Análise de Discurso: Estudos de Estados de Corpora

July 27, 2017 | Autor: A. Araujo Carmo | Categoría: Comunicação, Linguística, Análise de Discurso
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Descripción

João Carlos Cattelan Alex Sandro de Araujo Carmo [org.]

ANÁLISE DE DISCURSO: ESTUDOS DE ESTADOS DE CORPORA

2014 TOLEDO - PARANÁ

© João Carlos Cattelan - Alex Sandro de Araujo Carmo [org.] Coordenação Editorial Osmar Antonio Conte Organizadores João Carlos Cattelan Alex Sandro de Araujo Carmo Projeto Gráfico Alex Sandro de Araujo Carmo Revisão João Carlos Cattelan Ficha Catalográfica: Mariana Senhorini Caron - CRB9-1462 A532

Análise do discurso: estudos de estados de corpora - / João Carlos Cattelan, Alex Sandro de Araujo Carmo (Orgs.) – Toledo: Editora Fasul, 2014. 274 p. 1. Análise do discurso. 2. Polifonia. 3.Publicidade – textos. I. Cattelan, João Carlos. II. Carmo, Alex Sandro de Araujo.

CDD 21.ed. 401.41

ISBN 978-85-89042-25-3 Direitos desta edição reservados à: Fasul Ensino Superior Ltda Av. Ministro Cirne Lima, 2565 CEP 85903-590 – Toledo – Paraná Tel. (45) 3277-4000 - e-mail: [email protected] É proibida a reprodução parcial ou total desta obra, sem autorização prévia do autor ou da editora. Depósito Legal na Biblioteca Nacional Divulgação Eletrônica – Brasil – 2014

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO

[1]

João Carlos Cattelan

CAPÍTULO 1

[3]

RECORTES E APONTAMENTOS SOBRE A TEORIA DO DISCURSO Luciane Thomé Schröder

CAPÍTULO 2

[ 29 ]

A OPACIDADE DA LÍNGUA, DA HISTÓRIA E DO SUJEITO: UMA REFLEXÃO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO

Franciele Luzia de Oliveira Orsatto

CAPÍTULO 3

[ 42 ]

SOBRE O DISCURSO JORNALÍSTICO QUE RESSOA:

ESPAÇOS DE INSCRIÇÃO EM OUTRAS MATERIALIDADES DISCURSIVAS Alexandre da Silva Zanella

CAPÍTULO 4

[ 64 ]

COMENTÁRIOS DE LEITORES:

A VIOLÊNCIA NOTICIADA NA INTERNET Luiz Carlos de Oliveira

CAPÍTULO 5

[ 86 ]

O DISCURSO PUBLICITÁRIO NOS ANÚNCIOS DE OPERADORAS DE TELEFONES CELULARES Paula Fabiane de Souza Queiroz

CAPÍTULO 6

[ 106 ]

DISCURSO, POLIFONIA E CRIATIVIDADE NO TEXTO PUBLICITÁRIO Alex Sandro de Araujo Carmo

CAPÍTULO 7

[ 127 ]

A AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR:

EFEITOS DE SENTIDO E POLISSEMIA Nelci Janete dos Santos Nardelli

CAPÍTULO 8

[ 155 ] ZONA:

O ENTREMEIO COMO LUGAR DE CONTRADIÇÃO

Mirielly Ferraça

CAPÍTULO 9

[ 176 ]

BRASIL E BRASILEIROS EM PORTUGAL: CONSTITUIÇÃO DE SUJEITOS E SENTIDOS Alexandre Sebastião Ferrari Soares Isabel Maria Ferin da Cunha

CAPÍTULO 10

[ 208 ]

QUANDO A ESMOLA É DEMAIS, O SANTO DESCONFIA?! João Carlos Cattelan

CAPÍTULO 11

[ 239 ]

“CASCAVEL, QUEBRADA SOFRIDA”:

AS VOZES IDEOLÓGICAS NA MÚSICA DO GRUPO DE RAP “FACE HUMANA DO GUETTO” Silvana Trevizan

AUTORES

[ 269 ]

APRESENTAÇÃO João Carlos Cattelan

A apresentação de uma obra parece um momento oportuno o bastante para poder fazer frente a algumas afirmações que se ouvem nos corredores da universidade sobre determinadas disciplinas. Parece que, no mundo acadêmico (como em outro qualquer, eu diria), campeia uma necessidade de valorizar o terreno em que se pisa e ser “crítico” em relação ao espaço em que o outro trabalha suas problemáticas de ensino, pesquisa e extensão. Ainda que não fosse essa a motivação central, o senso comum, inclusive dos que possuem alta titulação acadêmica, leva-os a fazer algumas afirmações que parecem pouco embasadas. Vou me valer do espaço cedido para a atividade de apresentar este livro para refletir brevemente sobre algumas. Uma das afirmações que aparece bastante seguidamente sobre a Análise de Discurso é que ela é uma disciplina hermética, estratosférica e muito difícil. De modo geral, o efeito de sentido que a afirmação produz é a de que, diferentemente de outras, ela seria muito difícil, complexa e fora da realidade: pura abstração. E a resposta a esta crítica parece a mais fácil de ser rebatida: não existe disciplina, mesmo as empíricas e de imediata aplicação “visual”, têm um background teórico, um conjunto de conceitos, uma metodologia de trabalho e um corpus de dados “privilegiado” sobre o qual se aplicam. Neste terreno, não há uma régua que possa medir o maior ou menor grau de hermetismo das disciplinas: elas são incomensuráveis. A outra crítica, que vem em decorrência da primeira ou conjuntamente com ela, é que a Análise de Discurso seria muito teórica, o que, em geral, equivale a ser “sofisticada” demais do ponto de vista das suas elaborações epistemológicas ou a ter qualquer aplicação prática: ela seria, assim, meramente especulativa ou pura especulação teórica. E o que espanta os críticos são as noções de formação social, formação ideológica, formação discursiva, pré-construído, discurso transverso e, é claro, o calcanhar de Aquiles: assujeitamento. Por um lado, eles seriam conceitos abstratos demais; por outro, não teriam qualquer aplicação empírica, já que seriam noções puramente ideológicas e não científicas. E, de novo, não é difícil atentar para o fato de que as outras disciplinas não são diferentes: nelas, pululam conceitos como fonema, morfema,

sintagma, sentido, coesão, coerência (e tantos outros), cada um com seu grau de dificuldade ou abstração que silencia traços idiossincráticos. Outra crítica, ainda, é que a Análise de Discurso não é linguística e o efeito de sentido pretendido é que o que recai sobre o terreno da Linguística tem algum mérito; o que fica de fora, não deveria figurar na área das Letras. Neste caso, é preciso admitir de pronto: ela não é linguística mesmo, pela assunção de base de que não pretende descrever sistemas de língua e nem se fechar num prisma de observação que apague aquilo que cerca o uso da linguagem. Os ingredientes contextuais são elementos inapagáveis de quem se coloca sob a ótica discursiva. E, aproveitando a deixa, é preciso frisar outro ponto: a Análise de Discurso não é linguística, como às vezes, se ouve. Ela não é um nível a mais, sobreposto à Semântica. Mas isto não significa, é preciso enfatizar, que ela ignore a língua: aliás, ela faz parte do seu tripé. E, por fim, há quem diga que a Análise de Discurso não serve para o ensino de língua, pois não tem nenhuma aplicabilidade prática imediata. Se a crítica se dá no sentido de afirmar que ela não deve ser conteúdo de ensino nos níveis fundamental e médio, nada a observar. Isto deveria acontecer com a maioria dos conceitos de outras disciplinas também e que, no entanto, já são conteúdos consagrados. Mas que não tenha aplicação prática ou contribuições a dar para o ensino de línguas, eis uma afirmação que pega pela singeleza de sua defesa e pelo absoluto desconhecimento do que pode e do que faz a Análise do Discurso. Se existe algo que a disciplina faz (com rigor e com vigor) é “abrir os olhos” opacos do leitor para a produção dos efeitos de sentido que circulam socialmente. Eu me atreveria a dizer: até mais do que as disciplinas que são vistas como teorias canônicas da leitura. E, se o olhar do leitor é preparado para ler, também o é para escrever e para refletir sobre o que escreve e diz. Mas, ao invés de fazer a defesa da disciplina, o que pode facilmente fazer migrar para o terreno panfletário e prestar um desserviço para a Análise do Discurso, que já leva pedras além do merecido (na maior parte das vezes, injustamente), cumpre chamar a atenção para o fato de que este livro, ponto a ponto, responde de forma contundente às críticas listadas acima e mostra com uma limpidez inatacável a sua não imputabilidade à disciplina: e não porque responda e argumente contra elas, mas porque mostra com estudos e pesquisas o quanto ela é frutífera e o quanto pode vir a ser um instrumento a serviço da educação e da elucidação do mundo em que vivemos. Com exceção do primeiro capítulo, que pode dar uma contribuição a mais para a diminuição do “hermetismo” da disciplina, todos os demais são de aplicação a corpus de dados e, portanto, da sua contribuição efetiva para a educação e para a leitura.

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CAPÍTULO

1

RECORTES E APONTAMENTOS SOBRE A TEORIA DO DISCURSO Luciane Thomé Schröder [é preciso aprender que]: Ninguém pode pensar do lugar de quem quer que seja: é preciso suportar o que venha a ser pensado, é preciso ‘ousar pensar por si próprio’. (PÊCHEUX, 1997a, p. 304 ) [ainda que se saiba: isso não é impossível].



Esse texto1 não é uma apresentação da Análise de Discurso de orientação francesa; constitui-se, mais, numa vontade de agrupar, em poucas páginas, um mapa (que se sabe incompleto) da teoria que tem por objeto de estudo e reflexão o discurso. No espaço teórico da Análise de Discurso, entende-se, que, no lugar de respostas que apontem para certezas, o que há são possibilidades de análises por meio de uma prática de leitura, que, a cada encontro com seu objeto, pode ser res-significada, ou seja, trata-se de um “procedimento que demanda um ir-e-vir constante entre teoria, consulta ao corpus e análise” (ORLANDI, 2001a, p. 67). Não há respostas a serem perseguidas que antecedam o processo de análise, porque não há, em definitivo, perguntas guias. Obreiros em andaimes suspensos: talvez seja essa a definição para o trabalho dos que trilham os caminhos da Análise de Discurso. Segui-los significa transitar, de modo contemplativo, pelo objeto em análise. Corpus sempre em movimento, seja porque se encontra em condições de produção não estabilizadas, seja porque o olhar do analista é afetado pelas suas próprias condições de produção, as quais não podem ser negadas, nem apagadas, devido à presença silenciosa daquilo que move a todos enquanto sujeitos de uma prática discursiva: os indivíduos estão, em última instância, sempre sujeitos às ideologias: Na verdade, todo ‘ponto de vista’ é o ponto de vista de um sujeito; uma ciência não poderia, pois, ser um ponto de vista sobre o real (um ‘modelo’ do real): uma ciência é o real sob a modalidade de sua necessidade-pensada, de modo que o real de que tratam as ciências não é senão o real que produz o concreto-figurado que se impõe ao sujeito na necessidade ‘cega’ da ideologia. (PÊCHEUX, 1997a, p. 179).

Apesar dos entendimentos e desentendimentos, aceitação ou negação que uma análise pode provocar, ao assumir uma posição teórica, o sujeito, na posição-autor-analista, encontra-se numa batalha que pode gerar algum ______ [ 4 ]

resultado, isto é, pode romper com práticas discursivas dominantes. Não de modo a querer instaurar um dado novo, mas assumir com Pêcheux (1997a, p. 294) uma vontade: “tomo partido pelo fogo de um trabalho crítico [desejando] que, por essa via, algo novo venha a nascer – contra o fogo incinerador que só produz fumaça”. A criticidade almejada por meio da teoria da análise de discurso significa trilhar um percurso nada fácil ou tranquilo, pois “A teoria é política. E a análise de discurso que se filia a M. Pêcheux ‘sabe’ disso” (ORLANDI, 2001b, p.36). Por isso, a batalha; por isso, os embates aos quais os analistas de discurso colocam-se à mercê. Inicia-se, então, buscando-se conceituar o termo “discurso”, porque se entende que ele é o conceito cuja concepção é fundamental para a teoria. E é a partir da sua compreensão que se abrem espaços para a constituição dos demais procedimentos analíticos. Compreendê-lo, portanto, requer a atitude de des-fixar o seu sentido de qualquer lugar estabelecido. Logo, entendido pelo viés teórico da Análise de Discurso, o discurso pode ser lido como prática de “Movimentos dos sentidos, errância dos sujeitos, lugares provisórios de conjunção e dispersão, de unidade e de diversidade, de indistinção, de incerteza, de trajetos, de ancoragem e de vestígios” (ORLANDI, 2001a, p. 10). Como se percebe, o termo discurso é contraditório por natureza, mas não pela ausência de uma coerência que confirme seus sentidos numa dada sociedade; afinal, há o discurso religioso, político, jurídico e etc. dotados de uma completude (relativa) por parte dos seus interlocutores. A contradição referida significa o seu não aprisionamento a bases teóricas que lhes fixariam um único e verdadeiro significado, já que o signo é ideológico e sua completude se encontra na exterioridade (BAKTHIN, 1999), ou seja, no seu espaço enunciativo. Uma definição para discurso obriga recusar os espaços de conforto dos saberes legitimados, para se colocar no lugar da incômoda inquietação: desocupar a ordem discursiva sociocultural e entrar na sua des-ordem. Se o mundo e as pessoas do mundo se convertem, por fim, a uma perspectiva discursiva, é preciso compreender a “realidade repleta de mudanças e de contradições, de mudanças, portanto, de contradições” (PÊCHEUX, 1997a, p. 249 – sem grifos) que circundam os espaços sociais em que homens, portanto, discursos coexistem. E, então, talvez, possa-se buscar nos discursos não mais a resposta reveladora de uma verdade, mas as condições materiais para a reflexão sobre possíveis posicionamentos dos sujeitos frente à sua condição social em dado momento e em relação a um dado tema. Eis a tarefa que se coloca como trabalho para o analista. Refletir sobre o discurso, portanto, não é uma tarefa tranquila, isso ______ [ 5 ]

porque, como se sabe, os sentidos que se materializam em palavras, imagens, símbolos e etc. não estão amarrados nem fixados, como já foi dito, a um significado. Ele é, sempre, em lugar da certeza de que algo significa x, a resposta de que também pode significar outras coisas: não-ditas, silenciadas: o discurso, portanto, materializa, sempre, efeitos de sentido, devendo-se considerar “a cada um, seu ponto de vista, e [mas], acima de todos, a verdade inacessível!”. (PÊCHEUX, 1997a, p. 209). Compreender o discurso na sua complexidade exige, então, vêlo como uma instância que (de)marca territórios entre os diversos campos discursivos existentes nas sociedades organizadas, que constroem, por meio das suas instituições (escola, igreja, aparelho jurídico, família e etc.), horizontes de saberes a serem seguidos pelos sujeitos, entendendo-se, com isso, o proposto por Bakhtin (1999, p. 121): “O centro organizador de toda enunciação, de toda expressão, não é interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo”. Deve-se considerar que a sociedade (com seus valores e crenças) sobredetermina os sujeitos, mapeando, para eles, trajetórias discursivas centradas em valores ideológicos que se tornam alicerces e organizam o mundo de uma comunidade. Devido a essa perspectiva é que o conceito de ‘ideologia’ instaura-se na Análise de Discurso como ponto nodal das discussões. E como o termo ‘discurso’, sua conceituação também é complexa, devido à banalização que o termo sofreu (vem sofrendo) no decorrer dos tempos e das apropriações que as mais variadas teorias fazem dele. Uma compreensão para o conceito de ideologia é tomá-la como uma prática de “evidências”, que, ideologicamente, atua sobre os indivíduos, interpelando-os em sujeitos (PÊCHEUX, 1997a), sem que tenham consciência ou controle da intervenção em quaisquer relações. As ideologias se imiscuem nos discursos que criam a vida social e se constituem como forças materiais (PÊCHEUX, 1997a) necessárias à própria existência/sobrevivência das sociedades: o homem é discurso e a “evidência” dos discursos para o homem se explica pela “Penetração que se opera ‘por si só’ e, ao mesmo tempo, inculcação que trabalha conscienciosamente sobre o resultado dessa penetração [discursiva] para ‘se acrescentar a ela [a ideologia]’, de modo que, no total, cada ‘sujeito’ saiba e veja que as coisas são realmente assim” (PÊCHEUX, 1997a, p. 224 – sem grifos no original): fórmulas inquestionáveis de verdades que, feito ar, não se percebe, mas estão presentes em cada enunciado emitido. Para a Análise de Discurso, “as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência às ______ [ 6 ]

formações ideológicas” (PÊCHEUX, 1997a, p. 160 – grifos do autor), de forma que os sujeitos falam sempre a partir de um determinado lugar social e compreender isso é fundamental, pois, por meio dessa compreensão, podemse problematizar os sentidos estabelecidos. Para a teoria, formação ideológica é “um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem ‘individuais’ nem ‘universais’ mas se relacionam mais ou menos diretamente à posição de classes em conflito umas com as outras” (PÊCHEUX e FUCHS, 1975, In: GADET e HAK, 1993, p.166). Ao encontro do conceito de Formação Ideológica, cunhado por Pêcheux, recorre-se à discussão de Foucault que, em “A Arqueologia do Saber” (1995), constitui o conceito de Formação Discursiva. Segundo este autor, se “se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva” (FOUCAULT, 1995, p. 43), de modo que, “analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas” (p.56). Pode-se afirmar que as palavras estão imersas em um discurso afetado pelo lugar social de onde é enunciado (afinal, não é qualquer um que pode dizer qualquer coisa, em qualquer lugar). É a partir desse “lugar” de onde o sujeito enuncia que se inscrevem as posições discursivas assumidas, constituindo-se, assim, o conceito de Formação Discursiva, explicado como “aquilo que numa formação ideológica dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.)” (PÊCHEUX, 1997a, p. 160 – sem grifos no original). Esse processo marca definitivamente o assujeitamento ideológico a que os indivíduos estão submetidos. Reitera-se, portanto, a compreensão de ideologia como prática histórica – porque ela escapa a qualquer política de fechamento, ou que se deseja de cerramento dos sentidos. Conforme explica Althusser (1985, p. 97), “A existência da ideologia e a interpelação dos indivíduos em sujeitos são uma única e mesma coisa”, isto é, não há sujeito sem ideologia e só há ideologia porque há sujeitos e sociedade. Analisar a categoria de ‘sujeito’ como se apresenta sob o prisma althusseriano (reiterado na tese pecheutiana do assujeitamento) é aceitar “a evidência de que vocês e eu somos sujeitos – e até aí não há problema – [e que] este é um efeito ideológico, o efeito ideológico elementar. Este é, aliás, o efeito característico da ideologia – impor (sem parecer fazê-lo, uma vez que se trata de evidências) as evidências como evidências”, pontua Althusser em ______ [ 7 ]

Aparelhos Ideológicos do Estado (1985, p. 94). As problemáticas que se colocam à questão da(s) evidência(s) são parte significante da discussão em torno do fato de que os saberes de que dispõem os sujeitos não passam de formas discursivas “políticas” assumidas sem que eles saibam disso, de modo que o discurso deixa de ser o que é para a atitude exegética: tesouro inesgotável de onde se pode tirar sempre novas riquezas, e a cada vez imprevisíveis; providência que sempre falou antecipadamente e que faz com que se ouça, quando se sabe escutar, oráculos retrospectivos; ele aparece como um bem – finito, limitado, desejável, útil – que tem suas regras de aparecimento e também suas condições de apropriação e de utilização; um bem que coloca, por conseguinte, desde sua existência (e não simplesmente em suas ‘aplicações práticas’), a questão do poder; um bem que é, por natureza, o objeto de uma luta, e de uma luta política. (FOUCAULT, 1995, p. 139 – sem grifos no original).

Toda prática discursiva pertence a uma cenografia que envolve os sujeitos da enunciação; o conceito é cunhado por Maingueneau (2008, p. 70): Como construída pelo próprio texto: um sermão pode ser enunciado por meio de uma cenografia professoral, profética, amigável etc. A cenografia é a cena de fala que o discurso pressupõe para poder ser enunciado e que, por sua vez, deve validar através da sua própria enunciação: qualquer discurso, por seu próprio desenvolvimento, pretende instituir a situação de enunciação que o torna pertinente. A cenografia não é pois um quadro, um ambiente, como se o discurso ocorresse em um espaço já construído e independente do discurso, mas aquilo que a enunciação instaura progressivamente como seu próprio dispositivo de fala. (sem grifos no original).

O assujeitamento se configura no espaço enunciativo, por meio de formações discursiva que não demarcam um lugar discursivo. Dessa forma, é que se pode afirmar que, “ao dizer que os sujeitos ‘funcionam sozinhos’ porque são sujeitos, isto é, indivíduos interpelados em sujeito pela ideologia, [Pêcheux] fez com que algo novo fosse ouvido” (PÊCHEUX, 1997a, p. 296), o que, sob certa perspectiva, era (é!) algo insuportável. Não existe sentido fora da ideologia; não existem sujeitos fora da ideologia. O que se tem, de certo modo, é que do sujeito é cobrado um “posicionamento”; assim, sujeitos necessitam de um discurso para poderem pensar a si mesmos, ou seja, para terem condições de assumirem o papel que lhes cabe. Em verdade, “o sujeito se constitui pelo ‘esquecimento’ daquilo que o determina” (PÊCHEUX, 1997a, p. 163). Esse ponto cego – o esquecimento – lhe é fugidio, escapa-lhe, sempre; afinal, onde, como e quando se instituíram as perspectivas daquilo que é bom ou mau, certo ou errado, por exemplo, se, ______ [ 8 ]

na verdade (o que é a verdade?), caberia aos sujeitos se compreenderem, não como “eu”, mas como “nós”? Segundo o autor, isso ocorre, dentre outras razões, porque o sujeito se utiliza constantemente (...) do retorno sobre o fio de seu discurso, da antecipação do seu efeito e da consideração da discrepância introduzida nesse discurso pelo discurso de um outro (como próprio outro) para explicitar e se explicitar a si mesmo o que ele diz e ‘aprofundar o que ele pensa’. (1997a, p. 174).

Para a reflexão sobre o modo de funcionamento no discurso do conceito de ‘esquecimento’, retoma-se Pêcheux que, de modo particular, dividiu-o em dois, definindo-os como esquecimento nº 1 e esquecimento nº 2. O primeiro é da ordem do ideológico e o segundo dá ao sujeito a impressão de que o que foi dito só poderia ser dito do modo que foi. Nas palavras do autor, Concordamos em chamar esquecimento nº 2 ao ‘esquecimento’ pelo qual todo sujeito-falante ‘seleciona’ no interior da formação discursiva que o domina, isto é, no sistema de enunciados, formas e seqüências que nela se encontram em relação de paráfrase – um enunciado, forma ou seqüência, e não um outro, que, no entanto, está no campo daquilo que poderia reformulálo na formação discursiva considerada. Por outro lado, apelamos para a noção de ‘sistema inconsciente’ para caracterizar um outro ‘esquecimento’, o esquecimento nº 1, que dá conta do fato de que o sujeito falante não pode, por definição, se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina. Nesse sentido, o esquecimento nº 1 remetia, por analogia com o recalque inconciente, a esse exterior, na medida em que – como vimos – esse exterior determina a formação discursiva em questão. (PÊCHEUX, 1997a, 173).

Partindo desse ponto, quando o sujeito “assume” para si um discurso, ele passa a ser, na perspectiva do assujeitamento, determinado. Parece ser senhor de um dizer desejoso de enunciar sua verdade. Estabelece-se, então, uma primeira relação contraditória nessa união pouco estável: entre aqueles que (re)produzem um discurso estabelecido e o discurso em si, não há mais que práticas ideológicas sendo enunciadas. Para exemplificar, pode-se pensar no caso de quando os pais de um viciado em drogas enunciam “meu filho é um adicto”. Primeiramente, estabelece-se uma relação de paráfrase e sinonímia com “meu filho é um doente/sou pai de um doente”, que movimenta sentidos de censura ao preconceito em relação àqueles pais cujos filhos usam drogas, para que outros sejam postos em cena, a partir das consequências da enunciação do discurso da adicção que reorganiza a formação discursiva dominante, pois ______ [ 9 ]

a enunciação “meu filho é um adicto” leva, consequentemente, a não-ditos que significam: o filho rouba, mas não é ladrão; o filho agride, mas não é um agressor; o filho abandona os estudos ou o emprego, mas não é vagabundo; o filho é maltrapilho, mas não é mendigo. Passa-se de uma formação discursiva em que todo drogado é um mau elemento, para outra formação discursiva, mais “digna”, que passa a atravessar esse sujeito social a partir do discurso da adicção: muda-se o discurso e a ordem dos sentidos é alterada. Isso acontece sem que os sujeitos tomem, efetivamente, consciência das condições exteriores que os determinam, de modo que “o que cai, enquanto significante verbal, no domínio do inconsciente está ‘sempre já’ desligado de uma formação discursiva que lhe fornece seu sentido, a ser perdido no non-sens do significante” (PÊCHEUX, 1997a, p. 176 – grifos do autor), mas que constitui a “impressão” necessária para que o sujeito faça a escolha sobre uma ou outra forma de enunciar. No fim do processo, há, sob a “escolha” de um termo e não de outro, o Esquecimento nº 1, que não deixa rastros ou pistas, mas que simplesmente torna possível, inclusive, a tentativa falha de demonstrar o seu funcionamento: “Esse discurso-outro, enquanto presença virtual na materialidade descritível da sequencia, marca, do interior dessa materialidade, a insistência do outro como lei do espaço social e da memória histórica, logo como o próprio princípio do real sócio-histórico”. (PÊCHEUX, 1997c, p. 55). Aceita-se, desse modo, a complexidade que envolve os atos de enunciação, os quais nunca são neutros, afinal “estamos inscrevendo nessa forma-sujeito a necessária referência do que eu digo àquilo que um outro pode pensar, na medida em que aquilo que eu digo não está fora do campo daquilo que eu estou determinado a não dizer” (PÊCHEUX, 1997a, p. 173). Uma prática enunciativa pertencente a uma formação discursiva, ainda que ilusória e não crítica, constroi identidade para o sujeito e o faz uma voz na sociedade, propiciando o exercício de práticas de autoridade e de autonomia forjadas pela pretensa ilusão inscrita de uma falsa subjetividade. Para a demonstração, retoma-se o quadro abaixo, que ilustra, em partes, como se estabelecem as relações entre os sujeitos e as práticas enunciativas, lembrando os conflitos que se instauram nas negociações discursivas entre os sujeitos. Deve-se considerar como a relação entre os sujeitos é atravessada pelas Formações Imaginárias:

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Como se pode observar, nesse “jogo”, inscreve-se um conjunto de formações imaginárias que leva o sujeito a fazer “escolhas” a partir dos jogos de imagem que se travam entre os interlocutores. Os sujeitos estão submetidos a determinadas condições de produção, conforme Pêcheux (1969, In: GADET E HAK, 1993) expõe no quadro acima, na apresentação da AAD-69. O discurso, então, é tido “como um sistema de relações de substituição, paráfrases, sinonímias e etc., que funcionam entre elementos lingüísticos – ‘significantes’ – em uma formação discursiva dada” (PÊCHEUX, 1997a, p. 161), isto é, num “espaço de reformulação-paráfrase onde se constitui a ilusão necessária de uma ‘intersubjetividade falante’ pela qual cada um sabe de antemão o que o ‘outro’ vai pensar e dizer, e com razão, já que o discurso de cada um reproduz o discurso do outro.” (PÊCHEUX, 1997a, p. 172), conforme as relações de força (inconsciente) travada entre os interlocutores. Os sujeitos assumem uma forma-sujeito, “de tal modo que cada um seja conduzido, sem se dar conta, e tendo a impressão de estar exercendo sua livre vontade, a ocupar o seu lugar” (PÊCHEUX e FUCHS, 1975, In GATED E HAK, 1993, p. 166) numa dada situação: retoma-se, então, a questão de assujeitamento ideológico, um dos problemas levados ao extremo por Pêcheux, Althusser e Lacan. Em relação à incorporação dos estudos de Lacan à Análise de Discurso, deve-se lembrar que ele parte de uma releitura de Freud, revendo, sobretudo, a relação do sujeito com o inconsciente. Para ele, segundo Pêcheux e Fuchs (1975, p. 178), ”todo discurso é ocultação do inconsciente” ou “o inconsciente é o discurso do Outro” (1997a, p. 133). A forma como isso afeta as relações do sujeito com o discurso diz respeito ao fato de que, em todo discurso, seja ______ [ 11 ]

ele de que esfera for, há, de modo mais ou menos explícito, a presença do Outro (com “o” maiúsculo), de modo que haveria sempre a voz do Outro presente, cuja origem é exterior ao sujeito: ele encontraria raízes no discurso dos pais, da igreja, da escola, da sociedade em geral, afetando o sujeito, que, na perspectiva de Freud, é dividido entre consciente e inconsciente (“sujeito clivado”). Pêcheux (1997c, p. 45), em referência a Althusser, cita: Foi a partir de Freud que começamos a suspeitar do que escutar, logo do que falar (e calar) quer dizer: que este ‘quer dizer’ do falar e do escutar descobre, sob a inocência da fala e da escuta, a profundeza determinada de um fundo duplo, o ‘querer dizer’ do discurso do inconsciente.

Para Mussalim (2001, p. 107), na retomada de Freud por Lacan, este aponta que Lacan assume que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, como uma cadeia de significantes latentes que se repete e interfere no discurso efetivo, como se houvesse sempre, sob as palavras, outras palavras, como se o discurso fosse sempre atravessado pelo discurso do Outro, do inconsciente.

Nesse sentido, complementando as remissões teóricas feitas até aqui, pode-se confirmar a tese da “a ascendência dos processos ideológicodiscursivos sobre o sistema da língua e o limite de autonomia, historicamente variável, desse sistema” (PÊCHEUX, 1997a, p. 177). Na perspectiva teórica da Análise de Discurso, entende-se que analisar a língua propicia entendimentos voltados para o sistema linguístico em si, cuja compreensão é necessária, porém o que se deseja observar, além disso, é o funcionamento desses elementos linguísticos sob a luz da ideologia, com a finalidade de buscar o desvelamento da opacidade linguística frente à incompletude da linguagem: “A ordem simbólica, configurada pelo real da língua e pelo real da história, faz com que tudo não possa ser dito e, por outro lado, haja em todo dizer uma parte inacessível ao próprio sujeito”. (ORLANDI, 1996, p. 63). Esta é uma posição reiterada por Pêcheux (1997b, p. 62), em “Ler o arquivo hoje”: A materialidade da sintaxe é realmente o objeto possível de um cálculo – e nesta medida os objetos lingüísticos e discursivos se submetem a algoritmos eventualmente informatizáveis – mas simultaneamente ela escapa daí, na medida em que o deslize, a falha e a ambigüidade são constitutivos da língua, e é por aí que a questão do sentido surge do interior da sintaxe.

Posto em cena o sentido, parece haver a necessidade de crer em identidade, subjetividade e autonomia intelectual. Entende-se que se tratam ______ [ 12 ]

de ilusões necessárias para os indivíduos se sentirem e serem interpelados em sujeitos. Essa ilusão sobre a autonomia discursiva, tão necessária, não apenas os faz incorporar discursos, mas reproduzi-los sem reflexão sobre por que se diz o que se diz da forma como se diz; ou, ainda, por que se é levado a crer em determinados discursos e não em outros, tomando-os como fontes de verdades ou mentiras: não se questiona de onde vem a fidelidade de manutenção de um posicionamento discursivo sobre os mais diversos temas. Orlandi (1996, p. 96) reflete sobre esse processo silencioso e o modo como os sentidos vão sendo estabelecidos. Para a autora, Os aparelhos de poder de nossa sociedade geram a memória coletiva. Dividem os que estão autorizados a ler, a falar e a escrever (os que são intérpretes e autores com obra própria) dos outros, os que fazem os gestos repetidos que impõem aos sujeitos seu apagamento através da instituição. Seja essa instituição a igreja, o Estado, a empresa, o partido, a escola, etc. Em todo discurso podemos encontrar a divisão do trabalho de interpretação, distribuídos pelas diferentes posições dos sujeitos: o padre, o professor, o gerente, o líder sindical, o líder partidário, etc. E há uma enorme produção de textos (falados ou escritos) que trabalham essa divisão: regimentos, constituições, panfletos, livros didáticos, programas partidários, estatutos, etc. Os sentidos não estão soltos, eles são administrados. (sem grifos no original).

É nesse sentido que tomam forma os conceitos de interdiscurso, memória, pré-construído e discurso transverso a que Pêcheux (1997a, p. 162), de modo geral, denomina “’todo complexo com dominante’ das formações discursivas”, no sentido de que “’algo fala’ (ça parle) sempre ‘antes, em outro lugar, e independentemente’”. Para o autor, em relação aos sujeitos, ter-se-ia, correspondentemente, “uma memória discursiva que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados-relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível” (PÊCHEUX, 1999, p. 52 – sem grifos no original). Entre as páginas 162 e 180 da obra Semântica e Discurso, Pêcheux, de modo mais enfático, discute estes conceitos, buscando colocá-los à luz de uma compreensão que ratifica a tese de que o sujeito não fala, mas é falado; de que os saberes que se configuram em certezas e pontos de vistas particulares tão próprios do discurso do sujeito-capitalista – que não se cansa de afirmar “Eu falo” – venham a ruir frente a tais pressupostos: “o que chamamos ‘domínio de pensamento’ (1997ª, pp. 190 e 124) se constitui sócio-históricamente sob a forma de pontos de estabilização que produzem o sujeito, com, simultaneamente, aquilo que lhe é dado a ver, compreender, ______ [ 13 ]

fazer, temer, esperar, etc.” (PÊCHEUX, 1997a, p. 161). E continua: Observaremos que o interdiscurso enquanto discurso transverso atravessa e põe em conexão entre si elementos discursivos constituídos pelo interdiscurso enquanto pré-construído, que fornece, por assim dizer, a matéria prima na qual o sujeito se constitui como ‘sujeito falante’, com a formação discursiva que o assujeita (1997a, p. 167 – grifos do autor).

Eis o que torna possível afirmar que “o não-dito precede e domina a asserção” (PÊCHEUX, 1997a, p. 261), sendo esse não-dito o que efetivamente significa em razão dos apagamentos e silenciamentos que sofre, de modo que, “‘refletindo o que todo mundo sabe, permite calar o que cada um entende sem confessar’” (ORLANDI, 2002, p. 40); daí a constituição dos silêncios que significam. Valendo-se da citação de Milan Kundera por Pêcheux (1997b, p. 60), pode-se afirmar que, “quando se quer liquidar os povos, se começa a lhes roubar a memória” e, na ausência dela, impera o silêncio. Faz-se um parêntese para explicar como, para a Análise de Discurso, os conceitos de “silêncio” e de “memória” significam, pois se entende que há uma inter-relação entre eles no sentido de que o segundo atua no desvelamento do primeiro e por ambos se constituírem em ferramentas relevantes para a análise dos corpora. Sobre a constituição do conceito de silêncio, Orlandi, em As formas do silêncio (2002), demonstra como o sentido se instaura a partir das práticas de silenciamento ou de como o silêncio é constitutivo dos sentidos, não devendo ser interpretado ou confundido com o estudo dos implícitos (como o entende a pragmática), por exemplo, pois o silêncio tem status próprio. Para a autora, “Quando não falamos, não estamos apenas mudos, estamos em silêncio: há o ‘pensamento’, a introspecção, a contemplação” (p. 37), e isso é significativo. Assim, as práticas de análise sobre os não-ditos ganham em significação, em razão do apagamento revelador daquilo que fica ausente no discurso. A autora afirma que o princípio da historicidade é fundamental para tornar o silêncio “visível e interpretável. É a historicidade inscrita no tecido textual que pode ‘devolvê-lo’, torná-lo apreensível, compreensível” (2002, p. 60), já que ele é caracteristicamente o contrário. Nesse momento, interessa ressaltar o caráter fundador do silêncio, o silêncio constitutivo pertence à própria ordem da produção do sentido e preside qualquer produção de linguagem. Representa a política do silêncio como um efeito de discurso que instala o antiimplícito: se diz ‘x’ para não (deixar) dizer ‘y’, este sendo o sentido a se descartar do dito. É o não-dito necessariamente excluído. Por aí se ______ [ 14 ]

apagam os sentidos que se quer evitar, sentidos que poderiam instalar o trabalho significativo de uma ‘outra’ formação discursiva, uma ‘outra’ região de sentidos. O silêncio trabalha assim os limites das formações discursivas, determinando consequentemente os limites do dizer. (ORLANDI, 2002, p. 76).

Pêcheux, em o Papel da Memória (1999), tece uma explicação para os implícitos que evoca a questão da memória, a partir da questão “onde residem esses famosos implícitos, que estão ‘ausentes por sua presença’?”. Para ele, se existe uma prática de silenciamento que impõe sentidos (quer se deseje isso ou não), para a sua captura, não basta observar o fio do discurso, mas se deve verificar que, por meio da materialidade discursiva, colocam-se em cena o objeto de leitura e o sujeito leitor, sendo que ele, na condição de sujeito sóciohistórico e ideológico, portador de uma memória discursiva, promove leituras sobre os sentidos não estabelecidos. Então, para o autor, uma memória não poderia ser concebida como um esfera plana, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos ou de retomadas, de conflitos e regularização... Um espaço de desdobramento, réplicas, polêmicas e contra-discursos. (PÊCHEUX, 1999, p. 56).

Essa seria, pois, uma via para a instauração dos sentidos. Ainda sobre a problemática posta sobre o sentido e o processo de enunciação que ilusoriamente faz o sujeito se ver como dono de seu dizer, Pêcheux apresenta uma reflexão sobre o mesmo como processo metafórico de significação: o sentido é sempre uma palavra, uma expressão ou uma proposição por uma outra palavra, uma outra expressão ou proposição; (...) o sentido existe exclusivamente nas relações de metáfora (realizadas em efeitos de subordinação, paráfrases, formações de sinônimos), das quais certa formação discursiva vem a ser historicamente o lugar mais ou menos provisório: as palavras, expressões, proposições recebem seus sentidos da formação discursiva à qual pertencem. (...) Na verdade, a metáfora, constitutiva do sentido, é sempre determinada pelo interdiscurso, por uma região do interdiscurso. (...) O interdiscurso é fundamentalmente marcado pelo que chamamos a lei de não-conexidade. Nessa medida, pode-se dizer que o que torna possível a metáfora é o caráter local e determinado do que cai no domínio do inconsciente, enquanto lugar do Outro (...) o sentido não se engendra a si próprio, mas ‘se produz no non-sens’. (PÊCHEUX, 1997a, p. 263).

A fim de propiciar uma visão geral do quadro em que se constituiu a teoria, ainda que se peque pelas omissões e superficialidade com que alguns ______ [ 15 ]

dos temas possam ser tratados, retoma-se a discussão proposta por Pêcheux, considerando as problemáticas levantadas sobre as orações restritivas e explicativas. Por meio da análise de enunciados desse tipo, Pêcheux encontrou as bases linguísticas (e epistemológicas) para defender a tese de que as escolhas que o sujeito faz para a organização do discurso estão determinadas, na língua, pelo aparato ideológico que a sobredetermina, o que o levaria a revelar, na materialidade linguística, uma prática discursiva afetada pelo sistema ideológico de que faz parte. Por meio do estudo dos sentidos que se configuram nas orações adjetivas explicativas ou restritivas, ele problematiza os aportes teóricos que as sustentam, sobretudo a perspectiva idealista platônica, isto é, as perspectivas do realismo metafísico e do empirismo lógico, explicando que a compreensão para os sentidos que se configuram naquelas orações são um problema de ordem político-filosófica e não apenas linguística. Segundo o autor (1997b, p. 55), “As aporias de uma semântica puramente intralinguística (ou de uma pragmática insensível às particularidades da língua), e as reflexões sobre a especificidade do arquivo textual, levam a pensar que uma pesquisa multidisciplinar é indispensável para um acesso realmente fecundo”. E, em vias de dar conta dessa fecundidade, o autor se infiltra nas brechas abertas pelo estruturalismo linguístico, explicitando suas falhas e rompendo com esquemas estabelecidos, como se pode observar (a exemplo) na citação abaixo: Saussure deixou aberta uma porta pela qual se infiltraram o formalismo e o subjetivismo; essa porta aberta é a concepção saussuriana de que a ideia só poderia ser, em todo seu alcance, subjetiva, individual. De onde a oposição da subjetividade criadora da fala à objetividade sistemática da língua. (PÊCHEUX, 1997a, p. 60).

Pêcheux tece críticas em relação ao par língua/fala, explicitando que a fala não é o discurso e, citando Paul Henry, afirma que “todo sistema linguístico, enquanto conjunto de estruturas fonológicas, morfológicas e sintáticas, é dotado de uma autonomia relativa que o submete a leis internas, as quais constituem, precisamente, o objeto da Linguística” (PÊCHEUX, 1997a, p. 91). E continua sua reflexão no sentido de demonstrar que “É, pois, sobre a base dessas leis internas que se desenvolvem os processos discursivos, e não enquanto expressão de um puro pensamento, de uma pura atividade cognitiva, etc., que utilizaria ‘acidentalmente’ os sistemas linguísticos” (PÊCHEUX, 1997a, p. 91). O autor contesta os posicionamentos de base estruturalista positivista ______ [ 16 ]

e, entre as páginas 41 e 63 da obra Semântica e Discurso, ao apresentar as perspectivas teórico-filosóficas de língua(gem) que se baseiam num olhar contrário aos pontos teóricos por ele defendidos, descontroi tais estudos, para, enfim, defender seu modo de conceber, não uma nova ciência, mas uma Teoria do Discurso, reafirmando, sempre, em primeiro plano, a soberania do sujeito ideológico sobre a língua. Ora, entre a concepção husserliana da subjetividade como fonte e princípio da unificação das representações e a concepção fregeana do sujeito portador de representações, é bem claro que, historicamente, a primeira tem dominado constantemente e recoberto a segunda, de Kant até nossos dias, a tal ponto que o mito romântico da criação e do autor (o ‘eu’ único que se exprime, etc.) aparece como duplo literário da subjetividade filosófica: a subjetividade se torna ao mesmo tempo o excedente contingente que transborda o conceito e a condição indispensável da expressão desse conceito”. (PÊCHEUX, 1997a, p. 57 – grifos do autor).

É contra essa forma de pensar que o autor se posiciona. Para ele, Trata-se (...), de compreender como aquilo que hoje é tendencialmente a ‘mesma língua’, no sentido lingüístico desse termo, autoriza funcionamentos de ‘vocabulário – sintaxe’ e de ‘raciocínios’ antagonistas; em suma, trata-se de por em movimento a contradição que atravessa a tendência formalistalogicista sob as evidências que constituem a sua fachada. (PÊCHEUX, 1997a, p. 26).

Assim, firma-se o posicionamento analítico de Pêcheux, que não opera apenas sobre as marcas linguísticas, o que não significa que as ignore, sobretudo, porque o seu funcionamento se constitui na materialidade necessária ao analista. Mas é a partir dos estudos marcados pelo olhar teóricofilosófico crítico do autor em relação às práticas estruturalistas de compreensão do discurso que Pêcheux estabelece outra ordem de pensamento, onde não há espaço para a presença de um indivíduo falante, mas para alguém interpelado em sujeito pela ideologia, “de uma maneira tal que o teatro da consciência (eu vejo, eu penso, eu falo, eu te vejo, eu te falo, etc.) é observado dos bastidores, lá de onde se pode captar que se fala do sujeito, que se fala ao sujeito, antes de que o sujeito possa dizer: ‘Eu falo’” .(PÊCHEUX, 1997a, p. 154). Pêcheux, ao contestar as bases epistemológicas que buscam tornar evidente que a linguagem é uma forma de comunicação livre dotada de autodeterminação por parte dos sujeitos, parte de um olhar filosófico para explicar a causa daquilo que falha – a língua, ao que ele denomina duas formas/ pensamentos conceituais que esbarram em problemas que ele busca elucidar, ______ [ 17 ]

que são o empirismo logicista (subordinação ao objetivo do subjetivo) e o realismo metafísico (subordinação ao subjetivo do objetivo). Para o autor, que defende pressupostos de base materialista, “o essencial consiste em colocar a independência do mundo exterior em relação ao sujeito, colocando simultaneamente a dependência do sujeito com respeito ao mundo exterior” (PÊCHEUX, 1997a, p. 76 – grifos do autor), o que faz emergir, segundo o autor, a categoria filosófica do processo sem sujeito, conforme afirma em sua obra. Pêcheux contesta toda forma de obviedade que possa sustentar a relação de sentido entre a coisa e o nome: “Em suma, a evidência diz: as palavras têm um sentido porque têm um sentido, e os sujeitos são sujeitos porque são sujeitos: mas, sob essa evidência, há o absurdo de um círculo pelo qual a gente parece subir aos ares se puxando pelos próprios cabelos” (PÊCHEUX, 1997a, p. 32). O que existe, para a Análise de Discurso, são, em verdade, efeitos de sentido postos em “evidência”, quando entram em cena as condições de produção do discurso, o efeito de assujeitamento sofrido pelo sujeito e a condição de o sujeito enunciar a partir de uma formação discursiva afetada pelas relações de força que silenciosamente estão presentes nos discursos: “Ninguém compreende a proposição há pedaços de bolo da mesma maneira que compreende a proposição há corpos regulares. No primeiro caso, o que se visa não é que haja pedaços de bolo em geral e em absoluto, mas que aqui e agora – com café – haja pedaços de bolo”. A citação que Pêcheux faz de Husserl, a qual ele chama de “essencialmente ocasional”, vem ao encontro do modo de perceber que, em nome de um sentido, o que há, fundamentalmente, são efeitos de. O sujeito não é o portador da palavra, mas é experienciado por ela. Os discursos são uma representação das sociedades: dos seus valores, da sua cultura, da moral adquirida por meio das práticas difundidas pelas religiões, pelo estado, pela escola, pelas relações familiares e etc. (como já dito). Os estudos dos processos discursivos foram, durante muito tempo, negligenciados pelas ciências da linguagem, já que, como se sabe, aquele que falava não era ouvido, porque não interessava a reflexão sobre por que se diz o que se diz da forma como o dito está sendo enunciado, ou de onde vêm os discursos e como eles significam, ou quem são os sujeitos da interação e de que forma as condições de enunciação os afetam. Bakhtin, em Marxismo e Filosofia da Linguagem, problematiza as circunstâncias tensas em torno do signo linguístico, assumindo posição contra as duas correntes teóricas que ele denominou de objetivismo abstrato e de subjetivismo idealista. Aproximam-se nesse momento, esses dois teóricos, Pêcheux e Bakhtin, que, incansavelmente, cada um a seu modo, buscaram ______ [ 18 ]

explicitar o fato de que nada escapa à ideologia. E, de fato: Não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social): só assim um sistema de signos pode constituir-se. A consciência individual não só nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e social. A consciência individual é um fato sócio-ideológico. (BAKHTIN, 1999, p. 35 – grifos do autor).

Assim, “o deslize, a falha e a ambiguidade são constitutivos da língua.” (PÊCHEUX, 1997b, p. 62). E, por mais que ocorram deslizes de sentidos, num primeiro momento, os indivíduos enquanto indivíduos, tomados pela ideologia, são demasiadamente cegos e surdos ao fenômeno polissêmico e polifônico2 dos discursos, porém não mudos, já que se faz necessária a perpetuação de um status quo por meio das repetições incessantes dos saberes legitimados. Deve-se, contudo, criticar a mesmice que não permite outros olhares e se fecha a controvérsias sobre as afirmações que conduzem às práticas monofônicas dos sentidos: “o risco é simplesmente o de um policiamento dos enunciados, de uma normalização asséptica da leitura e do pensamento, e de um apagamento seletivo da memória histórica.” (PÊCHEUX, 1997b, p. 60 – grifos nossos). É considerando tais críticas propiciadas pelos estudos discursivos que se recorre à Análise de Discurso: uma disciplina que interroga os discursos, não permitindo que sua materialidade seja apagada e leve os sujeitos a respostas superficiais, porque, para a teoria, não existe um sentido, mas efeitos de sentido sócio-historicamente construídos. Não existe relação de neutralidade entre os sujeitos e os discursos lidos ou proferidos, porque, entre eles – sujeito e discurso –, silenciosamente, impõem-se relações de poder. A Análise de Discurso implica num aprendizado constante e a compreensão dos dispositivos de análise representa a condição de leitura que leva à superação tanto da ingenuidade quanta da arrogância de ser senhor do sentido, por que, como afirma Orlandi (2000, p. 116), “Compreender, eu diria, é saber que o sentido poderia ser outro”. E pode ser. A teoria leva ao saber que não é por meio de um estudo imanente da língua que se chega a compreender a ordem silenciosa de organização dos discursos: como “uma disciplina de entremeio não positiva, ela não acumula conhecimentos meramente, pois discute seus pressupostos continuamente”. (ORLANDI, 1996, p. 23). Ratificando essa concepção de avaliação sobre a teoria, afirma-se, ainda, que ______ [ 19 ]

A análise de discurso não é um método de interpretação, não atribui nenhum sentido ao texto. O que ela faz é problematizar a relação com o texto, procurando apenas explicitar os processos de significação que nele estão configurados, os mecanismos de produção de sentidos que estão funcionando. Compreender, na perspectiva discursiva, não é, pois, atribuir um sentido, mas conhecer os mecanismos pelos quais se põe em jogo um determinado processo de significação. (ORLANDI, 2000, p. 117).

A Análise de Discurso não é tida como uma ciência (como a Linguística, por exemplo, o é): “E nisso não vai uma avaliação de demérito, antes pelo contrário. Talvez se possa dizer da Análise de Discurso o que Foucault disse do Marxismo e da Psicanálise: que são muito importantes para serem ciências.” (POSSENTI, 2005, p. 399). Trata-se, portanto, de uma disciplina e de uma prática de orientação teórica para a leitura. Surgida na década de 60, na França, ela foi fundada a partir dos estudos de Pêcheux, que teve, por sua vez, ao seu lado, dois importantes nomes: Jean Dubois e Zellig Harris. Dubois esteve lado a lado de Pêcheux no início da disciplina. Sem ignorar as diferenças que marcavam os interesses de ambos, já que se tratava de um linguista e um filósofo, algo os unia no espaço comum entre o marxismo e a política: “Na contramão das ideias dominantes, eles partilham as mesmas evidências sobre a luta de classes, sobre a história, sobre o movimento social.” (MALDIDIER, 1997b, p. 17). Contudo, como mencionado, os olhares divergem. Segundo a autora (1997b, p. 18 – sem grifos no original), Em J. Dubois, [a Análise do Discurso como modo de leitura], deve substituir a subjetividade do leitor unicamente pelo aparelho da ‘gramática’, rompendo com a prática do comentário literário. Remetendo a literatura ao que ele considera como sua miséria metolológica, (...) Em Pêcheux, a questão da leitura, que se tornará posteriormente um tema decisivo, é colocada desde 1969 nos terrenos de uma teoria não subjetiva, num ruptura tanto das práticas de explicação de texto, quanto com os métodos estatísticos em vigor nas ciências humanas.

Por fim, para o linguista, a Análise de Discurso tinha o seu limite pensado na passagem “natural” da palavra ao enunciado; já, para o filósofo, ela “é pensada como ruptura epistemológica com a ideologia que domina nas ciências humanas” (especialmente a psicologia). (MALDIDIER, 1997b, p. 19). Encerra-se, aqui, a relação primeira que marcou o encontro entre Pêcheux e Dubois. Outro nome que esteve presente nos primórdios da Análise de ______ [ 20 ]

Discurso é o de Harris e o seu método denominado harrisiano. Precursor das análises transfrásticas, teve seu estudo apropriado por Pêcheux para a análise das superfícies discursivas. Porém, o método “mostrou-se insuficiente para os propósitos da Análise de Discurso, que buscava reintegrar uma teoria do sujeito e uma teoria da situação.” (MUSSALIM, 2001, p. 116). Ainda que de forma breve, a menção aos dois autores que marcaram as reflexões de Pêcheux ao elaborar o que viria a ser a disciplina de Análise de Discurso de orientação francesa não poderia ser apagada. Por meio dos constantes embates e debates que a marcaram, Pêcheux foi aquele para quem o discurso significou “um verdadeiro nó. Não [sendo] jamais um objeto primeiro ou empírico. [Mas] o lugar teórico em que se intrincam literalmente todas suas grandes questões sobre a língua, a história, o sujeito” (MALDIDIER, 2003, p. 15). Pensada a partir do entremeio teórico de três grandes áreas do conhecimento, a Análise de Discurso se articula por entre seus conhecimentos, segundo texto de Pêcheux e Fuchs publicado em 1975 (In: GADET e HAK, 1993, p. 163-164). São elas: 1. materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas transformações, compreendida aí a teoria das ideologias; 2. da linguística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação ao mesmo tempo; 3. da teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos. Convém explicitar ainda que estas três áreas são, de certo modo, atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade (de natureza psicanalítica).

Inicialmente, a teoria estava centrada na análise de discursos políticos. Hoje, contudo, a análise de discurso que se conhece é orientação para a análise dos mais diversos corpora. Pode-se afirmar que, na sua origem, compreendendo as condições de produção do seu fundador, os corpora políticos efetivamente dominavam o cenário, tornando-se, portanto, o foco das problematizações de Pêcheux. A partir das crises sócio-políticas que afetavam o cenário Francês, eclodem as ideias de Pêcheux, que rompem e desestabilizam com os pensamentos dominantes e que afetam, sobretudo, os saberes cristalizados pelas ciências humanas e sociais. Nesse sentido, pode-se afirmar que a Análise de Discurso desorganiza a relação da lingüística com as ciências humanas e sociais, ao tratar de maneira própria o que é língua, o que é sujeito, o que é sentido. Porque ela mostra que a questão semântica ‘não é apenas mais um nível de análise mas é o ponto nodal em que a lingüística tem a ver com a filosofia e com as ciências sociais’. Porque ela afirma o real da língua mas também o ______ [ 21 ]

real da história, ao mesmo tempo. Porque ela inscreve o sujeito na análise. Porque ela liga materialmente inconsciente e ideologia e trabalha não só com a interpretação mas também com a descrição. (ORLANDI, 2002, p. 33).

Considera-se, a seguir, um recorte da obra A Inquietação do Discurso: (Re)Ler Michel Pêcheux Hoje (2003), de Denise Maldidier. De modo geral, a obra busca apresentar um relato cronologicamente organizado sobre os caminhos percorridos pelo filósofo para chegar à fundação da Análise de Discurso. Selecionaram-se alguns trechos, como o que segue, a fim de dar visibilidade aos pensamentos e percursos seguidos pelo autor: O projeto de Michel Pêcheux nasceu na conjuntura dos anos de 1960, sob o signo da articulação entre a linguística, o materialismo histórico e a psicanálise. Ele, progressivamente, o amadureceu, explicitou, retificou. Seu percurso encontra em cheio a virada da conjuntura teórica que se avoluma na França a partir de 1975. Crítica da teoria e das coerências globalizantes, desestabilização das positividades, de um lado. Retorno do sujeito, derivas na direção do vivido e do indivíduo, de outro. Deslizamento da política para o espetáculo! Era a grande quebra. Deixávamos o tempo da ‘luta de classes da teoria’ para entrar no ‘debate’. Neste novo contexto, Michel Pêcheux tentou, até o limite do possível, re-pensar tudo o que o discurso, enquanto conceito ligado a um dispositivo, designava para ele. (p. 16)

Discorrer, portanto, sobre as bases de fundamento da Análise de Discurso significa retomar os percursos teóricos de Pêcheux e, posteriormente, daqueles que, após sua morte, dando continuidade a seus estudos, buscaram aprofundar as pesquisas realizadas nos primórdios da teoria, muitas vezes, provocando novas fissuras, aprofundando conceitos e/ou dando a eles novas roupagens. Desse modo, ainda que o exposto nesse texto refaça caminhos já trilhados, buscou-se refazer o percurso. De acordo com Maldidier (2003), Pêcheux “não produziu nem síntese, nem sistema, mas deslocamentos e questionamentos” (p. 15) e aquilo que hoje se conhece por dispositivos analíticos da Análise de Discurso faz parte de um processo de construção e des-contrução por parte de “um filósofo que se tornou linguista, sem deixar de ser filósofo” (p. 97). Nas palavras da autora,



Era sem dúvida preciso que a teoria fosse construída, para que sua desconstrução produzisse iluminações, questionamentos. O percurso de Michel Pêcheux deslocou alguma coisa. De uma ponta a outra, o que ele teorizou sob o nome de ‘discurso’ é o apelo de algumas ideias tão simples quanto insuportáveis: o sujeito não é a fonte do sentido; o sentido se forma na história através do trabalho da memória, a incessante retomada do já-dito; o sentido pode ser cercado, ele escapa sempre (p. 96).

No intuito de compreender relativamente os percursos de Michel ______ [ 22 ]

Pêcheux, tomar-se-á o caminho metodológico que apresenta a teoria a partir das suas três fases, de onde os conceitos citados são retomados. As fases são cronologicamente denominadas como AAD-69 (Análise Automática do Discurso - AD-1), AD-75 e AD-83. Deve-se ressaltar que, no texto Análise de Discurso: Três Épocas (1983), publicado pelo próprio Pêcheux (In: GADET e HAK, 1993, p. 311-318), o autor revisita seus aportes teóricos e apresenta, de forma sucinta, o que se pode considerar pontos que caracterizam cada uma das três fases e aquilo que as marca de forma expressiva. Recorrendo, portanto, ao texto, tem-se, na AD-1 (p. 312-313), o momento conhecido como maquinaria discursiva, devido à “autonomia” com que as análises se dariam sobre um corpus “fechado” a partir de “condições de produção estáveis e homogêneas” e que suporiam “a neutralidade e a independência discursiva da sintaxe”, com a finalidade de “construir sítios de identidade parafrásticas interseqüenciais”. Nas palavras de Pêcheux (1993), No horizonte, a ideia (que permanece em estado de ideia!) de uma álgebra discursiva, que permita construir formalmente – a partir de um conjunto de argumentos, predicados operadores de construção e de transformação de proposições – a estrutura geradora do processo associado ao corpus. (...) AD-1 é um procedimento por etapa, com ordem fixa, restrita teórica e metodologicamente a um começo e um fim predeterminados, e trabalhando num espaço em que as ‘máquinas’ discursivas constituem unidades justapostas. (p. 313 - sem grifos no original).

O que ocorre é a defesa de um movimento analítico que ignora a heterogeneidade e a polifonia por que os discursos são afetados pelo exterior, ainda que sejam oriundos de sítios discursivos circunscritos a uma mesma cadeia de significantes e pertencentes a um mesmo campo discursivo. Essa concepção de organização dos discursos tem em vista um sujeito que, no caso, é o sujeito assujeitado da Análise de Discurso, aquele levado a “pensar que é livre, quando de fato está inserido numa ideologia, numa instituição da qual somos apenas porta-vozes. Você não fala, é um discurso anterior que fala através de você”, resume Possenti (1990). Esse assujeitamento a uma única forma de pensar do sujeito inserido numa dada cadeia discursiva é levado ao extremo na fase da maquinaria. Contudo, nesse sentido, também, a autocrítica se instaura no âmago das discussões: se se partia da ideia de que haveria um discurso que definia (caracterizaria) os discursos em geral (o discurso religioso, o discurso médicocientífico, o discurso jurídico e etc.), cuja explicitação daria conta de apresentar efetivamente como um dado discurso era organizado (por exemplo, como se o modo de pensar dos sujeitos pertencentes a um partido político de ______ [ 23 ]

esquerda fosse sustentado por um discurso, cujo espaço de “origem” e “circulação” estivesse restrito aos sujeitos daquela condição discursiva), isso é reconsiderado em razão do conceito de Formação Discursiva apropriado de Foucault e da presença do conceito de Interdiscurso, que passam a marcar a segunda fase da Análise de Discurso. Nesse momento, a teoria passa a trabalhar com a ideia de “relações entre as ‘máquinas’ discursivas”, em que “uma FD não é um espaço estrutural fechado, pois é, constitutivamente, ‘invadida’ por elementos que vêm de outro lugar (isto é, de outra FD) que se repetem nela, fornecendo-lhe suas evidências discursivas fundamentais.” (PÊCHEUX, 1993, p. 314). A ideia de dispersão, apresentada por Foucault, “estoura” definitivamente com a ideia de maquinaria, afetando, sobretudo, a “construção dos corpora discursivos, que permitem trabalhar sistematicamente suas influências internas desiguais, ultrapassando o nível da justaposição contrastada”. (PÊCHEUX, 1993, p. 315). Destaca-se que, se o conceito de formação discursiva representou um avanço na teoria, algo se mantinha: se a AD-1 partia do princípio de que uma FD estaria na “origem” do discurso em análise e, por meio da prática analítica, chegar-se-ia à sua qualificação, no segundo momento, a ideia de fechamento se mantém em razão da ideia de confronto. Ter-se-iam formações discursivas em conflito como se se tivesse FDxFD que gerariam, na análise de um discurso, pelo menos, duas formas de “pensar” uma questão (o confronto entre os partidos de direta e de esquerda, por exemplo), mantendo-se a concepção de que o sujeito “continua sendo (...) puro efeito de assujeitamento” (PÊCHEUX, 1993, p. 314) aos Aparelhos Ideológicos do Estado (conforme Althusser). Como citado, a evidência da noção de Interdiscurso, nessa segunda fase, fez “designar ‘o exterior específico’ de uma FD enquanto este irrompe nesta FD para constituí-la em lugar de evidência discursiva, submetida à lei da repetição fechada [conforme o proposto na AD-(1)]”. (PÊCHEUX, 1993, p. 314). Compreender o assujeitamento, que é o ponto nevrálgico da teoria que supera o sujeito da enunciação e a sua autônoma subjetividade, passa a ser uma prática para a Análise de Discurso que vê o sujeito como atravessado pelo interdiscurso e por ideologias que determinam o dizer. O conceito de interdiscurso, assim como o de memória, préconstruído e discurso transverso são fundamentais para as reflexões que sustentam as análises, porque eles são pano de fundo para os momentos de análise, respaldando-as. É, contudo, na AD-3, que se desmonta definitivamente as maquinarias presentes na AD-2, assim como na AD-1. Pêcheux (1993, p. 315-316) firma ______ [ 24 ]

o propósito do “primado teórico do outro sobre o mesmo” e assegura as evidências tanto da “desestabilização das garantias sócio-históricas”, quanto da “desestabilização discursiva do ‘corpo’ das regras sintáticas”. Outro ponto importante dessa “revisão” teórica pela qual passa a Análise de Discurso diz respeito ao “estudo da construção dos objetos discursivos e dos acontecimentos, e também dos ‘pontos de vista’ e ‘lugares enunciativos no fio intradiscursivo’.” (PÊCHEUX, 1993, p. 316). Entra em cena, também, o conceito de heterogeneidade mostrada e constitutiva de Authier-Revuz (apud MAINGUENEAU, 1997, pp. 75 a 110), isto é, as heterogeneidades enunciativas que marcam, segundo Pêcheux (1993, p. 316), as “formas lingüístico-discursivas do discurso-outro”. Nessa ruptura, des-configura-se o sujeito central do ego-eu, tendo-se a incursão pela psicanálise, que propicia a problematização, por parte de Pêcheux, sobretudo da sistência de um ‘além’ interdiscursivo que vem, aquém de todo autocontrole funcional do ‘ego-eu’, enunciador estratégico que coloca em cena ‘sua’ seqüência, estruturar esta encenação (nos pontos de identidade nos quais o ‘ego-eu’ se instala) ao mesmo tempo em que a desestabiliza (nos pontos de deriva em que o sujeito passa no outro, onde o controle estratégico de seu discurso lhe escapa (PÊCHEUX, 1993, p. 316-317).

Ainda que de forma sucinta, incompleta e lacunar (como não poderia deixar de ser), buscou-se construir um percurso da Análise de Discurso. Sobre as reflexões de Pêcheux, talvez o autor não imaginasse a repercussão que os seus estudos tomariam, no Brasil, sobretudo, encabeçados por pesquisadores que despontam no cenário nacional e internacional, cuja menção de um e outro nome seria inapropriado, frente aos importantes trabalhos produzidos na área. Estes trabalhos, oscilando entre as vertentes mais ortodoxas da Análise de Discurso e as novas perspectivas abertas, têm revelado o quanto a teoria do discurso fundada por Pêcheux tem sido fecunda. Por meio dela, é possível olhar para os discursos que circulam na sociedade de modo menos ingênuo, mais crítico, mais incomodado, mais provocado: tanto pelo que os discursos dizem, mas, acima de tudo, pelo que não dizem, de modo que cabe ao analista buscar, dentre as possibilidades abertas pelo dizer, também aquilo que não é dito, mas que significa, que faz sentido e que constrói novas relações de significantes não pensados, talvez, até mesmo, não desejados.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado: notas sobre os aparelhos ideológicos de estado. (Trad. Valter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro). 7.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira; colaboração de Lúcia T. Wisnik e Carlos Henrique D. chagas Cruz. 9 ed. São Paulo: Hucitec, 1999. DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Trad. de Eduardo Guimarães. São Paulo: Pontes, 1987. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do Saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. GADET, Françoise & HAK, Tony. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. (Trad. Bethânia S. Mariani et al.). 2.ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1993. MAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA, Ana Raquel e SALGADO, Luciana (orgs.). Ethos Discursivo. São Paulo: Contexto, 2008. _____. Novas Tendências em Análise do discurso. 3 ed. São Paulo: Pontes, 1997. MALDIDIER, Denise. A Inquietação do Discurso: (Re)ler Michel Pêcheux Hoje. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. São Paulo: Pontes, 2003. _____. Elementos para uma história da Análise do discurso na França. In: ORLANDI, Eni Pulccinelli (Org.). Gestos de Leitura: da História no Discurso. 2 ed. Editora da Unicamp, 1997. MUSSALIM, Fernanda. Análise do Discurso. In: MUSSALIM, Fernanda e BENTES, Anna Christina. Introdução à Lingüística: domínios e fronteiras, v. 2. São Paulo: Cortez, 2001. ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 3 ed. São Paulo: Pontes, 2001a. ______ [ 26 ]

_____. Discurso e Texto: formação e circulação dos sentidos. São Paulo: Pontes, 2001b. _____. Discurso e Leitura. 5 ed. São Paulo: Cortes; São Paulo: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2000. _____. Interpretação; autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Rio de Janeiro: Vozes, 1996. _____. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 5 ed. São Paulo: Editora da UNICAMP, 2002. (Coleção Repertórios). PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (AAD-69). IN: GADET, Françoise e HAK, Tony. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Trad. Bethânia Mariani (et. al.). São Paulo: Ed. UNICAMP, 1993. _____. Papel da Memória. IN: ACHARD, Pierre (et. al.). Papel da Memória. São Paulo: Pontes, 1999. _____. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi [et. al.]. 3 ed. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1997a. _____. Ler o arquivo hoje. IN: ORLANDI, Eni Pulcinelli (org.) [et al]. Gestos de leitura: da história no discurso. Trad. Bethania Mariani [et al]. 2 ed. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1997b. _____. O Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi. 2 ed. São Paulo: Pontes, 1997c. _____. e FUCHS, Catherine. A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas (1975). IN: GADET, Françoise e HAK, Tony. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Trad. Bethânia Mariani (et. al.). São Paulo: Ed. UNICAMP, 1993. POSSENTI, Sírio. Teoria do Discurso: um caso de múltiplas rupturas. IN: MUSSALIM, Fernanda e BENTES, Anna Christina (orgs.). Introdução à Linguística: fundamentos epistemológicos, v. 3. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2005.

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NOTAS 1) Esse texto é parte da fundamentação teórica pertencente ao trabalho de doutoramento, intitulado “Entre as linhas do Discurso de Conforto Espiritual: uma análise da Literatura Nar-Anon”, orientado pela professora Drª. Mariângela Peccioli Galli Joanilho e defendido em 23/03/2012, pelo programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina, UEL, com apoio da Fundação Araucária/SETI, por meio da concessão de Bolsa para Capacitação Docente. 2) Aqui, o conceito de polifonia está sendo tomado da perspectiva de Ducrot (1987). Para o autor, significa a presença, na enunciação, de uma “superposição de diversas vozes” (p. 172) e, mais, significa “a existência, para certos enunciados, de uma pluralidade de responsáveis, dados como distintos e irredutíveis” (p. 182).

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CAPÍTULO

2

A OPACIDADE DA LÍNGUA, DA HISTÓRIA E DO SUJEITO:

UMA REFLEXÃO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO

Franciele Luzia de Oliveira Orsatto

É consenso afirmar que, ao longo dos anos, o papel da mulher na sociedade vem sofrendo profundas transformações. Principalmente a partir da década de 1960, com a organização dos movimentos feministas, ocorreram mudanças quanto à posição da mulher no cenário político, no mercado de trabalho e em relação à sexualidade. Assim, pode-se pensar, a princípio, que os discursos sobre a mulher também mudaram: se agora a mulher ocupa espaços sociais antes masculinos, infere-se que alguns discursos “antigos” tenham deixado de fazer sentido. Porém, tal conclusão é precipitada, porque a relação que se estabelece entre a realidade e o simbólico não é unidirecional, automática ou literal. A Análise de Discurso, disciplina inaugurada por Pêcheux e originada a partir da confluência entre o Materialismo Histórico, a Linguística e a Psicanálise, prevê instrumentos teóricos para pensar questões como essa. Ao analisar o discurso a partir de sua emergência no interior formações discursivas (doravante, FDs), que materializam formações ideológicas (doravante, FIs), o simbólico é pensado a partir de sua relação inescapável com as condições de produção e o extralinguístico. Assim, é possível observar a tensão que ocorre, no plano discursivo, entre paráfrase e polissemia, ou seja, entre o mesmo e o diferente. Se o papel social da mulher mudou, como se supõe (numa proporção talvez maior do que a realidade demonstra), até que ponto também mudaram os discursos? O que é dito sobre a mulher na esfera midiática, ao mesmo tempo em que, de certa forma, reflete a maneira como a sociedade vê a mulher, também contribui para manter ou modificar essa imagem. O processo de representação do feminino, como qualquer processo discursivo, deve ser compreendido a partir da opacidade, reflexo de um conjunto de elementos opacos: língua, história e sujeito. Isso porque lida com uma língua que não é transparente, com uma história que nos atravessa e sobre a qual não temos controle e com um sujeito que, “iludido” pelo esquecimento, enuncia algo ______ [ 30 ]

que não lhe pertence e do qual não é a origem. Este estudo tem por objetivo discutir a opacidade da língua, da história e do sujeito, pensando em como essa opacidade caracteriza os discursos que circulam no interior da esfera midiática. Em um primeiro momento, propõese uma discussão teórica sobre a AD, focando essas questões, com base em autores como Pêcheux (1997), Orlandi (2001) e Possenti (2005). Em seguida, são analisados alguns enunciados da revista Nova, uma das publicações que compõe o corpus de pesquisa do doutorado em Letras, em desenvolvimento. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS Para a AD, a língua não pode ser vista como um sistema autônomo que os falantes mobilizam para traduzir o que pensam e o que sentem. A ideia de tradução de um pensamento pré-concebido é inaceitável para a teoria, assim como a existência de uma estabilidade inabalável do sistema linguístico. Rompendo com o corte saussureano da língua versus fala, a língua é considerada, pela AD, como parcialmente autônoma. Isso porque, ao mesmo tempo em que ela tem suas regras próprias de fonologia, morfologia e sintaxe, elas são colocadas em funcionamento segundo um processo discursivo, numa certa conjuntura (POSSENTI, 2005). A língua interessa à AD, portanto, quando considerado o seu funcionamento, ou seja, à medida que instaura relações discursivas entre sujeitos. Segundo Orlandi (2001), a língua é condição de possibilidade do discurso. É ela que permite que textos sejam materializados e, por sua vez, materializem discursos – e é nesse processo que efeitos de sentido são construídos. Deve-se destacar que não há a construção de um sentido, mas de efeitos de sentido. Em outras palavras, não é possível atravessar o texto ou a suposta transparência da língua para descobrir o sentido que está do outro lado; a língua é marcada pela opacidade e dá margem ao equívoco, ao deslizamento e à polissemia. Diferentemente da análise de conteúdo, a AD não trabalha com o levantamento de informação, mas se preocupa com o funcionamento discursivo. E, diferentemente da Semântica Formal – duramente criticada por Pêcheux (1997) –, a AD não se preocupa com a dimensão estrutural da língua com uma intensidade que seja capaz de esvaziá-la de sentido. Ao contrário: a AD concebe o que é dito a partir de seu caráter inseparável da sociedade que utiliza a língua e a partir da qual é possível pensar na gênese ______ [ 31 ]

dos enunciados. Em outras palavras, forma e conteúdo não se separam, pois a língua é estrutura e acontecimento. Quando se fala em acontecimento, fala-se do ponto em que um enunciado instaura um novo processo discursivo, inaugurando uma nova forma de dizer (FERREIRA, 2001). Porém, isso não ocorre de maneira controlada e consciente. A fronteira entre o novo e o repetível é sempre instável e sem demarcações claras. A formulação do novo não é acessível ao sujeito enquanto indivíduo, mesmo que tenha a ilusão de que tem o poder de criar. Trata-se de um processo inscrito na história, que não é linear e sobre o qual o sujeito não tem controle. O que o sujeito enuncia não se origina nele, por mais que ele tenha a impressão de ser a fonte do sentido (processo denominado “esquecimento ideológico”). O que dizemos não nos pertence, pois nosso enunciado apenas ecoa sentidos já-lá. Somos meros porta-vozes do que é colocado em cena pela memória discursiva, ou seja, de vozes que falam por si. Assim, não há um sentido correspondente a uma representação literal da realidade que “atravessa” um indivíduo transparente. Eis a opacidade do sujeito: os sentidos são mobilizados por sujeitos inscritos em posições sociais, afetados pela ideologia, pela história e pelo inconsciente. Não há discurso, nem língua, nem sujeitos “neutros”. O discurso carrega história e ideologia. A língua revela como a comunidade que a utiliza se relaciona com o mundo real e a maneira como ela o interpreta. O sujeito diz o que diz de acordo com as posições-sujeito que ocupa, no interior das FDs que determinam o que dizer e no interior de FIs que determinam o que pensar. Em outras palavras, o sujeito só é sujeito (em oposição ao indivíduo biológico), porque a ideologia o interpela e porque o assujeitamento o caracteriza. Outra suposta transparência que a AD põe em causa refere-se à história. Para Orlandi (1994), a história não deve ser pensada como sucessão de fatos com sentidos dados; sua materialidade não pode ser apreendida em si, mas no discurso: “Não estamos pensando a história como evolução ou cronologia, mas como filiação; não são as datas que interessam, mas os modos como os sentidos são produzidos e circulam” (ORLANDI, 1994, p. 58). Tanto a história quanto a ciência não são caracterizadas pela objetividade, mas sofrem um processo de naturalização realizado pela ideologia. A evidência da história e do(s) sentido(s), construído(s) a partir de determinações históricas, é uma produção ideológica. A opacidade da história, portanto, também deve ser considerada, quando se propõe a analisar o discurso, em especial, o da mídia, porque é a mídia, “em grande medida, ______ [ 32 ]

que formata a historicidade que nos atravessa e nos constitui, modelando a identidade histórica que nos liga ao passado e ao presente” (GREGOLIN, 2008, p. 16). A MULHER EM REVISTA: REALIDADE, FICÇÃO E CONTRADIÇÃO

Considerando as discussões teóricas realizadas até aqui, propõe-se uma análise de enunciados da revista Nova à luz da AD francesa. Pode-se dizer que a publicação é um veículo que circula no interior da esfera midiática, em uma zona fronteiriça do jornalismo, cujo foco oscila entre informação e entretenimento. Ao lidar com o simbólico e mobilizar vozes advindas de diferentes FDs, a revista vai além da exposição de conteúdo informativo, colocando-se, muitas vezes, no papel de “conselheira”, oferecendo direcionamentos sobre como agir e, consequentemente, construindo uma ideia do que é ser homem, ser mulher, ser negro, ser professor etc. Constroemse, a partir do que ora se mostra explicitamente, ora se oculta nas entrelinhas, representações dos papéis sociais em questão. A revista Nova é direcionada ao público feminino solteiro e jovem, com idade entre 20 e 35 anos. Ela é uma versão nacional da Cosmopolitan, a revista feminina mais vendida no mundo, e trata de assuntos como moda, sexo, relacionamentos, carreira e celebridades. Se comparada às revistas femininas que circulavam anteriormente ao seu lançamento, Nova chama a atenção por não ser pensada para a mulher financeiramente dependente do marido, que cuida da casa e dos filhos: A revista Nova surge no Brasil, objetivando conquistar um público de mulheres brasileiras que se diversificava cada vez mais: mulheres que se distinguiam por diferentes estilos de vida; mulheres que tinham novas expectativas de vida, em decorrência da liberação sexual; mulheres casadas, mas principalmente não casadas (solteiras e descasadas), cujas preocupações não eram mais o lar, mas a sexualidade e a independência financeira (SILVA, 2003, p. 183).

A revista, portanto, seria direcionada a uma “nova mulher brasileira”, que surgiu após a emergência do feminismo, da descoberta da pílula anticoncepcional, da inserção da mulher no mercado de trabalho e da liberação sexual. O discurso da revista permite notar novas preocupações, ______ [ 33 ]

alheias ao ambiente doméstico, como se nota nas seguintes chamadas de capa, para citar dois exemplos: “Qual é o seu tipo sexual? Faça o teste e descubra” (NOVA, ed. 453, jun. 2011); “De demitida a promovida: saia da lista negra do seu chefe para a lista vip do mercado” (NOVA, ed. 452, mai. 2011). Porém, a abordagem sobre temas antes ignorados e/ou o tratamento mais ousado para falar sobre esses assuntos realmente reflete a emergência de uma “nova mulher”, independente e equiparada ao homem? Até que ponto é possível identificar que se trata de uma “nova mulher”? Por trás de uma aparente ruptura, seria possível identificar pontos que reforçam a doxa dominante sobre a imagem do feminino? Estes são alguns questionamentos que surgem a partir desse objeto de estudo. No presente texto, focaliza-se a edição 466 da revista, de julho de 2012. A capa traz a imagem de uma mulher bem maquiada, de cabelos longos e esvoaçantes. Trata-se de uma atriz de novela em evidência no momento, que é identificada por meio de uma declaração que acompanha a foto: “Débora Nascimento: ‘Hoje sei por que sou desejada’”. O enquadramento da foto valoriza o corpo feminino como objeto de desejo, deixando apenas as pernas fora do quadro. A atriz veste apenas a parte de baixo de um biquíni e uma jaqueta aberta, deixando os seios quase totalmente à mostra. A foto encobre, parcialmente, o nome da revista – o que não compromete a sua identificação pela leitora, já que se mantém uma identidade visual: a fonte utilizada em toda a capa e a disposição do título na página são sempre as mesmas. A revista segue esta fórmula há várias edições: traz uma mulher de destaque no momento, geralmente uma atriz, valorizando as formas do corpo (magro e bem torneado) e a sensualidade. Acompanhando a foto, apresenta uma declaração da mulher fotografada, com o objetivo de instigar a leitora a conferir, nas páginas internas, a entrevista realizada com ela. As declarações geralmente tratam de beleza, amor, sexo e sucesso pessoal e profissional. Na edição analisada, por exemplo, o destaque é dado à questão da sexualidade. Juntamente com a foto, o texto aciona a imagem de uma mulher que toma atitudes para ser desejada: cuida do corpo, da roupa, da pose. Assim, a revista não só atende às leitoras que também querem ser desejadas – assim como a atriz, que compartilhará seu “segredo do sucesso” – mas determina, via discurso, que é importante ser desejada. Para Foucault (2000), o discurso é uma violência que fazemos às coisas. Em face disso, vê-se que a relação entre o discurso e as condições externas de possibilidade, a partir das quais ele se origina, não é especular. O discurso não apenas reproduz, mas tem o poder de dizer como o mundo material deve ser. A importância da beleza também é reforçada em outras chamadas ______ [ 34 ]

de capa da edição. Na tabela abaixo, são listadas todas as chamadas da edição analisada:

Como se nota na tabela, confrontada com a fotografia da capa, a beleza tem um lugar de destaque (chamadas 6 e 7). Isso não é notado apenas nos temas das matérias, mas também na publicidade presente no interior da revista; há anúncios de maquiagem, xampu, meias e pílulas para combater a celulite, suplementos vitamínicos para “você ficar linda em todos os ângulos”, lingerie, produtos relacionados à saúde (incluindo uma balança) etc. Poucos anúncios não se enquadram na linha de cuidados com o corpo e com a beleza, como o de uma emissora de rádio, de um aromatizador de ambientes e de perfume masculino (sugestão de presente para o Dia do Homem, recentemente instituído). A chamada de capa 6 remete à ideia almejada por muitas mulheres de alcançar a beleza (algo que parece se impor) sem esforço, com a ajuda da medicina. Já a chamada 7 se refere à ideia de alcançar a beleza com praticidade, conciliando essa busca com outras tarefas da mulher. Diante disso, pode-se pensar: por que a mulher precisa fazer esse esforço para ficar bonita, ou melhor, linda e poderosa? Entre as tarefas que precisam ser conciliadas, ao lado do cuidado com a carreira profissional, estariam, talvez, ______ [ 35 ]

cobranças antigas a que a mulher precisa atender, como cuidar dos serviços domésticos, do marido/namorado – ou da busca por esse par, dos serviços domésticos e dos filhos? Parece se apresentar a necessidade de construção de uma supermulher, apresentada como projeção ideal, mas apenas ficcional. Em contraponto a essas expectativas, a mulher real não consegue atender a tudo o que lhe é cobrado – o que gera frustação. Essa frustação está, inclusive, presente na revista. Na seção “Dr. Gaudencio Explica”, o psiquiatra Paulo Gaudencio responde a dúvidas das leitoras. Na edição em análise, as duas cartas respondidas pelo médico exemplificam essa questão: Estou cansada dos papéis que desempenho: dar atenção ao meu namorado, à minha mãe, ao meu trabalho, aos meus estudos... Estou sufocada. Não saio com amigas, não compro roupas para mim, não me mimo. Dou muita atenção ao que os outros estão pensando. Me preocupo demais se vou agradar os outros e chego até a me endividar comprando roupas caras para impressionar. Mudo de opinião para satisfazer quem está por perto. Não sei quem sou e me sinto perdida.

Por meio das cartas das leitoras, emerge um discurso que contradiz o que é sustentado pela FD da revista. Enquanto a FD assumida pela publicação sustenta que é possível ser uma mulher linda e poderosa, que atende a todas as expectativas, a FD das leitoras demonstra que isso não é possível. Porém, apesar da contradição, não há uma relação conflituosa entre essas duas FDs. Isso porque o que elas compartilham tem mais força do que os pontos em que elas se diferenciam: ambas as FDs veem a mulher linda e poderosa como o que deve ser buscado. Há, portanto, um interdiscurso que atravessa essas duas FDs, que está presente “no próprio coração do intradiscurso” (MAINGUENEAU, 2007, p. 38). Essa relação entre as FDs e sua exterioridade é sempre dissimulada, como alerta Pêcheux (1997): o próprio de toda formação discursiva é dissimular, na transparência do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso, que determina essa formação discursiva como tal, objetividade material essa que reside no fato de que ‘algo fala’ sempre ‘antes, em outro lugar e independentemente’ (PÊCHEUX, 1997, p. 162).

Outro ponto que deve ser observado, ainda em relação à chamada 7, refere-se à união dos termos linda e poderosa, realizada por meio da conjunção aditiva “e”. Estruturalmente, a conjunção apenas soma duas qualidades almejadas pela mulher; por outro lado, no plano discursivo, pode-se dizer que não há simplesmente uma adição. Um deslizamento de sentidos também ______ [ 36 ]

é possível, permitindo que haja também outra relação entre os dois termos: a de que, para ser uma mulher poderosa, é preciso ser linda. Por meio de uma relação entre a chamada e a capa da revista, pode-se pensar que ser uma mulher poderosa equivale a ser desejada sexualmente. Observa-se, pois, no interior destas FDs, a construção de processos metafóricos e de sinonímia: são usadas palavras diferentes, mas que convergem para os mesmos sentidos, que se repetem e se reforçam. Além da beleza, outro assunto tratado pela revista são os relacionamentos amorosos. Observa-se uma preocupação com o que é considerado o “sucesso” da mulher nesse campo. As chamadas 1, 3 e 5 são voltadas para isso. A chamada 1, “26 atitudes para você conquistar o namorado dos seus sonhos”, destaca a busca da mulher por um companheiro – e, assim como a busca pela beleza, também parece se impor como necessária. Mais uma vez, a revista dita comportamentos. Na matéria correspondente à chamada, são dados conselhos: “nada de passo de cachorra na pista” e “não fale de filhos e casamento”. Como mostra a capa, a mulher deve ser sensual (mas não pode ser cachorra), deve buscar um companheiro (mas não pode falar de casamento). Curiosamente, também nesta edição, há o anúncio do “Anuário Noivas” da editora Caras, que traz dicas de vestidos, alianças, buquês, decoração etc. Assim, pode-se pensar que a instituição tradicional do casamento ainda é almejada pela mulher. Porém, para realizar seu “sonho”, ela deve fingir que é poderosa e independente e que não pensa nisso. Na chamada 3, “Como transformar seu relacionamento em um case de sucesso”, demonstra-se, mais uma vez, a preocupação com os relacionamentos amorosos. A chamada é direcionada para a mulher que está comprometida e, infere-se, que não quer perder seu parceiro. Ao utilizar o termo “case” em vez de outros que poderiam estar presentes (como “exemplo” ou, mesmo, “caso”), aciona-se uma referência ao mundo dos negócios, pois case de sucesso é, geralmente, uma história de uma empresa ou profissional bem-sucedido e é contado com o objetivo de mostrar caminhos que levaram a atingir resultados positivos. Nota-se que há uma tentativa de mostrar a integração da mulher ao mundo dos negócios: não se fala com uma mulher que não domina esses termos e que está fora do mercado de trabalho. Porém, ao mesmo tempo em que isso acontece, percebe-se que a referência a esse universo não ocorre devido a questões profissionais; tanto é que não há, nessa capa, nenhuma chamada que aborde essas questões. Apesar da pressuposição de que a mulher desempenha um papel profissional, o destaque é dado à sua relação com o homem – ainda que de outra forma, se comparado a épocas anteriores, quando a mulher não fazia parte desse espaço social. ______ [ 37 ]

A chamada 5, “Você é exigente demais com os homens? Cuidado: isso pode afastar aqueeele gato”, demonstra uma preocupação em encontrar um parceiro. Devido à presença dessas três chamadas na capa, pode-se inferir que ter um relacionamento é algo importante para a mulher: provavelmente, mais do que o sucesso em outras questões, como a atuação profissional. Se já é comprometida, a mulher busca estratégias para manter o parceiro; se ainda não é, quer ser. Para isso, talvez ela precise diminuir suas expectativas em relação ao sexo oposto ou ficará sozinha. Em outras palavras, determinadas exigências não devem ser feitas para garantir que um homem esteja ao lado – um preço que a mulher precisa pagar. O assunto de maior destaque na capa da Nova em análise é a sexualidade. A chamada 2, que apresenta o termo “Sexo lacrado” em fonte maior e de cor diferente do restante do texto, parece dialogar com a fotografia (uma mulher que quer ser desejada sexualmente). Para ler a seção “sexo lacrado”, é preciso destacar uma espécie de lacre que “protege” o conteúdo e traz o seguinte enunciado: “Voucher do prazer: válido por tempo indeterminado”. Se, em tempos anteriores, só o homem poderia falar do assunto – o que demonstrava uma visão machista e conservadora –, atualmente a Nova se propõe a falar de sexo com a mulher, a quem também está autorizado o direito de buscar o prazer sexual. O prazer da mulher é reforçado nas chamadas: fala-se em “spa erótico para você (mulher leitora) relaxar e gozar”; em “barmen pelados” que a agradariam, em “balada liberal” que pode ser desfrutada entre as solteiras – algo impensável há alguns anos, visto que o sexo só era aceitável no casamento, ao menos para a mulher – e citam-se, também, manifestações diferentes da heterossexualidade, ao se colocar o depoimento de uma mulher que teve prazer com outra mulher. Porém, nota-se que a conversa parece se dar de maneira “escondida”: não se pode falar sobre sexo com naturalidade, pois este é um assunto “lacrado”, ou seja, um tabu. Talvez aí se manifestem resquícios de que, apesar da liberação sexual a partir da década de 1960, a mulher ainda é, de certa forma, reprimida sexualmente. Tanto é que os conselhos que são dados a ela (como “nada de passo de cachorra na pista”, já comentado anteriormente) parecem remeter a formas de controlar o exercício da sexualidade. Logo abaixo das chamadas da seção “Sexo lacrado”, aparece a chamada 4, “Turbine sua energia JÁ”. Esta chamada se refere a uma matéria que traz dicas de saúde e bem-estar, de maneira geral. Mas a localização na capa, abaixo do assunto “sexo”, permite uma associação de modo que a “energia” de que fala a chamada seja interpretada como a energia para o sexo – um dos assuntos englobados pela matéria nas páginas internas. Observa______ [ 38 ]

se, aí, portanto, um deslizamento de sentidos. Um significante – energia – é associado a sentidos que não se referem a uma possível literalidade, mas a seu entorno textual que, por sua vez, se refere a um espaço discursivo, utilizandose a terminologia proposta por Maingueneau (2007). Dizendo de outra forma, os sentidos não estão ligados indissociavelmente a seus significantes, visto que só podem tomar forma a partir do extralinguístico que os determina. Trata-se de um sentido – ou melhor, efeito de sentido – que vem à tona sem que se tenha controle sobre ele. Fazendo referência à Psicanálise, a qual é constitutiva da AD, pode-se dizer que se observa aí a primazia do significante sobre o significado: a energia sofre um deslizamento e, por mais que os editores da revista afirmem que “não quiseram dizer” energia sexual ou energia para o sexo, este é um sentido que emerge a partir de uma causa que não se pode controlar, advinda do inconsciente. Como afirma Pêcheux (1997), só há causa daquilo que falha; esta falha, portanto, que produz derivas de interpretação, não é aleatória. De maneira geral, observa-se que a edição em análise permite tirar algumas conclusões, ainda que preliminares, sobre a organização da revista. O eixo central da publicação é pautado em três assuntos: beleza, relacionamentos, sexualidade. Assim, fala-se para uma mulher que deve buscar ser linda (provavelmente para encontrar um parceiro), que deve buscar o sucesso no amor (o que é materializado por ter um “gato” a seu lado), e que tem direito ao prazer sexual (porém, que só pode/deve falar de sexo em um espaço restrito, pois este é um assunto “lacrado”). Quanto ao prazer sexual, antes restrito ao universo masculino, a mulher pode agora buscá-lo, contanto que faça isso de maneira socialmente aceitável, ou seja, sem ser “cachorra” – como apontam conselhos nas páginas internas. Nota-se aí uma contradição, pois, ao mesmo tempo em que se fala de práticas sexuais mais liberais, aconselha-se que a mulher não pode parecer sexualmente liberal, ou será considerada “cachorra”. Tais contradições demonstram que, por mais que a FD da revista seja aparentemente caracterizada pela homogeneidade, há brechas que permitem o atravessamento do interdiscurso; é no espaço contraditório das relações de reprodução e transformação da sociedade que esses discursos se formam e, assim, a contradição também os constitui. Outro ponto a ser destacado sobre a revista é o papel do homem, que parece ter um lugar importante no universo de interesse feminino: inferese, pois, que o sucesso e a felicidade da mulher são atrelados ao universo do sexo oposto, pois só são encontrados quando ela atende às expectativas masculinas – ou, mais amplamente, expectativas sociais consideradas como ______ [ 39 ]

expectativas masculinas, visto que não é apenas o homem o responsável por essas “cobranças”. As matérias de relacionamento materializam essa importância. Se a mulher está sozinha, deve lutar para conquistar um companheiro (cuidando da aparência); se está comprometida, deve lutar para manter seu par. Nos dois casos, a presença masculina, se não é fundamental, é, no mínimo, muito valorizada. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em um primeiro momento, pode-se pensar que a revista em análise esteja inserida em uma FD que se contrapõe à visão tradicional sobre o papel da mulher, anterior à emergência do feminismo. Conforme já comentado, antes da década de 1960, a mulher era reprimida sexualmente, tinha uma participação muito restrita no mercado de trabalho e devia se dedicar às tarefas domésticas, ao marido e aos filhos. Gradualmente, a história vem se transformando e, em alguns aspectos, a mulher hoje não é a mesma mulher do passado. Como materializado nas chamadas de capa, ela se insere no mercado de trabalho, é sexualmente mais liberal e tem poder de compra para cuidar de tratamentos estéticos e adquirir produtos de beleza. No entanto, quando se analisam as contradições presentes no interior da FD da revista, é possível encontrar os limites da suposta liberdade feminina. A mulher nova, independente financeiramente, linda e poderosa, revela resquícios da subordinação ao masculino. Ela deve se colocar como mulherobjeto, desejada sexualmente, disposta a atender aos anseios do homem; deve, também, esforçar-se para cumprir os papéis que se impõem – e, provavelmente, esses papéis estejam mais próximos dos papéis antigos do que possa aparentar. Por trás de uma imagem de poder – que, por ser necessário afirmar, não é algo evidente e já conquistado –, talvez se esconda uma posição de fragilidade diante da busca pela aceitação do outro (não só o homem, mas a própria sociedade). Assim, observa-se que, em alguns pontos, há a construção de uma nova mulher, mas, ao mesmo tempo, em um nível mais profundo, reforçase o lugar da mulher antiga: agora a mulher é financeiramente independente, mais liberada sexualmente; mas ainda deve dar conta de outras tarefas, ainda deve buscar um parceiro (devendo, talvez, almejar o casamento) e ainda não se iguala, em termos profissionais, ao homem, pois deve colocar questões como a beleza em primeiro plano (ainda que tenha que fazer sacrifícios para ______ [ 40 ]

isso). É nessa aparente nova roupagem que reside a eficiência da manutenção de questões arraigadas quando se fala do papel da mulher: eis a dissimulação própria efetuada por FDs em embate que, ao mesmo tempo em que digladiam em relação a pontos divergentes, reforçam o que é compartilhado. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FERREIRA, M. C. L. [et al]. Glossário de termos do discurso: projeto de pesquisa: A aventura do texto na perspectiva da teoria do discurso: a posição do leitor-autor (1997-2001). Porto Alegre: UFRGS. Instituto de Letras, 2001. GREGOLIN, M. Análise do discurso e mídia: a (re)produção de identidades. Comunicação, Mídia e Consumo. Vol. 4., n. 11, p. 11-25. São Paulo: América do Norte, 2008. MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2007. ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001. ______. Discurso, imaginário social e conhecimento. Em Aberto, Brasília, ano 14, n.61, p. 53-59, jan./mar. 1994. Disponível em: Acesso em: 28 jul. 2012. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. (Tradução Eni Pulcinelli Orlandi et al.). 3 ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. POSSENTI, Sírio. Teoria do discurso: um caso de múltiplas rupturas. In: MUSSALIN, Fernanda. BENTES, Anna Christina. (Orgs) Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos, volume 3. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2005. SILVA, M. C. F. Os discursos do cuidado de si e da sexualidade em Claudia, Nova e Playboy. 2003. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. ______ [ 41 ]

CAPÍTULO

3

SOBRE O DISCURSO JORNALÍSTICO QUE RESSOA:

ESPAÇOS DE INSCRIÇÃO EM OUTRAS MATERIALIDADES DISCURSIVAS Alexandre da Silva Zanella Os sentidos não se constroem fora da história, da memória e do interdiscurso. O homem não chega à linguagem de forma privilegiada, nomeando o mundo pela primeira vez. Na sua voz, outras vozes ecoam. (J. C. Cattelan, 2008, p. 36)

Uma reflexão sobre os modos de ressonância dos sentidos é o que constitui o objetivo principal deste capítulo. O recorte proposto é uma adaptação de parte de minha dissertação de mestrado, na qual analisei os sentidos sobre as cidades médias brasileiras em uma reportagem especial da revista Veja (ZANELLA, 2012). Como corpus, elegi para análise, aqui, materialidades verbais que não o especial da revista, a saber: cartas de leitores e peças publicitárias, nas quais verifiquei um processo de retomada dos sentidos produzidos por Veja em sua reportagem. Investigar, então, o funcionamento desse processo de retomada é parte central da discussão ora proposta. Na tentativa de investigar como os sentidos são recebidos como evidentes pelos sujeitos, Pêcheux (2009 [1988]) aponta: Se é verdade que a ideologia ‘recruta’ sujeitos entre os indivíduos [...] e que ela os recruta a todos, é preciso, então, compreender de que modo os ‘voluntários’ são designados nesse recrutamento [...]. (p. 144, itálico do autor, grifos meus).

Considero, na esteira de Pêcheux (ibid.), que a “operação” da ideologia mascara o caráter material do sentido da linguagem, o qual depende de duas formas. A primeira é a de que o sentido é determinado pelas posições ideológicas que são produzidas num processo sócio-histórico. Isto significa que o sentido se altera conforme as posições das formações ideológicas1 que regulam as formações discursivas2 e os sujeitos (aquilo que dizem). A segunda forma é a de que toda formação discursiva dissimula sua dependência do interdiscurso, definido como o “todo complexo com dominante das formações discursivas, [...] submetido à lei de desigualdade-contradiçãosubordinação que [...] caracteriza o complexo das formações ideológicas” (p. 149), pela evidência do sentido. Portanto, a formação discursiva acoberta aquilo que vem de antes e de outro lugar (histórico-ideológico). Ainda de acordo com Pêcheux (2009 [1988]), assinala-se que o imaginário do sujeito se identifica com a formação discursiva na qual está inserido. A forma-sujeito seria, portanto, pautada no funcionamento ______ [ 43 ]

espontâneo do sujeito, no não reconhecimento dessa força de domínio. Se a “realidade” se impõe ao sujeito por meio de um desconhecimento que é, na verdade, fundado num reconhecimento compartilhado entre os (outros) sujeitos, e que nesse reconhecimento é que se acobertam as determinações que fazem com que o sujeito ocupe um dado lugar, é possível, para o analista de discurso, verificar as identificações do sujeito através do interdiscurso. Em outros termos, o sujeito, ao dizer, acessa sempre algo já dito, que ele atualiza sem que se dê conta desse funcionamento. Isto provoca a ilusão de que ele é senhor de seu dizer, efeito necessário à própria constituição do sujeito. Essa ilusão ocorre porque há dois tipos de “esquecimento” (PÊCHEUX, 2009 [1988]). O esquecimento número 2 refere-se à enunciação, isto é, ao uso de uma forma de dizer selecionada dentre uma gama de possibilidades ao invés de qualquer outra num sistema de enunciados, o que dá a impressão de haver algum tipo de consciência nessas escolhas. Este tipo de esquecimento produz como efeito a existência de uma conexão entre a realidade e o pensamento, fazendo com que se pense que o que se diz só pode ser dito de uma determinada forma, com determinadas palavras. O esquecimento número 1, por sua vez, é acobertado pelo funcionamento do esquecimento 2. Este esquecimento põe que o sujeito não pode extrapolar os limites de sua FD, dando a ilusão de que aquilo que diz é originalmente construído por ele, proporcionando a fantasia da liberdade; “esquece-se”, de maneira involuntária, que o que se diz já foi dito antes, por outrem (ORLANDI, 2010 [1999]; PÊCHEUX, ibid.). A partir dessas colocações, para se chegar aos efeitos de sentido que os discursos produzem, isto é, aos sentidos possíveis que são suscitados no interlocutor a partir de um discurso determinado, não se pode partir da noção de que o sujeito é livre, espontâneo e dono de si, mas, sim, das condições de reprodução e transformação das relações de produção, tanto no contexto imediato (englobando o onde, o quando, o para quê), quanto em âmbito amplo (o ideológico determinado sócio-historicamente, como as relações sociais e políticas envolvidas). Só então se considera que a ideologia tem uma exterioridade que afeta o real. Vale também apontar que a linguagem se (re)faz oscilando entre o mesmo e o diferente, como diz Orlandi (2010 [1999]). Essa tensão funciona por meio de processos de paráfrase e de polissemia. Segundo a autora, Os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória. A paráfrase representa assim o retorno aos mesmos espaços do dizer. Produzemse diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. A paráfrase ______ [ 44 ]

está do lado da estabilização. Ao passo que, na polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação. Ela joga com o equívoco. (ibid., p. 36, grifos meus).

Se todo dizer é sempre um já-dito, o que se instaura a partir dos processos discursivos são cadeias ou parafrásticas ou polissêmicas. Os sentidos vão nos meandros que levam os sujeitos ou ao mesmo lugar, e temos então a paráfrase, ou a um lugar outro, e temos a polissemia. Nesse entremeio, pode-se dizer que o sentido sempre pode ser outro, em face de que a língua e a história afetam os sujeitos, isto é, dependem “de como trabalham e são trabalhados pelo jogo entre paráfrase e polissemia” (ORLANDI, ibid., p. 37). Para Pêcheux (2009 [1988]), uma questão cara à teoria do discurso seria a do recrutamento ideológico. Segundo o autor, interessa considerar “de que modo todos os indivíduos recebem como evidente o sentido do que ouvem e dizem, lêem ou escrevem (do que eles querem e do que se quer lhes dizer), enquanto ‘sujeitos-falantes’” (p. 144, itálicos do autor). Essa evidência se dá entre as várias formações discursivas, isto é, no embate que as engendra. O sujeito, nesse embate, é constituído no interior de uma formação discursiva, mas, como diz Lagazzi (1988), “ao mesmo tempo constitui uma relação própria com [ela], relação própria permeada pela história desse sujeito.” (p. 25). Buscarei, pois, mostrar os modos como o discurso de Veja funciona em dois momentos: a) ao recrutar sujeitos na seleção das cartas dos leitores e b) ao reverberar em outras materialidades discursivas. Comecemos, pois, com as cartas dos leitores. De acordo com Soares (2006), as seções dedicadas à publicação de cartas dos leitores compõem espaços de materialização de outras vozes que não as da revista, isto é, daqueles que compõem seu corpo editorial. Nessas seções, a proposta, ainda segundo o mesmo autor, é promover uma integração entre o semanário e aqueles que o leem, permitindo que o leitor materialize sua opinião, como se fizesse parte da construção daquele. Conquanto esse sujeito, que chamarei aqui de leitor-autor, encontre nessas seções um espaço que supostamente seria seu, onde haveria uma ilusão de liberdade para dizer, pouco se sabe acerca do processo de seleção e edição das cartas. De fato, sabe-se apenas que cabe à revista escolher quais, dentre as cartas recebidas, serão publicadas e se, em caso afirmativo, serão publicadas na íntegra, como se vê no informe de Veja: PARA SE CORRESPONDER COM A REDAÇÃO DE VEJA: as cartas para VEJA devem trazer a assinatura, o endereço, o número da cédula de ______ [ 45 ]

identidade e o telefone do autor. Enviar para: Diretor de Redação, VEJA [...]. Por motivos de espaço ou clareza, as cartas poderão ser publicadas resumidamente. Só poderão ser publicadas na edição imediatamente seguinte as cartas que chegarem à redação até a quarta-feira de cada semana (Revista Veja, 01/09/2010, p. 42, grifos meus).

Conforme Zanella (2012), a imprensa, ao proferir seus compromissos com a objetividade, a imparcialidade, a neutralidade, etc., apresenta uma concepção idealista de linguagem – “uma língua desambigüizada”, segundo Mariani (1998) – e “esquece” o real da história e a luta de classes que afeta os sujeitos e que faz com que os sentidos venham já dados, ao mesmo tempo em que, antagonicamente, utiliza a língua “de modo determinado” (PÊCHEUX, 2009 [1988]), a seu favor. Há uma “eficácia ideológica da transparência da informação [que] intervém na construção [...] de interpretações que se apresentam para o leitor como a expressão da realidade” (MARIANI, 1999, p. 111). Ainda com Mariani (ibid.), o problema da crença na neutralidade do discurso jornalístico, produzida a partir de uma concepção de linguagem transparente e objetiva, retrato do mundo, ainda não foi superado. Isso faz com que fique apagado para o leitor que o discurso jornalístico deriva de redes de filiações de sentidos às quais não se tem acesso. Por sua vez, essas filiações parafraseiam sentidos hegemônicos que são relevantes para as instâncias que os dominam. Se o discurso jornalístico se quer imparcial, objetivo, neutro, etc., a seção de cartas do leitor poderia constituir uma quebra neste ritual: nela, os leitores poderiam, mediante identificação indispensável, corresponderem-se com a redação da revista e terem, caso escolhidas, suas cartas publicadas. Produzse um efeito de sentido de que seria possível, neste espaço, dizer tudo quanto se quisesse dizer, apresentar uma subjetividade; isso porque, na esteira de Souza (1997), as cartas do leitor podem se configurar entre “dois espaços de discurso” (p. 70), ou seja, as cartas que se inserem na instituição jornalística são, ao mesmo tempo, também uma prática subjetiva, isto é, de emergência de (uma) subjetividade. Isto poderia significar que não haveria, nesse tipo de seção, necessariamente uma dependência ao discurso pretensamente imparcial, neutro e objetivo da revista. Não obstante, também conforme Souza (ibid.), há um “processo” de legitimação das cartas enviadas, ou seja, há um “lugar institucional” que valida as cartas como “discursos pertinentes” (p. 52) a ocupar um determinado espaço discursivo. Assim é que também se pode compreender porque é aberto, na revista, um espaço para a voz do leitor. Por outro lado, não há garantias sobre a fidedignidade do texto desse sujeito, pois o texto pode ser resumido, como se viu na citação acima. Ainda que a ______ [ 46 ]

revista reserve um domínio à opinião do leitor, o seu conteúdo é mediado e passa pelo crivo da edição. Nesse sentido, o semanário se reserva o direito de escolher o que publicar. No que diz respeito às cartas selecionadas para a análise neste estudo, selecionei como recorte o total de cartas que faziam menção à reportagem especial sobre as “Cidades médias: as 20 metrópoles brasileiras do futuro”, publicado por Veja, em 1º de setembro de 2010. As cartas aparecem nas duas edições posteriores de Veja, a saber: edição 2181, de 08/09/2010, e edição 2182, de 15/09/2010. Embora o semanário não apresente o total de cartas recebidas com relação à reportagem sobre as “metrópoles do futuro”, há uma indicação, na seção Leitor da edição 2181, de que o especial foi um dos ‘assuntos mais comentados’ da semana: “Assuntos mais comentados: Artigo de J.R. Guzzo; Especial Cidades Médias; [...]” (Revista Veja, 08/09/2010, p. 37, grifos meus). Essa seleção contempla, portanto, o total de sete cartas do leitor publicadas com referência ao especial “Cidades médias”. Observaremos, ao longo da discussão proposta, de que forma as cartas publicadas no espaço supracitado comentam a publicação da revista. Para Soares (2006), O efeito produzido pela palavra comentário, em se tratando de imaginário construído do discurso jornalístico, é o de que ali se pode e se deve (principalmente) posicionar-se (ocupando uma posição-sujeito) diante do que é lido, de forma que a matéria apenas sirva como um ponto de partida para o que será posto, a partir desse primeiro texto (p. 195, grifos meus).

Para Foucault (2009 [1996]), a noção de comentário traz consigo uma função restritiva e coercitiva, ainda que seu papel possa ser “positivo e multiplicador” (p. 36). Isso porque é um procedimento de controle que retoma, fala sobre, transforma discursos e, assim, perpetua um determinado dizer. Comentar é, pois, fazer ressurgir aquilo que é comentado, sobre o que se comenta. Como diz Foucault: “O comentário conjura o acaso do discurso fazendo-lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado” (ibid., p. 26, grifos meus). Comentar, retomemos, é então permitir que um dado texto primeiro possa continuar em cena; é reabrir o ato já encerrado e aplaudido para que seja, novamente, assistido e celebrado. Nesse sentido, vejamos como o gesto de comentar ocorre de maneiras distintas nessas sete cartas. O grupo de cartas que se apresenta na sequência é marcado por leitores-autores que parabenizam Veja pela publicação: ______ [ 47 ]

CARTA 1: Parabéns pelo especial sobre as vinte metrópoles brasileiras do futuro (Especial Cidades Médias, 1º de setembro). Percebi que os dados sobre a elevação do PIB dos municípios se referem ao período de 2002 a 2007, e talvez por isso Três Lagoas (MS) não esteja relacionada entre as cidades com maior crescimento industrial. Nos últimos dois anos, ela teve um aumento do PIB de 300%, com o início da produção da Fibria (papel e celulose) e de outras trinta fábricas de diversos setores. Além disso, estão em fase de construção outra fábrica de celulose ainda maior e uma siderúrgica. Também está projetada para 2014 a fábrica de fertilizantes da Petrobras, que será a maior do país. Três Lagoas ocupa ainda a 56ª posição entre os municípios exportadores do Brasil. Essa edição prova que o futuro do Brasil está no interior. (Marco Garcia de Souza, Secretário de Desenvolvimento Econômico; Três Lagoas/MS. Revista Veja, ed. 2181 de 08/09/2010, p. 51, grifos meus). CARTA 2: Parabenizamos VEJA pela excelente reportagem sobre as cidades médias brasileiras e desejamos trazer um adendo quanto ao papel da indústria na economia de Campina Grande (“A rival de João Pessoa”, 1º de setembro). Aqui está situada a maior unidade têxtil do mundo em uma única planta de produção, a Coteminas, com 160 000 metros quadrados totalmente climatizados. Na cidade também se localiza a única fabricante das sandálias Havaianas, a Alpargatas S.A., produzindo 650 000 pares por dia e empregando mais de 8 000 trabalhadores. As duas empresas são responsáveis por 75% das exportações da Paraíba. O Brasil está encontrando o caminho da descentralização da economia e da interiorização do desenvolvimento. (Francisco de Assis Benevides Gadelha, Presidente da Federação das Indústrias do Estado da Paraíba; Campina Grande/PB. Revista Veja, ed. 2181 de 08/09/2010, p. 51, grifos meus). CARTA 4: Excelente reportagem. Lamento apenas que o mapa que localiza Campina Grande (na pág. 112 da edição 2180 de VEJA) seja o de Pernambuco. A cidade fica na Paraíba, estado ao norte de Pernambuco. (Liliane Araújo; Campina Grande/PB. Revista Veja, ed. 2181 de 08/09/2010, p. 51, grifos meus). CARTA 7: Meu pai contava que, ao tomar a decisão de assumir o cargo que conquistara em concurso do Banco do Brasil, minha avó lhe perguntou: “Mas, meu filho, onde fica essa cidade que nem no mapa existe?”. Como ela poderia imaginar que, após 75 anos, Londrina se transformaria nessa linda e nova metrópole regional? Parabéns por mostrar ao Brasil pérolas não conhecidas por muitos. (Luiz Edgard Bueno; Londrina/PR. Revista Veja, ed. 2182 de 15/09/2010, p. 59, grifos meus).

Destacam-se, pois, quatro enunciados que explicitamente parabenizam ______ [ 48 ]

o especial: a) b) c)

“Parabéns pelo especial sobre as vinte metrópoles brasileiras do futuro” (Carta 1); “Parabenizamos VEJA pela excelente reportagem” (Carta 2); “Excelente reportagem” (Carta 4);

d)

“Parabéns por mostrar ao Brasil pérolas não conhecidas por muitos” (Carta 7).

O fato de a revista publicar quatro (dentre as sete) cartas que a cumprimentam pela reportagem especial evidencia o processo de circulação da revista: se há leitores de diferentes lugares geográficos que comentam a reportagem da mesma maneira positiva, isso significa que o trabalho com os sentidos lançados pelo especial é bem-sucedido. Com esse recorte, pode-se verificar como o semanário produz um efeito de sentido de que o que está publicado é algo digno de celebração, como se o especial fosse, evidentemente – considerando-se que são os próprios leitores da revista que o dizem –, um serviço prestado que estivesse dando a conhecer as cidades do futuro, já que caberia à revista informar: essa pretensa informatividade jornalística se sustenta com base em uma ideologia utilitária, ou seja, parte-se de um pressuposto (construído historicamente na relação entre jornais e leitores) de uma necessidade social de saber os fatos relatados. (MARIANI, 2006, p. 34, grifos meus).

Os leitores-autores dessas cartas supracitadas, ao parabenizarem Veja pelo especial, não estão, porém, inaugurando um dizer. Na esteira de Foucault (2009 [1996]), considero que esses comentários explicitam algo que já “estava articulado silenciosamente no texto primeiro” (p. 25, itálicos do autor)3. Prosseguindo com as análises, na carta 5, lemos: CARTA 5: VEJA nos presenteia com mais uma reportagem de alto gabarito (Especial Cidades Médias, 1º de setembro). Mostrar o novo perfil de cidades médias brasileiras que estão se desenvolvendo a passos largos é um serviço de utilidade pública e uma injeção de ânimo para acreditarmos que o país ainda tem oportunidades para quem luta por dias melhores. (Pablo Braga; Montes Claros/MG. Revista Veja, ed. 2182 de 15/09/2010, p. 59, grifos meus).

Aqui, destaco a afirmação desse leitor-autor: “VEJA nos presenteia com mais uma reportagem de alto gabarito”, o qual diz que a revista está prestando “um serviço de utilidade pública”. Nesse viés, Veja, por meio dos sentidos da opinião de leitores, pode enfim ‘assegurar’ que é um veículo de comunicação respeitável, compromissado com as verdades-da-informação4. ______ [ 49 ]

E, dessa forma, é possível notar como O efeito do discurso jornalístico que faz sentido para os leitores é o de que, nessas revistas, a linguagem é um meio de comunicação de informação. Os leitores agradecem ao editor ou à própria revista (como uma entidade que se auto-organiza) pelos serviços prestados, pelas informações recebidas e veiculadas através dela (SOARES, 2006, p. 197, grifos meus).

O imaginário de que o discurso jornalístico estaria a serviço da população atua para que os sentidos veiculados na seção Leitor reverberem os do especial sobre as “cidades do futuro”. É o que se vê, retornando à carta 1, quando o sujeito-leitor-autor conjectura o fato de sua cidade (Três Lagoas/MS) não estar listada no ranking da revista: “Percebi que os dados sobre a elevação do PIB dos municípios se referem ao período de 2002 a 2007, e talvez por isso Três Lagoas (MS) não esteja relacionada entre as cidades com maior crescimento industrial” (Carta 1, grifos meus). A publicação desta carta, que poderia manifestar um furo da reportagem, altercar as informações apresentadas pela revista (como desatualizadas, equivocadas, parciais, etc.), ao contrário, apenas reforça o sentido veiculado no especial de que há cidades que almejam se tornar “metrópoles do futuro”. É o próprio leitor-autor quem sana a dúvida de sua cidade não estar listada entre as 20 “metrópoles do futuro”, como se poderia glosar: se minha cidade não está no ranking, deve ser porque os dados utilizados são estes (e não estes outros). Nada, então, é questionado à revista. Além disso, estas outras metrópoles não listadas não são outros modelos urbanísticos senão aqueles que estão na formação discursiva da revista5: Nos últimos dois anos, ela [Três Lagoas] teve um aumento do PIB de 300%, com o início da produção da Fibria (papel e celulose) e de outras trinta fábricas de diversos setores. Além disso, estão em fase de construção outra fábrica de celulose ainda maior e uma siderúrgica. Também está projetada para 2014 a fábrica de fertilizantes da Petrobras, que será a maior do país. Três Lagoas ocupa ainda a 56ª posição entre os municípios exportadores do Brasil (Carta 1, grifos meus).

Nessa carta, vê-se então como o imaginário de desenvolvimento e modernização da cidade passa pelo que a revista efetiva ao longo do especial. A industrialização promove o crescimento da cidade, como se evidencia em “aumento do PIB de 300%” (devido ao “início da produção da Fibria [...] e de outras trinta fábricas de diversos setores”), “estão em fase de construção outra fábrica de celulose ainda maior e uma siderúrgica”, “a fábrica de fertilizantes da Petrobras, que será a maior do país” e o fato de a cidade ocupar “a 56ª posição entre os municípios exportadores do Brasil”. ______ [ 50 ]

O que se verifica a partir dessa carta é que o leitor-autor, embora se coloque subjetivamente, supostamente emitindo sua opinião, isto é, supostamente podendo ocupar (falar de) um lugar distinto do da revista, o seu ponto de vista provém a mesma formação discursiva hegemônica que atravessa o discurso de Veja6, já que, ele mesmo diz: “Essa edição prova que o futuro do Brasil está no interior” (Carta 1, grifos meus). O sujeito-leitor-autor da Carta 2, de forma semelhante, ao dizer que “desejamos trazer um adendo” por meio do qual visa ampliar as informações veiculadas sobre a cidade de Campina Grande/PB, reforça os sentidos sobre desenvolvimento, crescimento, modernização: Aqui está situada a maior unidade têxtil do mundo em uma única planta de produção, a Coteminas, com 160 000 metros quadrados totalmente climatizados. Na cidade também se localiza a única fabricante das sandálias Havaianas, a Alpargatas S.A., produzindo 650 000 pares por dia e empregando mais de 8 000 trabalhadores. As duas empresas são responsáveis por 75% das exportações da Paraíba (Carta 2).

Assim o leitor, além de agradecer à revista pelo especial, reforça os sentidos lá produzidos, pois faz recuperar um já-dito. E, nesse retorno, também faz com que o discurso de Veja se atualize. Da mesma forma que a revista constrói discursivamente seus ‘dados’ como provas evidentes e irrefutáveis de que a industrialização traz desenvolvimento, o leitor-autor da carta o faz: ele fala sobre as grandes fábricas e suas elevadas produções, fala que elas geram emprego e, nesse dizer, apaga a instalação de outros sentidos, já que, segundo ele, “O Brasil está encontrando o caminho da descentralização da economia e da interiorização do desenvolvimento” (Carta 2). A partir do que se diz nesta carta, vê-se como o leitor-autor habita a mesma formação discursiva da revista, isto é, parafraseia aquele já-dito, fazendo com que ele continue em evidência. Seria possível pensar, por exemplo, que essa retomada instigue (mesmos ou outros) leitores a (re)ler o especial. Na carta 6, por sua vez, tem-se: CARTA 6: VEJA resgatou a autoconfiança dos brasileiros e provou que o Brasil já está no futuro nessas localidades (Carla Grimm; São Gabriel do Oeste/MS. Revista Veja, ed. 2182 de 15/09/2010, p. 59, grifos meus).

A leitora-autora, ao dizer que “VEJA resgatou a autoconfiança dos brasileiros e provou que o Brasil já está no futuro nessas localidades”, ressoa mais uma vez o imaginário constituído acerca do discurso jornalístico (p.4-ss.). ______ [ 51 ]

Quando enuncia que o semanário “resgatou a autoconfiança dos brasileiros”, verifica-se que há um assujeitamento ao dizer da revista que faz com que os sentidos ali publicados se tornem os sentidos verdadeiros ou os únicos possíveis. O sujeito assume, como Veja, que, ao falar sobre o desenvolvimento das cidades médias brasileiras, leve-se em consideração todos os brasileiros. Isso vem ao encontro do que Souza (1997) aponta com relação à construção da subjetividade no espaço público: a questão da “moral cívica” (p. 22). Coloca-se, aqui, na ordem do público algo que é da ordem do privado: se se trata de autoconfiança, ou seja, confiança em si mesmo, o sentido produzido pela leitora-autora é o de que seria possível, a partir da leitura de Veja (notese que a questão da autoconfiança não está relacionada exclusivamente ao especial Cidades médias), sanar uma questão pessoal que, entretanto, é posta como um problema social. Assume-se que Veja possa e deva falar em nome dos brasileiros, já que se constitui como autoridade midiática. Não obstante, caberia a pergunta: a quem se fala, enfim, quando se trata de “autoconfiança dos brasileiros”? Qual o sentido de autoconfiança aqui? Autoconfiança em quê? Essas questões, embora muito relevantes, não serão exploradas neste estudo, mas vale dizer que se Veja afirma que há um Brasil que dá certo e que é possível ser bem-sucedido nas “metrópoles do futuro”; isto não significa que todas as camadas sociais possam alcançar o sucesso. Se houve um resgate da autoconfiança, como afirma a autora da carta, o sentido que se produz é o de que ela havia sido perdida. Resgatar a autoconfiança, porém, não seria algo da ordem do privado e do pessoal, independentemente da publicação (ou não) da revista? Considero que o discurso jornalístico, por seu funcionamento e, por conseguinte, por seu efeito de evidência, cria essa ilusão de completude e de poder, ilusão que é assumida pelos leitores recrutados pela mesma formação discursiva: Leitores e jornalistas encontram-se [...] enquadrados nos domínios de pensamento de sua época, ficando imersos em uma agenda (organizada pelos ‘donos’ do jornal) previamente constituída por interpretações legitimadas, ou já tomadas como socialmente consensuais, ou que virão a se tornar consenso por força, exatamente, dos efeitos produzidos pela própria imprensa. É possível afirmar, então, que há uma ritualização ideológica presente no discurso jornalístico, entendendo ritualização aqui como uma forma de manutenção e repetição de determinados sentidos (MARIANI, 2006, p. 34, grifos meus).

Por outro lado, a partir da leitura da seção Leitor, é possível também analisar como todo discurso está sujeito à falha7. Se o sujeito jornalista, ______ [ 52 ]

enquanto uma posição de sujeito, ajusta-se a este imaginário de neutralidade, objetividade, imparcialidade, veracidade, etc. (MARIANI, 1998) que habita o discurso jornalístico, vê-se nas cartas 3 (abaixo) e 4 (apresentada acima), lapsos cometidos por Veja no especial em questão. A noção de lapso, aqui, vem no sentido de contrapor à visão da linguística e do discurso da ciência que propõem uma possibilidade de língua fechada, completa, sem falhas, pois que não contempla o sujeito presente em sua estrutura (MAIA, 2006). Não se considera, dessa perspectiva, que os equívocos de Veja se tratem de meros “erros” de informação, pois se lida, no âmbito da AD, com o conceito de inconsciente8. Segundo Maia (ibid.), as formas do lapso de escrita podem se dar em “casos de repetição ou esquecimento de palavras, de distorção de nomes, de supostos erros tipográficos ou ortográficos” (p. 35). Na carta 3, lê-se: CARTA 3: Em relação à reportagem “A rival de João Pessoa”, informamos que a Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) não participa do programa de melhoramento genético de algodão da Embrapa, especialmente o colorido. Na verdade, a responsável pela geração e lançamento de cultivares coloridos de algodão no Brasil é a unidade da Embrapa conhecida pelo nome de Embrapa Algodão (Carlos Alberto Domingues da Silva, Chefe adjunto de pesquisa e desenvolvimento da Embrapa Algodão; Campina Grande/PB. Revista Veja, ed. 2181 de 08/09/2010, p. 51, grifos meus).

Aqui, o leitor-autor da carta questiona uma ‘informação’ trazida pelo semanário numa das matérias que integram o especial e, na sequência, corrige o dito da revista, no enunciado que se inicia com “Na verdade, [...]”. O leitor-autor, portanto, identifica no dito da revista uma fenda; há, na matéria em questão, uma afirmação que é questionada. O imaginário de veracidade da informação compartilhado pela revista Veja, a partir da carta do leitor, poderia ser quebrado, já que num dado momento houve a publicação de um lapso. Com essa carta, o suposto controle dos sentidos ritualizado no discurso jornalístico é rompido, visto que, embora haja, no processo de produção jornalístico, uma preocupação maior com o dizer por parte dos sujeitos ocupando a posição de enunciadores desse dizer, há, como diz Orlandi (2010 [1999]), “alguma coisa mais forte [...] [que] traz em sua materialidade os efeitos que atingem esses sujeitos apesar de suas vontades” (p. 32, grifos meus). Essa coisa mais forte é da ordem do inconsciente, o que faz com que o equívoco no discurso produza um efeito de sentido (muito provavelmente) inesperado pelo semanário: “sempre algo escapa, foge ao controle e marca o lugar do excêntrico, de outro centro e isso que fala, fala ou escreve através ______ [ 53 ]

de nossas bocas e mãos” (MAIA, 2006, p. 35). Mas a falha pode tomar dois desdobramentos: uma vez instalada uma fratura em rituais ideológicos, dois são os desdobramentos socialmente possíveis, dois são os destinos para o sentido inesperado: a falha, enquanto lugar de resistência, pode engendrar rupturas e consequente transformação do ritual, ou, por outro lado, pode vir a ser absorvida pelo discurso hegemônico, contribuindo para a permanência dos sentidos legitimados historicamente (MARIANI, 2006, p. 36, grifos meus).

Considero, portanto, que a publicação da carta 3 não constitua nem um lugar de resistência aos sentidos produzidos nem uma tentativa de subjetivação porque: a) não transforma a ritualização do discurso jornalístico, isto é, não põe em xeque as noções de neutralidade, objetividade, veracidade e etc.; b) está publicada num espaço que supostamente comportaria a opinião do leitor, podendo estar submetida à edição; e c) não apresenta, por parte do leitor, um contradiscurso. Nesse viés, entendo que o lapso da carta 3 seja, por conseguinte, absorvido pelo discurso hegemônico da revista, como se se tratasse de consertar o dito por meio da carta. É como se o efeito de sentido ‘indesejado’ produzido pelo lapso fosse ressignificado, mas não no sentido de promover uma ruptura com o dizer da revista. Ao contrário, trata-se de fazer o sentido (re)encontrar seu lugar na formação discursiva de Veja e, assim, assegurar que o semanário continua sendo um meio de comunicação confiável, preocupado com a verdade (daí a publicação da ‘correção’), dentre outras inscrições possíveis. Na carta 4, há menção a outro lapso no especial sobre as “cidades do futuro” (curiosamente, os dois ocorreram na mesma matéria, sobre a cidade de Campina Grande/PB). A leitora-autora refere-se a um erro de localização no mapa que acompanha cada reportagem, no qual, ao invés de a revista localizar Campina Grande no Estado na Paraíba, localizou-a no Estado de Pernambuco: “Lamento apenas que o mapa que localiza Campina Grande [...] seja o de Pernambuco. A cidade fica na Paraíba, estado ao norte de Pernambuco” (grifos meus). Mais uma vez, em relação a essa carta, considero que a sua publicação venha no sentido de apagar ou, ao menos, reparar um suposto erro – “suposto” porque, desta perspectiva teórica, como já foi dito, leva-se em consideração o primado do inconsciente; por conseguinte, as falhas são manifestações da ordem do inconsciente que inserem uma nova mensagem e produzem outro efeito de sentido (MAIA, 2006). O fato de a revista publicar uma reparação ______ [ 54 ]

faz com que se interprete a existência de uma espécie de colaboração entre o sujeito-leitor-autor e o seu destinatário. A réplica, assim, não promove qualquer deslocamento de sentidos: enquanto o lapso da localização da cidade produz sentidos que vão de encontro com o imaginário constituído da instituição jornalística e com o discurso da revista, este não é abalado, pelos mesmos motivos que já foram enumerados logo acima. Ao elogiar a revista, a leitora efetiva seu posicionamento na mesma formação discursiva. Seu lamento é apenas com relação à localização errada; ela não lamenta, por exemplo, o fato de sua cidade estar incluída no especial. Portanto, o efeito de sentido produzido a partir desta carta é o de que estar entre as 20 “metrópoles do futuro” é algo positivo e a ser valorizado, como se o dizer da revista refletisse uma única realidade. Só resta queixar-se, então, que aquela “cidade do futuro”, por assim o ser, deva ser referida ‘corretamente’. Na sequência, vejamos como os sentidos produzidos pelo especial de Veja são reproduzidos também em outras materialidades discursivas de circulação mais estrita: em veículos publicitários na cidade de Cascavel. A fim de investigar como algumas empresas locais reproduzem o fato de Cascavel ser considerada uma “metrópole do futuro”, ora mostrando a voz de Veja, ora a silenciando, destaco três recortes de peças publicitárias veiculadas em uma revista de circulação regional, em um panfleto de uma escola de idiomas e no site de um residencial de uma empreendedora imobiliária. As peças circularam em Cascavel logo após a publicação do especial de Veja, no final do ano de 2010. O que chama a atenção nessas três peças publicitárias e as insere em minha análise é o fato de elas trazerem o enunciado “metrópole do futuro”. Na primeira, tem-se:

PEÇA 1: Revista Diference (ed. outubro-novembro/2010): “Às vésperas de completar 58 anos, Cascavel ganha status de ‘metrópole do futuro’” (grifos meus).

______ [ 55 ]

PEÇA 2: New York School (peça circulada em outubro/2010): Na peça 2, o destaque está num dos pontos apresentados como “motivo” para estudar naquela escola de idiomas:

(ampliação) Destaca-se, aqui, o enunciado que retoma o especial de Veja: “A New York School ensina com qualidade desde 1991 e é a escola que mais cresceu em Cascavel, a metrópole do futuro” (grifos meus). Por fim, na peça 3, tem-se:

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PEÇA 3: Residencial Treviso (peça circulada no último trimestre/2010)

A respeito dessa peça, há duas referências à reportagem do semanário: na primeira, lê-se: “Parabéns, Cascavel! A metrópole do futuro”; e, na segunda, “VEJA – Cascavel entre as 20 metrópoles brasileiras do futuro” (grifos meus). Considerando que os três textos foram coletados logo após a publicação do especial de Veja, entre setembro e dezembro de 2010, pode-se verificar como o enunciado que repercute deriva daquela publicação9. Isto é evidente nas peças 1 e 3, nas quais se faz menção à matéria de Veja: na peça 1, a revista Diference10 escreve que “Às vésperas de completar 58 anos, Cascavel ganha status de ‘metrópole do futuro’” (sem indicação de página, grifos meus) e, no texto que compõe a matéria, expressa: Cascavel recebeu esse título [de “metrópole do futuro”] pela Revista Veja, em sua edição de 1º de setembro de 2010, ao lado de outras 19 cidades de médio porte do Brasil em que, segundo a revista, o “futuro já chegou” (Revista Diference, ed. out.-nov., 2010, grifos meus).

Vale apontar que há aqui um jogo com os sentidos de ganhar e receber. O lide11, ao utilizar o vocábulo ganhar, produz alguns efeitos de sentido dentre ______ [ 57 ]

os quais se poderia perceber uma repercussão dos sentidos já-lá no especial de Veja; se se afirma que Cascavel ganhou um status, isso representa uma conquista que, embora não se diga de que forma foi alcançada, supõe-se que seja por algum tipo de merecimento, reconhecimento ou mesmo sorte. Não há, todavia, uma preocupação da revista Diference com as formas de se alcançar esse status. Dessa forma, seria possível considerar que, de acordo com o seu dizer, basta que informem que Cascavel o ganhou e apenas isso. Quando se emprega o termo receber, ainda outros efeitos de sentido se produzem. A expressão receber um título efetiva, além de um ganho, o reconhecimento de sua legitimidade. Na peça 3, também se faz menção ao semanário da Editora Abril ao trazer o logotipo da revista e ao referenciar o “anúncio” diretamente. Por outro lado, na peça 2, não há qualquer referência explícita que recupere a publicação do especial. A expressão “metrópole do futuro” comparece na peça publicitária de modo natural, isto é, apagando o intertexto (o especial de Veja). Se nas peças 1 e 3 os efeitos de sentido derivam – e, de certa forma, diria que eles dependem – dos sentidos que o semanário da Editora Abril efetiva, reforçando os sentidos do discurso de Veja, na peça 2, além disso, os sentidos dados por Veja são (re)tomados como evidência. Nesse viés, pode-se compreender como o dizer do semanário emerge (embora apagado) nesta peça como fonte de um dizer que estaria comprometido com a verdade; não seria, pois, senão lógico assumi-lo e reverberá-lo. Dessa forma, ocorrem relações também intertextuais nas peças 1 e 3, enquanto na peça 2 há uma relação interdiscursiva. É, sobretudo, com relação à última que se pode verificar como o esquecimento é estruturante, como diz Orlandi (2010 [1999]). A partir da publicação da peça 2, é possível considerar que, mais do que uma ressonância de sentidos, há ali um desvelamento de como a ideologia afeta os sujeitos. Se houve autorização, por parte dos interessados, para a veiculação de uma propaganda como esta, podemos considerar que haja uma reverência ao que Veja diz e, por conseguinte, que haja um reforço daquele dizer, como se o que o semanário publicasse pudesse e devesse ser levado em consideração. Considera-se, ademais, que isso ocorra porque, no discurso publicitário, recuperar um dito de um veículo de comunicação tão difundido quanto Veja seja fator contribuinte para os fins da publicidade, isto é, para a venda de um produto (seja uma revista, seja uma matrícula numa escola de idiomas, seja uma casa, etc.). Pode-se dizer, a partir das análises empreendidas, que os efeitos de sentido produzidos pelas peças publicitárias vão ao encontro daqueles que ______ [ 58 ]

Veja efetiva, já que os sujeitos estão fadados a significar em sua dependência a um (sempre) já-dito. Nesse caso, o enunciado emblemático de “metrópoles do futuro” utilizado pelo semanário. O que importa esclarecer, enfim, é que as peças publicitárias demonstram, por seus processos discursivos, uma inscrição na história e na língua que produz determinados sentidos. Na peça 2, vê-se ainda como a partir do enunciado “metrópoles do futuro” ocorre um deslizamento de sentido para “a escola do futuro”, mais uma vez reforçando e naturalizando os sentidos produzidos por Veja, como se se dissesse que, por estar na “cidade do futuro”, é natural que haja uma “escola do futuro”. É relevante, diante disso, notar a construção do enunciado, que se vale de uma oração adjetiva restritiva12: “A New York School ensina com qualidade desde 1991 e é a escola que mais cresceu em Cascavel, a metrópole do futuro” (grifos meus). Os sentidos que se produzem aqui são os de que não se trata de qualquer escola, mas da escola que mais cresceu numa cidade que é considerada a metrópole do futuro. Efetiva-se, a partir disso, que, por estar numa “metrópole do futuro”, a escola teria uma atenção direcionada ao ensino de qualidade. Por esses motivos, não seria senão natural dar-lhe a preferência. Em geral, não se notam deslocamentos nas peças publicitárias analisadas, ou seja, esses discursos não levam ao diferente. Eles vêm para reforçar aquele dizer de Veja e contribuir não só para sua estabilização, mas também para imobilizar os sentidos a partir de “comentários”, na acepção foucaultiana discutida acima, já que parabenizar a cidade por ser uma “metrópole do futuro”, concordar que Cascavel tenha ganhado este “status” e inseri-lo nas instituições da cidade, como em “escola do futuro”, sejam marcas de um assujeitamento a uma dada formação discursiva e, além disso, de uma atualização de um dizer primeiro. À guisa de conclusão, pode-se dizer que, a respeito das materialidades que ressoaram após a publicação do especial, observou-se que ,se a seção destinada às cartas do leitor supostamente poderia ser um espaço para exibir uma opinião que não condissesse com a da revista, isto é, se pudesse, enfim, ser um espaço de suporte de um contradiscurso, em Veja isso não ocorre. A queixa, o lamento, o protesto das cartas não vêm para contra-argumentar o dizer do semanário. Ao contrário, eles vêm para reforçar, (r)emendar o dizer hegemônico que atravessa o especial. As cartas são uma espécie de retificação da própria revista, haja vista que o que dizem parte do âmbito do pré-construído, dos sentidos já pré-estabelecidos (cf. SOUZA, 1997), mas escritas por sujeitos ausentes no processo de produção do semanário. E, nesse processo, os efeitos de ______ [ 59 ]

sentido indesejados pela revista podem enfim ser estabilizados, de modo que os sujeitos-leitores-autores fazem o trabalho intencionado pelo semanário: ao dar visibilidade aos seus leitores, trabalha-se para uma naturalização dos sentidos efetivados, como se eles fossem comuns a todos. De um modo ou de outro, antes – na publicação do especial – ou depois – com as cartas do leitor – tenta-se amarrar a significação. Veja, enquanto destinatário das cartas, colocase em posição de cumplicidade com o leitor e este, provavelmente por isso, tem sua carta publicada13. Produz-se aí o que Souza (1997) denomina de “pacto confidencial” entre o sujeito-leitor-autor e o seu interlocutor. Se a carta é uma “expressão do privado, do íntimo” (ibidem, p. 83) do autor-leitor, cria-se um efeito de legitimidade, de verdade daquilo que é dito. E, em minha análise, o espaço concedido ao dizer deste leitor, individual, reafirma o dizer de Veja transpondo-se a um âmbito maior, público, pois é como se dissesse: se o sujeito fala com sua própria voz, é natural que o que ele diz não seja senão a verdade. Nesse sentido, vê-se como a ilusão de um sujeito fonte de seu dizer e no controle de sua linguagem retorna, apagando a filiação a uma formação discursiva. A partir das peças publicitárias selecionadas, por sua vez, viu-se como os sentidos ali inscritos também ocupam a mesma formação discursiva de Veja. A expressão “metrópoles do futuro”, dada como se fosse lógica e facilmente recuperável, porque produzida por uma revista de ampla circulação nacional, (re)aparece para reiterar os mesmos sentidos que o semanário produz. Podese dizer, a partir daí, que mais do que reverberar, os discursos das peças publicitárias reproduzem o discurso de Veja como se fosse o discurso da verdade e, nesse processo, trabalham para a estabilização dos sentidos que a revista efetiva. Em outras palavras, a repetição da expressão, posto que se dá em diferentes momentos (a enunciação é sempre outra), vem para reativar e firmar os sentidos (já) efetivados por Veja. Como diz Mariani (1998), a instituição jornalística necessita de leitores/consumidores a quem se dirija para se manter dominante. Daí haver a necessidade de considerar que todo produto midiático produz, interpretando os fatos e acontecimentos, para um segmento da sociedade. Vale dizer, enfim, que por meio dessas materialidades escolhidas foi possível verificar como alguns sentidos se fixam e se repetem. Nas vozes dos leitores-autores, nas dos sujeitos publicitários, outras vozes ecoam. Embora a extensão da circulação do especial seja muito mais ampla e certamente ressoe noutros meios, numa medição que seria, de fato, impraticável, considero que a partir das análises sobre as quais me debrucei foi possível evidenciar de que modo circulam os sentidos, sem pretender a exaustividade. ______ [ 60 ]

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do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. GADET, Françoise; HAK, Tony (orgs). Trad. Bethânia S. Mariani et al. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010 [1990]. REVISTA VEJA, São Paulo: Abril, ed. 2180, 01 set. 2010. Brasil. ______. São Paulo: Abril, ed. 2181, 08 set. 2010. Brasil. ______. São Paulo: Abril, ed. 2182, 15 set. 2010. Brasil. SOARES, Alexandre Sebastião Ferrari. A homossexualidade e a AIDS no Imaginário de revistas semanais (1985-1990). 2006. 235 p. Tese (Doutorado em Letras) – Curso de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal Fluminense – Niterói, RJ: 2006. SOUZA, Pedro de. Confidências da carne: o público e o privado na enunciação da sexualidade. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1997. ZANELLA, Alexandre da Silva. Metrópoles do futuro: o barulho por trás do ranking de Veja. 2012. 119 p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Curso de Pós-Graduação em Letras, Universidade Estadual do Oeste do Paraná, 2012.

NOTAS 1) Para Pêcheux (2009 [1988]), os “[...] ‘objetos’ ideológicos são sempre fornecidos ao mesmo tempo que a ‘maneira de se servir deles’ – seu ‘sentido’, isto é, sua orientação, ou seja, os interesses de classe aos quais eles servem –, o que se pode comentar dizendo que as ideologias práticas são práticas de classes (de luta de classes) na Ideologia”. (p. 132). Assim, os sentidos mudam conforme as posições dos sujeitos, no embate ideológico. 2) Entende-se por formação discursiva “aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito.” (p. 147, itálicos do autor). 3) Já na introdução do especial de Veja, ao se falar, por exemplo, do trabalho dos jornalistas envolvidos na produção da reportagem (seleção das cidades, visita às cidades, entrevistas, etc.), produz-se o sentido de que se trata de algo a ser comemorado. (cf. ZANELLA, 2012). ______ [ 62 ]

4) A expressão é de Mariani (1998). 5) Em minha dissertação de mestrado (ZANELLA, 2012), analisei os sentidos que constituem no discurso as “metrópoles do futuro” de que fala Veja. Dentre os resultados a que cheguei, estão o de que, inserida numa formação discursiva neoliberal, a revista afirma que o crescimento econômico das cidades passa pela industrialização, pela mínima intervenção do Estado, pela ascensão da classe média, pela prestação de serviços que atendem a uma demanda dessa classe, dentre outros fatores. 6) Queremos com isso dizer que o sujeito-leitor-autor das cartas, em seu processo de escritura, está em outro momento enunciativo: o da emissão de uma opinião que é sua e que poderia não corresponder necessariamente com o dizer da revista. Não obstante, o seu dizer parte do já-dito por Veja. O que o leitor-autor diz está previamente definido pelo semanário e pelas condições de produção de seu dizer. 7) A este respeito, sugiro a leitura do Anexo III de Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio (PÊCHEUX, 2009 [1988]). 8) Para Pêcheux e Fuchs (2010 [1990]), a articulação das três regiões do saber que constituem a análise de discurso – a saber: o materialismo histórico, a linguística e a teoria do discurso – são “atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade (de natureza psicanalítica)” (p. 160). O inconsciente, na teoria pêcheutiana do discurso, funciona como uma estrutura que produz efeitos de evidência do sujeito, por “dissimular sua própria existência no interior mesmo do seu funcionamento” (PÊCHEUX, 2009 [1988], p. 139). 9) Embora minha seleção, nesta subseção, seja restrita a três peças publicitárias encontradas, de certa maneira, fortuitamente, considero que, mais do que mostrar a quantidade de peças que reverberam o dizer da revista, é relevante, aqui, investigar como e por que esse dizer aparece noutros textos. Leal (2006), a este respeito, diz: “a AD não coloca a quantidade, em sua extensão, como algo a ser considerado, mas uma “exaustividade vertical, em profundidade”, em que os dados “[...] são ‘fatos’ de linguagem com sua memória, sua espessura semântica, sua materialidade lingüístico-discursiva”. (Orlandi, 2000, p. 62). Não se trata, pois, de considerar os textos em sua “completude”, como um dado a ser manipulado, mas “como exemplares do discurso”. (Orlandi, 2003, p. 10). 10) A revista Diference é uma publicação da Editora Diference que se configura como uma revista publicitária, tendo em vista que traz reportagens sobre empresas e personalidades de cidades locais do Oeste paranaense. Seu design gráfico segue os moldes da revista Caras, da Editora Abril. 11) Lide corresponde a “linha ou parágrafo que apresenta os principais tópicos da matéria desenvolvida no texto jornalístico; cabeça” (HOUAISS, 2001). 12) Para uma discussão sobre o funcionamento das orações adjetivas e seu papel na constituição da teoria do discurso pêcheutiana, sugiro a leitura da 2ª parte de Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio, de Pêchex (2009 [1988]). 13) A questão da cumplicidade produzida entre o sujeito-leitor-autor da carta e o seu “destinatário” é debatida por Souza (1997). ______ [ 63 ]

CAPÍTULO

4

COMENTÁRIOS DE LEITORES:

A VIOLÊNCIA NOTICIADA NA INTERNET

Luiz Carlos de Oliveira

O leitor que inicia a leitura deste texto e o autor que o redige, irmãos em sua constituição pela linguagem, os dois inteirados imaginariamente do seu “eu” autônomo e palpável, estarão, a cada significante, a cada reflexão, constituídos e constituindo sentidos1 sobre o que leem e escrevem, sobre o mundo e si mesmos, através de mecanismos não identificáveis por eles, senão sob o efeito e a evidência de serem um “eu” que pensa e atribui os sentidos que esse “eu” deseja: efeitos, assim, do trabalho levado a cabo pelo inconsciente e pela ideologia; trabalho que não é perfeito, que falha e possibilita a tomada de novos trajetos na produção discursiva. Além disso, os dois são efeitos e agentes da materialidade histórica, tomada sob o aspecto da memória discursiva e da conjuntura histórica que marca as condições de produção do dizer, momento no qual se expressa cada um de forma singular, isto é, o leitor-autor constituído ideologicamente e individualizado pelo Estado. É com o objetivo de compreender o funcionamento dos elementos que compõem esse processo discursivo que a Análise de Discurso Francesa (doravante, AD) busca examinar os modos pelos quais a constituição dos sujeitos e dos sentidos ocorrem. Trago então, as pistas deixadas por Pêcheux ao retomar Lacan e Althusser: o sujeito dividido, ou seja, afetado pelo inconsciente, quando diz ‘eu’ [...], o faz a partir de um efeito retroativo que é resultado de sua constituição pela linguagem – os significantes aparecem sempre como já-lá – e interpelação pela ideologia – o efeito de evidência dos sentidos, produzido a partir de significantes colados a determinadas significações. Para ter a ilusão de ser sujeito do que diz, sendo assujeitado a significantes com significações determinadas, foi necessária uma pré-inscrição no campo da linguagem, e isso não se realiza de qualquer maneira. (MARIANI, 2006, p. 28, grifos meus).

Assim, essa constituição dos sentidos e dos sujeitos, que está sob a marca da evidência, não é fruto da vontade de cada ser, mas resulta, como efeito, da interpelação ideológica que constitui o sujeito através da linguagem. ______ [ 65 ]

É resultado do funcionamento do inconsciente que o afeta sem que tenha controle sobre o modo como isso ocorre. A linguagem antecede o sujeito. E sua inscrição na linguagem, desde o nascimento, não é vazia, mas uma inscrição discursiva na qual os significantes já estão conectados a determinados sentidos. Esses significantes permitem também perceber o inconsciente operando sobre o sujeito2, através dos lapsos, equívocos, chistes, etc. Nesse sentido, sob o viés da AD, a ideologia sintetiza a relação imaginária que os sujeitos mantêm com as suas condições materiais de existência. “Na ideologia, o que é representado não é o sistema das relações reais que governam a existência dos indivíduos, mas a relação imaginária destes indivíduos, com as relações reais em que vivem” (ALTHUSSER, 1974, p. 82, grifos meus). Dessa forma, a ideologia constitui simultaneamente, através da linguagem, os sujeitos e os sentidos em uma determinada conjuntura histórica marcada pelas relações de força, pelos embates ideológicos característicos das contradições de classe. É sobre uma base linguística que o processo discursivo ocorre (PÊCHEUX, 2009, p. 147). Segundo Pêcheux (2009, p. 141), isso ocorre porque a ideologia dissimula o modo pelo qual funciona produzindo um “efeito retroativo”, ou seja, ela interpela o indivíduo como sujeito autônomo (como sempre já sujeito), como se os efeitos de sentidos que o constitui só pudessem ser aqueles e não outros. À semelhança da ideologia, Pêcheux (2009, p. 162) aponta para a forma como o sujeito é afetado pelo inconsciente. Mariani (2006), sobre o modo como o inconsciente e a ideologia atuam na constituição do sujeito, afirma: Para Pêcheux, em sua proposta teórica da relação entre o inconsciente e a ideologia, essa dependência ao significante, ou seja, essa inscrição no campo da linguagem não se realiza fora do ideológico [...] Na constituição da subjetividade, então, ocorre um duplo processo engendrado pela inscrição do significante estruturando o inconsciente e constituindo o sujeito: uma identificação simbólica do sujeito à formação discursiva na qual ele se constitui e um assujeitamento ideológico aos sentidos que essa mesma formação discursiva, enquanto matriz de sentidos, produz. (MARIANI, 2006, p.28, grifos meus).

Portanto, o discurso sintetiza a articulação da ideologia e do inconsciente com a linguagem na constituição dos sentidos e do sujeito. Dessa forma, só podemos refletir sobre nós mesmos (compreender-nos sujeitos) se inseridos no campo da linguagem e, portanto, interpelados pela ideologia e ______ [ 66 ]

afetados pelo inconsciente. Assim, é possível afirmar que não há sujeito fora da ideologia e que os posicionamentos de cada sujeito estarão relacionados ao modo como em uma determinada conjuntura histórica os sujeitos são constituídos. Nesse processo, as formações ideológicas sintetizam, num momento, as regionalizações ideológicas que demarcam a constituição dos sujeitos e sentidos em posicionamentos específicos, tendo como referência os aparelhos ideológicos do Estado3 (família, escola, exército, igreja, etc.). Assim, os efeitos de sentidos ocorrem pautados pelo trabalho das formações ideológicas e das formações discursivas (doravante, FDs). Poderíamos resumir: as palavras, expressões, proposições etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência às formações ideológicas [...] nas quais essas posições se inscrevem. (PÊCHEUX, 2009, p. 146-147, itálicos do autor, grifos meus).

Pelas FDs, efetiva-se na linguagem a interpelação. Enquanto a formação ideológica representa as inúmeras maneiras pelas quais a interpelação ideológica pode ocorrer em uma determinada conjuntura histórica, as FDs são os trajetos mais ou menos estabilizados que esses posicionamentos ideológicos tomam na linguagem4, o modo como o dizer ocorre, ou seja, como cada palavra é empregada efetivamente. Assim, diferentes FDs, enquanto trajetos discursivos orientados pelas formações ideológicas, produzem distintos discursos. Destarte, “se o sujeito fala a partir do lugar do professor, suas palavras significam de modo diferente do que se falasse do lugar do aluno” (ORLANDI, 2007, p. 39). Um mesmo significante pode tomar inúmeros trajetos discursivos de acordo com os posicionamentos nos quais está inscrito o sujeito, no seio de uma FD; como também diferentes significantes podem estar conectados a efeitos de sentidos aproximados. A palavra “casamento”, na atual conjuntura histórica brasileira, provavelmente, produzirá distintos efeitos de sentidos para religiosos, ateus, héteros ou homossexuais, efeitos que estarão conectados aos posicionamentos mais ou menos estabilizados oriundos da igreja, da família, do discurso jurídico (direito), etc. Portanto, através da descrição e caracterização das FDs, é possível perceber a interpelação ideológica constituindo o sujeito e, ao mesmo tempo, o inconsciente o afetando através de irrupções na cadeia significante de termos e falhas que fogem ao controle e que necessitam ser domados; nesse momento, a ideologia age, retomando, reformulando e conectando os significantes a determinados efeitos de sentidos. ______ [ 67 ]

No processo de transformação do indivíduo em sujeito por meio da interpelação ideológica, a forma-sujeito é o modo pelo qual resulta a interpelação, produzindo um sujeito jurídico com direitos e deveres que deve responsabilizar-se pelo seu dizer. Assim, a ideologia jurídica instala uma ambiguidade no sujeito: ao mesmo tempo em que este se vê como um ser único, senhor e responsável de si mesmo, ele é ‘intercambiável perante o Estado’ (Haroche, 1984), que se dirige a cidadãos, a cada um e a todos ao mesmo tempo, a uma massa uniforme [...] que têm a ilusão da unicidade. (LAGAZZI, 1988, p. 20-21).

Refletindo sobre o tema deste trabalho, o sujeito, enquanto leitorautor, sob a insígnia da unicidade, da responsabilidade e da autonomia, ressoam determinados efeitos de sentidos sobre as notícias que retratam a violência. Ao produzir comentários sob o mesmo mecanismo, toma imaginariamente como evidente o que leu e comenta. “Se o sujeito é opaco e o discurso não transparente, no entanto o texto deve ser coerente, nãocontraditório e seu autor deve ser visível, colocando-se na origem de seu dizer” (ORLANDI, 2007, p. 75). Ao mesmo tempo em que o arcabouço legal do “Estado de Direito” concebe ao sujeito a “liberdade de se expressar”, cobra, em contrapartida, que o dizer ocorra dentro de certos parâmetros, que não permaneça no anonimato, que o autor possa ser responsabilizado por algum deslize nas regras estabelecidas dessa liberdade. Assim, trata-se de constatar que todo sujeito é constitutivamente colocado como autor de e responsável por seus atos (por suas “condutas” e por suas “palavras”) em cada prática que se inscreve; e isso pela determinação do complexo das formações ideológicas (e, em particular, das formações discursivas) no qual ele é interpelado em “sujeito-responsável”. (PÊCHEUX, 2009, p. 198, itálicos do autor, grifos meus).

Destarte, “há um modo específico de inscrição do significante em cada sujeito” (MARIANI, 2006, p. 31). Ao ler uma determinada matéria que retrata a violência e redigir o seu comentário, a FD aponta para o sujeito o que pode e deve ser dito. Porém, esse apontamento não é completo; nele existem brechas5 e, ao mesmo tempo, há a história do leitor-autor que a redige. A FD que produz o sujeito de maneira singular não está imune a essa singularidade, pois é resultado específico do modo contraditório pelo qual a sociedade existe, ou seja, as contradições de classe, e o modo como o inconsciente afeta o sujeito. ______ [ 68 ]

AUTORIA NA REDE ELETRÔNICA Ao refletir sobre a constituição do sujeito na internet, considero aspectos não evidentes que constituem o sujeito e sustentam o seu dizer. Considero, também, o modo como a rede eletrônica é tomada por seus usuários, apagando a forma específica pela qual funciona. Segundo Romão (2006), a “textualidade eletrônica” pode ser tomada com um arquivo no qual são depositados dados recortados, manipulados, que passam por filtros e são tratados. De um lado há recorte e seleção de certos textos, imagens e informações que instalam sentidos na Internet e estão autorizados a entrar na rede de arquivos e aceitos para circular nos sites, banco de dados, portais etc. Por outro lado, também é verdade, outros tantos sentidos são desprezados e eliminados, pois ao falar X, sempre calamos Y. Essa dupla face indica que há um direcionamento de tais seleções [...] que é engendrado pela ideologia como o processo que neutraliza e legitima certos sentidos, apagando outros, indesejáveis ou tidos como não relevantes. (ROMÃO, 2006, p. 305-306, grifos meus).

No caso dos portais de notícias, deve-se considerar esse mecanismo no qual os temas são pautados segundo os aspectos ideológicos, a quantia de visitas recebidas, a quantidade de acessos em cada link sobre determinado assunto, a polêmica despertada nos comentários dos leitores, os compartilhamentos efetuados nas redes sociais e o acesso às propagandas e aos endereços eletrônicos dos anunciantes. Nesse contexto, não se pode deixar de fazer menção às características do discurso jornalístico. Mesmo fragmentado no arquivo digital, o dizer presente em cada matéria, permeada e envolta por links/tags, está sob o molde da objetividade e imparcialidade que constitui imaginariamente o fazer jornalístico e que trabalha na homogeneização dos efeitos de sentidos conforme os trajetos discursivos em que o sujeito está inscrito. Ao afirmar que a produção do discurso jornalístico é homogeneizante, o que se deseja é demonstrar a sua submissão ao jogo das relações de poder vigentes, é sua adequação ao imaginário ocidental de liberdade e bons costumes. É, também, o efeito de literalidade decorrente da ilusão da informatividade. Estas propriedades, no nosso entender, estão no cerne da produção jornalística: são aspectos invariantes de qualquer jornal de referência. (MARIANI, 1998, p. 63, grifos meus). ______ [ 69 ]

Essas “propriedades” influenciarão a constituição dos comentários dos leitores que produzirão o seu dizer a partir de um discurso primeiro, conforme Foucault (2009), ou seja, a matéria jornalística publicada no portal de notícias que retrata a violência. Ao abordar os procedimentos internos de controle do discurso, Foucault (2009) traça três procedimentos: o comentário, a função de autoria e as disciplinas científicas. Para o autor, O comentário conjura o acaso do discurso fazendo-lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado. A multiplicidade aberta, o acaso são transferidos, pelo princípio do comentário, daquilo que arriscaria de ser dito, para o número, a forma, a máscara, a circunstância da repetição. O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta. (FOUCAULT, 2009, p. 25-26, grifos meus).

O leitor-autor, ao produzir distintos dizeres a respeito de um texto jornalístico, que está sob o imaginário da literalidade, não se afasta deste texto primeiro, aliás, esse texto se realiza no comentário. Nesse caso, o comentário é um discurso que normatiza a circulação discursiva, na medida em que delimita as fronteiras e as possibilidades de circulação dos efeitos de sentidos em uma determinada conjuntura histórica. O que é dito no comentário não é estranho e não rompe com o que é considerado aceitável de ser dito. A partir disso, na análise dos comentários publicados nos portais de notícias, deve-se considerar uma distinção na constituição dos efeitos de sentidos e dos sujeitos, ou seja, os comentários sobre outros comentários, possibilitados pela quase simultaneidade do dizer que marca as publicações na rede eletrônica. Assim, devem-se levar em conta as condições de produção do discurso nas quais a internet permite outras formas e possibilidades de comentar e, concomitantemente, outros modos pelos quais pode resultar a constituição do sujeito enquanto leitor-autor (singularidade). Essa quase simultaneidade aludida leva a refletir que o texto eletrônico não apresenta páginas a serem viradas como acontece no livro convencional, o imenso pergaminho digital vai enrolando várias vozes, que se deitam umas sobre as outras na descida e na subida do cursor. Engendra-se o novelo heterogêneo de sentidos, sujeitos e arquivos, que se justapõem em um patchwork de fundura e largueza imensas, fazendo tagarelar ditos tantos. (ROMÃO, 2006, p. 309, grifos meus).

Esse “novelo heterogêneo de sentidos” marca o modo como se estruturam os comentários publicados no portal CGN, no qual são ______ [ 70 ]

apresentadas cinco opiniões por página, cabendo ao leitor selecionar se quer ir para a próxima, ou anterior, parte deste “novelo”, e continuar a desenrolar o fio dos sentidos. COMENTÁRIOS NO PORTAL DE NOTÍCIAS: ESPECIFICIDADES E DISTINÇÕES Interesso-me pelo modo como ocorre a produção de comentários sobre uma matéria publicada em um portal de notícias que se refere à violência, buscando destacar alguns discursos que estão presentes e trazer a especificidade e possíveis distinções desses dizeres na internet frente aos comentários publicados na mídia impressa. Destaco que a proposta desta discussão não foca a violência enquanto categoria sociológica, mas se preocupa em traçar o modo como os sujeitos enquanto leitores-autores do portal de notícias estão constituídos ao discursivizar a violência na internet. Portanto, não me preocupo em definir o que seja a violência, mas em trazer os posicionamentos discursivos presentes nos comentários desses leitores-autores sobre o tema. O portal de notícias CGN foi criado na cidade de Cascavel no ano de 2006. Passou por uma reestruturação em 2011, quando se filiou ao grupo Universo Online (UOL). O portal exibe notícias da cidade de Cascavel (e região) e também referentes à cidade de Curitiba e sua região metropolitana. As matérias são integradas, em regra, respectivamente, por vídeo, texto e fotos, o primeiro iniciado com publicidade que pode ser “pulada” após alguns segundos de exibição. Logo abaixo da matéria, existe um espaço dedicado aos anunciantes (“Patrocinado por:6”); mais abaixo, estão os links que permitem compartilhar a matéria nas redes sociais e, logo abaixo destes, há a exposição dos comentários – quando algum já foi publicado – e o espaço onde os leitores-autores podem escrever opiniões, avaliar positiva ou negativamente e/ou responder outros comentários já publicados. Ao se clicar no espaço dedicado aos comentários, surge uma caixa de diálogo com “restrições” impostas ao leitor-autor que deseja comentar a matéria ou responder alguma opinião já publicada: Os comentários feitos na CGN são moderados. Antes de escrever observe as regras e seja criterioso ao expressar sua opinião. Não serão publicados comentários nas seguintes situações: Que não possuam relação com o conteúdo noticiado. ______ [ 71 ]

Que contenham teor calunioso, difamatório, injurioso, racista, de incitação à violência ou a qualquer ilegalidade. Que contenham conteúdo que possa ser interpretado como de caráter preconceituoso ou discriminatório a pessoa ou grupo de pessoas. Que contenham linguagem grosseira, obscena e/pornográfica [sic]. Que transpareçam cunho comercial ou ainda que sejam pertecentes [sic] a correntes de qualquer espécie. Que tenham característica de prática de Spam. O CGN não se responsabiliza pelos comentários dos internautas e se reserva ao direito de, a qualquer tempo, e a seu exclusivo critério, retirar qualquer comentário que possa ser considerado contrário às regras definidas acima. Todos os comentários enviados para a CGN possuem identificação IP armazenada em nossos servidores para que posteriormente possa ser usado para identificação e/ou localização do autor. Caso você concorde com todas as restrições acima citadas confirme abaixo. Concordo com os termos acima. Não concordo (grifos meus).

As restrições impostas se assemelham ao modo como os comentários dos leitores publicados nos periódicos impressos são regrados (ver Oliveira (2012)). Esse regramento se refere ao modo como ocorre o imaginário sobre o discurso jornalístico inserido no processo de identificação do sujeito pelo Estado, ou seja, “da liberdade” e dos “bons costumes” (cf. MARIANI, 1998, p. 63), no qual se pode dizer tudo, porém tudo o que for autorizado pelo regramento jurídico. Neste sentido, a objetividade e a imparcialidade que constituem imaginariamente o modus operandi do discurso jornalístico permitem a elaboração das regras apontando o que não pode ser publicado (apesar de não dito, também o que pode ser publicado), sugerindo que o leitor-autor seja “criterioso”, que escreva de modo a não ser mal “interpretado”, que não use “linguagem grosseira...”, apontando para a existência de um “moderador”. Ao leitor-autor parece restar produzir o seu texto no molde proposto e não fugir “do conteúdo noticiado”. As regras infligidas, além do mais, estão relacionadas à individualização jurídica imposta pelo Estado, na qual o sujeito deve responsabilizar-se pelo seu dizer, identificar-se e evitar escrever algo pelo que possa ser penalizado. Além dessas restrições, o leitor-autor pode redigir seu comentário com no máximo 140 caracteres. Também deve identificar-se com um nome e e-mail. Porém, esses dois campos podem ser preenchidos de forma aleatória, pois não há necessidade de efetuar cadastro no portal e não há validação do e-mail digitado. O fato de o leitor-autor não necessitar se identificar com seu nome e e-mail válido permite pensar em uma brecha e na resistência às regras impostas, à forma como a imprensa e o Estado buscam normatizar os ______ [ 72 ]

dizeres. Por outro lado, essa resistência pode ser relativizada ao se considerar que, independentemente da validação dos e-mails e nomes, o usuário pode ser rastreado (“identificação e/ou localização”) através do número do IP: “Todos os comentários enviados para a CGN possuem identificação IP armazenada em nossos servidores para que posteriormente possa ser usado para identificação e/ou localização do autor” (grifos meus). É o “grande irmão” a nos vigiar! Para poder “expressar sua opinião”, após a leitura (ou não) das restrições, o leitor-autor deve clicar no botão “concordo com os termos acima”, reforçando a noção do sujeito uno e autônomo que pode decidir se expressar ou não, permitindo, também, perceber a caracterização do “sujeito de direito” que deve seguir regras e usufruir direitos. Dessa maneira, as “restrições” impostas podem ser descritas como um contrato no qual as cláusulas tomam o aspecto da literalidade/objetividade e abrangem cada um e todos os leitores-autores, predominando a individualização jurídica imposta pelo Estado, único que pode qualificar se o sujeito praticou um delito e se merece ser responsabilizado ou não. Assim, Vale lembrar, com relação ao discurso jurídico, sua função de interpelaçãoidentificação que atua sobre os processos de constituição do sujeito: o sujeito de direito tanto é aquele que se reconhece/enuncia sob a evidência do Eu – uma singularidade, com suas vontades e responsabilidades, portanto – como também é aquele que poderá, virtualmente, ocupar o lugar ‘vazio’ instaurado pela universalidade das leis [...]. (MARIANI, 1998, p. 77, grifos meus).

A matéria cujos comentários foram selecionados se refere a uma abordagem policial que resultou na morte de duas pessoas na cidade de Cascavel, publicada em 6 de setembro de 2013, às 18h06min, com o título: “Mortos em confronto eram perigosos, segundo PM”. Foram publicados 73 comentários sobre o texto até a data da pesquisa (15/09/2013). Selecionei quatro comentários de leitores, que considerei como sequências discursivas7 (doravante, SD), sendo, respectivamente, os dois primeiros e os dois últimos comentários publicados até a data na qual efetuei a coleta do corpus. O primeiro leitor-autor que aceitou as restrições estabelecidas, ao comentar a matéria publicada pelo portal CGN, identificou-se como “sou dos direitos humanos”. O leitor-autor diz: SD1: sou dos direitos humanos 06/09/2013 18:41h 15 (+) 47 (-) só deus para salvar nossa cidade e seu povo da total calamidade que nós assola, é um salve se quem puder(hoje o povo comemora mortes) Responder este comentário (grifos meus). ______ [ 73 ]

O comentário que foi publicado trinta e cinco minutos após a matéria se refere a um posicionamento de defesa dos direitos humanos. Por ser o primeiro comentário publicado, esse posicionamento não pode estar relacionado diretamente à resposta dos dizeres de outros leitores-autores sobre o texto jornalístico, nem diretamente à matéria que não faz menção aos direitos humanos ou a alguma “comemoração” sobre o fato noticiado (morte de duas pessoas). Assim, esse dizer pode estar ligado a outros discursos (memória discursiva (já-ditos)) efetuados em outros momentos no mesmo espaço virtual ou em outros e dos quais o leitor-autor discorda, como se percebe no final do seu comentário, “hoje o povo comemora mortes”, focando a contradição presente na naturalização da violência e a menção a um passado melhor que o presente, no qual as pessoas não comemoravam mortes. Por outro lado, mesmo que a matéria não se refira diretamente aos direitos humanos, o posicionamento do leitor-autor está construído em relação à violência; ser dos direitos humanos marca uma oposição à violência retratada na matéria, ou seja, a morte de duas pessoas, envolvidas anteriormente, segundo o portal de notícias, com práticas punidas pela lei. Além do dizer ligado a uma FD dos direitos humanos, há na SD1 a FD que formula um discurso religioso e que permite pensar em outro dizer não presente, mas que sustenta os efeitos de sentidos do comentário, ou seja, o interdiscurso que retoma a passagem bíblica da destruição de Sodoma e Gomorra (“só deus para salvar nossa cidade e seu povo da total calamidade que nós assola”, grifos meus). Para Pêcheux (2009), no funcionamento do interdiscurso, a FD absorve elementos pré-construídos alhures e os reformula através da associação com elementos que são encadeados no enunciado (discurso transverso8), produzindo os sentidos (evidentes) em que são fornecidos os fundamentos da identificação do sujeito com as FDs, de acordo com as condições ideológicas nas quais elas estão inseridas. Sobrevém “um ‘trabalho’ de unificação do pensamento, em que as subordinações se realizam ao se apagarem na extensão sinonímica da paráfrase-reformulação” (PÊCHEUX, 2009, p. 245). Destarte, na SD1, a FD religiosa produz efeitos de sentidos da ajuda divina (“só deus para salvar”) contra o individualismo e a naturalização da violência (“é um salve se quem puder”) que leva “o povo” a “comemorar mortes”. O pré-construído do poder de “deus” (que pode castigar/ destruir/salvar) sustenta o dizer e permite a formulação dos termos “nossa ______ [ 74 ]

cidade” (Sodoma e Gomorra/Cascavel), “seu povo” (pecadores bíblicos/ Cascavelenses), “calamidade” e “assola” (pecado/violência). Além do mais, pode-se pensar na substituição destruir/“salvar”. Assim, o pré-construído fornece o efeito do “sempre-já-aí” e o “mundo das coisas” como universalidade. Esse efeito “consistiria numa discrepância pela qual um elemento irrompe no enunciado como se tivesse sido pensado ‘antes, em outro lugar, independentemente’” (PÊCHEUX, 2009, p. 142, grifos meus). Assim, pode-se destacar o discurso religioso predominante no comentário e realçar o discurso transverso que associa “deus” à valorização da vida (que “salva”), porém não totalmente estabilizado, pois a menção aos direitos humanos faz ecoar efeitos de sentidos de outra FD, sobre os aspectos legais e jurídicos da preservação da vida, sobre o papel do Estado de garantir a segurança pública e dos excessos cometidos pelos agentes do estado. O comentário da SD1 recebeu avaliação negativa de 47 pessoas e positiva de outras 159. Essa avaliação deve ser levada em conta, pois reforça a produção dos efeitos de sentidos de uma maioria/minoria que concorda ou discorda de um determinado posicionamento. A avaliação dos comentários deve ser analisada sob o prisma do processo de constituição ideológica dos dizeres, porém deslocado das restrições e das cláusulas cominadas, pois, ao avaliar os comentários dos outros leitores-autores, o internauta não necessita aceitar os termos impostos pela página do portal de notícias. Podendo “se expressar” apenas com um clique, o seu dizer não é explicitado no site, mas seu posicionamento, sim. O leitor-autor, nesse caso, é apenas um número na quantificação das avaliações dos comentários já postados, porém, mesmo enquanto número, não deixa de produzir efeitos de sentidos sobre o tema. Essa é uma das distinções que podem ser elencadas em relação às opiniões dos leitores-autores publicadas nos periódicos impressos, pois, nas cartas de leitores publicadas nesses periódicos, não há a possibilidade de a avaliação ocorrer quase simultaneamente aos comentários e estar presente na constituição dos efeitos de sentidos. No comentário posterior (SD2), publicado vinte e dois minutos após o primeiro, o leitor-autor que se identifica como “DEGRINGOLADO”, refere-se aos direitos humanos citados na SD1 e se distancia desse discurso, fixando-se no fato de que “FALTA DEUS”: SD2: DEGRINGOLADO 06/09/2013 19:03h 7 (+) 29 (-) Não precisa ser dos Direitos humanos pra ver q a vida predeu o valor.as pessoas hoje ama mais a morte do q a vida,isso tem nome. FALTA DEUS Responder este comentário (grifos meus). ______ [ 75 ]

O termo “DEGRINGOLADO” está aliado à perspectiva de que “a vida predeu o valor” e “FALTA DEUS”, produzindo o efeito de sentido de um passado positivo no qual a vida era valorizada, respaldada possivelmente pela presença de “DEUS”. Assim, o leitor-autor está orientado por uma FD de cunho religioso como na SD1, porém se afasta da FD dos direitos humanos (“Não precisa ser dos Direitos humanos”). Ao focar sua opinião no amor à morte (falta de Deus) e falta de valor à vida, a FD religiosa segue um trajeto próximo ao da SD1, que reforça a necessidade de uma força sobre-humana para conter a violência. Ao se referir ao primeiro comentário, a SD2 permite destacar o mecanismo do simulacro discursivo, no qual o leitor-autor imaginariamente se coloca no lugar do primeiro comentador e aponta que, apesar de não concordar com o posicionamento dele sobre os direitos humanos (como se soubesse realmente que posicionamento é esse), aproxima-se no que toca à falta de valor à vida e à necessidade da presença de uma força extra-humana. Essa simulação, conforme Pêcheux (2009), remete à identificação que produz imaginariamente o sujeito inteirado capaz de pensar-se, pensar o outro e se colocar no lugar do outro: (‘se eu estivesse onde tu (você)/ele/x se encontra, eu veria e pensaria o que tu (você)/ele/x vê e pensa’), acrescentando que o imaginário da identificação mascara radicalmente qualquer descontinuidade epistemológica. (PÊCHEUX, 2009, p. 118, grifos meus).

Maingueneau (1997), ao comentar como ocorre essa simulação discursiva, afirma que Esta interação entre dois discursos em posição de delimitação recíproca pode ser compreendida como um processo de ‘tradução’ generalizada, ligada a uma ‘interincompreensão’. Tradução de um tipo bem particular, entretanto, pois ele opera [...] de uma formação discursiva à outra, isto é, entre zonas da mesma língua. [...] Assim, quando uma formação discursiva faz penetrar seu Outro em seu próprio interior, por exemplo, sob a forma de uma citação, ela está apenas ‘traduzindo’ o enunciado deste Outro, interpretando-o através de suas próprias categorias. (MAINGUENEAU, 1997, p. 120, itálico do autor, grifos meus).

Além disso, há nos dois comentários a aproximação dos efeitos de sentidos sobre as “pessoas”/“povo” que “comemoram” e “amam” a “morte”, construindo uma perspectiva negativa que só pode ser revertida pelo caminho divino, contornando outras possibilidades mais diretas de combate à violência, ______ [ 76 ]

como a ação estatal, o investimento em educação, em saúde, distribuição de renda, segurança, saneamento básico, dentre outros. Há, assim, na SD2, um discurso que produz uma perspectiva de causa e efeito da presença de “deus” e o consequente fim da violência e da necessidade de combater a presença de atos/seres que contrariam os preceitos divinos, formulado a partir de um posicionamento predominante da FD religiosa ao se distanciar do discurso dos direitos humanos. Nessa perspectiva, “só deus para salvar” e “FALTA DEUS”, respectivamente, das duas SDs acima, apesar de não situarem o sujeito no mesmo posicionamento discursivo, aproximam-nos. Na SD2, ainda é possível analisar o modo de produção dos comentários na rede eletrônica, especificamente no portal CGN, e nos periódicos impressos. Como se pode perceber, o sujeito da SD2 faz referência direta à SD1. A quase simultaneidade da publicação dos comentários na rede eletrônica leva os leitores-autores a comentarem não apenas a matéria em si, mas considerar, além da narrativa jornalística, as opiniões já publicadas de outros leitores-autores, produzindo a evidência da democracia digital. Portanto, o sujeito constituído na rede eletrônica pode ser concebido como o sujeito do discurso em relação a um poder, posição inscrita pela ideologia e pela memória e constituída por condições de produção datadas historicamente. Afetados pela navegação em uma superfície de dados prefixados anteriormente, o sujeito se movimenta na rede do já-dado, já-dito e já-traçado por um outro sujeito, embrenhando-se em nós que já foram atados por outrem. Assim, o poder dos acessos e dos acessamentos, tantas vezes maculado pelo chavão da liberdade, se limita ao gesto de inscrever-se em locais que já foram autorizados, previamente lidos e acomodados. (ROMÃO, 2006, p. 307, grifos meus).

Romão (2006), ao abordar a autoria na internet foca os blogs pessoais. Apesar de a constituição dos comentários no portal CGN estarem imersos em outro mecanismo, ou seja, o do discurso jornalístico, é possível conceber esse processo de inscrição do sujeito em locais já previamente estabelecidos, seja a partir do texto da matéria ou dos comentários postados que passarão pelo filtro do “moderador”. Nesse aspecto, na constituição dos efeitos de sentidos dos comentários publicados no portal de notícias, além da matéria, devem-se considerar os comentários já postados, o que não pode ser dito em relação aos periódicos impressos, nos quais o leitor-autor não tem acesso às opiniões alheias ao formular o seu dizer. Diferentemente dos comentários publicados nos periódicos impressos, normalmente em seção específica que se refere à edição anterior, a ______ [ 77 ]

escritura dos leitores-autores no site da CGN ocorre logo após a publicação da notícia de forma quase simultânea, ficando exposta logo abaixo da matéria, permitindo que se produzam outros/mesmos efeitos de sentidos sobre o texto jornalístico e sobre os comentários que podem vir a ocorrer. Portanto, deve-se considerar essa especificidade, na qual o leitor-autor entra em contato com gestos de autoria outros, além daqueles presentes no texto da matéria veiculada no portal de notícias. Nesse caso, o da quase simultaneidade dos discursos publicados, é necessário questionar como manejar o princípio de comentário proposto por Foucault (2009), uma vez que não é apenas a matéria que fomenta as discussões publicadas, mas também os comentários, abrindo-se espaço para a produção ilusória de um espaço democrático e plural. Foucault esclarece a problemática da seguinte maneira: Não há, de um lado, a categoria dada uma vez por todas, dos discursos fundamentais ou criadores; e, de outro, a massa daqueles que repetem, glosam, comentam. Muitos textos maiores se confundem e desaparecem, e, por vezes, comentários vêm tomar o primeiro lugar. Mas embora seus pontos de aplicação possam mudar, a função permanece; [...] Mas quem não vê que se trata, cada vez, de anular um dos termos da relação, e não de suprimir a relação ela mesma? Relação que não cessa de se modificar através do tempo; relação que toma em uma época dada formas múltiplas e divergentes. (FOUCAULT, 2009, p. 2324, grifos meus).

Portanto, ao considerar como uma particularidade da rede eletrônica a quase simultaneidade na publicação das postagens que leva o leitor-autor, muitas vezes, a se reportar diretamente a outros comentários e não à matéria em si, pode-se correr o risco de afirmar que a matéria publicada no portal e que os distintos comentários formam uma amálgama10 (matéria + comentários já publicados) que contribui para a constituição dos sujeitos e dos efeitos de sentidos sobre o tema, porém isso não desestabiliza a “função” ou princípio do comentário. Mesmo a matéria “anulada” como texto primeiro não deixa de estar presente em um ponto inicial “esquecido” pelo leitor-autor que se volta para um comentário específico e não aborda a matéria. Essa distinção da composição entre os comentários publicados na internet e nos periódicos impressos é relevante por permitir destacar a forma como na rede eletrônica a constituição dos efeitos de sentidos estão marcados pelas possibilidades tecnológicas que a caracterizam, isto é, pelas condições de produção do discurso e pelas características que marcam esta rede, que são tomadas como evidentes e reforçam o sujeito como autônomo. Como ______ [ 78 ]

destaca Romão (2006), A topografia caótica do ciberespaço, a fragmentação dos arquivos lincados à mercê do sujeito-navegador, a tagarelice de vozes emergentes não se sabe de onde nem de quem, a permanente remissão a elas para instalar o dito, o efeito de liberdade (e desorientação) da página eletrônica e a possibilidade de escrita e leitura em vários lugares em curto intervalo de tempo dão conta de novas condições de produção que exigem nova formulação teórica e, por conseguinte, um novo conceito de autoria. (ROMÃO, 2006, p. 325, grifos meus).

Ao trazer a discussão por esse caminho, cabe destacar que na SD2 o comentário se refere tanto ao outro leitor-autor (SD1) quanto à matéria, não anulando o texto jornalístico publicado no portal enquanto texto primeiro; porém, é possível perceber a especificidade na qual a constituição do sujeito enquanto leitor-autor-navegante ocorre de maneira sui generis. Na SD3, o leitor-autor que se identificou como “alfa” felicita a “Grande Policia Militar” pelo “excelente trabalho”. SD3: alfa 09/09/2013 13:09h 0 (+) 0 (-) Meus parabéns a Grande Policia Militar fizeram um excelente trabalho.Abraços a todos os PMs DEUS os protejam. Responder este comentário (grifos meus).

Diferentemente das duas primeiras SDs, o leitor-autor produz uma perspectiva positiva sobre o que foi narrado na matéria, fixando-se na ação dos policiais. A violência, nesse caso, está sob o prisma da oposição e distinção, produzindo o discurso-transverso de que “violentos são eles, os outros”, no qual a polícia militar, que protege a sociedade e representa o bem (merece ser felicitada), e as pessoas mortas, por sua vez, o mal, que deve ser combatido e eliminado. A FD que permite essa formulação produz o eufemismo “excelente trabalho” para se referir às duas mortes perpetradas pelos agentes do Estado, distanciando-se da FD dos direitos humanos e do posicionamento da FD religiosa, que valoriza a vida. A menção a “DEUS” traz, como nas duas primeiras SDs, a FD religiosa, porém em uma posição distinta delas, produzindo os efeitos de sentidos da proteção às forças policiais e de uma presença divina que coaduna com o “trabalho” da polícia. Nesse caso, a FD da legitimidade está associada à FD religiosa sem contradições aparentes. “DEUS” e a lei encarnam a perspectiva do bem. Dessa forma, a força divina ou sobre-humana deve proteger os homens que combatem pessoas violentas. Em consonância com os efeitos de sentidos da SD3, é o que ocorre ______ [ 79 ]

com a SD4, que corresponde ao último comentário publicado sobre a matéria até o dia no qual foi efetuada a pesquisa (15/09/2013): SD4: Aliviada 13/09/2013 21:41h 0 (+) 0 (-) Obrigada Pms, por Tirarem das ruas talvez pessoas que fizessem mal a mim ou a minha Familia, Admiro vcs Guerreiros!! Responder este comentário (grifos meus).

A leitora-autora, que se autodenomina “Aliviada”, agradece aos policiais militares utilizando o eufemismo “tirarem das ruas” para se referir à ocorrência das duas mortes relatadas na matéria. Esse discurso se justifica, segundo a posição discursiva na qual a leitora-autora está constituída, pelo mal que “talvez” essas pessoas pudessem fazer. O advérbio “talvez”, na forma empregada, pode representar um furo na FD predominante que é a da legitimidade, porém não a desestabiliza. Os efeitos de sentidos estão, como na SD3, produzidos sob o prisma da oposição entre o bem e o mal; respectivamente, entre nós (“a mim ou a minha família”) e eles (“pessoas que fizessem mal”). Dessa forma, a polícia militar é produzida como “Guerreiros” que tiram o mal da rua. A denominação “Guerreiros” é possível nessa FD, pois, na construção da oposição entre o bem e o mal, o policial “tira das ruas”, não uma pessoa comum, mas o “meu” inimigo, o inimigo da “minha família” e o da sociedade. Por isso, é possível reforçar que o advérbio “talvez” não desestabiliza a predominância da FD da legitimidade da ação estatal, apesar de representar um dizer que põe em dúvida a ação das “pessoas que fizessem mal” ou a atuação policial e do Estado, discurso que advém de outras FDs, como a dos direitos humanos e a do discurso religioso da valorização da vida. Dessa forma, a violência nestas duas SDs está constituída sob uma perspectiva exterior, ou seja, violentos são os outros que tomam atitudes violentas contra as pessoas de bem que podem recorrer ao “trabalho” da polícia; não é mais a “calamidade que nós assola” (SD1). Assim, as FDs que permitem a formulação das duas últimas SDs selecionadas produzem um discurso positivo sobre a matéria, formulando eufemismos, elogios aos “Guerreiros” (de qual guerra? Guerra contra o quê/quem?) da polícia militar que merecem a proteção divina, distinguindo as mortes ocorridas (legitimadas) da violência cotidiana. Nas SDs analisadas, é possível perceber, no processo de constituição dos sujeitos e dos efeitos de sentidos, como a FD orienta a forma como cada leitor-autor se identifica. Como já foi dito, apesar da obrigação de preencher o campo “nome”, não há a imposição de o internauta inserir um ______ [ 80 ]

nome previamente cadastrado no portal de notícias. Disse acima que os leitores-autores preenchem o campo de forma aleatória, mas cabe aqui uma reformulação: como é possível destacar, as expressões inseridas no campo “nome” nas quatro SDs estão diretamente conectadas aos posicionamentos discursivos dos leitores-autores. Na SD1, “sou dos direitos humanos” marca o posicionamento em relação à preservação da vida, seja a partir da perspectiva jurídica e estatal, seja a partir da divina e sobre-humana; na SD2, “DEGRINGOLADO” aponta para a perda do valor à vida, para a decadência dos tempos atuais, focando um passado positivo que, aliado à FD religiosa, produz apenas a solução divina para o problema da violência; na SD3, “alfa”, que considera positivo os fatos relatados na matéria e pede a proteção divina para os agentes policiais, identifica-se com um termo que está ligado ao cotidiano de quem trabalha na área da segurança privada, pública ou na área militar. O termo “alfa” representa a primeira letra do alfabeto internacional utilizado normalmente nas transmissões via rádio e com o objetivo de evitar erros e ambiguidades na interpretação das letras. Assim, as letras do alfabeto recebem outra denominação: a: alfa, b: bravo, c: charlie, d: delta, e: eco, etc. Já na SD4, a leitora-autora “Aliviada” agradece aos policiais pelo fato de terem “tirado da rua” pessoas que talvez fizessem mal a ela ou a sua família, justificando a utilização do termo pelo qual se identificou. Dessa forma, nesse mecanismo de identificação, é possível destacar uma ancoragem na qual a expressão que o leitor-autor se identifica está associada à FD que o constitui. Ao considerar as quatro SDs, pode-se destacar um trajeto específico dos efeitos de sentidos. As duas primeiras SDs tomam direções mais ou menos estabilizadas. Isso também ocorre nas duas últimas; nestas, no entanto, produzindo outros efeitos de sentidos, outra maneira pela qual os sujeitos são constituídos ao comentar a matéria e ao se posicionar sobre a violência. Esses trajetos mais ou menos regulares de produção dos efeitos de sentidos podem ser explicados pela paráfrase: A paráfrase representa assim o retorno aos mesmos espaços do dizer. Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. A paráfrase está do lado da estabilização. Ao passo que, na polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação. Ela joga com o equívoco. (ORLANDI, 2007, p. 36, grifos meus).

A paráfrase, aliada à analogia do “pergaminho digital” (ROMÃO, 2006), dada a forma pela qual se desenrolam os comentários no portal, respectivamente, SDs 1-2/3-4, deixa pensar que exista uma relação no modo ______ [ 81 ]

como ocorre o encadeamento dos comentários dos leitores-autores. Talvez, não por acaso ou coincidência, existam dizeres mais ou menos próximos entre as duas primeiras SDs e as duas últimas. Isso pode ser pensado como um processo metafórico, modo já destacado por Orlandi (2007), ao trabalhar com a representação na qual ocorrem transferências sucessivas de “a,b,c,d” até findar em “e,f,g,h”: A metáfora é constitutiva do processo mesmo de produção de sentido e da constituição do sujeito. Falamos da metáfora não vista como desvio mas como transferência. Na representação [...] podemos observar o trabalho produzido pelo deslize (a deriva), pelo efeito metafórico, lugar de interpretação e da historicidade. [...] Nessa representação o ponto de partida (a,b,c,d) e o ponto de chegada (e,f,g,h), através dos deslizamentos de sentidos – efeitos metafóricos – que se deram de próximo em próximo, são totalmente diferentes. Mas essa diferença é sustentada em um mesmo ponto que desliza de próximo em próximo [...] vemos aí a historicidade representada pelos deslizes produzidos nas relações de paráfrase que instalam o dizer na articulação de diferentes formações discursivas, submetendo-os à metáfora (transferências), aos deslocamentos: possíveis ‘outros’. (ORLANDI, 2007, p. 79, grifos meus).

Com isso, não se quer afirmar que exista um funcionamento fixo e já dado no modo pelo qual as FDs se relacionam nos comentários publicados no portal de notícias, mas se quer apontar que essas distintas relações entre FDs ou posições discursivas produzem diferentes encaminhamentos discursivos que não podem ser desconsiderados, ainda mais na rede digital, cuja fragmentação sob a forma de links/tags permite que a qualquer momento o leitor-autor possa transitar de um comentário ou matéria a outro com apenas um clique. O que pode ser destacado, nesse caso específico, é como se dá o processo discursivo, por exemplo, como “DEUS” que “salva” e “falta” das duas primeiras SDs está presente na SD3, produzindo efeitos de sentidos a partir de uma FD religiosa, mas distintos das primeiras, ao tomar a violência sob outra perspectiva, demonstrando a heterogeneidade que marca a FD. Já na SD4 não é possível perceber a FD religiosa, porém ela está relacionada com a FD da legitimidade da SD3 na forma como toma a violência cotidiana e a função da polícia militar (Estado), silenciando a necessidade de se valorizar a vida indistintamente ou refletir sobre os direitos humanos, aspectos esses presentes nas duas primeiras SDs. Como destaca Orlandi (2007), esse processo é de “ponto a ponto”, “de próximo em próximo”, porém é um processo de deslizamento que na rede eletrônica pode tomar caminhos incontáveis na constituição dos ______ [ 82 ]

comentários dos leitores-autores devido à maior interação possibilitada por essa tecnologia. Para Romão (2006), ao comentar a constituição discursiva dos sujeitos-autores em blogs na internet, Talvez ‘a novidade’ seja afirmar que, na rede eletrônica, o sujeito-navegador manifesta-se a partir da voz do(s) outro(s), reclamando a teia heterogênea dos ditos alheios para fazer girar a sua condição de enunciador. Assim, a autoria é marcada por vozes que vão se apoiando em superfícies patinadas por outras vozes (sem as quais a navegação e a inscrição de sentidos ficam comprometidas), de modo a desenhar uma estranha cartografia de fragmentações de ditos, de retalhos de formulações e de retomadas de relatos, enrolados no pergaminho digital. (ROMÃO, 2006, p. 326).

No contexto dos comentários nos portais de notícias, cada comentário deve ser lido como um nó da rede eletrônica conectado a outros e que só pode ser concebido dessa forma pela especificidade que constitui a internet. Esses nós não existem e não são acessíveis nos periódicos impressos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de estado. Lisboa: Presença/Martins Fontes, 1974. FINK, B. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2009. LAGAZZI, S. O desafio de dizer não. São Paulo: Pontes, 1988. MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. São Paulo: Pontes, 1997. MARIANI, B. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais. Rio de Janeiro: Revan, 1998. _____. Sentidos de subjetividade: imprensa e psicanálise. Polifonia, EdUFMT, Cuiabá, v.1 2, nº 1, p. 21-45, 2006. ______ [ 83 ]

MOURA, C. S. L. Identidade(s) afro-mestiço-brasileira(s) no imaginário dos jornais. Niterói: UFF, 2004. 242 p. Tese de doutorado, Curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense (área de concentração em Estudos Linguísticos, linha de pesquisa em Discurso e Interação), Niterói, 2004. OLIVEIRA, L. C. As cartas dos leitores de Veja. In: O discurso sobre as cotas para negros na revista Veja. Cascavel, PR: UNIOESTE, 2012. 151 p. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Letras (área de concentração em Linguagem e Sociedade), Cascavel, 2012. ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 7.ed. São Paulo: Pontes, 2007. PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 4.ed. São Paulo: Unicamp, 2009. ROMÃO, L. M. S. O cavalete, a tela e o branco: introdução à autoria na rede eletrônica. D.E.L.T.A, São Paulo, PUC, v. 22, n. 2, p. 303-328, 2006. Internet: http://cgn.uol.com.br/noticia/63837/mortos-em-confrontoeram-perigosos-segundo-pm. Acesso em: 15 set. 2013. NOTAS 1) Cada sujeito a seu modo, mas não desconectados do processo que os constitui. 2) “nascemos em um mundo de discurso, um discurso ou linguagem que precede nosso nascimento e que continuará após a nossa morte.” (FINK, 1998, p. 21, grifos meus). 3) “Ao falarmos em aparelhos ideológicos do Estado e de suas práticas, dissemos que cada um deles era a realização de uma ideologia [...]. Retomamos esta tese: uma ideologia existe sempre em um aparelho e em sua prática ou práticas. Esta existência é material” (ALTHUSSER, 1974, p. 84). 4) “Elas [as FDs] são constituídas pela contradição, são heterogêneas nelas mesmas e suas fronteiras são fluidas, configurando-se e reconfigurando-se continuamente em suas relações”. (ORLANDI, 2007, p. 44). ______ [ 84 ]

5) O recalque do inconsciente não é perfeito e nem a interpelação ideológica. Assim, “os traços inconscientes do significante não são jamais ‘apagados’ ou ‘esquecidos’, mas trabalham, sem se deslocar, na pulsação sentido/non-sens do sujeito dividido [...]. Apreender até seu limite máximo a interpelação como ritual supõe reconhecer que não há ritual sem falhas” (PÊCHEUX, 2009, p. 277, itálicos do autor, grifos meus). 6) Posteriormente à realização da pesquisa, foi substituído por “Anúncios”. 7) Sequência discursiva “é aquela a partir da qual os outros elementos do corpus receberão sua organização. Isso se dá a partir de dois níveis considerados por Orlandi – o da formulação ou do intradiscurso (sequência linguística produzida) e o da constituição ou do interdiscurso” (MOURA, 2004, p. 41, itálicos da autora). 8) Segundo Pêcheux (2009, p. 151-152), no funcionamento do discurso transverso, é possível destacar a ocorrência de substituições no seio das FDs, porém em relação à FD predominante; essa substituição pode ocorrer de duas formas: a. maneira simétrica (equivalência de significação entre elementos A e B) ou b. por substituição orientada (implicação), na qual os elementos A e B, ao passarem para a relação de substituição B e A, não sustentam a mesma relação significativa na FD considerada. 9) Cada internauta só pode clicar uma vez em cada contador da avaliação, tendo a possibilidade de avaliar o mesmo comentário de forma positiva e negativa. Porém, ele não consegue corrigir o seu voto. 10) Mariani (2006, p. 40) usa o termo amálgama (leitor-missivista + editor) para se referir à edição das cartas de leitores em jornais, especificamente, nas colunas escritas por psicanalistas. Uso o termo em outra acepção.

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CAPÍTULO

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O DISCURSO PUBLICITÁRIO NOS ANÚNCIOS DE OPERADORAS DE TELEFONES CELULARES Paula Fabiane de Souza Queiroz

Este trabalho se propõe a analisar, sob a ótica da Análise do Discurso, estratégias1 discursivas utilizadas em anúncios de operadoras de telefones celulares, para, assim, vislumbrar o modo de funcionamento do discurso publicitário. As análises na integra encontram-se na dissertação de Mestrado intitulada O Discurso Publicitário nos Anúncios de Operadoras de telefones Celulares. Apresentam-se, neste ensaio, portanto, as considerações finais decorrentes das análises. Para as análises, foram selecionados três anúncios de cada uma das três principais operadoras de telefonia móvel do Brasil: TIM, Vivo e Brasil Telecom. Os anúncios foram selecionados por se valerem de estratégias que permitem visualizar valores reiterados por cada operadora na tentativa de persuadir o consumidor, o que ilustra alguns aspectos recorrentes no discurso publicitário. TIM: VIVER SEM FRONTEIRAS Em face das análises dos anúncios da operadora TIM, podem-se destacar alguns pontos que são recorrentes, sendo balizados por valores específicos valorizados por essa operadora. Esses valores podem ser reconhecidos nos slogans e nas imagens que veiculam. Algumas reflexões podem ser realizadas, a princípio com relação ao nome da operadora. TIM resulta das primeiras letras de Telecom Italia Mobile, empresa de telefonia celular oriunda da Itália e que chegou ao Brasil no ano de 1998. Um aspecto a destacar com relação ao nome da operadora é a sua mudança de gênero. Isso ocorre, pois, em alguns anúncios, ele é incorporado ______ [ 87 ]

ao nome dos planos e em outros assume exclusivamente o nome de operadora, como nos casos: a) TIM mais completo e TIM Web. b) Só a TIM tem as melhores tarifas para você fazer ligações DDD e DDI. No primeiro caso, TIM assume o nome do plano; por isso, o adjetivo completo é flexionado no masculino, enquanto que, no segundo caso, o artigo feminino marca o gênero da TIM, por se tratar do nome da operadora. Assim, TIM não é, exclusivamente, nem masculino, nem feminino, pois passa, seguidamente, por um processo de neutralização da oposição de gênero (MAINGUENEAU, 2008a, p. 215). A TIM, como marca, responsabiliza-se pelos enunciados produzidos nos anúncios. Esta marca, assim, torna-se uma entidade abstrata, desligada do estatuto de fabricante, o que lhe permite produzir discursos por meio dos quais investe nos produtos certo conjunto de valores específicos. A esse respeito, Maigueneau (2008a, p.212) afirma que O nome de uma marca, como qualquer nome próprio está associado a um conjunto variável de representações sedimentadas ao longo do tempo, um ‘imagem de marca’, sobre a qual a empresa deve agir constantemente. A evolução dessa imagem se deve em boa parte aos discursos que a empresa emitiu sobre ela mesma e sobre seus produtos, em particular pela publicidade. Por mais que uma marca se coloque como uma identidade que transcende os enunciados que ela produz, ela é, na realidade, modificada por esses enunciados: tais enunciados podem reforçar ou, ao contrário, modificar essa imagem. De um enunciado a outro, ela se esforça por tecer um discurso que lhe seja próprio por intermédio das histórias que conta. A marca encarna, assim, sua identidade por intermédio dos discursos que ela produz, e a esse respeito o processo de incorporação desempenha um papel importante, pois ele é mediador entre o princípio abstrato representado pela marca e os conteúdos que ela pretende veicular [...] (grifos do autor).

Assim, a cada discurso veiculado pelos anúncios, a história e a identidade da operadora se constroem. Estes discursos baseiam-se em determinados valores historicamente especificados e, ao mesmo tempo, contribuem para que eles sejam confirmados e reforçados. A partir do slogan da operadora TIM, pode-se afirmar que um dos valores aos quais ela lança mão para sustentar seus anúncios é o da liberdade. Nota-se que o discurso de cada anúncio analisado contribui para reiterar este valor. ______ [ 88 ]

Maingueneau (2008a, p.171) afirma que um slogan é uma espécie de fórmula curta, destinada a ser repetida por um número ilimitado de locutores, como uma citação. O slogan está associado a uma sugestão e se destina “a fixar na memória de consumidores ou futuros consumidores a associação de uma marca a um argumento persuasivo para a compra”. Nos anúncios analisados, aparece o slogan da empresa TIM: viver sem fronteiras. Desse slogan, podem ser extraídos alguns efeitos de sentidos que produzem determinadas representações da empresa anunciante. Verifica-se, em primeiro lugar, o interdiscurso com a organização Médicos sem Fronteiras, que surgiu com o objetivo de levar cuidados de saúde para quem mais precisa, independentemente de interesses políticos, raça, credo ou nacionalidade, ou seja, sem fronteiras. Assim, ao realizar o interdiscurso com esta organização, o slogan da empresa atribui a si todos os traços positivos que aquela possui, atribuindo-os, ainda, aos seus produtos. Além disso, sobre aquela organização, tem-se a representação positiva da ausência de fronteira para a assistência social, considerando-a universalmente necessária. O slogan se vale dessa representação e a sobredetermina com outros efeitos de sentido, valorizando, de acordo com seus interesses, a ausência de fronteiras com relação à comunicação. Assim, o slogan permite inferir que a TIM propõe, por meio de seus serviços, um modo de vida que apresenta um caráter positivo por ser sem limites e sem barreiras. Ou seja, a qualidade dos serviços da TIM com relação à comunicação proporciona um modo de vida sem empecilhos ou obstáculos. Desta forma, os discursos produzidos pelos diversos anúncios da operadora sobre ela mesma ou sobre seus serviços confirmam e reforçam seu slogan e contribuem para a constituição de uma imagem positiva da empresa. E em cada anúncio permanece a busca pela reafirmação da empresa e pela busca da sua inscrição na memória do consumidor. Portanto, após as análises realizadas, é possível destacar a ênfase dada à comunicação sem limites, à ausência de fronteiras e à liberdade em geral. Esses aspectos são especificados e valorizados na constituição de cada anúncio. Desse modo, por meio dos seus anúncios, a TIM, enquanto uma unidade abstrata que se responsabiliza por eles e constitui uma identidade para a marca, cria um universo de sentido que determina que os valores exaltados por ela são necessários, úteis e importantes: essenciais. Para isso, os anúncios realizam interdiscursos com outros que, de alguma forma, contribuem para reforçar os aspectos positivos desses valores. Ao mesmo tempo em que enfatizam a liberdade e comunicação ______ [ 89 ]

sem fronteiras ou limites, os anúncios procuram criar no leitor o desejo de desfrutar desses valores. Em alguns casos, o próprio anúncio fornece imagens de clientes que desfrutaram ou desfrutam das vantagens e se encontram, assim, satisfeitos. Mas, com maior força, os anúncios buscam demonstrar que a operadora, por seus produtos e serviços, pode proporcionar ao consumidor o acesso à liberdade que tanto valoriza. Desse modo, de certa forma, ela realiza uma chantagem velada, para que o consumidor ceda aos seus apelos e participe ativamente do universo de sentido constituído por seu discurso, que se coloca como necessário para que a satisfação do cliente seja alcançada. Os anúncios, ainda, apresentam imagens que são reforçadas pelos enunciados. Estas imagens conferem uma corporalidade ao fiador do discurso, que assume uma dinâmica corporal compatível com o espaço social que ocupa. O consumidor, ao realizar a leitura do anúncio, ultrapassa a decodificação e participa do microuniverso construído pelo discurso, por meio de uma identificação exigida com o corpo apresentado. Nesse sentido, pode-se considerar a noção de ethos, assim como reformulada por Maingueneau (2005), a partir da retórica para a Análise do Discurso, considerando que alguma coisa da ordem da experiência sensível se põe na comunicação verbal. As ‘ideias’ suscitam a adesão por meio de uma maneira de dizer que é também uma maneira de ser. Apanhado num ethos envolvente e invisível, o coenunciador faz mais que decifrar conteúdos: ele participa do mundo configurado pela enunciação, ele acede a uma identidade de algum modo encarnada, permitindo ele próprio que um fiador o encarne. O poder de persuasão de um discurso deve-se, em parte, ao fato de constranger o destinatário a se identificar com o movimento de um corpo, seja ele esquemático ou investido de valores. O ethos pede que se aceitem valores historicamente especificados (MAINGUENEAU, 2008b, p. 29).

Verifica-se, assim, a incorporação que a enunciação busca conferir ao fiador do discurso do anúncio, tentando levar o coenunciador à incorporação de esquemas e, por fim, à tentativa de constituição de uma comunidade imaginária dos que aderem ao discurso. Dessa forma, a busca de persuasão do consumidor se dá, conforme Maingueneau (2005), a partir da associação do produto a um corpo, a um estilo de vida e a uma maneira de estar no mundo; além disso, o discurso só pode adquirir o caráter de acontecimento e persuasão, se permitir e propuser esta incorporação. Além desses elementos, verifica-se que a TIM recorre a estereótipos2 ______ [ 90 ]

constituídos historicamente, reforça os efeitos de sentido que deles se depreendem e os transforma de acordo com seus objetivos. Os enunciados que formam a parte verbal dos anúncios, bem como o slogan da empresa, possuem caráter argumentativo e buscam persuadir o leitor a adquirir o produto a partir de uma representação positiva da empresa. E, ao mesmo tempo em que organiza o discurso de modo a reforçar esta representação, a empresa procura desvalorizar as outras operadoras, colocando-as como inferiores. Nota-se, então, que os anúncios assumem uma dupla função: fazer propaganda da TIM e contrapropaganda das outras operadoras. A ênfase que os anúncios dão à suposta preocupação da empresa com o bem-estar dos consumidores se materializa, principalmente, nas diversas vezes que aparecem promoções de serviços prestados gratuitamente. Neles, a empresa busca mostrar que procura proporcionar bem-estar e satisfação aos consumidores, que podem se sentir valorizados e beneficiados por ela, à medida que utilizam de seus serviços sem pagar por isso. Para auxiliar na constituição de uma imagem positiva da empresa, ou para reforçá-la, os anúncios apresentam argumentos que conduzem à conclusão de que a empresa oferece planos amplos, que envolvem telefonia móvel e fixa, e que, no decorrer do tempo, ela é capaz de superar os próprios planos e vantagens oferecidas. Dessa forma, revela-se a tentativa de, por meio dos anúncios, manter os clientes e reforçar a representação positiva da marca. Assim, o discurso dos anúncios da TIM, de maneira geral, deve ser considerado para além de suas dimensões de sentido, como um conjunto de comportamentos e dotado de uma materialidade. O que o discurso da empresa propõe ao coenunciador é a incorporação das representações que são materializadas, de modo que a persuasão objetiva ocorrer a partir da identificação do leitor com as representações mostradas e da participação ativa dele no universo de sentido constituído pelo discurso. VIVO: SINAL DE QUALIDADE Com relação à operadora Vivo, salienta-se a preocupação expressa nos anúncios de transmitir a representação de uma empresa que prioriza o bem-estar dos clientes e que cria promoções e oferece serviços a preços baixos, para que eles estejam satisfeitos. Assim, os efeitos de sentido que tece nas propagandas buscam conduzir o leitor para a representação positiva da ______ [ 91 ]

empresa e para a incorporação dos valores expressos e destacados por ela. Esta proposta de incorporação fica explícita nos anúncios em que aparece a afirmação Eu sou Vivo, como depoimento de clientes que utilizam os serviços da operadora. Então, mais do que uma relação comercial, o que a Vivo procura estabelecer entre o cliente e a empresa é uma identificação de valores a ponto de serem uma unidade. Vê-se, ainda, que a operadora, em seus anúncios, explora a polissemia do termo vivo, como flexão do verbo viver ou como adjetivo, para agregar a si os efeitos de sentido que este termo produz, que pode defini-la como uma empresa sagaz, esperta e ativa. Mas estes valores tornam-se ainda mais importantes, se forem incorporados pelos clientes, que podem inferir que são espertos e vivos, se desfrutarem das vantagens oferecidas pela empresa. Nesse sentido, de acordo com Maingueneau (2008a), o nome da marca se apropria das propriedades culturais que possuem determinadas unidades lexicais para tirar proveito e constituir o discurso publicitário. Assim, a operadora prioriza alguns valores e sugere ao cliente que os incorpore e faça parte também da empresa, buscando estabelecer entre eles uma relação afetiva que se sobrepõe à relação comercial. O slogan da operadora Vivo “Sinal de Qualidade” contribui para construir uma representação positiva da empresa, embora não esteja presente em todos os anúncios. Por meio dele, além de se mostrar preocupada com a satisfação do cliente e interessada em manter uma relação afetiva com ele, a empresa se propõe como oferecendo serviços de qualidade. O slogan joga com os efeitos de sentido do termo sinal, que pode remeter tanto aos sinais eletromagnéticos emitidos pela operadora para os celulares dos clientes, como à marca da empresa. O slogan garante a qualidade dos serviços prestados pela operadora, afirmando que seus sinais eletromagnéticos são de qualidade, como também afirma que a própria marca da empresa é indício, prova e demonstração dessa qualidade. A operadora Vivo possui, ainda, uma logomarca que aparece na maior parte de seus anúncios. Trata-se de um pequeno bonequinho estilizado, semitransparente, sem expressão facial e com uma postura convidativa. Esses elementos expressam valores que os anúncios buscam incorporar à operadora. Assim, o bonequinho personifica a empresa, bem como a tecnologia e os serviços que oferece, tornando-a mais tangível e humana e atribuindo a ela suas características: simplicidade, transparência e acessibilidade. A logomarca aparece nos anúncios sempre próxima a uma figura humana, como uma companheira. Dessa posição, pode-se perceber o convite da operadora para que o cliente faça adesão aos seus planos e utilize seus ______ [ 92 ]

serviços, tendo-a como uma companheira que o acompanha nas atividades do dia-a-dia. O dinamismo do bonequinho e a diversidade de cores com que ele se apresenta nos anúncios podem representar a diversidade da comunidade de clientes que utilizam os serviços da operadora, bem como um convite para que todos, apesar das diferenças, sintam-se incluídos por ela. As diversas cores da logomarca representam, ainda, cada uma das empresas estatais que deram origem à operadora a partir de suas privatizações. A análise dos anúncios da operadora revela a preocupação de construir uma representação positiva que comova o consumidor. Seu discurso é constituído na tentativa de apagar a relação comercial que se estabelece entre a empresa e o cliente e fazer sobressair a relação afetiva; por isso, seus argumentos buscam persuadir, principalmente, pela emoção. Para construir esta representação, a operadora se vale de diversas estratégias; uma delas é a manipulação de datas comemorativas para a venda dos seus serviços. Em um dos anúncios analisados, observou-se que tanto o enunciado quanto a imagem, ao mesmo tempo em que faziam referência ao Natal, buscavam fazer lembrar que a aquisição do produto anunciado era eficiente o bastante para proporcionar felicidade. Além disso, compreende-se que, embora recorram a elementos de outras FDs, os anúncios não fogem às regras impostas pela FD comercial. Dessa forma, embora parafraseie, ela acaba por dizer exatamente o que sua formação discursiva determina e obriga. É possível destacar que os anúncios se utilizam de discurso de outras FDs na busca de persuasão e isto contribui para a representação de uma empresa que coloca as necessidades e os desejos do consumidor acima de seu objetivo de obter lucro. Reforçando esta representação, os anúncios veiculam conteúdos que permitem inferir que a Vivo respeita as diferenças de sexo e cor e que une as pessoas que se encontram separadas pela distância. Para isso, a empresa se mostra como conhecedora dos desejos e necessidades dos clientes, sendo capaz de satisfazê-los. Destaca-se que o anúncio se vale de outros locutores para falar bem da operadora, retirando dela a responsabilidade pelos enunciados que veicula. Às vezes, ele recorre à apresentação de testemunhos de clientes satisfeitos e, outras vezes, recorre a pessoas públicas que podem afiançar o discurso. A análise dos anúncios revela, ainda, que a operadora lança promoções e oferece vantagens com o objetivo de superar as empresas concorrentes. Contudo, esta concorrência se apresenta nos anúncios de forma implícita e ______ [ 93 ]

velada.

Os anúncios se pautam em valores estabelecidos socialmente e os reforça, como no caso em que a empresa se mostra isenta de preconceito, reafirmando-o, mesmo que de forma inconsciente, por meio dos elementos que seleciona para se constituir. Portanto, a partir das análises, pode-se concluir que, de maneira geral, os anúncios da Vivo procuram divulgar suas promoções e vender seus serviços de forma implícita, fazendo parecer ao leitor que a proposta não é autoritária. Pode-se afirmar, então, que a maior carga persuasiva dos anúncios está nessa forma velada de inserir os planos e serviços. BRASIL TELECOM: AQUI É O LUGAR Os anúncios da operadora Brasil Telecom fundamentam-se principalmente no nacionalismo e na valorização de ser brasileiro. Embora haja uma variação dos temas que motivam a propaganda, as cores predominantes nos anúncios são sempre as da Bandeira do Brasil e, na maioria deles, há o slogan da empresa, que reforça a valorização nacional. Após a Independência do Brasil, em 1822, ocorre um surto de nacionalismo no país que pode ser verificado com mais intensidade nas obras literárias da Primeira Geração Romântica. Devido à constituição da antiga colônia em país, a ideia de nação necessitava ser enfatizada como “um grupo de pessoas ligadas por laços históricos e culturais” (OLIVEIRA, 2000, p. 103). Assim, a literatura foi utilizada como uma arma de ação política e social, na busca de formar uma identidade nacional a partir dos elementos históricos. Na literatura europeia, o nacionalismo foi marcado, principalmente, pelo culto da Idade Média, na qual se encontrariam os elementos formadores da nacionalidade de cada povo. No Brasil, a falta de um passado medieval levou as obras românticas da primeira geração a valorizar, sobretudo, a figura do nativo brasileiro: o índio. Este era descrito como um exemplo de comportamento ético e comportamental. Além disso, havia um forte apelo às belezas naturais encontradas no Brasil. De acordo com Oliveira (2000, p. 103), A natureza brasileira encontra um lugar privilegiado nesse momento de nossa literatura. Seu exotismo e sua fartura estão presentes em inúmeras obras românticas: os autores desse período procuravam valorizar as cores nacionais, tudo o que era típico do Brasil: a natureza, o nativo, o pitoresco, ou seja, aquilo que era gracioso e original. ______ [ 94 ]

Constrói-se, então, a idealização de uma nação perfeita, tanto com relação à sua natureza, quanto aos seus habitantes, na busca de constituir uma identidade nacional coesa. De acordo com Hall (2002, p. 47), “no mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma das principais fontes de identidade cultural” e, para isso, os discursos que se produzem em relação a uma nação são de suma importância. Estes discursos constroem sentidos que se pautam em símbolos e representações que passam a influenciar as concepções e as ações dos indivíduos que compõem uma nação. De maneira geral, o tema de fundo dos anúncios veiculados pela operadora revela um forte apelo às questões relacionadas à nação como uma instituição coesa, à qual seus componentes deveriam se identificar e demonstrar amor e lealdade. Este caráter nacionalista revela-se nos anúncios, principalmente, pelo nome da operadora, pelas cores que os constituem e pelo slogan da empresa. A Brasil Telecom surgiu após a privatização dos serviços de telefonia, no ano de 1998. A privatização da empresa estatal responsável pela telefonia desagradou a muitos brasileiros. Assim, o nome buscou amenizar os possíveis impactos causados pela privatização, mantendo a representação de que, embora não pertença mais ao Estado, a operadora comunga dos valores nacionais. As cores dos anúncios, verde, amarelo, azul e branco, reforçam o apelo ao nacionalismo, à medida que remetem à Bandeira Nacional e ativam o saber enciclopédico sobre o que é costume associar a ela. As cores fazem lembrar as representações da bandeira e também o seu inverso, ou seja, ao mesmo tempo em que o amarelo faz lembrar ouro e riqueza, ativa também a ausência deles. Então, assim como a bandeira integra a nação, apesar das diferenças, a operadora destina seus serviços a toda a população brasileira, tenha acesso ou não à riqueza (amarelo), esteja no campo ou na cidade (verde), no céu ou na terra (azul), em lugares pacíficos ou agitados (branco). Então, o anúncio, por meio de suas cores, tece seu discurso baseado numa identidade nacional em que Não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero, ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande família nacional (HALL, 2002, p. 59).

Baseando-se nesta cultura nacional, a operadora convida o cliente a ______ [ 95 ]

utilizar seus serviços, adquirir seus produtos e assumir uma identidade cultural brasileira, criando uma representação positiva da operadora, como aquela que, assim como a Pátria, envolve todos os brasileiros, que valoriza os elementos do país e convida seus clientes a valorizar também. Nesse sentido, é possível verificar um determinado grau de xenofobia, pois a supervalorização do que é nacional implica da desvalorização do que é estrangeiro. Desse modo, à medida que os anúncios apelam para o nacionalismo para tecer argumentos de uma empresa genuinamente brasileira, eles fazem contrapropaganda das outras empresas de telefonia que se originaram em outros países, como a TIM, empresa italiana, e a Vivo, que foi criada a partir de investimentos de empresas portuguesas e espanholas. Nesse sentido, a operadora, por ser nacional e ter Brasil até no nome, como afirmava o antigo slogan da empresa, busca angariar vantagens na concorrência com as outras operadoras, pois, enquanto estas disputam a preferência dos clientes por meio de promoções que garantem vantagens econômicas, ela apela para o nacionalismo. Isto pode levar a inferir que, mesmo que os serviços das outras operadoras tenham valores iguais ou mais baixos que os seus, optar por seus serviços é uma forma de demonstração de amor e lealdade à Pátria. Este princípio protege a operadora de anúncios concorrentes que apresentem promoções mais interessantes do que as suas, o que se verifica nos anúncios analisados, em que sobressai o apelo ao nacionalismo em relação às promoções apresentadas pela empresa. Além disso, os anúncios podem conduzir o cliente a compreender que utilizar os serviços de uma empresa nacional auxilia no desenvolvimento econômico do próprio país. Dessa forma, o cliente pode se sentir duplamente beneficiado: enquanto consumidor, que utilizou serviços de qualidade a preços baixos, e enquanto cidadão brasileiro, por contribuir para o desenvolvimento econômico da nação. Nota-se, então, que os anúncios buscam valorizar a cultura nacional e despertar o amor e a lealdade à pátria, enquanto se colocam como um dos elementos nacionais a serem valorizados. Dessa forma, a lealdade e o amor à Pátria são reivindicados pela empresa. Estes mesmos valores nacionalistas podem ser verificados no slogan “Brasil Telecom: Aqui é o lugar”, em que o nome do país e o advérbio de lugar aparecem destacados, como se o aqui correspondesse, especificamente, ao Brasil. O artigo definido permite compreender que não se trata de qualquer lugar, mas de um local que apresenta boas razões para ser escolhido: o lugar é o melhor. Pode-se afirmar que, propositalmente, alguns adjetivos foram suprimidos, como melhor, bom, ótimo, agradável. ______ [ 96 ]

O slogan também permite compreender que a empresa seria o melhor lugar para utilizar serviços de telefonia celular. E, se ela é o melhor lugar, é por que as outras não são. Assim, mais uma vez, nota-se a propaganda que se faz da empresa e a contrapropaganda realizada com relação às demais operadoras que atuam no mercado. Estes aspectos que apelam para o nacionalismo do consumidor sobressaem nos anúncios, de modo que os outros elementos usados são apresentados como algo extra, ou seja, ao optar pelos serviços da Brasil Telecom, além de mostrar lealdade à Pátria, o consumidor aproveitaria, ainda, promoções e serviços de qualidade. As reflexões a respeito dos anúncios da operadora permitem, então, afirmar que seu discurso se pauta, principalmente, no lugar comum de que o que é nacional necessita ser valorizado: mas não só. Ancorado em questões culturais, o discurso da operadora cria um universo de sentido e convida o leitor a participar dele. Desse modo, os anúncios procuram elogiar e valorizar a nação brasileira, ao mesmo tempo em que convidam o consumidor a fazê-lo de uma maneira específica: pelo uso dos produtos e serviços da operadora. Como se pode constatar, os anúncios enaltecem a nação e evocam suas qualidades, como riquezas, belezas naturais e população, dentre outras, com o objetivo de incluir a empresa entre os elementos que necessitam ser valorizados pelos brasileiros. Dessa forma, o convite para a valorização do que é brasileiro é, implicitamente, um apelo para que os consumidores escolham utilizar os serviços de uma empresa brasileira. Nota-se, portanto, uma tentativa de igualar a empresa à pátria e reivindicar dos consumidores a mesma lealdade que, em tese, é dada a ela. À medida que valorizam o que é nacional, especificamente a empresa, os anúncios desvalorizam o que é estrangeiro e este aspecto busca garantir à operadora superioridade em relação às outras. Esta contrapropaganda realizada pelos anúncios ocorre, às vezes, de forma implícita e, em outras, explicitamente. Pode-se afirmar que o discurso nacionalista é recorrente em todos os anúncios analisados; ele é um elemento fixo da publicidade da Brasil Telecom que, acompanhado de outros elementos, procura persuadir o consumidor. Dentre estes elementos, destaca-se a recorrência a datas comemorativas, como no anúncio em que, devido à comemoração do dia das mães, faz-se uma representação positiva da figura materna e um apelo para que esta seja valorizada e presenteada. Assim, o discurso da operadora reforça a representação cultural que ______ [ 97 ]

se tem da figura materna, em que seus aspectos positivos são enfatizados e se utiliza desta representação para persuadir o leitor a comprar o produto. Então, a partir da idealização que faz da mãe, ao mesmo tempo em que reforça esta representação, busca persuadir o leitor a adquirir o produto. Além disso, os anúncios procuram construir a representação de uma empresa que se preocupa prioritariamente com o cliente, mesmo que, para isso, seja necessário renunciar ao lucro. Embora a tentativa de agir sobre os leitores, por vezes, torne-se explícita devido ao uso de verbos no modo imperativo, é possível perceber que os anúncios buscam fazê-lo de forma velada. Dessa forma, apresentam indícios que podem levar o leitor à ação desejada. Para auxiliar no alcance de seus objetivos, o discurso dos anúncios recorre a enunciados de outras FDs (médica, familiar, artística, biológica, econômica e matemática, entre outras) e transformam/reforçam seus efeitos de sentido, moldando-os da forma que melhor convém. Do mesmo modo, os anúncios se pautam em representações sociais de mãe, de pátria, de loucura, de economia e de qualidade que são feitas a partir de recortes e representações da realidade, mas que são dadas como realidade pura. Os anúncios, então, ao mesmo tempo em que partem destas representações, por seu discurso, reiteram-nas. Os anúncios analisados revelam que o discurso publicitário procura colocar o consumidor como único ou maior beneficiado da relação comercial. Isto se revela, principalmente, porque todos os anúncios mencionam algum serviço que o cliente poderia utilizar gratuitamente, sem que a empresa, aparentemente, tenha qualquer lucro com isso. Assim, as reflexões permitem afirmar que os anúncios, por muitas vezes, não enfatizam a venda de serviços e produtos, mas prometem a conquista de sonhos e satisfação de desejos superiores ao próprio consumo, que, por sua vez, revela-se apenas como um meio para atingi-los. Mais do que a venda de serviços telefônicos, o que os anúncios da Brasil Telecom procuram enfatizar é a possibilidade de o consumidor demonstrar afeto à mãe, utilizar serviços gratuitos, sentir-se valorizado pela empresa, ser leal à Pátria, despreocupar-se com problemas financeiros, dentre outros. Estes argumentos, que buscam persuadir pela emoção, mesclam-se, nos anúncios, com os destinados à razão e que enfatizam vantagens econômicas e outras questões lógicas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Após as análises de três anúncios de cada uma das principais operadoras de telefonia celular do país (TIM, Vivo e Brasil Telecom), é possível fazer algumas afirmações a respeito do discurso publicitário e do gênero discursivo anúncio. A comparação entre as operadoras revela os pontos que se repetem nos anúncios e os que as diferenciam. De modo geral, pode-se afirmar que os anúncios são um gênero que pertence ao tipo discursivo publicitário e que, portanto, buscam se organizar e tecer argumentos de forma a persuadir o consumidor a adquirir produtos. Os anúncios impressos têm espaço bastante pequeno, em que são apresentados a empresa e o produto, mas, principalmente, o leitor é convidado a fazer parte do universo de sentido criado por eles. Por isso, os anúncios, geralmente, apresentam frases curtas, com conteúdos menos complexos, para chamar a atenção do consumidor e facilitar a leitura. Uma das estratégias de construção do texto publicitário é eliminar qualquer elemento dispensável, que não contribua para a elaboração adequada ou que possa provocar efeitos de sentido contrários aos seus objetivos (PALACIOS, 2004). Auxiliam, em seu caráter persuasivo, as representações culturais e sociais de que se valem os anúncios e que fazem parte do imaginário do público a que ele, supostamente, destina-se. Estas representações são reforçadas, à medida que os anúncios enfatizam seus aspectos positivos e se valem delas para persuadir o leitor a comprar o produto. Para auxiliar na compreensão dos efeitos de sentido, bem como para atingir seus objetivos, além do conteúdo linguístico, em sua maioria, os anúncios apresentam imagens. Estas, geralmente, estão ligadas a estereótipos e outras representações sociais que os anúncios, por seu discurso, transformam e/ou reforçam. Sabe-se que o discurso publicitário se pauta em um já-dito pré-construído e com ele dialoga; contudo, por sua prática discursiva, ele sobredetermina os velhos efeitos de sentido e constrói novos, de acordo com seus objetivos. Navarro (2006, p.90) afirma que o poder da imagem de conservar as forças das relações sociais e o fato de os efeitos de sentido produzidos nos discursos da mídia emergirem do diálogo estabelecido entre enunciado verbal e imagético parecem reclamar o acréscimo do aspecto semiótico como uma terceira ordem que constitui o discurso. ______ [ 99 ]

Por vezes, as imagens são de pessoas que, aparentemente, estão satisfeitas por utilizarem os serviços da empresa. Assim, elas conferem uma corporalidade ao fiador do discurso, que assume uma dinâmica corporal compatível com o espaço social que ocupa. Ao ler o anúncio, o consumidor é convidado a ultrapassar a decodificação e participar do microuniverso do discurso, a partir de uma identificação com o corpo apresentado. Desse modo, o fiador do discurso incorpora determinados valores, busca persuadir o cofiador a também incorporá-los e, assim, participar da comunidade imaginária dos que aderem ao mesmo discurso. Portanto, o discurso publicitário congrega linguagens verbais e nãoverbais, com ênfase, na maior parte dos casos, a esta última. Por seu objetivo de levar ao consumo, ele associa os produtos que busca vender aos desejos e às possíveis necessidades daqueles a quem pretende persuadir. Para isso, as imagens apresentadas são investidas de materialidades que associam o produto vendido ao alcance de um estado pleno de felicidade. De acordo com Baudrillard (1995, p. 47), “todo o discurso sobre as necessidades assenta numa antropologia ingênua: a da propensão para a felicidade”. Por isso, além de vender produtos, o discurso publicitário busca alimentar no consumidor a esperança de satisfação a partir da compra. É comum que os anúncios busquem constituir, por meio do discurso, uma representação positiva da empresa, na tentativa de apagar a relação comercial que se estabelece entre ela e o cliente e fazer sobressair uma suposta relação afetiva, mostrando uma empresa que se preocupa com o cliente, mesmo que seja necessário renunciar ao lucro. É possível destacar que o discurso publicitário utiliza-se de enunciados de outras FDs para contribuir com a representação de uma empresa que coloca as necessidades e os desejos do consumidor acima de seu objetivo de obter lucro, sendo ele, aparentemente, o único ou maior beneficiado da relação comercial. Nessa tentativa, o discurso publicitário recorre a enunciados de outras FDs, mas não foge às regras impostas pela FD comercial. Dessa forma, embora parafraseie, acaba por dizer exatamente o que sua formação discursiva determina e obriga. Ao mesmo tempo em que organiza o discurso de modo a reforçar esta representação, a empresa procura desvalorizar as outras operadoras, colocando-as como inferiores. Nota-se, então, que os anúncios assumem uma dupla função: fazer propaganda da empresa e contrapropaganda da concorrência. A análise dos anúncios revela, ainda, que as promoções lançadas e as vantagens oferecidas procuram superar as empresas concorrentes. ______ [ 100 ]

Portanto, nos anúncios, divulgar um produto significa adotar constantes estratégias de diferenciação e de singularidade em relação aos discursos concorrentes. A ênfase que os anúncios dão à suposta preocupação da empresa com o bem estar dos consumidores se materializa, principalmente, nas diversas vezes em que aparecem promoções de serviços prestados gratuitamente. Dessa forma, os anúncios procuram proporcionar bem-estar e satisfação aos consumidores, que podem se sentir valorizados e beneficiados pela empresa, à medida que utilizam de seus serviços sem pagar por isso. Para auxiliar na constituição de uma imagem positiva da empresa, ou para reforçá-la, os anúncios apresentam argumentos que conduzem à conclusão de que ela oferece planos amplos, que envolvem telefonia móvel e fixa e que, no decorrer do tempo, é capaz de superar seus próprios planos e vantagens oferecidas. Dessa forma, revela-se a tentativa dos anúncios de manter os clientes da empresa e reforçar a marca. Destaca-se que os anúncios utilizam de outras vozes para falarem bem da empresa, retirando dela a responsabilidade pelos enunciados que produz. Para isso, às vezes, eles apresentam testemunhos de clientes satisfeitos e, outras vezes, recorrem a pessoas públicas que podem afiançar o discurso. Pode-se concluir que, de maneira geral, os anúncios procuram divulgar suas promoções e vender seus serviços de forma implícita, fazendo parecer ao leitor que a proposta não é autoritária. Pode-se afirmar, então, que a maior carga persuasiva dos anúncios está nessa forma implícita de inserir planos e serviços. Embora a tentativa de agir sobre os leitores, por vezes, torne-se explícita devido ao uso de verbos no modo imperativo, é possível perceber que os anúncios buscam fazê-lo, em geral, de forma velada. Dessa forma, eles apresentam indícios que podem levar o leitor à ação desejada. De acordo com Carrascoza (2004, p.30), A adoção de tais molduras, contudo, não exclui totalmente a utilização de recursos persuasivos mais comuns ao discurso autoritário – com comando explícito para induzir o leitor à ação de experimentar o produto ou serviço anunciado. Mas contribui para o advento do texto publicitário alicerçado num aparato suasório mais sutil – que não se contrapõe àquele, e sim constitui outra maneira de se exercer a persuasão.

As observações permitem afirmar que os anúncios, por muitas vezes, colocam em segundo plano a venda de serviços e produtos e prometem a conquista de sonhos e satisfação de desejos superiores ao próprio consumo, ______ [ 101 ]

que, por sua vez, revela-se apenas como um meio para atingi-los. Para isso, os anúncios recortam valores sociais, que, supostamente os consumidores possuem, e os valorizam como essenciais, como a liberdade, para a TIM, e o nacionalismo, para a Brasil Telecom. De acordo com Ghiraldelo (2008, p. 5), A ação das propagandas não se restringe apenas ao holofote que põem em cena certos valores sociais, culturais e estéticos, mas é justamente pelos valores postos em evidência que elas podem levar um potencial consumidor a, de fato, consumir o produto ou serviço que divulgam, na medida em que esses valores fazem eco ao jeito de pensar e de viver do consumidor. Assim, ao mesmo tempo em que de se apropriam dos valores da sociedade, as propagandas contribuem para a manutenção de tais valores.

O interdiscurso realizado com enunciados de outras FDs cooperam para a ênfase aos valores especificados, mas também para apagar o apelo ao consumo e a tentativa de persuasão. Assim, o discurso publicitário é articulado, de modo a não explicitar sua função social, buscando se mostrar como informativo. Os valores especificados e veiculados conferem aos anúncios uma função mais nobre que a tentativa de vender produtos e serviços. Por isso, é recorrente que os anúncios busquem vender sonhos e desejos e apelem à emoção do leitor. Os sonhos e desejos são valorizados e enfatizados pelos anúncios e apresentados como superiores à aquisição do produto. Mas devese notar que os anúncios, ao buscarem persuadir o consumidor, deixam indícios de que os sonhos serão alcançados e os desejos satisfeitos por meio da aquisição dos produtos ou do uso dos serviços anunciados. Os argumentos que buscam persuadir pela emoção se mesclam, nos anúncios, com aqueles destinados à razão e que enfatizam vantagens econômicas e outras questões lógicas. Portanto, pode-se concluir que Seja na vertente apolínea (em que a indução é direta) ou na dionisíaca (em que o caráter indutivo é mais indireto), o discurso publicitário objetiva, em verdade, o benefício de quem o enuncia, embora tente convencer o receptor de que ele será beneficiado ao consumir o produto ou serviço anunciado. Sua função pragmática é apenas aparente (CARRASCOZA, 2004, p. 33).

Desse modo, quer seja por motivos emocionais ou por razões lógicas, o consumidor vê-se chantageado pelo anúncio, pois a recusa ao apelo implica em consequências que ultrapassam a não aquisição dos produtos ou a não utilização de serviços, que podem representar desvantagem econômica e prejuízos que se estendem a outros aspectos da vida. Segundo Carrascoza (2004, p. 16), “o texto publicitário constitui o ______ [ 102 ]

tecido que reveste a alma da marca e pode permitir, por meio de elementos de persuasão, que ela seja percebida como algo positivo para o público.” Pode-se afirmar, então, que os anúncios são como uma roupagem que materializa o discurso de cada uma das operadoras. Ainda segundo Carrascoza (2004, p.16), O texto publicitário aparece em vários formatos, semelhantes aos modelos de uma vestimenta, embora sua trama seja confeccionada com vistas a agradar (ou chocar) o auditório, a entrar em comunhão com ele, a mostrarse justamente conforme seus desejos e aspirações para assim seduzi-lo – ou assustá-lo.

Portanto, embora os anúncios sejam distintos na forma de se organizar, ou nos valores que desejam enfatizar, eles se assemelham, ou talvez, se igualem, nos objetivos de buscar seduzir o leitor, levando-o à aquisição do produto ou à adesão aos planos oferecidos. A sedução pretendida é acompanhada da chantagem implícita de sérios prejuízos, caso o consumidor não ceda ao apelo. A partir dessas considerações, poder-se-ia elencar algumas características comuns ao discurso publicitário: • Valer-se de representações culturais e estereótipos; • Conferir corporalidade positiva ao fiador do discurso; • Convidar o leitor a participar do universo de sentido criado e valorizado pelo discurso e incorporar os valores propostos por ele; • Associar produtos a desejos e sonhos superiores ao consumo; • Apagar a relação comercial que se estabelece entre cliente e empresa e destacar uma relação afetiva; • Inserir os planos e produtos que vende de forma velada; • Fazer propaganda e contrapropaganda ao mesmo tempo; • Fazer chantagem implícita ao consumidor; • Disfarçar sua função social e mostrar-se meramente informativo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMOSSY, Ruty. O ethos na intersecção das disciplinas: retórica, pragmática, sociologia dos campos. IN: Imagens de si no discurso: a construção do ethos. Ruty Amossy (org). São Paulo: Editora Contexto, 2005. ______ [ 103 ]

BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. (Trad. Artur Morão). Rio de Janeiro: Elfos, 1995. CARRASCOZA, J. A. Razão e Sensibilidade no texto Publicitário. São Paulo: Futura, 2004. GHIRALDELO, C. Valores sócio-culturais e estéticos em propagandas de aparelhos celulares divulgadas no Brasil de 1998 a 2007. In: VII ESOCITE (Jornadas Latino-Americanas de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias). Rio de Janeiro 2008, 2008. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. MAINGUENEAU, D. Ethos, cenografia, incorporação. In: Imagens de si no discurso: a construção do ethos. Ruty Amossy (org). São Paulo: Editora Contexto. 2005. _____. Análise de Textos de Comunicação. São Paulo: Cortez Editora, 2008. _____. A Propósito do ethos. In: Ethos Discursivo. Ana Raquel Motta e Luciana Salgado (orgs). São Paulo: Editora Contexto. 2008. NAVARRO, P. O pesquisador da mídia: entre a ‘aventura do discurso’ e os desafios do dispositivo de interpretação da AD. In: Estudos do texto e do discurso: mapeando conceitos e métodos. Pedro Navarro (org). São Carlos: Claraluz, 2006. OLIVEIRA, C. Arte literária brasileira. São Paulo: Moderna, 2000. PALACIOS, A. As marcas na pele, as marcas no texto: sentidos de tempo, juventude e saúde na publicidade de cosméticos em revistas femininas durante a década de 90. Bahia: Universidade Federal da Bahia, 2004. 312 p. Tese de Doutoramento. Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporânea. Bahia, 2004.

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NOTAS 1) O conceito de estratégia é entendido como um mecanismo de organização do discurso, mas que também é determinado pelas regras impostas pelas FDs. Desse modo, o sujeito não tem livre escolha e pela FD em que se acha inscrito é escolhido pela estratégia. 2) Estereótipo entendido como o resultado do processo de estereotipagem, definido por Amossy (2005, p. 125) como a “operação que consiste em pensar o real por meio de uma representação cultural preexistente, um esquema coletivo cristalizado”.

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CAPÍTULO

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DISCURSO, POLIFONIA E CRIATIVIDADE NO TEXTO PUBLICITÁRIO Alex Sandro de Araujo Carmo

Nos estudos referentes à linguagem, dentre as muitas áreas do conhecimento científico, sempre há, na busca da compreensão dos efeitos de sentido de um enunciado, a procura por elementos extralinguísticos que completem as lacunas deixadas no nível do intradiscurso da composição frásica. A linguagem joga com os elementos constitutivos dos efeitos de sentido, que são, ora explícitos, ora implícitos. Há muitos conceitos para estes elementos: doxa, lastro cultural, “apoio coral”, memória discursiva, interdiscurso, etc.; cada um com suas nuances próprias (referentes ao arcabouço teórico da área de conhecimento de que provêm) e com uma característica em comum (corresponder ao que não foi dito/escrito, porém compreendido ou utilizado como conhecimento anterior). Nesse sentido, destaca-se que uma das proposições básicas da Análise de Discurso de linha francesa (doravante, AD) é que o sentido, ou melhor, o efeito de sentido não é prévio ao discurso. A produção/reprodução de um discurso se dá por dois fatores: por paráfrase e por polissemia, sempre embasadas num discurso prévio. Segundo Orlandi (1996, p. 19), de forma geral, “Da observação da linguagem em seu contexto, [...], podemos dizer que a produção do discurso se faz na articulação de dois grandes processos, que seriam o fundamento da linguagem: o processo parafrástico e o processo polissêmico”. Para essa autora (1996, p. 20), a paráfrase é a matriz do sentido, “é o que permite a produção do mesmo sentido sob várias de suas formas”; e a polissemia é a fonte de linguagem “responsável pelo fato de que são sempre possíveis sentidos diferentes, múltiplos”. A tensão entre esses processos é que constitui as várias instâncias da linguagem. Essa tensão representa “o conflito entre o garantido, o institucionalizado, o legitimado, e aquilo que, no domínio do múltiplo, tem de se garantir, se legitimar, se institucionalizar”. A essa luz, pretende-se mostrar (ainda que em um caso bem específico e pontual) como essa tensão atua na (re)produção dos discursos publicitários. A publicidade tem sido considerada, ao menos por alguns autores, ______ [ 107 ]

como linguagem de sedução e de persuasão. Por isso, talvez, na maioria dos casos, os manuais de redação publicitária, ao determinar as técnicas de sedução/persuasão do texto publicitário, colocam os redatores como tendo a particularidade de ser a fonte e a origem do sentido do material publicitário que desenvolvem. Neste sentido, observa-se que a expressão criatividade sugere, enquanto efeito de sentido óbvio, o aparecimento espontâneo de algo que não existia e que a partir de um dado momento passa a existir pela vontade e capacidade inventiva de um sujeito. Pode-se apontar que, ao se tratar de processos criativos em tais manuais, há o apagamento da tensão existente entre os fundamentos da linguagem. A criatividade deve ser entendida, pelo menos na publicidade, como sinônimo de solução de problemas de comunicação. A essa luz, e na esteira de Barreto (2004), compreende-se que o processo criativo na publicidade deve ser entendido como solução de problemas mercadológicos e não como capacidade individual que dependeria da intuição ou da genialidade de um sujeito. Segundo o autor (2004, p.73), “O problema, contudo, é sempre, invariavelmente, componente ativo, verdadeira razão de ser de tudo o que se compreende sob o título ‘criatividade’. Simplesmente não há criatividade sem problema referente”. Desta forma, deve-se entender que o sujeito/redator, não sendo a fonte e a origem do que diz no texto publicitário, procura solucionar problemas de comunicação e, quando tais problemas são solucionados, credita-se a este empreendimento o status de ação criativa. No entanto, não se pode associar criatividade a genialidade, ao menos, na posição teóricofilosófica deste estudo. Barreto (2004, p. 89) aponta que em algumas teorias filosóficas modernas a criatividade é parte constituinte da natureza humana. Para o autor (4004, p. 89): Durante o século XVIII, muitos pensadores e escritores, em particular Kant em sua Crítica ao Juízo, associaram criatividade e gênio. Kant entendeu ser criatividade um processo natural, que criava suas próprias regras. Também sustentou que uma obra de criação obedece a leis próprias, imprevisíveis. E daí concluiu que a criatividade não pode ser ensinada formalmente, apenas analisada e criticada.

Neste viés, observa-se que os manuais de redação publicitária não ensinam, e nem pretendem ensinar, técnicas de criatividade, entendendo está como advinda de um processo natural, haja vista que, se os manuais entendessem que o processo criativo é um processo natural, não haveria lógica em procurar desenvolver técnicas de aperfeiçoamento criativo. ______ [ 108 ]

Neste sentido, para demonstrar que a criatividade na publicidade não emana da subjetividade inventiva e intuitiva de um sujeito, convocamse os conceitos de interdiscurso, discurso-transverso e pré-construído, além do auxílio da teoria polifônica da enunciação para compreender os desdobramentos (pontos de vistas, coro polifônico) enunciativos do sujeito redator, para empreender a análise de enunciados publicitários com o intuito de avaliar a tese do estudo que propõe observar a criatividade como um processo não-subjetivo. Assim, procurar-se-á entender o funcionamento do processo criativo publicitário e não apenas a função sedutora e persuasiva da publicidade. REDAÇÃO PUBLICITÁRIA: (OU O DISCURSO NA PUBLICIDADE) Carrascoza (2004), em Razão e Sensibilidade no texto publicitário, aponta que o texto publicitário é fundamentado em duas forças que são, para Nietzsche, a apolínea, sustentada no discurso racional, nos argumentos, e a dionisíaca, que se apoia na emoção e no humor. Na mesma obra, o autor diz que o texto publicitário opera basicamente por meio de duas funções: a estética (fazer saber) e a mística (fazer crer), sendo que o fazer saber e o fazer crer trabalham a favor do fazer querer publicitário, ou seja, fazer com que o interlocutor ou o receptor da mensagem publicitária sinta vontade (desejo) e experimente ou consuma o produto ou serviço. Nesse sentido, pode-se destacar que um dos recursos utilizados pela mensagem publicitária é o de mostrar ao público um mundo perfeito, usando em seus anúncios imagens de lugares e objetos atraentes. Carvalho (2010), no livro Publicidade: a linguagem da sedução, mostra que a publicidade deve estar atenta à vida, aos hábitos, crenças e saberes do público, porque é com base neles que a publicidade forma/constitui suas estratégias de comunicação, com o fim prático de seduzir/persuadir/convencer o interlocutor e ajudar/ estimular na finalização da compra/aquisição de produtos/serviços. A autora (2010, p. 18) destaca que, “com o uso de simples palavras, a publicidade pode transformar um relógio em uma jóia, um carro em símbolos de prestígio e um pântano em paraíso tropical”. Percebe-se que a palavra (isto é, a prática discursiva) tem o poder de criar e destruir, de prometer e de negar. A publicidade se vale dos recursos da palavra (processos discursivos) para persuadir/convencer os interlocutores/ ______ [ 109 ]

receptores. Neste sentido, fala-se que o texto publicitário possui algumas funções. Martins (1997, p. 21), na obra Redação Publicitária: teoria e prática, afirma que o texto publicitário, enquanto fonte informativa, possui a “função de agilizador de consumo”. Da mesma forma, Sandmann (2003, p. 27), em A linguagem da Propaganda, na esteira de Jakobson (1971) acerca das funções da linguagem, apresenta que o texto publicitário atua, geralmente, em face das funções apelativa (mensagem centrada no receptor) e estética (ou poética: centrada na própria mensagem). Como se pode observar, alguns manuais (sem tirar o crédito de suas contribuições) colocam a publicidade como uma linguagem de sedução, com linhas de força que atuam entre a razão e a emoção, com a função de centrar suas mensagens ao nível do próprio texto (função estética/poética) e ao nível do receptor/interlocutor (função apelativa). Neste viés, é pertinente mostrar que estes manuais são determinados por pressupostos filosóficos advindos de noções retóricas e pragmáticas que remontam à tradição idealista (racionalista/metafísica/platônica e mentalista/empirista/aristotélica), que coloca, cada uma a seu modo, o sujeito como um ser subjetivo e, por essa via, como fonte e centro do sentido. Assim, e a partir desta apresentação, este trabalho se propõe a tecer alguns questionamentos a respeito da produção do texto publicitário, deslocando o debate não para o estudo da função, mas para o estudo do funcionamento da mensagem publicitária. Desta forma, alguns deslocamentos e empréstimos serão convocados para demonstrar o empreendimento de uma visada materialista para o estudo do discurso publicitário. Deste modo, entende-se que, em alguns casos, os manuais de redação publicitária buscam mostrar técnicas de produção textual que procuram desenvolver determinadas capacidades de dominar recursos estilísticos que a língua oferece e que permitem, em certos casos, dar espaço à inovação e à criatividade como uma atividade subjetiva do sujeito/redator. Acredita-se que esta criatividade, tal qual para Barreto (2004), também pode ser entendida com solução de problemas de comunicação (de ordem mercadológica). Neste sentido, aponta-se que o ponto fraco dos manuais se situa no não entendimento de que a solução de problemas de comunicação independe da capacidade inventiva do sujeito/redator. Em outras palavras, não se pode colocar estas soluções como dependendo apenas da capacidade subjetiva do sujeito/redator, pois ele não é a fonte e a origem desta solução, haja vista que não se pode, ao menos em uma posição materialista, manter o desconhecimento e/ou desconsiderar as condições de produção material deste tipo de solução. ______ [ 110 ]

DISCURSO, POLIFONIA E CRIATIVIDADE NÃO-SUBJETIVA Uma primeira colocação deve ser feita antes de desenvolver o quadro teórico da teoria materialista do discurso. Embora os objetos de crítica do estudo sejam alguns manuais de redação publicitária e estes tenham como orientação a tessitura daquilo que se convencionou chamar de texto publicitário, o foco deste trabalho vai para além do texto. Por isso, torna-se prudente deixar claro que o objeto de análise é o discurso (e, respectivamente, algumas práticas discursivas) e não o texto, haja vista que este empreendimento procura trabalhar não apenas com questões textuais, mas, antes de tudo, busca compreender as práticas que se materializam sobre e pela discursividade. Neste percurso, Possenti (1993), no capítulo Notas sobre o discurso como questão pertinente, aponta que a questão do discurso se colocou para os linguistas em três lugares: i) discussão sobre qual seria o objeto da linguística; ii) as discussões sobre a natureza das línguas; iii) as solicitações que outras áreas de conhecimento fizeram para a linguística. A primeira questão se desdobra ao mesmo tempo em relação à extensão do objeto e a um princípio mínimo de organização. A constituição de um objeto de ciência precisa ser delimitável e representável. Assim, Saussure (1974), no Curso de Linguística Geral, estabeleceu o objeto da linguística no nível dos signos por sua convencionalidade. Os outros problemas relacionados à linguagem foram colocados para a fala como o lugar onde se entrecruzam dados relevantes, mas não sistematizáveis. Esta limitação do objeto da linguística, estabelecida por Saussure (1974), custou, de certa forma, a exclusão do sentido para fora das preocupações da Linguística. Para Possenti (1993), a teoria linguística de Chomsky é a mais bem sucedida no campo de ampliação do objeto da linguística. Essa teoria, no nível da sintaxe, mostra a relação a um objeto mais extenso que o conjunto de signos. Para ele (1993), Chomsky atribui um caráter inato a certos princípios gerais das gramáticas possíveis. Neste sentido, entende-se que o que é inato para Chomsky é convencionado para Saussure. Possenti (1993), depois de apresentar as problemáticas dos objetos da linguística em Saussure e Chomsky, aponta que havia também preocupações em tentar explicar o discurso, enquanto unidade maior que o signo e a frase. É neste sentido que se introduz a crítica de Pêcheux às proposições Saussurianas e Chomskyanas. Pêcheux e Fuchs (1993), em A propósito da análise automática do discurso: ______ [ 111 ]

atualização e perspectivas (1975), a partir da questão da interpelação, apresentam o conceito de formação ideológica que se caracteriza como a constituição de um conjunto complexo de atitudes e de representações que se relacionam com as posições de classes. Este conceito mostra que o discursivo, justamente pelo fato de não se poder identificar língua e ideologia, deve ser visto como um dos aspectos materiais da materialidade ideológica. Essa materialidade ideológica comporta, como um de seus componentes, uma ou várias formações discursivas (doravante, FD) interligadas que determinam o que pode e deve ser dito no interior de determinadas relações de classes. O fato de o sentido de uma sequência só ser concebível a partir de uma FD leva ao entendimento de que as sequências discursivas sempre pertencem a uma FD dada e que esse pertencimento se encontra recalcadoesquecido para o (ou pelo?) sujeito. A essa luz, como sustentar que o sujeito/redator seria a fonte e a origem daquilo que diz nos textos publicitários? Neste sentido, apresentar-seão duas questões que permitem pensar os processos criativos na publicidade. Por meio da primeira, relativa ao deslocamento da função para o funcionamento, procura-se demonstrar que a publicidade deve ser entendida e estudada a partir de seu funcionamento enquanto prática discursiva e não por meio de sua função. Realiza-se, aqui, o mesmo tipo de deslocamento realizado por Pêcheux (1993) em relação ao par saussuriano Língua/Fala, que coloca o estudo dos processos discursivos à luz de seu funcionamento e de suas condições de produção. A outra questão, relativa às estruturas sintáticas (superficiais e profundas) da teoria chomskyana, que demonstram uma criatividade nãosubjetiva no uso da língua, permitiu a Pêcheux (1993) pensar os processos discursivos em termos de estruturas discursivas analisáveis de superfície e em estruturas profundas que as determinam (por exemplo: FD, Interdiscurso, Discurso-transverso, Pré-construído). A partir destas duas questões, pode-se apontar que os efeitos de sentido não se processam no sujeito. Pêcheux (2009, p. 145), ao criticar a forma-sujeito do idealismo, diz que, “sob a evidência de que ‘eu sou realmente eu’ (com meu nome, minha família, meus amigos, minhas lembranças, minhas ‘idéias’, minhas intenções e meus compromissos), há o processo de interpelação-identificação que produz o sujeito”. Dito de outro modo: o sujeito é constituído por dois fatores fundamentais, isto é, ele é formado pelo esquecimento e pela identificação com uma FD dada que se revela no interdiscurso e que produz o assujeitamento ______ [ 112 ]

por meio do recurso ao já-dito. Portanto, o dizer do sujeito, e no caso em estudo, o sujeito/redator é “invadido/atravessado” por outros dizeres. No entanto, esses outros dizeres se encontram apagados/esquecidos para e/ou pelo sujeito (eis aí a ilusão publicitária de um estágio pré-discursivo). Para Pêcheux e Fuchs (1993, p. 169), todo enunciado, para ser dotado de “sentido”, precisa necessariamente pertencer a uma FD, e é “este fato [...] que se acha recalcado para o (ou pelo?) sujeito e recoberto para este último, pela ilusão de estar na fonte do sentido, sob a forma da retomada pelo sujeito de um sentido universal preexistente”. Ao recusar a forma-sujeito do idealismo, Pêcheux (2009) defende que o sentido se estabelece em relações de substituição e paráfrase e que isso pode ocorrer por equivalência ou por implicação. Pêcheux (2009, p. 151) afirma que essa possibilidade de substituição pode tomar duas formas fundamentais: a da equivalência – ou possibilidade de substituição simétrica –, tal que dois elementos substituíveis A e B “possuam o mesmo sentido” na formação discursiva considerada, e a da implicação – ou possibilidade de substituição orientada –, tal que a relação de substituição A ► B não seja a mesma que a relação de substituição B ► A. (itálicos do autor).

Uma substituição por equivalência, em um discurso dado, pode ser vista como em “o jantar estava delicioso” sendo trocado por “o jantar estava gostoso”. Observa-se que os termos delicioso e gostoso são equivalentes em relação ao sabor e ao prazer proporcionado pela refeição, haja vista que os efeitos de sentido desses termos são sustentados por uma mesma FD sinonimizadora. Porém, em relação à substituição por implicação, seria necessário o encadeamento por meio de transversalidade, isto é, seria necessário o aparecimento de um discurso-transverso. Segundo Pêcheux (2009, p. 154): o interdiscurso enquanto discurso-transverso atravessa e põe em conexão entre si os elementos discursivos constituídos pelo interdiscurso enquanto pré-construído, que fornece, por assim dizer, a matéria-prima na qual o sujeito se constitui como ‘sujeito falante’, com a formação discursiva que o assujeita. (itálicos do autor).

Pode-se dizer que um discurso-transverso aparece quando uma sequência Y atravessa perpendicularmente uma sequência X. Observe-se o exemplo de Pêcheux (2009, p. 152-153), dado como no contexto de uma sequência do tipo “constatamos a/b”: passagem de uma corrente elétrica/deflexão do galvanômetro. Esta sequência, Y, que atravessa os substituíveis da sequência ______ [ 113 ]

X, determina que a relação de implicação seja feita de uma forma ou de outra, alterando-se o modo de encadeamento, pode ser: “A passagem de uma corrente elétrica determina a deflexão do galvanômetro” ou “A deflexão do galvanômetro indica a passagem de uma corrente elétrica”. Esse atravessamento indica que a sequência Y é o discurso-transverso da sequência X, pois determina o modelo de encadeamento entre os substituíveis a/b da sequência X. Nesse viés, o sentido, definido pelo processo discursivo que lhe cabe, ocorre em termos de efeitos de sentido que se reproduzem a partir de relações de substituição e de paráfrase de palavras e/ou expressões de uma mesma FD. Para Pêcheux (2009, p. 146), é “a ideologia que fornece as evidências pelas quais ‘todo mundo sabe’ o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc.”. A ideologia simula a transparência da linguagem; portanto, o caráter material do sentido de um enunciado é dependente do interdiscurso: o próprio de toda formação discursiva é dissimular, na transparência do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso, que determina essa formação discursiva como tal, objetividade material essa que reside no fato de que ‘algo fala’ (ça parle) sempre ‘antes, em outro lugar e independentemente’ (PÊCHEUX, 2009, p. 149).

Pêcheux (2009) define, então, o interdiscurso como aquilo que “fala sempre antes, em outro lugar e independentemente”. Nesta perspectiva, compreendendo a (re)produção dos processos discursivos à luz da teoria materialista do discurso, procurar-se-á mostrar, a partir de um caso pontual, como se dá o processo discursivo de enunciados publicitários, para buscar demonstrar que aquilo que se chama de criatividade publicitária é, antes de tudo, ao menos neste caso, um processo criativo não-subjetivo atravessado por vários outros dizeres. EFEITO MÜNCHHAUSEN E POLIFONIA A tese “a Ideologia interpela os indivíduos em sujeitos” designa, de forma retroativa, que o sujeito é sempre-já-sujeito, ou seja, o não-sujeito, isto é, o indivíduo é interpelado-constituído em sujeito pela ideologia. Sob essa luz, o apagamento do fato de que o sujeito é resultante de um apagamento necessário no seu próprio interior, fazendo-o se ver como “causa de si”, é chamado por Pêcheux de “Efeito Münchhausen”, efeito pelo qual se consegue, ______ [ 114 ]

de modo fantástico, ser criador de si. Dada a observação de que o sujeito não é criador de si mesmo, Pêcheux (2009, p. 198) mostra que a interpelação do indivíduo em sujeito supõe um desdobramento constitutivo do sujeito do discurso. Esse desdobramento faz aparecer dois termos: um “representa o ‘locutor’, ou aquele a que se habituou chamar o ‘sujeito da enunciação’, na medida em que lhe é ‘atribuído o encargo pelos conteúdos colocados’”; outro “representa ‘o chamado sujeito universal’, sujeito da ciência ou do que se pretende como tal”. Para o autor (2009), esse desdobramento pode assumir diferentes modalidades. Dentre elas, destacamse a modalidade do bom sujeito, superposição entre o sujeito da enunciação e o sujeito universal, de modo que a tomada de posição do sujeito realiza seu assujeitamento; e a modalidade do mau sujeito, em que o sujeito da enunciação “se volta” contra o sujeito universal por meio de uma “tomada de posição” que consiste em uma separação (PÊCHEUX, 2009, p. 199). Deve-se notar, porém, que o interdiscurso, em relação a estas modalidades, “continua a determinar a identificação ou a contraidentificação do sujeito com uma formação discursiva, na qual a evidência do sentido lhe é fornecida, para que ele se ligue a ela ou que a rejeite” (PÊCHEUX, 2009, p. 200 - itálicos do autor). Pode-se perceber que, mesmo quando o sujeito se contraidentifica com uma FD dada, ele ainda continua assujeitado. Ou seja, mesmo negando e se posicionando contra o sujeito universal o sujeito do discurso não se torna menos assujeitado, dado que assume outro posicionamento existente. A essa luz, nas análises do estudo, acredita-se ser pertinente detalhar o desdobramento do sujeito da enunciação dos anúncios que serão analisados, pois o locutor, isto é, o sujeito da enunciação, conforme Ducrot (1987), não é o ser a quem se deve imputar a responsabilidade do enunciado (eis aí algo que se encontra apagado nos e pelos manuais de redação publicitária); esse locutor é constituído por vozes de enunciadores (seres cujos pontos de vista estão presentes na enunciação, mas que não são responsáveis pela ocorrência de palavras precisas) e as perspectivas dos pontos de vista dos enunciadores podem ser recuperadas por meio do interdiscurso, via pré-construído. Nesse estudo, valendo-se da teoria polifônica da enunciação desenvolvida por Ducrot (1987), procurar-se-á deslocar, minimamente a AD para fora de seus domínios para dar conta do desdobramento constitutivo do sujeito da enunciação, haja vista que, por se tratar de discurso, nem sempre o sujeito da enunciação pode ser visto, embora o procure fazer, como responsável pelos pontos de vista assumidos na discursividade do anúncio. Na maioria dos casos, em se tratando de discurso publicitário, o sujeito do discurso geralmente é um personagem e como personagem ele apenas representa; ele ______ [ 115 ]

não é um sujeito que acredita estar na origem do próprio discurso. Por isso, acredita-se ser imprescindível recuperar, pelo desdobramento do sujeito da enunciação, os pontos de vista que sustentam as tomadas de posição que orientam o discurso. Pêcheux (2009), trabalhando com o funcionamento das relativas explicativas e determinativas, constituiu o pano de fundo de uma reflexão filosófica, cuja intenção era abrir campos de questões por meio da relação entre os objetos científicos da Linguística e os objetos científicos da Ciência das Formações Sociais. Ou seja, o autor mostrou que a intervenção da filosofia materialista na Linguística deveria levá-la para fora de seu domínio. Desta forma, ao incorporar nesse estudo a teoria polifônica da enunciação, está-se, em relação ao sujeito da enunciação que caracteriza o bom e o mau sujeito, solicitando à AD que faça alguma parceria com algo de fora do seu domínio. Acredita-se que o sujeito da enunciação (e neste caso, incluise o redator publicitário) seja atravessado/constituído por vários pontos de vista e por várias vozes sociais e é nesse sentido que esse estudo se vale da teoria polifônica da enunciação. A polifonia será utilizada no estudo em uma perspectiva discursiva. Portanto, ela será vista como um fenômeno social e concreto ligado ao dizer dos sujeitos. Ducrot (1987), ao também questionar o pressuposto de que o sujeito da enunciação é único e de que cada enunciado só pode ser relacionado a uma única voz, destaca a situação de polifonia (diferentemente da forma como o fez Bakhtin que só empregava o termo nos estudos sobre literatura) em que há dois tipos de personagens: locutores e enunciadores, sendo os primeiros aqueles que são apresentados no enunciado como seus responsáveis; e os segundos os seres cujas vozes estão presentes na enunciação, mas que não são responsáveis pela ocorrência das palavras. Segundo Ducrot (1987, p. 182), aos locutores se atribui a produção dos enunciados. É importante compreender que, por definição, Ducrot entende locutor como “um ser que é, no próprio sentido do enunciado, apresentado como seu responsável, ou seja, como alguém a quem se deve imputar a responsabilidade deste enunciado”. Para o autor (1987, p. 187), há dois locutores. Um, que é a ficção discursiva; e outro, que é o sujeito falante (elemento da experiência). É, portanto, possível imputar a responsabilidade do enunciado a diferentes autores. Porém, nos enunciados, não há apenas locutores. Como já se mencionou, também existem os enunciadores. A noção de enunciador apresenta uma segunda forma de polifonia. Os enunciadores são seres cujas vozes estão presentes no enunciad, mas não são responsáveis pela ocorrência de palavras, ou seja, não é atribuída aos enunciadores nenhuma palavra: ______ [ 116 ]

Chamo ‘enunciadores’ estes seres que são considerados como se expressando através da enunciação, sem que para tanto se lhe atribuam palavras precisas; se eles ‘falam’ é somente no sentido em que a enunciação é vista como expressando seu ponto de vista, sua posição, sua atitude, mas não, no sentido material do termo, suas palavras. (1987, p. 192).

Tendo conhecimento acerca dos locutores e enunciadores, contemplase um dos pilares da obra de Ducrot sobre a teoria polifônica da enunciação. Sobre a imbricação destes conceitos, Ducrot (1987, p. 193) ressalta: “o locutor, responsável pelo enunciado, dá existência, através deste, a enunciadores de quem ele organiza os pontos de vista e as atitudes”. O enunciador é, portanto, o ser cujo ponto de vista apresenta os acontecimentos aos locutores. Ducrot (1987), fazendo uma analogia, afirma que o enunciador está para o locutor assim como o autor está para a personagem. Desta maneira, tem-se como locutor aquele ser que fala e, como enunciador, o ser que deve ser identificado, na análise das vozes (dos pontos de vista), como a perspectiva que enuncia. Assim, nas análises à frente, buscar-se-á observar os locutores e enunciadores que se fazem presentes na elaboração do texto publicitário. ANÁLISE DE PRÁTICAS DISCURSIVAS PUBLICITÁRIAS Nas análises, serão investigados dois enunciados veiculados em peças publicitárias televisivas do iogurte Activia: I) “Muita gente não vai ao banheiro todos os dias e acha que é normal, mas não é”; II) “Você já sabe que Activia contém Dan Regularis que ajuda a regular o trânsito intestinal, mas é preciso tomar regularmente”.

Nas análises, procurar-se-á observar a retomada de já-ditos e os pontos de vista culturais (crenças e valores) que são (re)produzidos pelos enunciados1 frente aos interlocutores, justamente para demonstrar e justificar a tese de que a criatividade é um processo criativo não-subjetivo. Desta forma, procura-se evidenciar que a criação destes enunciados publicitários não depende da criatividade subjetiva de um sujeito/redator frente a um problema de comunicação, mas que ela é determinada por estruturas profundas, a saber: FDs, interdiscursos, coro de vozes, ou seja, ______ [ 117 ]

tudo que não é dito, mas é compreendido e que sustenta o caráter material do sentido. No enunciado (I), em nível de intradiscurso, observam-se três enunciados. Os dois primeiros estão ligados pelo conectivo e com função aditiva e o último é encabeçado pelo mas com função contrajuntiva. Temse, assim: 1) Muita gente não vai ao banheiro todos os dias, que indica a existência de pessoas que possuem problemas intestinais e que, por isso, não vão ao banheiro todos os dias; 2) acha que é normal: neste enunciado, infere-se que grande parcela das pessoas não sabe que a desregularidade intestinal é sinal de problemas intestinais; 3) não é: este enunciado é encabeçado pelo mas, produzindo um encadeamento que leva a uma conclusão contrassilogística, em que se apresenta uma contraconclusão. Ducrot (1987, p. 215) apresenta o mas como uma conjunção que aparece em enunciados do tipo p mas q, sendo p um argumento para uma conclusão r e q um argumento inverso, que orienta para uma conclusão não-r. Para ele, os enunciados do tipo p mas q fazem intervir diferentes pontos de vista de enunciadores. Segundo este autor (1987, p. 215), Eles [enunciados do tipo p mas q] colocam em cena dois enunciadores sucessivos, E1 e E2, que argumentam em sentido opostos, o locutor se assimilando a E2, e assimilando seu alocutório a E1. Embora o locutor se declare de acordo com o fato alegado por E1, ele se distancia, no entanto, de E1.

Observam-se, então, dois enunciadores. E1: Muita gente não vai ao banheiro todos os dias e acha que é normal e E2: não é. O locutor se assimila a E2 e nega, neste caso em particular, E1. O enunciador E1 está amparado no pré-construído de que se deve ir ao banheiro diariamente. O encadeamento feito no enunciado conduz a uma conclusão não-r, na qual E2 se ampara para afirmar que não se deve achar normal não ir ao banheiro diariamente. A perspectiva de E2, que é a posição assumida pelo locutor e pode ser vista por meio do uso contrajuntivo do operador argumentativo mas, orienta conclusivamente contra E1, com o auxílio do pré-construído: não ir ao banheiro regularmente é sinal de problema intestinal. Em (I), como já dito, vê-se a negativa não é, encabeçada pelo mas, que atua de forma opositiva. Esse fato denuncia uma transversalidade discursiva, isto é: os enunciados anteriores ao mas levam a entender que há pessoas que não vão ao banheiro todos os dias e que acham isso normal. Porém, a última parte, sustentada pelo enunciador E2, permite afirmar que não é normal não ir ao banheiro todos os dias. Assim, tem-se o aparecimento de um pré-construído que ______ [ 118 ]

é caracterizado por ativar a compreensão de um já-dito mais especializado, que, neste caso, pode ser parafraseado pela explicativa: o intestino preguiçoso, que não funciona regularmente, pode ser indício de problemas intestinais. A transversalidade ativada por esse enunciado provém de um discurso mais especializado (discurso científico) e que é, portanto, mais estabilizado e pautado em uma voz de autoridade. Porém, o conhecimento estabilizado desse pré-construído é trivializado pelo discurso da Danone, ou seja: o discurso da empresa não é científico a rigor como pretenderia ser. Não é uma verdade absoluta que o intestino das pessoas, para ter um funcionamento adequado (regulado), deva funcionar todos os dias, como anuncia o enunciado. Observa-se que o sujeito/redator (atendendo ao pedido de criação da Danone) (re)produz o atravessamento e a generalização de efeitos de sentido provenientes de uma FD ancorada no discurso científico que prega a não regularidade do funcionamento intestinal como um indicador de problemas. Isto é, o sujeito/redator desloca os efeitos de sentido dessa FD para dizer aos interlocutores que é preciso ir ao banheiro diariamente. Pode-se afirmar que o iogurte é anunciado como um alimento/ produto capaz de resolver problemas no funcionamento de intestinos lentos e preguiçosos. Dito de outro modo: esse enunciado permite pressupor que, para resolver problemas de mau funcionamento intestinal, basta consumir o Activia. Essa pressuposição é sustentada não por uma mente genial e inventiva de um redator publicitário, mas por uma série de posições discursivas que denunciam um coro de vozes que já existiam antes do anúncio ser redigido. O discurso publicitário do Activia, que fixa a não ida ao banheiro como fator genérico para a existência ou aparecimento de transtornos intestinais, não é, como tenta aparentar, um discurso publicitário articulado sobre um discurso científico, pois o sujeito/redator, ao tentar dar um aspecto científico aos dois primeiros enunciados de (I), na tentativa de fazer deles um fato inquestionável e verificável como o discurso científico, apaga o aspecto ideológico que ancora sua FD na rede do interdiscurso que a atravessa, para dizer que a não ida ao banheiro diariamente é um sintoma de problemas intestinais. Esse efeito de sustentação busca ser estabelecido no quadro de crenças do sujeito, fazendo com que ele creia nessa “evidência” e acredite que este efeito de sentido é do conhecimento de todos. O sujeito/redator, ao dizer que não é normal não ir ao banheiro com regularidade, ativa também um conhecimento especializado, pois não ir ao banheiro com certa regularidade pode ser indício de algum problema no funcionamento intestinal. Mas não é científico o dizer que é sustentado pelo pré-construído que se deve ir ao banheiro diariamente. Essa afirmação nocional é utilizada para ______ [ 119 ]

atender aos interesses comerciais da Danone. Observa-se nesse deslizamento do discurso publicitário do Activia a simulação de um discurso com aspecto especializado e estabilizado. Esse deslizamento é possível, pois a língua oferece lugar à interpretação. “A linguagem”, diz Orlandi (2001, p. 21), “serve para comunicar e para não comunicar”. Orsatto (2009) aponta que é justamente a não transparência da linguagem que impede ela [a linguagem] de ser concebida com um puro instrumento de comunicação. Pode-se dizer que a simulação científica (a não transparência da linguagem) do enunciado (I) estabelece uma relação de proximidade entre o anúncio e os interlocutores. O travestimento generalizador ativado pelo enunciado revela que a peça publicitária reproduz (na solução do problema de comunicação da Danone), nas relações interdiscursivas que constituem o anúncio, apenas os já-ditos que podem sustentar a tomada de posição do bom sujeito em relação aos cuidados com o corpo. Em relação ao enunciado (II), por meio do dêitico exofórico você, pode-se afirmar que o sujeito/redator (em nome da Danone) procura se aproximar do consumidor do Activia, usando o termo para dar a sensação de proximidade e pessoalidade entre empresa fabricante e interlocutor (possível e/ou real consumidor), além de obter um efeito de generalização interlocutiva. Ou seja, o enunciado é direcionado a todo interlocutor que o assiste. O enunciado Você já sabe que Activia contém Dan Regularis reforça a crença ou o imaginário corriqueiro que prega o corpo como o resultado daquilo que se come. Santos (2006, p. 5) ressalta a importância de entender que “a comida participa da construção do corpo não só do ponto de vista da sua materialidade como também nos aspectos culturais e simbólicos”. Para a autora (2006), a comida exerce, além da função biológica, uma função social. Portanto, a comida, ou seja, a nutrição, ao mesmo tempo em que nutre, também é responsável pela aparência social do corpo. As dietas milagrosas que prometem a perda de muitos quilos em períodos curtos se tornam um bom exemplo para ilustrar como a comida pode exercer tanto uma função biológica quanto social. Vê-se no caso do Activia que o sujeito/redator busca interpelar os interlocutores do anúncio se valendo de afirmações/promessas que imbricam o biológico e o social. A função biológica do Activia é relativa à nutrição do organismo e à atuação fisiológica do bacilo Dan Regularis no trato intestinal. Observe-se que a função social ativada é relativa ao fato de que, ao se alimentar com o iogurte, segundo a proposta do enunciado, o consumidor regularizaria o trânsito intestinal, fato que o ajudaria a diminuir, por exemplo, o diâmetro da cintura, ocasionando um ajuste do corpo ao modelo corporal tido como ______ [ 120 ]

ideal que é o corpo magro. Observa-se por meio dessa asserção, no enunciado (II), que não há nada que já não foi dito antes, em outro lugar e de forma independente, fato incontestável de que a criatividade é um processo nãosubjetivo. Ao analisar o discurso materializado no enunciado (II), podem-se observar dois enunciadores que sustentam os efeitos de sentido ativados. Vê-se a Danone, como o enunciador E2, sustentando, via conhecimento nocional, o pré-construído de que as pessoas sabem que o Activia ajuda a regular o trânsito intestinal, pois ele contém o Dan Regularis; e o enunciador do discurso científico probiótico, EDCP, que ativa um conhecimento mais especializado e estabilizado, responsável pelo ponto de vista que sustenta o pré-construído de que o Dan Regularis, que é uma bactéria probiótica, ajuda a regular o trânsito intestinal. Os pontos de vista atualizados pelos enunciadores, EDCP e E2, via conhecimento nocional e conceptual, respectivamente, atuam para a manutenção do discurso (re)produzido sobre as propriedades funcionais/ benéficas anunciadas do Activia e para a criação/reprodução de voz de autoridade (discurso científico probiótico) frente à proposta de que, para um bom funcionamento do intestino, deve-se consumir alimentos/produtos que contenham bactérias que ajudam na regulação do trânsito intestinal. Pode-se afirmar que esses enunciadores são os mesmos utilizados pelo enunciado (I), para sustentar os efeitos de sentido que colocam o iogurte como um alimento/produto capaz de regular o funcionamento de intestinos lentos e preguiçosos. O ponto de vista ativado pelo enunciador E2 pressupõe que as pessoas, consumidoras ou não do Activia, possuem um conhecimento prévio das propriedades funcionais/benéficas do iogurte. O enunciador EDCP se marca como voz de autoridade; ele ativa conhecimentos científicos que foram (ou estão sendo) assimilados por interlocutores não especializados. Observase, por meio da atuação do enunciador EDCP, a articulação entre o discurso científico (autorizado) e o discurso publicitário (reiteração trivial do discurso científico). Vê-se que o discurso assumido na peça publicitária, ao mesmo tempo em que simula certa cientificidade também incorpora, de forma trivial e corriqueira, o discurso científico que fez intervir por meio do enunciador EDCP. Entretanto, no enunciado mas é preciso tomar regularmente, que é encabeçado pelo conectivo mas, observa-se a introdução de uma informação que é sustentada pela voz do enunciador E2, amparado pelo EDCP. Em (II), observa-se o esquema do tipo p mas q, em que o mas levaria a uma conclusão não-r. Antes do mas, é afirmado que as pessoas já sabem que o Activia ______ [ 121 ]

contém um bacilo que faz o intestino funcionar. O que não sabiam e foi introduzido é que é preciso tomar o Activia diariamente para o trânsito intestinal fluir regularmente. Assim, de acordo com a perspectiva de E2, vê-se a advertência de que é preciso tomar o Activia regularmente, pois, de outra forma, não se pode garantir a eficácia do produto. Com essa advertência, o sujeito/redator (em nome da Danone) procura antecipar que a responsabilidade pelo funcionamento ou não do intestino, para aqueles que consomem o Activia, não é do produto, mas do próprio consumidor. Ou seja, com essa advertência ativada pelo uso do mas, buscam-se criar formas de isenção da culpa, caso o Activia não faça o intestino funcionar da maneira como se apresenta no anúncio. Segundo Silva (2003, p. 262), “Na ordem tecnocientífica empresarial, o corpo é objeto de explorações comerciais, de diferentes manipulações científicas e industriais e deve ser controlado diariamente para prolongar a vida”. Sob a luz da citação, pode-se afirmar que o sujeito/redator procura explorar os efeitos de sentido produzidos em relação ao corpo com o interesse de aumentar as vendas do Activia. Observa-se que o enunciado se vale do imaginário corriqueiro que prega o corpo como o lugar do belo. Esse imaginário é amplamente atravessado pela FD dominante da ordem tecnocientífica-empresarial que filtra os efeitos de sentido que colocam o corpo como o lugar, em última instância, do belo. Pode-se afirmar que, pelo filtro de leitura da FD dominante que atravessa a FD que ancora o discurso do anúncio, o corpo, para se tornar e/ou ficar belo, deve ser disciplinado e controlado fazendo crer que o corpo não belo é resultado de indisciplina e relaxamento: pior para o “feio”. A Danone, enquanto enunciador, ainda sustenta a voz que comporta os efeitos de sentido que levam os interlocutores a inferir que quanto maior for o consumo regular, maior (=melhor) será o funcionamento intestinal. Pode-se afirmar que, com esse posicionamento enunciativo e discursivo, o sujeito/redator, além de reforçar os interesses comerciais do produto, coloca-se na posição de bom sujeito do discurso que prega o corpo como o lugar do belo, pois essa voz que afirma/promete que quanto maior for o consumo do iogurte maior será o benefício proporcionado por ele. Desta forma, vê-se que a peça publicitária busca levar os interlocutores a entender que, com o consumo regular do Activia, o intestino funcionará melhor e, por isso, poder-se-á ter um corpo saudável e nutrido, sinônimo de corpo belo. Ao considerar que um corpo saudável, para o discurso materializado nos anúncios do Activia, representa/reproduz a tríade saúde, nutrição e beleza, observa-se o sujeito/redator usa esta tríade para reforçar a crença que vem ______ [ 122 ]

sendo convencionada com as promessas feitas nos anúncios do Activia: isto é, a afirmação/promessa que o iogurte faz o intestino funcionar. Ainda sobre a questão da utilização do mas, pode-se dizer que ele atua como um conectivo contrajuntivo e realiza um movimento adversativo em relação à atitude relapsa dos consumidores. Assim, o enunciado (II) atua no anúncio como forma de advertência, pois, segundo o discurso materializado pelo sujeito/redator em nome da Danone, o iogurte só funcionará para quem consumir regularmente. Esse movimento contrajuntivo do mas no enunciado é denunciativo de que a Danone está incitando os interlocutores a investir no cuidado de seus corpos, mas de uma forma específica e que lhe dá retorno financeiro. Pode-se ver que o discurso publicitário, ao anunciar o Activia, busca interpelar os interlocutores no sentido de eles cuidarem de seus corpos consumindo o produto. Para Souza (2004, p. 135), os discursos que buscam impor um modelo corporal ideal formulam e reformulam que a beleza é resultado de um trabalho do sujeito sobre seu corpo. Para a autora (2004), esses discursos recomendam a atuação sobre a corporalidade de duas maneiras: preventiva e regenerativa. Pode-se apontar que o discurso em questão, no movimento contrajuntivo, busca atuar de forma preventiva em relação aos cuidados com o corpo. Neste sentido, a advertência feita pelo enunciado mas é preciso tomar regularmente procura apagar os interesses comerciais da Danone frente à injunção de os interlocutores a consumirem o iogurte com regularidade. Desta forma, o sujeito/redator, ao indicar de modo velado no discurso a forma de prevenção para os interlocutores ficarem ou permanecerem belos, acaba por reforçar o caráter material do sentido do discurso publicitário com o atravessamento, via interdiscurso, de efeitos de sentido que pregam que a beleza é resultado do trabalho do sujeito em relação aos cuidados com o corpo. CONSIDERAÇÕES FINAIS À luz da análise de dois enunciados de peças publicitárias do iogurte Activia, procurou-se demonstrar que a criação publicitária pode e (em última instância) é determinada por um processo criativo não-subjetivo, haja vista que a sua (re)produção independe da criatividade subjetiva de um sujeito/ redator que seria a fonte e a origem do efeito de sentido contido no dizer (no caso do estudo, dizer publicitário). ______ [ 123 ]

Como hipótese, lança-se a proposta de analisar a criatividade publicitária, não mais a partir das funções da publicidade (como fazem alguns manuais de redação publicitária), mas por meio do funcionamento das práticas discursivas publicitárias e de suas superficialidades discursivas determinadas por processos criativos não-subjetivos da ordem das estruturas profundas que determinam o que pode e o que deve ser dito. Ainda, por meio da análise, pretendeu-se mostrar (de forma pontual), no caso dos dois enunciados do corpus, que, quando eles falam sobre propriedades benéficas, principalmente no sentido de qualidade de vida, revelam sua relação com a tríade saúde, nutrição e beleza e que, por isso, revelam não poder ser fruto da intuitividade criativa de um sujeito/redator capaz de propiciar o aparecimento espontâneo de algo que não existia e que a partir de um dado momento passa a existir por sua vontade e capacidade inventiva. A criatividade, no caso dos enunciados (I) e (II), reside na questão de que o processo criativo na publicidade deve ser entendido como solução de problemas de comunicação (mercadológicos) e não como uma capacidade individual que dependeria da intuitividade ou da genialidade de um sujeito/ redator. Assim, o problema de comunicação mercadológico materializase na afirmação/promessa de que o Activia faz o intestino funcionar. Vêse que a imagem que a Danone procura construir através da afirmação/ promessa (a solução do problema de comunicação desenvolvida pelo sujeito/ redator) procura atender aos interesses comerciais da empresa, haja vista que, enquanto ela se coloca como uma empresa competente e capacitada frente aos interlocutores, silencia o fato de que produz e comercializa o Activia para atender à demanda existente para esse tipo de produto e não porque ela estaria preocupada com a qualidade de vida das pessoas que possuem problemas intestinais. Pode-se afirmar que a Danone, na tessitura publicitária, sustenta a imagem de empresa capacitada, valendo-se do imaginário ancorado e sustentado pela tríade saúde, nutrição e beleza. Aponta-se (como provocação, ao menos) que a incompletude deste trabalho deve servir como um direcionamento para futuras pesquisas que buscarão ver e mostrar outras questões que denunciem, ao se tratar de discurso e, quem sabe, de criatividade, que algo fala sempre “antes, em outro lugar e independentemente” (PÊCHEUX, 2009, p. 149). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARRETO, Roberto M. Criatividade em propaganda. São Paulo: Summus, 2004. ______ [ 124 ]

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NOTA 1) Aponta-se que estes enunciados são sustentados por uma FD que prega a afirmação/ promessa de que o Activia faz o intestino funcionar. Sob essa luz, pretende-se mostrar que os enunciados, ao menos, reproduzem discursivamente os efeitos de sentido provindos da tríade união formada entre os termos saúde, nutrição e beleza que permeia e entrelaça os discursos sobre o corpo e que gera motivações e condições propícias para sustentar o imaginário que coloca o corpo como um objeto a ser moldado e transformado por técnicas de embelezamento. Entende-se que essa tríplice aliança apaga as fronteiras existentes entre a saúde, a nutrição e a beleza, haja vista que, hoje, um corpo saudável é sinônimo de corpo belo e nutrido, da mesma forma que um corpo belo é sinal de saúde e de nutrição, sem esquecer que um corpo bem nutrido sustenta um corpo saudável e belo.

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CAPÍTULO

7

A AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR: EFEITOS DE SENTIDO E POLISSEMIA

Nelci Janete dos Santos Nardelli

Ao considerar a perspectiva de que os sentidos são regulados socialmente, por mais que os discursos e as ações possam parecer os mesmos, eles produzem efeitos distintos, conforme o lugar ou a posição que o sujeito ocupa, pois o sentido não se depreende apenas da materialidade discursiva, mas de uma série de relações estabelecidas entre o enunciado, o enunciador e as condições de produção que envolvem a enunciação. Tratando-se de discursos que emergem de ambientes educacionais (ou políticos), essa perspectiva não poderia ser diferente, pois, como a própria sociedade, esses ambientes não são constituídos por indivíduos livres e únicos, já que eles devem aderir a uma ou outra posição que existe, independentemente deles ou de suas vontades. E elas demarcam seu espaço e determinam como devem agir e se portar diante de uma determinada situação, fator que, no máximo, permite que a liberdade do indivíduo seja a escolha de em que posição ele prefere estar e, então, defender ou se submeter aos ideais propostos. A educação superior é gerida por instituições e é, portanto, parte intrínseca de uma sociedade que, por se dividir em interesses antagônicos de diferentes grupos sociais, os quais produzem discursos contraditórios, adota a prática de sancionar normas que visam, em teoria, primar pelo princípio da isonomia e da igualdade, normatizando suas práticas como forma de controle e de orientação de suas ações, conforme se observa na concepção de Berger (2004, p.105), o qual considera que as instituições sociais “moldam nossas ações e até mesmo nossas expectativas [...] a sociedade dispõe de um número quase infinito de meios de controle e coerção”; assim, o comportamento acaba sendo determinado pela sociedade. As divergências de opiniões sobre as determinações de mecanismos legais são comuns no cotidiano das instituições, sobretudo, das instituições públicas, das quais se cobra, de diferentes formas, a prestação de contas de todos os seus atos. As ambiguidades detectadas na construção de uma legislação são frequentes, sendo, portanto, passíveis de contestação que, em ______ [ 128 ]

geral, definem-se sob uma liminar ou por meio de discussões promovidas por grupos organizados nos diferentes movimentos sociais, os quais evocam a responsabilidade de alertar a população sobre as armadilhas que podem se constituir a partir de um simples ato que, presume-se, visa a regulamentar as ações de uma dada sociedade. Com base no viés teórico da Análise do Discurso, pleiteado por Michel Pêcheux (1975), busca-se analisar, neste estudo, a formação discursiva do movimento dos docentes representado pelo Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior - ANDES sobre a avaliação do ensino superior e que alicerça um discurso de resistência ao caráter coercitivo de uma determinação legal que, segundo o movimento, fere o princípio da autonomia didático-científico da universidade, garantido por meio da Constituição Federal, e que poderia reduzir o alcance dessa autonomia. O discurso elaborado pelo Grupo de Trabalho de Política Educacional do ANDES tece algumas considerações e críticas acerca das políticas educacionais do Governo Federal, no que diz respeito à avaliação da educação superior, pois considera a avaliação proposta pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior - SINAES1 - como contrária à concepção de avaliação defendida pelo movimento. Intenta-se refletir sobre os efeitos de sentido suscitados pelo discurso analisado, com vistas a compreender o seu funcionamento a partir de sua materialidade, por meio da observação dos componentes linguísticos escolhidos para a sua composição, buscando perceber como tais recursos são fatores preponderantes para entender quais são as crenças estabelecidas e compartilhadas entre os membros que compõem o ANDES e que permitem constituir uma identidade própria a partir da solidariedade dos indivíduos que partilham de seus conhecimentos e seus ideais. A temática da avaliação tem ocupado lugar de destaque no ambiente acadêmico das últimas décadas, em que pese à necessidade de adotar critérios que determinem o quê e como avaliar, com o intuito de não cair no simplismo de conceituar a avaliação como um processo de busca da ‘qualidade total’, mas sim com o propósito de abarcar toda a gama de desafios e complexidade inerentes a uma instituição de educação superior, em especial, a universidade que, de acordo com Chauí é uma instituição social e como tal exprime de maneira determinada a estrutura e o modo de funcionamento da sociedade como um todo. Tanto é assim que vemos no interior da instituição universitária a presença de opiniões, atitudes e projetos conflitantes que exprimem divisões e contradições da sociedade como um todo. (CHAUÍ, 2003 [sp]). ______ [ 129 ]

Com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB, fica acentuada a importância da temática, pois “consagra o princípio da avaliação como parte central” (DEMO, 1997, p. 31) para definir as diretrizes da organização do sistema educacional brasileiro, com o propósito de determinar os procedimentos iniciais a serem adotados. Ao eleger a perspectiva teórica da AD para sustentar as reflexões acerca de um corpus definido, tem-se uma metodologia própria para engendrar um trabalho científico e, dentre as teses que fundamentam a AD, no tocante à compreensão dos efeitos de sentido do discurso, uma se refere a estar atento à polissemia, que pode levar o leitor a interpretações distintas, o que implica na necessidade de delimitar as possibilidades com procedimentos que possam nortear a compreensão de um enunciado e minimizar as inevitáveis ambiguidades que insistem em ocorrer no jogo das palavras. Deve-se ter claro que os sujeitos, assim como os sentidos, constituemse no discurso, já que o seu “caráter dialógico constitutivo de seu sentido, isto é, que o sentido de uma formação discursiva depende da relação que ela estabelece com as formações discursivas no interior do espaço interdiscursivo” (MUSSALIM & BENTES, 2001, p. 131). Para Orlandi (2001, p. 36), a polissemia é o elemento responsável pelo funcionamento do discurso, por meio de sua articulação com a língua, sendo ela que propicia o rompimento dos limites estabelecidos pelas fronteiras entre uma e outra formação discursiva e, assim, permite a pluralidade de efeitos, ao contrário da paráfrase, que visa a fechar esses limites: A paráfrase representa [...] o retorno aos mesmos espaços do dizer. Produzemse diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado [...] na polissemia, o que temos é o deslocamento, ruptura de processos de significação. Ela joga com o equívoco.

E é na confluência desses dois elementos que, segundo a autora, surge a tensão constitutiva do discurso, provocando a movimentação entre os sujeitos e as possibilidades de sentidos, o que possibilita a transformação e caracteriza a incompletude de linguagem. Cabe ao analista, portanto, compreender como a interrelação entre o ingrediente político e o linguístico contribui para a constituição do sujeito e a formulação de sentidos que ora se cristalizam e ora se apagam no jogo polissêmico. Percebe-se, portanto, que a insistência de tentar, às vezes, significar as palavras a partir de sua raiz etimológica está voltada para a tentativa de aproximação do interlocutor das muitas facetas que um único termo pode carregar, permitindo-lhe deslocar esse percurso para o contexto sócio______ [ 130 ]

histórico-ideológico por meio das condições de produção que fundamentam o corpus de análise. Assim, etimologicamente, o vocábulo ‘avaliação’ derivaria do verbo “avaliar” que, de acordo com os dicionários consultados, significaria: “atribuir valor; mérito apreciar, estimar, aferir, aquilatar e, ainda, fazer ideia; reconhecer a grandeza, a intensidade e a força; fazer a apreciação; ajuizar”. Estes são conceitos distintos que apontam para diferentes possibilidades de interpretação por parte do interlocutor de acordo com o lugar social em que se inscreve e que determina sua formação discursiva. De imediato, é possível distinguir dois efeitos de sentido: de um lado, o aspecto objetivo, que identifica algo mensurável e aplica um valor a algum objeto, como no caso de “aquilatar”, cujo verbo é destinado para a determinação do quilate estimado, portanto, mais voltado para objetos palpáveis. Por outro lado, como não poderia deixar de ser, o aspecto “subjetivo” de caráter social, que efetivamente interessa para os fins de análise das práticas discursivas em estudo e que possibilita definir a avaliação como mérito ou juízo de valor sobre determinada atividade. Atribuir um juízo de valor a algo requer que o avaliador desloque esse conceito de sua origem filosófica para o universo a que ele pretende aplicar a avaliação e, como frisa Chauí (2001, p.307), é importante diferenciá-lo dos juízos de fato, que “são aqueles que dizem o que as coisas são, como são e por que são [...]; diferentemente deles, os juízos de valor [...] são avaliações sobre as coisas, pessoas, situações e são proferidos na moral, nas artes, na política, na religião”. Portanto, eles têm como objetivo primeiro sedimentar as crenças pré-estabelecidas do que uma sociedade compreende como bom e desejável, ou seja: como as coisas devem ser, com base no que está dado como correto ou incorreto2. É importante, portanto, buscar amparo em intelectuais que contribuíram com a construção e disseminação de conceitos de avaliação no âmbito educacional, pois seus trabalhos transcendem o discurso e se transformam em propostas concretas que, por vezes, são incorporadas às legislações vigentes. Assim, conforme afirma Sobrinho (1999, p. 149), as avaliações “têm inegavelmente um papel transformador e passam necessariamente pela formulação de juízo de valor”, portanto, o próprio processo avaliativo poderia pressupor as mudanças necessárias no que já está cristalizado na sociedade. De acordo com Barreyro & Rothen (2006, p. 957), as concepções que permeiam a avaliação da educação superior

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podem se sintetizar em duas vertentes: as que permitem identificar a avaliação como controle, respondendo a uma lógica burocrática formal de validade legal de diplomas e habilitações profissionais em âmbito nacional, e as com função formativa/emancipatória, sob uma lógica acadêmica, com o intuito de subsidiar a melhoria das instituições.

Em face desta dicotomia, busca-se verificar o que se diz nos textos que tratam da temática, em que diferentes autores, de áreas distintas do conhecimento, porém voltados para o aprofundamento de questões inerentes às políticas para a educação superior, podem contribuir e esclarecer o viés sobre qual o processo avaliativo vigente estaria voltado e quais as alternativas que os agentes envolvidos teriam para construir uma cultura avaliativa que, de acordo com eles, visaria, de fato, à melhoria da educação em todos os aspectos. Na concepção dialética de educação defendida por Gadotti (1983, p. 150), o desenvolvimento humano se daria “pela interação de determinantes internos e externos”. Ele, portanto, parte do princípio de que, para educar, é imprescindível oportunizar o diálogo e, com isso, conquistar uma nova concepção de educação: a educação emancipatória. Neste viés, poder-se-ia deslocar essa concepção dialética de educação para o processo de avaliação, já que o mesmo é constituinte do campo educativo, cujo espaço é concebido como um lugar de contradições e conflitos, o que levaria a compreender que a avaliação emancipatória é aquela que se constitui num processo de reciprocidade. Conforme postulado por Freire (1979, p. 77), promover o diálogo é respeitar “a essência da educação como prática da liberdade” e, embora o foco de análise desses autores esteja mais voltado para o processo de ensinoaprendizagem, em que pese o conceito de avaliação voltado para a relação professor/aluno, observa-se que essa definição pode ser aplicada também às Instituições Educacionais, haja vista o interesse por parte dos defensores desse método avaliativo de privilegiar o lado formativo e transformador que a avaliação pode propiciar, também no que diz respeito a questões administrativas e gerenciais. Voltando aos pensadores que lidam com a temática da educação superior, os quais subsidiam esta investigação, destacam-se algumas posições com as dos que compreendem a cultura da avaliação como “um conjunto de valores acadêmicos, atitudes e formas coletivas de conduta que tornem o ato avaliativo parte integrante do exercício diuturno de nossas funções” (RISTOFF, 1999, p. 60). Em uma das suas reflexões sobre a Universidade, Ristoff (1999, p. 38) retoma a história da avaliação da educação, atribuindo a Sócrates o papel de primeiro avaliador da academia. Dele, depreender-se-ia um processo ______ [ 132 ]

de compreensão da característica multifacetada da avaliação a partir das afirmações de que “avaliar pode ser perigoso, tanto para quem avalia quanto para quem é avaliado”, já que, inerentemente ao processo, culturalmente, estabeleceu-se uma relação de dominação. Neste viés, Ristoff (1999, p. 38) afirma: “avaliar a universidade é firmar valores a partir de parâmetros pré-estabelecidos [...] uma forma de pregação de um modelo subjacente de universidade que prezamos”. Daí, surgem manifestações contrárias e apelos à resistência de aderir a qualquer forma de controle imposta pelo Estado, sendo que a principal crítica está voltada para a prática de adotar parâmetros de comparabilidade, pois há que se valorizar o respeito às especificidades e à identidade institucional, minimizando, assim, a possibilidade de interferência ou de juízo de valor a partir de comparações entre instituições distintas. É preciso renunciar ao hábito, ainda demasiado corrente, de avaliar uma instituição, uma prática, uma máxima social ou moral, como se fossem boas ou más entre si e por si, para todos os tipos sociais indistintamente [...] Dado que o ponto de referência que permite avaliar o estado de saúde ou de doença varia com as espécies, pode variar também para uma só e única espécie, se esta se modificar (DURKHEIM, 2001, p. 75)3

Na tentativa de superação de um modelo limitado ao controle e regulação, Dias Sobrinho (2000, p. 104) enfatiza o interesse e a importância de conceber a avaliação como um processo salutar e imprescindível para quem almeja um crescimento qualitativo no que tange às políticas educacionais. Para ele, a avaliação deve ser permanente e instalar-se como cultura, como ação organizada e programática que pense constantemente e de modo integrado a universidade e contribua para o cumprimento mais eficaz e com maior qualidade de suas funções e de seus compromissos fundamentais.

Pautado no discurso que preza pelo caráter formativo que os processos avaliativos deveriam proporcionar, percebe-se que a linha de interesse entre os estudiosos das políticas avaliativas voltadas para educação superior se concentra na luta contra a reação e rejeição arraigadas nas instituições, colocando a avaliação como uma ferramenta que deveria se tornar uma atividade permanente e abrangendo todas as esferas, com o objetivo de prática de reflexão do que se quer enquanto instituição educacional, bem como para o estabelecimento de caminhos que precisam ser percorridos para atingir os objetivos propostos. Neste sentido, ______ [ 133 ]

um processo avaliativo dotado de qualidade formal e política alimenta-se de todas as chances possíveis, também para cultivar todas as transparências possíveis, como avaliação de dentro e de fora, feita pelos alunos e pela comunidade, olhada de cima e de baixo, inter e extrapares, e assim por diante [itálico do autor] (DEMO, 1997, p. 35)

Todas essas reflexões estão voltadas para o caráter definido como formativo e emancipatório, porém, como é de se esperar, num ambiente em que os confrontos de ideias são intrínsecos à existência, as convicções que respaldam o discurso dos contrários ao processo avaliativo imposto pelo governo versam sobre o fato de que a avaliação seria concebida como mero instrumento regulador, com o discurso e a prática divergindo na hora da aplicação dos dispositivos legais impostos pelo Governo. Deve-se frisar que, do ponto de vista dos teóricos citados, a avaliação e a qualidade são processos indissociáveis, o que pressupõe que aquela seja um instrumento fundamental para construir e consolidar projetos voltados para uma educação de qualidade, como é explicitado na tessitura das legislações consultadas: qualidade histórica é sempre um complexo de condições objetivas e subjetivas, uma oportunidade humana que desabrocha conforme o nível da competência humana implicada. Torna-se simplesmente impraticável cultivar esse tipo de qualidade sem avaliação permanente, tanto como diagnóstico para estarmos sempre a par dos problemas quanto como prognóstico para deslindarmos caminhos futuros, sobretudo de renovação constante (DEMO, 1997, p. 36).

Frente à complexidade inerente às tentativas de atribuir uma significação menos ambígua à avaliação, percebe-se que o fato de estar inserida num campo, ao mesmo tempo, político e pedagógico, sendo, portanto, passível de contestação, os confrontos e polêmicas que ocorrem e que acabam por moldar uma forma de ver o mundo impedem o consenso acerca da temática (consenso que, talvez, nem seja desejável ou possível), já que as instituições educacionais podem ser consideradas como um espaço privilegiado do debate, que gera concorrências entre os agentes. Com isso, o acontecimento de embates político-ideológicos em que os sujeitos têm o direito de escolher entre uma ou outra posição permite traçar uma nova possibilidade de percurso ou seguir os mesmos passos, numa sucessão ininterrupta de acontecimentos, como num círculo vicioso. Neste contexto, há orisco concreto de os gestores se deixarem embalar pelo modismo, pois, em alguns momentos, a tomada de decisão ______ [ 134 ]

terá que ser feita e, dentre as possibilidades de escolha, algumas instituições optam por realizar a avaliação mais sob a pressão de seus mantenedores do que para cumprir o papel social, o que se comprova com a metodologia de avaliação que se restringe às coletas de dados e ao exaustivo preenchimento de formulários que visam a qualificar a qualidade pretendida, culminando na divulgação de rankings que predispõem as instituições a aderirem a um novo perfil voltado à competição do mercado de trabalho, para ocuparem um lugar de prestígio entre “as melhores4”, levando à “deterioração progressiva das políticas sociais, que resultou da crise do Estado, fez com que ele passasse da condição de produtor de bens e serviços para de comprador desses mesmos bens e serviços do setor privado” (MANCEBO & FÁVERO, 2004, p. 172). De acordo com Sobrinho (1999, p. 151), a exigência de racionalizar e aplicar os recursos públicos com responsabilidade surge de todas as esferas sociais, o que provoca uma crise conceitual nas instituições e, então, a necessidade de implantar uma avaliação que [...] corresponde mais à prestação de contas da gestão universitária, da administração financeira, da eficiência da universidade em apresentar os produtos requeridos, e a busca de comprovações da seriedade institucional na utilização de recursos para a produção e o desenvolvimento do capital intelectual, que passa a ser disputado como o mais importante instrumento do desenvolvimento econômico.

Dessa prática, decorre a constituição de comissões e grupos de trabalho para cumprir o protocolo instituído sob forma de lei e a adequação aos prazos predeterminados, para evitar sanções que os instrumentos legais possam aplicar. Esta prática é recorrente nas sociedades em que as instituições de educação superior dependem de recursos financeiros externos para a manutenção, o que cria um estado avaliador que, com o objetivo de regular e controlar, tende a adotar políticas importadas que instigam o debate e a polêmica, pois A submissão da educação aos interesses imediatos do mercado é o principal dispositivo dessa construção, podendo levar a universidade pública, no país, a redefinições, de ordem objetiva e subjetiva, que se estendem desde a privatização de interesses, propósitos e objetivos universitários, antes de caráter público, definidos coletiva e socialmente, até a privatização da cultura universitária acumulada na prática histórica do trabalho em conjunto dos sujeitos universitários (MANCEBO & FÁVERO, 2004, p. 21).

Assim as recentes tentativas e implantação de um sistema de avaliação bem como os estudos que respaldam a discussão têm marcas de ______ [ 135 ]

uma proposta embasada num modelo sócio-econômico neoliberal5, que prima pela privatização e pela competição entre as instituições e que gera uma diferenciação entre as universidades com distinção das demais instituições de educação superior e outros níveis educacionais: No que se refere ao financiamento da educação, podemos dizer que a política para o setor nos anos FHC teve como pressuposto básico o postulado de que os recursos existentes para a educação no Brasil são suficientes, cabendo apenas otimizar a sua utilização, por meio de uma maior focagem nos investimentos e uma maior ‘participação’ da sociedade. Dentro desta lógica, aliás, em fina coerência com o pensamento neoliberal, prioriza-se, por exemplo, o ensino fundamental em detrimento do ensino superior (PINTO, 2002, p. 17).

Este viés foi impulsionado pelos relatórios divulgados pelo Banco Mundial, que se vale de um discurso que reafirma o valor econômico da educação, sendo que “as universidades [...] não estariam promovendo a equidade social”, argumento que respalda o discurso de que “os governos devem restringir os gastos públicos com o ensino superior e aumentar os investimentos na educação básica, a qual ofereceria maior taxa social de retorno” (SOBRINHO, 1999, p. 153). Seguindo este raciocínio, nota-se que as diretrizes seguidas pelo Banco Mundial no que tange às reformas para o sistema educacional, partem de uma análise estritamente econômica e priorizam a educação voltada para o mercado: no processo de ajuste às tendências prevalentes da economia mundial, muitos países já procederam às reformas ditadas por tais organismos mundiais e sintetizados no Consenso de Washington: equilíbrio orçamentário, redução do déficit público e dos gastos nos setores sociais; abertura comercial; liberalização financeira; a desregulamentação dos mercados domésticos; privatização de empresas e serviços públicos de energia, telecomunicações, saúde e educação (SGUISSARDI, 2000, p. 12).

Portanto, a avaliação do ponto de vista do Banco Mundial está estritamente ligada ao viés quantitativo e serve como parâmetro para justificar os cortes orçamentários, com base num critério de comparabilidade entre sistemas completamente distintos. Eis, portanto, a necessidade de propiciar o acontecimento de debates entre os membros da sociedade civil, com o intuito de disseminar as informações e elaborar planos educacionais que possam estreitar os laços entre o sistema educacional superior e a sociedade organizada já que ______ [ 136 ]

as preocupações em localizar o Brasil no processo de universalização do capitalismo, por meio de mudanças no complexo espaço social da educação superior, surgem por meio de mudanças no complexo espaço social da educação superior, surgem por meio de uma análise comparativa das políticas para a educação superior na América Latina, como um instrumento para legitimar a normatização em curso para esse nível de ensino (SILVA JR., In: MANCEBO & FÁVERO, 2004, p. 59-60).

Uma das características que denotam a tendência voltada para a mercantilização do sistema educacional estaria inscrita no texto da própria LDB, como um dos pontos negativos apontados pelos estudiosos, pois, para eles, com a destinação de recursos públicos para escolas particulares [...] dada a estrutura privatista adotada pelo Estado brasileiro, agravada pela influência das ideias neoliberais, esses recursos vêm sendo plenamente aplicados (CHAVES, MEDEIROS & VASCONCELOS In: MANCEBO & FÁVERO, 2004, p. 218-219).

Neste sentido, cabe aos indivíduos inseridos no cenário da educação superior escolher o viés de avaliação mais pertinente, dentro da ótica universitária, para escrever os próximos episódios que as instituições deverão seguir, buscando o lado profícuo, que visa à emancipação e à busca constante pela melhoria e consolidação do que está dando certo e, consequentemente, a superação de limitações, tendo como base uma avaliação diagnóstica, ou encará-la como um instrumento cerceador, cuja utilidade é voltada para o caráter punitivo e regulador e tem como objetivo final a prestação de contas do aspecto quantitativo e a ratificação de uma política voltada para o mercado, já que, ao atribuir ao Estado uma característica de ente avaliador, poder-se-ia afirmar que é no sistema de educação superior que se verifica o maior impacto, pois a globalização privilegia o conhecimento e as competências advindas da educação formal e de sua certificação continuada (MOROSINI, In: MANCEBO & FÁVERO, 2004, p. 145).

Frente a esse argumento, não raramente emergem diferentes discursos como reação às propostas apresentadas pela ala governista, sendo que o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior dos Docentes (ANDES), por meio do Grupo de Trabalho voltado às políticas educacionais, participa das discussões que precedem e transcendem ______ [ 137 ]

a publicação de regulamentações, com propostas que visam superar os entraves diagnosticados por seus membros e, posteriormente à promulgação da legislação, tecem críticas, apontando, em especial, pontos que destoam de suas propostas, com base em defesas como as de Chauí (2001), que alerta para os riscos dos processos de reforma do Estado, uma vez que A Reforma encolhe o espaço público dos direitos e amplia o espaço privado não só ali onde isso seria previsível – nas atividades ligadas à produção econômica –, mas também onde não é admissível – no campo dos direitos sociais conquistados [...] ao colocar a educação no campo de serviços, deixa de considerá-la um direito dos cidadãos e passa a tratá-la como qualquer outro serviço público, que pode ser terceirizado ou privatizado (CHAUÍ, 2001, p. 177).

De qualquer forma, a avaliação pode ser utilizada tanto para a confirmação quanto para a negação de uma dada realidade; portanto, ela não precisa ser concebida como a razão principal de ser de qualquer instituição ou indivíduo, mas um recurso para delinear os caminhos que podem ser seguidos e os que precisam ser evitados de acordo com o objetivo que se pretende atingir. A AVALIAÇÃO NA PERSPECTIVA DO ANDES Buscar compreender as práticas discursivas que emergem dos grupos impõe, antes, historicizar a posição desses sujeitos frente ao objeto de análise. Neste caso, interessa entender como é concebida a avaliação da educação superior no corpus de análise deste trabalho e identificar, nas propostas do ANDES, que conceito de avaliação constitui a sua formação discursiva. Devese ouvir as palavras de Schwartzman6 (1987, [S/P]), para quem a história está cheia de exemplos de sistemas de dominação estabelecidos que se vêm desafiados por novos grupos que trazem consigo ideias, conhecimentos e interpretações do mundo, das coisas e dos homens que se confrontam com aqueles do poder. Seria simplista, evidentemente, interpretar estes movimentos somente como disputas por ideias, já que, junto a elas, vêm geralmente todo um conjunto de atividades de tipo econômico, militar e social que buscam sua legitimação.

De acordo com Saviani (1984, p. 77), por mais que se propague que as instituições educacionais estão em crise, especialmente as universidades, o ______ [ 138 ]

que ocorre é um momento de dinamismo que perpassa essas esferas, sendo que “o que está em crise não é a Universidade mas [...] um certo modelo de Universidade [...] implantado a partir da Reforma de 1968”. A asserção do autor ultrapassa duas décadas, mas a celeuma estabelecida sobre o modelo de instituição educacional que se quer permanece, o que ratifica a ideia de dinamismo, não como um processo momentâneo, mas como constituinte da identidade dessas instituições, conforme se observa nas práticas discursivas. Nos diversos discursos elaborados pelos docentes que compõem o grupo de trabalho sobre as políticas para a educação superior, constata-se que a temática acerca da avaliação, seja ela voltada para as instituições, seja ela voltada às práticas docentes, coincide com o surgimento da associação. Na primeira proposta apresentada para a constituição das políticas voltadas para o corpo docente, estava definido que as atividades seriam avaliadas, tomando como parâmetro as atribuições dadas pela tríade ensino/pesquisa/extensão. Essas propostas são difundidas e discutidas ao longo da existência do sindicado, por meio de seminários, encontros e congressos, como “Trabalho Intelectual e Avaliação Acadêmica” (Curitiba/PR, 1986, Rio de Janeiro/RJ, 1987) e “Avaliação e Autonomia” (Londrina/PR, 1990), ambos realizados pelo próprio movimento, que culminou na primeira versão da “Proposta do ANDES/SN para a universidade brasileira”. Desde sua primeira publicação, em 1986, as discussões promovidas, principalmente, pelo Conselho Nacional de Associações Docentes – CONAD, têm culminado na revisão e ampliação das propostas e diretrizes a serem seguidas, sendo que a versão aprovada em 1996 o denominou de Caderno ANDES N 2, aprovado no XXXII CONAD, ocorrido na cidade de Guaratinguetá/SP, em julho de 1996. A cada nova edição do documento, o sindicato tem procurado ratificar os pressupostos defendidos para a educação superior, com uma visível ampliação da abordagem acerca de sua concepção de avaliação, mais precisamente, com o intuito de diferenciar seu posicionamento do que julga ser o posicionamento do governo. Para ele, Enquanto as propostas de avaliação de sucessivos governos têm-se caracterizado pela lógica empresarial, visando à rentabilidade imediata do investimento em educação e salientando a quantificação, o Movimento Docente vem construindo uma concepção de avaliação que tem como foco a qualidade do trabalho universitário, visando ao estabelecimento de um padrão unitário de qualidade para o ensino, a pesquisa e a extensão que deve ser cultural e cientificamente significativo e socialmente comprometido com a maioria da população. [grifo nosso] (ANDES/SN, 2003, p. 85). ______ [ 139 ]

O discurso que predomina entre as entidades que se organizam em prol de um ‘padrão unitário’ para a educação tem respaldo nas críticas dos estudiosos de que a universidade estaria servindo aos interesses de uma minoria, contrariando os princípios defendidos pela constituição brasileira e, também, pelo movimento, com base na crença de que a escola unitária requer que o Estado possa assumir as despesas que hoje estão a cargo da família [...] a inteira função da educação e formação das novas gerações, torna-se, ao invés de privada, pública, pois somente assim pode ela envolver todas as gerações, sem divisões de grupos ou castas (GADOTTI, 1983, p. 69).

Neste viés, o Movimento Docente insiste numa prática discursiva em defesa da universidade como um ambiente que permite a ampliação dos debates acerca dos rumos pretendidos para a educação superior, com isso, contribuindo par a construção dos projetos elaborados a diversas mãos, o que caracterizaria um processo democrático, sob o ponto de vista de seus membros. Com base nesses pressupostos as propostas sobre avaliação que vêm sendo formuladas em CONAD e Congressos Nacionais buscam resgatar a universidade como espaço público produtor e divulgador do saber, entendendo-se como um dos instrumentos de construção da educação pública, gratuita, laica, democrática e de qualidade e socialmente comprometida com a maioria da população (ANDES/SN, 2003, p. 86)

Face ao crescente debate acerca das imposições legais que levam à adoção de métodos avaliativos que mensurem a qualidade da educação superior, ampliaram-se, também, as propostas advindas do sindicato sobre a forma com que o processo avaliativo deve ser concretizado no ambiente universitário. A concepção geral é a de que a avaliação não se dá em abstrato. Ela se estabelece em relação a um modelo tomado como padrão de referência. O processo avaliativo conduz à institucionalização do padrão de desempenho compatível com o padrão de instituição almejado. Assim, a avaliação da universidade transforma-se em mecanismo de implantação ou fortalecimento de um dado projeto de IES ou de política educacional. (ANDES/SN, 2003, p. 86).

O caráter coercitivo empregado nos textos de lei são práticas comuns nas legislações brasileiras, o que reforça a tese de que “situar-se na sociedade significa situar-se em relação a muitas forças repressoras e coercitivas” ______ [ 140 ]

(BERGER, 2002, p. 90). Assim, a proposta do sindicato não segue a lógica tecnoburocrática de imposição de um modelo a ser seguido, mas defende uma avaliação que combine todas as dimensões que perpassam o processo avaliativo, rechaçando qualquer proposta que redesenhe os moldes empregados por governos neoliberais, em especial, os fatores que têm características apenas quantitativas. A compreensão que o movimento tem do processo de avaliação interna das instituições é que o mesmo deve partir dos princípios referendados pela constituição, independentemente de sua natureza (pública ou privada). Ambas deveriam primar pela educação pública e democrática, devendo englobar a participação de todos os agentes em prol da construção de um projeto comum. No quesito de avaliação externa, o movimento propõe diferenciação no ato avaliativo, uma vez que A avaliação externa das IES tem concepções diferenciadas no que se refere ao caráter público ou privado das instituições. Para as IES públicas, o elemento preponderante, num processo de avaliação externa, é seu compromisso com a sociedade que as mantém. Desse modo, prevê-se a instalação, em cada estado, de conselhos sociais que, na sua composição, representem os diferentes segmentos da sociedade na qual a instituição se insere [...] Nas IES privadas, uma vez que todas são concessionárias de um serviço público, a avaliação externa deverá ser concebida como um controle sobre o exercício da concessão. Para tanto, o processo de avaliação externa deverá ser coordenado pelo Ministério da Educação, tendo em vista os fins da educação nacional (ANDES/SN, 2003, p. 88).

Neste contexto, a diferença básica estaria no fato de que, na esfera pública, importa dar retorno à sociedade, sem a interferência direta do Estado, e com ampla participação da sociedade organizada. Não se daria abertura para a possibilidade de punição, premiação ou ranking, em face do resultado obtido. O objetivo específico seria delinear os próximos passos que cada instituição deveria compreender, enquanto que, na iniciativa privada, efetivamente, estabelecer-se-ia um controle estatal que, segundo os proponentes, garantiria o almejado “padrão unitário de qualidade” aplicado ao serviço público. Nesses casos, pressupõe-se a existência, senão de algum tipo de premiação, da possibilidade de punir, pois É no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. A ética se torna inevitável e a sua transgressão é um desvalor, jamais uma virtude (FREIRE, 2000, p.112).

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Com base em convicções como essas, o movimento ancora sua luta pela construção de uma proposta de avaliação enquanto instrumento de democracia, pautado na participação dos envolvidos no processo, o que pressuporia um caráter emancipatório, que se daria a partir da análise do trabalho concreto realizado por cada instituição, respeitadas suas especificidades: Qualquer processo de avaliação que se estabeleça será referenciado em um modelo geral de universidade e em um projeto local específico. O que se quer saber com a avaliação é se os objetivos previamente definidos estão sendo, ou não, alcançados e quais são as causas dos sucessos e fracassos, para que as correções dos insucessos possam ser feitas e, com isso, melhorada a qualidade do fazer acadêmico (ANDES/SN, 2003, p.90).

Berger & Luckmann (2004, p.40) valem-se de uma proposição que exemplifica as nuances em volta da dificuldade de definir um modelo para o processo de avaliação da educação superior, pois, comparada às “comunidades da vida em que se torna grande demais a discrepância entre a comunidade esperada e realizada de sentido”, um dos caminhos para administrar os conflitos inerentes à complexidade das instituições de educação superior é a “relação dialética de perda de sentido e uma nova criação de sentido”, ou seja: as instituições de educação superior carecem de movimentos que resistam a uma dominação puramente burocrática e controladora, porém com embasamentos e proposições alternativas que possam contribuir para a construção de um novo cenário. Note-se que o discurso adotado pelo movimento dos docentes apresenta como traço recorrente a comparação entre duas concepções distintas do que se quer com o processo de avaliação, enfatizando que, ao adotar a visão proposta pela legislação, haverá um assujeitamento ao processo regulatório e controlador que interessa mais aos investidores externos do que aos cidadãos brasileiros e não condiz com o proposto pelo movimento, já que o mesmo defende uma avaliação emancipatória. Poder-se-ia dizer que esses discursos partem da hipótese de que há outro modelo de avaliação, adequado aos agentes envolvidos. Mas, ao considerar o processo sócio-histórico da civilização, nota-se que a educação, assim como a humanidade em geral, varia com o tempo, com o lugar e com o meio social, fator que inviabiliza uma tomada de decisão por meio de processos de comparabilidade entre uma época e outra ou entre uma sociedade e outra: O postulado tão contestável de uma educação ideal conduz a erro [...] se ______ [ 142 ]

se começa por indagar qual deva ser a educação ideal, abstração feita das condições de tempo e lugar, é porque se admite, implicitamente, que os sistemas educativos nada têm de real em si mesmos. Não se vê neles um conjunto de atividades e de instituições, lentamente organizadas no tempo, solidárias as outras instituições sociais, que a educação exprime ou reflete, instituições essas, por consequência, que não podem ser mudadas à vontade, mas só com a estrutura mesma da sociedade (DURKHEIM 1967, p.36).

O paradigma que sustenta o discurso do MD, no que tange à concepção de avaliação, está pautado na avaliação que promova a emancipação; ela se garantiria por meio da tomada de decisão democrática (entenda-se por “democracia” propiciar a participação de todos os agentes envolvidos, seja nas assembleias, nos congressos ou nos conselhos constituídos com representantes de diferentes segmentos da sociedade civil organizada), o que, de acordo com Vale (2002, p. 182), tem forte influência das ideias de Paulo Freire, especialmente no que diz respeito o fato de que “o exercício do diálogo parece ter sido indispensável para o estabelecimento das relações com outros setores sociais [...], especificamente na relação do sindicalismo com o Estado”, levando em conta que A universalidade das instituições universitárias se explica, em parte pelo menos, pelo fato de que elas desempenham papéis similares em todas as sociedades, relacionados com a existência de instituições e pessoas dedicadas à criação, manutenção e transmissão da cultura escrita e sistematizada. Por esta razão, é possível, e na realidade indispensável, examinarmos os problemas relativos ao ensino superior a partir de uma perspectiva histórica e comparada (SCHWARTZMAN, 1987, [S/P]).

A partir dessa perspectiva é que interessa analisar que efeitos de sentido atravessam o discurso do corpus de análise no que concerne ao processo obrigatório de avaliação imposto por meio de um dispositivo legal e em que medida o posicionamento do ANDES desestabiliza (ou não) a legitimidade construída em torno da concepção de avaliação que está subjacente à proposto do governo, pois a crítica a movimentos como o do sindicato é que suas ações fundamentais ficam focadas na luta pela manutenção de interesses corporativos, com uma estranha peculiaridade de atuar exclusivamente na área das instituições públicas, abandonando quase integralmente o setor privado, no qual sua atuação seria certamente mais necessária na defesa das condições de trabalho dos assalariados. O movimento se caracteriza pelo recurso constante às greves como ‘instrumento de luta’ para a obtenção de aumentos salariais e vantagens corporativas (DURHAM, [S/D], p. 39). ______ [ 143 ]

A autora é uma das estudiosas que desenvolve pesquisas sobre a educação superior e atua no Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo, sendo que parte de suas críticas está fundamentada na crença de que o modelo democrático defendido pelo movimento sindical é uma utopia, pois tudo deveria ser decidido em assembleias ou formação de conselhos. Para ela, há diversas formas possíveis de gestão democrática: direta, representativa, presidencialista, parlamentarista. No mito, o ideal é o de uma democracia direta, onde tudo se resolve em grandes assembleias. O mínimo aceitável para as universidades é o de um sistema presidencialista, com eleição direta para os cargos dirigentes e para os colegiados, com participação igualitária de professores, alunos e funcionários (DURHAM, [S/D], p. 5)

A questão é que a partir do momento que se elabora um modelo (ou proposta) de avaliação, inevitavelmente, ele está sujeito a regras e, assim, há regulação, independentemente do viés político que foi adotado para sua elaboração. ANÁLISE DO CORPUS: A LEGITIMIDADE DO SINAES SOB O OLHAR DO ANDES Na perspectiva teórica adotada neste trabalho, enfatiza-se a necessidade de articulação entre a língua e a história, processos indissociáveis para aqueles que tencionam efetuar a análise de um determinado discurso. Desta forma, não é possível priorizar um desses aspectos que constituem o discurso, em detrimento do outro, pois, se o jogo das restrições que definem a “língua”, a de Saussure e dos linguistas, supõe que não se pode dizer tudo, o discurso, em outro nível, supõe, pois, que, no interior de um idioma particular, para uma sociedade, para um lugar, um momento definidos, só uma parte do dizível é acessível, que esse dizível constitui um sistema e delimita uma identidade (MAINGUENEAU, 2007, p. 16).

Para o autor (p. 16), “as unidades do discurso constituem [...] sistemas significantes” e esses sistemas estão relacionados tanto com a “semiótica textual” quanto “com a história”, sendo esta responsável por especificar os efeitos de sentido que as unidades exprimem, fator que ressalta a característica heterogênea do discurso. Ao afirmar que a Formação Discursiva está associada a uma memória discursiva, Maingueneau (1997, p. 115) explica que não se trata de uma memoria ______ [ 144 ]

psicológica, mas, antes, de uma memória que permite resgatar e articular as relações entre o enunciado e a sua história, por meio da materialidade discursiva. Assim, parte-se do pressuposto de que o interlocutor partilha dos saberes que precedem a prática discursiva, sendo esse background que lhe permite interpretar o enunciado em consonância ou proximamente ao que é esperado por quem o elaborou. Sob essa perspectiva teórica, a análise proposta está pautada na relação entre a interdiscursividade e o ethos7 construído pelo ANDES ao se referir ao SINAES, em que pese analisar, na materialidade deste discurso, o modo como aquele sistema é representado nos diferentes instrumentos propostos para a efetivação do processo avaliativo. Ou seja: busca-se perceber como os semas8 refletem o posicionamento do ANDES diante do sistema e remetem a uma memória discursiva que visa a corroborar as asserções efetuadas pelo sindicato a partir da desacreditação do discurso do SINAES. No percurso de análise, busca-se articular os referenciais que constituem a disciplina da AD a conceitos extraídos de outras teorias, como a da argumentação, por exemplo, teorias auxiliares, pelo fato de que, acompanhando o raciocínio de Maingueneau (1997, p. 160), “são linguísticas, porque liberam estratégias tão discretas e sutis quanto eficazes, porque questionam o enunciador e o co-enunciador”. Nesta perspectiva, a análise está voltada para a materialidade discursiva do artigo As Políticas Educacionais do Governo Lula: O Sistema de Avaliação, elaborado pelo Grupo de Trabalho de Política Educacional, publicado em agosto de 2004, no Livreto do ANDES, que se constitui de diversos capítulos, sob a temática “A Contra-Reforma da Educação Superior: Uma análise do ANDES-SN das principais iniciativas do Governo Lula da Silva”. Este discurso traz, ainda, uma breve contextualização das políticas da educação superior que se ancoram no projeto denominado de Reforma Universitária, elencando alguns pontos focais da Portaria que regulamenta a Lei do SINAES. A análise aqui apresentada é do primeiro parágrafo do texto, ressaltando que esses se constituem em temas e aspectos distintos que o processo de avaliação do SINAES alcançaria. Persegue-se, com isso, a compreensão de como se constrói o discurso polêmico e se, de fato, o discurso analisado pode ser considerado de resistência, partindo do pressuposto da inexistência de sentido para enunciados em si mesmos, pois eles estão submetidos a como e a por que são expressos, dadas as formações discursivas e ideológicas que os indivíduos ocupam. Paralelamente à análise dos marcadores argumentativos e aos seus efeitos de sentido, aplicou-se a relação do ethos com a formação discursiva ______ [ 145 ]

em que se inscreve o enunciador, objetivando chamar a atenção para as marcas materiais que podem ser consideradas como traços definidores de um ethos positivo, por meio do qual o ANDES se apresenta. Eis o trecho que será analisado: “Apesar das intenções expressas no art. 1 da portaria em relação às finalidades do SINAES, percebe-se que o sistema de avaliação irá credenciar o funcionamento das instituições: ‘o processo de credenciamento e renovação de credenciamento de instituições, e a autorização, o reconhecimento e a renovação do reconhecimento de cursos de graduação’ (art. 32). Como, conforme o PROUNI, o Estado irá selecionar as instituições privadas que farão jus a verbas públicas, a questão do credenciamento assume um lugar proeminente na ‘reforma’ da educação superior”.

O enunciador se vale do uso do operador argumentativo de concessão apesar das para demonstrar a existência de uma contradição presente no SINAES, ao afirmar explicitamente que ele irá credenciar as instituições, mas negando que pretenda fazê-lo como uma de suas finalidades. Isto provoca um contraste no enunciado e uma suposta contradição na lei, pois as intenções expressas no art. 1 da portaria, que regulamenta como será feita a avaliação proposta no SINAES, não foram citadas no discurso do ANDES; elas foram apenas referenciadas e dadas como afirmadas. Para ratificar o que afirma, o enunciador se vale de aspas para destacar o artigo 32 do documento do SINAES, o que é uma estratégia para legitimar seu discurso, buscando confirmar que o ANDES só denuncia uma manobra na tessitura da lei, porque ela pode ser demonstrada. Trata-se da utilização de argumento técnico que objetiva apresentar evidências que podem ser comprovadas por dados factuais que são marcados por recursos linguísticos que visam a ratificar a asserção posta no enunciado da lei. Assim, caso o leitor não compartilhe do conhecimento que o enunciador imagina que ele tenha a respeito das finalidades do SINAES, a inserção do conectivo e das aspas conduzirá a uma evidencia que há uma contradição no que o sistema estaria propondo. Se há, pois, afirmação de que o SINAES será o responsável por “credenciar o funcionamento das instituições”9, essa finalidade não ficou expressa, mas, ao contrário, induziu à compreensão de que o sistema não teria o objetivo de “controlar” as instituições por meio do credenciamento ou descredenciamento, o que poderia ser uma estratégia na articulação da lei para induzir à crença de que os objetivos do sistema estão voltados para o interesse da comunidade acadêmica (incluindo o Movimento dos Docentes-MD), sendo, por isso, digno de crédito. ______ [ 146 ]

A utilização desse recurso estaria, pois, buscando demonstrar o reconhecimento de que o instrumento instituído pelo SINAES teria na essência uma intencionalidade que condiz com a FD do sindicato no tocante ao que se espera do processo de avaliação. Observe-se: O SINAES tem por finalidade a melhoria da qualidade da educação superior, a orientação da expansão da sua oferta, o aumento permanente da sua eficácia institucional e a efetividade acadêmica e social, e especialmente a promoção do aprofundamento dos compromissos e responsabilidades sociais das instituições de educação superior, por meio da valorização de sua missão pública, da promoção dos valores democráticos, do respeito à diferença e à diversidade, da afirmação da autonomia e da identidade institucional [negritos nossos] (Portaria MEC n 2.051, de 09 de julho de 2004).

Estas afirmações parecem surgir da FD do ANDES, o que levaria a pressupor que os discursos são oriundos de uma mesma Formação Ideológica (FI), em que pese lutar não somente pela melhoria da qualidade da educação superior, mas dar ênfase aos princípios democráticos que permitem o alcance da autonomia e do respeito às especificidades institucionais, conforme proposto e defendido pelo movimento. Logo, se há uma polêmica instaurada sobre a promulgação da lei, pode-se afirmar que o discurso do SINAES não tem a mesma significação na FD do ANDES, mesmo que, a partir da sua semântica global, o discurso do ANDES diga as mesmas coisas e profira os mesmos enunciados. Assim, os efeitos de sentido distintos que os enunciados carregam, dependendo da FD que os pronuncia, confirmam que “o sentido é um efeito da substituibilidade das expressões, sendo que o conjunto delas produz (pode produzir) um efeito de referência, ou seja, de identificar objetos do mundo a partir de uma visão entre outras, que pode ser tudo, menos ‘objetiva’” (POSSENTI, In: MUSSALIM & BENTES, 2005, p. 371-372). No que tange à citação do art. 32, entre aspas, ela demonstra a heterogeneidade dos discursos e, em se tratando de polêmica discursiva, é possível detectar dois discursos no mesmo espaço discursivo, sendo a polêmica revelada por meio da heterogeneidade mostrada, que acontece, quando o autor se vale da citação explícita para demonstrar que o dizer não é seu, mas se legitima por meio de outra voz que pode ser recuperável, caso o interlocutor julgue necessário. Esta estratégia confere credibilidade ao discurso, criando, neste caso, um simulacro do SINAES, detectável na superfície discursiva: simulação que mostra o SINAES como tentando falsear seus reais objetivos. Nesta perspectiva, a contradição apontada no SINAES implica uma ______ [ 147 ]

relação interdiscursiva entre posicionamentos distintos, caracterizada pela interincompreensão, ou seja: a polêmica se estabelece na gênese, provocando uma relação indissociável entre a memoria discursiva de um posicionamento que se opõe ao seu Outro. Na sequência do enunciado, há, novamente, o recurso às aspas no vocábulo reforma. Neste caso, porém, elas foram inseridas sob outra perspectiva. Conforme é postulado por Maingueneau (1997, p. 75), elas podem ser tomadas como uma estratégia de o autor se distanciar criticamente de seu dizer, gerando possibilidades críticas de sentido, que podem se constituir a partir dessa pista. Nesta forma de heterogeneidade mostrada, o autor procura articular, na construção do discurso, interpretações possíveis e esperadas, sendo que as hipóteses levantadas pelo interlocutor são indicadas por meio do interdiscurso, deixando marcas explícitas por meio de recursos formais. Como frisa Maingueneau (1997, p. 90), “o valor semântico das aspas e o interesse que representam para a AD estão ligados precisamente a este caráter imprevisível bem como à sua relação com o implícito”. No enunciado em análise, questiona-se o sentido pretendido pelo governo de pretender reformar a educação superior (o termo é citado em outros momentos no texto sem as aspas), colocando a “reforma” sob suspeita, o que leva a pressupor que ela estaria centrada num foco, o credenciamento de IES, desvirtuando o propósito avaliativo presente nas diferentes práticas discursivas que a entendem como uma transformação do processo educacional sob todos os aspectos e de maneira integrada. Assim, O sujeito que utiliza as aspas é obrigado, mesmo que disto não esteja consciente, a realizar uma certa representação de seu leitor e, simetricamente, oferecer a este último uma certa imagem de si mesmo, ou melhor, da posição de locutor que assume através destas aspas (MAINGUENEAU, 1997, p. 91).

Portanto, além de dar destaque ao termo usado no enunciado, as aspas constroem uma forma de questionamento ou um tom de ironia sobre a palavra em destaque, pretendendo que a resposta do interlocutor seja a esperada pelo enunciador. No tocante ao suposto tom irônico em ‘reforma’, deve-se ressaltar que, se o objetivo fosse o de reformar a educação superior, no sentido amplo da Reforma Universitária, ao mostrar que o credenciamento tem maior relevância no sistema proposto pelo governo e que os demais aspectos poderiam ser negligenciados, o ANDES busca chamar a atenção para o fato de que as finalidades do sistema não seriam alcançadas. Cabe frisar que a origem da reforma, dentro deste contexto, deve-se à criação de um instrumento para a avaliação fazer parte da Reforma da Educação Superior, ______ [ 148 ]

projeto que, de acordo com o ANDES, é uma forma de continuísmo dos governos passados sob uma nova roupagem. Maingueneau (1997, p. 77) chama de ironia o processo em que o enunciado “faz ouvir uma voz diferente da do ‘locutor’, a voz de um ‘enunciador’ que expressa um ponto de vista insustentável. O ‘locutor’ assume as palavras, mas não o ponto de vista que elas representam”. Desta forma, afirma-se que, por meio da heterogeneidade, o discurso vai se constituindo por inúmeras vozes que são percebidas ou escolhidas de acordo com o ocupado pelo sujeito do discurso e pela sua FD: Se o discurso indireto institui o jogo na fronteira entre discurso citado e discurso que cita, a ironia subverte a fronteira entre o que é assumido e o que não é pelo locutor. Enquanto a negação pura e simplesmente rejeita um enunciado, utilizando um operador explícito, a ironia possui a propriedade de poder rejeitar, sem passar por um operador desta natureza [itálico do autor] (MAINGUENEAU, 1997, p. 98).

Neste aspecto, o autor enfatiza que a ironia é um recurso eficaz, haja vista o distanciamento provocado que transfere a responsabilidade pelo efeito de sentido para o interlocutor. Assim, o enunciador abre um espaço dentro de seu discurso para que seja preenchido pelo outro, contando com a conivência dos interlocutores discursivos, pautado na crença de que compartilham de um universo de valores. Portanto, o êxito no processo de interpretação ficaria garantido, uma vez que o interlocutor possuiria competência discursiva para interpretá-lo, ou seja: “o leitor encontra-se, pois, imerso em um interdiscurso, certamente vago, mas situado” (MAINGUENEAU, 1997, p. 98). A polêmica analisada sobre o debate do tema avaliação da educação superior ratifica a postura adotada pelos estudiosos da AD, em que pese a interdiscursividade evidenciada na materialidade do discurso, fator que demonstra que os confrontos não só existem, mas também se repetem, o que é identificável à medida que o ANDES se coloca como possuidor de uma proposta que compreende o “verdadeiro” papel e a função essencial da educação superior (em especial da universidade), pressupondo que o SINAES não os tem e, por isso, não é digno de crédito e precisa ser desqualificado. Desse modo, dever-se-ia perceber que, se, de um lado, o enunciador diz ter uma proposta para o papel social e para as funções acadêmicas da universidade, de outro, a base governista não o teria e a própria materialidade da lei poderia comprovar essa tese. Portanto, “a polêmica é necessária porque, sem essa relação com o Outro, sem essa falta que torna possível sua própria completude, a identidade do discurso correria o risco de desfazer-se” (MAINGUENEAU, 2007, p. 118). ______ [ 149 ]

A desconstrução do ethos do outro é condição básica para que o enunciador possa construir seu ethos positivo, pois, ao afirmar que apenas sua proposta preza pelos direitos dos sujeitos, direitos esses que não só fazem parte do imaginário social, mas, acima de tudo, estão exarados no principal documento jurídico que rege o país, a credibilidade do SINAES é afetada por se tratar de um instrumento legal. Há, também, que se admitir a incompletude do SINAES (assim como da própria linguagem). Portanto, toda reflexão, debate e confronto em torno de sistemas avaliativos adotados numa dada época são salutares para o desenvolvimento e superação dos limites. Ao questionar a metodologia e a finalidade de tais sistemas, o enunciador provoca uma inquietude que tende a estimular a autocrítica dos agentes envolvidos no processo, fator que propicia a execução das tarefas de uma forma menos alienada. Como enfatiza Santos (2006, p.8), “é preciso relacionar a variedade de procedimentos culturais com os contextos em que são produzidos”, o que reforça a tese de que os sujeitos são responsáveis pela forma de pensar e de agir dos grupos sociais, já que isso se dá por meio de práticas compartilhadas social e culturalmente e pelas crenças estabelecidas, alimentadas e constitutivas da sociedade em que estão inseridos, mesmo que isso se dê de forma inconsciente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDES/SN. Capítulo VI – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES). As Políticas Educacionais do Governo Lula: O Sistema de Avaliação. In: A Contra-Reforma da Educação Superior: Uma análise do Andes-SN das Principais Iniciativas do Governo de Lula da Silva. Brasília: GTPE-ANDES/S, 2004. _____. Caderno ANDES – Nº 2 (1981). Florianópolis: Andes, 2003. BARREYRO, Gladys Beatriz & ROTHEN, José Carlos. “SINAES” contraditórios: considerações sobre a elaboração e implantação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior. Educ. Soc. Vol. 27, nº 96, p. 955-977. ISSN 0101-7330. Outubro, 2006. http://www.periodicos.capes.gov. br/portugues/index.jsp. BERGER, Peter. Perspectivas Sociológicas: uma visão humanística. (Trad. ______ [ 150 ]

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NOTAS 1) Lei Federal nº 10.861, de 14 de abril de 2004, que institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior e dá outras providências. 2) Definições extraídas dos dicionários: BUENO, Silveira. Minidicionário da língua portuguesa e FERREIRA, A. B. DE H. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 3) Durkheim (2001) faz uma analogia entre as regras não contestadas na biologia, no que tange às diferentes espécies que merecem tratamento diferenciado, que podem e devem ser pensadas também na sociologia, ou seja: o respeito às especificidades em todas as esferas sociais, que passa despercebido na maioria das vezes. 4) Matéria da Revista Veja, de 1 de Outubro de 2008 (p. 148), publicou um guia para pais e alunos quanto à escolha da melhor instituição, sob o ponto de vista dos índices aferidos nos sistemas vigentes e, como parâmetro, a inserção da Harvard considerada no topo da pirâmide, como primeira colocada em todos os rankings. ______ [ 153 ]

5) Segundo Chauí (2003, p. 401), neoliberalismo é uma teoria econômico-política, de 1947, em oposição ao Estado de Bem-Estar Social e socialdemocrata que, dentre outras propostas, prima pela competição entre os cidadãos com vistas ao progresso e a propagação de programas de privatização, desresponsabilizando o Estado dos encargos advindos dos órgãos estatais. 6) Artigo apresentado no Seminário Internacional sobre Educação Superior, Criatividade e Legitimação e Transformações dos Sistemas, disponível no site: http://www.schwartzman.org. br/simon/permanen.htm 7) O conceito de ethos aqui utilizado é o defendido por Maingueneau (2006, p. 60), compreendido como um processo interativo de influência sobre o outro. É uma noção fundamentalmente híbrida (sócio-discursiva), um comportamento socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação precisa, ela própria integrada a uma conjuntura sócio-histórica determinada. 8) De acordo com Maingueneau (2007, p. 49), o sistema de restrições semânticas é proposto para definir “operadores de individuação”: os semas, então, funcionam como uma espécie de filtro que vai estabelecer critérios para distinguir um “conjunto de textos possíveis como pertencendo a uma FD determinada”. 9) Artigo 1 da Portaria que regulamenta o SINAES (portaria 2051/04).

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CAPÍTULO

8

ZONA:

O ENTREMEIO COMO LUGAR DE CONTRADIÇÃO

Mirielly Ferraça

Uma pesquisa científica1 que vise a discutir sexualidade, sexo e prostituição, na maioria das vezes, causa certo estranhamento (curiosidade? espanto?). E a pergunta que sempre ecoou nesse meio acadêmico foi a motivação para tal estudo. Às vezes, não se escolhe o objeto a ser estudado; é ele, por vezes, que escolhe. Mas nem sempre se sabe por quê. O fato é que a prostituição sempre exerceu certo fascínio sobre mim, isso por conta do imaginário que existe sobre a imagem da prostituta. Ir a um bordel, ainda que sob a desculpa de fazer entrevistas, era conhecer um “mundo” de luxúria e prazer destinado somente aos homens. Eis um espaço restrito, inacessível, apagado, silenciado das reuniões de família e do convívio familiar. Não que se quer defender ou realçar a imagem de “boa” moça, mas a prostituição parece mesmo ser impedida de adentrar o âmbito familiar e se é falado sobre o assunto é sempre com aquele tom de estigma, condenando a prática acima de qualquer coisa. O imaginário coletivo acerca das casas de prostituição constrói um cenário luxuoso, envolvente e fascinante. Era o que eu pensava antes de visitar o Porto das Sereias2. Imaginava, a partir da memória discursiva, que as casas noturnas transbordavam cenários decorados com tons de vermelho, muitas luzes, muita alegria, pessoas animadas em todas as mesas e dançarinas no palco convidando os clientes a participarem da festa. O que se encontrou foi uma casa apagada, com luzes fracas, em meio a muita penumbra. De fato, é uma casa grande e bonita, mas exibia em sua arquitetura uma estrutura bem antiga, apagada pelo tempo. As entrevistas ocorreram pouco antes de a casa começar a funcionar, mas, mesmo assim, não se via muita “vida” por ali. Além do ambiente, outros sentidos antes não pensados adentraram a pesquisa sem pedir licença e, quando dei por mim, estava observando um universo que, claramente, desconhecia. Primeiro, porque imaginava colher histórias diferentes, mas a Análise de Discurso mostrou se tratarem de ecos que vêm de longe e que, ainda assim, reverberam até hoje. Saber que as garotas de programa vendem sexo porque precisam de dinheiro e porque devem sustentar os filhos é bem sabido, mas não se atentava para o fato de ______ [ 156 ]

que, no fio do discurso, elas queriam justificar as escolhas, redimir-se e passar a imagem de “boa” moça, “organizando” um discurso contraditório que ora reafirma, ora se desfaz. O que não se imaginava era que elas, as garotas de programa, são divididas entre o “certo” e o “errado”, não estão somente à margem, mas também não fazem parte da trama social plenamente. Elas vivem no entremeio e, de repente, viver na zona é mais do que vender o corpo por dinheiro; é estar no meio do caminho, entre um lugar e outro. Não felicidade clandestina, mas sexo clandestino. Tal assunto, em outras épocas, quem sabe não percorreria os bancos das universidades com tanta facilidade, mas, se parece que avançamos, percebe-se que ainda há muito a descobrir e muito a ser descortinado sobre o tema (dito e repetido) mais antigo do mundo.

... Histórias que se repetem. Memória que se perpetua. Retratadas de inúmeras formas, por diversos escritores, em diferentes épocas, a Literatura e o cinema não se cansam de trazer fortes personagens femininos que mostram a difícil e estigmatizada vida de meretrizes. Literatura que conta, cinema que mostra, vida real que imita e se deixa imitar. Tratar da “profissão mais antiga do mundo” (frase dita e repetida pelo senso comum) é contar mais uma das muitas histórias sobre as mulheres que vendem o corpo por dinheiro; demasiadamente comum, se não existissem sentidos que se repetem, ditos que ecoam pelos séculos. Vende-se sexo no Porto das Sereias e também se doam histórias. Quatro são as protagonistas desta pesquisa e a partir de seus enredos a análise é tecida. Lembranças de amor, sofrimentos, sacrifícios, renúncias, justificativas e, por vezes, alguns silenciamentos marcam a história dessas garotas. Embora pareçam relatos singulares, vê-se que se trata, na verdade, de uma memória (ins)(cons)tituída. Distante do perímetro urbano, mas propositalmente bem localizado para quem entra e sai da cidade e propositalmente bem localizado para quem deseja sexo clandestino, localiza-se o Porto das Sereias. Como em vários lugares e em diferentes épocas, as casas de prostituição precisaram esquivar-se do movimentado centro-citadino e passaram a erguer seus quartos em bairros afastados ou mesmo no espaço que compreende o entorno da cidade, como contextualiza Roberts (1998, p. 94): ______ [ 157 ]

Inicialmente, as autoridades tentaram desencorajar a prostituição, recusandose a deixar as prostitutas trabalhar na cidade; as mulheres simplesmente estabeleceram suas casas e bordéis à beira dos portões da cidade – bastante próximos para os clientes urbanos que desejassem ‘saciar sua sede’ sem ter de sair muito do seu caminho (Grifos meus).

Muda-se de lugar, mas não de hábitos. Precisando afastar-se das ruas movimentadas pelas quais caminhavam senhoras, senhoritas e senhores tidos como “respeitáveis” e pela necessária “limpeza” citadina, a venda do corpo não deixa de existir: “tornou-se mais complicado a presença das prostitutas nestas mesmas vias; principalmente a partir do momento em que os setores públicos passaram a empenhar-se mais em realizar um maior esquadrinhamento geográfico-social das ruas, para que ‘damas’ e ‘vagabundas’ não se misturassem” (PEREIRA, 2004, p. 117). Ainda assim, as casas de prostituição se tornaram peças constitutivas de qualquer lugar, sendo quase elementos constituintes do espaço e da atmosfera urbana, mesmo que por vezes, paradoxalmente, fora de seu espaço físico. Assim, fazem parte do imaginário citadino, mesmo quando sua localização física encontra-se afastada: “Na geografia das cidades, o bordel é tão indispensável quanto a igreja, o cemitério, a cadeia e a escola, integrando-se à paisagem, ainda que significativamente localizado na fronteira da cidade, quase seu exterior” (CHAUÍ, 1984, p. 80). As casas de prostituição funcionavam, em outras épocas, com mais força e intensidade, como válvula de escape da sociedade, pois, como disserta Richards (1993), a prostituição foi um meio prático de permitir que os jovens rapazes se iniciassem e reafirmassem sua masculinidade, que homens aliviassem suas necessidades sexuais e que fosse possível evitar que elas se aproximassem das esposas e filhas respeitadas, o que contribuía para a manutenção da instituição familiar. Assim como outras boates que se ergueram fora dos muros citadinos, o Porto das Sereias, que iniciou suas atividades em 1983, permanece até hoje (2014) no mesmo endereço: às margens da cidade de Cascavel, no Paraná. Investir no empreendimento na época, segundo um dos sócios, era receber “retorno monetário mais rápido”. Percebe-se que dinheiro “fácil” não se restringe, portanto, às garotas que vendem sexo, mas também a quem está nos bastidores e se vale delas. Mônica, Ana Paula, Carol e Duda são nomes fictícios que relatam histórias “reais”3. Tal quais as sereias, seres híbridos de mulher e peixe, caracterizadas pelo cantar sublime que fascina e envolve os navegantes, as garotas que vendem sexo no Porto das Sereias também esperam e enlaçam os marinheiros que ali desembarcam em busca de um Porto seguro e acalentador, ______ [ 158 ]

desejosos e carentes, à procura da satisfação de seus desejos. São navegantes submetidos aos (en)cantos de mulheres divididas. O que reverbera nas sequências colhidas é a contradição em que vivem e as justificativas que apresentam para fugir do meio termo e buscarem a inserção nos moldes sociais. O tempo todo elas procuram desculpar-se por estarem na “vida”, justificando que foram “obrigadas”, direcionando a “culpa” para o outro. Além disso, as saídas possíveis que elencam para a vida que levam estão ligadas ao sonho de deixar o “limbo” e adentrar, de vez, um lugar pleno, em que consigam ser sujeitos reconhecidos (sem o teor do estigma) como pertencentes à trama social. A imagem ambígua da sereia, escolhida para fazer referência ao nome criado para a boate, relaciona-se à da mulher sedutora, em certa medida tentadora, cujo diálogo com a figura da prostituta foi trabalhado por Moacyr Scliar em seu romance “O ciclo das águas” (2010), de 1975. Nessa obra, a personagem Esther é traficada da Polônia ao Brasil para servir nas casas de prostituição, mas sai de seu lar enganada com um casamento de fachada. A Pequena Sereia é a figura que acompanha a vida de Esther e está relacionada ao florescimento de sua sexualidade: aos 13 anos, quando um capitão polonês convida a garota para conhecer sua casa, senta-a sedutoramente em seus joelhos e conta-lhe a história da Pequena Sereia, passando a mão em seu corpo; após o casamento, quando é levada a Paris, onde perde a virgindade e é iniciada nas artes sexuais, Esther encontra a segunda referência da pequena sereia, uma estatueta em um abajur que carregará até os últimos dias de sua vida, como uma espécie de amuleto; e por fim, na vida adulta a personagem abre uma casa de prostituição chamada “Casa das Sereias”, relacionando a figura mitológica da sereia não só a si mesma, mas também às garotas que moram na boate. Se a sereia é marcada pela contradição e pela divisão, Esther também é. A personagem de “O ciclo das águas” (2010) é divida entre a cultura religiosa judaica, com a qual cresceu e pela qual constituiu seu modo de ver a vida, e a prostituição. Se, de um lado, Esther sabe que seu pai nunca a perdoará por ter confrontado os ensinamentos religiosos do judaísmo, de outro, ela também sabe que a venda de sexo lhe trouxe liberdade, uma forma de prover os seus gastos e os de seu filho. Assim, tanto Esther (personagem literária) como as entrevistadas (personagens reais) vivem no entrelugar, buscando constantemente se encaixar onde não há encaixe. Se permanecerem sereias, serão divididas. Mas as garotas do Porto das Sereias afirmam que desejam deixar a prostituição e ocupar lugares reconhecidos pela moral social (como esposa, enfermeira, policial). Desejam, como a Pequena Sereia, personagem do conto ______ [ 159 ]

de mesmo nome de Hans Christian Andersen, tornarem-se “humanas” por completo, deixar a ambiguidade da vida que levam e adentrar o espaço social sem o estigma de pertencer ao “submundo” (marinho). Incompletude das sereias, de Esther, das garotas de programa. Incompletude da linguagem: o que se quer com esta reflexão é justamente discutir o que está à margem, o que não se encaixa, o ambíguo, aquilo que não é nem uma coisa nem outra; o que está na zona, no entremeio, no não-lugar. É analisar o que é a prostituição sob a ótica de quem a vivencia e também buscar que efeitos de sentidos ecoam no implícito, o que está apagado. Outras Esther virão e, sob o apagamento discursivo, dirão ser únicas; mas se sabe que, assim como a água jorra em ciclo, a memória e o interdiscurso existentes tendem a ecoar: continuamente. É o ciclo das águas, em que o fim é o recomeço. Apesar de cada uma passar por situações diversas até se tornarem garotas de programa, de possuírem ex-relações conjugais distintas, de terem relações familiares diferentes, os laços de suas vidas se cruzam em nós comuns, constituem os pontos de encontro de histórias que se repetem sobre a venda do corpo. CONTRADIÇÃO QUE IMPERA, CONTRADIÇÃO QUE SE DESFAZ A inquietação enquanto analista foi perceber como o discurso das entrevistadas se constituía em uma linha de tensão tal que o contraditório, como algo ilógico, imperava. Na ordem do consciente e da moral vigente, que analista e entrevistadas compartilhavam(am), “estranhava-se” esse lugar contraditório ocupado por elas, já que faziam parte da dinâmica social enquanto mães, filhas, ex-esposas, mas adentravam o limbo da estigmatizada venda de sexo. A garota de programa, então, parece ocupar o entremeio: Mas nossos espaços nem sempre são marcados pela eternidade. Há também espaços transitórios e problemáticos que recebem um tratamento muito diferente. Assim, tudo o que está relacionado ao paradoxo, ao conflito ou à contradição – como as regiões pobres ou de meretrício – fica num espaço singular. Geralmente são regiões periféricas ou escondidas por tapumes. Jamais são concebidas como espaços permanentes ou estruturalmente complementares às áreas mais nobres da mesma cidade, mas são sempre vistos como locais de transição: ‘zonas’, ‘brejos’, ‘mangues’ e ‘alagados’. Locais liminares, onde a presença conjunta da terra e da água marca um espaço físico confuso e necessariamente ambíguo (DAMATTA, 1997, p. 45 – grifos meus). ______ [ 160 ]

Fazer parte desses dois lugares constitui uma contradição, isso a partir dos valores sociais tidos como aceitáveis e louváveis, afinal, para a moral vigente (cristã, contemporânea e ocidental) não é tido como “correto” uma mãe (de família – diriam os sujeitos imersos nessa formação discursiva – digna e honrada) sair de sua casa para vender sexo para “qualquer um” na rua. A casa e a rua são espaços bem delimitados no e pelo imaginário social (talvez antes com maior intensidade, mas ainda hoje se constituem na oposição entre a honra e a desonra), principalmente quando se fala da mulher. Mas, no fio do discurso, a tensão e a contradição se desfazem quando apresentam justificativas para o fato de estarem na vida noturna: (SD 01) Minha filha tem 14 anos, né? E meu filho tem 12. E... é o meu foco, na verdade, né? Meu e de todas daqui. Assim, trabalho assim nessa vida pra dar o melhor pros meus filhos (Duda – grifos meus)4. (SD 02) Então, eles são alguma coisa pra pode alegrá nóis por dentro, pior nóis seria se nóis tivesse abandonado nossos filhos, tivesse jogado na rua, alguma coisa assim. Não. Nóis tamo aqui por eles. Por eles que nóis tamo aqui. Então, ninguém tem que fala nada. Só que é feio minha filha sabê, minha filha com 12 anos, que eu tô na zona (Carol – grifos meus).

Constrói-se socialmente uma relação contraditória entre os dois lugares ocupados pelas entrevistadas: ser mãe e prostituta ao mesmo tempo. Ser mãe e ocupar o lugar que essa posição representa socialmente, reforçada pela memória discursiva, o interdiscurso e o pré-construído, instaura uma imagem de mulher imaculada, respeitada, associada ao amor divino, ao dom da vida, ser cujo amor incondicional é capaz de realizar sacrifícios em prol dos filhos; sentidos naturalizados, ditos e repetidos pelo senso comum. Em oposição ao lugar positivo que se tem da maternidade, a imagem condenada é ocupada pela posição da prostituta, tida como mulher de vida fácil, promiscua, imoral, ocupando o outro lado do pêndulo. Em oposição à posição “boa” da “mãe de família”, existe a posição “ruim” e “má” da garota de programa: “O bom e o mau se encontram numa relação recíproca e constituem um par de conceitos axiológicos inseparáveis e opostos. Toda concepção do bom acarreta necessariamente, de um modo explícito ou implícito, uma concepção do mau” (VAZQUEZ, 1993, p. 184 – grifos meus). Tais contradições chocam-se e confrontam-se em duas faces distintas, mas inseparáveis: de um lado o bom, o certo, o virtuoso; de outro o mau, o errado, o vício. Dessa forma, para as leis que regem a moral a ser seguida, haverá dois lados, em que posições e condutas são delineadas uma por oposição a outra, ______ [ 161 ]

já que o conjunto de valores estabelecidos socialmente supõe, desde o seu início, a transgressão: “A norma, ao mesmo tempo, multiplica a norma e a indica. Ela requer, portanto, fora de si, ao seu lado, tudo aquilo que ainda lhe escapa” (CHAUÍ, 1984, p. 24). Tal dualidade impõe-se de modo a exigir que ambos os lados (co)existam, mas, sob a pena da coerção social, não podem ocupar o mesmo lado da moeda; caso ocupem, a contradição se fixa. Essa dualidade contraditória existe pela ordem da moral, mas o que se questiona é que tal antítese discursiva parece não ocorrer para as garotas de programa, já que estar ali, na prostituição, é justificado pelo fato de venderem sexo pelos filhos sob a defesa de que eles poderiam ser “abandonados”, “jogados na rua”, como se perceber nas SDs 01 e 02. Essas e outras justificativas, apesar de não resolverem a condição estigmatizada de prostituta em que vivem e de não as redimirem socialmente, ainda assim desfazem, no discurso, a possível contradição que existe para o analista. Inclusive, porque três delas estão na prostituição há mais de dez anos e não há contradição nenhuma nisso para elas. Lagazzi (1988), na obra O desafio de dizer não, ao analisar uma SD, afirma que a posição ocupada pelo sujeito, inscrito em diferentes formações discursivas, determina de que maneira os efeitos de sentido do processo interlocutório significarão, podendo ser diferentes para ambos os interlocutores: “Essas diferentes posições, que correspondem a diferentes formações discursivas, fazem com que professores e alunos privilegiem diferentes sentidos na interlocução, ou seja, cada qual se relaciona, com o discurso, marcado pela posição em que se encontra” (LAGAZZI, 1988, p. 67). Na sequência analítica, Lagazzi (1988) reafirma: “Percebemos, pela leitura, que elas se colocam de maneira diferente com relação aos sentidos atribuídos a ‘estudo’. S estranha o fato de que N receba uma remuneração para estudar, enquanto que N não aceita esse estranhamento” (p. 86). Assim, ser mãe e se prostituir não necessariamente tem o mesmo sentido para analista e entrevistado, visto que as formações discursivas permitem que se aceitem determinados sentidos e não outros, mesmo com o agir da ideologia em ambas formações. O entrelaçar de fios discursivos amarram-se aos nós da ideologia, mas perante a formação discursiva de outros sujeitos, esses fios se desfazem e as contradições se desmancham, esvaem-se. Charolles (1997) tece algumas considerações sobre as contradições textuais apontadas em produções de estudantes por professores de séries iniciais, tratando que o que pode ser contradição para o professor pode não ser para o aluno, para quem produziu tal efeito. Apesar dessas tessituras irem minimamente ao encontro do proposto por este projeto, mesmo se tratando ______ [ 162 ]

de um texto que propõe outro tipo de trabalho com a linguagem, é a epígrafe que Charolles (1997) utiliza que se encontra no âmago da discussão aqui proposta: Andávamos e escapavam-lhe frases quase incoerentes. Apesar dos meus esforços, mal acompanhava as suas palavras, limitando-me, enfim, em fixálas. A incoerência do discurso depende de quem ouve. O espírito parece-me feito de tal forma que ele não pode ser incoerente para si mesmo. Por isso não me atrevi a classificar Teste como louco. Aliás, percebia vagamente a ligação de suas ideias, não observava nelas nenhuma contradição; além do mais, eu teria temido uma solução simples demais (Paul Valery, Senhor Teste apud CHAROLLES, 1997).

A defesa levantada é a de que o espírito (ou o sujeito) não poderia ser contraditório a si mesmo, visto que sua formação discursiva minimiza o efeito contraditório que existe para o outro, dissolvendo no discurso aquilo que poderia instaurar problemas para o sujeito que vive nesse entremeio e nessa trama “paradoxal”. Mas há de se atentar também para o fato de o discurso ser constituído por esse embate existente entre as formações discursivas e, por consequência, as ideológicas. Dessa forma, os sentidos não são objetivos e transparentes e aí é que o apagamento (de ser prostituta e todo o estigma que há nessa posição) que antes se desfez se instaura, quando o assunto é os filhos e a prostituição. Na SD 02, Carol finaliza dizendo: “Por eles que nóis tamo aqui. Então, ninguém tem que fala nada. Só que é feio minha filha sabê, minha filha com 12 anos, que eu tô na zona”. Se existe um “sacrifício” em estar “ali”, ninguém poderia questionar ou mesmo julgá-lo como contraditório, pois, para Carol, não há contradição em ser mãe e fazer tudo pelos filhos, mesmo que esse tudo seja exercer uma prática moralmente condenada. Apesar de não existir contradição no fio discursivo entre ser mãe e ser prostituta, Carol não deseja que o estereótipo de “filha da puta” recaia sobre a filha, o que possibilita pensar que o desmanchar do que poderia ser contraditório na formação discursiva da qual a entrevistada comunga não ocorre de um modo exato, mas numa linha de tensão tênue, isso porque diversas formações discursivas se cruzam, chocam-se, hibridizam-se e, apesar de uma contradição se desfazer, outras se instauram. Assim, parece não existir contradição entre ser mãe e ser prostituta para elas, mas há problemas de a filha ser reconhecida como “filha da puta”. Do mesmo modo, a contradição se esvai quando são mães que se prostituem pelos filhos, mesmo que ocupem lugares tidos como inabitáveis. ______ [ 163 ]

Ser esposa e garota de programa não parece ser, em seus depoimentos, lugares simultaneamente habitáveis. Parece haver um limite na própria aceitação das entrevistadas, quando ocupam o lugar da garota de programa: pode, quando há a justificativa para estarem “ali” pelo outro; não pode, quando ocorre a interferência no “sagrado matrimônio” ou na configuração da “sagrada família”. Questionada se já se prostituía enquanto estava casada, Mônica responde: (SD 03) Não, só depois que eu separei (Mônica – grifos meus).

Enquanto estão unidas pelo laço matrimonial, seja ele firmado por meio da religião, da justiça ou apenas formalizado entre o casal, as entrevistadas não se prostituíam, pelo menos assim afirmam, como modo de tentar estabelecer limites fixos entre a condição de mulher “pura” e “honrada” que ocupavam durante o casamento e a condição de prostituta, mantendo sempre em vista a possibilidade de ser uma mulher “honrada” em certas condições e podendo retomar a situação, como apontam nas saídas para a “vida” que levam. Ou seja, separe-se a “boa” (aquela que ocupa o lugar de esposa (e por estar nessa posição atribui-se a imagem de honrada e respeitosa)) da “má” (aquela que vende o corpo por dinheiro). A análise do corpus revela, portanto, que, para elas, ser casada e se prostituir são ações que pertencem a duas formações discursivas distintas, lugares que não podem habitar o mesmo espaço. Sabese da existência de práticas dessa natureza, mas, no caso das entrevistadas, ter relações sexuais com vários homens por dinheiro e, ao mesmo tempo, “pertencer” a um homem só não é possível, o que é explicável, dado que elas estão inseridas numa sociedade monogâmica, que, supostamente, não aceita sexo fora do casamento e que, além disso, condena a prostituta por oposição à boa mulher, aquela destinada ao sagrado casamento. Dentre elas, Duda talvez seja a que transite com maior frequência entre as duas esferas, pois ela namora há dois anos, mas o namorado desconhece sua forma de ganhar a vida. Entretanto, essa relação só existirá enquanto forem namorados, pois, segundo Duda, a partir do momento em que se casarem, ela terá que deixar a prostituição. Constituir família e continuar com a prostituição não é uma atitude bem vista pela sociedade e pela instituição religiosa. As ideologias cristã e burguesa (no mínimo estas) interpelam Duda e a fazem assumir que essa antítese discursiva não pode ocorrer: seria contraditório. Por isso, ela deixa a casa de prostituição para namorar e a abandonaria depois de se casar, como mandam os preceitos religiosos, reforçando, em suas atitudes, os já-ditos pela ______ [ 164 ]

ideologia. Como assevera Orlandi (1987), a partir Reboul (1980): Em relação à coerção, não é necessário dizer que não se trata de força ou coerção física, pois a ideologia determina o espaço de sua racionalidade pela linguagem: o funcionamento da ideologia transforma a força em direito e a obediência em dever (O. Reboul, 1980). A religião constitui um domínio privilegiado para se observar esse funcionamento da ideologia dado, entre outras coisas, o lugar atribuído à Palavra (ORLANDI, 1987, p. 242). (SD 04) Eu fui casada seis anos com o pai da minha primeira filha... (Carol) Mas antes de vim pra noite, né? (Ana Paula) É... fiquei casada, sem nada, trabalhava de diarista, trabalhava de empregada doméstica, aí foi onde que não deu certo, era um cara muito vagabundo, chave de cadeia. Separei dele, voltei pra noite, fiquei muito tempo. Aí casei de novo, fiquei dois meses... (Risos) e separei, que eu tenho minha última filha (Carol – grifos meus).

Na SD 04, é possível perceber a preocupação de Ana Paula em ressaltar que Carol era casada antes de ir para a “noite”, reafirmando que a colega não se prostituía enquanto era casada e que essa prática só passou a ocorrer após a separação. As afirmações evidenciam que Carol e Ana Paula se inscrevem em uma formação discursiva que não admite vender-se sexualmente enquanto estão vivendo relações matrimoniais. Enquanto esposa digna de respeito, seguindo o modelo tradicional de família, era necessário que Carol trabalhasse em uma profissão “digna” e reconhecida como atividade jurídica e socialmente aceita, mesmo sendo uma profissão que, comparada a outras, não seja tão valorizada financeiramente, quando diz: “É... fiquei casada, sem nada, trabalhava de diarista, trabalhava de empregada doméstica”. Na sequência, Carol diz: “Separei dele, voltei pra noite, fiquei muito tempo. Aí casei de novo, fiquei dois meses... (Risos) e separei”, o que demonstra que a venda do corpo ocorria entre um casamento e outro, mas cessava com o enlace matrimonial. Abre-se a possibilidade, assim, de tecer uma relação de oposição entre a casa e a rua. A esposa, mãe e dona de casa ocupam o espaço reservado a elas: o lar e, diante desse espaço pré-definido, há também o delineamento de seus papéis, que define os deveres e valores de quem ocupa esse espaço. A rua, por outro lado, destina-se à prostituição; ela é o local da liberdade e da libertinagem; é onde as mulheres podem sair de seus lares e comercializar sexo, opondo-se ao papel desempenhado no seio familiar; desse modo, elas passam a ser “mulher pública”: “Vale ainda lembrar que a valorização das mulheres casadas passava pela existência das ‘mais fáceis’, que não apenas ajudavam a ______ [ 165 ]

reconhecer a boa esposa e mãe, mas também o lar contra a rua, contra a estrada e o caminho” (PRIORE, 1995, p. 101). A divisão dos espaços, como se vê, é resultado de convenções sociais que delimitam o papel a ser desempenhado, que é inseparável de uma formação discursiva contornada e controlada por uma ótica social. Tais sentidos se repetem, estão cristalizados na memória social, por isso há contradição para elas em esposa e ser prostituta5. (SD 05) Então, eu me separei, né? Foi uma separação assim, bem dura... Tanto é que assim, às vezes a gente lembra e fica emocionado, né? Mas, foi uma separação difícil, tanto é que meu ex-marido não queria mais ajudá com pensão. Meu pai, com o pouco que ele podia me ajudá, ele me ajudava (Duda – grifos nossos).

A separação é apresentada pelas entrevistadas como porta de entrada para a venda de sexo. Ser esposa é ser respeitada socialmente, pois a mulher casada possui o status de digna, fiel e “direita”. Ao deixar essa condição, parece tornar-se possível ir ao encontro do oposto: corromper-se, aviltarse, pois, como divorciadas, não há mais amarras (jurídicas ou imaginárias) que as faça seguir o modelo. Antes comprometida com o casamento, a partir da separação, ela passa a ser descomprometida, sem compromissos, sem obrigações; a mulher passa a estar “livre” desse enlace. Não se está dizendo que exista uma relação “lógica” entre separar-se e prostituir-se, mas casamento e prostituição para a mulher são, socialmente, incompatíveis. Estar unidos por laços matrimoniais firmados pela Igreja e pelo discurso jurídico, aceitos socialmente, requer comportamentos aceitáveis para essas formações discursivas; neste sentido, não se poderia jurar ser fiel, amar e respeitar um homem e se vender numa boate (ou em qualquer outro lugar) a outros. As entrevistadas afirmam e reafirmam o que é delineado pela sociedade como aceitável, apresentando-se como sujeitos que, apesar de transgredirem o que se considera uma boa conduta e estarem à margem, seguem os valores sociais dados como morais. Ratificar os preceitos morais e considerá-los como fundamentais as auxilia na busca de mostrar o quanto elas são “boas”. Se ser bom é seguir os preceitos aceitos socialmente, a defesa desses valores, ainda que, de determinada maneira, sob a tutela de um falso moralismo, tem como objetivo fazer com que a imagem das garotas entrevistadas passe a ser vista como positiva, já que elas compartilhariam do que se considera “bons” costumes. Duda, ao contar que ganhou de presente de aniversário um carro de um dos clientes, como evidenciado na SD 06, afirma que ele até queria se casar com ela, mas, por já ser casado, ela recusou o pedido: ______ [ 166 ]

(SD 06) Ah, ele era muito assíduo, queria até casá comigo. Pesquisador: E você não quis? Ah não, porque eu penso assim, igual que eu dizia pra ele, esse cliente era... nossa, ele gastava horrores na noite comigo, aí quando chegou o momento em que ele falou assim: Olha Duda, eu quero que tu saia da noite, eu vou dá uma quantidade em dinheiro pra você e você fica em casa ou você monta um negócio pra você mesmo, aí a gente vai morá junto. Ai eu sei que ele era casado e tudo, né? Daí eu falei: mas eu não quero a minha felicidade na tristeza de outra pessoa. O dinheiro é importante nas nossas vidas? é, mas às vezes querê dinheiro, o meu bem-estar nas costas de outra pessoa, vendo outra pessoa sofrê, eu acho que também já não é justo (Duda – grifos meus).

Prostituir-se em benefício dos filhos é enfatizado e enaltecido como se fosse quase um “sacrifício”, já que é isso que existe no imaginário sobre a figura materna, aquela que deve sacrificar-se pelos filhos, o que visa (consciente e inconscientemente) à demonstração de quão “boas” mães elas são, justificando ocupar o inabitável. Mas, para Duda, o seu “bem-estar” “nas costas de outra pessoa” seria uma agressão “injusta” e, sendo ela uma pessoa “boa”, não admitiria “interferir” (embora interfira ao oferecer sexo pago a homens e a mulheres comprometidos, outra contradição) no casamento de alguém, principalmente pelo fato de essa relação não estar atrelada apenas a preceitos jurídicos e sociais, mas também, e principalmente, a ditames religiosos. Dessa forma, enquanto seguidora da moral vigente, ela não poderia separar o que Deus uniu. Duda não quer ser vista como uma “destruidora de lares”, mas como uma mulher sensata e bondosa, que não deseja a sua “felicidade”, se o preço for o “sofrimento” de outra pessoa. A atitude de Duda mostra a sacralização do matrimônio como uma prática não só perpetuada, mas também “intocada”, que não pode/deve ser quebrada, sob pena de sofrer consequências religiosas e as mazelas sociais que se impõem sobre aqueles que o fazem. Tal pensamento é fomentado (também) pelo discurso religioso, o qual dota o matrimônio de um caráter transcendental e espiritual já que “o que Deus uniu, homem algum separa”. Voltando-se para o sujeito, é possível perceber que o discurso de Duda e das garotas entrevistadas se move num terreno conflituoso e contraditório, pois exercem uma atividade tida como imoral. Elas reconhecem e assumem que estão dentro de um terreno não adequado e, inclusive, sancionam a si e aos outros por meio destes princípios. Sobre elas se abate o peso da interpelação ideológica, que define o que pode e deve ser dito, mas, contraditoriamente, elas se valem de estratégias variadas para justificar o que fazem e tentam burlar a moral que o seu discurso avaliza. A prática discursiva das garotas mostra ______ [ 167 ]

que, em alguma medida, elas vivem no fio do conflito e da teia que as enreda, buscando, mesmo que de forma frágil e ineficaz, alguma maneira de pôr em suspensão momentânea os ditames sociais que se abatem sobre elas e sobre a atividade que exercem, mesmo que não lhes faltem fregueses. No fundo, entre levar a vida à margem daquilo que é sancionado de forma positiva pela sociedade e sobreviver pelos meios “legais” postos à sua disposição para fazê-lo, a opção se faz pela primeira via e o que efetivamente move as garotas de programa é a busca pelo retorno financeiro, sendo este o fator decisivo tanto para a entrada quanto para a permanência na vida de meretriz. Entretanto, a SD 06 parece mostrar que, apesar de elas estarem ali por dinheiro, ele não seria digno se viesse “nas costas de outra pessoa”, o que implica em deduzir que, se outra pessoa não for prejudicada, o dinheiro ganho se torna aceitável. Como isso é possível, se elas próprias afirmam que o que fazem é inadequado e o fazem sem a restrição de ocasionar prejuízo ou não a alguém? Percebe-se o contorcionismo que acontece num terreno complexo e que, neste caso, busca justificar o injustificável, num contraponto perene entre a vida material (a sobrevivência) e a vida ideológica: uma coisa é o que se diz, outra é o que se faz e de que forma se tenta justificá-lo para não ferir a moral vigente (embora ela seja ferida no seu núcleo). O que sobra, no fim, é uma vida “imoral” tentando se mostrar adaptada ao que seria confirmado pela moral sancionada, sem obter êxito na empreitada. A SD 06 é organizada, em termos do esquecimento número 2, da ordem da enunciação, no sentido de que Duda é honrada, digna e uma “boa mulher”. No entanto, este mesmo esquecimento esconde o de número 1, que, por fim, acaba fazendo com que a própria Duda se julgue disforme, devendo justificar-se por isso. Casar-se com o cliente exigiria que Duda deixasse a prostituição. Mas a questão que acaba sobressaindo é: ela recusa o pedido por não querer “destruir” um casamento firmado diante de Deus ou a recusa está associada ao desinteresse de deixar a “vida fácil”, usando como estratégia a máscara de boa moça? Ou ainda, no nível do inconsciente, a prostituição pode ser a manifestação do desejo e do prazer, não reveladas ou que não podem irromper na ordem da moral. Todas afirmam que não querem permanecer no meretrício, mas elas não deixam e não tomam qualquer atitude para que isso ocorra, tanto que Duda, Ana Paula e Carol vendem sexo há mais de 10 anos. O que se percebe é que a afirmação de que esta será uma prática breve e passageira acaba sendo outra (das muitas) justificativa apresentada por elas para amenizar a imagem negativa que pesa sobre a atividade, sendo o “sonho” de abandonar a prostituição contado e recontado para amenizar o passar dos anos e a crítica que vem de um lugar que as tenha sob vigilância. ______ [ 168 ]

Viver na zona é muito mais que viver da prostituição; viver na zona é experienciar o entremeio, o não-lugar ou “a terceira margem do rio”, como quer Guimarães Rosa, que, nas suas Primeiras estórias (1962), (re)cria esse espaço intermediário situando seu personagem em um contínuo suspenso, alienando-se da rotina para viver da “invenção de [...] permanecer naqueles espaços do rio de meio a meio”, numa canoa que jamais “pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio”, não mais tocando “em chão nem capim” (ROSA, 1978, p. 28-30). Ser garota de programa é experienciar os dois lados do rio e também o não-lugar do entremeio, que constitui, para quem observa da margem, a contradição, mas, para quem habita a terceira margem, é que um incessante navegar por águas (des)(re)conhecidas. Mesmo se achando nesse entremeio, as formações discursivas que se cruzam e se confrontam no discurso produzem, para as garotas de programa, a ideia de completude, por isso não há contradição em ser mãe e ser prostituta, por exemplo, até porque se os sujeitos não se sentirem plenos e completos (interpelação), eles “desmoronam” discursivamente. Caberia ainda (re)pensar a contradição considerando o inconsciente. Pêcheux (1997), a partir dos estudos de Freud via Lacan, afirma que “só há causa daquilo que falha”. Ideologia e inconsciente têm como caráter comum dissimular a própria existência no interior mesmo de seu funcionamento, “produzindo um tecido de evidências subjetivas” (PÊCHEUX, 1997, p. 153). Tanto na SD 01 como na SD 02, as justificativas das entrevistadas se encontram na ordem da moral, do consciente, mas se questiona também a ordem do inconsciente, pois a entrada e a permanência na prostituição pode se dar pela ordem do desejo e do prazer e não apenas para suprir as necessidades dos filhos, como é posto pelas entrevistadas. Parafraseia-se nos depoimentos colhidos a iminente saída como busca pela redenção, isso posto pela ordem do consciente, mas o perdurar e o passar dos anos instauram na não saída um possível desejo de estar ali: (SD 07) Pesquisador: Vocês pensam, assim, algum dia parar? Sim (Ana Paula). Se Deus quisé... metade desse ano. Antes ainda (Carol). Pesquisador: Mas dai você pensa em fazê o quê? Trabalhá (Carol). Pesquisador: É? Procurá outra coisa? Já tamo procurando já (Ana Paula e Carol – grifos meus).

A prostituição é o lugar que permite romper com o espaço de circulação de uma ordem do desejo, que não combina com a ordem moral. ______ [ 169 ]

Trata-se do prazer justificado por inúmeras razões. Entretanto, em nenhum momento da entrevista é dito ou afirmado que o motivo de estarem ali é para satisfazer desejos; os motivos são sempre justificados e a “culpa” recai sobre o outro, já que o abandono do marido, o desemprego, os filhos, a influência de amigas e o fatídico destino colocaram-nas no lugar que estão agora. Elas não dizem e nem poderiam dizer/assumir que se prostituem porque querem, mas, de uma forma ou outra, o inconsciente pode estar afetando as escolhas. Sabe-se que há várias formas de repressão sexual instauradas no meio social, como assevera Chauí (1984) e, por isso, afirmar que se vende sexo porque gosta dificilmente seria dito de maneira tranquila, sem que existisse uma condenação moral: De modo geral, entende-se por repressão sexual o sistema de normas, regras, leis e valores explícitos que uma sociedade estabelece no tocante a permissões e proibições nas práticas sexuais genitais (mesmo porque um dos aspectos profundos da repressão está justamente em não admitir a sexualidade infantil e não genital). Essas regras, normas, leis e valores são definidos explicitamente pela religião, pela moral, pelo direito e, no caso de nossa sociedade, pela ciência também (CHAUÍ, 1984, p. 77 – grifos meus).

O desejo tenta o tempo todo escapar, mas a moral está o tempo todo cerceando. Os valores morais agem de maneira a suprimir, inibir e reprimir desejos sexuais do sujeito a tal ponto que sentir prazer, muitas vezes, relacionase à culpa. Pensando no inconsciente, nota-se no corpus que nenhuma delas, em nenhum momento, afirma ser garota de programa ou prostituta; elas estão sempre se colocando em outro lugar: são mães, são ex-esposas, são filhas, são desempregadas ou são futuras-estudantes, mas não garotas de programa: (SD 08) Eu sempre digo assim, oh: Eu não sou puta, eu sou menina de família com pobremas financeiros: SPC, Procon, Serasa (Carol – grifos meus). (SD 09) Somos, pra muitos ali fora, somos garotas de programa, mas não é, somos garotas de família com problemas financeiros... que é um método, curto, rápido e preciso de ganhar dinheiro. Como assim, como é que tu vai trabalhá pra ganha um salário por mês, né? Não tem nem como, né? (Duda – grifos meus).

Na psicanálise, Freud apresenta o conceito de denegação, considerado a operação que permite uma representação recalcada ascender ao consciente, desde que ela ocorra por meio da negação. Indursky (1990), ao definir a denegação discursiva, afirma que o sujeito apresenta-se dividido entre o ______ [ 170 ]

desejo de dizer e a necessidade de recalcar; ele se diz, sem necessariamente dizer-se. Negar que são prostitutas, instaura, por meio da denegação, a (re) afirmação desse recalque. As entrevistadas negam que são garotas de programa, ou mesmo “puta” como aparece na SD 08. Elas se colocam em outro lugar, para que sejam vistas em posições louváveis (como a materna) ou mesmo respeitáveis (como a esposa), valores defendidos pelos preceitos morais. Entretanto, na ordem do inconsciente, o que não pode ser dito vem à tona por meio da (de) negação. Esses efeitos irrompem, porque a linguagem não é só lugar de poder, mas lugar do possível, é o lugar de luta do sujeito (LAGAZZI, 1998). Nesse sentido, a contradição é pensada de outra forma, pois não há contradição quando se trata da manifestação do inconsciente, em que os sujeitos são tomados pelo prazer e pelo desejo que não se apagam: O fato é que o non-sens do inconsciente nunca é inteiramente recoberto nem obstruído pela evidência do sujeito-centro-sentido que é seu produto, sendo inscritos na simultaneidade de um batimento em que inconsciente não para de voltar no sujeito. O inconsciente do significante não se apaga jamais, ele se manifesta pelas várias formas da falha (PÊCHEUX, 1997, p. 300 – grifos meus).

Ser prostituta, defender a prostituição ou desejar permanecer na vida “fácil” não é o que elas mostram desejar (ainda que o discurso falhe e mostre o contrário). Sob a ilusão de dominarem o discurso, crentes que a língua é objetiva e que os ditos não dizem mais do que é pronunciado, as entrevistadas buscam razões (algumas até comoventes) para justificar porque estão na vida “fácil” e não em outro lugar. Mas sendo o discurso opaco e heterogêneo, percebe-se que as desculpas apresentadas não as redime, pois, se as desculpasse do “fardo” que carregam, não precisariam esconder dos filhos, amigos e familiares o que fazem, não precisariam viver na “noite”. Porém, em contrapartida, a prostituição permite a circulação das garotas na ordem do desejo e, talvez, por isso mesmo, ela se reafirme na história. ALGUMAS PALAVRAS (FINAIS) A entrevista mostra um discurso contraditório, truncado, dividido e, por vezes, difícil de ser compreendido. Lidar com a sexualidade não é fácil e mais difícil ainda é lidar com o discurso sobre o sexo marginal: “as regiões onde a grade é mais cerrada, onde os buracos negros se multiplicam, são as ______ [ 171 ]

regiões da sexualidade e as da política” (FOUCAULT, 2008, p. 9). As garotas de programa não só evidenciam um discurso contraditório, como também se mostram mulheres divididas, que ocupam lugares opostos na sociedade e, para lidar com a contradição em que vivem, precisam justificar-se, desculparse e isentar-se da “culpa” que sentem por serem mães e venderem o corpo para sustentarem os filhos, por serem ex-esposas que passaram do “sexo civil” para a venda de sexo. Ora estão à margem, ora fazem parte da dinâmica social, ainda que não plenamente. O que as garotas do Porto das Sereias vivem é tão contraditório que mesmo elas se confundem: (SD 10) Eu acho que eu não to fazendo nada errado, to vendendo meu corpo, mas tipo não é certo, mas também não to fazendo nada errado (Mônica – grifos nossos).

A ideologia, o interdiscurso, a memória discursiva e as condições de produção são tão imperativas que os sujeitos se dizem a partir do que é dito sobre eles. As entrevistadas reproduzem a moral vigente, condenando as suas próprias práticas e repetindo o que é dito sobre elas e sobre a prostituição. No começo da pesquisa, buscava-se levantar diferentes histórias sobre a prostituição, com o intuito de descortinar um pouquinho sobre um assunto que não circula livremente em qualquer rodinha de diálogo. Assim, o que pareceu ser no início relatos distintos, no fio do discurso, mostrou-se repetitivo; o mais do mesmo ecoou nos discursos coletados; vê-se a memória sobre a prostituição dita em outro lugar se perpetuando. As mesmas justificativas para a entrada na vida “fácil”, o mesmo encobrimento (consciente e inconsciente) de afirmarem quem elas são e as mesmas alternativas para deixar a venda de sexo permeiam as SDs, reafirmando o discurso cristalizado sobre a prática. Além disso, a prostituição é defendida pelas entrevistadas como uma forma passageira de ganhar a vida. Como mostrado, a venda do corpo não é encarada por elas como uma prática louvável, é “errada”, e elas mostram estar pensando em alternativas consideradas moralmente “corretas” para deixar a vida que levam; são saídas que as levarão para a redenção de seus pecados. Uma vez fora da prostituição, elas passariam a ocupar outros lugares, idealizados e defendidos: mãe, esposa, filha “digna”, “estudante”, profissional em uma função aceitável socialmente. Reverbera a repetição do discurso moralmente aceito; elas desejam (re)(in)gressar em uma vida que consideram ideal. O contrário não poderia ser dito. Dizer que pretendem continuar na prostituição (mesmo que essa talvez seja a vontade delas, embora poderia até ser uma vontade do inconsciente) seria arcar com as consequências desse enunciado, pois a prostituta, como se viu no início do trabalho, até é aceitável ______ [ 172 ]

pela sociedade que precisa dela para o equilíbrio social, mas desde que elas continuem à margem. Assumir que gosta do que faz, que acha “certo”, que sente prazer e que deseja vender sexo para o resto da vida é fazer repercutir efeitos contrários ao que espera a moral estabelecida. Escolher (embora afirmem serem obrigadas) permanecer no meretrício (embora digam ser uma condição temporária) e afirmar que não sentem prazer (embora não seja algo que se possa controlar) talvez sejam formas de esconder o que realmente querem dizer, mas que não podem e não dever se afirmado. Elas não podem admitir que gostam do que fazem e que querem fazer o que fazem (talvez, então, o recalque do inconsciente). Na posição de entrevistadas, elas se colocam no lugar de quem deve buscar razões que justifiquem a entrada, a permanência e que adiem a saída de onde estão. Mônica, Carol, Ana Paula e Duda tecem teias contraditórias sobre a prática, encontram-se nos nós formados por esses fios e se enredam no discurso milenar dito e repetido. Para finalizar, tem-se claro que esta discussão é apenas um recorte, um olhar sobre as SDs que tanto dizem e que a partir delas tantos outros sentidos ecoam. O que se deixa são algumas considerações sobre esse discurso de entremeio, que suscita tantos sentidos, por vezes, quase imagináveis. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSEN, Hans Christian. Contos de Andersen. 7.ed. trad. Guttorm Hanssen. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. CHAROLLES, Michel. Introdução aos problemas da coerência dos textos: abordagem teórica e estudo das práticas pedagógicas. In: Texto, leitura e escrita. Organização e Revisão Técnica da tradução: Charlotte Galves, Eni Orlandi, Paulo Otoni. Campinas – SP: Pontes, 1997. CHAUÍ, Marilena. Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984. DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso: aula inaugural no Collège ______ [ 173 ]

de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. Edições Loyola, São Paulo – SP, 2008. INDURSKY, Freda. Polêmica e denegação: dois funcionamentos discursivos da negação. In: Cadernos de Estudos Linguísticos, 19, jul/dez, Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. p. 117-122. LAGAZZI, Suzy. O desafio de dizer não. Campinas: Pontes, 1988. ORLANDI, Eni Puccinelli. A Linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4. edição. 2. Reimpressão. Campinas: Pontes, 1987. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3. ed. trad. Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. PEREIRA, Ivonete. As decaídas: prostituição em Florianópolis (1900-1940). Florianópolis: Ed.da UFSC, 2004. PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995. RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Trad. Marco Antonio Esteves da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. ROBERTS, Nickie. As prostitutas na História. trad. Magna Lopes. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1998. ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: ______. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. SCLIAR, M. O ciclo das águas. Porto Alegre: L & PM, 2010. VAZQUEZ, Adonfo Sanchez. Ética. 14. ed.. trad. João Dell’Anna. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1993.

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NOTAS 1) O corpus desta pesquisa é composto por entrevistas realizadas com garotas de programa, em agosto de 2012, consentidas e aprovadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, trabalho inscrito também na Plataforma Brasil, base nacional unificada de registro de pesquisas. A coleta do material foi realizada em uma boate de Cascavel-PR, local selecionado por meio de uma amostragem não probabilística por acessibilidade, e quatro garotas de programa concordaram em participar das entrevistas, cedendo suas histórias para a realização da pesquisa. 2) Porto das Sereias foi o nome criado para nomear a boate em que as garotas de programa foram entrevistadas, visto que o CEP prima pelo anonimato das fontes e, neste caso, do local da pesquisa. Relaciona-se porto com o lugar de passagem de homens e mulheres que buscam sexo e local igualmente de passagem para as sereias que desembarcam para vender sexo. Formada por uma imagem híbrida, a sereia é, em sua completude, a soma da incompletude das partes de que é feita: metade mulher, metade peixe. Assim é a prostituta, dividida entre mulher idealizada e garota de programa (re)negada, em que cada metade experiencia um lugar diferenciado, mas cada lugar não pode ser ocupado em sua plenitude. 3) Utiliza-se a palavra “reais” para caracterizar que se trata, efetivamente, de relatos de mulheres de nosso cotidiano que vivem da venda de sexo, apesar de entender que as histórias relatadas se constituem por um imaginário ideológico e social, não podendo ser caracterizadas como “histórias reais”. 4) Vale ressaltar que as próprias entrevistadas sugeriram um nome para serem nomeadas durante a entrevista e a composição da pesquisa. Além disso, cabe dizer que as entrevistas foram transcritas sem correções gramaticais ou inserção livre de complementos. 5) O que realmente causa estranheza, ou no mínimo curiosidade, é o desmanchar da contradição em alguns momentos do discurso e em outros a contradição se reinstaurar, como comentado anteriormente. Quer dizer, é de fato um lugar contraditório ocupado por elas, tão contraditório que o próprio discurso acaba sendo entrecortado.

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CAPÍTULO

9

BRASIL E BRASILEIROS EM PORTUGAL: CONSTITUIÇÃO DE SUJEITOS E SENTIDOS

Alexandre Sebastião Ferrari Soares Isabel Maria Ferin da Cunha Como na célebre abertura de Burnt Norton, tece-se aqui uma trama onde se constata que o presente e o passado estão presentes no futuro, assim como o futuro está contido no passado – e se pergunta se esses tempos conseguirão em alguma medida liberar-se uns dos outros, o passado deixando de condenar o futuro a uma eterna repetição, o futuro escolhendo de qual dos seus passados servir-se para reinventar-se. Essa é a pergunta presente que o Brasil se faz. (fragmentos do prefácio escrito por Francisco Bosco, do livro Vai Brasil, da escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho, itálicos do autor, grifos meus)

Para falar do Brasil em Portugal, hoje, não se pode se limitar exclusivamente a um recorte no tempo: nem passado, nem presente e nem futuro, separadamente. Esses três momentos do discurso se confundem e se completam. Afastam-se e se aproximam numa luta por um espaço que vai muito além do geográfico, do linguístico ou do cultural. Falar do Brasil é também falar de Portugal, porque, de certa forma, encontramo-nos em algum ponto desse Atlântico que nos une e nos separa. Neste artigo, analiso as Formações Imaginárias (doravante, FI) sobre o Brasil/brasileiro em quatro artigos e uma nota publicados pelo jornal português Correio da Manhã, durante os primeiros dias do mês de janeiro de 2011. Nos artigos do jornal, a saber, “Venho consolidar a obra de Lula, do dia 02 de janeiro; Sócrates e Dilma discutem crise da dívida soberana e Privilégios de Lula abrem polêmica, do dia 07 de janeiro; Dilma choca religiosos, do dia 10 de janeiro; e, finalmente, na nota, Presidente brasileira já tem boneca personalizada – artista cria Barbie Dilma, do dia 09 de janeiro de 2011”, o Brasil é retratado, sobretudo, a partir da posse da presidenta eleita Dilma Rousseff e da saída do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. Também fazem parte desse corpus de análise, cinco artigos publicados pelo jornal Expresso, todos de janeiro de 2011: “Brasileiros trazem bom ano a Lisboa”, “Galp conta com Petrobras no carnaval”, “Sócrates e Dilma juntos”, “Reviver o passado no presídio Tiradentes”, todos do dia 08 e “Quanto vale a língua portuguesa?”, do dia 29. Sobre a teoria que me dá suporte para as análises, a Análise de Discurso de orientação francesa, é importante destacar o que Pêcheux (2001, p. 87) afirma sobre o lugar que os interlocutores ocupa na estrutura de uma formação social ser evidenciado a partir das supostas Formações Imaginárias colocadas em jogo no discurso. Além disso, encontra-se também em evidência a compreensão das condições de produção desse processo discursivo. O que significa dizer que o locutor, a partir do lugar que ocupa, tem a habilidade de prever onde o seu interlocutor o espera. Consequentemente, a antecipação do ______ [ 177 ]

que o outro vai pensar é constitutiva de qualquer discurso. A FI, entretanto, não diz respeito apenas à imagem que os interlocutores atribuem a si (e ao outro), ela diz respeito também à imagem que eles atribuem ao referente, ou seja, o ponto de vista dos interlocutores sobre o imaginário. Segundo Pêcheux (2001), todo processo discursivo supõe a existência das seguintes FIs: IA(A): Imagem do lugar de A para o sujeito colocado em A - Quem sou eu para lhe falar assim? IA(B): Imagem do lugar de B para o sujeito colocado em A - Quem é ele para que eu lhe fale assim? IB(B): Imagem do lugar de B para o sujeito colocado em B - Quem sou eu para que ele me fale assim? IB(A): Imagem do lugar de A para o sujeito colocado em B - Quem é ele para que me fale assim? (PÊCHEUX, 2001, p. 83, grifos meus)

Existiriam regras de projeção responsáveis por estabelecer as relações entre as situações discursivas e as posições dos interlocutores. As relações imaginárias podem ser consideradas como um modo pelo qual a posição dos participantes do discurso intervém nas condições de produção do discurso. Podemos concluir, portanto, que no processo discursivo há, por parte dos interlocutores, uma antecipação das representações de um e de outro, sobre a qual se funda a estratégia do discurso. Como se trata de antecipações, o que é dito precede as eventuais respostas de B, que vão sancionar ou não as decisões antecipadas de A. Essas antecipações são, entretanto, sempre atravessadas pelo já dito, que constituem a substância das FIs. Esse artigo faz parte das primeiras conclusões a que chego como resultado das minhas pesquisas realizadas durante o meu estágio de pósdoutorado1. Os recortes da pesquisa foram/são organizados a partir de textos, charges, fotografias e cartas de leitores publicados nos jornais impressos, de grande circulação em Portugal (o Correio da Manhã, o Diário de Notícias, o Expresso, o Jornal de Notícias e o Público) no ano de 2011. A escolha do jornal Correio da Manhã, em detrimento de outros jornais, como corpus desse artigo, se deu por conta do número de exemplares vendidos. Segundo dados da Associação Portuguesa para o Controle de Tiragem e Circulação (APCT), O Correio da Manhã (doravante, CM) é o jornal mais vendido em Portugal. Entre janeiro e dezembro de 2013, foram vendidas uma média de 112.606 exemplares por dia, revela o relatório da APCT. Este jornal, de longe, é o mais lido em Portugal. Segundo dados do mesmo instituto, em segundo lugar, em quantidade de tiragem, encontra-se o semanário (sic) ______ [ 178 ]

Expresso, com uma média de 77.544 exemplares vendidos. O CM e o Expresso, portanto, ocupam uma posição de destaque entre os portugueses e os dados da APCT contribuem como um reforço para a percepção disso. As notícias veiculadas pelo jornal estão, dessa forma, circulando, sendo difundidas e, certamente, construindo e cristalizando imaginários sobre variados assuntos. É preciso ainda esclarecer que sendo o meu ponto de vista teórico o da análise de discurso de orientação francesa, os princípios que regem este ponto de vista são: a) Não tratamos de indivíduos compreendidos como seres que têm uma existência particular no mundo. Quero dizer que o sujeito, nessa perspectiva, não é um ser humano individualizado, mas que deve ser considerado como um ser social. Ele deve ser compreendido a partir de um espaço coletivo. Para um analista de discurso o histórico e o simbólico não se separam. (ORLANDI, 2010). b) Sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo. O sujeito se significar ao dar sentido, os lugares ocupados pelos sujeitos são, portanto, definidos a partir do que ele diz, a partir do que se materializa no seu discurso. c) Para que as palavras façam sentido é necessário que elas já façam sentido (ORLANDI, 1996), estejam inscritas na história, pois cada tempo tem a sua maneira de nomear e interpretar o mundo. Esse é um complexo processo da memória. Há dizeres já ditos e esquecidos que estão em nós e que fazem com que ao ouvirmos uma palavra, uma proposição, ela apareça como fazendo um determinado sentido. A memória discursiva é constituída pelo esquecimento. Esquecemos quando os sentidos se constituíram em nós, eles nos aparecem como evidentes, como um sempre já-lá. d) Vivemos em uma sociedade estruturada pela divisão e por relações de poder, portanto, os sentidos não são os mesmos para todos, ainda que pareçam ser. Nós, analistas do discurso, tratamos do político que se inscreve na língua. A mídia tem papel fundamental na construção de sentido sobre o Brasil/brasileiro, pois difunde uma pretensa ilusão de veracidade e objetividade sobre o que é significado. Além disso, compreender a forma como circulam, em Portugal, os sentidos sobre os brasileiros e sobre o Brasil é compreender de que maneira Portugal redesenha o Brasil no cenário internacional. ______ [ 179 ]

Parto do pressuposto produzido pelas teorias do discurso, pelas teorias da comunicação e da psicanálise lacaniana, segundo as quais o outro nos constitui assim como também constitui o nosso discurso. Diante disso, é possível afirmar que as representações que o outro faz de nós e as representações que fazemos do estrangeiro atravessam, de modo constitutivo, o sentido de identidade subjetiva. (CORACINI, 2007). Com base nesse quadro e reconhecendo a força que a mídia tem para a construção (circulação) do imaginário, responsável pelo sentimento de identidade que nos dá a medida da nossa singularidade, conferindo-nos a ilusão da unidade e da totalidade do discurso, serão analisadas sequências discursivas2 de textos jornalísticos, para compreender de que forma o Brasil e o brasileiro são apresentados, são denominados, são construídos em suas páginas. A escolha da imprensa escrita e impressa (e em versões eletrônicas) se deve à expansão de sua circulação, nos dias de hoje, sobretudo, quando os textos jornalísticos ganham mais espaços em sala de aula (em todos os níveis de escolarização), o que lhe confere um poder de constituição desse sentimento de identidade, ao qual se refere Coracini (2007), e ainda porque, presentes em sala de aula, auxiliam na educação e na divulgação dos sentidos que são construídos através da veiculação de textos. Sobre o aspecto pedagógico dos textos midiáticos, Beacco & Moirand (1995) atribuem um certo didatismo aos discursos das mídias (sem mencionar diretamente o discurso jornalístico), já que, para veicular informações, eles se valem de desenhos (mapas, figuras etc.), esquemas, além de definições, explicações, estatísticas, questionamentos e citações de autoridades (MARIANI, 1998, p. 61), enfocando, dessa forma, um acontecimento singular através de generalizações feitas a partir de um campo de saberes já estabelecido. Os jornais falam sobre, portanto, explicam o mundo como se estivessem fora dele, como se a função do jornal fosse relatar os fatos como se apresentam, efeito de literalidade, e, assim, reforçam-se os mitos em torno do discurso jornalístico, de veracidade, de objetividade, de neutralidade e de imparcialidade. Sobre esses mitos, Mariani (2005) afirma que Trata-se de uma prática discursiva que atua na construção e reprodução de sentidos, prática essa realizada a partir de um efeito ilusório da função do jornal como responsável apenas por uma transmissão objetiva de informações. O discurso jornalístico constrói-se, dessa forma, com base em um pretenso domínio da referencialidade, pois baseiase em uma concepção de linguagem que considera a língua como ______ [ 180 ]

instrumento de comunicação de informações. Decorrem daí vários efeitos constitutivos dos sentidos veiculados como informações jornalísticas: objetividade, neutralidade, imparcialidade e veracidade. (MARIANI, 2005, p. 8, grifos meus).

A linguagem, portanto, passa a ser concebida apenas como um instrumento de comunicação3 de significações que são definidas independentemente do funcionamento da linguagem, isto é, “informações” que mascaram a sua ligação estreita com a prática política ou obscurecem esta ligação. Ao introduzir o meio de comunicação, como jornais e revistas para atividades pedagógicas, não se pode esquecer as próprias condições de produção das notícias e os efeitos de sentido decorrentes dessas condições. Nesse sentido, deve-se buscar compreender como objetos simbólicos, por definição não-transparentes, produzem sentidos e como acontecem os gestos de interpretação realizados pelos sujeitos (ORLANDI, 2002). Na constituição da memória social, da qual a mídia é parte fundamental, o processo histórico-discursivo resultante de uma disputa de interpretações dos acontecimentos presentes e passados (e futuros) leva à predominância de uma interpretação. Naturalizam-se, assim, sentidos, que passam a ser comuns e hegemônicos. Isso não significa, porém, que os sentidos “esquecidos” deixem de atuar, seja como oposição, seja como resíduo no interior do discurso predominante. Estas interpretações aparecem como conteúdos que seriam colocados em circulação em sentidos já estabilizados, divididos politicamente. Lisboa (2010), a partir de pesquisa empírica com portugueses sobre o imaginário deles em relação ao Brasil e aos brasileiros, observou que a ênfase na sensualidade, na alegria e na cordialidade aparece como sendo típicas da Identidade brasileira em Portugal (uso identidade em maiúscula apenas para chamar atenção do que cola nessa formação imaginária sobre o brasileiro, em terras lusitanas). Segundo o autor, essas estereotipias identitárias – reproduzidas, inclusive, pelo próprio Estado brasileiro (em discursos nacionais e internacionais de legitimação de uma suposta “brasilidade” e de posicionamento turístico deste país no mundo) – compõem o fundamento principal do universo de referências atribuídas ao Brasil em Portugal: A alegria e o gosto pelo sexo são as características que representam os brasileiros. Estão sempre a fazer festa, a dançar aquelas músicas que mexem todo o corpo. E as brasileiras, então, são as mais quentes do mundo! Deixam qualquer homem português (...) qualquer homem perturbado (...) Cá, em Lisboa, é impossível não admirar as brasileiras, com suas ‘curvas’, a baloiçar os seus belos corpos (LISBOA, 2010, p. 60, grifos meus). ______ [ 181 ]

O Brasil é um país alegre. Os brasileiros estão sempre a rir, a dançar, a falar alto. (...) Os portugueses são mais fechados, mais europeus, embora sejam um povo hospitaleiro. Se calhar, somos mais sérios, mais racionais, e os brasileiros, mais festivos, mais emotivos, por assim dizer (...) Não vês os brasileiros que estão cá a trabalhar, como costumam chamar a atenção! (LISBOA, 2010, p. 60, grifos meus)4.

Alegria, sensualidade, sexualidade são, pois, denominações5 que acompanham de forma constitutiva o imaginário português em relação ao Brasil e aos brasileiros, segundo a pesquisa realizada por Lisboa (2010). Nessas denominações, as mulheres brasileiras são as mais quentes e deixam “qualquer homem português ou qualquer homem perturbado”: elas figuram, assim, como uma marca natural de erotização da brasileira em Portugal. Lisboa (2010) nos mostra que a sensualidade e a erotização estão relacionadas diretamente à mulher. No entanto, as festas, as danças, a alegria colam ao brasileiro de uma forma generalizada, independe do gênero, isto é, naturalizam a relação entre ser brasileiro e ser um povo feliz: Os brasileiros estão sempre a rir, a dançar, a falar alto, como se isso fosse a nossa marca registrada, afinal o Brasil ainda é, nesse imaginário, o éden. Cunha (2002), também a respeito do imaginário sobre o Brasil, mostra que em relação à erotização do corpo feminino, a Carta de Caminha6 já fundava este sentido: Desde a primeira referência aos homens vistos em terra, para além da precisa e minuciosa descrição física que já levou alguns analistas a verem em Caminha o ‘nosso primeiro etnógrafo’, importam aqui dois traços plasmados do gentio que retornam, nuançados, inúmeras vezes: a nudez, referida como geral – “pardos, todos, nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse as vergonhas” -, mas apreciada repetidamente nas mulheres, e ainda a receptividade, formada pela docilidade, alegria e ‘inocência’, daqueles que encontrou. (CUNHA, 2002, p. 1, grifos meus)

Mas não é apenas a sensualidade e suas variações que habitam o imaginário Português sobre o brasileiro e o Brasil. Na pesquisa realizada por Lisboa (2008), a violência ocupa um lugar de destaque nessa naturalização de sentidos próprios do Brasil e de sua gente: O Brasil é bonito, mas perigoso. Vocês lá matam as pessoas como matam animais. Todos os dias há notícias de que morreram não sei quantos. Desculpe lá, mas parece que vocês têm, no sangue, a tradição de vingança, a tradição de matar. Em qualquer coisa, até no futebol, aproveitam para se vingar com crimes. Por isso que evito muito contato com esses brasileiros daqui de Lisboa. Não, não! Não dá para confiar. (LISBOA, 2010, p. 62, grifos meus). ______ [ 182 ]

Até gosto do Brasil. Gosto das praias, do Carnaval, da alegria, das telenovelas. Mas a violência é demais, assusta-nos. Aquilo lá já não tem limites. É muito crime! Imagino que as pessoas não podem andar sossegadas na rua, pois os ladrões, os bandidos (...) esses tipos atacam a toda hora. Os brasileiros são mesmo muito violentos, se bem que até há raças piores, como os ciganos, os pretos e esses do Leste. (LISBOA, 2010, p. 62, grifos meus).

A relação entre haver “todos os dias notícias” e o brasileiro parecer ter “no sangue a tradição da vingança, a tradição de matar” é reproduzida de forma a constituir o sujeito e o sentido, naturalizando um imaginário sobre o brasileiro e sobre o Brasil. É histórico esse misto de paraíso e terra perigosa nos relatos dos europeus. O Brasil sempre apareceu como essa mistura, onde a selva (e a selvageria) se sobrepõe à realidade urbana; onde praias paradisíacas e animais estranhos convivem em uma paisagem marcada pela abundância e pela fertilidade. Antes eram os relatos misturando o ficcional e a narrativa documental e os livros de viagem ilustrados com imagens (muitas vezes irreais) de animais bizarros, florestas infindas e estranhos habitantes nus. Hoje, são os panfletos turísticos, as imagens televisivas, as reportagens e fotografias que difundem cenas de uma mistura de paraíso e “terra incógnita”, cheia de emboscadas e perigos: Desde os primórdios, a concepção europeia do novo continente teve duas facetas, completamente opostas: por um lado, a terra era vista quase sempre como um éden; por outro, o homem aparecia demonizado. São, pois, intermináveis os exemplos de exaltação da abundância de vegetação, da quantidade de espécies – seja da fauna ou da flora – da exuberância e até da longevidade (relatos mencionam que os índios chegavam a 180 anos!) proporcionada pelo clima esplêndido do Brasil. Com o mesmo peso, registrava-se o espanto diante dos ritos canibalescos do selvagem. (CORRÊIA, 2011, p. 1, grifos meus).

Holanda (1996, p. 375) afirma que a percepção europeia sobre a América estava ligada à interpretação quase literal feita dos textos bíblicos na época dos descobrimentos. O Velho Mundo acreditava na existência de uma Idade de Ouro perdida, crença que marcou o espírito europeu desde a Antiguidade. O novo território ressurgia como éden reencontrado: E como, em um e outro caso [bíblico e tradição greco-latina], o paraíso perdido fosse fabricado para responder a desejos e frustrações dos homens, não é de admirar que ele aparecesse, em vez de realidade morta, como um ideal eterno e, naturalmente, uma remota esperança. (HOLANDA, 1996, p. 375, grifos meus). ______ [ 183 ]

A nossa história, portanto, se faz em torno desse imaginário. O papel do Brasil para os europeus, com suas imagens cristalizadas, ainda está atrelado à ideia da terra prometida. Daí o escritor austríaco Stefan Zweig deslizar este sentido para o de país do futuro. Destino para aqueles que desejam mudar radicalmente de clima; território adequado para investidores e para turismo exótico (e por que não erótico?); mas um lugar perigoso: todos esses aspectos da visão do Brasil na Europa descendem do imaginário construído pelos antigos viajantes e continua vivo, produzindo efeitos no pensamento contemporâneo. Ou, como afirma Souza Santos (2003), sobre a forma como a América foi representada pelos europeus nos relatos da descoberta do novo continente ou nas narrativas de viagens: A maioria dos relatos da descoberta do novo continente e das narrativas de viagens reflete uma peculiar fusão de imagens idílicas, utópicas e paradisíacas com as de práticas cruéis e canibalísticas dos nativos. De um lado, a natureza luxuriante e benevolente; do outro, a antropofagia repulsiva. (SOUZA SANTOS, 2003, p. 30, grifos meus)

Segundo, ainda o autor, a forma de representação desse continente, produzida pelos portugueses, era um reflexo da forma como Portugal também havia sido discursivizado pelos europeus do norte: As características com que os portugueses foram construindo, a partir do século XV, a imagem dos povos de suas colónias são muito semelhantes às que eram atribuídas a eles próprios, a partir da mesma altura, por viajantes, comerciantes e religiosos vindos da Europa do Norte: do subdesenvolvimento à precariedade das condições de vida, da indolência à sensualidade, da violência à afabilidade, da falta de higiene à ignorância, da superstição à irracionalidade. O contraste entre Europa do Norte e Portugal está bem patente no relato do frade Claude de Bronseval, secretário do abade de Clairvaux, sobre a viagem que fizeram a Portugal e Espanha entre 1531 e 1533. Queixam-se recorrentemente das péssimas estradas, do caráter rústico das pessoas, do alojamento e tratamento paupérrimos, bem “à maneira do país”, do hábito dos nobres ou homens honrados de reservarem para albergar os estrangeiros as casas mais miseráveis a fim de não serem vistos como estalajadeiros. Quanto à educação dos frades, dizem, “são poucos os que nestes reinos hispânicos gostam de latim. Eles não gostam senão da sua língua vulgar”. (SOUZA SANTOS, 2003, p. 31, grifos meus)

Pêcheux (2001) define que as FIs sempre resultam de processos discursivos anteriores (Europa do Norte sobre Portugal, este sobre a África, ______ [ 184 ]

a Ásia, e o Brasil, e este sobre outros países periféricos do mundo etc., como um reflexo no espelho). Quero dizer, com essa retomada de Pêcheux, que os discursos sobre o Brasil e o brasileiro funcionam, portanto, atravessados por esses processos discursivos que constroem os referentes Brasil e brasileiros. As FDs, enquanto mecanismos de funcionamento discursivo, não dizem respeito a sujeitos físicos ou lugares empíricos, mas, como disse acima, às imagens resultantes de suas projeções. Assim, segundo ORLANDI (2000), são mecanismos que fazem com que os discursos funcionem nesse jogo de imagens. Desse modo, o que está presente, não são os sujeitos físicos (a brasileira cobiçada pelo português) nem os lugares empíricos (Brasil) que funcionam no discurso, mas as imagens (mulher/homem/Estado) que resultam de projeções sustentadas pela história, pelo social e pela ideologia. A ideologia, compreendida como elemento determinante do sentido, está presente no interior do discurso e , ao mesmo tempo, reflete-se na exterioridade. Ela não é exterior ao discurso, mas o constitui. Dessa forma, a ideologia é entendida como efeito da relação entre o sujeito e a linguagem, não sendo consciente e se colocando presente em toda a manifestação do sujeito, permitindo, assim, sua identificação com a FD que o domina. Tanto a crença do sujeito de que possui o domínio de seu discurso, quanto a ilusão de que o sentido já existe como tal, são, pois, efeitos ideológicos. Algumas perguntas foram elaboradas a partir do trabalho sobre o Brasil e o brasileiro realizado por Lisboa (2010): Quais violências seriam essas noticiadas todos os dias? Noticiadas por quem? Praticadas em que situação? Quem são os brasileiros violentos que trazem no sangue a tradição da vingança? Se é tradição, ela parte de onde? Por que os brasileiros são mesmo muito violentos? Quais sentidos de violência aqui são (re)produzidos pelos meios de comunicação e são relacionadas e colados aos brasileiros para que esses sentidos nos constituam? No entanto, essas questões que não são respondidas em virtude do objetivo da pesquisa de Lisboa (2010) comparecem nas FIs sobre o brasileiro, na pesquisa realizada por ele. Dizemos uma palavra para não dizermos outra. Essa escolha da ordem do consciente produz, em cada um de nós, a sensação de estar no controle. No entanto, já fazemos escolhas a partir de um lugar específico que ocupamos na ordem do discurso. Os efeitos dessas escolhas, por outro lado, estão colados apenas em nós. Para falar do Brasil e do brasileiro, dizemos A no lugar de B. A e/ou B precisam ter história pra produzir sentido. As denominações (palavras, expressões ou locuções), assim, compõem um grande bloco de produção de sentidos em relação ao que se referem. Denominar não é escolher aleatoriamente designações; é discurso ______ [ 185 ]

e, como tal, tem história, determinações que permitem tais nomes e/ou impedem outros. As denominações criam sítios de significância (ORLANDI, 1996, p. 15), ou melhor, constroem regiões discursivas que produzem efeito de sentido sobre o denominado. O ato de denominar, portanto, relaciona linguagem e memória, construindo e desconstruindo efeitos discursivos de referencialidade (SOARES & MEDEIROS, 2012). A linguagem, no processo de denominação, é capaz de estabelecer uma referência e uma designação, de forma a tornar visível aquilo a que se refere, de forma a dar existência àquilo que se nomeia. Em contrapartida, sentidos se colam como se houvesse uma relação sempre já-lá estabelecida entre a palavra e a coisa. Conforme Mariani (1998), Denominar não é apenas um aspecto do caráter de designação das línguas. Denominar é significar, ou melhor, representa uma vertente do processo social de produção de sentidos. O processo de denominação não está na ordem da língua ou das coisas, mas organiza-se na ordem do discurso, o qual, relembrando mais uma vez, consiste na relação entre o linguístico e o histórico-social, ou entre linguagem e exterioridade. (MARIANI, 1998, p. 118, grifos meus).

E, na ordem do discurso, as denominações fazem emergir posiçõessujeito dos enunciadores, evidenciando, assim, FDs às quais estão vinculadas. A linguagem e a exterioridade linguageira representam uma posição em relação ao que se denomina; estão na confluência da língua e da história e produzem sentidos. Para a Análise de Discurso de orientação francesa (doravante, AD), não se trata, então, de analisar a referência, o referente ou o significado, até porque, neste domínio teórico, eles são compreendidos como “relações instáveis produzidas pelo cruzamento de diferentes posições de sujeito” (GUIMARÃES, 1995), mas trata-se de analisar o processo de construção discursiva, ou seja, o modo como os discursos em relação podem produzir a ilusão de objetividade e evidência para uma realidade, como se o sentido já estivesse lá. Portanto, a inscrição de sujeitos ao formularem, na concepção de Orlandi (1998, p. 50), dá-se a partir de posições determinadas, “sob efeito da ilusão subjetiva, afetado pela vontade de verdade, pelas intenções, pelas evidências dos sentidos e pela ilusão referencial”. Por essa razão, são construídos gestos interpretativos que possibilitam injunção para o sujeito que necessita conferir sentidos diante de objetos simbólicos. Nesta formação de discursos proposta pelos jornais, cristaliza-se uma memória como legítima para a interpretação da história, num lugar de formulações que se determina ______ [ 186 ]

como autorizado, promovendo uma intervenção no real do sentido tomado como estável e natural. Temos, assim, a mídia como um lugar de interpretação legitimada para a administração dos sentidos que lhe torna possível a existência. Ela, como gestora da informação, fixa direções interpretativas, observáveis nos pontos em que se busca controlar o sentido para que ele se torne único, na tentativa de contenção de seu movimento constitutivo. Este processo, pois, homogeneiza os sentidos para os fatos cobertos pela imprensa, criando uma interpretação num efeito de leitura que visa instaurar uma memória. No funcionamento social, os jornais estão autorizados a produzir leituras da realidade que possam ser consideradas legítimas e produtoras de um universo de crenças constituidoras do discurso social. Instituem-se, assim, modelos de compreensão da realidade que visam explicar e desambiguizar o mundo (MARIANI, 1999, p. 112). É, portanto, neste imaginário de credibilidade construído pelos jornais que interpretações de acontecimentos podem ser tomados como verdade e se naturalizarem no efeito de leitura. No entanto, este imaginário se faz necessário para a manutenção da própria imprensa. Bucci (2004, p. 51) afirma que a imprensa deve oferecer confiabilidade necessária para a confirmação deste imaginário e também para a validação dos jornais na relação com seus leitores. Compreender a forma como a imprensa escrita portuguesa produz efeitos de sentido sobre o brasileiro e o Brasil é compreender a maneira pela qual Portugal redesenha o Brasil no panorama mundial. Nessa compreensão em momentos de tensão, como é o caso da crise econômica na Zona do Euro, pode-se percorrer a forma como a língua é ressignificada e como novos-outros-sentidos se fixam. Gadet & Pêcheux (2004) afirmam que toda desordem social é acompanhada de uma espécie de “dispersão anagramática” (aspas do autor): O equívoco aparece exatamente como o ponto em que o impossível (lingüístico) vem aliar-se à contradição (histórica); o ponto em que a língua atinge a história. A irrupção do equívoco afeta o real da história, o que se manifesta pelo fato de que todo processo revolucionário atinge também o espaço da língua [...] As massas ‘tomam a palavra’ e uma profusão de neologismos e de transcategorizações sintáticas induzem na língua uma gigantesca ‘mexida’, comparável, em menor proporção, àquela que os poetas realizam. (GADET & PÊCHEUX, 2004, p. 64, grifos nossos).

Há, pois, nesses processos de crise, revolução etc., as massas que passam a falar, ao mesmo tempo em que passam a “fazer reviver em uma ______ [ 187 ]

mesma palavra seus diferentes sentidos vizinhos, esquecidos durante muito tempo [e a] tornar próximas [algumas] palavras afastadas umas das outras” (GADET & PÊCHEUX, 2004, p. 66). Essa investigação permite, além da possibilidade de compreensão da língua que se inscreve na história e de compreender de que forma a língua se desloca, estabelecer de que maneira uma nova forma-sujeito se desenha em momentos de crise. Segundo Payer (2005), esta nova forma-sujeito tem relação direta com o Texto da Mídia: Os discursos, materializados em textos, desempenham papel fundamental na constituição social. Se o discurso religioso fundamentou a formasujeito na Idade Média e o jurídico estruturou a forma-sujeito cidadão, base do funcionamento do Estado Moderno, o Texto Bíblico e o Jurídico (Foucault, 1987; Haroche, 1984) forneceram sustentação a estas formações sociais, fundamentando-as simbolicamente, fazendo circular enunciados capazes de constituir indivíduos em sujeitos. Dos textos fundamentais, determinados enunciados condensam a interpelação como enunciadosmáxima, eu diria: a obediência às leis divinas, no religioso, a obediência civil, no jurídico. Vou aqui correlacionar, no domínio do discurso, o estatuto do Texto Bíblico e do Texto Jurídico ao texto da Mídia, em sua relação direta com as novas tecnologias de linguagem, considerando-o como o texto fundamental que condensa a discursividade de um novo Sujeito histórico que passa a interpelar ideologicamente os indivíduos em nossa época: o chamado ‘Mercado’ - mercado neoliberal em sua forma atual globalizada – ao qual é preferível nomear, concordando com Guattari e Rolnik (2006), ‘capitalismo mundial integrado’. (PAYER, 2005, p. 4, grifos nossos).

Interessa-nos estudar os processos discursivos decorrentes das transformações (o fortalecimento do poder do Mercado diante da diluição do poder do Estado, ou identificar modos de subjetivação vigentes) e o modo como se articulam a língua/linguagem, os sujeitos e a ideologia. O Texto da Mídia, sobretudo o que faz uso da imagem, opera com especial força pragmática sobre os indivíduos. A introdução da imagem tem estatuto semelhante ou mais forte do que a invenção da imprensa (PAYER, 2005). As formas de interpelação da imagem são específicas. Se todo discurso tem a propriedade de produzir evidências de real, esta capacidade é potencializada no discurso com base da imagem. Além disso, as imagens da mídia, como texto fundamental do Sujeito Mercado (PAYER, 2005), são investidas de dimensões gigantescas, a exemplo de outdoors, constituindo-se em verdadeiros espetáculos textuais. Quais efeitos essas imagens operam na subjetividade humana? Mais do que descrever a interpelação da Mídia e da imagem, queremos enfatizar que esta interpelação não se dá simplesmente pelas possibilidades empíricas das diversas materialidades dos textos, que por si já são enormes. ______ [ 188 ]

Esse poder de interpelação se exerce não apenas porque opera a partir da FD Mercantil, mas, sobretudo, porque opera na base de nova formação ideológica, a exemplo da ideologia religiosa e da ideologia jurídica (PAYER, 2005). Sob a égide do Capitalismo Mundial e Integrado é que vemos configurar-se uma nova forma-sujeito. Um dos atributos fundamentais desta formação social constitui-se pela exagerada oferta de sentidos, que produz em sua discursividade efeitos de dispersão, com base na “língua de vento da propaganda” (GADET & PÊCHEUX, 2004), com seus sentidos polissêmicos, equívocos, ambíguos, incompletos – insinuando liberdade de escolhas ao sujeito, sem que estes possam notar os jogos sinuosos com que as formações discursivas instaladas nessa formação ideológica determinam o sujeito, tomando-o na injunção à dispersão, ao desvanecimento das memórias coletivas. Quanto ao enunciadomáxima dessa formação ideológica, com poder de imprimir a evidência do sentido e de fazer crer nos enunciados até o ponto de o indivíduo se conduzir segundo essa crença, disperso e onipresente na mídia, o discurso se imprime através de inúmeros textos (PAYER, 2005). É possível, então, a partir do que propomos aqui, adensar os conhecimentos em termos de funcionamento do discurso jornalístico, da forma como ele se materializa através da imagem e de textos, hiperlinks (nas mídias online) etc. e produz novos outros sentidos sobre o Brasil e o brasileiro na contemporaneidade. Para tanto, destacamos, então, cinco sequências discursivas (SD), uma de cada matéria citada acima, para pensar a forma como o jornal Correio da Manhã, em janeiro de 2011, significa o Brasil e o brasileiro em suas páginas. O critério usado para selecionar essas SDs foi o uso, no texto, de alguma palavra que fizesse referência ao Brasil/brasileiro como forma de recuperar esse significante, ainda que as palavras Brasil/brasileiro não aparecessem, necessariamente, no texto. Quero dizer, quando, por exemplo, ao invés de Brasil, pudesse aparecer, por exemplo, como na SD1, Rio de Janeiro. Antes de apresentar o funcionamento dessas SDs, é importante mencionar que todos os jornais (o Correio da manhã, o Diário de Notícias, o Expresso, o Jornal de Notícias e o Público) que compõem o corpus desse projeto de pesquisa, do qual resulta este artigo, sem exceção, nos primeiro dias de janeiro de 2011, trouxeram em suas páginas, notícias da posse da nova presidenta do Brasil. E isso já nos dá a dimensão e a importância da circulação dessas informações em terras portuguesas, os laços que unem o Brasil e o Portugal e, sobretudo, em tempos de crise, o que representa o Brasil para Portugal nesses novos tempos. ______ [ 189 ]

APRESENTAÇÃO E ANÁLISES DAS SEQUÊNCIAS DISCURSIVAS 1. Jornal Correio da Manhã (SD1) Apesar de ser avessa à fama, a presidente brasileira Dilma Rousseff já tem até uma boneca personalizada. Criada pelo artista plástico Marcus Baby, do Rio de Janeiro, a ‘Barbie Dilma’ é baixinha e um pouco anafada, e enverga um vistoso vestido vermelho, a cor preferida da presidente. (CORREIO DA MANHÃ, MUNDO, - nota - “Mundo Louco, Artista cria ‘Barbie Dilma’”, dia 09 de janeiro de 2011, p.36).

O fortalecimento do poder d’O Mercado mencionado por Payer (2005) sobre um novo sujeito histórico que interpela ideologicamente os indivíduos em nossa época identifica o Brasil e, consequentemente os brasileiros, com o funcionamento do Capitalismo Mundial: somos uma economia que cresce, consumimos, produzimos. Tão logo a presidenta toma posse já existe uma boneca pronta para ser consumida, a Barbie Dilma, assim como existem bonecos do presidente dos Estados Unidos Barack Obama. Uns diriam que se trata de uma homenagem; outros, que o Mercado não perde tempo quando a ordem é consumir. O Brasil, assim como a Rússia, a Índia e a China, o chamado BRIC, se destacam no cenário mundial como países em desenvolvimento. A hipótese formulada por Jim O’Neill, chefe de pesquisa em economia global do grupo financeiro Goldman Sachs, é a de que o potencial econômico desses países é tão grande que eles podem se tornar as quatro economias dominantes do mundo até o ano 2050. Sob a égide do Capitalismo Mundial e Integrado é que vemos configurar-se essa nova forma-sujeito. O poder de interpelação se exerce não apenas porque opera a partir da Formação Discursiva Mercantil, mas, principalmente, porque opera na base de nova formação ideológica, a exemplo da ideologia religiosa e da ideologia jurídica, como afirma Payer (2005). O modo como se articulam a língua, os sujeitos e a ideologia são decorrentes das transformações dos processos discursivos de subjetivação vigente: o fortalecimento do poder do Mercado diante da diluição do poder do Estado significando o sujeito. Esses sujeitos, na contemporaneidade, são um efeito da onipotência do Mercado como instância máxima de poder. As relações sociais são, portanto, marcadas, em sua maioria, pela submissão à circulação da Mercadoria. ______ [ 190 ]

Ainda sobre o aspecto mercadológico, a próxima SD, do dia 03 de janeiro, torna evidente o novo lugar ocupado pelo Brasil na ordem da economia mundial. (SD2) Um dia depois de ter assumido funções como a primeira mulher na Presidência do Brasil, Dilma Rousseff recebeu o primeiro-ministro português, José Sócrates, num encontro em que a questão da crise da dívida soberana, que afecta os países periféricos da Europa – Portugal incluído – foi tema de debate. (...) Apesar de ter garantido que não foi ao Brasil para aliciar o governo de Dilma a comprar a dívida pública portuguesa, o primeiro-ministro admitiu que ‘deu conta daquele que está a ser o esforço do Governo português para superar este momento’. E deixou o recado: ‘A dívida soberana portuguesa está no mercado e é, aliás, um bom investimento, que vale a pena ser feito. Isto dependerá daquilo que forem as condições das autoridades brasileiras’. (...) José Sócrates fez ainda questão de garantir a Dilma apoio total no caso de uma candidatura do Brasil ao conselho de segurança das Nações Unidas. ‘Tive ocasião de dizer à Presidente do Brasil que pode contar com Portugal como o mais fiel e mais próximo aliado naquela que vai ser a caminhada do Brasil para ocupar o espaço no concerto das Nações’, acrescentou Sócrates no final do encontro. (CORREIO DA MANHÃ, ATUALIDADE, p. 5, “Sócrates e Dilma discutem crise da dívida soberana”, dia 03 de janeiro de 2011, grifos nossos).

Dívida soberana é uma dívida assumida/garantida por ou pelo Estado ou o seu banco central. Ela pode ser interna, quando os credores são residentes no país, e externa, quando resultante de empréstimos e financiamentos contraídos no exterior. Se for externa, a dívida soberana pode ser bilateral (de um país para outro), multilateral (de um país para com uma organização multilateral) ou privada. Ela pode se constituir de créditos bancários, de empréstimos de outros Estados ou instituições oficiais, ou de títulos emitidos pelo Tesouro do país devedor. Esses títulos podem ser negociados no mercado internacional desde que sejam emitidos em uma ou mais divisas conversíveis em unidades de conta universalmente reconhecidas (ATAÍDES, 2002). A crise da dívida pública europeia, muitas vezes referida como crise da Zona do Euro, é uma crise financeira em curso que, para alguns países da Zona do Euro ( entre os mais atingidos estão Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha), tornou difícil ou mesmo impossível o pagamento ou o refinanciamento da sua dívida pública. Os títulos portugueses emitidos pelo Tesouro estão à disposição e, segundo o primeiro-ministro (e não poderia ser diferente, já que do lugar que ele ocupa só é permite que ele diga isso), é um bom investimento e, por isso, ______ [ 191 ]

vale a pena ser feito. O Brasil, como é possível perceber na fala do primeiro-ministro, é, sobretudo, nesses tempos de crise, um aliado que pode contribuir financeiramente para amenizar a crise portuguesa. É um país emergente com divisas e mantém, com Portugal, relações econômicas. O Brasil é o quarto maior destino dos investimentos diretos portugueses no exterior, segundo o Itamaraty. A troca comercial entre os dois países, em 2013, foi de US$ 2,6 bilhões. Em outro momento, o primeiro-ministro declarou que a economia do Brasil está num processo de internacionalização e espera que as empresas brasileiras, a exemplo da Embraer, Votorantim e Camargo Correa, vejam Portugal como uma oportunidade para este fenômeno. Ainda que o primeiro-ministro tenha dado garantias de que não foi ao Brasil para aliciar o governo, a dívida soberana portuguesa seria um bom investimento. É interessante perceber o funcionamento de aliciar para o Brasil e para Portugal. Lá (nos encontramos, neste momento, em Portugal), aliciar tem um sentido, pelo menos o mais corente, de atrair com falsas promessas; aqui, o efeito de sedução, mas, não necessariamente, com um sentido negativo. De qualquer forma, o primeiro-ministro admitiu que “deu conta daquele que está a ser o esforço do Governo português.” O jornal português produz, assim, sentido de que, financeiramente, o Brasil está em condições de contribuir com Portugal, por se tratar de um bom negócio que beneficiaria também Portugal. Portugal, segundo o primeiro-ministro, é o mais fiel e o mais próximo aliado e, por isso, apoia totalmente o Brasil nessa caminhada de ocupação do espaço no concerto das Nações. Na SD abaixo, a construção de um discurso político sobre o Brasil ser um país do futuro e um país de esperanças continua produzindo efeitos no discurso do governo brasileiro, segundo o jornal, e colaborando para com o imaginário, também português, que reforçando a ideia contida em Holanda (1996) sobre o Brasil. (SD3) Dilma Rousseff, de 63 anos, deu uma clara indicação do rumo que pretende seguir no seu governo, e reforçou: ‘Sob a liderança dele, o povo brasileiro fez a travessia para uma outra margem da história, e a minha missão é consolidar essa passagem e avançar no caminho de uma nação das mais geradoras de oportunidades’. Dilma repetiu a promessa, feita na campanha e no dia da eleição, de ter como sua principal meta erradicar a pobreza extrema no Brasil, criar avanços em áreas críticas como saúde e a segurança. Não esqueceu também, e realçou em vários momentos do discurso, o facto de ser a primeira mulher presidente e enalteceu as mulheres. (CORREIO DA MANHÃ, MUNDO, p. 32, “Tomada de Posse do 40.º Presidente da República – ‘Venho consolidar a obra de Lula’”, 02 de janeiro de 2011, grifos nossos). ______ [ 192 ]

A história do Brasil, produzida pelo próprio país, é ainda em torno do imaginário do país do futuro presentes nas denominações: rumo que pretende seguir, avançar no caminho, principal meta, erradicar a pobreza, criar avanços etc. Ou seja, o papel do Brasil para os europeus está atrelado à ideia da terra prometida. E para um político recém-chegado ao cargo, não existe um lugar pronto, ele deve estar sempre em construção. O lugar, pelo menos na política brasileira, deve precisar de muitas melhorias essenciais para que assim se justifique a sua presença. Essas representações nos atravessem de modo constitutivo: sujeito e sentido se constituindo ao mesmo tempo. São os objetos simbólicos, descritos por Orlandi (2002), que são por definição não-transparentes, que produzem sentidos, e os gestos de interpretação realizados pelos sujeitos. No entanto, não apenas a ideia de país do futuro, da esperança, parece produzir efeitos nos jornais portugueses, sobre o imaginário em torno do que seja ser brasileiro. Tirar proveito de tudo, a velha e eficaz Lei de Gerson7 parece aqui também nos constituir: o malandro no bom sentido, mas também o mal intencionado, aquele que quer levar vantagem em tudo circula entre as matérias jornalísticas sobre o que nos constitui. O imaginário sobre o brasileiro contaminado pelo estilo de vida fácil, na SD4, parece encontrar eco no comportamento também cristalizado, nos meios de comunicação, no imaginário do próprio brasileiro sobre si e, naturalmente, também em relação à classe política: aqueles que desrespeitam constantemente as fronteiras entre espaço público e privado, os que não conseguem discernir entre os interesses coletivos e particulares, que corrompem e são corrompidos, que superfaturam ou subfaturam contratos de acordo com a conveniência, que são coniventes com desvios de verbas, essa prática, inclusive, faz parte de “suas atribuições” como parlamentares. Pode-se até discutir o caráter legal desse comportamento, no entanto, em se tratando de valores morais como a decência, a honestidade, a civilidade, a democracia, todas elas são deploráveis e condenáveis na mesma medida. Uma semana depois de deixar a presidência, Lula continua a manter privilégios ilegais em sua nova condição, à custa dos contribuintes, continua a ser favorecido, tratamento privilegiado, continua a gozar de benefícios estatais são algumas das denominações que constituem o caráter do ex-presidente e, por deslizamento, reforçam o imaginário sobre ser brasileiro. (SD4) Uma semana depois de ter deixado de ser presidente do Brasil, Lula da Silva continua a manter os privilégios a que tinha direito no cargo, mas que são ilegais na sua nova condição civil. Um dos casos que estão a suscitar particular polémica é o facto de Lula e a família terem ______ [ 193 ]

ido passar férias numa base do Exército no Litoral de São Paulo, à custa dos contribuintes. (...) outra denúncia confirma que Lula continua a ser favorecido pelo actual governo. Os passaportes diplomáticos dos dois filhos, Cláudio Luís, 25 anos, e Marcos Cláudio, de 39, foram renovados, garantindo-lhes tratamento privilegiado nas viagens internacionais. Segundo a lei do país, a concessão de passaporte diplomático de filhos de presidentes está apenas prevista enquanto estes ocupam o cargo e desde que os filhos tenham menos de 21 anos, o que não é o caso. (CORREIO DA MANHÃ, MUNDO, p. 30, “Ex-Presidente continua a gozar de benefícios estatais – Privilégios de Lula abrem polémica”, de 07 de janeiro de 2011, grifos nossos).

A SD5, diz respeito, também ao caráter do brasileiro por deslizamento de sentido em relação ao que o CM põe em circulação, agora, sobre o comportamento da atual Presidenta da República. É importante dizer que esta matéria é ilustrada por uma fotografia da presidenta fazendo o sinal da cruz, com a seguinte legenda: “Dilma passou grande parte da campanha a afirmar a sua fé em Deus”. Sobre o papel da fotografia na imprensa, Soares & Zanella (2011) afirmam que Há de se levar em consideração que a fotografia também é produção, principalmente quando falamos de fotografia jornalística. Os sujeitos (na acepção da AD) envolvidos, atravessados pelo ideológico e pelo inconsciente, não o deixam de ser – e nem poderiam – na fotografia. Assim sendo, os sentidos que ela produz estão relacionados com o meio de comunicação social que a comporta e veicula e, de forma mais geral, com as condições de produção da “situação jornalística”. Em resumo, lemos a fotografia a partir daquilo que a FD a que ela se vincula permita que seja lido. Os sentidos que se levantam a partir da imagem são determinados por outros sentidos que já significam. (SOARES & ZANELLA, 2011, p.3, grifos nossos).

Não vou, neste artigo, discorrer sobre a fotografia na mídia. A citação acima ilustra apenas o nosso ponto de vista em relação ao seu funcionamento no discurso jornalístico. A fotografia, portanto, não vale mais do que mil palavras, como tantas vezes ouvimos/reproduzimos sobre as imagens; ela é um discurso e produz determinados sentidos a partir do lugar que ocupa. A fotografia está a serviço de uma FD. (SD5) Uma das primeiras decisões da recém-empossada presidente brasileira Dilma Rousseff foi mandar retirar do gabinete presidencial a Bíblia e o crucifixo que há décadas ocupavam lugar de destaque na sala onde trabalham os presidentes. Uma decisão estranha, para quem passou grande parte da campanha eleitoral a afirmar insistentemente a sua fé. (...) Recorde-se que durante a primeira parte da campanha para ______ [ 194 ]

as presidências de Outubro Dilma foi acusada de não ter religião e de defender o aborto. Depois de analistas terem dito que ela não foi eleita logo à primeira volta por esse motivo, Dilma passou a ir diariamente à missa, fez-se deixar fotografar ao lado de pastores e bispos e, naquela que foi considerada a cartada decisiva para atrair milhões de eleitores mais religiosos, chegou mesmo a afirmar, durante uma visita ao Santuário de Nossa Aparecida, padroeira do Brasil, que o cancro que enfrentou há dois anos a aproximou de Deus. Agora, pelo visto, a religião deixou de lhe interessar. (CORREIO DA MANHÃ, MUNDO, BRASIL – “Reviravolta – Dilma choca religiosos”, do dia 10 de janeiro de 2011, grifos nossos).

Da SD5, é possível depreender alguns sentidos. Primeiro, é importante destacar que ela fala de dois momentos, que se completam, para cristalizar e fazer circular o caráter da presidenta do Brasil: um antes e um depois das eleições, mas também um antes e um depois referindo-se, respectivamente, ao primeiro e ao segundo turno das eleições. De acordo com esta SD, o comportamento de Dilma, depois de eleita, é, no mínimo, incoerente com a imagem veiculada pela notícia na qual ela é fotografada fazendo o sinal da cruz, que circulou, segundo o CM, durante as eleições ocorridas em 2010 para a Presidência da República. Essa incoerência está inscrita na denominação “uma decisão estranha” (retirar do gabinete presidencial a Bíblia e o crucifixo que há décadas ocupavam lugar de destaque na sala onde trabalham os presidentes). Para o jornal, no entanto, não há estranheza alguma em, num governo, por natureza, laico, existir há décadas uma bíblia e um crucifixo na sala de trabalho da presidência da república. O CM continua didatizando a notícia com o uso do antes e do depois, durante as eleições: antes das eleições, referindo-se ao primeiro turno, Dilma foi acusada de não ter religião e de defender o aborto. Comportamento, segundo o CM, de quem não é religioso, porque, para defender o aborto, somente não professando uma religião. Depois, agora durante o segundo turno, de analistas terem dito que ela não foi eleita logo à primeira volta por esse motivo, Dilma passou a ir diariamente à missa, fez-se deixar fotografar ao lado de pastores e bispos e, naquela que foi considerada cartada decisiva, para atrair milhões de eleitores mais religiosos. Cartada decisiva é como o CM denomina a estratégia usada pela presidenta para atrair s votos de milhões de religiosos, como se esses votos fossem os decisivos para que ela fosse eleita. Além disso, o CM não considera, por exemplo, a posição e o desempenho do outro candidato, o responsável pela acusação, em relação aos assuntos religiosos. A SD1, por exemplo, fala da cor vermelha como sendo a cor favorita ______ [ 195 ]

da presidenta. Vermelho também é a cor que representa o comunismo. E, frequentemente, é dito que a ideologia comunista defende explicitamente o Estado ateu e a supressão da religião. As relações que podem ser feitas seriam Dilma é comunista, Dilma nega a religião, Dilma defende o aborto e, pelas evidências apresentadas pelo CM, ela decidiu retirar a bíblia e o crucifixo da sala de trabalho da presidência. O caráter leviano cola-se ao comportamento, segundo o CM, da presidenta, já que antes e depois, nas eleições, e depois de eleita ela muda de convicções. Inclusive, essa mudança apenas reforça a veracidade das acusações de defender o aborto e de não ter religião. Agora, pelo visto, a religião deixou de lhe interessar. De duas uma, ou vale tudo durante o processo eleitoral, no Brasil, ou aquelas acusações têm algum fundamento. Esses sentidos produzem também outros que não são ditos, mas que são passíveis de serem depreendidos a partir dessas SDs analisadas: uma certa ingenuidade significando o brasileiro, porque não percebe o jogo político. Há também alguma dissimulação no nosso comportamento, já que queremos tirar proveito de certas situações. Há, sobretudo, alguns comportamentos que o CM consegue fazer circular sobre o Brasil e o brasileiro que o próprio brasileiro não consegue alcançar. 2. Jornal Expresso (SD6) Duas militantes clandestinas estiveram na mesma cela em 1970. Uma delas viria a tornar-se na primeira Presidente do Brasil e tomou posse há poucos dias (ver caixa). A outra, Maria Aparecida dos Santos (foto maior) depois de sair da prisão, levou uma vida longe da ribalta, embora mantendo os seus ideias. O retrato de Dilma, enquanto jovem presa política (imagem a preto e branco), feito por Cidinha revela uma jovem que gesticulava muito e que passava literatura marxista e manuais de economia às suas vizinhas. Que partilhava as tarefas do dia a dia e, ao contrário do que seus inimigos políticos têm dito, “não era nada que parecesse com uma generala”. (EXPRESSO, BRASIL, “Reviver o passado no presídio Tiradentes”, 8 de janeiro de 2011, grifos meus).

A SD6, descreve, principalmente, o lugar que a nova presidenta do Brasil pode/deve ocupar em virtude do seu passado como militante clandestina/ leitora de Marx. É importante perceber os efeitos de sentido das denominações produzidas pelo jornal para a presidenta Dilma Rousseff: militante clandestina; vive próxima da ribalta; presa política; jovem que gesticulava muito; leitora de Marx; leitora de manuais de economia; solidária com as companheiras de cela; generala para seus ______ [ 196 ]

inimigos políticos, construindo um lugar para esse governo a partir dos sentidos já-la8 sobre um (ex)militante de esquerda. Como afirmamos acima, as denominações fazem emergir as posiçõessujeito dos enunciadores, vinculando tanto o locutor quanto o referente às FDs específicas, criando, em torno de si (o sujeito se significa ao significar) e do seu referente, no caso Dilma Rousseff, um imaginário sobre o seu modo de governar a partir de um já-dito sobre ela, a partir de um já dito sobre o que seja um militante clandestino, um leitor de Marx, um leitor de manuais de economia etc. Para a AD, trata-se de analisar o processo de construção discursiva, ou seja, o modo como os discursos produzem a ilusão de objetividade e a evidência para uma realidade, como se O sentido já estivesse lá. (GUIMARÃES, 1995). Esses sentidos são reforçados também pelo imaginário em torno do discurso jornalístico, responsável por fazer circular o mundo, a partir de um lugar de neutralidade, objetividade, imparcialidade. O lugar de uma militante clandestina com ideias marxistas (que gesticula muito) pode produzir, como efeito de sentido, determinadas convicções as quais servem para destacar e reforçar sua forma de ser e, por deslizamento, sua forma de governar. A denominação generala parece estar associada a essa ideia de radicalismo presente no interdiscurso9 sobre o militante com ideias marxistas. A SD6 parece ser atravessada pelas SDs 1 e 5 (elas se complementam e reforçam o imaginário), nessas SDs, Dilma Rousseff aparenta ser uma provável comunista (o vermelho como sendo a sua cor predileta, na SD1, e o fato de retirar o crucifixo e a bíblia de sua sala de trabalho, na SD5) porque renega a religião assim que toma posse, aqui, na SD6, ser Leitora de Marx, reforça aquele imaginário que faz/fez circular sobre ela. (SD7) José Sócrates esteve na abertura do ano no Brasil, para assistir tomada de posse de Dilma Rousseff como sucessora de Lula da Silva. E logo no primeiro dia em função da nova Presidente, o primeiro-ministro reuniuse com Dilma. Sócrates garantiu que a ajuda brasileira a Portugal para compra da dívida nacional não esteve em cima da mesa. Mas sabe-se que a entrada da Petrobrás no capital da Galp foi um assunto debatido (sobre isso pode ler-se mais noticiário esta semana no caderno de Economia do Expresso). “Reafirmei que uma das prioridades mais altas da política externa portuguesa é a relação com o Brasil, disse a Dilma que pode contar com Portugal como o mais fiel e mais próximo aliado”, afirmou José Sócrates. No final da semana, Dilma (que já parece ter um novo estilo, mais reservado e com menos exposição pública) anunciou publicamente o primeiro combate do seu mantado: a erradicação da pobreza. (EXPRESSO, A SEMANA, “Sócrates e Dilma juntos”, 8 de janeiro de 2011, grifos meus). ______ [ 197 ]

As SD2 e SD7 também dialogam, nelas o Brasil é produzido como a alternativa para ajudar Portugal a superar a crise econômica. Logo no primeiro dia, pode, dentre outros sentidos, produzir efeitos de que Portugal, representado pelo primeiro-ministro, se aproveita da situação, tão logo a presidenta toma possa, para pedir ajuda ao Brasil, mas também produz efeito de proximidade, de parceria, reforçado pelo discurso direto de Sócrates quando diz a Dilma que pode contar com Portugal como o mais fiel e mais próximo aliado. Além disso, a construção da imagem da presidenta, recém empossada, cria, em torno dela, um imaginário mais discreto de se governar (em oposição a Lula) introduzido pelo adjetivo novo: novo em oposição ao velho estilo. E acrescenta-se a isso, o fato de parecer convicta de seus ideias já que anunciou publicamente o primeiro combate do seu mantado: a erradicação da pobreza, ideia presente também na SD6, a partir de denominação leitora de manuais de economia. Tanto no CM quanto no Expresso circularam a ideia contida no que PAYER (2005) afirma sobre a FD Mercantil colocada em circulação sobre o Brasil: a interpelando dos sujeitos e dos sentidos como suporte para as relações econômicas globais. (SD8) Lisboa teve um bom ano turístico em 2010, traduzido num aumento de 9,5% nas dormidas, que totalizaram 5,7 milhões só na cidade e 7,6 milhões em toda a região, que também inclui Estoril, Sintra ou Fátima. Os brasileiros foram os turistas que evidenciaram o crescimento mais expressivo, de 46%. Este aumento foi muito empurrado pela iniciativa de promoção contratada entre o Turismo de Lisboa e a rede Globo, que levou a filmar na capital portuguesa cenas finais da telenovela “Viver a Vida”, emitida no Brasil em horário nobre. Os atores Bárbara Paz e Rodrigo Hilbert protagonizaram cenas românticas em vários pontos da cidade, como Belém, castelo de São Jorge e Parque das Nações, e participaram no evento “Moda Lisboa”. As gravações em Lisboa decorreram em abril, e a telenovela “Viver a Vida” acabou em maio. “A partir de então, a subida de turistas brasileiros acentuou-se em Lisboa”, garante Vítor Costa, diretor-geral do Turismo de Lisboa. O principal objetivo desta iniciativa foi projetar uma Lisboa “moderna e cosmopolita”, alterando a perceção dos brasileiros da imagem de “cidade atrasada e provinciana, onde vive o Manuel padeiro e pessoas de bigode”. (EXPRESSO, ECONOMIA, TURISMO, “Brasileiros trazem bom ano a Lisboa”, 8 de janeiro de 2011, grifos meus).

A SD8 outra vez produz efeitos de que o Brasil pode contribuir financeiramente para socorrer Portugal em tempos de a crise. Até aqui, aparecia apenas o governo como o agente dessa contribuição, mas os brasileiros, por conta da nova política econômica, da erradicação da pobreza, da distribuição de renda ______ [ 198 ]

mais justa etc., contribuíram para alimentar o turismo e consequentemente para o consumo em Portugal: são 46% de aumento de brasileiros em Lisboa (até novembro de 2010 – totalizando 467 mil dormidas); € 969 gastos, em média, por brasileiro em 3 noites; 5 noites é a permanência média dos brasileiros em Lisboa. Esse turismo desliza para outras regiões: Estoril, Sintra ou Fátima. É importante destacar que agora os brasileiros que chegam em Portugal não são mais aqueles que vinham na década de 1990, a procura de trabalho, principalmente para atuar na construção civil, por conta dos bons ventos na economia dos países da Zona do Euro. Esse novo brasileiro é reflexo da economia em crescimento do Brasil que aumenta o poder aquisitivo da população e, por deslizamento, permite que outras necessidades possam ser acrescidas, o turismo, por exemplo. Outro ponto importante, não destacado para análise, seria o fato de que a ideia de gravar as últimas cenas de uma novela brasileira em Lisboa, para divulgar a cidade, para ser exibida no horário nobre no Brasil, partiu do presidente da Câmara, António Costa, conjuntamente com a empresária Roberta Medina: o efeito propaganda é apagado enquanto as cenas românticas contribuem para divulgar uma Lisboa “moderna e cosmopolita”, alterando a percepção dos brasileiros da imagem de “cidade atrasada e provinciana, onde vive o Manuel padeiro e pessoas de bigode”. O jornal supõe também um imaginário do brasileiro sobre Portugal e também sobre o português: alterando a percepção dos brasileiros sobre uma cidade atrasada/provinciana e sobre o português (Manuel da padaria e pessoas de bigode). São as regras, descritas acima, de projeção responsáveis por estabelecer as relações entre as situações discursivas e as posições dos interlocutores, de acordo com Pêcheux (2001). (SD9) Pouco tempo depois de o primeiro-ministro, José Sócrates, ter mantido uma audiência com a nova Presidente brasileira, Dilma Rousseff, no Palácio do Planalto, em Brasília, o negócio da entrada da petrolífera brasileira na Galp recebeu luz verde. O encontro entre os políticos ocorreu no domingo, 2 de janeiro, e logo a seguir a Petrobrás admitiu, no seu sítio na Internet, as negociações em curso para entrar no capital da Galp. Embora a Petrobrás não adiante detalhes sobre o assunto, fontes conhecedoras do dossiê garantem que dentro de quatro a cinco semanas tudo estará negociado. Mais: dizem que o assunto não será levado à Assembleia Geral da Petrobrás. Será decidido em conselho de administração. (EXPRESSO, ECONOMIA, NEGÓCIOS, “Galp conta com Petrobrás no carnaval”, 8 de janeiro de 2011, grifos meus).

Também na SD9 a questão Mercantil é evidente. O encontro entre o primeiro-ministro e a presidenta, ainda que aquele diga, SD2, que não estava ______ [ 199 ]

ali para aliciar o governo brasileiro, produz, como efeito de sentido, que o encontro foi para tratar da dívida pública portuguesa e da parceria entre a Galp e a Petrobrás. Momentos depois desse encontro entre os governantes, o negócio entre os dois países é fechado. Em seguida, a Petrobrás admite as negociações em curso: materializados através dos marcadores de tempo pouco tempo depois e logo a seguir. Galp (Energia) é um grupo de empresas portuguesas no setor de energia. É detentora da Petrogal e da Gás de Portugal, com atividades que se estendem desde a exploração e produção de petróleo e gás natural, à refinação e distribuição de produtos petrolíferos, à distribuição e venda de gás natural e à geração de energia elétrica. Está entre as maiores empresas de Portugal, controlando cerca de 50% do comércio de combustíveis neste país e a totalidade da capacidade refinadora de Portugal. Recentemente adotou uma estratégia agressiva de expansão no mercado de retalho espanhol e prossegue as suas atividades de exploração de hidrocarbonetos no Brasil em parceria com a Petrobras e a Partex e em Angola no consócio com a Sonangol. A FD Mercantil parece dá o tom dos sentidos que circulam nessas SD selecionadas aqui para análise: o Brasil como um parceiro próximo de Portugal pode/deve contribuir financeiramente para socorrer em momentos de crise. (SD10) Numa ocasião em que tanto se fala sobre problemas de nossa economia, é um erro esquecer que o conhecimento e o uso do português constituem uma mais-valia no campo das interações económicas e um dos mais importantes investimentos que cabem à iniciativa governamental e coletiva. Discutir um negócio ou argumentar sobre uma posição política, ou um projeto científico e cultural, usando o português com a facilidade de ser a língua materna (e nos países da CPLP, a língua de escolarização) tem valor económico e social. Se o Brasil criou há pouco uma universidade, a UNILAB, que se destina a reforçar os laços com os países lusófonos, é porque acredita na importância de enriquecer a língua portuguesa no campo da ciência atual e das tecnologias, e do uso quotidiano nos países-membros da CPLP. A formação de professores, uma das suas valências, é também uma forma de difusão da língua, assim como é a Universidade Aberta de Moçambique, criada durante a recente ida de Lula da Silva a esse país. (EXPRESSO, EDITORIAL & OPINIÃO, “Quanto vale a língua portuguesa”, 29 de janeiro de 2011, grifos meus).

A língua é um bem cultural e deve, portanto ser preservada tanto pelo governo quanto pela coletividade, no entanto, o seu valor de mercantil não deixa dúvida sobre a necessidade da sua valorização. Na SD10, parece haver um “nosso” (ou aqui) em oposição a um “lá”. ______ [ 200 ]

O “aqui”, ou nosso, parece falar de um momento de crise, da Crise da Zona do Euro, e certamente da língua portuguesa que pode/deve ser um veículo de negociação, uma ferramenta para se poder argumentar com os países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP): seria “um erro esquecer que o conhecimento e o uso do português constituem uma mais-valia no campo das interações económicas” (grifos meus). A língua seria também um instrumento para “argumentar sobre uma posição política, ou um projeto científico e cultural” (grifos meus), mas, certamente, que “Discutir um negócio” ganha, na SD10, uma força maior e um peso considerável para se pensar em um projeto de preservação da língua materna. O efeito de sentido que se produz passa efetivamente pela crise pela qual Portugal, neste caso, atravessa e também pelos efeitos de sentido de que alguns dos outros países, membros da CPLP, poderiam contribuir economicamente com Portugal já que se poderia usar “o português com a facilidade de ser a língua materna”. A Mais-valia, grosso modo, corresponde a um benefício ou a uma vantagem em relação a algo ou alguém: os problemas econômicos são os “nossos” problemas, i.e., problemas de Portugal e os benefícios, nas condições de produção desse discurso, certamente seriam revertidos aos governantes e a coletividade se compreendessem o valor da língua portuguesa. Quanto vale para Portugal, nesse momento, a “nossa” língua materna? Por outro lado, há um “lá” que não é Portugal e que não atravessa, nesse imaginário de valorização mercantil da língua como instrumento de negociação, um momento de crise financeira. O Brasil criou uma universidade, a UNILAB, com o propósito, segundo a SD acima, de “reforçar os laços com os países lusófonos” (grifos meus), porque “acredita na importância de enriquecer a língua portuguesa no campo da ciência atual e das tecnologias, e do uso quotidiano nos países-membros da CPLP” (grifos meus). E ainda há um “lá” que não se refere ao Brasil, mas que desliza para “lá” em virtude da “recente ida de Lula da Silva a esse país” (Moçambique). A constituição do Sujeito de Mercado, Payer (2005), seria uma consequência de sua interpelação pela necessidade de negociação, algo que se opera pela identificação à “formação discursiva mercantil” e sob a égide da formação ideológica do “Capitalismo Mundial Integrado”. Às Línguas de escolarização, à social, à que se destina a reforçar os laços com os países lusófonos, agrega-se à econômica, a que, nesse momento de crise, parece ganhar uma dimensão gigantesca, quase que em detrimento dos demais valores. ______ [ 201 ]

E se nos propusemos a pensar como Portugal reinscreve o Brasil no cenário internacional, não há dúvida de que esse lugar é o da Economia, o lugar da inscrição dessa FD como valor máximo a ser difundido em tempos de crise e, principalmente, acima de qualquer outro valor. Parece-me que o discurso pronto contra a mercantilização do Estado, o acirramento de forças contra as perdas salariais, contra os cortes do governo a partir do que o FMI (Fundo Monetário Internacional) determina como meta para se colocar as contas novamente em equilíbrio acima dos valores sociais aqui perde a sua força ou, pelo menos, é neutralizado. Quero dizer, consiste na troca do valor da esfera da política para, exclusivamente, a esfera do mercado. À GUISA DE CONCLUSÃO Os indivíduos, na medida em que introjetam o valor mercantil e as relações mercantis, como padrão dominante de interpretação dos mundos possíveis, aceitam – e confiam – no mercado como o âmbito em que, naturalmente, podem – e devem – desenvolver-se como pessoas humanas (GENTILI, 1995, p.228). O sujeito contemporâneo é interpelado ideologicamente pelo o que Payer (2005) denomina de FD Mercadológica. O Brasil, na visão dos jornais portugueses, não se encontra fora dessa outra forma de interpelação, tendo em vista, inclusive, que cada vez mais, o sistema econômico é global. O Brasil apresenta-se de tal forma no cenário econômico internacional que muito provavelmente se tornará uma das quatro maiores economias dominantes do mundo, em um futuro próximo, são alguns dos efeitos de sentido produzidos sobre a economia do Brasil. O poder Mercantil de interpelação opera na base de nova formação ideológica, a exemplo da ideologia religiosa e da ideologia jurídica. Isso fica evidente a partir do modo como se articulam a língua, os sujeitos e a ideologia, decorrentes das transformações dos processos discursivos de subjetivação vigente: o fortalecimento do poder do Mercado diante da diluição do poder do Estado significando o sujeito. Esses sujeitos, na contemporaneidade, são um efeito da onipotência do Mercado como instância máxima de poder. As relação sociais são, portanto, marcadas, em sua maioria, pela submissão à circulação da Mercadoria. A crise da dívida pública europeia evidencia esse novo lugar ocupado pelo Brasil e nos coloca, nesses tempos de crise, como um aliado que pode ______ [ 202 ]

contribuir financeiramente para amenizar a crise portuguesa. O Brasil passa a ser um referência, principalmente para Portugal em virtude das relações de proximidade que mantém com o país europeu. O Brasil continua sendo, no imaginário europeu, o país do futuro, um país de esperanças e esse imaginário também continua produzindo efeitos no discurso do governo brasileiro, segundo o CM, reforçando a ideia contida em HOLANDA (1996) sobre o Brasil. A história do Brasil, produzida pelo próprio país, continua sendo produzida em torno desse imaginário de país do futuro, presente das denominações rumo que pretende seguir, avançar no caminho, principal meta, erradicar a pobreza, criar avanços etc. Essa representações nos atravessem de modo constitutivo: sujeito e sentido se constituindo ao mesmo tempo. Os verbos, quase todos, conjugados no futuro, reforçando esse lugar adiante que nos significou também dentro do Brasil: Um país que vai pra frente, Um país do futuro, Um país em desenvolvimento etc. Todavia, não apenas a ideia de país do futuro, da esperança e do Mercado parece produzir efeitos nos jornais portugueses sobre o imaginário em torno do que é ser brasileiro. A velha mas ainda eficaz Lei de Gerson, aquela que afirma que o brasileiro quer tirar proveito de tudo parece também nos constituir, a exemplo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da atual presidenta durante a sua campanha eleitoral em 2010 e nos desdobramentos de sua posse em 2011. A classe política não compreende o limite entre as fronteiras que há entre o espaço público e o privado, e não consegue discernir entre os interesses coletivos e particulares. Isso nos significa como país e constrói, cristaliza, põe em circulação um singularidade do brasileiro. Através de deslizamentos de sentido nos encontramos significados em sequências discursivas que tratam do sujeito político: somos, portanto, um reflexo do que é dito sobre o outro porque significamos desse mesmo lugar no discurso do CM. Não há de um lado o político e do outro o brasileiro, há brasileiro sendo construído nas páginas dos jornais. Não podemos nos esquecer, entretanto, de que tanto o CM quanto o Expresso falam de um lugar e de que somos o Outro em seu discurso também o significando, porque o sujeito também se significa ao dizer: somos, nas páginas desses jornais, um pouco ingênuos porque não percebemos o jogo político, mas também somos dissimulados quando essa dissimulação nos vai produzir alguma vantagem. São esses alguns sentidos que circulam sobre o Brasil e o brasileiro na contemporaneidade em Portugal, mas não são todos nem definitivos. ______ [ 203 ]

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NOTAS 1) Setembro de 2013/agosto de 2014, na Universidade de Coimbra, Portugal. 2) A noção de Sequência Discursiva, definida por Courtine (1981, p. 25) como sequências orais ou escritas de dimensão superior à frase, é fluida o suficiente para viabilizar a depreensão das formulações discursivas (FDs), ou seja, de sequências linguísticas nucleares, cujas realizações representam, no fio do discurso (ou intradiscurso), o retorno da memória (a repetibilidade que sustenta o interdiscurso) (MARIANI, 1988, p.53). 3) É bastante comum jornais, também em Portugal, venderem-se como se estivessem reproduzindo verdades. 4) Dados da pesquisa de Lisboa (2010). 5) Sobre as Denominações, ver Soares & Medeiros (2012). ______ [ 206 ]

6) Segundo Orlandi (1993, p. 18), “a noção de discurso fundador, (...), é capaz, em si, de muitos sentidos. Um deles, [...], é o que liga a formação do país à formação de uma ordem de discurso que lhe dá uma identidade”. 7) Para quem não lembra, o meio-campista Gérson ficou célebre não apenas por ter sido uma das maiores estrelas do tricampeonato brasileiro em 1970, mas por ter formulado, na propaganda do cigarro Vila Rica veiculada anos depois, aquela que viria a ser conhecida como lei de Gérson: “O importante é levar vantagem em tudo, certo?” – frase dita num carregado sotaque carioca, forçando os erres até o palato ficar encharcado. Gérson tentou por muito tempo se desvencilhar da fama de patrocinador dos espertalhões, patrono dos corruptos e propagandista dos canalhas, mas não teve jeito. A lei de Gérson pegou. Sociólogos, antropólogos e a nata da intelectualidade brasileira já gastaram horas e mais horas, tinta e mais tinta, neurônios e mais neurônios para condenar nossa brasileira condição gersoniana. Somos mesmo uma nação de egoístas, corruptos e sacanas, que só pensam em si e só querem saber levar vantagem. Certo? (Helio Gurovitz, revista Superinteressante, fevereiro de 2004.) 8) A ideia é a de que o que se diz/ou o que se escuta, é sempre atravessado por algo que já foi dito, atravessado por um dito anterior. 9) Há uma ordem do discurso que controla aquilo que se pode/se deve dizer, em certo momento histórico; há também um diálogo intertextual entre os enunciados.

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CAPÍTULO

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QUANDO A ESMOLA É DEMAIS, O SANTO DESCONFIA?! João Carlos Cattelan

Este estudo resulta de um projeto de pesquisa1 motivado por afirmações de Roberto Pompeu de Toledo, em texto para Veja, intitulado Nos hinos nacionais, raiva e ameaças. Na primeira parte do estudo, abordei a defesa do autor de que os hinos nacionais em geral (e os sul-americanos, por consequência) seriam um incitamento à violência e espero ter mostrado que o fio que costura os hinos estudados (os sul-americanos) é a exigência intransigente da mantença da liberdade, já que foi alcançada por meio de sacrifícios e de vidas ceifadas. Defendi que os demais eixos temáticos (parafrásticos ou axiológicos, se assim se desejar), como a defesa do uso da violência, a relembrança do tempo de cativeiro, o enaltecimento dos combatentes, a imposição do compromisso de manter a pátria livre, a criação de um dever-ser dos libertados, o uso de fórmulas “vazias” e “abstratas” (o non sens do significante a ser saturado), a celebração de uma era de bemaventurança, a ênfase na conquista belicosa, trágica e sangrenta para a superação da opressão, a afirmação performática de um revide à afronta, o enaltecimento da paisagem geográfica do país, a assunção de que a opressão é ocasionada, sobretudo, por forças externas e o entendimento de que os herdeiros da conquista têm um compromisso perene com a pátria, a família e a propriedade (independentemente do efeito de sentido desses elementos) são sobredeterminados e subsumidos pela percepção elogiosa e grandiloquente da liberdade: crucialmente, os hinos fazem a sua apologia e a apresentam como devendo ser incondicionalmente defendida: inclusive, com a vida. Na segunda parte, por meio de polêmica com o autor, defendi que os hinos não pecam por falta de criatividade. Assumi que os sul-americanos possuem uma idiossincrasia peculiar e, portanto, originalidade, com marcas indeléveis de atividade autoral, quando não se aplica o que denominei de assepsia do pensamento, concebendo esse fenômeno como o apagamento das diferenças, para, por generalizações, evidenciar o recorrente e repetitivo, à custa da transformação das diferenças em sítios de identidade parafrástica. Defendi que a reiteração é obtida pelos apagamentos do engendramento do ______ [ 209 ]

texto, da enunciação no/do enunciado, do gênero discursivo e das marcas de autoria. Cheguei à conclusão, apoiado em Schneider (1990, p. 138), que a “originalidade não está no fato de não ter uma origem, mas de fundar, de certo modo, sua própria origem”, o que equivale a afirmar que, apesar de haver trajetos de sentido que se “repetem” nos hinos em estudo, eles são construídos de forma diferenciada. A suposta mesmice é obtida, pois, a partir da mutilação do objeto analisado e da ansiedade de estabelecer uma lógica generalizante e simplificadora do mundo caótico que nos cerca: ainda somos guiados pela busca do raciocínio sintético, em vez do pensar analítico. Nesta parte do estudo, debruço-me sobre um terceiro tema aberto pelo autor com que me defronto. Para ele, as letras dos hinos nacionais deveriam ser mudadas, pois “Um deles fala nos ‘truques miseráveis’ do inimigo. Outro alerta os cidadãos contra os ‘ferozes soldados’ que vêm degolar seus filhos e suas companheiras’. Um terceiro proclama: ‘Estejamos prontos para a morte”. Já que “contêm ameaças terríveis, quando não insultos aos estrangeiros, exibem uma ultra-sensibilidade a sentimentos como a honra, supervalorizam valores como a glória, e convocam os nacionais a uma espécie de estado de guerra permanente”, a alteração das letras se justificaria. E mais: “belicosos como são os hinos, não é de estranhar a violência no futebol”. Além do que o autor se vale de uma campanha da “senhora Mitterrand” para a mudança da letra do hino francês, justificada pela “dissincronia entre os hinos, elaborados quase sempre em situações de guerra, em tempos em que tripudiar sobre o inimigo e xingar o estrangeiro era virtude, e um presente que se quer politicamente correto e consciente da impropriedade da violência”. É em relação à procedência da defesa de alteração das letras dos hinos, portanto, que esta parte do estudo se organiza. A CONSTATAÇÃO DE UM PRESENTE PERFEITO Como canto de louvação que enaltece o tempo alcançado após a luta e os sofrimentos que precederam a conquista da independência, os hinos sul-americanos fazem a apologia do presente a que chegaram e o celebram com cores grandiloquentes, fazendo crer que tudo se organiza em harmonia perfeita e sem mais metas e objetivos a serem perseguidos. A história alcançou o fim para que tendia e nenhuma outra necessidade se impõe. Com a independência, não há mais fantasmas que pesem sobre o presente da nação e sobre o povo que o constitui. Por meio de uma matriz de sentido que ______ [ 210 ]

açambarca as composições, os hinos em estudo são unânimes na celebração do início de um tempo vivido em equilíbrio e harmonia. A profusão que os constitui permite afirmar que são hiperbólicos no que refere à felicidade alcançada. Em coro à primeira parte do primeiro capítulo deste estudo, que mostra que os hinos celebram, nas letras, a vida vivida em tempo de bemaventurança, esta primeira parte tem como objetivo atentar para um ponto específico da escritura dos hinos sul-americanos: o de que a sua matriz discursiva cria o efeito de sentido de que o presente pode/deve ser vivido em igualdade de condições por todos e que não há mais diferenças entre os cidadãos do país. E mais do que isso: eles criam um efeito de constatação descritiva, como se o tempo alcançado albergasse a todos e lhes desse as mesmas condições de vida. Valendo-se de uma modalização indicativa abrangente e generosa, construída no diapasão da certeza e da necessidade, os hinos não abrem espaço para dúvida ou questionamento. Está-se em presença de tudo aquilo que se deseja e as diferenças que existiram se acham suprimidas. Laços de fraternidade, liberdade e igualdade imperam em todos os lugares e a vida pode ser sorvida em regozijo. Esta seção tem, pois, como objetivo a demonstração da presença teimosa e renitente de um presente vivido em igualdade ubíqua e que esse efeito ou matriz de sentido é apresentado como inquestionável e sem necessidade de modalizações que o coloquem como relativo a um grupo social, constituindo-se numa generalização generosa que alcança a todos e contempla a cada um com sua opulência de mãe prodigiosa. Isto significa dizer que os hinos consideram o presente resolvido e o fazem de uma forma taxativa e indubitável: uma pura constatação; mas é exatamente dessa exorbitância de prazeres e harmonia que se deve desconfiar. No hino argentino, a superabundância enunciativa pode ser observada em “Ved en trono a la noble Igualdad. Ya su trono dignísimo abrieron las provincias unidas del Sud!”. Contrariamente ao trono que antes era ocupado pelo representante do império espanhol, agora a gerência da vida pública é exercida não por pessoas, mas por uma matriz de comportamento da gestão do bem comunitário: a Igualdade, que não aparece grafada com inicial maiúscula casualmente. Essa escrita lhe impõe efeitos de grandiosidade e de presença substancial, além do que a alça à condição de entidade personificada, dada a sua parecença com a grafia de um nome próprio. Não bastassem esses traços meritórios (a grandeza e a substancialidade), vem qualificada como “noble” e seu trono é “dignísimo”. Não há, portanto, como negar a pujança do momento vivido em face da “Igualdad” maiúscula alcançada. E chamo a ______ [ 211 ]

atenção, neste sentido, para o fio da meada que tento alinhavar nesta seção: só se pode falar de uma relação de igualdade, quando está pressuposto que ela alcança a todos: não há igualdade entre pessoas que são mais iguais do que outras. O hino permite inferir que, dentre os traços meritórios que a independência obteve, um sobressai, a igualdade, que se espraia alcançando a todos, não mais hierarquizando os cidadãos entre os pertencentes ao poder imperial e os que, submetidos ao tacão real, deviam-lhe submissão e vassalagem. Com a igualdade, os argentinos estão ao abrigo da indistinção e da isonomia de tratamento: eis a celebração de um tempo vivido como nos mais profundos sonhos da existência comunista. No hino boliviano, o presente romantizado e idealizado é cantado nos versos “siguen hoy, en contraste harmonioso, dulces himnos de paz y de unión – Aquí alzó la justicia su trono – es la patria feliz donde el hombre goza el bien de la dicha y la paz”. Como se pode perceber, não são versos de pouca monta ou que não exalem deleite e encantamento frente à cena que parecem contemplar. A chegada da independência, contra a desarmonia, a opressão e a exploração provocadas pela submissão ao império espanhol, “hoy”, teria colocado o país em “contraste harmonioso” e, nele, hinos “dulces” (com tudo que “doce” produza de efeitos elogiosos) seriam ouvidos em todos os lugares. Além disso, o presente seria caracterizado pela presença abrangente da paz, da união e da justiça. Neste caso, quem chegou ao trono foi a justiça e, contrariamente à injustiça que se pode pressupor que existia antes, agora, todos são tratados de forma igualitária e digna, a partir de ditames pautados na legalidade e não na voz ilegítima de um poder totalitário. Por outro lado, parece não haver desejo maior da parte de cada homem do que viver em paz e união e ver a todos sendo tratado com justiça (embora se deva ter em mente que esses termos são preenchíveis por cada formação discursiva da forma que mais lhe parece plausível). Não bastasse isso, a pátria é “feliz” e, por isso, oportuniza que cada um goze de “la dicha y la paz”. A somatória dos traços paz, união, felicidade, doçura, harmonia e justiça açambarcam num só movimento o que parece remeter à terra onde correm o leite e o mel e ao eldorado mítico da existência tecida no diapasão da realização plena e absoluta dos desejos humanos. Esta é a Bolívia desenhada pelo hino nos versos destacados. E eles não dizem respeito a um ou outro cidadão: nada há de restritivo em sua aplicação, já que as matrizes destacadas são possíveis apenas quando vividas por todos e em plenitude. No hino brasileiro, vários versos apontam a existência idílica após a proclamação da independência do país. Dentre eles, pode-se destacar: “E o sol da Liberdade em raios fúlgidos brilhou no ceu da pátria neste instante ______ [ 212 ]

Se o penhor dessa igualdade conseguimos conquistar com braço forte - Dos filhos deste solo és mãe gentil, - Teus risonhos lindos campos têm mais flores, ‘Nossos bosques têm mais vida’, ‘Nossa vida’ no teu seio ‘mais amores’”. Como nos demais hinos, com a supressão do jugo (no caso, português), pressupõe-se que o cotidiano dos conterrâneos teria passado, um tanto quanto miraculosamente, a se pautar na Liberdade, que, como no caso do hino argentino, também não é grafada com maiúscula fortuitamente, dado que, além de imprimir traços de grandeza e substancialidade, ela sobredetermina o objeto discursivo com efeitos de personificação, em face da sua constituição de nome próprio. E a Liberdade, em sua magnitude, não teria chegado, ainda, de uma maneira modesta ou incipiente, mas de uma forma contundente, como raios solares que brilharam no ceu da pátria, alcançando a todos que, doravante, estariam sob a salvaguarda dessa proteção benfazeja. Por outro lado, junto à Igualdade, teria chegado a liberdade, o que não poderia deixar de ser, pois ser livre, de certo modo, equivale a ser igual e vice-versa. Além disso, o país, tendo alcançado a liberdade buscada, teria se tornado a “mãe gentil” (e não qualquer mãe) que acolhe a todos os filhos e os supre com o amor e a resposta para as necessidades que tenham. E, por fim, com o desenho de uma paisagem majestosa, constituída pela flora exuberante e pela fauna ímpar, cria-se a imagética de um espaço físico capaz de acolher a todos e suprir o que se imponha para a sobrevivência; outra vez, percebe-se o anúncio triunfante do alcance da terra mítica em que jorram leite e mel e do eldorado onipotente. De novo, pode-se perceber a grandiloquência da afirmação que promete a todos o tratamento isonômico e igualitário. No hino chileno, pode-se ouvir a entoação enfática da exuberância da pátria, que, por onde quer que seja observada, promete deleites e prazeres aos cidadãos. Nada escapa ao olhar que açambarca a natureza física do país e a considera como a impressão em alto relevo da realização perfeita de um território. Vejam-se os versos que, de modo ufanista, imprimem sobre a paisagem, sobre o país e sobre os cidadãos efeitos de sentido todos construídos sobre um prisma de avaliação positivo e meritório: “Puro, Chile, es tu cielo azulado, puras brisas te cruzan también, y tu campo de flores bordado es la copia feliz del eden. Majestuosa es la blanca montaña que te dio por baluarte el Señor, y ese mar que tranquilo te baña te promete futuro esplendor”. Composto por elementos heteróclitos, um projeto totalizante de unificação se acha posto em mira e dos elementos pátrios (ceu, ar, campo, montanha, mar) se afirma que perfazem uma totalidade, cuja somatória são “la copia feliz del eden”. Eis a chegada à terra prometida e o alcance da vida vivida em perfeita harmonia, propiciada pela abundância da terra natal. De ______ [ 213 ]

onde quer que seja olhado, o Chile é o paraíso terrestre, em face do ceu azul, das brisas puras, dos campos floridos, da montanha majestosa e do mar tranquilo e promissor. Atente-se que o efeito de sentido de cada um desses elementos entrelaça o mundo físico e o mundo social, colocando-os numa relação de sobredeterminação. Se os campos são a cópia do paraíso, a vida é paradisíaca; se as brisas são puras, puras são as relações sociais que se vivem cotidianamente; se a montanha foi dada pelo “Señor” como baluarte do país, estão protegidos os que habitam esse espaço; se o mar é tranquilo, tranquila é a vida dos chilenos; e, por fim, se o mar promete futuro esplendor, essa riqueza pertence a todos. Por meio dessa ubiquidade perfeita, constata-se que cada um terá seu quinhão nesse espaço ideologizado. No caso do hino colombiano, ao lado da descrição pungente e dolorosa da batalha pela conquista da independência do país e do sofrimento que afligiu o povo enquanto esteve sob os ditames do regime imperial, a composição constata, com efeitos generalizantes, a presença de uma liberdade profusa e generosa que atinge a todos indistintamente. Por meio dos versos “la libertad sublime derrama las auroras de su invencible luz”, “En su expansivo empuje la libertad se estrena” e “Del hombre los derechos Nariño predicando, el alma de la lucha profético enseñó”, a liberdade, qualificada como “sublime”, não apenas teria chegado para os colombianos, mas ela “derrama” a sua luz de forma exorbitante e excessiva sobre todos. A aurora e o renascimento que a liberdade traz consigo projetaria sobre cada um a sua “invencible luz”, tornando o mundo ameno, calmo e tranquilo e permitindo a existência plena e harmoniosa entre os conterrâneos. Por outro lado, em face dos ensinamentos de uma das figuras míticas da revolução (Nariño), a luta empreendida pelo povo não teria se dado por alguma causa pouco “convencional” ou restritiva, mas em busca “Del hombre los derechos”. Tendo alcançado o objetivo sustentado por essa perspectiva, a luta teria indicado o caminho a ser trilhado pós-independência e posto os direitos do homem (a paz, a justiça, a liberdade, a educação, a igualdade, a união) acima de outra busca que não o ponha como fator preferencial do gerenciamento público. Dada a liberdade e os direitos humanos conquistados, a existência teria se tornado perfeita pela concessão de uma vida harmoniosa e igualitária. No hino nacional equatoriano, embora ele não aborde os temas da liberdade, igualdade e fraternidade, a exemplo dos outros, essas matrizes podem ser recuperadas nos sentimentos que despertam naqueles que as usufruem: e os equatorianos fazem parte desse grupo. Para o hino, o presente do país permite perceber que “Ya tu pecho, tu pecho, rebosa gozo y más que el sol contemplamos lucir, y tu frente, tu frente radiosa más que el sol ______ [ 214 ]

contemplamos lucir”. Constata-se, nos versos, a alegria entusiasta que alcança, concomitantemente, o país e o povo, fazendo que o seu peito transborde de “gozo” e o olhar e o rosto estejam radiantes. E não há exceção para esse estado de espírito: todos estão felizes e satisfeitos. Em face do presente, não mais se contempla apenas a luz do sol, o que produz dois efeitos de sentido: a luz que se mira é outra, que se agrega à luz solar e não havia antes: a liberdade; ou a luz que se observa é mais contundente e relevante do que a própria luz do astro celeste. De toda sorte, iluminados por essa luz resplendente, os equatorianos vivenciam uma experiência grandiosa de felicidade e, por isso, transbordam de gozo e estão radiantes. No hino nacional paraguaio, são inúmeros os recortes em que se podem perceber ecos de exaltação triunfante do país, que aparece adjetivado e associado a sentimentos do mais alto grau na escala de valor positivo. A independência teria permitido que ele realçasse “su gloria y virtude”; afirma-se que, “de heroísmo, [é] baluarte invencible” e, “de riquezas, magnífico Edén”; além disso, seu “suelo sagrado con sus alas un ángel cubrió”; da luta pela liberdade, “De la tumba del vil feudalismo se alza libre la Patria deidade”; e, por fim, afirma-se que “Libertad y justicia defende nuestra Patria”. A recolha rápida do léxico utilizado e dos efeitos de sentido que o acompanha permite afirmar que o Paraguai seria glorioso, virtuoso, heroico, rico, sagrado, divinal, livre e justo. O diapasão que conduz a composição do hino pinta um quadro cujos elementos são todos meritórios e elogiosos. Todos os cidadãos seriam, neste sentido, agraciados pelas características atribuídas ao país, pois se ele é livre, justo e virtuoso, dentre outros ingredientes de constituição, também o são os conterrâneos, que são alcançados pelas graças profusas e generosas de um país coberto pelas “alas de un ángel” e tocada pela sacralidade de “la Patria deidade”. Os paraguaios estariam postos sob a salvaguarda divina e de posse do “magnífico Eden” que constitui o seu solo pátrio. Nenhum percalço se denuncia nessa existência paradisíaca. E, de novo, não se aborda qualquer alcance restritivo em relação aos bens disponíveis para todos: o solo divinal é comum e partilhado. No hino nacional peruano, alguns versos em especial apontam para o período de bem-aventurança vivido pós-independência. Destacam-se “Somos libres seámoslo siempre”, “Que en concurso de grandes naciones nuestra patria entrará em parangón”, “En la lista que de estas se forme llenaremos primero el reglón” e “A su sombra, vivamos tranquilos”. O hino começa pelo primeiro verso destacado e por uma constatação indicativa e modalizada na forma da certeza: “somos libres”. O primeiro aspecto a se destacar se refere à afirmação impávida da certeza da liberdade, embora apareça matizada pelo ______ [ 215 ]

slogan convocatório: “seámoslo siempre”. De toda forma, há a afirmação de uma liberdade retumbante que caracteriza o tempo presente e o dá como plenamente resolvido. O segundo aspecto se refere ao fato de a flexão verbal se valer da pronominalização “nós”, que, em virtude de seu caráter inclusivo, gera o efeito de sentido de que os peruanos, sem exceção, seriam livres e agraciados pelo estilo de vida que a presença meritória permite. Por outro lado, nos outros versos citados, destacam-se a louvação e a exaltação, pois o país poderia ser comparado às grandes nações, se alguma comparação for estabelecida; e, não bastasse, na lista que se forme no ranking efetuado, o país seria o primeiro no “reglón”. Por um processo de sobredeterminação, se o país será o primeiro na comparação efetuada por meio de concursos entre nações, isto se deveria ao fato de o povo sobressair, quando comparado a outros povos. Mescla de um povo ímpar e de uma nação grandiosa, além do mais caracterizada pela liberdade, desenha-se em alto relevo um quadro otimista e ufanista em relação à nação, ao povo e ao tempo vivido: que, destaque-se, alcança a todos. No hino nacional uruguaio, efusivo sobre a temporalidade presente e grandiloquente na forma de decantar a pátria que acaba de se tornar independente, várias passagens, explícita ou implicitamente, indiciam a magnitude da vida vivida no diapasão da bem-aventurança e da história equacionada sem percalços: se existiram, estão ultrapassados e perdidos no passado. Destacam-se “La justicia, por último, vence”, “Libertad, libertad adorada, mucho cuestas tesoro sín par! Pero valen tus goces divinos esa sangre que riega tu altar”, “De laureles ornada brillando La Amazona soberbia del Sud, En su escudo de bronce reflejan Fortaleza, justicia y virtud. Ni enemigos le humillan la frente, ni opresores le imponen el pie”. É possível dar destaque a, pelo menos, três aspectos no tocante a estes versos. O primeiro remete aos traços dados como matrizes da existência vivida após a independência: eles remetem ao estado de liberdade (enfatizada pela repetição, caracterizada como “tesoro sín par”, tida como produtora de “goces divinos”), de força, de justiça e de virtude distribuídos aos uruguaios. O segundo diz respeito à perífrase que “denomina” o país cantado pelo hino: o Uruguai é “La Amazona soberbia del Sud”. A perífrase logra, com a dêixis de lugar ideologizada, afirmar o potencial guerreiro, bravo e lutador do Uruguai, além de considerálo soberbo (grandioso, imponente, brilhante, promissor, dentre outros efeitos) e, pela relação com “el Sud”, criar uma relação superlativa do país em relação às outras nações do hemisfério. E, não custa lembrar: se a pátria é forte, justa, virtuosa e livre, também seriam os que a habitam. O terceiro se refere à constatação de que o país não admite qualquer intrusão ilegítima de poder, ______ [ 216 ]

seja oriunda de “enemigos” ou de “opresores”, o que gera o efeito de que, sob a guarida da pátria e do povo, não existe ameaça que tolde a existência idílica. Do Uruguai é dito que “brilla (sob) laureles” e que “esa sangre que riega el altar” da liberdade se justificam, pois os dividendos positivos que as vidas ceifadas concederam açambarcariam a todos. No caso do hino venezuelano, por meio do verso “Gloria al bravo Pueblo”, enaltece-se o povo, por ele ter superado o jugo opressivo do poder ditatorial, e se celebra o presente, pois, nele, respeitar-se-ia “la ley” e as relações seriam tecidas com “virtud y honor”. Ao invés dos ditames do autoritarismo e da ditadura do poder imperial, agora as decisões ocorreriam sob os auspícios da lei, que toma como elemento prevalecente a honra e a virtude. Uma vida legal (ambiguamente), virtuosa e honrada caracterizaria a temporalidade do povo venezuelano e a sua existência se daria sob a presença da liberdade para todos, pois, como afirma o hino, “se el despotismo levanta la voz seguid el ejemplo que Caracas dió”. Aqui, pode-se perceber que, se houve um tempo em que o despotismo fazia ouvir sua voz e impunha o seu regime, ele se acha ultrapassado e o seu jugo não mais determina o cotidiano. Parece plausível concluir que os hinos sul-americanos pintam um quadro idealizado, idílico, ufanista, romantizado e, de certa forma, alienado em relação ao presente histórico que sucedeu às independências. Como se pode perceber, de acordo com as composições, cada país alcançou um tempo de bem-aventurança e uma existência histórica que se encontra a salvo de qualquer problemática concreta que traga vicissitudes e sobressaltos para os conterrâneos. O objetivo desta seção era mostrar que a matriz discursiva dos hinos em estudo se tece sobre o fio de que o presente posterior à eliminação do império espanhol (e do português, no caso do Brasil) foi vivido de forma harmônica por todos e que não houve maiores problemas que alcançasse os cidadãos, em virtude da superação do jugo. Eles, como anunciei, trabalham sob um efeito de constatação descritiva, como se a plenitude atingida albergasse a todos sob as mesmas condições de vida. Por meio da modalização indicativa grandiloquente, construída no diapasão da certeza e da necessidade, os hinos não admitem sobressalto ou incômodo na vida. O povo tem o que deseja, as diferenças se acham suprimidas e nenhum resquício de irrealizado existe. Como dito antes, laços de fraternidade, liberdade e igualdade imperam em todos os lugares e a vida pode ser sorvida em regozijo. Transcrevo, termo a termo, a hipótese que fixei no começo da seção, pois não encontro forma melhor de fechá-la. A observação dos hinos em estudo demonstra “a presença teimosa e renitente de um presente vivido em ______ [ 217 ]

igualdade ubíqua e esse efeito de sentido é apresentado como inquestionável e sem modalizações que o coloquem como relativo a um grupo social, constituindo-se numa generalização generosa que alcança a todos e contempla a cada um com sua opulência de mãe prodigiosa. Isto significa dizer que os hinos sul-americanos consideram o presente resolvido e o fazem de uma forma taxativa e indubitável: pura constatação; mas é exatamente dessa exorbitância de prazeres e harmonia que se deve desconfiar”. Feita a demonstração que eu pretendia como passo inicial para o que realmente desejo discutir, avanço a hipótese que deve alicerçar as reflexões feitas a seguir. Até se pode admitir que, dada a presença viva do imperialismo na América Latina por séculos, os hinos sejam grandiloquentes na comemoração e na celebração efusiva e inebriante da liberdade almejada. Mas a história não contemplou a todos com igual generosidade e nem transformou o presente canhestro de uma hora para outra (se é que o fez alguma vez, haja vista os golpes militares, a tortura, as perseguições políticas, as diferenças materiais de vida existentes ainda hoje), como se todos fossem dormir oprimidos e, ao alvorecer, a existência tivesse se tornado paradisíaca. Os hinos são cantados com efeitos de constatação, como se a teleologia histórica do país estivesse realizada. Entretanto, contra a superabundância enunciativa genérica e generosa que parece modalizar a vida sul-americana com a certeza de uma vida idílica, os hinos podem ser pensados (talvez prioritariamente) mais como memória de futuro e como manifestação do irrealizado. A força descritiva os habita, na verdade, aponta para a falta do que ainda não foi obtido: eles ocorrem mais como atos falhos, que, não afirmam o que existe, mas apontam para o que gostariam que existisse. Há que se suspeitar da superabundância que os habita e colocá-la sob o diapasão da negação de que a vida esteja servida vivida plenamente e com fartura. O INVISÍVEL/VISÍVEL IRREALIZADO Preciso reconhecer imediatamente a paternidade dos dois princípios de que me valho para organizar esta seção e para defender o fio sobre o qual alinhavo as reflexões realizadas. O primeiro deve ser tributado a Michel Pêcheux (1990), que, em Delimitações, Inversões, Deslocamentos, afirma que as revoluções são a emergência violenta do irrealizado invisível que deseja se tornar ouvido. No texto, o autor passa pela discussão da Revolução Francesa, da Revolução Socialista a partir do Século XIX e das Revoluções do Século ______ [ 218 ]

XX. Para ele, o ensinamento que subjaz a elas se refere ao fato de que são o apogeu pungente de uma ebulição de vontades e desejos que, por serem recalcados e se tornarem inaudíveis (e, por isso, ficarem irrealizados), acabaram culminando em momentos críticos de violência, dada a incompetência da política instituída de fazer frente às demandas que se colocam. Para Pêcheux, as revoluções se forjam nas minúcias cotidianas, nos momentos de discórdia, nas negações passageiras, nos erros cometidos frente ao posto, dentre outras irrupções de que algo não vai bem. Para ele, É através destas quebras de rituais, destas transgressões de fronteiras: o frágil questionamento de uma ordem, a partir do qual o lapso pode tornarse discurso de rebelião, o ato falho, de motim e de insurreição: o momento imprevisível em que uma série heterogênea de efeitos individuais entra em ressonância e produz um acontecimento histórico, rompendo com o círculo da repetição (1990, p.17 – grifos do autor).

O segundo fio que utilizo, um tanto quanto livremente, para a organização desta parte da discussão, pertence a Freud (1966). No livro Psicopatologia da Vida Cotidiana, o pai da psicanálise postula, de forma bastante ilustrativa, que os erros e lapsos cometidos na vida de vigília (se bem que ela exista também nos sonhos) se baseiam em alguma causa inconsciente. Os esquecimentos, as falhas, os equívocos, os lapsos, os chistes, os trocadilhos, dentre outros “erros” cometidos, seriam acertos explicáveis pelo diapasão da vida inconsciente e fora do controle de um ego central e princípio de unidade (se é que o “eu” do ego cogito existe em algum tempo). No bojo da discussão, um destes equívocos ou erro se localizaria, para Freud, no que ele denomina como denegação, conceituando-a como o fato de a negação linguística superficial dever ser lida como afirmação e não como negação. Dito de outro modo: quando o paciente recusa um “conteúdo”, o analista deve fixar o seu efeito de sentido exatamente pela leitura contrária. Ao dizer “não”, o paciente quer efetivamente dizer “sim”; pelo fato de a admissão ser indesejável, ele a nega. É pelo fato de negar que ele afirma e admite. Seja o caso de o paciente afirmar “ele não é meu pai”: o efeito seria o de afirmar que “ele é seu pai”. Eis a denegação, ou a negação da negação. Um tanto livremente, coloco este conceito sob outra mirada, para poder pensar que, em outro polo, quando o “paciente” diz sim, ele quer dizer não. Um exemplo para pensar, mas que já vi ocorrer em inúmeras situações: quando se afirma reiterada e abusivamente “eu te amo”, o enunciado parece indicar justamente a ausência do afeto em questão. Se, ao negar, o “paciente” afirma, parece que, ao afirmar, ele nega (não que seja ubíquo e se aplique peremptoriamente, mas, às vezes, o pleito se ______ [ 219 ]

aplica). Valendo-me do insight de Freud, denomino, à falta de termo melhor, esse processo de desafirmação. O leitor deve estar perguntando como isso se relaciona com os hinos sul-americanos: como o invisível irrealizado das revoluções e a desafirmação da superabundância enunciativa são relativos à sua composição. O fio da navalha reside na hipótese que pretendo defender: contra o deslumbramento e o êxtase efusivo da pátria paradisíaca, dado o transbordamento e a manifestação hiperbólica de uma existência idílica e idealizada, os hinos, como um ato falho insidioso, revelam a ausência, indicam o desejo de realização do irrealizado e apontam uma memória de futuro. Contra a enunciação indicativa e certeira demonstrada, que coloca a história como plenamente resolvida, os hinos, como lapsos excessivamente abusivos, revelam exatamente o que falta: a liberdade, a justiça, a honra, a virtude, a paz, a união, ou seja, a falta do que todos querem e do que os hinos levantam as bandeiras. Neste sentido, o que os hinos afirmam como uma concretude visível, voluntária ou inconscientemente, não é mais do que a revelação de uma falta. O que celebram como parte da vida concreta é o que ainda não foi conquistado e não a pura constatação objetiva e referencial do existente. Para defender a hipótese que acabo de assumir e demonstrar que, ao lado do êxtase grandiloquente da existência bem-aventurada, o irrealizado se manifesta e, como lapso, revela o outro lado da moeda (não o que se tem, mas o que se deseja ter), atento para alguns recortes que, por meio da esquiva ao controle do ego unitário, indiciam a irrealização e o desejo de que ela se concretize (ou perdure, se é que já foi alcançada). Penso poder afirmar que a profusão enunciativa e o exagero de louvação mostram o invisível que se torna visível num momento em que os ventos do acontecimento permitem que ele se manifeste (o que não significa que ele estivesse realizado ou já dado). Como assumi, ao lado de enunciados que indicam a existência objetiva e vivida de um presente repleto de abundâncias e prazeres, movimentando o pêndulo no sentido de afirmar indicativamente a bem-aventurança, outros versos (em número menor e, por isso, permitindo a hipótese de que ocorrem como atos “indesejados”) instigam para a necessidade de lutar pela manutenção do estado alcançado, para a não realização plena do que parece realizado e para a obrigação de evitar que alguma fratura quebre a paz e a união. Se os hinos fossem tomados de um ponto de vista estritamente textual, eles teriam uma contradição lógica, pois, se os laços de fraternidade “constatados” existissem, não haveria por que tentar evitar a possibilidade real de sua perda. Isto quer dizer que os hinos sul-americanos oscilam entre a percepção um ______ [ 220 ]

tanto incrédula do que parece constituir a história e a ameaça eminente de que venha a evanescer como fumaça. No limite, percebe-se que os hinos afirmam, de modo inseguro, a existência de um conjunto de elementos que ainda são sonho e não objetividade realizada. Para a confecção desta seção, não sigo o caminho “lógico” da seção anterior, passando por cada hino. Detenho-me em recortes de algumas composições que revelam o ponto de vista assumido, o que não significa que, nas demais, as reflexões não possam ser ratificadas. Quero relembrar que eles são trazidos para mostrar que, contra o deslumbramento efusivo com uma realidade já dada a ver (ele açambarca meio que o todo das letras dos hinos), determinadas passagens apontam para a dúvida sobre essa evidência e a necessidade de conquistá-la. No hino boliviano, há os versos “las glorias que empieza hoy Bolivia feliz a gozar”. Este recorte permite diversas entradas para a demonstração do irrealizado contra o realizado indicativo que caracteriza outras passagens. Uma delas se refere a “las glorias”. A expressão funciona como uma fórmula vazia e genérica, um invólucro sem sentido, que pode significar qualquer coisa. Ela é o nada que é tudo e é o tudo que é nada. Se não é possível falar sobre as glórias presentes, deve-se admitir que não existem. Elas poderiam ser apenas a independência conquistada, mas isso não transformaria o presente numa época de bem-aventurança. Outra janela remete à flexão verbal “empieza” que, como marcador de pressuposição, permite a detecção de vários efeitos de sentido. O mais evidente diz respeito ao fato de que, se começa a gozar, as glórias ainda não existiam em face da opressão do imperialismo. Nesse caso, não há como falar de um instante pleno, se ele ainda é incipiente. Outro mostra que, se a vida em gloria está no seu início, ela não é gloriosa, dado que um estado de vida de bem-aventurança não nasce armado e resoluto em toda a plenitude, mas é conquistado cotidianamente e com a resposta imediata a cada quebra dos rituais previstos. Outro, ainda, indicia que as glórias estão no início e, por isso, elas não estão atingidas plenamente, devendo ser buscadas e ampliadas a cada demanda. Parece inquestionável que, uma vez conquistada a independência, nem todos (ou ninguém) foram agraciados de imediato pela vida em glória. E, com certeza, não foram todos. É evidente que a grande maioria da população acordou nos dias, semanas, meses e anos seguintes à proclamação da independência do mesmo modo que antes de ela acontecer. Outro, por fim, aponta que, se as glórias estão no início, elas ainda são tênues e podem se desfazer a um ruflar de asas. Contra a ameaça presente das dores vividas, a celebração não pode ser mais do que a comemoração ainda contida da vida que parece começar a se concretizar. O medo do retorno ao ______ [ 221 ]

jugo vivido parece pairar sobre a enunciação de louvação, dando-lhe tons menos efusivos do que ela gostaria de colocar em sua prosódia. A terceira entrada se refere ao dêitico temporal “hoy” que, fazendo eco ao marcador de pressuposição “empieza”, aponta para dois efeitos distintos. Se, olhando para o passado, revela que, antes do presente, o estado glorioso não existia, também permite inferir que, após o dia vivido, no futuro, não se pode ter certeza do que virá. Se “hoy” o país, feliz, começa a viver as glórias, isto não ocorria antes e também não se tem certeza do futuro: parece que, se, sobre o passado, pode-se efetuar uma enunciação positiva, o mesmo não ocorre com relação ao devir, pois, sobre ele, certeza alguma pode ser enunciada. No advérbio “hoy”, revelam-se a certeza de um sentido e a incerteza (talvez, um pouco de medo) do outro. Por fim, creio dever dar atenção para a metonímia2 efetuada na composição da letra, por meio do nome do país “Bolivia”. Ao afirmar que a Bolívia está feliz e começa a gozar as glórias da independência, pretende-se afirmar que os bolivianos estejam felizes e vivendo em glória. Mas o descolamento constituído parece abrir brechas para que se perceba que, mais do que o povo que constitui a nação, ela é que precisa estar em ordem, em detrimento do seu povo. Assim, se o país vai bem, mesmo que as pessoas estejam passando por contratempos, tudo está dentro da normalidade. Esse discurso não é estranho às paragens brasileiras, por exemplo. O recorte, como um lapso inesperado ou equívoco “indesejado”, permite a descrença na superabundância e na prodigalidade em que, aparentemente, a Bolívia (e o seu povo) teria imergido após o acontecimento da independência. No caso do hino brasileiro, dentre outras, a percepção de não existência do mundo paradisíaco celebrado em outros momentos pode ocorrer na passagem “Brasil, de amor eterno seja símbolo”, em que alguns efeitos de sentido são detectados em “contradição” com a bem-aventurança louvada. Antes, perceba-se que, como no hino boliviano, a metonímia constituída pelo uso de “Brasil” ao invés de “brasileiros”, ou seja, do todo pela parte, permite inferir que, ao afirmar que ele deve ser símbolo de amor eterno, assumese que é o país que tem primazia, em detrimento do povo, mesmo que se queira efetuar a imbricação lógica de que, se o país é amoroso, os beneficiários são as pessoas que o habitam. O descolamento entre as pessoas e o país, por meio da metonímia, coloca em preponderância a pátria e não o povo, devendo este cooperar para a grandeza daquele, mesmo que tenha que abdicar de determinados direitos. Por outro lado, a flexão verbal “seja”, no modo imperativo, parece impor a injunção de um modo de ser que não existe. Se o país já fosse um símbolo de amor eterno, não se justificaria pedir que “seja”. Ou, sob outro prisma, mesmo que já fosse, a imposição indicia a descrença ou ______ [ 222 ]

a insegurança frente à promessa de estado que se anuncia com a conquista da libertação. Ainda: se a injunção é feita em termos de dever vir a ser símbolo de amor eterno, isso é plausível sob a âncora de que o amor decantado não é uma realidade que alcança a todos como se defende em vários recortes e, pois, o país não é o espaço benfazejo que alguns versos constroem. Portanto, mais do que a constatação de um estado de felicidade para todos, o verso, como um equívoco que rompe o ritual e provoca abalos nos cristais sedimentados das significações “desejadas”, interroga a certeza do gozo feliz de um presente que se ressente da concretização daquilo que a proclamação da independência prometia. No hino, manifesta-se, assim, a cota de irrealizado invisível que tem ansiedade de se materializar. No hino colombiano, o invisível irrealizado, ou seja, a contraface da superabundância prodigiosa pode ser detectado no recorte “La independencia sola al gran clamor no acalla; si el sol alumbra a todos, justicia es libertad”. Já à primeira vista, há o choque provocado pelo verso que afirma que a independência, por si só, não silencia e nem acalma o grande clamor que se ouve, o que impõe que se perceba que, se a independência era desejada, mais do que ela, desejava-se o que se supunha que viria. Responsabilizado pelas mazelas sociais do povo, o império espanhol, uma vez sendo eliminado, permitia promessa de realização do que era desejado por quem passava fome e vivia ao relento. Embora, portanto, o hino da Colômbia faça a apologia da liberdade, o tema fulcral da sua conquista está ligado às realizações da vida concreta de quem lutava para que a supressão do jugo ocorresse e tivesse as vontades levadas em conta. E o hino alerta: o limite de busca dos combatentes não coincide com a possibilidade de autonomia do próprio país, mas com a realização do que, “invisivelmente”, empurrava os combatentes. Pode-se inferir que há um efeito de sentido presente no verso que soa, à guisa de aviso, para o que competia alcançar, assim que superasse o jugo imperial. No outro verso, é contundente o alerta de que, apenas sob a condição de o sol (e os efeitos de sentido que se associam a ele) iluminar a todos e de as condições concretas de vida plena estarem satisfeitas, a liberdade se torna tangível e real, pois é presenciada na contraparte visível e material que a constitui: na justiça que se torna palpável na vida cotidiana e nas necessidades materiais e sociais de que todos devem usufruir, sem que uns sejam mais iguais do que outros. Essa é uma práxis social e ordinária que não distingue e nem hierarquiza os homens. Como se vê, apesar de o encantamento da liberdade ser um fio temático do hino em pauta, a passagem destacada quebra a apologia grandiloquente e coloca no terreno da objetividade positiva o que cumpre realizar para que a liberdade efetivamente se torne uma presença nobre e digna. ______ [ 223 ]

No caso do hino paraguaio, um primeiro recorte atende bem aos objetivos desta seção. Ele se refere à passagem “ni opressores, ni siervos alientan donde reina unión e igualdad”. É possível seguir duas vias para a leitura, sem que uma seja excludente em relação à outra. Elas se sustentam em dois movimentos pendulares, que oscilam entre a percepção positiva da existência já concretizada e verificável e a chamada para uma atitude que atende à injunção de uma ordem pautada num slogan. O recorte flutua entre a afirmação modal da certeza de que já não há opressores e servos no Paraguai, pois, a união e a igualdade são constitutivas do vivido e a injunção orientadora de que, num país que se deseja unido e igualitário, a opressão e a servidão não devem existir. Dado que o hino foi composto perto do instante da conquista da independência do país, talvez, possa-se afirmar que a segunda via parece mais plausível. De toda sorte, no limite, a polissemia dá o tom da passagem e, como voz sob a voz, o ato falho, o equívoco e a quebra do ritual revelam o irrealizado e a vontade popular de que o mundo seja de outro modo. O recorte seguinte, escolhido para a composição da defesa de um invisível que deseja se tornar real, pode ser lido no mesmo fio do anterior: “Oh! cuán pura, de lauro ceñida, dulce Patria te ostentas así”. Se, por um lado, pode-se entender que o hino assume que a pátria é pura, doce e cingida por louros, ostentando esses traços por defender a união e a igualdade, também há efeito condicionante de que a pátria só pode ser pura, doce e coberta de louros, se atender à inescapável exigência de fazer com que todos sejam tratados de modo isonômico, sem opressores ou servos. Se, num diapasão, a pátria já é o que diz que “é”, por outro, há a chamada de atenção para que os dirigentes do país ouçam o clamor popular e atendam ao irrealizado que se manifesta nas vozes que pretendem se tornar audíveis. De novo, ao lado (ou sobreposto, talvez) da voz que celebra e enaltece o presente vivido, construindo-o de forma meritória, ouve-se o alerta que impõe uma atitude frente ao futuro de atentar para os clamores invisíveis. Na ode, revelam-se fragmentos de espelho que estilhaçam a unidade do discurso unitário e fraturam a vontade de uma celebração hegemônica, efusiva e grandiloquente. No hino peruano, pelo menos, dois recortes tornam saliente uma vontade de futuro e a injunção de uma busca permanente. Por meio da visita à zona do silêncio, eles fazem perceber que o presente não satisfaz a todos os anseios como desejaria sustentar. O primeiro recorte é “para siempre jurémosla libre manteniendo su próprio esplendor”. Ao lado da celebração do encantamento com a pátria esplendorosa, ocorre o juramento de que se deve mantê-la livre, o que implica na pressuposição de que, se o povo ainda não está realmente liberto em face do tempo decorrido entre a proclamação ______ [ 224 ]

da independência e a composição da canção, é possível inferir que não se tem total certeza de que o estado de liberto seja mantido naturalmente, devendo haver a luta constante da pátria para que as pessoas sejam livres, obviamente, com o que a liberdade traz como bem para a população. Assim, ao juramento de manutenção do esplendor da pátria, estão atreladas a opulência e a autonomia do povo peruano. Se, por um lado, não se deixa de exaltar o presente vivido, por outro, atenta-se para o que a luta para ser livre significou e que objetivos possuía. O irrealizado e o invisível irrompem no tecido da celebração extasiada. No segundo recorte, “que a los siglos anuncie el esfuerzo que ser libres por sempre nos dio”, ouve-se a voz imperativa que determina que o esforço dispendido para a obtenção da liberdade atual deve ser aclamado e exaltado e, por isso, contemplado em relação aos sonhos buscados por quem, inclusive, deu a vida para que o presente fosse portador de determinados traços. Neste sentido, se a liberdade é um fato tangível e objetivo, mas não está conquistada para sempre e se deve buscar mantê-la ao custo que se imponha. Além disso, ao celebrar e cobrar a rememoração do gesto dos que deram a vida pela conquista, cobra-se o atendimento aos desejos e sonhos dos combatentes, transferindo-os para os seus descendentes. Se a luta pela independência estava pautada no irrealizado e no invisível que se queria visível e se a superabundância que o hino revela é mais o que se deseja do que o que se tem, o hino é uma peça performática de reivindicação e não puro dado objetivo constatável. O hino uruguaio é abundante na chamada de atenção para o fato de que o gozo que os outros hinos admitem existir em profusão ainda ocorre de forma tímida e começa a acontecer. Mais do que presença concreta, as possibilidades de realização estão prenunciadas e não realizadas em definitivo. Contra a constatação da abundância superlativa decantada por outros hinos, o uruguaio é construído como slogan injuntivo e imposição de comportamento futuro sobre os cidadãos do país. Um exemplo pode ser observado no recorte “de los fueros civiles el goce sostengamos; y el código fiel veneremos inmune y glorioso”. Como se observa, ao invés de enaltecer um estado resolvido de forma perene, o hino convoca para a manutenção dos direitos civis e das premissas da lei. “Los fueros civiles” e “el código fiel” não são dados como fatos assegurados, mas como metas a serem concretizadas no decorrer dos dias. As flexões verbais “sotengamos” e “veneremos”, se, por um lado, permitem pressupor que já se está de posse de algum elemento, por outro, denuncia a insegurança sobre a certeza da sua manutenção, não havendo outra razão para que a demanda injuntiva de luta pelas conquistas obtidas seja reiterada a cada nova entoação da canção pátria. Uma mescla de entusiasmo ______ [ 225 ]

e temor se vislumbra no recorte que flutua entre a certeza efusiva e o medo ameaçador. Outro recorte que revela esse misto de contentamento e de ameaça se mostra em “y los libres adoren triunfante de las leyes el rico joyel”. Se é possível pressupor que não se poderia convocar para a adoração do “rico joyel de las leyes”, se já não existisse, também parece necessário perceber que, se ele fosse fato consumado sobre o qual não pairasse nenhum temor, não haveria razão para convocar “los libres” para que o “adoren”. Paralelamente, portanto, à constatação de um fato presente (mas ainda nebuloso), produzse o efeito de sentido de que ele deve ser mantido e posto à disposição de todos; o invisível que se tornou visível com a independência se revela como ainda irrealizado em sua plenitude, devendo haver aqueles que não foram contemplados com as promessas que a libertação trazia materializadas. Mas o recorte que mostra de modo mais contundente que o embevecimento com a liberdade da pátria é ameaçado por nuvens que pairam no horizonte pode ser observado no recorte “de las leyes el Numen juremos igualdad, patriotismo y unión, inmolando en sus aras divinas ciegos odios, y negra ambición”. Se, mesmo estando sob o primado da lei, é preciso convocar os cidadãos para que “jurem” lutar pela união e pela igualdade e é preciso afirmar que essa é a forma de atuação patriótica, no conjunto de pressuposições que circulam, podem-se detectar a desigualdade, a desunião e a falta de patriotismo que ameaçam a frágil existência do direito legal alcançado. Não há certeza de que os direitos obtidos estejam livres de ameaças. O recentemente realizado pode evanescer em segundos. A revelação de que o presente não está equacionado e que há uma meta a ser alcançada é perceptível na comanda de que os “ciegos odios” e a “negra ambición” sejam imolados em altares sagrados. Só se faria essa afirmação frente a dissensões internas e, se sobre a independência conquistada, houvesse interesses em conflito, conferindo privilégios a uns em detrimento de outros. Ou seja: o invisível de alguns discursos ainda está invisível e o irrealizado de algumas vontades continua à espera. Contra a superabundância enaltecedora do presente vivido, que, de um lado, parece constatar a vida idílica e paradisíaca de um momento perfeito, os recortes destacados indiciam a ausência de atenção para vontades de futuro que participaram da luta e se acham silenciadas e recalcadas. No caso do hino venezuelano, por fim, dois versos em especial chamam a atenção, pois indicam a irrealização do desejado e a permanência do invisível sem visibilidade, bem como produzem o efeito de que a superabundância exaltada ao longo da composição pertence mais ao terreno do ambicionado do que à existência objetiva. O primeiro verso é “Gritemos con brío muera la opresión!”. Parece evidente que, mais do que constatar a presença positiva ______ [ 226 ]

da liberdade, o hino conclama para o posicionamento contrário à opressão, incitando para que, com coragem, o povo lute contra o jugo tirânico, se ele se fizer presente. O verso atua como um slogan ou palavra de ordem, que carrega a injunção de combater o autoritarismo e evitar que a opressão aconteça, seja no presente vivido ou no futuro buscado, donde se pode inferir a sua alocação no terreno do irrealizado. Como equívoco que provoca fraturas no ritual, o hino, que deveria ser apenas um gesto de enaltecimento do momento vivido pela pátria e pelo povo, em momentos cruciais, em que o controle enunciativo enfraquece, revela a incerteza sobre a presença do estado glorioso e sobre a necessidade de conquistá-lo a cada instante. O segundo verso se refere a “compatriotas fieles, la fuerza es la unión”. Como antes, os versos começam por um vocativo instigador, dirigindo-se aos conterrâneos e os chamando para partilharem de uma busca e de uma concretização ainda não realizada, sobretudo, por meio da união, mas pela força, se necessário. É evidente que, se a união e a força fossem constitutivas da história vivida e se tivesse certeza da sua perpetuação no futuro, não haveria necessidade de efetuar a conclamação e transformar versos do hino em palavras de ordem. Ambiguamente, o verso mostra como é a união de todos que dá a força necessária para alcançar os objetivos buscados, mas também como é a força que, em face do seu poder de enfretamento, permite que a união aconteça: neste caso, defende-se, até, que ela seja usada contra os próprios conterrâneos, se forem uma ameaça à liberdade e se tornarem uma ameaça opressiva. Seja com palavras de ordem, com ditames de como agir e a quem combater ou com a ambiguidade que aponta para a necessidade de conter ânimos mais exaltados por meio da força, o hino, nos versos citados, revela que a louvação de uma pátria abundante e vivida em regozijo está situada no terreno do desejado não alcançado e não no universo da vida positiva e concreta. Mais uma vez, pode-se pleitear que os hinos nacionais em estudo, nos lapsos, atos falhos e equívocos que possuem, indiciam o país que se deseja e não que a plenitude de realização das vontades invisíveis. Eles são fragmentos de orientação de como um país deve ser e não a revelação inconteste do que ele já é. Eles se apresentam como peças políticas reveladoras de vontades que, dado que se situam na zona do irrealizado, esburacam o ritual e mostram onde o sujeito não sabe que está, pelo menos, conscientemente. Também neste caso, a grandiloquência efusiva e elogiosa sobre o momento presente não deixa de apontar para o exagero afirmativo que deve ser lido no diapasão da negatividade ou da desafirmação, como postulei no início da sessão. Estabeleci como meta a demonstração de que os hinos sul-americanos são, na maior parte da sua tessitura, constituídos por uma trama que exalta ______ [ 227 ]

a pátria e produz o efeito de sentido de que ela destina a cada um uma vida paradisíaca, por meio da incidência teimosa e renitente de um presente vivido em perfeição. A prática discursiva dos hinos em estudo, portanto, é sustentada por uma defesa persistente de que o país bafeja a todos com sopros de felicidade, realização e vida farta. O ritual impõe sobre as composições a superabundância, a profusão e a prodigalidade. A generosidade altruísta e interessada no bem coletivo atravessa de alto a baixo o fio do tecido e predispõe a imagem de um país para todos. Mas a “constatação” renitente da superabundância profusa, difusa e grandiloquente da magnitude generosa da pátria, pelo exagero que cria, faz com que se desconfie da felicidade hiperbólica e do eldorado. Há elementos meritórios demais para ingredientes positivos de menos, que são vividos pelos povos desses países (a história passada não deixa de trazê-los à baila) e que, aqui ou acolá, em momentos desiguais, emergem, mostrando que o irrealizado continua invisível para muitos e que a magnanimidade da pátria é só um efeito de sentido provocado pela superabundância afirmada, que nada mais é do que o desejo de que assim fosse, quando efetivamente não é: eis a desafirmação. A generosidade ubíqua da pátria para todos é, pois, um efeito do discurso e não a concretude histórica: ou o real da história. E, apesar de se saber que os hinos nacionais não são feitos por qualquer um, que eles passam pelo crivo político de quem está no poder, que são confeccionados por diversas mãos e que são promulgados como hinos à força de lei e de ditames legais, mesmo assim, sob todo o processo de rarefação que os vigia e os cerca de cuidados zelosos, eles falham, eles fraturam o ritual, como espero ter mostrado na segunda seção, com a hipótese de que a constatação positiva da realização dos desejos e vontades faz com que o olhar se dirija para o outro extremo do pêndulo e veja que muito do que se afirma é só o produto de um discurso otimista, ufanista e desejante, que aponta para a ausência, a falta e a surdez para as demandas sociais. Para reiterar meu ponto de vista, os próprios hinos, em versos “perdidos” no meio de suas teias de fios, como atos falhos, equívocos, erros ou lapsos, provocam brechas e frestas no ritual previsto, exigindo outros olhares. Estes versos “indesejados” aparecem como se fossem “mensagens” subliminares, que se quis que ali estivessem como modo de romper a censura preocupada com o atacado e não com o varejo ou como irrupção do inconsciente que produz efeitos cifrados como se fizessem parte de um código secreto a ser desvendado. Por um lado, um “ensinamento” para a posteridade e, por outro, a revelação de um presente irresoluto. Neste sentido, talvez se deva considerar os hinos nacionais como ______ [ 228 ]

peças de proposição política e, por isso, “atos” performativos de injunção de uma atividade a ser perseguida, e não constatação de um estado de mundo que corresponde às condições de verdade dos enunciados que são proferidos. Em face da realidade vivida, sentida e doída, já distante há alguns séculos do acontecimento das independências, a superabundância exultante da situação dos países é a desafirmação (a negação da afirmação hiperbólica) do que prega e a revelação, ao inverso, do que falta trilhar para que o invisível se torne, antes, visível, para, depois, quem sabe, vir a ser tenuemente realizado. Mas, como afirma Pêcheux (1990, p. 19), as “línguas de vento” se especializaram em dar respostas às demandas, distorcendo os efeitos e direcionando-as para outros objetivos: para que tudo continue como antes. Contra os efeitos de superabundância efusiva de bens, riquezas e distribuição idêntica de atendimento aos prazeres e às vontades, ou seja, contra a constatação positiva de uma era paradisíaca de bem-aventurança (o que, em geral, afeta a maior parte dos versos dos hinos), em alguns segmentos das composições, efeitos de sentido corrosivos fazem perceber que o êxtase e o embevecimento com o solo pátrio não está tão seguro quanto gostaria de poder aparentar e, oscilante, faz o pêndulo se dirigir para outro polo, em que o estado de graça que parece ubíquo, às vezes, torna-se apenas um efeito de sentido: e não um sentido. Contra a defesa rasteira de que as letras dos hinos em estudo deveriam ser alteradas em face dos aspectos “negativos” que apresentam, cumpre entoá-los até não mais poder, para que se tenha a oportunidade de ouvi-los do que dizem e percebê-los nas falhas que provocam no ritual que tentou cercálos e fazê-los servir a uma vontade e a um senhor. Creio que se deve escutálos, para que se perceba que o entusiasmo ufanista que os constitui deve ser lido no seu diapasão negativo e que o irrealizado continua invisível ou tão mais invisível agora, em face de que, obtida a “liberdade” almejada, afirmase que ela contempla a todos e, portanto, não há mais razões para perseguir objetivos que se acham plenamente equacionados. Não há estratégia melhor para silenciar um problema do que afirmar que ele não existe. Como modo de fechar a sessão, gostaria de reiterar a ideia de que, na superabundância efusiva que é recorrente nas letras dos hinos estudados, a falta, a ausência e a negação devem ser tidas como o fio organizador das composições e que se deve dar atenção aos versos que produzem a equivocidade do ritual, até porque o sujeito autor das letras parece estar, neste sentido, exatamente onde não sabe que está e a sua vontade não corresponde efetivamente àquela que transborda do exagero e da grandiloquência com que circunscreve a pátria. ______ [ 229 ]

MUDEMOS, ENTÃO, AS LETRAS DOS HINOS? Com a hipótese assumida anteriormente (e sem negar que ela seja válida), de que há um desequilíbrio entre a esfera constatativa e a performativa, com o exagero hiperbólico da primeira e a ruptura com o ritual da segunda, podese assumir também que, no momento em que os hinos eram compostos, dado o êxtase da supressão do imperialismo, os hinos fossem mais uma ode à grandeza conquistada e uma palavra de ordem para a vida futura e não a pura constatação de um estado de vida que aparecia armado de um dia para o outro. Tratava-se mais da defesa de uma meta alcançada e outras a serem atingidas, do que a constatação de um estado de bem-aventurança miraculoso, que se constituiu de repente. E esse estado de vida em deleite não está, nem sequer minimamente, realizado atualmente. Talvez seja necessário perceber que o deslocamento e o descolamento do eixo dêitico de produção de cada um dos hinos sul-americanos para outro momento temporal provoca um deslizamento do que era mais, tal qual ato falho, equívoco ou lapso, a defesa de uma memória de futuro do que a pura constatação, que acontece, quando eles são entoados mecanicamente, hoje, quando se vê o hino nacional do próprio país ser executado. O que, então, era a vibração de uma nota entusiasta e proponente de uma vida em clima de justiça, harmonia, paz, união e legalidade, aqui, torna-se a asserção declarativa de que tudo está resolvido e cada um é bafejado pela igualdade, pela liberdade e pela fraternidade, que alcança a todos, tornando-os iguais legal e materialmente: o que está longe de ser verdade. Mudar a letra dos hinos, porque determinados ingredientes lexicais mais contundentes podem melindrar os sentimentos de um ou de outro nem sequer tangencia o que efetivamente um hino é para o povo que o toma como principio identificador; ainda que ele fosse apenas a melodia que, entoada, faz pulsar mais forte o coração dos que o ouvem, sem saber por que isso ocorre, a “reviravolta” significaria a criação de uma ferida narcísica que quebra um dos lugares de encontro dos que tiveram a sorte (ou o azar) de nascer num mesmo espaço. O hino nacional, enquanto apenas melodia musical, é o encontro do ouvido com o que situa, localiza, distribui, aloca e organiza pessoas de uma comunidade social: a emoção que cerca a sua execução é o encontro de cada um consigo mesmo e com os outros que são partícipes dos mesmos laços culturais, ainda que sejam flutuantes, tênues e pouco descritíveis: no limite, eles podem ser apenas estar no mundo num canto do planeta. Mas há, pelo menos, quatro razões para defender que a mudança proposta não é de bom alvitre. ______ [ 230 ]

A primeira se refere a uma questão que diz respeito à constituição da identidade e da completude subjetiva de cada um, embora a completude, como se sabe, seja sempre transitória e indefinida. Como tantos ingredientes que compõem o mosaico, a colcha de retalhos ou o trabalho do colecionador que constitui a transitividade do sujeito rumo a uma história de vida, sempre plástica e flutuante, um hino é um dos elementos que contribuem para dar a aparência de finitude e de pertença a uma centralidade que aloca o sujeito num espaço definido e lhe garante uma identidade toda particular. Juntamente com a família, a escola, a igreja, o partido político, os amigos, os vizinhos e a infinidade de coisas que trafega pela existência histórica de cada um, um hino é mais um “detalhe” (talvez, o mais importante em termos de espaço) que imprime sobre o indivíduo uma subjetividade que lhe garante uma pertença e um modo de ser, mesmo que ele não saiba qual. Ser brasileiro, chileno, argentino sempre produz um efeito de sentido que aloca e coloca a cada um numa parte da terra e lhe causa a impressão de que estar ali é viver a vida de um determinado modo. Ao invés de ser uma fórmula vazia ou um elemento não saturável, por não ser mais do que uma metáfora vazia (a partir de um ponto de vista), um gentílico faz com que o sujeito partilhe de um imaginário que lhe diz o que ele é: que o seja não importa. Alterar, mudar ou “limpar” a letra de um hino é contribuir para a fratura dos espelhos em que os sujeitos se reconhecem e fragmentar ainda mais uma vida que, em face do “caos” da pós-modernidade, tem poucos pontos de reunião e de unificação de um ego já bastante disperso e rarefeito. Um hino é um ponto de ancoragem que contribui para que a “insanidade” e a “neurose” não se tornem ainda mais contundentes. A fratura provocada por meio da mudança na letra de um hino é a fratura infligida sobre o espelho narcísico que permite a cada um a ilusão necessária de ser “eu” e não um conjunto disperso de alinhavos difusos sem nenhum princípio de unificação. Não se trata de afirmar que o ego seja uma unidade ou de que a consciência daquilo que se é e se quer seja plena, mas a ilusão de que ele existe e é uno é vital para o ser humano. Alterar a letra de um hino é, também, fragilizar, ainda mais, uma identidade já fragilizada. A segunda diz respeito ao fato de que um hino, mesmo que não o deseje e pareça um slogan injuntivo somente ou uma ode de louvação à pátria “amada e idolatrada” apenas, constitui-se em peça histórica, porque está na história e rememora a constituição de fronteiras de pertença a uma formação social. Acontecimento que se amarra a um momento histórico específico e que se pronuncia sobre ele, um hino é um gesto de memória do que aconteceu e do que se deseja, além de circunscrever um presente que, por mais idealizado que pareça, permite que se entreveja a teleologia buscada. ______ [ 231 ]

Os hinos em estudo são históricos, portanto, de uma forma multifacetada, pois abordam um passado que aconteceu de um modo trágico, um presente que se desenha entusiasta (embora se deva desconfiar desse otimismo) e um futuro que deseja a vida em plenitude para todos, apesar de não estarem seguros dessa concretização. A alteração das letras faria este delineamento se perder e, com isso, a revelação dos limites do irrealizado que se fez visível por momentos (e, às vezes, torna-se distante e recalcado). Além disso, os hinos sul-americanos, às vezes, de modo tênue e frágil, mas, às vezes, de maneira contundente, revelam que a geometrização das fronteiras geográficas, culturais e sociais de cada país (ou seja, das margens que forjam identidades e sensações de pertença a um modo de estar no mundo) foi obtida por meio de sacrifícios ocasionados pela luta, pela morte, pelo sangue, pelo sofrimento e pela dor, o que lhes permite, inclusive, impor sobre as gerações futuras a dívida de sangue criticada. A reflexão sobre este ponto não só permite a compreensão de um pouco do que foi a história de constituição de cada nação, como também que se perceba, criticamente, a quem beneficiaram as vidas ceifadas e a quem o pagamento da dívida privilegia, pois o distanciamento histórico de alguns séculos permite ver que a grande maioria das pessoas se encontra alijada das promessas dos movimentos libertacionários e das riquezas abundantes que os hinos afirmam existir dentro das fronteiras geográficas dos países. E, se for necessário doar a vida para que a abundância (de que alguns usufruem) seja mantida, nem todos deverão fazê-lo, já que existem os destinados a estar na linha de frente e os que “devem” conduzir a vida em atividade contemplativa e “estratégica”. Um hino (e os sul-americanos de modo especial) é, pois, uma peça (ambiguamente) histórica que constitui um gesto de memória e é imprescindível que se saiba de onde se veio para se saber para onde se vai. Um povo sem história (sem memória) pode cometer as maiores atrocidades, julgando estar realizando um ato absolutamente inocente. Um historiador poderia fazer uma boa reflexão sobre as condições históricas das independências dos países em estudo e, talvez, chegar à conclusão que os hinos são uma forma de denegar a liberdade inexistente. O que as independências latino-americanas obtiveram foi a liberdade excessiva de uns em detrimento da liberdade de outros, livres para se submeter a um poder crucialmente mais livre (nas mãos de poucos), centrado quase que exclusivamente na existência econômica. Parafraseio, neste momento, uma passagem já discursivizada em outro ponto. Os hinos em estudo alertam, de modo mais ou menos contundente, que a intrusão e a “ilegitimidade” de comando sofrerão o revide pronto e genocida. Entretanto, pode-se ter certeza que o combate caberá a uma massa ______ [ 232 ]

eleita (que nunca será a dos pertencentes às “melhores” castas), a quem se afirma que a violência só será exercida à guisa de defesa do bem alcançado e do qual não se pode abrir mão. Mas não se mostra ou se assume que esse bem não está ao alcance de todos. E, ainda, parece crucial notar que tirania, despotismo, opressão, escravidão, submissão, jugo e sujeição são assumidos como se fossem oriundos de fontes externas e não internas (internamente, parece reinar uma fraternidade universal): o que é sabido que não procede. Em alguns casos, nos países sul-americanos, as maiores violências e atrocidades foram cometidas por “compatriotas” e por pessoas de uma mesma nação aos seus “camaradas”. Um pouco de ambição e de sonhos de poder e riqueza fixam moradia também na margem esquerda do rio. Não faltam exemplos atuais de violências que se fazem contra o bem comum, que não tiram vidas em campos de batalha, mas por meio de aparências nobres e grandes metas. Acredito que haja imbricações históricas em profusão atreladas inextricavelmente aos hinos em estudo, para que se alterem as suas letras sem obliterar os efeitos de sentido que eles possuem e sem que se perca a possibilidade de reflexão sobre um modo de existência que, às vezes, tem sido tão exploratória e predadora. Mutilar uma composição da magnitude de um hino nacional é produzir um apagamento da memória histórica, além de silenciar e recalcar as vontades de realização que se acham imiscuídas nas letras, quando se está disposto a ouvir. Defendo, portanto, que os hinos, ao invés de serem alterados, sejam mantidos intactos e sejam ouvidos a não mais poder, recebendo atenção efetiva ao que afirmam: muitos teriam muito a aprender com o que os autores profetizaram e tornaram visível sobre o irrealizado. No que toca ao irrealizado (e aí está a terceira razão), como peças históricas, os hinos dão concretude material ao que se desejava com a independência, ao preço que foi pago para obtê-la e ao que se ambicionava ao se tornar livre. A liberdade é mais do que a pura meta de libertação em face do jugo imperialista: ela é a profecia e o desejo de realização de uma vida cotidiana pautada na supressão das carências vitais e no atendimento às necessidades de cada um; as mais triviais: alimento, casa, emprego, saúde, segurança, lazer; coisas que o povo, infelizmente, para desespero de alguns administradores públicos, continua a requisitar. Tendo como fio de reflexão que os hinos são também o irrealizado que retorna e se deseja ouvido e que a superabundância propalada é mais o desejo de usufruir da fartura que se presencia do que a constatação de que a prodigalidade existe, a descrição de um luta sangrenta e de mortes que compraram a liberdade pode ser tida como a cobrança de que o troco deve ______ [ 233 ]

ser dado à altura, no sentido de indenização das vidas ceifadas para que a independência viesse e as riquezas enaltecidas fossem postas sob o usufruto comunitário. Alguns hinos tocam de modo frontal na violência sofrida por ser livre, enquanto outros são mais assépticos, denegando-a ou a relegando ao silêncio: mas ela está nas entrelinhas. Pode-se afirmar que a maior ou menor abundância enunciativa sobre a belicosidade se faz por relação à maior ou menor luta pela independência ou ao desejo de fazê-la ser esquecida. Porém, embora alguns hinos sejam mais amenos no que tange à temática, todos os países sulamericanos foram assolados pelo genocídio para se tornar livre. Talvez se deva problematizar a opção pelo silêncio e a tentativa de apagamento da existência de mártires da liberdade, o que pode, já no momento de produção (coletiva e censurada, é bom lembrar), ser a tentativa de obliterar um débito histórico inalienável e que deve ser trazido à tona. O irrealizado deve se tornar audível: em ruidoso barulho e não sob a denegação dos discursos de palanques. O que todos os hinos sul-americanos, de um modo ou de outro, não cessam de repetir se refere ao legado sangrento recebido para que alguns (naquele momento e parece cada vez mais verdade que é apenas por alguns) pudessem usufruir de uma vida plena e pacífica à custa das “diez mil tumbas” que os libertaram (penso que o irrealizado coletivo, no final das contas, tornou-se o realizado de poucos, com muitos sendo alijados das conquistas obtidas). Se, em alguns hinos, o derramamento de sangue é uma cobrança exacerbada de uma dívida perene para com todos os que lutaram para que os seus tivessem um lugar ao sol e, se, em outros, esta matriz é quase um sussurro, ela não pode ser apagada: não é porque não seja abundantemente tematizada que ela não esteja presente e ambicione vir à luz. De todo modo, há que se perguntar por que alguns hinos enfatizam a luta, a guerra, a dor e o sofrimento, enquanto outros (como o brasileiro) preferem pôr o acento na exuberância da paisagem: há que se desconfiar que alguma forma de controle da memória se acha em jogo. Frente a alguns hinos, bucólicos por excelência, podem-se fechar os olhos e desenhar a beleza ímpar que se pretende criar da paisagem: mescla de beleza, arte e majestade. Reafirmo que há dois pontos de vista que cruzam esses discursos, de uma forma um tanto paradoxal: enquanto uns cantam as belezas naturais e quase não falam de luta ou de conquista, em outros, ocorre o contrário: a luta é enfatizada e a beleza da casa pátria fica recalcada. Mas beleza há em cada um e luta pela liberdade e pela supressão do jugo ditatorial aconteceu em todos os países em foco. Penso que seja inegável que os hinos, por causa da confecção a diversas mãos e da participação de várias forças de censura, ______ [ 234 ]

indicam, não a verdade objetiva e concreta de um mundo descrito de forma isenta e desapaixonada, mas o resultado de um processo de seleção entre o que dizer ou não, entre o que silenciar ou alardear: há que se perguntar por que estes enunciados apareceram e não outros. A superabundância afirmada é a prodigalidade desejada e a falta e o recalque revelam o que ainda inexiste: os dois caminhos são a concretização do irrealizado e a afirmação do que permanece (ainda) invisível. A quarta razão para a defesa de que não se devem provocar mudanças nas letras dos hinos volta a tocar na questão da superabundância afirmada, que, mais do que o concreto já existente é a manifestação do que se quer e ainda não se tem. A prodigalidade é menos o que já se possui e mais a manifestação do que se deseja para, supostamente, a vida se tornar plena e poder ser vivida de modo prazeroso. Sob a forma de dois eixos (um negativo e outro positivo), os hinos são hiperbólicos na explicitação do que não se quer e do que se quer: nos termos assumidos, eles são o indesejado nomeado e o irrealizado colocado em termos práticos. Temas nucleares das composições dos hinos, tais como tirania, opressão, submissão, jugo e escravidão, são invólucros que podem conter qualquer significação: eles perfazem um terreno plástico que pode ser ideologizado quase que de forma irrestrita, fazendo fundir e confundir democracia e tirania. Se é necessário extirpar x, como x deve ser compreendido? Como distinguir tirania de democracia? Como diferenciar república de totalitarismo? Nas execuções dos hinos atualmente, já na mecânica da reprodução irrefletida, esses núcleos parecem possuir um sentido evidente e como se jugo e submissão e liberdade e autonomia possuíssem sentidos transparentes. Mas são significantes opacos e camaleônicos: eles circulam como non sense absoluto, como recipientes que podem ser significados de acordo com a historicidade de uma formação social. Não é óbvio como, superado o momento de libertação de cada país, eles podem vir a se tornar inteligíveis na voz de um governante ou partido político, que podem definir um mesmo gesto interpretativo como tirânico ou democrático. A grandiloquência que cerca esses ingredientes deveria ser traduzida por referência aos processos discursivos dos que se encontram à margem e que possuem uma relação estreita com movimentos libertacionários e não pelos que se fartam de prazeres. A figura do porta-voz que fala por e no lugar de não pode ser útil para a tradução. O mesmo vale, mutatis mutandis, para abstrações (ou “ficções demagógicas”, como diria Frege) como brio, bravura, coragem, valor, honra, virtude, altivez, glória e heroísmo e, principalmente, para liberdade, igualdade, ______ [ 235 ]

fraternidade e justiça, dentre outros. A igualdade desejada pelo grande capital não é exatamente a desejada por aquele que não se acha de posse de condições de vida material satisfatória e depende da caridade alheia ou de programas aviltantes de distribuição de renda. É provável que esse não seja o efeito de sentido de bem comum para todos aqueles que se encontram alijados da possibilidade de arbitrar sobre a sua vida e decidir o que parece mais plausível. E, de novo, a arrogância dos porta-vozes que sabem tudo que é bom para os outros, porque eles, ingênuos, não têm condições de discernir o que lhes serve e o que lhes faz o bem entra em cena. O que conseguem ver não ultrapassa o limite dos ditames do direito abstrato e lógico, que age por ignorância plena da história. Quem decide o que painel lexicológico significa? Quem diz o que é ser igual, fraterno, justo e livre? Parece absolutamente defensável que, quando se trata de preencher esses termos com um sentido (ou efeito de sentido), as vozes autorizadas pelos meandros da democracia (e a quem elas servem) se apressam em “dicionarizar” a leitura e empedernir o que poderia ser espaço de embate e confronto: o resultado é a esclerose do sentido e a cristalização mineral de algo plástico e legível de diferentes modos em diferentes lugares e momentos. Trata-se, portanto, de retirar esses termos de sua impávida arrogância e de quebrar as cadeias de resistência à mudança de que são cercados. É necessário que a plurivocidade que os constitui e a plasticidade de que são feitos seja ouvida, com audição respeitosa, pois eles são saturados de vozes sociais e a polissemia os habita. Há que se eliminar o porta-voz que se especializou em produzir línguas de vento e dar ao público o sentido, que é tão somente o seu efeito de sentido: nada há de audição verdadeira e dialógica em situações desse tipo, porque aquele que efetivamente deve falar é a voz recalcada e silenciada: o irrealizado inaudível. Seja pela via do eixo negativo ou do eixo positivo, os termos que habitam os hinos em estudo em profusa generosidade devem ser referidos aos processos discursivos dos que se encontram à mercê das intempéries, porque ali se encontra um sentido que diz respeito à vida cotidiana e às necessidades básicas: esta é a voz desvalorizada e que clama por traduzir, para os seus termos, o que é ser tratado com dignidade e justiça. Há que se desacreditar no suposto direito universal e abstrato, porque a ótica sob a qual ele foi erigido é a daqueles que podem fazer a lei pender a seu favor. Esta não é a leitura que efetivamente diz respeito à vida plena que os hinos desejam, porque a vida que ela promete está reservada para alguns privilegiados que, efetivamente, gozam da abundância e prodigalidade: em detrimento de outros. Siga-se, ______ [ 236 ]

pois, o diapasão negativo ou positivo do pêndulo que os hinos constroem, há que se entender que os ingredientes linguísticos não ocorrem como sinais transparentes e imutáveis, mas são refeitos historicamente a cada momento, por diferentes vozes e desejos. Os hinos em estudo podem (se não devem) ser lidos como a denegação de uma falta e a superabundância de que tratam é mais a ausência desejada e cantada aos quatro ventos: a vida que se deseja fazer. Não perceber isso por meio da negação de problemas que pulsam sob contenções que podem desmoronar a qualquer momento é negar a manifestação de um desejo, é coibir a constituição de uma identidade, é recusar a historicidade de um estarno-mundo produzido no calor da batalha, é obliterar um gesto fundador de discursividade, é suprimir a memória que cerca o contorno de uma nação, é recalcar no esquecimento os sacrifícios pagos para que um povo tivesse uma fronteira geográfica discernível e sua. A mudança dos hinos não traria nem a paz aos estádios e nem coibiria a misoginia e a xenofobia existentes. Estes traços da cultura global atual são resultado mais da exploração de uns sobre outros e da apropriação exorbitante de uns com o alijamento de outros, do que da entoação de hinos que pregam a busca do irrealizado e o atendimento ao desejo recalcado. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano: artes de fazer. (Trad. Ephraim Ferreira Alves). Petrópolis: Vozes, 1994. _____, GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano: morar, cozinhar. (Trad. Ephraim Ferreira Alves e Lúcia Endlich Orth). Petrópolis: Vozes, 1998. _____. A operação histórica. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. (Trad. Theo Santiago). História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. _____. A cultura no plural. (Trad. Enid Abreu Dobránszky). Campinas, S P: Papirus, 1995. FREUD, Sigmund. Psicopatologia da vida cotidiana. (Trad. Álvaro Cabral). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1966. ______ [ 237 ]

PÊCHEUX, Michel. Delimitações, inversões, deslocamentos. (Trad. José Horta Nunes). In: Caderno de Estudos Linguísticos. Campinas, n.19, p.724, jul./dez. 1990. _____. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. (Trad. Eni Pulcinelli Orlandi et al.). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995. _____. Ler o arquivo hoje. (Trad. Maria das Graças Lopes Morin do Amaral). In: Gestos de leitura. Campinas: Editora da Unicamp, p. 55 a 66, 1997. SCHNEIDER, Michel. Ladrões de palavras: um ensaio sobre o plágio, a psicanálise e o pensamento. (Trad. Luiz Fernando P. N. de Franco). Campinas: Edunicamp, 1990. TOLEDO, Roberto Pompeu de. Nos hinos nacionais, raiva e ameaças. Veja, São Paulo, Editora Abril, 24/06/1998, disponível em: http://veja.abril.com. br/240698/p_142.html. Acesso em: 25/10/2007. NOTAS 1) Estudo financiado com recursos de Bolsa de Produtividade em Pesquisa, concedida pela Fundação Araucária, instituição de Apoio ao Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico do Paraná. 2) Sobre a questão da metonímia em termos de discurso, cabe o alerta de que ela não é tomada aqui como uma figura de linguagem, que joga com a parte e com o todo, mas como a parte valendo pelo todo ou o todo valendo pela parte como o delimita e concebe uma formação discursiva.

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CAPÍTULO

11

“CASCAVEL, QUEBRADA SOFRIDA”:

AS VOZES IDEOLÓGICAS NA MÚSICA DO GRUPO DE RAP “FACE HUMANA DO GUETTO”

Silvana Carolina Trevizan

INTRODUÇÃO Este estudo tem como objetivo analisar a prática discursiva da música “Cascavel, quebrada sofrida”, do grupo de Rap cascavelense “Face Humana do Guetto”, a partir dos pressupostos dialógicos do circulo bakhtiniano. Como aporte teórico para o estudo, nos pautaremos em estudiosos da área da filosofia da linguagem, sendo eles Bakhtin (1999, 2000), Barros (1999), Brait (1999), Dahlet (1997), Camargo (2009), Brandão (1997), Faita (1997) e GEG (2009). Fundamentar-nos-emos, também, em estudiosos da esfera da Cultura Popular e do estilo musical Rap, referenciando Pinto (2004), Shusterman (2006), Silva (1999) e Trevizan (2012). Buscaremos identificar as vozes ideológicas presentes na música, que é uma expressão de sujeitos, moradores da periferia cascavelense, que, apesar de não exercerem a carreira de cantores profissionais, encontraram no Rap, música genuinamente engajada social e politicamente, uma maneira de serem notados pela sociedade, fazendo com que esta ouça suas ânsias por meio da expressão artística. Cascavel, município situado na região oeste do Paraná, com cerca de 286.205 (duzentos e oitenta e seis mil, duzentos e cinco) habitantes, segundo os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de (2012), classificada como uma cidade de médio porte, vive o inevitável contato com a cultura de outros municípios, recebe e adapta influências das metrópoles, principalmente, de São Paulo e Rio de Janeiro, uma vez que as mesmas são polos midiáticos e transmitem a todo território brasileiro, por meio de programas de televisão, novelas e telejornais, seus costumes e cultura. Uma demonstração disso é a repercussão do Rap (Rhythm and Poetry – a tradução do inglês é “Ritmo e Poesia”) junto à população cascavelense. O Rap é uma música eletrônica feita por um operador de discos, que produz bases e colagens rítmicas sobre as quais, às vezes, articulam-se outros ______ [ 240 ]

elementos, como solos de instrumentos e mixagens. Essa base rítmica é executada por um DJ (Disc-Jockey, do inglês, que significa discotecário), servindo de “fundo” durante a música ao MC (abreviação de “Mestre de Cerimônia”: vinculado ao Rap, refere-se àquele que conduz a festa) ou rapper, que faz soar, então, o chamado “canto falado”. Segundo Pinto, Desenvolvidas pelos DJs, cortar e mixar um disco no outro igualando o tempo para uma transição suave, toma elementos acústicos concretos e performances pré-gravadas de padrões musicais. Assim, diferentemente do Jazz, essas apropriações e transformações não requerem habilidade para compor ou tocar instrumentos musicais, mas para manipular equipamentos de gravação. (PINTO, 2004, p. 4)

Sendo assim, o Rap caracteriza-se como um estilo contemporâneo, que nasceu e cresceu com a tecnologia e fez dessa o meio para a sua forma artística. A melodia, por sua vez, é um elemento secundário neste estilo musical e o principal componente é a “mensagem”. Ele começa a despontar na cidade de Cascavel por volta do ano 2000, com a apreciação e interpretação de músicas de grupos, como Racionais MC’s, que alcançavam grande notoriedade no cenário da música nacional e agradavam a jovens, principalmente, de bairros periféricos da Zona Norte da cidade, como Morumbi, Periollo, Interlagos e Floresta. Os jovens cascavelenses, empolgados com esse estilo, também se propõem a compor suas próprias canções (TREVIZAN, 2012). Este estilo musical que, no Brasil, teve seu berço na cidade de São Paulo hoje tem uma grande aceitação, notadamente, dentre os jovens do referido município, nas diversas classes sociais. Ele ganhou a juventude dos subúrbios de cidades do mundo todo, pois tem em sua origem o intuito de retratar a realidade das periferias e, em alguns casos, tem a pretensão de abordar situações geradas por um sistema social injusto, suas instituições e o consentimento das classes economicamente favorecidas que gozam de regalias permitidas pela exploração dos marginalizados. De acordo com Contier (2005), O rap caracteriza-se pela re-invenção do cotidiano através da oralidade de pessoas comuns que denunciam em suas canções problemas graves vivenciados nas situações sociais extremamente adversas e totalmente negligenciadas pelos Donos do Poder.

O estilo musical Rap traz em sua natureza o inconformismo perante as situações díspares que assolam a população economicamente desfavorecida. ______ [ 241 ]

Trata-se de uma arte de cunho político-ideológico desenvolvida pelos sujeitos da periferia, que tem como base a ótica ideológica adotada pelo Hip Hop, um movimento originário nos Estados Unidos, que tem como pilares e ferramentas de ação para a reforma social o Rap, o Grafite e o Break. Parafraseando a música do rapper Edy Rock do grupo Racionais MCs, “Periferia é periferia em qualquer lugar”, temos que ela existe, assumindo suas configurações próprias em qualquer cidade, porém possui sempre a característica da marginalização de seus moradores e, consequentemente, a predisposição para a indignação e o desejo de equidade social. Nestas circunstâncias, o Rap encontra espaço na periferia de Cascavel, repercute nos bairros de moradores de maior poder aquisitivo e assume para estes sujeitos significados distintos, fazendo soar distintas vozes sociais, que estarão presentes no discurso desses sujeitos. Sobre a presença de vozes sócioideológicas no discurso, Bakhtin esclarece que os enunciados não são indiferentes uns aos outros nem são autossuficientes; conhecem-se uns aos outros, refletem-se mutuamente. [...] o enunciado está repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado no interior de uma esfera comum da comunicação verbal. (BAKHTIN, 1997, p. 316)

Nossos enunciados são produtos de discursos outros, que penetram no psiquismo individual e são avaliados, aceitos, repudiados, combinados, remodulados, resultando em um enunciado que é único e novo, mas, de maneira alguma, genuíno e independente de outros discursos e vozes que circulam no espaço e na história. Eles também serão assimilados por outros sujeitos, sendo um elo no complexo e infinito processo dialógico da linguagem. Segundo os estudos do círculo bakhtiniano, as vozes sócio-ideológicas só podem ser estudadas a partir de sua materialidade (BAKHTIN, 1997), que se concretiza na enunciação, ou seja, no momento da expressão verbal. Ao partirmos dessa constatação, neste estudo, temos o objetivo de identificar e compreender as vozes sócio-ideológicas presentes no discurso da música “Cascavel, quebrada sofrida” do grupo de Rap “Face Humana do Guetto”. O grupo foi formado em 2006, pelos rappers André, Fifo, e Pedro, todos com idade entre 20 e 27 anos e moradores do bairro Morumbi, bairro periférico, situado na Zona Norte do município. Assim como os demais grupos de Rap existentes na cidade de Cascavel, o “Face Humana do Guetto” não possui sites próprios e ainda não conta com a comercializaçao de seus CD’s. Suas músicas também não são executadas nos setores de radiodifusão, a não ser pelo programa “Conexão Periferia”, que ______ [ 242 ]

retornou ao ar, neste ano, pela Rádio Colméia, aos domingos. Suas produções são independendes, organizadas por eles próprios, geralmente, utilizando estúdios caseiros ou outros de baixo custo e câmeras caseiras para elaborarem seus videoclipes; dessa forma, não exercerem, profissionalmente, a atividade de cantores. O DIALOGISMO O dialogismo é o eixo de toda a obra bakhtiniana. O termo pode ser compreendido em um sentido amplo ou em um sentido restrito. No primeiro caso, trata-se da maneira dialógica de se compreender não apenas o funcionamento da linguagem, como todos os acontecimentos do mundo. Pela amplitude desse conceito, ele é a grande contribuição de Bakhtin e de seu círculo de estudos para a Ciência da Linguagem: “O dialogismo funciona assim como pivô de interrogações capitais para a linguística (e não só para ela)” (DAHLET, 1997, p. 69). O dialogismo é uma forma de compreender a interação entre o sujeito e o discurso. Diante da arte plástica ou de uma árvore que seja, mediado por outros discursos, o sujeito interpreta, critica, reformula e cria sentidos por meio da linguagem, pois todos os sentidos que há em nossa consciência são constituídos pela linguagem. Por meio dela, de maneira dialógica (considerando a carga de sentidos que já existe no objeto a ser interpretado e a assimilação que ocorre, por meio de um processo interior do sujeito), o sujeito constrói sentidos para o mundo discursivizado que o cerca. O conceito de linguagem que emana dos trabalhos desse pensador russo está comprometido não com uma tendência linguística de uma teoria literária, mas com uma visão de mundo que, justamente na busca de formas de construção e instauração do sentido, resvala pela abordagem linguístico/ discursiva, pela teoria de literatura, pela filosofia, pela teologia, por uma semiótica da cultura, por um conjunto de dimensões entretecidas e ainda não inteiramente decifradas. A natureza dialógica da linguagem é um conceito que desempenha papel fundamental no conjunto das obras de Mikhail Bakhtin, funcionando como célula geradora dos diversos aspectos que singularizam e mantêm vivo o pensamento desse produtivo teórico. (BRAIT, 1997, p. 92).

O dialogismo, como se pode observar, estará presente na discussão de todas as esferas sobre as quais o círculo bakhtiniano possa se debruçar para compreender. Mais do que a tentativa de explicar fatores linguísticos, é uma ______ [ 243 ]

maneira de compreensão do mundo, o qual só existe a partir da significação que o sujeito projeta no momento da interpretação. A linguagem, ainda que seja também fundamentalmente dialógica e se explique também dialogicamente, é, nesse sentido amplo (compreensão de todas as coisas do mundo), o meio pelo qual o dialogismo acontece. O que se tem é uma infinita ação dialógica, a grosso modo, entre objetividade versus subjetividade, infraestrutura versus superestrutura1, natural versus social. Por isso, Bakhtin é considerado, antes de tudo, um filósofo. Suas reflexões vão além do estudo da linguagem, ainda que, necessariamente, em todos os seus estudos, as reflexões sobre a linguagem estejam presentes. Conforme os estudiosos do círculo bakhtiniano, o dialogismo é a “força que se mantém constante em todos os planos da interação social” (FARACO, 2009, p. 61). Dessa maneira, o sujeito, o discurso, a ideologia, o signo, todos esses conceitos, são explicados como resultado sempre inacabado do dialogismo. O termo “dialogismo”, portanto, não significa, nessa teoria, apenas o ato de conversação entre interlocutores, como o nome pode levar a crer, já que é originário da palavra “diálogo”, mas é algo mais amplo e fundamental para a existência da linguagem e da construção de sentidos. Ele se refere a um diálogo interdependente, contínuo e complexo entre vários “atores”. Por exemplo, tratando-se de uma perspectiva mais ampla, teremos o diálogo já mencionado entre infraestrutura e superestrutura, pensando-se em uma sociedade; se formos afunilando, teremos o diálogo interior de cada sujeito, entre o “eu” e o “outro”, que existe na consciência individual (segundo o filósofo, nas reflexões solitárias dos sujeitos, há ainda “um horizonte social”, um “outro” para quem modulamos o discurso interior, o qual também é dialógico, sendo afetado por várias vozes sociais, transformando-se em um “nós”). Sendo assim, teremos o diálogo entre o mundo interior e o mundo exterior de um único sujeito. Aclara Brait (1997, p. 98) que Por um lado, o dialogismo diz respeito ao permanente diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade. É nesse sentido que podemos interpretar o dialogismo como o elemento que instaura a constitutiva natureza interdiscursiva da linguagem. Por outro lado, o dialogismo diz respeito às relações que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos, que, por sua vez, instauram-se e são instaurados por esses discursos. (grifos nossos).

Assim sendo, se podemos pensar no dialogismo em sentido amplo, ______ [ 244 ]

da forma como o apresentamos aqui, quando o concebemos em sentido restrito, estamos nos reportando ao processo que ocorre na e pela linguagem, durante a construção de sentidos pelos sujeitos em um momento de interação verbal. Nesses termos, Bakhtin explica que o diálogo é a relação de alteridade existente entre duas consciências socialmente organizadas. Sobre a alteridade, explica Dahlet (1997, p. 59): Vindo com a enunciação, a alteridade faz parte da unidade. Essa incorporação do exterior no interior através da enunciação equivale a colocar em crise a unidade do sujeito: para Bakhtin trata-se de atribuir ao sujeito um estatuto que não coincide com o de um só autor.

É na relação de alteridade que os indivíduos se constituem, ou seja, o ser, assim como o signo não apenas se reflete no outro, mas também se refrata. Ocorre um constituir-se e alterar-se constante do sujeito durante a interação verbal, por meio da enunciação, que só é possível pela presença do outro, não dependendo unicamente de sua própria consciência e compondose em algo social. O sujeito se constitui e se transforma sempre por meio de e para o outro, sendo que do outro, que é o interlocutor, a quem o sujeito irá direcionar o discurso, conforme o concebe e segundo entende que este mesmo o concebe, sempre espera um ato responsivo. Sobre o ato responsivo, Camargo (2009, p. 302) esclarece que “o ato responsivo deve ser entendido como aquele realizado por um sujeito social em interação com um ou mais sujeitos”. Quer dizer, da interação entre os sujeitos, será sempre gerada a réplica, quer concordando, discordando, criticando o discurso; de qualquer forma, ele espera sempre uma atitude do interlocutor. E há ainda o outro, ou os outros que habitam o seu mundo interior e interferem na construção do discurso. Afirma Bakhtin ([1941] 1993, p. 147) que “aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores”. A palavra alheia está sempre presente nos atos de interpretação, sendo um dos fatores determinantes para a construção dos sentidos pelo mesmo. Segundo Camargo (2009), A palavra não pertence ao falante unicamente, é necessário considerar o papel do “outro”. Neste raciocínio, o falante não é o “Adão bíblico que nomeia o mundo pela primeira vez”. O homem encontra um mundo já articulado, elucidado, avaliado de muitos modos diferentes. (CAMARGO, 2009, p. 301).

Essa interação é um processo de recepção/compreensão ativa, que envolve tanto o locutor quanto o interlocutor. Esse processo é o que o círculo ______ [ 245 ]

bakhtiniano irá chamar de diálogo ou dialogismo em sentido restrito. E esse mesmo processo ocorre com o signo e com a língua. Reportando-nos a Bakhtin ([1979] 2000, p. 410), temos que Não há uma palavra que seja a primeira ou a última e não há limites para o contexto dialógico (ele se estira para um passado ilimitado e para um futuro ilimitado). [...] Em qualquer momento do desenvolvimento do diálogo, existem quantidades imensas, ilimitadas de sentidos contextuais esquecidos, mas em determinados momentos do desenrolar posterior do diálogo eles são relembrados e receberão vigor numa forma renovada (num contexto novo).

O dialogismo é um fator presente, independente da temporalidade, mas só é possível nela. Discursos passados são retomados, remodelados pela possibilidade da refração dos signos e dos sujeitos, pelas posições axiológicas com as quais os sujeitos, por meio de sua criatividade (também sócioideológica), participam da construção dos mesmos signos. Isso quer dizer que o Rap, enquanto signo, e os rappers, enquanto sujeitos de um mesmo horizonte social, são dialógicos e as ideologias presentes neles são inúmeras. Afirma Barros (1999, p. 2), que, para os estudiosos do Círculo de Bakhtin, o dialogismo é a “característica essencial da linguagem e princípio constitutivo, muitas vezes mascarado, de todo discurso”. O dialogismo, então, é um fator constitutivo da linguagem, funcionando como a maneira pela qual esta se organiza e, muitas vezes, é mascarado, pois não está manifesto no discurso. Observemos os versos da canção “O mano de estilo”, do grupo “Sai da Reta”: “Aqui na minha city eu sou considerado / Meu estilo de vida é bem diferente / Tá mais louco agora que eu virei repente”. As vozes que constroem esse discurso estão mascaradas: percebemos a vinculação da conquista de status social do sujeito com o fato de ele começar as atividades de rapper. As vozes sociais que ecoam, então, são o direcionamento ideológico que consolidou o Hip Hop nos Estados Unidos e teve continuidade no Brasil, por meio das posses que os elementos dessa cultura trazem, como forma de ascensão social ou, pelo menos, de desenvolver autoestima pela arte e pelo pertencimento a um grupo. Quando concordamos que o discurso é mascarado, não estamos afirmando que o sujeito não tem conhecimento dessas vozes (ao menos, não necessariamente), não estamos nos reportando ao “inconsciente”, um dos fundamentos da Análise do Discurso de orientação Francesa. Queremos dizer que o discurso é heterogêneo, ou seja, ele é construído por várias vozes sociais, pelo “já-dito” e as mesmas vozes podem estar evidentes no discurso, quando são expostas por meio da marcação de aspas, no discurso direto, ______ [ 246 ]

ou com a contextualização, quando se utiliza o discurso indireto, mas que também podem não estar visíveis, como é o caso da letra da música. Essas vozes ideológicas que identificamos não aparecem nem em discurso direto, tampouco em discurso indireto. Elas estão nas entrelinhas, escondidas e são apreendidas pela memória discursiva. Essa enunciação interessa aos estudos bakhtinianos. Em suma, o dialogismo é o resultado do entrecruzamento e do trabalho de todos os elementos que pretendemos explanar aqui: sujeito, discurso e ideologia, ao mesmo tempo em que é o meio para o trabalho e a existência desses fatores e pode ser entendido em sentido amplo, quando pensamos no diálogo que há entre o sujeito e o mundo, ou em sentido restrito, considerando o diálogo, enquanto interação verbal, entre o sujeito e o seu interlocutor. AS RIMAS ENQUANTO GÊNEROS DO DISCURSO Os discursos, sendo ao mesmo tempo o confronto e o resultado do processo dialógico, encontram sua materialidade no cotidiano a partir de formas mais ou menos estáveis, as quais são denominadas por Bakhtin (2000) de gêneros do discurso. Certifica o filósofo que “apenas o contato entre a significação linguística e a realidade concreta, apenas o contato entre a língua e a realidade – que se dá no enunciado – provoca o lampejo da expressividade” (BAKHTIN, [1979] 2000, p. 311). Isso quer dizer que a interação verbal surge da necessidade humana e da realidade concreta de uma atividade que é social. Conforme o autor, “um trabalho de pesquisa acerca de um material linguístico concreto (...) lida inevitavelmente com enunciados concretos (escritos e orais), que se relacionam com as diferentes esferas da atividade e da comunicação” (BAKHTIN, [1979] 2000, p. 282). Dessa forma, se para analisar um dado discurso, é impossível não considerá-lo enquanto material linguístico concreto e se a materialidade se dá nos gêneros, para qualquer estudo de processos discursivos é necessária a delimitação do material a ser estudado dentro de um gênero do discurso. A análise baseada na concepção de gênero permite ser apropriada para os estudos do discurso pela completude que o termo engloba. Quando se fala em gênero de discurso, está-se levando em conta que os enunciados são concretos e únicos. Quer dizer, são concretos porque possuem uma historicidade, não surgiram do nada, ideal ou abstratamente, mas foram ______ [ 247 ]

construídos pelos sujeitos: “São o retrato dos usos já feitos anteriormente, em várias atividades humanas e são a memória e o acúmulo da história de suas utilizações.” (GEG, 2009, p.50). Quando o indivíduo aprende uma língua, ele aprenderá e será condicionado por modelos mais ou menos prontos e já existentes. Dessa maneira, seus discursos irão se enquadrar nesses padrões pré-construídos, os quais nada mais são que os gêneros. Entretanto, os enunciados são, também, únicos, pois este enquadramento não é passivo. O sujeito que se utilizará do discurso o fará em um determinado contexto de produção, considerará seu interlocutor, evidenciará seu estilo próprio, haverá, portanto, uma ação dialética, uma interação. Parafraseando Bakhtin/ Voloshinov ([1929], 1999, p. 176), Não importam quais sejam as intenções que o falante pretenda transmitir, quais erros ele cometa, como ele analise as formas, misture-as ou combineas, ele nunca criará um novo esquema linguístico nem uma nova tendência na comunicação sócio-verbal. As suas intenções subjetivas terão um caráter criativo apenas quando houver alguma coisa que coincida com tendências na comunicação sócio-verbal dos falantes em processo de formação, de evolução; e essas tendências dependem de fatores sócio-econômicos.

A autonomia, a criatividade e a liberdade do sujeito para a elaboração de novas formas discursivas, então, está também, condicionada a fatores sócio-econômicos. Assim, evidencia-se o selo do social na individualidade, porém o novo e o criativo tomam seus espaços quando há a evolução nas formas discursivas, fato que, desde o século XX, com a modernidade, vem ocorrendo mais aceleradamente. São incontáveis os gêneros discursivos que hoje habitam a vida discursiva dos falantes; dentre tantos, podemos citar o poema, a canção, a fábula, a carta, o relatório, a ata, os artigos científicos, dissertações, teses, a reportagem, a notícia, a tira, etc.. Esses gêneros do discurso estão vinculados a uma esfera social, ou seja, a um espaço social e discursivo, correspondente a esferas de atividade humana e a domínios discursivos: o jornalístico, o literário, o jurídico, o religioso, o científico, o familiar, entre outros. No caso de nosso material linguístico, trata-se de um discurso que faz parte da esfera social literária, uma vez que, apesar da maioria dos Rap`s apresentarem uma linguagem mais objetiva do que poética, existe a preocupação com a rima, com a métrica e com o ritmo, características semelhantes a de um poema. A esfera social determina que gênero será usado, pois, dependendo de onde o sujeito se encontra para proferir o discurso, este será de uma determinada forma. Desse modo, dentro da esfera literária, consideramos ______ [ 248 ]

o Rap enquanto pertencente ao gênero música, por suas características constitutivas: por possuir melodia e ritmo. Vinculado ao gênero, determinando-o e vice-versa, está o conteúdo temático (o assunto e seu contexto de produção: Quem o produziu? Para quem? Quando? Onde? Qual é o veículo de circulação? Qual é o suporte?). Além do conteúdo temático, a enunciação também está atrelada à construção composicional (que corresponde à forma com que um discurso é construído, à estrutura em si, ao formato do texto) e ao estilo (que são as marcas linguísticas que cada indivíduo deixa transparecer no texto: recursos lexicais, fraseológicos, etc.). Segundo Bakhtin, “esses três elementos se fundem no todo do enunciado” (BAKHTIN, [1979] 2000, p. 279). Nos pressupostos bakhtinianos, é preciso considerar, ainda, que a diversidade e heterogeneidade dos gêneros existentes não prejudicam a delimitação do estudo, mas, ao contrário, constituem uma riqueza a ser explorada. Para melhor definir e delimitar os gêneros, é possível classificá-los em Gêneros Primários e Gêneros Secundários. Os primários são aqueles simples, frutos de uma comunicação imediata, espontânea, como uma conversa entre amigos ou familiares, sem preocupação com a construção do discurso. Os secundários são os de natureza mais complexa, elaborada, produzidos em uma interação organizada e desenvolvida, como uma carta comercial, uma narrativa literária, uma notícia, entre outros. (BAKHTIN, [1979] 2000, p. 280-281). Assim, o Rap é delimitado como gênero secundário, porque, no momento de sua expressão, há a preocupação com a sua elaboração: é preciso rimar, ter um campo léxico que atraia o ouvinte, ter ritmo, melodia. A IDEOLOGIA E AS VOZES SOCIAIS Pode-se falar em duas formas de sistemas ideológicos existentes: os sistemas ideológicos constituídos e os sistemas ideológicos do cotidiano. Segundo Bakhtin/Voloshinov ([1929], 1999, p. 118), “os sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência, da arte e da religião cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano”. Assim sendo, é das relações das consciências individuais, dos discursos que, ideologicamente, formulam-se no cotidiano que se formam os discursos dos sistemas constituídos. Assim, assegura-se que os signos não são constituídos por meio de imposições dos sistemas, mas deles são também formadores. Por meio dos sistemas ideológicos do cotidiano, mais flexíveis e sensíveis que os constituídos, é que se podem ______ [ 249 ]

desencadear as mudanças tanto nas superestruturas, quanto na infraestrutura socioeconômica (Ibidem, p. 120). Ao concordar com o parágrafo acima, admitimos, então, que o discurso que se desenvolve no Rap não é apenas reflexo do sistema constituído, mas, por ser originário da realidade social da periferia e estar presente cotidianamente na vida dos sujeitos, caracteriza-se como parte do sistema ideológico do cotidiano, sendo, assim, flexível e possível de promover mudanças nas superestruturas. Já que ‘ideologia’ é tratada de diversas maneiras pelas variadas teorias, é importante ressaltar que, para o círculo bakhtiniano, ela é utilizada para designar o todo da vida não material de uma sociedade, que, por alguns, é chamado de produção espiritual. O termo é usado para designar o campo que envolve a ciência, a filosofia, a religião, a ética, o direito, a arte, enfim, a superestrutura. Ocorre, também, a referenciação do termo com um caráter axiológico (avaliativo). Sendo assim, uma vez que todo enunciado ocorre na esfera de uma das ideologias (no sentido das produções não materiais da sociedade), esse próprio discurso apresentará uma posição avaliativa, a qual depende das ideologias que convivem no universo do sujeito (FARACO, 2009, p. 46). Compreendendo que o signo é tido como o local mais propenso para a identificação das ações ideológicas e, assim, das lutas de classes, entende-se que a consciência é repleta dos confrontos ideológicos que habitam os signos. Assegura Bakhtin (1998, p. 82) que “é possível dar uma análise concreta e detalhada de qualquer enunciação, entendendo-a como unidade contraditória e tensa de duas tendências opostas da vida verbal”. Essas forças contraditórias são as forças centrípetas e centrífugas: aquela tenta impedir o plurilinguismo (existências de várias vozes socioideológicas), tentando manter a forma ideologicamente homogênea da língua/signo; esta age de forma dinâmica e promove a mudança, favorecendo a estratificação dos signos, transformandoos em elementos sócio-ideológicos. As forças centrípetas tendem à unificação e centralização dos signos e à canonização de certos sistemas ideológicos. As forças centrífugas tendem à descentralização, à desunificação e ao plurilinguismo. O que desencadeia as forças centrífugas e torna o signo algo instável e mutável, por sua vez, é o embate dos distintos índices de valor (provindos da situação socioeconômica diferenciada de cada grupo). Em outras palavras, o signo é plurivalente: refrata e reflete. Para aclarar o processo de reflexo e de refração, recorremos à citação a seguir: ______ [ 250 ]

Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: eles são mutuamente correspondentes. (BAKHTIN/ VOLOSHINOV, [1929] 1999, p. 32).

O reflexo, portanto, é a concepção do objeto/signo em sua forma imediata. Podemos utilizar o exemplo citado pelo próprio filósofo: o pão e o vinho não têm, em sua natureza, necessariamente, a associação com algo sagrado. Tomam esse aspecto no momento do ritual da comunhão cristã (Idem, p. 32). E isso só foi possível, porque há, por trás dessa significação, uma história e uma ideologia, que foram construídas dialogicamente por meio da interação entre os sujeitos em seu espaço e circunstâncias. No processo de significação, uma dada realidade (reflexo) é atravessada por índices de valor e é neste momento que a refração ocorre. Quer dizer, os sujeitos, ao interpretar, ao assimilar, ao participar de um diálogo (seja verbal, com interlocutor visível, ou não), não detêm pacificamente o sentido do signo, mas o atravessam com toda a sua vivência ideológica (de onde se originam os índices de valor), modificando sua realidade primeira. Os índices de valor dependem de cada grupo social com o qual os sujeitos têm contato e das várias vozes sociais que neles se evidenciam, as quais: não coexistem pacificamente com outros elementos da existência a ela previamente integrados, mas entram em luta com eles, submetem-nos à reavaliação, e deslocam sua posição no interior da unidade do horizonte avaliativo. Este processo gerativo dialético se reflete na geração de propriedades semânticas na língua. Uma nova significação emana de uma velha e por meio dela, mas isso acontece de tal modo que a nova significação pode entrar em contradição com a velha e reestruturá-la (BAKHTIN/ VOLOSHINOV [1929] 1999, p. 106).

As vozes sociais, por assim dizer, chocam-se com conceitos e signos ideológicos que constituem os sujeitos. Esse choque acarreta a reformulação desses signos, transformando-os, remodelando-os. No caso do Rap, as várias vozes que ecoam e constituem os sujeitos cascavelenses se confrontam com aquelas que compõem o Rap que chega e desse confronto resultará outro signo. Em suma, o Rap cascavelense, por conta do contexto socioideológico em que se encontra, terá sentidos diferentes daqueles das grandes metrópoles. Afiança Dahlet (1997, p. 60) que o ganho teórico do dialogismo ______ [ 251 ]

bakhtiniano “tem consequências imediatas na maneira de conceber o discurso, como sendo uma ‘construção híbrida’, (in)acabada por vozes em concorrência e sentidos em conflito”. Os estudos do Círculo de Bakhtin, ao ponderarem sobre o dialogismo, inevitavelmente encontraram a ideologia que se apresenta nas vozes, que são os elementos presentes no dialogismo e que compõem o sujeito, num processo conflituoso e permeável, em que as vozes ideológicas se chocam, se relacionam, sendo determinante na construção do discurso. E, se interferem no discurso, por conseguinte intervêm no sujeito. De acordo com Brandão (1997, p. 284), o sujeito pode assumir diferentes estatutos no interior do discurso, porque não é marcado pela unidade, mas sim pela sua dispersão, dispersão que reflete a descontinuidade dos planos de onde fala, em decorrência as várias posições possíveis de serem assumidas pelo falante.

Posto que o sujeito é permeado por várias vozes sociais, ele não é marcado pela unidade, podendo assumir várias posições, de acordo com a voz social/ideológica que “soar mais alto”. Isso quer dizer que a ideologia exerce um papel fundamental e determinante na ação dialógica de constituição do discurso e do sujeito, porém essas vozes estão mascaradas por um discurso que se demonstra monológico, genuíno e sem história. Não obstante, a ideologia está presente no discurso, como parte presumida do enunciado. A esse respeito, Brait (1999, p. 19-20, grifo nosso) assegura que, para Bakhtin, o enunciado concreto, como um todo significativo, compreende duas partes: a parte percebida e realizada em palavras e a parte presumida. [...] Se a palavra presumido pode levar a pensar na situação com uma coisa na mente do falante, como um ato subjetivo, ele demonstra que não é nesse sentido que o conceito está sendo usado. Segundo Bakhtin, é preciso considerar que, no processo de interação entre falantes, o individual e o subjetivo têm por trás o social e o objetivo.

O enunciado, portanto, compõe-se de uma parte percebida, a parte exteriorizada em palavras pelo sujeito, a parte verbal. Da mesma forma, constitui-se por uma parte presumida, que não está evidente no discurso e apenas é possível de ser suposta. Essa suposição, no entanto, não está situada em território insólito. Há uma base material, um contexto extraverbal, o qual é alcançado pela memória discursiva. Sendo assim, perceber a parte presumida do discurso não quer dizer fazer interpretações infundadas, baseadas em constatações e julgamentos subjetivos. Como assegura a estudiosa, há, por trás do individual e do subjetivo, um contexto social e objetivo. ______ [ 252 ]

AS VOZES IDEOLÓGICAS E O TERCEIRO DESTINATÁRIO As vozes que formam o mundo ideológico do sujeito são a base para que ele eleja as suas verdades e discurse aos seus interlocutores a partir delas e para elas. Em outras palavras, quando estamos em diálogo (ainda que estejamos a sós, escrevendo um texto, por exemplo), é como se existisse um terceiro avaliando nossas posturas e o nosso discurso. Um terceiro a quem queremos agradar, convencer, nos justificar, enfim, de quem desejamos aprovação. Um terceiro superior ao meu interlocutor imediato, que participa do diálogo e é superior a mim, conhecedor de tudo e guardador da verdade: um superdestinatário. Bakhtin esclarece que O enunciado sempre tem um destinatário (com características variáveis, ele pode ser mais ou menos próximo, concreto, percebido com maior ou menor consciência) de quem o autor da produção verbal espera e presume uma compreensão responsiva. Este destinatário é o segundo (mais uma vez, não no sentido aritmético). Porém, afora esse destinatário (o segundo), o autor do enunciado, de modo mais ou menos consciente, pressupõe um superdestinatário superior, o terceiro, cuja compreensão responsiva absolutamente exata é pressuposta seja num espaço metafísico, seja num tempo histórico afastado. (O destinatário de emergência). Em diferentes épocas, graças a uma percepção variada do mundo, o superdestinatário, com sua compreensão responsiva, idealmente correta, adquire uma identidade concreta variável (Deus, a verdade absoluta, o julgamento da consciência humana imparcial, o povo, o julgamento da história, a ciência, etc.). (BAKHTIN, 1997, p. 356).

O terceiro destinatário, também chamado de superdestinatário pelo filósofo russo, é, então, um destinatário de ordem superior, como um juiz que observa e julga o sujeito, para monitorar se o mesmo está se portando de acordo com a verdade. Esse superdestinatário é, por assim dizer, a própria consciência do indivíduo, constituída pelas vozes sócio-ideológicas que ele assimilou e a partir das quais configurou seus julgamentos de valor. O superdestinatário é a voz que predomina, mas que é afetada pelas demais vozes que se chocam e concorrem pela vontade de homogeneização da consciência individual do sujeito. Segundo observou Bakhtin, pode ser Deus, a ciência, o povo, ou qualquer outro discurso que predomine na consciência individual do sujeito e que, provavelmente, predomina na comunidade deste sujeito, sendo uma crença coletiva, social e enraizada no sujeito. Referir-se ao terceiro destinatário ou superdestinatário é referir-se ao discurso ideológico ou às vozes sociais que constituem o sujeito e a partir dos quais e para quem ______ [ 253 ]

este formula e direciona o seu enunciado. Segundo Bakhtin (1997, p. 356), o homem busca sempre uma responsividade que não se detenha ao imediato, ou seja, ao seu parceiro de diálogo (o segundo destinatário). Ele quer ser ouvido por uma ordem superior, por um ser maior do que ele e seu destinatário imediato, quer que sua palavra ultrapasse o imediato de modo ilimitado. O estudioso adverte que O terceiro em questão não tem nada de místico ou de metafísico (ainda que possa assumir tal expressão em certas percepções do mundo). Ele é momento constitutivo do todo do enunciado e, numa análise mais profunda, pode ser descoberto. (BAKHTIN, [1979] 2000, p. 356).

O terceiro destinatário, assim, não se limita a uma crença religiosa. Não está situado fora do sujeito (não apenas fora), independente dele, ainda que o mesmo acredite que esteja. São valores construídos socialmente com o passar do tempo, em que há a participação da sociedade e da individualidade do sujeito. O processo que ocorre, portanto, é um processo de objetivação do próprio sujeito. Nas palavras do estudioso, “Ao objetivar-me (ao situarme fora), adquiro a possibilidade de uma relação dialógica comigo mesmo” (BAKHTIN, [1979] 2000, p. 350). Quer dizer, apresentar o meu discurso para o julgamento do terceiro destinatário é situar-me fora de mim e julgar meu próprio discurso, segundo meus próprios princípios (que foram construídos socialmente). É agir conforme minha consciência. O que é importante ressaltar e que não podemos perder de vista é que essa consciência individual faz parte de uma consciência coletiva; os estudos bakhtinianos afirmam que organizamos nosso discurso para o outro (o nós), a comunidade e, paradoxalmente, para o nosso julgamento. Elegemos vozes e damos a elas prioridades para nos constituirmos enquanto sujeitos e elegemos palavras, construções sintáticas, entonações, gestos, de acordo com nossos propósitos e nosso interlocutor para nos constituirmos enquanto autores de nossos discursos. Em conformidade com Faraco (2009, p. 87), Autorar, nesta perspectiva, é orientar-se na atmosfera heteroglóssica; é assumir uma posição estratégica no contexto da circulação e da guerra das vozes sociais; é explorar o potencial da tensão criativa da heteroglossia dialógica; é trabalhar nas fronteiras.

Autorar, portanto, não é ser o dono de um discurso que se formulou dentro de mim, por meio da minha criatividade, mas é utilizar dessa criatividade para assumir uma posição dentre a guerra dessas vozes que ecoam dentro de ______ [ 254 ]

mim e reformulá-las em uma nova voz, um novo signo, fruto do alheio e do individual. Se autorar significa reformular, quando pensamos no Rap, parece que se acentua ainda mais a concepção de que os signos têm modificada sua natureza primeira, quando entram em contato com outros grupos sociais. Isso porque ele tem a intenção de abordar características da realidade local: As letras longas, permeadas por expressões locais, exprimem o universo da periferia. No rap a mensagem é sempre pessoal, por isso os rappers recusamse a cantar músicas de outros rappers, mesmo que tenham alcançado destaque na indústria fonográfica (SILVA, 1999, p.31)

Isso faz com que o elemento cultural, o signo Rap, seja ainda mais afetado pelos valores sociais locais. O superdestinatário aqui, quer dizer, a ideologia Hip Hop, é misturado com questões da realidade local, com a memória discursiva e com a individualidade dos sujeitos, pois, necessariamente, o Rap tem essa característica da interferência da realidade local que se choca com uma ideologia universal da cultura. COMO AS VOZES PODEM SER “OUVIDAS” Uma análise a partir dos gêneros buscará o querer-dizer do texto/ discurso perante seu contexto e a significação dele no mundo. Esclarece Faraco (2009, p. 130): “E qual seria o ‘significado real do gênero’? Precisamente a correlação entre formas e atividades. O gênero não deve ser abstraído da atividade, de suas coordenadas de tempo-espaço, das relações entre os interlocutores”. É preciso considerar, portanto, a interação dos envolvidos no discurso (quem discursa, para quem discursa, o contexto em que discursa, sobre o que discursa, como discursa, como este discurso é recebido pelo interlocutor e como este atua responsivamente, sendo determinante para o processo discursivo). De acordo com Barros (1999, p. 08), As classes sociais utilizam a língua de acordo com seus valores e antagonismos. Da língua, complexa e viva, surgem os discursos ideológicos que, na maioria das vezes, escolhem um pólo, um dos valores e procuram mascarar o dialogismo constitutivo da língua ou suas contradições internas.

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Dessa forma, os sujeitos fazem uso da linguagem segundo suas necessidades e seus valores e estes, muitas vezes, estão mascarados no discurso e só são perceptíveis se levarmos em conta a memória discursiva. Assevera Brait (1999, p. 19) que “Bakhtin se pergunta como se relaciona a extensão extraverbal com a extensão verbal, ou seja, como o dito se relaciona com o não-dito”. Assim, a análise a partir dos pressupostos do círculo bakhtiniano buscará perceber o extraverbal, ou seja, as vozes ideológicas presentes no corpo verbal, ou seja, no material linguístico selecionado. Segundo Bakhtin (2000, p. 48), “O psiquismo subjetivo é o objeto de uma análise ideológica, de onde se depreende uma interpretação sócioideológica”. Em outras palavras, estudar o superdestinatário e as vozes ideológicas que formam o sujeito é fazer suposições sobre seu psiquismo subjetivo, sempre, é claro, baseando-se na concretude das situações e da memória social; a interpretação do pesquisador é de natureza sócio-ideológica. A análise que nos propomos a realizar, portanto, buscará perceber o “outro” (nós) que se esconde atrás do mascaramento do dialogismo, que é constitutivo da linguagem, o superdestinatário, o terceiro destinatário, ou, por assim dizer, as vozes sócioideológicas presentes no discurso. É importante ressaltar que o próprio olhar do pesquisador sobre o discurso a ser analisado é um acontecimento dialógico e interfere no resultado, sendo parte dele. O estudioso da linguagem adverte que A compreensão do todo do enunciado e da relação dialógica que se estabelece é necessariamente dialógica (é também o caso do pesquisador nas ciências humanas); aquele que pratica ato de compreensão (também no caso do pesquisador) passa a ser participante do diálogo, ainda que seja num nível específico (que depende da orientação da compreensão ou da pesquisa). (BAKHTIN, [1979] 2000, p. 355).

Durante a análise das canções, portanto, nós estaremos fazendo parte do diálogo desses discursos e a nossa condição de sujeitos, constituídos por vozes sócio-ideológicas e por ações axiológicas, irá envolver-se no complexo sistema dialógico. CASCAVEL, QUEBRADA SOFRIDA FACE HUMANA DO GUETTO 1. 2. 3.

Sobrevivendo em meio à guerra vou cantando a realidade Meu microfonte é minha arma pra derrubar os covardes Seria bem pior se eu estivesse de oitão na mão ______ [ 256 ]

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Eu encontrei no Rap a minha salvação Me desculpe se minhas rimas são agressivas É porque eu não vejo felicidade pra periferia Porque eu vejo a maldade, desigualdade Famílias de luto no nosso dia-a-dia É raro o dia de alegria pra periferia Mas, tudo isso poderia ser diferente Tipo, se o povo da favela fosse tratado como gente Se o moleque de rua não fosse chamado de delinquente A paz tá tentando viver, mas tá difícil Porque tem muita polícia matando Porque tem muito político roubando Porque tem muito rico, o meu povo humilhando O HU está lotado: vinte pessoas pra uma vaga Tá ficando complicado Se sair vivo, você já é um santo Aqui em Cascavel pra se dar bem Tem que ter dinheiro em banco Hospital particular tem bastante, um montão Público, fora! O citado é PAC1, PAC2 Dez horas na fila com pneumonia Um abraço, já se foi!

Refrão: 26. Cascavel, quebrada sofrida do Oeste do Paraná 27. Aqui o filho chora e a mãe não vê 28. Truta, pode acreditar! 29. 30. 31. 32. 33. 34. 35. 36. 37. 38. 39. 40. 41. 42. 43. 44. 45. 46. 47.

Medalha de honra ao mérito no peito de cuzão Cambé ganha prêmio atira em ladrão Periferia, cenário ideal pro Batatinha ganhar ibope em rede nacional Mostrando um favelado no chão, esticado Família de luto, é dia de finados Enquanto isso, do outro lado, PM folgado anda de carro importado Se acha o gatinho no rol de BMW Puxa-saco do governo, está pronto pra ação Pra eles, tirar a vida é a única solução Mas, muito cuidado, o jogo vira, a história pode mudar Periferia é a união! Nós só queremos melhores condições Condições de sobreviver Porque no mundo em que vivemos, a lei é matar ou morrer Choque por que? De tanta revolta no peito, tanto preconceito Liberdade de expressão é meu único direito Pra sociedade eu não passo de um favelado De chinelo de dedo, de calção rasgado Sou seu pesadelo acordado ______ [ 257 ]

48. 49. 50. 51.

Com um microfone na mão Me torno perigoso pra político ladrão Não quero caixão lacrado Só quero que o meu povo seja respeitado

Refrão: 52. Cascavel, quebrada sofrida do Oeste do Paraná 53. Aqui o filho chora e a mãe não vê 54. Truta, pode acreditar! 55. 56. 57. 58. 59. 60. 61. 62. 63. 64. 65. 66. 67. 68. 69. 70. 71. 72. 73.

Com ódio no coração , A polícia brasileira está fazendo justiça com as próprias mãos O meu povo não aguenta tanta humilhação Cinco cabeças pra rachar um pão Seu João trabalha no dia-a-dia Quinhentos e dez no final do mês pra sustentar a família Aluguel, luz e água pra pagar Situação crítica. Pode acreditar! E rico ainda fala que o povo da favela tá errado Aí, playboy folgado, Deixe de lado sua Mercedes, sua casa equipada Vem pra favela pra viver de papelão e catar lata Acho que não passaria da primeira quadra Pra sobreviver aqui é necessário mais que proceder É preciso ter atitude, respeito Respeitar cada cara do seu jeito. Aí, sociedade rica, pode vir nos processar To com o microfone na mão E só a morte é quem pode nos parar

Refrão: 74. Cascavel, quebrada sofrida do Oeste do Paraná 75. Aqui o filho chora e a mãe não vê 76. Truta, pode acreditar! 77. 78. 79. 80. 81.

Obrigado, Deus, pelo dom de seguir cantando Face Humana do Gueto, expressão do que acontece na periferia Nós chegamos, agora pra derrubar vai ser uma guerra! Mano Fifo, aliado Pedro e André Assim que é!

O CONTEÚDO TEMÁTICO Falando dos locais mais periféricos da cidade de Cascavel, o grupo “Face Humana do Guetto” na música “Cascavel, quebrada sofrida”, em ______ [ 258 ]

alguns momentos, parece dirigir-se a um interlocutor que faz parte do seu círculo de convivência, o que percebemos nos versos: “Se sair vivo, você já é um santo”, “Aqui o filho chora e a mãe não vê, truta, pode acreditar”; em outros, entretanto, muda a direção do discurso, falando diretamente à classe alta e ao governo cascavelenses: “Mas muito cuidado, o jogo vira, a história pode mudar”. Aqui, o interlocutor é a polícia, que, conforme o relato do sujeito, tira a vida dos moradores da periferia por motivos banais e sem pesar na consciência. Mais adiante, o discurso é direcionado à burguesia cascavelense: “Sou seu pesadelo acordado”, “Aí, playboy folgado, deixe de lado sua Mercedes e sua casa equipada” e “Aí, sociedade rica, pode vir nos processar”. Está presente neste Rap uma revolta magoada, pela desigualdade social da população da periferia: “A paz tá tentando viver, mas tá difícil / Porque tem muita polícia matando / Porque tem muito político roubando / Porque tem muito rico o meu povo humilhando”, “O HU está lotado: vinte pessoas para uma vaga”, “Aqui em Cascavel pra se dar bem / Tem que ter dinheiro em banco” e “Cinco cabeças pra rachar um pão / Seu João trabalha no dia-a-dia / Quinhentos e dez no final do mês pra sustentar a família”. O sujeito menciona a realidade do cotidiano das pessoas que moram nos bairros de classe econômica desprivilegiada, narrando as dificuldades e o padecimento por conta da precariedade do sistema de saúde, da baixa remuneração e da desigualdade que, segundo relata a música, é advinda das ações de políticos corruptos e da força policial que coage os cidadãos da periferia, sem ter motivos para tanto. O sujeito reclama do preconceito que a população da periferia tem de aturar por não ter as mesmas condições financeiras, sociais, culturais e educacionais que as classes de maior poder aquisitivo têm: “Mas, tudo isso poderia ser diferente / Tipo, se o povo da periferia fosse tratado como gente / Se o moleque de rua não fosse chamado de delinquente”, “Só quero que o meu povo seja respeitado” e “Meu povo tá cansado de ser humilhado”. Além de as classes detentoras do poder e os sistemas constituídos serem, também, responsáveis pela desigualdade social, essa mesma classe subjuga os moradores da periferia e os coloca em um patamar inferior pela sua condição, taxando, não raras vezes, os moradores de regiões pobres da cidade, de marginais e delinquentes, como “favelado de chinelo de dedo e calção rasgado”. Os momentos da enunciação em que podemos notar maior exaltação são os que constroem sentenças concessivas. Em outras palavras, ainda que o sujeito exponha toda a realidade dificultosa que o envolve, não convence a elite e os funcionários do governo da legitimidade da sua causa ______ [ 259 ]

e dos motivos que o levam a criticar o sistema. Essa percepção se evidencia do verso trigésimo terceiro ao trigésimo oitavo da canção e do sexagésimo segundo ao sexagésimo sexto. Eis alguns exemplos: “Puxa-saco do governo, está pronto pra ação / Pra eles tirar a vida é a única solução” (referindo-se ao policiamento) e “Situação crítica. Pode acreditar / E o rico ainda fala que o povo da favela tá errado”. Estar em uma condição desfavorável pela convenção entre governo e elite e ainda por este motivo ser alvo de preconceito é o que causa mais indignação e leva o sujeito a se dirigir agressivamente a estes atores sociais: “Medalha de honra ao mérito no peito de cuzão”, “Família de luto, é dia de finados / Enquanto isso, do outro lado / PM folgado anda de carro importado” e “Aí, playboy folgado / Deixe de lado sua Mercedes e sua casa equipada / Vem pra favela pra viver de papelão e de catar lata”. Há, além disso, um ataque à mídia, caracterizada como sensacionalista, que se compraz com a violência contra os marginalizados para atingir ibope para sua rede de TV: veja-se: “Periferia, cenário ideal pro Batatinha ganhar ibope em rede nacional / Mostrando um favelado no chão, esticado”. Do primeiro ao sétimo verso, o sujeito assinala o Rap como forma de protesto contra a conjuntura em que se insere. Sendo assim, o signo Rap muda de significação: de arte passa a ser uma arma pela defesa dos direitos dos moradores da periferia. O mesmo ocorre do verso quadragésimo sétimo ao quadragésimo nono e nos versos septuagésimo segundo e terceiro. Em se tratando do suporte, ou seja, a melodia, o ritmo, a musicalidade em si, é composta também de forma a colaborar com o seu objetivo: Há muito ligado à violência das ruas, o rap também exibe uma violência estética. A força rápida e intensa de seu ritmo, seus métodos de samplear e arranhar discos, seu estilo agressivamente alto e confrontante dão ao rap o vigor estético que aumenta a energia e a consciência de seus ouvintes. (SHUSTERMAN, 2006, p. 70).

Para o querer dizer do Rap, ou seja, para retratar a violência (todos os tipos de violência possíveis) que existem na periferia e o descaso do sistema, ele é esteticamente elaborado de maneira a expressar e a traduzir essas situações. O suporte corresponde, ainda, aos locais e modos em que o gênero é veiculado: nesse caso, as músicas estão expostas na internet, em sites como Youtube, redes de relacionamento como Facebook e Orkut, em pen drives e CD`s (Compact Disc) criados pelos próprios rappers, o que demonstra o caráter alternativo e popular das produções, já que não são veiculadas pela mídia institucionalizada. ______ [ 260 ]

A canção está composta por uma introdução que parece querer causar a sensação de estresse e de tensão, que se repete como plano de fundo da música do início ao fim. Na introdução, foi colocado o som que imita uma arma sendo engatilhada, que intensifica o clima tenso e produz um efeito de agressividade. Esse recurso é utilizado em vários momentos. O suporte deste Rap é essencial para a mensagem que o discurso quer transmitir: um discurso revoltado e agressivo, mas uma agressividade canalizada e executada por meio da música. Esta composição circula em shows de que o grupo participa em Cascavel e na região e no site palcomp3.com.br, bem como em CD`s, Pen drives, celulares e sites de redes sociais. De acordo com a essência popular e alternativa do Rap, essas músicas são reproduzidas e circulam em meios populares e de livre postagem e acesso. Quanto à construção composicional, ela se apresenta em versos, às vezes, com refrão e uma letra longa. As mensagens são explícitas, claras e de fácil entendimento. Os rappers empregam gírias e construções fraseológicas típicas do dia-a-dia da periferia, o que aproxima ainda mais as músicas dos sujeitos ouvintes/interlocutores dos subúrbios. O ESTILO Nesta canção, não diferente das demais músicas de Rap, o estilo é o retrato do cotidiano, sem idealização ou adorno poético. Conforme Contier, os sujeitos que fazem o Rap São aqueles que vivem em favelas, barracos, bairros (sem eletricidade, sem saneamento básico, sem asfalto, sem transporte coletivo...) que apresentam em suas canções uma fraseologia específica, com sotaque próprio, seco e anasalado. A criatividade dos rappers fundamenta-se na linguagem comum, em diálogos marcados basicamente pela oralidade. (CONTIER, 2005)

Dessa maneira, a linguagem dessas canções é “nua e crua”. Em “Cascavel, quebrada sofrida”, percebemos um estilo ferrenho e um tanto agressivo. Esse estilo combativo foi alcançado, principalmente, pela seleção semântica e sintática que o sujeito selecionou no momento da enunciação. Essa seleção ocorre de acordo com a situação real da enunciação e de acordo com vários fatores que determinam o discurso: o interlocutor, a quem o discurso é direcionado, o assunto e o contexto de produção, ou seja, quem ______ [ 261 ]

é o sujeito locutor e de onde ele discursa. Este último fator que evidencia os fatores a que o sujeito que discursa está condicionado, que são as vozes sociais assimiladas e reorganizadas por ele no decorrer de sua vivência. Em outras palavras, tudo irá depender da classe social e do grupo cultural, quer dizer, do meio social em que o sujeito se constituiu e da ação da individualidade e criatividade dele, que irá assimilar e organizar essas informações. A esse respeito, (FAITA, 1997, p. 170) assevera que “Os indivíduos não se inscrevem numa mesma ordem de coisas. A normatividade se exprime nas combinações que o enunciado realiza, enquanto sua individualidade resulta da livre concepção, pelo locutor, de seu projeto discursivo”. Sendo assim, se há uma normatividade que depende dos fatores expostos para a escolha sintática e lexical no momento do projeto discursivo do sujeito, há também a reconfiguração desta normatividade pelo mesmo. O espaço social, portanto, é categórico para o estilo verbal. Podemos compreender que a revolta presente na canção é reflexo do meio em que o sujeito se encontra, a periferia, onde presencia a injustiça, o preconceito e a coerção a que os moradores são submetidos. Nos versos “Me desculpe se minhas rimas são agressivas / É porque não vejo felicidade pra periferia / Porque eu vejo a maldade, desigualdade”, o sujeito tem consciência da escolha vocabular que faz e a justifica, argumentando, inclusive, que não há como ser diferente porque a maneira que ele assimila o meio em que vive propicia uma linguagem violenta. Dentre os vocábulos e sentenças selecionados pelo sujeito que conotam agressividade, há “guerra”, “arma”, “derrubar”, “oitão”, “maldade”, “desigualdade”, “luto”, “delinquente”, “roubando”, “humilhando”, “cuzão”, “gambé”, “puxa-saco do governo” “atira”, “ladrão”, “favelado no chão, esticado”, “finados”, “tirar a vida”, “matar ou morrer”, “revolta”, “preconceito”, “sou seu pesadelo”, “me torno perigoso”, “caixão lacrado” e “morte”. Então, notamos um vocabulário pesado, carregado de ira, que faz do Rap, além de um desabafo, uma mensagem que quer ser ouvida e compreendida, tal como se mostra a realidade vivida pelo sujeito no espaço em que vive. Essa relação que há entre Rap e protesto e/ou salvação do mundo do crime faz com que as músicas tenham vocabulários em comum, os quais, na realidade, são utilizados não apenas pelos rappers, como por todos os simpatizantes da cultura Hip Hop. Portanto, é interessante destacar aqui, também, vocábulos e sentenças selecionados pelo sujeito que o identificam como conhecedor das gírias utilizadas pelo Hip Hop e enquanto sujeito que concebe o Rap como ferramenta de protesto: “cantando a realidade”, ______ [ 262 ]

“microfone”, “rimas”, “Rap”, “salvação”, “perifeira”, “povo”, “favela”, “moleque de rua”, “truta”, “liberdade de expressão”, “playboy” e “atitude”. A raiva e a mágoa que o sujeito sente pelo sistema social são canalizadas e ele faz do Rap a sua munição. As armas são trocadas por palavras que, igualmente às primeiras, também querem assustar e ferir. AS VOZES DO TERCEIRO: IDEOLOGIAS Atualmente, o cidadão tem noção de sua situação de classe e, baseado nos respingos que o atingem dos estudos e mobilizações marxinianos iniciados no século XIX, ele sabe que o sistema atual não funciona como previsto no direito que o sustenta, gerando desigualdade social e prejudicando a maior parte dos cidadãos. O Rap, na maioria dos casos, assume a posição de meio de expressão e de protesto contra essa conjuntura. O refrão da música analisada retrata bem esta situação de incapacidade e inércia do governo: “Cascavel, cidade sofrida do Oeste do Paraná / Aqui o filho chora e a mãe não vê / Truta, pode acreditar”. Quer dizer, o sofrimento e a insatisfação popular existem, porém o governo ignora. É interessante ressaltar que o município de Cascavel tem o status de ser um dos mais desenvolvidos e de melhores condições de vida para a população, em geral, do oeste paranaense. É referência como polo industrial, universitário, médico e cultural de um estado que, por si, também é tido como referência. Dessa maneira, a música quer quebrar essa imagem com esse refrão, mencionando, inclusive, o nome da cidade. Em suma, há o suposto ideal de um sistema menos desigual e injusto. Essa forma possível, anticapitalista, é aqui o superdestinatário do sujeito. O discurso se dirige a um ente politicamente correto que é capaz de compreendêlo em sua indignação. Em outras palavras, as vozes ideológicas presumidas em “Cascavel, quebrada sofrida” são aquelas herdadas pelo que o sujeito assimilou de como deve ser um governo que promova a equidade social. No verso “Me desculpe se minhas rimas são agressivas”, o sujeito prevê as concepções de seu superdestinatário, como dizendo: “sei que o caminho para a mudança não é a agressão” e também já entendendo que muitos dos Rap`s com um conteúdo pesado como o dele é considerado pela população, inclusive, por muitos dos que compartilham do ideário de sociedade do sujeito, como música de apologia ao crime. Sendo assim, no momento da enunciação, ele se antecipa a uma réplica que supõe de seu superdestinatário. O mesmo ______ [ 263 ]

ocorre em “Seria bem pior se eu estivesse de oitão na mão”. O objetivo é justificar o uso do linguajar agressivo, apresentando a prática criminosa que é comum entre membros da comunidade. Outro superdestinatário presente, que até se confunde com a ideologia anticapitalista, são os pressupostos ideológicos do Hip Hip, isso porque o próprio Hip Hop assimilou vozes do discurso anticapitalista mobilizado no século XX. É perceptível que o sujeito discursa conforme vozes ressonadas do discurso Hip Hop: “Eu encontrei no Rap a minha salvação”, “Meu microfone é minha arma pra derrubar os covardes”, “Liberdade de expressão é meu único direito”, “com um microfone na mão / Me torno perigoso pra político ladrão” e “To com o microfone na mão / E só a morte pode nos parar”. Embora, as vozes do politicamente correto, conforme uma ideologia anticapitalista que prevê uma reforma sistêmica por via da cultura, da educação e da arte seja as que dominam o discurso, aparecem, em vários momentos, vozes ideológicas que preconizam a mudança por meio da força bruta e da guerra. Quando o sujeito enuncia que poderia ter um oitão na mão, deixa claro que conhece outro meio. Recordando Barros (1999, p. 06), “Para reconstruir o diálogo desaparecido são, nesse caso, necessários outros textos que, externamente, recuperem a polêmica escondida, os choques sociais, o confronto, a luta.” Assim, há a luta entre vozes que constituem o sujeito do discurso em análise. Nos versos “A paz tá tentando viver, mas tá difícil” e “O HU está lotado: vinte pessoas pra uma vaga / Tá ficando complicado”, notamos um tom de ultimato, uma advertência de que não está mais sendo possível suportar e esperar pela mudança que demonstra ser tão lenta por meio de meios pacíficos. Portanto, há resquícios dessas vozes que autenticam a revolta brutal. Porém os versos “Mas, tudo isso poderia ser diferente / Tipo, se o povo da favela fosse tratado como gente”, “Nós só queremos melhores condições / Condições de sobreviver” e “Não quero caixão lacrado / Só quero que o meu povo seja respeitado” deixam transparecer que o discurso clama por mudança por meio da ação pacífica. CONSIDERAÇÕES FINAIS Compreendendo o Rap enquanto texto pertencente ao gênero do discurso musical, logo, como a realidade imediata em que se apresentam as crenças e os julgamentos dos rappers, foi possível identificar as vozes sócio______ [ 264 ]

ideológicas que estruturam as maneiras de pensar e de se expressar por meio da própria expressão verbal, ou seja, da enunciação. Brait (1999, p. 21) nos assegura que Segundo Bakhtin, são os julgamentos de valor que determinam a seleção das palavras feitas pelo falante e a recepção dessa seleção (a co-seleçao) feita pelo ouvinte. E esclarece que o falante seleciona as palavras não no dicionário, mas no contexto de vida onde as palavras foram embebidas e se impregnaram de julgamentos de valor.

As palavras e os recursos fraseológicos usados em um discurso, portanto, são resultado de uma busca não em um sistema linguístico abstrato, mas em um contexto de vida, um contexto social, em que as palavras já possuem um efeito de sentido e que, ao adentrar no universo subjetivo do sujeito, sofrerá outros julgamentos de valor e possuirá, então, uma nova significação. Por isso, elas são o meio para estudar a ideologia e o subjetivismo e, no caso em análise, foi possível adentrar no universo da periferia de Cascavel e perceber a indignação e a revolta de sujeitos que se percebem marginalizados pelo capitalismo e suas instituições fracassadas, como o governo e o direito. A partir da explanação introduzida sobre os estudos de Bakhtin acerca da linguagem e da aplicação de alguns dos conceitos para a análise da música escolhida, foi possível percebê-la enquanto acontecimento, enquanto interação socioverbal, prenhe de vozes socioideológicas e de um querer-dizer. De acordo com Bakhtin ([1979] 2000, p. 313), A época, o meio social, o micromundo – o da família, dos amigos e conhecidos, dos colegas – que vê o homem crescer e viver, sempre possui seus enunciados que servem de norma, dão o tom; são obras científicas, literárias, ideológicas, nas quais as pessoas se apoiam e às quais se referem, que são citadas, imitadas, servem de inspiração. [...] Há sempre certo número de ideias diretrizes que emanam dos ‘iluminares’ da época.

O micromundo do sujeito, quer dizer, todas as influências que o alcançam: a família, a comunidade, a época, a filosofia mais difundida que se destaca e está em voga, em suma, o contexto histórico-social ditam um número de ideias. Em outras palavras, essas ideias que influenciam o sujeito são as vozes sócio-ideológicas que ele assimila. Assim, percebemos que a voz que ecoa no discurso analisado é um pensamento anticapitalista. Os séculos XX e XXI tiveram um grande avanço no que tange à informação sobre os mais variados assuntos. O advento do rádio, da televisão, e, principalmente, da internet, além dos tradicionais meios impressos, ______ [ 265 ]

propiciaram às pessoas de diferentes classes sociais a oportunidade de saber, de conhecer, de estarem informadas. Cremos ser esse o motor que impulsiona o complexo sistema no qual hoje estamos inseridos: o acesso à legislação, que hoje pode ser obtida na internet, por exemplo, possibilita que os cidadãos saibam de seus direitos, como a garantia da educação básica e reclamem pela sua concretização. Consequentemente, com o acesso à educação, embora as políticas públicas voltadas a ela sejam, ainda, precárias, o cidadão alcança o mínimo de condições que possibilitarão a ele compreender a situação do sistema social em que está inserido. Atualmente, é muito mais fácil perceber a realidade social e questioná-la do que há um tempo mais remoto. Isso se deve, principalmente, ao surgimento da burguesia no século XVIII e XIX e às reformas políticas desencadeadas no iluminismo, bem como aos avanços científicos e filosóficos desse período. O cidadão conquistou o direito da liberdade de expressão e, conquanto, muitas vezes, as informações e as filosofias que estão em voga não sejam plenamente assimiladas e compreendidas, há a percepção genérica de que o sistema capitalista não consegue satisfazer a todos, sequer à maioria. O anticapitalismo, portanto, é um dos superdestinatários do texto. Outra voz que se percebe está muito baseada nos pressupostos do socialismo. Há uma voz que entende que a equidade social é um direito e a única solução para os problemas é a luta entre as classes. Essa voz é percebida em todas as canções e se confunde com o próprio discurso do Hip Hop, uma vez que, certamente, o Hip Hop já aproveita as ideologias de esquerda, como o socialismo, para se fundamentar ideologicamente. A arte, assim, seria uma maneira alternativa de a periferia se fazer notar e conquistar a igualdade. Há uma consciência da desigualdade social e a ideia de uma reforma que pode se concretizar por meio da arte e não da força bruta. Em suma, as vozes identificadas foram o anticapitalismo, o socialismo, a cultura popular e o Hip Hop enquanto arte doe protesto. De acordo com Bakhtin, essas vozes ditam as verdades que regem o discurso e a conduta dos sujeitos, tanto que o próprio discurso, direciona-se ao terceiro destinatário e espera dele a aprovação do discurso. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. (Trad. de Maria Ermantina Galvão G. Pereira). São Paulo: Martins Fontes, 2000. ______ [ 266 ]

BAKHTIN, Mikhail/VOLOSHINOV, Valentin Nikolaevich. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. (Trad. de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira). São Paulo: Hucitec, 1999. BARROS, Diana Luz Pessoa. Dialogismo, Polifonia e Enunciação. In: BARROS, Diana Luz Pessoa & FIORIN, José Luiz (Org.). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. Edusp: São Paulo, 1999. BRAIT, Beth. As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso. In: BARROS, Diana Luz Pessoa & FIORIN, José Luiz (Org.). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. Edusp: São Paulo, 1999. BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Escrita, leitura, dialogicidade. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas, SP: Unicamp, 1997. CAMARGO, Amaral Wander. Atitude responsiva e linguagem televisiva. In: Revista Línguas e Letras, vol. 10, nº 19, p. 299-315, 2º sem. 2009. CASCAVEL, Portal do Município. Disponível em: http://www.cascavel.pr.gov.br/historia.php. Acesso em: 05 de novembro de 2011. CONTIER, Arnaldo Daraya. O Rap brasileiro e os Racinais MC’s. I Seminário Internacional do Adolescente, 2005. Disponível em: http:www. proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC000000008005000100010&script =sci_arttext DAHLET, Patrick. Dialogização enunciativa e paisagens do sujeito. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas, SP: Unicamp, 1997. FAITA, Daniel. A Noção de “Gênero Discursivo” em Bakhtin: uma mudança de Paradigma. In: BRAIT, Beth. Bakhtin, Dialogismo e Construção do Sentido. Campinas, SP: Unicamp, 1997. GEG, Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso. Palavras e contrapalavras: glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin. São ______ [ 267 ]

Carlos: Pedro & João Editores, 2009. SHUSTERMAN, Richard. Estética rap: violência e a arte de ficar na real. In: DARBY, Derrick & SHELBY, Tommie (Org). Hip Hop e a Filosofia. Tradução de Martha Malvezzi Leal. São Paulo: Madras, 2006. SILVA, José Carlos Gomes da. Arte e educação: a experiência do movimento Hip Hop paulistano. In: ANDRADE, Elaine Nunes de (Org.). Rap e educação. Rap é educação. São Paulo: Selo Negro Edições, 1999. TREVIZAN, Silvana Carolina. As vozes do Rap nas quebras de Cascavel: um estudo dos pressupostos dialógicos. 2012. 186 f. Dissertação (Mestrado em Letras), Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel, 2012. NOTA 1) Utilizamos esses termos a partir do pensamento marxista, sendo que, resumidamente, a infraestrutura diz respeito à vida de uma sociedade, suas classes e meios de produção, e a superestrutura abrange a vida não material: a cultura, a economia, a religião, a arte, o direito, a moral, enfim, instituições ideológicas.

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AUTORES Luciane Thomé Schröder Possui Graduação em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (1999), Mestrado em Letras - Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (2006) e Doutorado em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina (2012). Atualmente é professora Adjunto B da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Marechal Cândido Rondon. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Análise de Discurso, atuando principalmente nos seguintes temas: discurso; mulher; maternidade; grupos de apoio; práticas discursivas para o ensino da leitura e produção escrita na língua materna. E-mail: [email protected]

Franciele Luzia de Oliveira Orsatto Professora do curso de Letras Português/ Inglês/Espanhol/Italiano da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), campus Cascavel, desde 2010. Aluna regular do doutorado em Letras, mestre e graduada em Letras Português/Inglês pela mesma universidade. Graduada em Comunicação Social – Jornalismo pela Faculdade Assis Gurgacz (FAG), onde atuou como professora de 2009 a 2013. E-mail: [email protected]

Alexandre da Silva Zanella Doutorando em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal Fluminense (UFF) (20132017). Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), campus de Cascavel (2012), com trabalho intitulado “Metrópoles do futuro: o barulho por trás do ranking de Veja”, vinculado à linha de pesquisa “Interdiscurso: práticas culturais e ideologias”. Possui graduação em Letras Português/Inglês e respectivas Literaturas pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), campus de Cascavel (2009). Cadastrado nos grupos de pesquisa “Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura” e “Discursividade, língua e sociedade”. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Análise do Discurso. E-mail: [email protected]

Luiz Carlos de Oliveira Graduado em História pela Universidade Paranaense - Unipar (2005). Especialista em História Regional pela Universidade Paranaense - Unipar (2007). Especialista em Ensino da Arte, Cultura e História Afroindígena pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Unioeste (2010). Mestre em Letras (concentração em linguagem e sociedade) pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Unioeste (2012), com a temática: “O discurso sobre as cotas para negros na revista Veja”. E-mail: [email protected]

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Paula Fabiane de Souza Queiroz Graduada em Letras Português/Espanhol pelo CTESOP, em 2006. Graduada pela mesma instituição em Pedagogia, no ano de 2009. Especialista em Educação Especial, pelo ESAP, em 2007. Mestre em Letras pela UNIOESTE, 2009. Atualmente é Agente Educacional na SEED/PR e docente no curso de Pedagogia do CTESOP. E-mail: [email protected]

Alex Sandro de Araujo Carmo Graduado em Comunicação Social Publicidade e Propaganda pela Faculdade Assis Gurgacz (2007) e Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (2011). Atua como docente na Faculdade Sul Brasil e Faculdade Assis Gurgacz, nos cursos de Publicidade e Propaganda e Jornalismo. Tem publicado artigos científicos nas áreas da Comunicação (estudos semióticos e estudos da recepção) e da Linguagem (análises discursivas de práticas publicitárias). Editor responsável da Revista científica Advérbio (FAG) e da Revista Midiação (FASUL). E-mail: [email protected]

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Nelci Janete dos Santos Nardelli Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (1997), Especialização em Gestão Pública e Mestrado em Letras-Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (2009). É Agente Universitário da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Tem experiência na área de Políticas e legislações da e para a Educação Superior, de Desenvolvimento Humano, de Avaliação Institucional e Planejamento. E-mail: [email protected]

Mirielly Ferraça Formada em Letras Português/Italiano pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE e Mestre em Letras pela mesma Universidade. Também graduada em Comunicação Social com ênfase em Jornalismo pela Universidade Paranaense - UNIPAR. Possui pós-graduação em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira pela Faculdade Assis Gurgacz - FAG. Leciona Língua Portuguesa e Linguística na Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP, campus Jacarezinho. Desde a graduação, realiza pesquisas pautando-se sempre no viés francês da Análise do Discurso, principalmente com os temas sexualidade e prostituição. E-mail: [email protected]

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Alexandre Sebastião Ferrari Soares Possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1989), mestrado em Letras pela Universidade Federal do Paraná (1999) e doutorado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (2006). Atualmente é pós-doutorando pela Universidade de Coimbra, Portugal. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior – CAPES. Professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Em Análise do Discurso, trabalha principalmente com os seguintes temas: discurso midiático, político e imagético, focando as relações entre sujeito, memória, práticas culturais, diversidade e gênero. E-mail: [email protected]

Maria Isabel Ribeiro Ferin Cunha Licenciada em História pela Faculdade de Letras de Lisboa (1974), Mestra (1984) e Doutora (1987) em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, Pós-Doutorada em França (CNRS, 1991). Atualmente é Professora Associada, com agregação, da Universidade de Coimbra. É vice-presidente do Centro de Investigação Media e Jornalismo (2011-2013) e tem coordenado alguns projetos aprovados pela Fundação Ciência e Tecnologia/Portugal, tais como Televisão e Imagens da Diferença e Jornalismo e Actos de Democracia e no momento Cobertura Jornalística da Corrupção Política: uma perspetiva comparada Brasil, Moçambique e Portugal. As suas áreas de interesse são: Análise dos Media (Imprensa e Televisão); Media e Migrações; Ficção seriada televisiva e Comunicação Política.

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João Carlos Cattelan Docente graduado em Letras/Português, com mestrado e doutorado em Linguística e Língua Portuguesa, pela UFPR e pela UNESP, respectivamente. Tem 8 anos de experiência no ensino fundamental e médio e 28 anos de docência no ensino superior. Foi professor e diretor de escola de ensino fundamental e coordenador de estágio supervisionado, coordenador de curso, chefe de departamento, diretor de centro e diretor geral de concursos da universidade a que está vinculado. Atua no programa de pós-graduação em Letras (níveis de Mestrado e Doutorado) da instituição há 11 anos. Possui 2 livros, 5 capítulos de livros e 65 artigos publicados. E-mail: [email protected]

Silvana Carolina Trevizan Graduada em Letras pela UDC, especialista em “Linguagem, Cultura e Ensino” pela Unioeste, mestre em Letras - Linguagem e Sociedade, pela mesma Universidade. Atualmente, é professora no Colégio Estadual Presidente Castelo Branco, em Toledo, na modalidade de Ensino Médio. Leciona no Ensino Superior, na Faculdade Sul Brasil (Fasul). Seus estudos enfocam o sujeito, a ideologia e o discurso presentes nas letras de músicas. E-mail: [email protected]

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