentira. “F” de falso, “M” de mentira para documentar o real.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BARNOUW, Erik. Documentary: a history of the non-fiction film. 2ª ed. revisada. Oxford: Oxford University Press, 1993. BAZIN, André. O Cinema. Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. DELEUZE, Gilles. Cinema 1. A imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985. __________ . Cinema 2. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.

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A CRISE DO ESPECULAR: OU CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROBLEMA DA REPRESENTAÇÃO NA PINTURA.

Este ensaio pretende discutir a crise das formas de figuração e semelhança na pintura. Ou seja, a crise que se estabeleceu com a arte moderna, na maneira segundo a qual a arte pictórica colocava em questão as idéias de figuração e semelhança, isto é, a mimeses. A crise do modo especular de representar formas. Essa crise será enfrentada por um pensamento que pretende escapar da representação clássica. Começaremos com uma questão: o que é a representação? Responderemos a essa questão analisando um dos mais célebres quadros da história da pintura, Las Meninas de Diego Velázquez (1656). Michel Foucault fez uma longa descrição desse quadro no primeiro capítulo de seu célebre livro As Palavras e as Coisas.42 Sigamos então as observações de Foucault, propondo uma divisão do quadro em territórios pictóricos43 da obra de Velázquez _____________________________________________ 42

FOUCAULT, Michel - As Palavras e as Coisas. 5a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1990. 43 A utilização do conceito de território, para estabelecermos uma determinada leitura de uma obra pictórica, não foi feita em vão. Entendemos a arte como produtoras de afectos e perceptos no sentido empregado por Gilles Deleuze e Félix Guattari 77

para melhor realizar nosso percurso. O primeiro território chamaremos de “o olhar do pintor”. Nele vemos o pintor que nos vê, uma relação de pura reciprocidade, como nos diz Foucault: “olhamos um quadro de onde um pintor, por sua vez, nos contempla.”44 Velázquez substitui o modelo pelos espectadores, que na verdade, somos nós. O segundo território denominaremos de “o lugar da luz”. Ele é encontrado no quadro em sua extremidade direita, em um pequeno vão, que muito mais se insinua do que propriamente se mostra. Essa luz ilumina toda a representação do quadro. O pintor fita fixamente seus modelos, supostamente nós, os espectadores. O próximo território será nomeado de “o espelho”. Segundo Foucault, de todas as representações oferecidas pela luz que invade a tela, o espelho é a mais visível, apesar de ser a menos notada ao primeiro olhar sobre a tela; nele vislumbramos dois espectros, que hipoteticamente poderíamos apresentar como os modelos que estão sendo pintados. Foucault apresenta o quadro sob as seguintes denominações: “o pintor”, “as personagens”, “os espectadores” e “as imagens”; para em seguida fazer um resumo dessa obra de Velázquez: ... bastaria dizer que Velázquez compôs um quadro; que nesse quadro ele se representou a si mesmo no seu ateliê, ou _____________________________________________

em seu O que é a Filosofia? A arte produz estas instâncias a partir do fazer de seus artífices, com a finalidade de não ter finalidade. Com o intuito de produzir novas subjetividades, novas formas de vermos o mundo ou com novos mundos de formas. Ângulos novos para o real. Ou melhor, novos ângulos para descortinarmos a realidade. Este é o papel da arte no texto de Deleuze e Guattari. Assim, o perceto, em particular, ganharia um estatuto de paisagem, de topos. Um lugar de criação, um novo lugar para a criação: uma invenção de lugar. Nada melhor, então, do que utilizarmos uma categoria cartográfica para pensarmos uma arte das superfícies como a pintura. Desta feita, utilizaremos a noção de território como conceito, nos valeremos daqui por diante dos territórios pictóricos para problematizar a representação na pintura. Cf. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1990. 44 FOUCAULT, Michel - As Palavras e as Coisas, p. 20. 78

num salão do Escorial, a pintar duas personagens que a infanta Margarida vem contemplar, rodeada de aias, de damas de honra, de cortesãos e de anões; que a esse grupo pode-se muito precisamente atribuir nomes: a tradição reconhece aqui dona Maria Augustina Sarmiente, ali, Nieto, no primeiro plano, Nicolaso Pertusato, bufão italiano. Bastaria acrescentar que as duas personagens que servem de modelo ao pintor não são visíveis, ao menos diretamente; mas que podemos distinguilas num espelho; que se trata, sem dúvida, do rei Filipe IV e de sua esposa Mariana.45

O último território pictórico destacado no quadro de Velázquez chamamos de “o intruso”. Nesta perspectiva da imagem o personagem que se localiza no fundo do quadro está como que a espreitar toda a cena, como se estivesse fora da área que constitui a pintura, como se estivesse fora da própria representação pictórica. Esta personagem tudo vê: o pintor que pinta; a infanta Margarida rodeada; o casal a cochichar; o rei e a rainha a posar; e até, possivelmente, podemos arriscar dizer, os virtuais espectadores a contemplar o quadro. Foucault nos fala de um ciclo da representação: Partindo do olhar do pintor que, à esquerda, constitui como que um centro deslocado, distingui-se primeiro o reverso da tela, depois os quadros expostos, com o espelho no centro, a seguir a porta aberta, novos quadros, cuja perspectiva, porém, muito aguda, só deixa ver as molduras em sua densidade, enfim, à extremidade direita a janela, ou, antes, a fenda por onde se derrama a luz. Essa concha em hélice oferece todo o ciclo da representação: o olhar, a palheta e o pincel, a tela inocente de signos (são os instrumentos materiais da representação), os quadros, os reflexos, o homem real (a representação acabada, mas como que liberada de seus conteúdos

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FOUCAULT, M. op. cit., p. 25. 79

ilusórios ou verdadeiros que lhe são justapostos); depois, a representação se dilui: só se vêem as molduras e essa luz que, do exterior, banha os quadros, os quais, contudo, devem em troca reconstituir à sua própria maneira, como se ela viesse de outro lugar, atravessando suas molduras de madeira escura. E essa luz, vemo-la, com efeito, no quadro, parecendo emergir no interstício da moldura; e de lá ela alcança a fronte, as faces, os olhos, o olhar do pintor que segura numa das mãos a palheta e, na outra, o fino pincel... Assim se fecha a voluta, ou melhor, por essa luz, ela se abre.46

O que nos interessa aqui, nesta descrição de Las Meninas, segundo Foucault, é o problema da representação. Mais precisamente: o quadro do pintor espanhol resume emblematicamente a questão da representação clássica, ou como diz o próprio Foucault, ele é “a representação da representação clássica”47 . Em nossa análise destacaremos também alguns detalhes de Las Meninas. O primeiro dos dois detalhes nos dá a ver o pintor; e o segundo detalhe mostra a infanta Margarida cercada de aias, o intruso a olhar a cena e o espectro do casal real ao espelho. Nestes dois detalhes temos a dimensão precisa do problema da representação, ou de como ele surge na obra velazquiana. É preciso que prestemos atenção aos olhares das figuras retratadas, não só o do pintor que olha seus modelos, como o da pequena princesinha: todos olham na direção de um certo ponto, de uma certa linha de fuga, como que procurando supostamente fitar a realeza em sua magnanimidade. Mas o que nos interroga, e principalmente nos dá motivos de suspeitar, é de que o pintor, na verdade, não queria pintar os reis, nem muito menos sua filha cercada de aias. O pintor pinta a própria pintura, com todos os seus jogos de cena, de figuração, de superfície, de plasticidade. A “ausência” real corro_____________________________________________ 46 47

FOUCAULT, M. op. cit., p. 27. FOUCAULT, M. op. cit., p. 31. 80

boraria essa tese. Sem a presença, a não ser espectral de Filipe IV e de D. Mariana, Velázquez mostraria o que realmente almejava expressar com sua obra: pintar a pintura enquanto pintura. A presença-ausência do casal real serviu a Velázquez de estratégia para conseguir seu feito. Foi a partir dessa estratégia que o pintor construiu seus territórios pictóricos. Em Las Meninas, o ato de pintar coloca-se em questão, e com o ele o problema da representação. Prosseguiremos nossa análise com outra obra de Velázquez, aquela que utilizaremos para confrontar com a estética de Francis Bacon que a utiliza como ‘modelo’ para uma série de trabalhos. O quadro de Velázquez é o Retrato do papa Inocêncio X (1650). Nesse quadro, temos uma típica imagem do mestre Velázquez: um retrato do Sumo Pontífice da Igreja Católica, sentado, em pose serena, com seu anel papal à mão direita bem visível e reluzente, como que pedindo para ser visto; e à mão esquerda um papel dobrado que nos coloca uma interrogação: o que está escrito? Qual seu texto? Por que o pontífice o segura em um retrato que iria ficar para a posteridade? Estas são questões que, no espaço de reflexão que aqui nos cabe, não trataremos. O retrato tem um forte tom vermelho, destacando-se a manta e o chapéu de Inocêncio X. O branco de sua batina nada mais faz que realçar o vermelho hegemônico da imagem. Velázquez tenta eternizar Inocêncio X. Sua representação pictórica48 precisa ser a mais altiva possível, a mais fiel aos cânones estabelecidos

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Não utilizaremos neste quadro de Velázquez, o conceito de território pictórico, por entendermos que esta noção conceitual é melhor utilizada quando pensada em termos pulral, ou seja, quando a imagem que esta sendo exposta pede mais de um território pictórico, ou mais de uma abrangência topológica, o que não ocorre com o quadro em questão: o Retrato de Inocêncio X. Um território pictórico compreende o espaço e a espacialidade proposta pelo pintor para uma determinada imagem, suas múltiplas divisões e possíveis “personagens”. Já no retrato do papa velazquiano o que mais se ressalta é o volume, os tons e as cores da obra, e não as relações do papa com outros possíveis “personagens”, o papa está só. 81

pelo poder secular. Velázquez o conseguiu, Inocêncio X é majestoso em sua representação pictórica. Essa imagem, trezentos e três anos depois, sofreu uma desconcertante interpretação. Uma leitura destruidora do processo representativo pictórico, imagem que ganhou nas mãos e nas tintas de um pintor irlandês contemporâneo uma nova conotação. Uma conotação que rompeu com os pressupostos do princípio da representação: a idéia de semelhança e de figuração. Estamos falando do Estudo do Inocêncio X de Velázquez (1953) de Francis Bacon. Uma pequena digressão teórica se faz necessário antes de começarmos a fazer nossas incursões sobre o quadro de Bacon. Faz-se necessário colocar o problema da representação na arte, sob a perspectiva de Gilles Deleuze. Deleuze, em seu livro sobre Francis Bacon49 , afirma que o grande problema que permeia todas as produções artísticas seria o da captação das forças: buscar onde as forças se encontram, concentrá-las e dispersá-las em uníssono. Novamente concentrálas, reinventando-as: produzindo o novo. A questão do novo, não a da originalidade, é o problema da arte. Não há porque buscar a origem do fato artístico. Não há porque buscar a marca de um possível “gênio”: os gênios morreram com Goethe, já que a arte moderna rompeu com o princípio da semelhança, logo com a representação. Nesse sentido, afirmamos que a mímese é um falso problema: a figuratividade tornou-se uma impossibilidade depois da invenção do daguerreótipo, da fotografia, e mais tarde do cinematógrafo. _____________________________________________ 49

DELEUZE, Gilles - Francis Bacon: Logique de la sensation (2 vol.). Paris: La Vue le Texte aux éditions de la différence, 1981. Neste texto o filósofo francês contemporâneo, traçaria um plano de análises da obra do pintor irlandês, em que este teria reinventado a figuração, ao abandoná-la e propor, em seu lugar, a Figura e o Figural. Esta obra compreende dois tomos ou volumes, em que, sua primeira parte expõe um texto sobre a obra de Bacon, para em seu segundo momento apresentar imagens do pintor. 82

Dentro desse panorama das questões que afetam o fazer artístico, a pintura vai erigir um novo patamar: segundo Deleuze, ela esculpiria uma nova realidade, com novos ângulos e perspectivas para o real. Produziria um novo corpo, que singularizaremos chamando de “um corpo”, no sentido bergsoniano50 deste conceito. Um corpo que age diretamente nos nervos sobre todas as cores que formam, assim, um sistema de ação direto sobre o sistema nervoso. Nesse contexto, Deleuze cita a música como uma espécie de contraposição à pintura. A música proporia uma linha de fuga interna, um sair, um não estar mais presente. Ela arrastaria nosso “um corpo” sobre outros corpos. Ela libertaria os corpos de sua inércia, da materialidade de sua presença. A música desencarna os corpos. A pintura, por sua vez, retorna a essa materialidade dos corpos, buscando o sentido do tato, do pegar, do afagar a matéria em toda a sua plenitude. A pintura anseia pelo corpo e pela carne deste “um corpo”. Então, enquanto a música desencarna e desmaterializa, a pintura encarna e materializa. A música é o puro corpo e a pintura é o corpo impuro. A música começa onde a pintura termina: no tempo. A música é a arte pura do tempo, enquanto a pintura engendra o tempo na matéria, materializa a temporalidade. Poderíamos nos perguntar: como a pintura torna presente a realidade viva do corpo? Ou ainda: como a pintura materializa o tempo? _____________________________________________ 50 A referência conceitual mencionada trata do pensador Henri Bergson. Este criaria com sua filosofia de inspiração vitalista uma nova maneira de pensar o corpo, a matéria e suas relações com o espírito. Sua intenção maior era, espiritualizar a matéria, a partir do exemplo da memória. Partindo de que tudo o que existe no universo são imagens acentradas, e que essas imagens acentradas, se reacentram momentaneamente a partir de uma determinada imagem, que ele chamaria de “um corpo”; o filósofo construiria um pensamento absolutamente original para dar conta do problema da consciência e de suas possiblidades para produzirmos representações do real. Seria no livro intitulado Matière et Mémoire, publicado em 1897, pela PUF de Paris, que Bergson desenvolveria estas teses.

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Deleuze responde: pelo “fato pictórico puro - as sensações”. A sensação em plena carne. A sensação plena de carne. A sensação que é plena de intensidade, produtora de um novo corpo, inventora do corpo intenso. Esses estados intensos instauram uma forma nova de corporeidade. Esse corpo intenso ultrapassa o aparelho sensório motor, fundado na espacialidade habitual, buscando o tempo, o puro tempo ou o tempo puro. Um corpo que acaba por abolir seus próprios órgãos: um “corpo-sem-órgãos”51 . Isso porque o organismo aprisiona a vida, e é preciso realizar a vida intensa. A pintura de Francis Bacon procura constituir esse lugar: o lugar de pura intensidade ou de intensidade pura. Em Bacon a pintura ganha uma nova motivação, um novo fazer. Este novo fazer está associado à sua técnica e às suas imagens. Imagens distorcidas, multiformes, quase monstruosas, que rompem com a “boa representação”. Partindo desse ponto de vista, Deleuze destaca três elementos básicos da pintura de Bacon: “figuras”; “contorno” e “estrutura”. As figuras são os corpos dobrados e tortos, as cabeças sem rostos... o monstro; o contorno compreende a pista, a roda, o lugar e a figura; e a estrutura denota a espacialização, o achatado das cores vivas e uniformes. Para Deleuze, a alma da pintura de Bacon está em compreender o que é, para este pintor, a noção de figura. Colocamos uma questão sobre a idéia de pintura na obra de Francis Bacon: pode-se dizer que figura e figuração são a mesma coisa? Pelo contrário, a figura é um avesso da figuração, a figura é o instrumento do fazer pictórico de Bacon para acabar com todas as formas de figuração possíveis. Em Bacon a pintura deixa de referir-se à tendência, dominante até o impressionismo, de constituir-se como uma organização ótica da representação. _____________________________________________ 51 Este conceito de “corpo-sem-órgãos” foi desenvolvido por Gilles Deleuze e Félix Guattari no livro Mille Plateaux - capitalisme et schizophénie, publicado pela les éditions de minuit de Paris em 1980.

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Em Bacon, a representação pictórica não teve vez, ela feneceu por completo. Deleuze afirma que a obra do pintor irlandês denota que “nenhuma arte é representativa”, mesmo a pintura, sobretudo se a pensarmos a partir do problema que define a pintura moderna: como romper a figuratividade (figuração). A pintura não ilustra, não conta nada; ela não é narrativa nem ilustrativa. No rompimento com a figura, Bacon produziu uma catástrofe, beirou o improvável, inventou diagramas, mais que isso: confrontou-se com o caos. Francis Bacon também está na zona do “caosmos”, assim como James Joyce52 . Uma zona que procura uma nova ordenação na nebulosidade enlouquecida do caos, reterritorializadora dos processos de desterritorialização. Uma zona que dá sentido ao que estava muito vago... E o que estava vago era o próprio caos. Reterritorializar, no sentido que nos propõe a obra de Bacon, é mais que criar um novo território, um novo topos. É a tentativa feita pelo artista, o pintor, de inventar uma linha de fuga para as tradicionais formas perceptivas impostas pela representação. Segundo Deleuze, depois de Francis Bacon o trabalho do pintor renovou-se. Suas práticas não podem ser as mesmas: há de se olhar uma imagem e vê-la diferentemente, há de se fazer novas leituras de velhas imagens, assim como Bacon fez a partir de seus estudos da obra de Velázquez. Retornemos ao Inocêncio X de Francis Bacon. Esse papa já não é mais majestoso como o de Velázquez. Quase que podemos ouvir o sugerido grito de sua boca escancarada. Quase _____________________________________________ 52 James Joyce criou uma noção, que a nosso ver, é muito interessante para pensarmos a arte, e em especial a Arte Moderna: o caosmo. Uma misto de caos e cosmos. Uma mistura de caoticidade com ordenação, tal como Nietzsche nos propõe uma ‘embriaguez lúcida, Joyce nos incita a amar o caos sem abdicarmos da serenidade: a paixão pela vertigem não exclui o sonho. A Arte Moderna foi pródiga em exemplos que corroboram as teses joyceanas: Picasso, Miró, Schoenberg e Orson Welles, apenas para citar alguns. Gilles Deleuze trabalhou essa noção de Joyce em seu livro Lógica do Sentido, em especial, no capítulo intitulado “Platão e o Simulacro”. Cf. DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974.

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não podemos ver seu rosto não mais magnânimo. Quase não podemos perceber seu anel, que parece ter sido elidido por Bacon. Seu poder foi desterritorializado pela ausência do anel e do papel. É um papa sem título ou jóia. É um papa encarnado, não mais celestial ou metafísico. Esse não é Inocêncio X, o papa velazquiano. Essa não é uma imagem representacional pictórica de um pontífice. Isso não é uma representação. Bacon reinventou a arte figurativa, ao colocar o problema da morte da figuração. Em seu lugar surge a Figura. A figura de Inocêncio X. Na verdade nem é Inocêncio X que vemos na imagem, mas a leitura de Bacon da imagem de Velázquez. O que vemos é toda uma reflexão da pintura sobre a própria pintura. O que vemos é uma pintura que pinta a própria pintura. Francis Bacon foi um renovador do retrato e do auto-retrato. Isso fica claro na imagem que analisaremos, que é o retrato de Isabel Rawsthorme, que Bacon chamou de Estudo de Isabel Rawsthorme (1966). Temos um rosto. A face de uma mulher olhando um ponto futuro qualquer à sua esquerda. Ela está de semi-perfil, quase não percebemos sua feminilidade a partir do traço, do volume e das cores da imagem: ela é fortemente distorcida. Nessa imagem podemos inferir as técnicas de Bacon para a confecção de um retrato, e, quiçá, de toda a sua pintura. O pintor utiliza-se da fotografia como matéria-prima para o seu pintar. Uma foto ocupa um lugar tão importante, para Bacon, quanto seu cavalete e seus pincéis. Ele fotografa seu modelo inúmeras vezes, em várias posições diferentes. Seleciona a foto que, à sua percepção, pode ganhar melhor conotação pictórica. Amplia essa foto e a coloca à frente de um espelho distorcido. A imagem que saltaria desse espelho distorcido seria a imagem a ser pintada por Bacon. Surgem assim seus rostos distorcidos, fora do registro humano. Surgem dessa forma os rostos “inumanos”53 de Francis Bacon. _____________________________________________ 53

O conceito de “inumano” nos remete ao de “corpo-sem-órgãos”. Ver nota 10. 86

Mas não só a fotografia ocupa um espaço privilegiado na obra de Bacon; também o cinema seria de suma importância para o pintor irlandês. Por exemplo, o filme Encouraçado Potemkim de Sergei Eisenstein, em particular, a célebre seqüência da Escadaria de Odessa, inspirou Bacon a fazer seus personagens gritarem. O grito dado pela mãe que vê seu filho descendo as escadas em um carrinho desgovernado foi o detonador dessa importante marca da pintura de Bacon. Estranhamente, não foi a pintura que fez Bacon pintar, e sim, o cinema. Estranhamente, não é o homem vivo que é o modelo de Bacon, e sim sua imagem fotografada. Uma outra tela de Bacon faz alusão a um quadro de Velázquez. Trata-se de Personagem escrevendo refletido em um espelho (1976). A tela de Velázquez aludida aqui, em nosso entender, é a famosa Vênus no espelho (1648). Aqui novamente temos o espelho como elemento deflagrador da situação pictórica. O espelho que reflete um personagem escrevendo e meditando em uma escrivaninha. Seu corpo se apresenta de perfil e vemos suas costas. Seu corpo está pleno. Colocado sem nuances, mas mesmo assim, estranhamente sem quaisquer verossimilhanças com um dado corpo humano. Vemos um corpo, mas não é um corpo. A figura supera a figuração, ou como quer Deleuze, o “figural” ocupa o lugar da “figuratividade”. Três quadros realçam as relações de Bacon com essa nova corporeidade inumana, o “corpo-sem-órgãos”. O primeiro é Personagem em movimento (1985); o segundo chama-se Estudo do corpo humano (1987); o terceiro é um díptico, uma tela dupla que encerra um mesmo tema com imagens distintas: Díptico estudo sobre o corpo humano (1982-84). Nessas imagens percebemos a importância dada por Bacon ao corpo, à matéria corpórea. Na primeira imagem vemos a figura de um homem que caminha, temos certeza disso ao ver seus pés fincados ao chão; seus olhos parecem se dirigir a um ponto futuro, uma seta às suas costas nos dá essa indicação. Além dessa seta que indica o movimento, o pintor colocou outra seta no quadro; esta se apresenta ao pé 87

esquerdo do personagem caminhante, um pé enorme, distorcido, bem ao gosto de Bacon. Um pé que extrapola a instância de humanidade desse personagem: estamos diante do inumano. Outras obras de Bacon apontam para esse caminho, isto é, para a relação entre o humano e o inumano. São dois estudos sobre o corpo humano. No primeiro estudo, há um personagem sobre um platô que parece fazer um determinado movimento com os braços, indicando como se fosse arremessar um “objeto quase”: o arremesso de um objeto “não existente”. Arremessar o nada. O personagem parece estar fincado sobre essa plataforma pelo seu pé esquerdo, que não aparece na imagem, como que submergindo em meio à matéria. Bacon parece querer transformar uma pintura em uma escultura, ou melhor levar elementos da arte escultórica para o pictórico, levar a tridimensionalidade própria da escultura à planura da tela. No segundo estudo do corpo humano, temos um díptico: um duplo de imagens, que de modo algum cede à tentação de uma possível narratividade, tão comum a imagens que se duplicam ou triplicam. No díptico de Bacon, não há o contar ou narrar uma estória. Tanto a primeira quanto a segunda imagem do díptico trabalham com a deformação, com o corpo decepado; ambas estão sobre plataformas (a primeira sobre uma mesa, a segunda sobre uma espécie de caixa). Todas as duas possuem setas indicativas, apontando um sentido. Ambas as setas apontam para as pernas dos personagens decepados, para os membros desses novos corpos inventados por Francis Bacon. Além delas, das três imagens que remetem ao corpo e a seu movimento, faz-se mister analisarmos um quadro que aborda uma série de outros problemas na obra pictórica de Bacon. Referimonos à Segunda versão da “pintura 1946” (1971). Malgrado seu título enigmático, devemos apreciar nessa imagem uma enorme riqueza de questões. Vemos, no centro da imagem, um homem sentado sobre um círculo, protegido por uma espécie de guardachuva em um ambiente predominantemente amarelo, que tem no seu fundo a figura de uma crucifixação esquelética. Temos a 88

distorção, a roda, o tema religioso que retorna, a referência a outras pinturas da história da arte. Trata-se de um típico Francis Bacon, uma tela que procura renovar o pintar. A última imagem de Bacon nos remete a uma paisagem, como “o percepto”54 deleuziano. Uma paisagem completamente atípica. Bacon chamou esta imagem de simplesmente Paisagem (1978). Esta paisagem é o planeta Terra. Vemos o azul dos oceanos. Vemos o que pode parecer a Lua. Vemos uma espécie de penugem: talvez os continentes. E, um cilindro, que faz a relação do planeta com seu satélite. Esta paisagem está para além e, de alguma forma, aquém das zonas perceptivas tradicionais: da percepção pura e simples da visibilidade, ela é uma paisagem que precisa ser percebida, ou melhor visualizada, não com os olhos, mas com as mãos. Conforme afirma Deleuze, há em Bacon uma tensão entre o visual e o táctil. Contudo, essa tensão se resolve, produzindo a supremacia do táctil sobre o visual. Ao investigar a pintura de Francis Bacon, Deleuze cria uma linha de fuga à representação, como se fosse mais fácil escapar da representação invertendo os clichês dos sentidos: a pintura que toca ao invés da pintura que vê: um novo empirismo, um “empirismo estético”. Dito isso, voltemos à representação, agora não mais através de Velázquez, mas daquele pintor contemporâneo, que juntamente com Francis Bacon, desafiou por completo a figuratividade a representação pictórica com seu princípio de semelhança. O pintor é René Magritte, e seu quadro chama-se A traição das imagens (Isto não é um cachimbo) (1928-9). Parece curioso, uma imagem que anunciaria uma pretensa contradição para com seu enunciado. Uma imagem de um cachimbo desenhado com um título que o nega enfaticamente: afinal, isto é ou não é um cachimbo? _____________________________________________ 54 O conceito de “percepto” é associado às artes por Deleuze e Guattari n’O que é a Filosofia? Ver nota 2.

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Foucault escreveu um ensaio sobre o pintor belga: Isto não é um cachimbo55 . Nesse livro, o filósofo faz uma crítica à pintura ocidental a partir da obra do pintor surrealista. Foucault diz que a pintura ocidental estaria erguida sobre um pressuposto: a separação entre a representação plástica (que implica a semelhança) e a referência lingüística (que a exclui). As coisas se fazem ver pela semelhança, mas se deixam dizer pela diferença. Ou o texto seria regrado pela imagem ou a imagem pelo texto. Magritte subverteria estes princípios ao colar “letra e “imagem”. Um cachimbo desenhado não se parece nem mais nem menos com um cachimbo que a palavra “cachimbo”. Magritte estabelece outro princípio para o problema da semelhança. O pintor pinta o similar, não o semelhante. Nos diz Foucault sobre Magritte: ... sua pintura parece, mais do que qualquer outra, presa à exatidão das semelhanças, a tal ponto que ela as multiplica voluntariamente, como para confirmá-las: não é suficiente que o desenho de um cachimbo pareça com outro cachimbo desenhado, que ele próprio, pareça com um cachimbo.56

Em Magritte há uma imbricação entre letra e imagem, entre o quadro e seu título. De forma alguma a legenda ou o título do quadro assumiria um simples papel de comentário verbal à imagem pictórica. Os dois são discursos. Discursos paralelos que se costuram a partir de uma certa tensão entre a letra e a imagem. Falo da obra, da obra pictórica. Mas a grande questão colocada pela pintura de Magritte não foi esta re-associação entre letra/imagem, mas a derrocada da semelhança para, em seu lugar, colocar a similitude. ... Magritte dissociou a semelhança da similitude e joga esta contra aquela. A semelhança tem um ‘padrão’: elemento _____________________________________________ 55 56

FOUCAULT, M. Isto não é um cachimbo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. FOUCAULT, M. Isto não é um cachimbo, p. 42-3. 90

original que ordena e hierarquiza a partir de si todas as cópias, cada vez mais fracas, que podem ser tiradas. Assemelhar significa uma referência primeira que prescreve e classifica. O similar se desenvolve em séries que não têm nem começo nem fim, que é possível percorrer num sentido ou em outro, que não obedecem a nenhuma hierarquia, mas se propagam de pequenas diferenças em pequenas diferenças. A semelhança serve à representação, que reina sobre ela; a similitude serve à repetição, que corre através dela. A semelhança se ordena segundo o modelo que está encarregada de acompanhar e de fazer reconhecer; a similitude faz circular o simulacro como relação indefinida e reversível do similar ao similar.57

Magritte subverteu por completo a representação ao preterir a semelhança e, em seu lugar, colocar a similitude. Ao negligenciar o modelo e afirmar o simulacro. E, principalmente ao fazer da pintura uma série enlouquecida de imagens. Nenhuma expressão artística do Século XX trabalhou de forma tão radical e veemente a proliferação das séries e o simulacro quanto a Pop Art. A estética de Andy Warhol foi rica em tornar fake o que se pretendia verdadeiro. Uma estética que, como a de Magritte, disse não à semelhança e a representação especular, afirmando o simulacro, fazendo vingar as potências do falso: as imagens traem!

_____________________________________________ 57

FOUCAULT, M. op. cit., p. 60-1. 91

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A CIDADE SOB CONTROLE: SOCIEDADE DE CONTROLE E NOVAS TECNOLOGIAS DO VIRTUAL.

WIM WENDERS

EO

“O FIM DA VIOLÊNCIA”

Um homem sentado à beira da piscina de sua casa, cercado por dois celulares, modem, tela de cristal líquido e outros pequenos e poderosos acessórios tecnológicos de última geração, fechando negócios e orientando sua assistente. Este homem é um mega produtor hollywoodiano, especialista em filmes ultraviolentos e pornográficos. Seu trabalho transcorre sem que ele se desloque de sua exuberante mansão em Bervely Hills. Assim se inicia o filme de Wim Wenders, “The End of Violence”, traduzido literalmente no Brasil por “O fim da violência”. No filme, o ator Bil Pullman, apesar de trabalhar em casa, está em crise em seu casamento, pois parece passar todo o tempo em frente ao laptop, fechando contratos para o seu próximo filme. Sua mulher, insatisfeita e aparentemente entediada, vislumbra-o do alto de seu quarto, alguns metros acima do quintal de sua casa, pega o telefone (sem fio) e liga para um dos celulares do produtor para anunciar que irá deixá-lo. Todavia nosso herói tem pouco “tempo” disponível para trocar com sua mulher, já que um possível parceiro japonês para os seus filmes está em outra linha e este negócio pode lhe render muitos milhões de dólares. Corta. Temos então a imagem do observatório de L. A . (Los Angeles) em que nos é apresentado um personagem solitário e 93

um tanto enigmático, interpretado por Gabriel Byrne. Seu ofício é observar inúmeras esquinas da cidade. Contudo, esta vigilância não é feita através de uma presença real. O personagem trabalha em uma das salas do observatório onde diversos monitores acompanham os acontecimentos em diferentes pontos da cidade: uma jovem em seu quarto, que chora o abandono do namorado; um rapaz negro, que parece um traficante de drogas espreitando um provável usuário; uma batida policial, que age com enorme vigor e violência contra jovens hispânicos. Ele é um observador no observatório que, com seus olhos multiplicados por um sem número de telas, ampliou de maneira multitudinária a capacidade de vigiar e controlar indivíduos anônimos do centro de uma megacidade. Wenders não criou uma parábola ou, menos ainda, uma metáfora de uma sociedade opressiva a perseguir seus cidadãos. O observador no observatório que, por uma de suas telas, testemunharia o seqüestro e a provável execução do produtor cinematográfico em um terreno baldio, sob uma enorme malha viária, nos dá a ver um exemplo emblemático de uma mudança no modo de vida e nos processos de subjetivação na sociedade contemporânea. Estamos a ver nesse filme a apresentação de um novo modelo de sociedade. Este modelo configuraria formas diferenciadas de controle dos indivíduos: mais importante do que saber quem se “é”, é saber o que este que “é” pode fazer. Como se todos fossem delinqüentes ou sabotadores em potencial, mesmo que sua possível “inofensibilidade” os redima do controle. Estas novas facetas com que se constitui a sociedade contemporânea são estratégias de controle sobre as práticas dos indivíduos. O controle está na base da última metamorfose do capital58 . No

_____________________________________________ 58

Quando nos reportamos à expressão “última metamorfose do capital”, tentamos acompanhar uma leitura transversal das modificações impetradas no pós-guerra e reafirmadas após o chamado Consenso de Washington, nos idos da passagem dos 94

entanto, para que nos façamos entender, precisamos falar de um momento histórico peculiar e fundamental que antecedeu a construção de uma sociedade de controle: as sociedades disciplinares constituídas no bojo das práticas normativas engendradas principalmente na Europa dos séculos XVIII e XIX. É possível identificar nas sociedades que se ergueram na passagem da Era Clássica para a Modernidade, segundo a leitura de Michel Foucault, a prática do confinamento como sua principal característica59 . As instituições modernas que se edificaram em conseqüência dos desdobramentos das Revoluções Francesa e Industrial teriam na disciplina do corpo um de seus elementos fundamentais. A família, a escola, o quartel e a fábrica seriam mais do que aparelhos a reproduzir ideologicamente o Estado liberal burguês: são centros de confinamento a moldar um corpo, a disciplinar um indivíduo, a cunhar uma subjetividade. O início do século XX, o fordismo e o crescimento urbano apresentam uma sociedade disciplinar em pleno funcionamento, na qual a fábrica seria o principal modelo: a forma-fábrica. Nela o indivíduo trabalha, mora em suas proximidades, seu filho estuda nos arredores e até o lazer acontece nas imediações de seu local de labor. A fábrica funciona _____________________________________________

anos sessenta para os setenta. Estas modificações culminam hoje com a ascendência de um único império após a derrocada do aparelho burocrático soviético: o Império Americano. Poderíamos chamar este novo estado de coisas, que se configura como a mais nova forma de imperialismo e controle hegemônico, de “Sociedade Imperial de Controle”. Sobre a idéia de “Sociedade Imperial de Controle” ver HARDT, Michael. “O Hibridismo do Império” in Lugar Comum. Estudos de mídia, cultura e democracia. Núcleo de estudos e Projetos em Comunicação da Pós-graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, nº1, março/1997. 59 Michel Foucault, em suas pesquisas sobre os processos de subjetivação na sociedade moderna destaca a importância que possui a idéia de confinamento para entendermos os desdobramentos que incidiriam na passagem das sociedades de soberania para as sociedades disciplinares. Foucault investigou os dispositivos que incidiram nessas sociedades. Para melhor aprofundamento, ver FOUCAULT, Michel, Microfísica do Poder, traduzido e organizado por Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal, 1979. 95

como uma espécie de cidadela medieval em que Deus foi substituído pelo Capital e a produção de mercadorias substituiu a irrigação das benfeitorias, assim como o salário tornou-se bem mais fundamental que o sudário (divino). Este modelo disciplinar parece estar se perdendo completamente e, em seu lugar, nasce um novo modelo de regularidades das práticas sociais. Depois da Segunda Grande Guerra, a forma-fábrica, como modelo emblemático das sociedades disciplinares, começa a ser substituída por um novo modelo: a forma-empresa. O confinamento e os dispositivos disciplinares que caracterizavam até então a sociedade moderna já dão sinais de escassez. O modelo da empresa, com sua flexibilidade, ocupa o espaço que foi o da fixidez da fábrica. É importante ressaltar que essas mudanças ocorrem em todo o globo; contudo elas não se dão simultaneamente em todas as localidades da Terra. Esta visível substituição de um modelo disciplinar que teria caracterizado a sociedade industrial moderna por um novo modelo, que é chamado de pós-industrial, ou mesmo pós-moderno, se dá de maneira diferenciada no sistema globalizado. É marcante que as sociedades que mais empreenderam esta substituição ocupem um lugar de dominação político-econômica em relação àquelas que ainda não a fizeram ou estão por fazê-la. A idéia de “controle” a nortear uma leitura das sociedades contemporâneas nos coloca imediatamente na urgência de pensar a eclosão destas novas formas de poder e dominação engendradas por essa última metamorfose do capital. Agora um capital completamente integrador e não mais excludente como aquele das sociedades industriais que o precederam. Um “capitalismo mundial integrado”60 . _____________________________________________ 60 Devemos esta expressão a Félix Guattari em suas análises sobre as transformações nos processos de subjetivação das sociedades capitalísticas. Ver GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo, São Paulo, Brasiliense, 1981. E também o livro de Guattari em colaboração com a psicanalista Suely Rolnik, Micropolítica: cartografias do desejo, Petrópolis, Vozes, 1986.

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Se nas sociedades disciplinares o modelo panóptico61 é dominante, ou seja, o observador está de corpo presente e em tempo real a nos observar e a nos vigiar, nas sociedades de controle essa vigilância torna-se rarefeita e virtual. As sociedades disciplinares são essencialmente arquiteturais: a casa da família, o prédio da escola, o edifício do quartel, o galpão da fábrica. Por sua vez, as sociedades de controle apontam uma espécie de anti-arquitetura. A ausência da casa, do prédio, do edifício e do galpão é fruto de um processo de virtualização do mundo. A casa pode ser substituída pelo micro em seu carro (um trailer moradia), a escola por um telecurso ou teleconferência, o quartel com seus soldados disciplinados por mísseis teleguiados, e no galpão da fábrica, que não é mais necessário para as peripécias do mercado, o operário é substituído pelo funcionário. É possível afirmar que a passagem das sociedades disciplinares ou da sociedade industrial para as sociedades de controle pós-industriais tem como elemento fundamental a produção de novas tecnologias do virtual. A tecnologia sempre andou par e passo aos processos sociais. As máquinas e seus desdobramentos constituem importantes _____________________________________________ 61

O modelo panóptico foi desenvolvido no início do Século XIX pelo arquiteto americano Jeremy Bentham. Trata-se de um aparato arquitetônico que, segundo Michel Foucault, constitui-se como um poderoso dispositivo disciplinar: “O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre, vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel. A construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar... O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permite ver sem parar e reconhecer imediatamente.” FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Nascimento da prisão, 4ª ed., Petrópolis, Vozes, 1986, 177. Neste livro, Foucault demonstra como se constituiu um modelo de exclusão e disciplinarização do corpo a partir do nascimento das prisões modernas, onde os leprosos, mendigos, vagabundos e condenados foram transformados em presidiários. Penalizar o corpo, vigiar o indivíduo são composições modernas: vigiar e punir. 97

índices para definirmos as mudanças nestes processos societários. As máquinas naturais e seus meios de transporte equivalentes, como ao cavalo, das sociedades de soberania foram substituídas pelas máquinas energéticas e elétricas das sociedades disciplinares, assim como o carro sucedeu o cavalo. Por sua vez, as máquinas energéticas e elétricas cederam lugar às máquinas informacionais das sociedades de controle e o transporte tornou-se mais veloz que o já hoje lento carro e o extremamente lento cavalo (o avião a hidrogênio está aí para nos provar sua eficácia)62 . Dito de outra maneira, não há como não relacionar desenvolvimento tecnológico e processos de mudança social. Deve-se levar em conta inclusive que estas mudanças não só acarretam modificações nas superestruturas ideológicas e nas infra-estruturas econômicas - nível molar - , como também nas práticas dos pequenos grupos sociais e na produção dos agenciamentos coletivos e individuais - nível molecular63 . O desenvolvimento e as novas tecnologias estão sempre produzindo modos de vida e cunhando subjetividades. Com isto é possível termos uma nova visão do que seja o poder, pois quando se afirma que há uma clara relação entre o macro-societário e o micro-societário no que concerne à invenção de novas tecnologias, é preciso olhar o poder e as formas de dominação para além da clássica relação entre Estado e sociedade civil, poder estabelecido e poder instituído, cidade e cidadão. O exercício do poder e de suas práticas possui mecanismos muito mais sutis que aqueles acionados pela repressão da força policial sobre o corpo de um indivíduo. As pesquisas de Michel Foucault já apontam para esta direção, assim como os livros de Gilles Deleuze e Félix Guattari. O poder não é apenas repressivo e negativo, ele possui uma instância de positividade: o poder cunha subjetividades. Assim, deixamos de estar confinados, como nas sociedades _____________________________________________ 62 63

Cf. VIRILIO, Paul. A arte do motor. Estação Liberdade (?). Cf. GUATTARI, Revolução Molecular. 98

disciplinares, e passamos a estar endividados como nas sociedades de controle: o confinamento e a dívida se estabelecem para além de simples efeitos de políticas estatais. Tanto o confinamento como a dívida são produtos de um conjunto de regularidades que engendram práticas e exercícios moleculares do poder. Afetam grupos, grupelhos e grupúsculos. Voltando a Wenders. Aquele observador a espreitar inúmeros lugares da cidade pelos prolongamentos de seus olhos - uma espécie de olho-tela - parece, decididamente, um exemplo pertinente da substituição do modelo panóptico disciplinar pelo modelo das sociedades informacionais de controle. Embora ele veja sem ser visto, como no modelo do panóptico, também controla os indivíduos que se vêem livres, instaurando um novo modelo, as sociedades de controle. A tecnologia aqui é utilizada como dispositivo de poder. O projeto é financiado pelo FBI - a agência de informações do governo norte-americano - que investiu muitos milhões de dólares em tecnologia telemática para dar “fim à violência”. Um projeto ultra secreto. A cidade é Los Angeles. A cidade dos anjos. Anjos da velocidade, pois L. A. é conhecida como cidade do automóvel: ninguém anda a pé. O espaço público é a tela do pára-brisa dos carros, seus celulares e seus laptops. Mas Wim Wenders, como Gilles Deleuze e Félix Guattari, Michel Foucault e Paul Virilio não são catastrofistas como à primeira vista poderia parecer. No filme, o então produtor não morre no seqüestro que lhe foi inpingido e é encontrado próximo à sua casa por um grupo de jardineiros de origem hispânica que o socorrem. Lá, onde ele encontra guarida, fala-se outra língua (o espanhol). Esta é uma língua menor no estado americano da Califórnia, habitado pelas minorias chamadas de “chicanos”. E ali, junto a uma minoria, o produtor entenderia o sentido da violência e reverteria sua própria imagem, tornando-se um jardineiro. Entretanto, ele ainda precisa dos utensílios tecnológicos para entender o porquê de seu seqüestro (que somente compreenderemos ao final do filme). A tecnologia aqui foi apropriada como uma linha 99

de fuga por alguém híbrido que, pertencendo à classe dominante de um grande centro urbano, morador de uma megacidade, torna-se aliado de uma minoria, falando uma língua menor. O filme em questão nos coloca de imediato um grande número de indagações que, se não são propriamente filosóficas, nos incitam a pensá-las como problemas de cunho filosófico. Este filme de Wenders, assim como todo o seu cinema, é um esforço de pensar as sociedades contemporâneas, talvez, no que elas tenham de mais inquietante: o florescimento de uma nova subjetividade nas fissuras criadas pelos deslocamentos humanos nas grandes cidades. Dito de outra maneira, o cinema de Wim Wenders se pergunta que modo de vida é este que surge em uma época em que homem rompe com os modelos de verdade característicos do início do século XX, como a permanência, a casa, o convívio entre iguais e uma certa solidariedade social. Estaríamos diante de um vagar, dos deslocamentos pertinentes às megacidades, do atravessar os territórios, do sentir-se estrangeiro em qualquer parte, da solidão mesmo na presença de outrem? Desde o seu primeiro filme - Verão na cidade - algumas preocupações que iriam ser desenvolvidas ao longo de toda a obra wenderiana já se apresentam. O tempo é lento, apesar dos constantes deslocamentos que caracterizam seus personagens, sempre prontos a pegar um veículo e ir... O fascínio de Wenders pelos deslocamentos, pelo vagar, pela observação de paisagens desconhecidas nos faz lançar uma hipótese do seu fascínio por um certo cinema norte-americano, apartado dos grandes estúdios hollyoodianos, e pelas inóspitas paisagens semi-áridas dos desertos dos Estados Unidos. Com isso torna-se possível dizer que os americanos foram os criadores dos chamados road-movies, ou filmes de viagens. A própria mitologia americana é composta por esses deslocamentos. Deslocar-se por entre as paisagens do deserto para desencadear o processo civilizatório. Os americanos como uma espécie de novos cruzados. O cavalo, a cruz e a espada, sendo substituídos em parte pelo trem, pelo dólar e pelo revólver. 100

Wenders produziu uma poderosa releitura destes índices do imaginário americano, que é uma das construções simbólicas mais importantes do século XIX, captadas pelo cinema das grandes imagens narrativas de um Ford ou de um Hawks. Este encontro de Wenders com o cinema americano e o fascínio daí decorrente pelo seu imaginário se iniciam já em um de seus primeiros filmes - Alice nas Cidades - retornando em O Amigo Americano e no filme sobre Nicholas Ray - O filme de Nick, continuando logo depois em Hammett, O Falcão Maltês e, finalmente, Paris-Texas. Em todos esses filmes, deslocar-se no espaço, fazer passar o tempo é uma tônica presente, assim como o encontro entre o que seria propriamente europeu - a meditação, a solidão e uma certa incomunicabilidade com o outro - e a aventura e o contar uma história do cinema americano. Na verdade, nestes filmes, o que Wenders parece colocar é o encontro de duas culturas opostas a se completarem pelo encanto desta oposição mesma. Os americanos e os alemães, vitoriosos e derrotados na Segunda Grande Guerra. O encontro do tema do exílio com a premência da aventura: o road-movie wenderiano.

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SUBJETIVIDADE & VELOCIDADE, DELEUZE E VIRILIO E O TEMPO PRESENTE

Muitos signos e idéias podem nos forçar a pensar o “hoje”, porém acredito que a noção de velocidade seja um dos conceitos mais pertinentes para nos ajudar a meditar sobre os principais problemas das sociedades capitalistas contemporâneas. E mais, creio que uma articulação da idéia de velocidade com a construção dos processos de subjetivação em meio à invenção de “um modo de vida não-fascista”64 é imperativa para construir um sentido e uma interpretação de nosso mundo. Não há como fugirmos de uma “ontologia do presente”65 para diagnosticar o real em suas inúmeras facetas. Uma “ontologia do presente” é mais do que um simples conceito, ela é uma postura ética diante do real. Pensar o agora, _____________________________________________ 64 Essa expressão: “a invenção de um modo de vida não fascista ” remete a Michel Foucault, quando esse exalta o Anti-Édipo de Gilles Deleuze e Félix Guattari como um grande livro de ética para a sociedade contemporânea, capaz de propor questões e levantar problemas que o freudo-marxismo dos anos sessenta pareceu esquecer. Cf. FOUCAULT, M. “Anti-Édipo: uma introdução à vida não fascista” in Dossier Deleuze. ESCOBAR, Carlos Henrique de (org.). Rio de Janeiro: Hólon Editorial, 1991, pp. 81-4. 65 Devemos essa expressão “ontologia do presente” ao filósofo frances contemporâneo Michel Foucault. Cf. FOUCAULT, M Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1994.

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problematizar o aqui, dizer das coisas do mundo, reinventar as práticas, forjar uma nova subjetividade. As sociedades do capitalismo contemporâneo nos colocam diante de um impasse de difícil solução: como nos reconhecer como cidadãos e como sujeitos? Como nos fazer indivíduos e singularidades? Como nos tornar diferentes? Como fazer vigorar essa diferenciação em meio a uma formação social que já ultrapassou em muito a arcaica idéia de “sociedade de massa” a instaurar todo momento novas formas de controle e disciplinarização? É por demais penoso e até ingênuo nos colocar apenas como massa a ser manobrada pelo cérebro do poder. Uma “ontologia do presente” é investigar as linhas de força fundamentais que nos fazem ser o que somos. Uma “ontologia do presente” é transfigurar a cartografia dessas linhas de forças que, além de social, desdobram-se em mais duas perspectivas: a ambiental e a subjetiva. O urbano é uma composição desses três níveis: o ambiental, o social e o subjetivo. É dentro dessa malha de relações que se forjam a sociedade, o social e a subjetividade. Não há como separar o natural do artificial: constituímo-nos como artifícios naturais, logo, somos natureza artificiosa. Nada mais enganoso do que uma natureza humana. É da invenção das formas humanas de que falamos. E essas formas humanas são geridas e governadas pelas forças de um tempo social. O que é o urbano, então? Arriscaríamos dizer: o urbano hoje é uma das máscaras do capitalismo contemporâneo, com todas as suas particularidades. A idéia de velocidade e a problemática do tempo são dois entre os índices mais importantes para fazermos uma leitura desse urbano, um poderoso instrumento para a interpretação das metrópoles contemporâneas. Dois pensadores nos auxiliam a organizar essas idéias e esses problemas: Paul Virilio e Gilles Deleuze. A idéia de velocidade em Virilio e o problema do tempo em Deleuze. Em Virilio, a idéia de velocidade é fundamental para entendermos o desenvolvimento das tecnologias na longa história 104

dos utensílios humanos66 . É como se houvesse uma indefectível aliança entre a tecnologia e a guerra. A tese viriliana chega a ser assustadora: quase todas as conquistas tecnológicas ao longo da história ocidental tiveram como finalidade última - fazer a guerra. Há uma relação clara entre meios-de-locomoção e meios-deaferição com os meios-de-destruição. Virilio criou um instigante conceito: a idéia de “dromologia” 67 , ou um saber sobre a velocidade. Segundo esse arquiteto, urbanista e filósofo francês, não podemos entender o mundo contemporâneo sem fazermos uma detida análise de suas relações dromológicas. O signo da velocidade é o mais importante índice de compreensão das sociedades pós-industriais. Na formação social em que vivemos, a velocidade não é fruto, em última instância, dos automóveis a acelerar o relativamente “lento” caminhar humano e a contrapor-se ao “rápido” avião. O automóvel é apenas mais um dos instrumentos de deslocamento, de transitoriedade do social. A maior das velocidades, aquele que parece ter se tornado o novo paradigma de referência dromológica é a cinemática e cibernética: o universo “telemático” e “internaútico” é irresistivelmente mais rápido do que seus congêneres que ainda dependeriam de um motor a força mecânica. _____________________________________________ 66 Creio que bons textos para nos guiar nessa empreitada que é o estudo dos problemas colocados pelas teses de Paul Virilio são dois de seus livros que foram traduzidos para o português entre outros: O Espaço Crítico. Tradução de Paulo Roberto Pires. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993; e A Máquina de Visão. Tradução de Paulo Roberto Pires. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994. 67 O termo dromologia desenvolvido por Paul Virilio foi uma variante da dromoscopia, conceito fundamental de sua ontologia da velocidade. Virilio quem nos diz: “Não nos equivoquemos, essamos diante da verdadeira ‘sétima arte’, aquela do painel de instrumentos. Ao contrário da stroboscopia, que permite observar os objetos animados de um movimento rápido como se estivessem lentos, a dromoscopia permite ver os objetos inanimados como se esses estivessem animados por um violento movimento.” Para Virilio estudos as particularidades do movimento dos corpos, ou seja, sua aceleração e as forças que os fazem acelerar - o consciente de velocidade - é estudar o tempo em seu caráter de virtualização. Paul Virilio também é um pensador do tempo.

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Ficamos à mercê e ao bel-prazer, porque não, das forças eletrônicas e virtuais da televisão e do computador. A televisão passou a ser, depois da década de sessenta do século XX, um novo olho humano. Ela produziu um estranho fenômeno: a invenção de um novo olhar a forjar uma desorganização do orgânico. Um outro mundo passa a ser não só visto diariamente, como também experimentado por uma enorme audiência. Ficamos parados diante de uma pequena tela sofrendo um incessante bombardeio de uma suposta realidade catódica68 . O computador acelerou ainda mais essa velocidade de comunicação instaurada pelas vias eletrônicas televisivas, rompendo como uma suposta passividade diante do aparelho de TV. Esse ir-e-vir de informações e as práticas de navegação em Webs teriam proporcionado um suposto salto qualitativo. No entanto, Virilio nos aponta uma série de efeitos perversos nesse desenvolvimento tecnológico. Estaríamos agora muito mais vulneráveis a formas bem mais sofisticadas de “controle”. O monitoramento das práticas cotidianas tornou-se incessante: de câmeras em supermercados a sistemas internos de TVs, até aos números “identitários” - únicos que nos servirão de senha para o deslocamento em quaisquer lugares que estejamos. Definitivamente, constituiu-se uma sociedade paranóica. Assim, tornou-se possível afirmar: os paranóicos são aqueles que já sabem que estão sendo perseguidos! O espaço urbano foi, dessa maneira, completamente redesenhado: vivemos sobre autopistas a vislumbrar as telas em que se transformaram os pára-brisas dos veículos. O pára-brisa do automóvel tornou-se uma máquina audiovisual: ele nos permite assistir ao espetáculo do mundo, pois ao atravessarmos em grande velocidade as free-ways que cortam povoados, vilas e cidades inteiras, a janela do carro se transforma em uma tela. Em cinema que passa, em filme que vemos. _____________________________________________ 68 O catodo/eletrodo negativo; eletrodo de onde partem elétrons e para onde se dirigem os íons positivos. Ex.: raios catódicos, tubo de raios catódicos, a TV.

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As distâncias tornaram-se absolutamente relativas. Os aviões encurtaram de tal modo o espaço que há trinta anos levava-se vinte e quatro horas para irmos de Paris a Nova Iorque. Agora, com o jato de hidrogênio, levaremos apenas trinta minutos. De cidadãos passamos a passageiros em trânsito. A relatividade das distâncias fez com que Virilio trabalhasse novos conceitos para designar o espaço percorrido: 1. a distância-espaço, que estaria associada ao espaço percorrido e ao movimento, ao carro e ao trem, que poderia ter sua medida avalizada pelo quilômetro; 2. a distância-tempo, que ultrapassa o espaço percorrido e a territorialização para associar a espacialidade ao tempo - a velocidade coloca-se como fator fundamental da medida - seu corolário é o quilômetro/hora; 3. a distância-velocidade, ponto onde estaríamos em velocidade pura e pura velocidade, não mais o espaço e o território, a matéria e o tempo, mas o dromos em estado de pureza cristalina. Sua medida é o mach69 . O pensamento de Virilio, além da idéia de velocidade, associa-se ao problema da Guerra. Ele reivindica uma reflexão sistemática e rigorosa acerca da Guerra, ou como fazer a investigação dessa “cultura” da guerra. Essa é a mais original das meditações de Paul Virilio: a associação da produção tecnológica com a arte da destruição, ou ainda a criação tecnológica da destruição. O pensador francês erigiu uma genealogia das tecnologias bélicas a ponto de destacar três grandes etapas na história das guerras: 1. a Era tática - caracterizada pela criação e pelo uso das armas de obstrução, ou seja, uma guerra em que muralhas e cidades fortificadas dariam um acento inercial às batalhas; 2. a Era estratégica - em que os exércitos lançam mão das chamadas armas de destruição, traçando batalhas marcadas pela mobilidade e pela surpresa dos ataques, ou seja, um conflito clássico com o assistido nas duas _____________________________________________ 69 Relação de uma velocidade à velocidade do som. Voar a mach 2, a mach 5 - a duas, cinco vezes a velocidade do som.

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grandes guerras; 3. a Era logística - aquela inaugurada em nosso tempo, dominada pelas chamadas “armas de comunicação”, em que as batalhas decisivas se dariam em uma quarta frente (para além de terras, mar e ar), o “quarto front” - espaço eletromagnético; basta lembrarmo-nos da Guerra do Golfo. Gilles Deleuze também é um autor extremamente perspicaz para interpretar as vicissitudes do urbano nas sociedades do capitalismo contemporâneo. Sua principal tese a esse respeito remete a Michel Foucault70 , e nos fala da passagem das Sociedades de Soberania para as Sociedades Disciplinares nos séculos XVIII e XIX. Deleuze defende uma novo delocamento: agora não estamos mais sob as Sociedades da disciplinarização do corpo com seus dispositivos de saber/poder. Uma nova formação social surgiu e substituiu aquela pelas Sociedades de Controle. Os confinamentos e enclausuramentos foram substituídos pela superexposição. Não é fundamental a prisão, pois construíram-se formas de controle bem mais eficazes que o panoptismo. A fábrica, típica associação produtivo-econômica da sociedade disciplinar, cedeu lugar à empresa. A idéia da dualidade indivíduo/massa perde completamente o sentido. O que importa é o “dividual” - o que se divide, o que é divisível: os bancos passam a ser o principal modelo de organização econômica dessa Sociedade de Controle. Cunhar moedas em ouro não constitui também mais fonte de riqueza, o fundamental é a volatilidade do capital - o dinheiro é rarefeito. O dinheiro é abstrato. O homem não é mais um homem confinado, ele agora é um homem endividado. Todos devemos a todos. A dívida é a principal fonte de sustentação econômica dessa última metamorfose do capital. Um pensamento da espacialidade não

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Deleuze escreveu um artigo chamado “Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle”, publicado em Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. Será nesse texto que encontraremos as principais idéias que desenvolvo aqui. 108

pode mais dar conta dessa metamorfose do capital. Deleuze parece estar nos propondo um pensamento do tempo para nos forçar a pensar e a interpretar o “hoje”. Tanto Paul Virilio quanto Gilles Deleuze nos dão a ver, por conceitos diferentes, o que parece ser a tônica desse fim de século: estamos vivendo uma nova mudança de paradigma, tão radical quanto a passagem do medievo para modernidade, e bem mais radical que o humanismo impetrado pela Revolução Francesa a soterrar a Época Clássica. Noções como domínio territorial, propriedade privada, valor universal não conseguem mais responder aos problemas mais urgentes de nosso tempo. Paul Virilio criou uma variação para os estudos logísticos que configurariam a relação homem/Estado. Ao invés de geopolítica, o que precisa ser inventado é uma “cronopolítica”, ou seja, o estudo das relações de poder a partir do tempo e não mais do espaço; e o conceito de velocidade é a idéia-força mais importante para as análises que Virilio chama de cronopolíticas. Gilles Deleuze aponta que a maior revolução filosófica da modernidade foi ter instaurado uma filosofia do tempo. O tempo precisava sair de seus eixos, romper seus gonzos. Kant foi o mais importante filósofo dessa empreitada. Um dos maiores méritos do pensamento kantiano foi ter retirado o tempo de sua secular subordinação ao espaço, ocorrência que se dava desde a Antigüidade Clássica. Gilles Deleuze e Paul Virilio radicalizaram a premissa fundamental do kantismo sem se dobrarem à filosofia de Immanuel Kant. O que eles propõem é que o tempo deve ser o principal prisma para o entendimento do real. Urge um pensamento do tempo para que o social possa ser desvelado. Articulando velocidade e tempo como idéias-força, será possível construirmos, quem sabe, uma nova cartografia da subjetividade que nos faça vencer essa época tão paranóica.

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CAMPOS DE GUERRA, CAMPOS DE MÍDIA: VIRILIO E A LOGÍSTICA DA PERCEPÇÃO

Um grego não caminhava pela rua, ele fazia uma corrida (dromos) pelas ruas da Pólis. Correr neste sentido sobrepõe-se a andar. Andar relativamente a correr é uma instância de baixa velocidade, em relação a voar seria de velocidade infinitamente. Então onde reside o problema? Talvez a questão seja colocar o problema com maior rigor: precisamos comparar em termos dromológicos, ou seja, de velocidade, as múltiplas instâncias da vida. Esta é a grande questão do pensador francês Paul Virilio. As relações entre a velocidade e o movimento. Em um artigo publicado no Brasil, Virilio nos remete às relações entre o movimento e o repouso, a velocidade e a inércia, ao destacar, à guiza de exemplo, um grupo de banhistas japoneses em uma piscina de Tóquio. Neste parque aquático nipônico os nadadores não se deslocam na piscina, mas isto sim, parados, recebem um enorme fluxo de água com alta pressão a fim de simular uma prática competitiva e exercitar a musculatura, como fazemos ao pedalar bicicletas ergométricas e assistirmos TV/Vídeo: passeamos por campinas visuais-eletrônicas e pedalamos por quilômetros sem efetuar o mínimo deslocamento espacial. Virilio chega a dizer acerca deste deslocamento virtual que: 111

Desse modo, aquele que nela se exercita se torna menos um móvel que uma ilha, um pólo de inércia. Como no palco, tudo se concentra no mesmo lugar, tudo ocorre no instante privilegiado de um ato, instante desmesurado que substitui a extensão e as longas durações. Não há mais campo de golfe, mas um videogame, não há mais corrida ciclística pelas estradas, mas um simulador de corrida: o espaço não se estende mais, o momento de inércia sucede ao deslocamento contínuo.71

E Virilio não pára por aí em sua análise dromológica das relações entre movimento e repouso: De fato, se o final do século XIX e o início do século XX viram o advento do veículo automóvel, veículo dinâmico, ferroviário e depois aéreo, parece que este fim de século anuncia uma última mutação, com o advento próximo do veículo áudio-visual, veículo estático, substituto dos nossos deslocamentos físicos e prolongamento da inércia domiciliar que veria, finalmente, o triunfo da sedentariedade, de sedentariedade definitiva, dessa vez.72

Segundo Paul Virilio não podemos de modo algum entender o mundo contemporâneo sem fazer uma detida análise de suas relações “dromológicas”. O signo da velocidade é o mais importante índice de compreensão da sociedade pós-industrial. No universo em que vivemos, a velocidade não seria fruto apenas dos automóveis que aceleraram o “dromos” grego ou do avião que adiantaria o “passo” do hoje lento carro; mas é a velocidade das instantâneas imagens televisivas a grande “vedete” dromológica da contemporaneidade. Ficamos paralisados diante de uma pequena tela sofrendo um incessante bombardeio de uma suposta _____________________________________________ 71 72

VIRILIO, Paul. O último veículo, p. 396. Ibidem, p. 398. 112

realidade catódica73 . A televisão passou a ser, no final do século XX, os outros olhos do espírito e fonte de prazer e poder. Além disso, sob certo ponto de vista, o pára-brisa do automóvel é uma máquina audiovisual: ele nos permitiria assistir ao espetáculo do mundo, já que ao atravessarmos em grande velocidade as freeways que cortam povoados, vilas e cidades inteiras, a janela do carro se transforma em cinema que passa, em filme que vemos. Dos aviões, Virilio nos diz que encurtaram de tal forma o espaço que há trinta anos levava-se vinte e quatro horas para irmos de Paris a Nova York, no final do século XX levamos três horas e meia e, com o jato de hidrogênio, supostamente apenas trinta minutos. De cidadãos passamos a passageiros em trânsito. As distâncias tornaram-se absolutamente relativas. Tanto que foi possível ao teórico esculpir três conceitos para pensarmos a idéia de distância: 1. a “distância-espaço”, que estaria associada ao espaço percorrido e ao movimento, ao carro e ao trem, que poderia ter sua medida avalisada pelo quilômetro; 2. a “distância-tempo”, que ultrapassa o espaço percorrido e a territorialização para associar a espacialidade ao tempo - a velocidade aqui coloca-se como fator fundamental de medida - seu corolário seria o quilômetro/hora; 3. a “distânciavelocidade”: neste ponto estaríamos em velocidade pura e pura velocidade, não mais o espaço e o território, a matéria e o tempo, mas o “dromos” em estado de pureza cristalina. Sua medida seria o mach (relação de uma velocidade à velocidade do som. Voar a mach 2, a mach 5 - a duas, cinco vezes a velocidade do som). As reflexões sobre a velocidade teriam inaugurado novas fontes de pesquisa sobre o poder, a política e a sociedade. Como Foucault, Virilio vê uma enorme positividade nas práticas de poder que estariam para além das práticas estatais. Mas diferente de Foucault, daí a singularidade de sua démarche, far-se-ia necessário _____________________________________________ 73 O catodo=eletrodo negativo; eletrodo de onde partem elétrons e para onde se dirigem os íons positivos. Ex.: raios catódicos, tubo de raios catódicos, a TV.

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pensar as relações entre as práticas de poder e a velocidade. Em Paul Virilio, o poder é poder-mover. Nesse sentido, poder-mover é poder promover práticas de poder e regularidades de modo a construir subjetividades. Assim, poder promover é um poder-saber. Poder-saber este que engendra as práticas de poder estatais e não-estatais. Dito de outro modo, o pensamento da velocidade, isto é, a dromologia viriliana, não só nos aponta para a capilaridade das práticas de poder, como fez Michel Foucault, mas também nos alerta que os experimentos tecnológicos advindos dos saberes científicos implicaram um enorme impulso ao desenvolvimento veloz da vida moderna que nos levou, ao fim e ao cabo, à constituição de subjetividade. Nada melhor para continuarmos nosso percurso na velocidade de Paul Virilio que pensarmos estas relações: o “poder-quecomove” publicitariamente uma audiência e engendra um fato político, com o suporte fundamental dos aparelhos mediáticos. Entramos na Era Global ou na planetarização da “medio-cridade”. Mas antes disso precisamos engendrar uma nova batalha teórica, precisamos falar da guerra, precisamos falar o que Virilio chama de “guerra-pura”. *** O pensamento de Paul Virilio não se voltou exclusivamente para o problema da velocidade, apesar de esta tocar o cerne de suas reflexões. Há de se colocar em pauta a questão da guerra. Virilio reivindica uma reflexão sistemática e rigorosa acerca da guerra, ou como ele mesmo nos diz - uma “cultura” da guerra. Esta talvez seja a mais original meditação de Virilio: a associação da tecnologia com a destruição. Ou essa enunciação formulada como questão: as tecnologias são pensadas para a destruição? O filósofo francês construiu uma genealogia das tecnologias bélicas e chegou a uma série de conclusões extremamente instigantes: teria havido três grandes etapas na história das guerras. 114

- Era “tática”: se caracterizaria pela criação e uso das armas de obstrução, ou seja, uma guerra em que muralhas e cidades fortificadas dariam um acento fundamentalmente inercial às batalhas. - Era “estratégica”: os exércitos lançariam mão das chamadas armas de destruição, traçando batalhas marcadas pela mobilidade e a surpresa dos ataques, ou seja, um conflito clássico como o assistido nas duas grandes guerras. - Era “logística”: seria inaugurada em nosso tempo, dominada pelas chamadas “armas de comunicação”, em que as batalhas decisivas se dariam em uma quarta frente (para além de terras, mar e ar), o “quarto front”- o espaço eletromagnético A Guerra do Golfo seria o melhor exemplo para pensarmos a “Era Logística”. Para Virilio ela não teria sido nem uma guerra justa, nem uma guerra santa, mas uma “guerra pura”. Uma guerra tecnológica onde o canhão cederia espaço ao míssil de longo alcance e os soldados, aos computadores. A Guerra do Golfo foi a primeira guerra “ao vivo e a cores”, em projeção direta e instantânea para todos aqueles que pudessem ou quisessem sintonizar suas Tvs na CNN. Foi uma guerra pura não apenas para os telespectadores, mas também do ponto de vista militar. Local, mas gerada em escala mundial. Pode-se dizer, segundo Virilio, que foi uma guerra mundial desenvolvida em miniatura. Tanto isso se deu que todas as atenções da mídia planetária estavam voltadas para o Golfo Pérsico. Um embate sui generis, já que as tropas eram inúteis e os computadores, os verdadeiros guerreiros. O vídeo era a grande arma: uma tele-imagem, uma armainformacional. Todas estas reflexões começariam a ser esculpidas e quase que profeticamente pensadas por Virilio em um texto que ele batizou de Logística da percepção - Guerra e Cinema74 . Neste _____________________________________________ 74

VIRILIO, Paul. Guerra e cinema. São Paulo: Brasiliense, ... 115

trabalho o urbanista construiu uma genealogia das invenções óticas e associou definitivamente, com maestria e brilhantismo, as relações perigosas que existiriam entre cineastas/atores/técnicos e militares, entre a indústria cinematográfica e a indústria bélica. Como exemplo, ele demonstrou que a câmera cinematográfica teria sido precedida pelo fuzil cronofotográfico de Marey e a metralhadora de Gatting, que por sua vez, foi inspirada no revólver de Colt. O cinema seria a guerra continuada por outros meios. Neste texto fica clara esta associação entre guerra e cinema. Na Guerra de 14, pela primeira vez embarcaram uma câmera fotográfica num avião para registrar os campos de batalha. A montagem fotográfica seria utilizada como cartografias dinâmicas. Na Revolução de 1917, os trens de propaganda iam filmar as batalhas; quando do seu retorno mostravam ao público o ocorrido. Além disso, Mussolini, na inauguração da Cinecittá, disse que a câmera era a arma mais poderosa. Então, inferimos que na Primeira Grande Guerra, se deu início à “arma-cinema” e à “logística da percepção” que se cristalizariam no conflito seguinte, onde todos os aviões já tinham câmeras para registrar as metralhadoras em ação, especialmente os jatos chamados de “caça”. Para Virilio, os instrumentos de destruição sempre se integram com os instrumentos de percepção porque para o homem, a função da arma é a invenção de um olho. Esse novo olho que foi criado para mirar o inimigo acabou confecionando artefatos cinematográficos. Essa lógica da visão é na verdade uma lógica da percepção. *** Queremos deixar claro nestes apontamentos sobre o pensamento de Paul Virilio que estamos diante de um pensador vertiginoso e atual, cujas reflexões estão ancoradas essencialmente sobre nosso tempo, a meditar acerca das mais prementes intempéries da 116

contemporaneidade. Isto fica claro ao voltarmos ao tópico que anunciamos antes de expormos as teses virilianas de Guerra e Cinema. Falávamos de política e mídia, de poder e saber, de “podercomover” publicitariamente uma determinada audiência, ou melhor, determinados passageiros em trânsito. Ao descrever o deslocamento conceitual provocado pela inserção da tele-imagem como “veículo áudio-visual”, Virilio nos inseriu em um grande problema contemporâneo que é o poder gerado por essa torrente de fluxos que são o jornal, o rádio e especialmente a TV. Bem diferente das interpretações célebres da Escola de Frankfurt, na figura de Adorno e Horkheimer, que na década de quarenta construíram uma visão de extrema negatividade acerca destes aparelhos de mídia, e a eles colaram o rótulo de indústria cultural, fazendo uma ponte entre esses aparelhos mediáticos e a sociedade de massas da era pós-industrial, Virilio mostrou com suas idéias que, na verdade, esses aparelhos mediáticos se constituem hoje, em fonte e locus de poder. Ele viu positividade, no sentido foucaultiano do termo, nos aparelhos mediáticos. Essa positividade não implica uma adesão à tecnologia, como pensam vários detratores das idéias do filósofo francês; implica, isto sim, a construção de um sentido. No final do século XX a sociedade pós-industrial não utiliza seus aparelhos de mídia para construir uma sociedade de massas e mediocrizar a audiência, como argumentavam os frankfurtianos. Agora os aparelhos mediáticos erigiram verdadeiras “zonas de força” e “faixas de potência” que acabaram por dominar por completo essa mesma sociedade pósindustrial, ou pelo menos grande parte de suas populações urbanas. E mais, o quadro político que se configura na cartografia geopolítica planetária só vem a corroborar as teses virilianas. A força do aparelho televisivo em todo o mundo veio a deflagrar o que Virilio chamou de “multissistema-de-mídia”. Este multissistema foi o mesmo que levou Fernando Collor de Mello à presidência do Brasil em 1989, Sílvio Berlusconi ao poder na Itália recentemente, além de provocar o fenômeno Ross Perot nos Estados Unidos. 117

Virilio nos diria que nã há mais espaço para pensarmos a dicotomia parlamentar entre a esquerda e a direita, que isto tornou-se um falso problema. Hoje, vivemos o embate entre o político e o mediático. As forças conservadoras, reacionárias e neoliberais tomaram como que de assalto o poder a partir das ondas hertzianas. Construiu-se um novo campo de batalha: o campo das mídias. Em todo o mundo “criou-se” um mal-estar com aquilo que é chamado de política tradicional - o parlamento. Seriam inúteis, vendilhões, corruptos, “marajás”. Seria preciso “sangue novo”, competência (empresarial), vigor, etc. E quem poderia proporcionar todos estes fatores ansiosamente “desejados” pela sociedade política? Ora, aqueles que estariam fora desta mesma sociedade política, já que os membros desta última estariam corroídos por todos os tipos de males éticos. E não foi por acaso que utilizamos o termo “criou-se” para fazer a genealogia de “mal-estar-da-civilização contemporânea”. Ao esconder o sujeito, não fizemos mais que desvelar, ironicamente, aqueles que querem ficar na penumbra: os donos dos aparelhos mediáticos. Na verdade, há uma clara intenção dessas redes de comunicação de controlar todos os fluxos sociais. Se no Brasil Fernando Collor de Mello acabou por incorporar em sua figura os anseios de forças conservadoras, e contar com o aval do homem mais poderoso do país ao nível dos aparelhos mediáticos, o Sr. Roberto Marinho (dono das organizações GLOBO) por outro lado, na Itália, Silvio Berlusconi, o próprio capo do maior império de mídia italiano, resolveu assumir as rédeas do poder. Vimos, neste ínterim, que uma nova figura pública ocupou o espaço que antes era reservado ao estadista: o animadordemagogo-populista. A genialidade do orador, de Demóstenes na Grécia Antiga a Daniel Cohen-Bendit nas manifestações de 68, cedeu lugar à telegenia de Ronald Reagan e Silvio Santos. Evidencia-se aqui que os poderes da mídia são capazes de colocar e tirar políticos quase a seu bel-prazer, haja vista o Watergate de 118

Richard Nixon, que renunciou à presidência americana a partir de uma operação mediática conduzida pelo Washington Post. Vivemos em uma “democracia catódica”, onde índices de popularidade são a todo momento requisitados e medidos pelos governos, avaliados e reavaliados com fins eleitorais e eleitoreiros. Vendem-se políticas de governo como sabonetes e inventam-se desejos, a ponto de grande parcela da juventude italiana apoiar o governo conservador de Berlusconi. Sem falar que Fernando Henrique Cardoso ganhou uma eleição em primeiro turno no Brasil em pouco mais de três meses, com o apoio massivo de todos os aparelhos de mídia do país. O quarto front hoje é informacional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. DESCAMPS, Christian. As Idéias Filosóficas Contemporâneas na França. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1991. 2. VIRILIO, Paul. O Golpe de Estado Mediático. Le Monde des Débats, maio de 1991, tradução de Maria Cristina Franco Ferraz, mimeografado. 3. VIRILIO, Paul. O Último Veículo. 34 Letras, no. 5/6 setembro de 1984. Rio de Janeiro, Editora 34/Nova Fronteira. 4. VIRILIO, Paul. Guerra Pura. São Paulo, Brasiliense, 1984. 5. VIRILIO, Paul. Guerra e Cinema. São Paulo, Editora Página Aberta Ltda., 1993.

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VER SEM OS OLHOS - APONTAMENTOS ACERCA DA NOÇÃO DE ‘MÁQUINA DE VISÃO’ EM PAUL VIRILIO.

1. “Era uma visão oblíqua, meio sem nitidez, em que se via aproximar rapidamente um estranho corpo. Ele possuía alongadas formas em número de cinco, como tentáculos, que ao deslizar sobre mim, pegaram a espremer-me e viraram-me em sentido horário, não pude resistir, me fez abrir a porta.” A narrativa, quase ficcional, com que abrimos este texto, apesar de nossa autoria, poderia ter sido retirada de um livro de Lewis Carrol. Já que temos como personagem uma maçaneta de porta que narra aproximação de um corpo, que viemos, pouco depois a saber, tratar-se de uma mão humana. O que temos aqui então? Uma maçaneta, objeto inanimado, que parece ganhar alma? Ou ainda, um puro delírio ficcional? Não. Estamos diante de uma espécie de “prospecção” teórica, de uma investigação conceitual, ainda sem conceitos. Uma produção teórica, pré-conceitual viriliana: as coisas passam a perceber; os descerebrados passam a pensar; os objetos passam a ver.

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2. Virilio começa um de seus textos75 sobre as ‘máquinas de visão’ citando Paul Klee: “Agora os objetos me percebem”. Deixamos de ser senhores do mundo, prontos a conhecer os objetos de uma natureza passiva e inanimada. Como se tivéssemos abdicado da condição de sujeito e nos objetificado. Como? Em que bases? Como encarar esse estranho “pessimismo” de Paul Virilio? 3. É preciso que situemos este inquieto pensador das sociedades contemporâneas e das subjetividades capitalísticas que vem recebendo muitas alcunhas: filósofo da guerra, pensador da velocidade (dromologista), etc. Mas longe de encarnarmos tais “apelidos”, que apenas reduzem a força do pensamento desse urbanista francês, precisamos situar seu campo de problemas e colocar suas principais questões. Estamos diante de um pensador dos deslocamentos. Dos deslocamentos que estariam no limiar das estratégias bélicas de nossa sociedade. Virilio está interessado em fazer a análise dos dispositivos que engendraram a fabricação dos novos artefatos ótico-motores. Sua principal preocupação é demonstrar que a maioria quase esmagadora das invenções óticas, mecânicas, e agora informacionais, serviram e servem, antes de mais nada, para fazer a guerra. A guerra estaria na genealogia destas invenções. Porém, estas mutações técnico-científicas acabaram por desencadear um novo tipo de guerra. Um novo conceito de conflito generalizado, que o pensador batizou de “guerra pura”. Dentro dessa perspectiva de guerra pura, teríamos uma evolução das formas de guerra: a guerra tática, que produziu muralhas e cidades fortificadas, além de armas por destinação; a _____________________________________________ 75 VIRILIO, Paul. “A Imagem Virtual Mental e Instrumental” in Imagem Máquina - a era das tecnologias do virtual. Parente, André (org.). Rio de Janeiro: Editora 34, 1993, p.127-32. O outro texto de Virilio que utilizamos é o A Máquina de Visão. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.

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guerra estratégica, que foi marcada pela mobilidade dos exércitos e pela surpresa dos ataques, com o predomínio das armas por função; e a guerra logística, que se dá em mesas computadorizadas com modernos soft-wares, dispondo de armas veleidosas e aleatórias. Virilio associou o desenvolvimento das tecnologias do audio-visual à geopolítica militar. A câmara cinematográfica produziu em seus horizontes de possibilidades angulares o fuzil de precisão: estavam, então, inexoravelmente associados, guerra e cinema. Entretanto, a tela cinematográfica deixou de ser o elemento solitário dos ‘modos de visão’ das sociedades contemporâneas em muito pouco tempo. Com o advento da precipitação das velocidades nas zonas urbanas das grandes metrópoles, deslocar-se mais e em menor tempo tornou-se imperativo. Produziu-se assim as autopistas ou freeways. Estas super-pistas de velocidades ilimitadas acabaram por inaugurar novas instâncias para o “ver” e o “perceber” o real; inventaram, de um certa maneira, um novo real a partir dos quádruplos visores do automóvel: a janela do párabrisas tornou-se uma nova tela. Esta tela nova, que apresenta uma realidade, que a primeira vista é concreta, nos faz mergulhar em um simulacro civilizacional, vislumbrado pelo olhar do carona. As sociedades contemporâneas abdicaram há muito da figura moderna do flâneur, presente nos passeios baudelairianos pela Paris do Século XIX, substituíram esta representação pela nova imagem do viajante da Challenger, que almeja alçar em minutos distâncias continentais. A idéia de trajetória, a possibilidade do caminho, tornaram-se lentos em demasia para os homens do final do Século XX. É dentro deste campo de problemas que Paul Virilio nos força a pensar. 4. O que é uma ‘máquina de visão’? Esta deve ser a prinicipal indagação que somos forçados a fazer. Muitos dos prolongamentos das formas visuais perceptivas do homem a ‘máquina de 123

visão’, acaba por tornar obsoletos. A ‘máquina de visão’ engendra um novo ver e um novo perceber, uma percepção que prescinde do sujeito perceptivo, e uma visão que dispensa o olhar. Estamos diante de “objetos que percebem” e de uma “visão sem os olhos”. Virilio faz uma ressalva: ou dominamos urgentemente essas formas maquínicas ou seremos dominados por elas. Essa dominação, que parece à primeira vista assemelhar-se com os Admiráveis mundos novos e 1984s, pode passar ao largo dessas anti-utopias. Devemos nos despotencializar diante da invenção dessas formas “inumanas” de vida. Porém, esse pessimismo manifesto por Virilio parece forjar seu próprio avesso, que acaba por configurar-se em um otimismo latente. Ele não propõe de modo algum uma volta ingênua ao bom selvagem de Rousseau, ou o fim de todas as tecnologias, mas o domínio destas tecnologias e a sua divulgação, inclusive de seus mecanismos mais sublimares. A questão colocada por Virilio nos parece clara: pensemos o visual, repensemos a imagem, nos coloquemos diante do virtual. Tanta visibilidade nos faz supor que o futuro está no presente, e que este precisa urgentemente ser descortinado, despresentificado, ou ainda desatualizado. Segundo o arquiteto, precisamos abandonar a instância pura do instante, para aí, invadirmos todos a seara da virtualidade. Alcançar a virtualidade é conhecer os processos de formação das imagens, para assim desvendarmos os segredos das ‘máquinas de visão’. 5. Virilio nos fala de uma relação da objetividade ou atualização, com a subjetividade ou virtualidade, para esclarecer o funcionamento do “ver” e do “perceber”. Hoje a neuro-biologia está preocupada com o funcionamento do cérebro humano, não mais para elogiá-lo enquanto máquina perfeita, senhora de todas as máquinas; mas para investigar todos os seus mecanismos de produção imagética afim de instaurá-los nas ‘máquinas de visão’. Para isso, tornou-se teoricamente fundamental a problematização das relações 124

entre o objetivo/atual e entre o subjetivo/virtual. Então, levantaremos aqui a primeira hipótese viriliana, que passa pela já célebre descoberta da persistência retiniana76 , que teria desenvolvido a cronofotografia de Marey e a cinematografia dos irmãos Lumière. Essa relação entre a objetividade e a subjetividade, ou ainda a atualização das virtualidades das potências perceptivas implica não na produção de um novo olho, mas na con-fusão e na coimplicação da percepção humana. Essa fusão entre o atual/virtual, objetivo/subjetivo é o pressuposto básico para entendermos o que Virilio chama de imagem mental. No entanto, Virilio manifesta interesse não tanto pela imagem mental consciente (IMC), mas pelo que ele chama de imagem mental virtual (IMV). Não importam, propriamente falando, os laços afetivos que engendrariam as imagens da consciência, mas como as imagens passam de um grau de virtualidade acentradas e dese-hierarquizadas para entrar em um processo de centramento hierárquico ou de atualização. Falando com mais simplicidade, ou bergsonianamente77 : como as imagens passam do virtual para o atual. Essas pesquisas

_____________________________________________ 76 Na persistência retiniana temos um fenômeno muito peculiar de ilusão visual. O cérebro, através dos olhos , e logo da retina, não consegue perceber como imobilidades a deflagração de uma série de imagens passadas seguidamente a frente de um observador. Este, o observador, tem a impressão que percebe movimento, enquanto na verdade, o que existe são imobilidades. Por exemplo, se colocarmos uma série de instantes fotográficos batidos seguidamente de um acontecimento qualquer, utilizando-nos de uma máquina que viabilize este processo a vinte e quatro quadros por segundo, estaremos diante do cinema e de seu “princípio de realidade”, ou ainda da ilusão do movimento. É desta hipótese que nos fala Virilio, da produção de pretensas ilusões visuais. Estamos aqui, visitando, o problema do simulacro. 77 A referência ao filósofo francês Henri Bergson, tornou-se inevitável. Estas categorias de atual e virtual foram cunhadas por Bergson ao tentar superar o dualismo colocado pela relação sujeito e objeto, assim como do “eterno” problema da alma/ corpo. Virilio ao utilizar as categorias bergsonianas, e principalemnte ao escolher certos problemas para pensar demostra ser um leitor atento de Matière et Mémoire, o texto de 1897, que tornar-se-ia referência obrigatória do bergsonismo.

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de ordem teórica são fundamentais hoje para a robótica e para a cibernética, pois elas garantiriam um desenvolvimento da imagem digitalizada e um aprimoramento das “maquinas de visão”. 6. O caminho do futuro parece nos estar sendo apontado por Paul Virilio. Este caminho é veloz e virtual. Máquinas que estão sendo construídas, hipoteticamente, para nos ajudar a ver, acabam por engolir nossa visão. Máquinas que estão sendo fabricadas para alongar nosso campo perceptivo acabam produzindo uma outra percepção. Estas máquinas de ver e perceber nos suplantaram. Não como fizeram no passado o microscópio e o telescópio, devido à limitação da profundidade de campo de nosso sistema ocular. A limitação agora é de uma “profundidade de tempo” de nossa tomada das imagens fisiológicas. Não somos capazes de ver e perceber tão rapidamente quanto estas ‘máquinas de visão’. Não podemos mais delas prescindir. Tanto a microscopia quanto a telescopia estariam dentro de uma geometria humanizada do olhar. Apesar das limitações inerentes ao olho humano, ainda assim é possível pensarmos em padrões de “hominidades”. O mesmo já não ocorre com as ‘máquinas de visão’, que operam em um novo registro, não mais ótico-geométrico, mas ótico-fractal. Segundo Virilio, houve com isso o deslocamento do olhar newtoniano, do espaço absoluto, para o olhar minkovskiano, do espaço relativo. Um outro olhar, que obedece às regras das imagens digitalizadas, presas que estão ao tempo da automação da percepção. A “infografia” e a “videografia” vieram a ocupar, de certa forma, o espaço, ainda lento, da fotografia e mesmo da cinematografia. As imagens produzidas por essas ‘máquinas de visão’ aceleram em muito os dados perceptivos, e fazem ver o que de outro modo não poderíamos vislumbrar. Esta associação entre o ver e o perceber, então, faz surgir uma terceira categoria que Virilio chama de prever. O papel mais importante da ‘máquina de visão’ talvez não seja o de ver e perceber para além da “hominidade”, 126

mas o de prever inumanamente os acontecimentos. Produzindo previsão-informação, estas ‘máquinas de visão’, calcadas no infograma e no videograma, se situam no bojo do capitalismo pós-industrial. Não importam mais as máquinas de produção, como no capitalismo industrial. Hoje, estamos diante das máquinas de transmissão do capitalismo informacional. 7. A infografia que proporcionou esta outra visão do real, para Virilio, acabou por produzir imagens de síntese. Imagens que construíram uma nova lógica, completamente diferente da lógica dialética da fotografia ou do cinema. Esta lógica foi chamada pelo pensador de lógica paradoxal. Nela o movimento e a espacialidade estariam subordinadas ao tempo e à virtualidade. O olho deixaria de ter a função precípua do ver e se constituiria como mais um acessório perceptivo, pois o que Virilio nos aponta é o aparecimento de uma “vidiônica’, ou seja, da percepção auxiliada por computador. Surge uma visão sem olhar. Podemos dizer, para concluir, que o tempo, na verdade, será o grande material teórico de trabalho para Paul Virilio. O tempo como durée78 , o tempo como intensidade luminosa. Se o tempo será sua matéria, a luz será seu instrumento, a luz e a velocidade: a velocidade da luz. Virilio nos fala de três intervalos associados às imagens da vida. Há o intervalo do tipo espacial (que se constitui como signo negativo); há o intervalo temporal (que se estabelece como signo positivo); e por último, há o intervalo luminoso (que é um signo nulo, ou neutro). O videograma e o infograma produzem intevalos luminosos. A produção destas ‘máquinas de visão’ acabou por instaurar novas possibilidades perceptivas, dignas de um Lewis Carrol ou de um Paul Klee. Elas ensejaram a possibilidade da percepção sem objeto e da “visão sem os olhos”. _____________________________________________ 78

Este conceito também é bergsoniano. Ver nota 3. 127

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POR UMA CRONOPOLÍTICA DO PODER, OU APRECIAÇÕES SOBRE OS MEIOS DE VIRTUALIZAÇÃO DO MUNDO EM PAUL VIRILIO.

Paul Virilio é um pensador do presente. Pensar o presente é pensar as formas de regularidades e práticas de saber/poder do capitalismo contemporâneo em seus dispositivos mais sutis, ou mesmo em suas manifestações mais contundentes. Daí o tema da “guerra”, o problema da “velocidade”, e as técnicas do “motor” serem propostos por esse arquiteto e urbanista francês por formação e filósofo por vocação em dois trabalhos traduzidos no Brasil: Velocidade e Política e A arte do motor, ambos publicados pela editora paulista Estação Liberdade em 1996. Além disso, encontrarmos essas preocupações em seu livro lançado na França: um livro de entrevistas com o professor de filosofia Philippe Petit, chamado oportunamente de Cybermonde, la politique du pire. Velocidade e Política é um livro da década de setenta, um texto que introduz uma nova disciplina: a “dromologia”, o estudo e a economia das velocidades. Esse livro ganhou uma série de traduções e impactou as pesquisas sociais, principalmente no Japão, EUA e Alemanha. Trata-se, sem dúvida, de um texto inaugural, um livro que descortina uma série de novas problematizações acerca das sociedades contemporâneas e lança novas perspectivas para que possamos estudar a história da civilização. 129

A terra deixa de ser a fonte de atração e primeiro eixo estratégico para a dominação, ou seja, a territorialidade perde o privilégio enquanto meio de fazer a guerra. Virilio mostra com suas pesquisas os inúmeros deslocamentos e as várias maneiras do homem fazer a guerra, assim como a relação dos conflitos bélicos com os meio de transporte que a civilização produziu ao longo de sua história. Um bom exemplo dado por Virilio: temos a antiga Esparta que sucumbiu porque não navegou, e a moderna Inglaterra que teria se firmado como potência ao controlar os mares. Enquanto as outras potências européias defrontavam-se em conflitos por terra, os ingleses aceleravam seus movimentos nas autoestradas da época - os oceanos - hegemonizando assim as comunicações e seu acesso às colônias. A dromologia é o estudo da produção dessas tecnologias do movimento que tem como sua principal característica: estudar a aceleração da velocidade dos meios de transporte, com claras intenções beligerantes. Da rua passa-se ao mar, do mar ao ar, do ar ao ciberespaço. Estamos sempre desenvolvendo tecnologias que aumentem a capacidade motora dos múltiplos meios de comunicação e de transporte com a finalidade quase sempre inequívoca de fazer a guerra. Virilio une de forma insofismável: guerra /tecnologia e velocidade/política. Quase vinte anos separam Velocidade e Política de A arte do motor. Publicado na década de noventa, este último representa uma espécie de continuidade das pesquisas que Paul Virilio desenvolveu em seu livro anterior: A Máquina de Visão79 , coletânea de artigos, onde Virilio introduz a noção de realidade virtual. Em A arte do motor, a idéia de virtualização torna-se fundamental para o projeto viriliano, pois se em Velocidade e política as estratégias da guerra tradicional seriam seu ponto de partida para pensar a História, essas atualizações dos esforços bélicos humanos seriam _____________________________________________ 79 La Machine de Vision. Paris: Éditions Galilée, 1988. Tradução brasileira de Paulo Roberto Pires, da Editora José Olympio do Rio de Janeiro, 1994.

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deslocadas para a virtualidade, ou seja, o atual cederia lugar ao virtual. As estradas não seriam mais terrestres, marítimas ou mesmo aéreas: estaríamos agora nas “infovias” da Internet. Seus estudos sobre as tecnologias do motor serviram para reafirmar sua hipótese que liga a tecnologia à guerra, e esta à força de seus motores a maximizar a velocidade. Explicar a história do ocidente através da história da velocidade é o que sugerem Velocidade e política e A arte do motor. Já que não é possível falar em ocidente sem falar em colonização, os meios de transporte estão sempre implicados em algum processo colonial. Virilio constrói uma “economia política da velocidade”, desvelando uma dimensão extraordinária da História. E como não podia deixar de ser, uma história da velocidade é também uma história dos motores. Essa história seria inaugurada pelo “motor metabólico”, do qual o cavalo seria emblemático: deixou de ser visto como um animal para tornar-se um meio de transporte, uma máquina de velocidade, e logo como uma máquina de guerra. Segundo Paul Virilio, toda a história do ocidente parte de um motor metabólico, particularmente do cavalo. Em seguida ao motor metabólico, as forças da natureza desempenhariam um importante papel na história dos motores. O vento constitui o motor que impulsionaria moinhos e caravelas, e o “motor natural” substituiu o motor metabólico, assim como a velocidade eólica suplantou a velocidade animal. Porém, a grande revolução estaria por vir quando do aparecimento do “motor a explosão”, que resultaria mais tarde no “motor elétrico”, e conseqüentemente no “motor de inferência” (o computador). O que fica claro ao lermos os textos de Virilio é a constatação da gradativa substituição do espaço real da geografia pelo espaço virtual. Em Virilio, há uma premência do tempo sobre o espaço. A reorganização do espaço deve agora sempre passar pelo tempo, como se Virilio nos propusesse uma temporalização do espaço. As grandes extensões não precisam mais ser percorridas a 131

pé, a cavalo, de carro, navio ou mesmo nos modernos aviões a hidrogênio. Estas ainda são velocidades lentas em relação ao ciberespaço, ao espaço virtual. Uma nova correlação de forças políticas se instaurou desde então. Pensar a política hoje - no presente - é levar em consideração esta variável terrível: os processos de dominação dependem de suas performances midiáticas e de sua capacidade de realizar-se enquanto rede. A idéia de rede de comunicação, que apesar de possuir como característica principal a militarização ou os anônimos usuários, na verdade, acaba por servir às forças do Estado. Não mais a um Estado-centro-de-poder, mas a um Estado-virtual governado pelas regularidades do “capitalismo mundial integrado”, que tem como codinome o processo de globalização ou mundializção. As infovias e o capital volátil fazem parte de uma rede e perfazem um processo de dominação que chamaremos de a última das metamorfoses do Capital. Virilio nos dá, assim, a possibilidade de pensarmos uma nova forma de articular o jogo de saber/poder que constitui a política. As estratégias e suas premissas não podem ser as mesmas da política partidária tradicional, como se precisássemos da constituição de redes paralelas, de novas formas de Internets e BBs, da formação de grupelhos atuantes a configurar linhas de fuga realmente contundentes ao estado de coisas que nos encontramos. A noção de virtualidade, herdada de Henri Bergson por Paul Virilio, é fundamental para entendermos este novo rosto para a política do presente. Uma política que não é mais geográfica e sim virtualizada. Virilio nos diz: saímos da geopolítica para entrar em uma cronopolítica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS VIRILIO, Paul. Vitesse et politique. Paris: Editions Galilée, 1977. Tradução de Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. 132

__________ . L’art du moteur. Paris: Editions Galilée, 1993. Tradução de Paulo Roberto Pires. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. __________ . Cybermonde, la politique du pire: entretien avec Philippe Petit. Paris: Les éditions Textuel, 1996.

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MATRIX, O FILME: A VIRTUALIZAÇÃO DA REALIDADE

Matrix, o filme. Em um futuro próximo, um jovem solitário possui uma vida dupla: durante o dia programador de uma importante empresa de software, à noite trafica programas proibidos em um exercício de desobediência e risco. Mister Andersen, o programador, parece conviver pacificamente com Neo, o hacker, até que uma mensagem em seu correio eletrônico o faz suspeitar de que pode estar sendo perseguido. Ele segue a pista e encontrase com a mensageira de um interlocutor cibernético muito desejado: Morpheus. Ele é avisado... está sendo realmente perseguido. Sem aviso, kafkianamente, ele é intimado e intimidado, foi descoberto: Mister Andersen é Neo. Seu crime? Um mistério. Sua pena? Colaborar na prisão de um perigoso cyberterrrorista: Morpheus. Ele, aparentemente, se recusa. Retorna para casa. Novamente é contatado pela mensageira de Morpheus. Ele foi grampeado. Como tudo nesse filme, o que parece pode não ser. Quem é Mister Andersen? Quem é Neo? O que quer Morpheus? O que realmente desejam aqueles sinistros agentes? Matrix, o filme. Mais uma obra a expurgar uma ferida americana: a teoria da conspiração, tão presente em séries famosas como Arquivo X? Um simples filme de ação com exacerbada 135

utilização de efeitos especiais de última geração? Ou ainda, uma ficção científica que tematiza um sério problema filosófico: o que é o real? Matrix, o filme. É possível dizer que neste thriller de ficção científica encontramos tanto a propalada teoria da conspiração que parece gravitar o imaginário americano quanto a utilização dos efeitos especiais. Contudo, a teoria da conspiração e os efeitos especiais estão nesse filme a serviço da narrativa cinematográfica, a serviço das tramas tecidas por um ótimo argumento e por um sagaz roteiro. Matrix, o filme. Na verdade é uma obra sobre a idéia de realidade, ou melhor, ele parece nos fazer uma pergunta: o que é o real? Qual é a realidade: aquela que nos legaram as máquinas depois da batalha final entre homens e as I. A. (Inteligências Artificiais), em que os sobreviventes da guerra habitavam uma cidade nos esgotos da terra? Ou uma outra realidade, que também as máquinas nos legaram, mas diferentemente nos faz sonhar com a mais justas das vidas, sem riscos, problemas ou desvios, uma vida maquínica? Qual a realidade: a vida das máquinas que fizeram que os humanos deixassem de nascer e passassem a ser cultivados? Ou a vida dos homens que têm que escolher entre uma pílula azul que os leva de volta ao sonho de um mundo sem risco e a pílula vermelha que os faz enfrentar o risco de existir? Matrix, o filme. Estamos diante do deserto do real: o processo de virtualização da realidade.

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