Almanaques

Share Embed


Descripción

Nota Prévia ao manuscrito «Almanaques» — E1/308 BN



Até dar entrada, por aquisição em 2001, no acervo do espólio de Eça
de Queirós depositado na Biblioteca Nacional, o manuscrito autógrafo sem
título que na tradição impressa recebeu a denominação «Almanaques», era
praticamente desconhecido.
Apenas Ernesto Guerra Da Cal mencionou, na sua Bibliografia
Queirociana, o artigo «Um trecho inédito de Eça de Queirós» publicado na
revista Ver e Crer.[1] O trecho então publicado refere-se a uma passagem
eliminada por Eça no Almanach Encyclopedico para 1896[2] e, a modo de
ilustração, a revista apresenta em fac-símile a página 124 do Manuscrito.
A razão para a revelação deste pequeno extracto[3] deve prender-se com as
comemorações do tricentenário de Leibnitz, mencionadas no texto
introdutório, filósofo que Eça refere em passagem eliminada no impresso de
1896.[4] A partir daí, o silêncio cai sobre este manuscrito, que, segundo
a redacção da Ver e Crer, se encontrava «na posse de um bibliófilo nosso
amigo».

Como acima ficou dito, «Almanaques» foi publicado como prefácio ao
Almanach Encyclopedico para 1896 e, portanto, deverá ter sido escrito em
1895. Por sua vez, o «Prefácio» a este Almanach foi recolhido por Luís de
Magalhães, que o publicou em 1909 na antologia queirosiana a que deu o
título Notas Contemporâneas, . A tradição textual estava, deste modo,
fixada, e bem, por uma composição que o autor reviu e aprovou.[5]

Contudo — nestes felizes acasos de descoberta de um manuscrito
autógrafo há sempre um contudo... — o texto que até agora temos lido,
fixado pela tradição, e tal como fica dito pelo Professor Carlos Reis na
sua Introdução ao livro que agora apresentamos, não corresponde exactamente
à primeira forma que o autor lhe deu. Raras vezes, embora não
excepcionalmente, temos a possibilidade de confrontar a primeira redacção
de um texto queirosiano com o texto acabado que, em vida, o autor reviu e
publicou. Desta vez, podemos verificar, comparativamente, a quantidade de
emendas, acrescentos e eliminações que Eça de Queirós introduzia nos seus
textos, naquela ânsia de perfeição estética que, nele, é proverbial.

O manuscrito que na Biblioteca Nacional tem a cota E1/308 é composto
por cento e vinte e oito folhas com a marca-de-água "Papel Prado",
escritas a tinta de um só lado, numeradas pelo autor. Como era corrente em
Eça, o papel apresenta larga margem esquerda, e a leitura está facilitada
pelo espaçoso entrelinhamento, pela letra corrida e pelas poucas rasuras
que o manuscrito contém. Estes dois últimos factores permitem-nos
pressupor que se trata de uma primeira redacção, naturalmente baseada em
apontamentos prévios do autor.[6] Confrontado o manuscrito com o texto da
tradição, encontramos cerca de quinhentas e cinquenta variantes, o que
demonstra o vasto trabalho posterior de Eça, trabalho que deve ter sido
elaborado sobre provas tipográficas, uma vez que, como fica dito, são
poucas as emendas encontradas no autógrafo.

Para além do já mencionado episódio referente a Leibnitz, vários
outros episódios — e bastantes passagens — foram retirados e/ou
reformulados no texto impresso. A título de exemplo, longo para uma Nota
como esta, apresenta-se abaixo a passagem em que o Almanaque nos permite
viajar, virtualmente, até ao antigo Egipto, em confronto com aquela que
constitui a lição da tradição. Através dele, como através desse Nilo que a
memória de Eça de Queirós sempre quis reviver, podemos vogar na escrita
queirosiana, no seu labor, na noção de economia estética que o autor
possuía — e imprimia — às revisões dos seus textos, que sempre nos reservam
a agradável admiração de uma nova viagem.


Notas de Edição:
A transcrição do manuscrito foi feita de acordo com a ortografia actual.
Mantiveram-se, sempre que surgiam no manuscrito, as maiúsculas que o autor
atribuía a determinados substantivos, e que parecem destacá-los no texto,
embora, por vezes, a tradição não mantenha essas maiusculas[7]; por outro
lado, foram transcritas com maiúscula palavras que no manuscrito são
iniciadas por minúscula e que a tradição apresenta em caixa alta, uma vez
que partimos do princípio que Eça de Queirós fez a revisão do Prefácio do
Almanach Encyclopedico e terá desejado destacaá-las no impresso. A
pontuação foi confrontada com a do Almanach Encyclopedico, pelo que se
mantiveram vários sinais de pontuação, nomeadamente virgulas, que nos
nossos dias podem causar estranheza relativamente ao local em que, na
frase, são aplicadas; no entanto, eliminaram-se algumas (poucos) vírgulas
do manuscrito, que poderiam tornar confusas determinadas passagens e, do
mesmo modo, acrescentaram-se aquelas que o autor decidiu também adicionar
ao impresso. O autógrafo apresenta poucas lacunas de palavras e poucas
incorrecções contextuais mas, mesmo assim, foram feitas as seguintes
correcções, que se apresentam a negrito:

Pag. 2: «(Dois sábios antediluvianos, filhos de Seth não deixariam de
registar esta augusta cronologia). » substitui «(Dois sábios
antediluvianos, filhos não deixariam de registar esta augusta cronologia).»
Pag. 9: «É o Astrólogo, com o seu cartucho negro sobre a guedelha, o óculo
de papelão para o alto, as barbas a esvoaçar, a simarra negra salpicada de
meias luas caindo em pregas talares — que pontifica.» — onde no manuscrito
se lê que pontica.
Pág. 10: «Em 1815, quando este nosso século já é um moço estudioso (...)»,
acrescenta-se a forma verbal, em falta no manuscrito.
Pag. 20: «Um bem que nos veio no dia 17 de Agosto, que era uma quarta-
feira, fica alumiando a nossa alma com uma claridade (...)» — acrescento de
acordo com «Almanaques».
Pag. 21: «É que as venturas dessas existências, que já voavam, se iam
desfazer (...)» — corrige-se a forma verbal por se encontrarem no plural os
outros elementos da frase.
Pag. 22: « (...) no dia 8 de Agosto, logo de manhã, nos traz S. Ciríaco,
(...)» — no manuscrito, a data é «3 de Agosto» e o Santo «Sto. Eleutério».
Corrige-se de acordo com a tradição. Esta é a emenda mais interessante,
uma vez que Eça, tendo-se enganado no manuscrito, corrige no impresso de
acordo com o Calendário cristão.

Irene Fialho

Ver e Crer – cada assunto vale um livro. N.º 19, Novembro de 1946. Lisboa:
Editora Gráfica Portuguesa Lda.
Direcção de José Ribeiro dos Santos e Mário Neves
p. 8 – «Um trecho inédito de Eça de Queiroz»
p. 9 – continuação e facsimile
p. 41-43 «Tribunal de honra para um pleito entre dois sábios – Leibnitz»
«A Academia das Ciências vai festejar este mês o terceiro centenário do
nascimento de Leibnitz»
Ver e Crer. N.º 7. Nov. 1945 (cent. Nascimento de Eça de Queirós)
«O que foi toda a vida o companheiro de Eça de Queirós. Fradique Mendes e
O mistério da estrada de Sintra.» (pp. 33-35)

"Ms. E1/308 BN "«Almanaques» — Notas "
" "Contemporâneas "
" " "
"E agora, que de tão longe viemos, "E agora, que de tão longe viemos, "
"é divertido percorrer este vale do"será divertido percorrer este vale"
"Nilo, de há quatro mil anos, e "do Nilo de há quatro mil anos, e "
"observar este povo polido, "observar este povo polido, "
"silencioso, doce, vestido de linho"silencioso, vestido de linho "
"branco, com os seus longos deuses,"branco, docemente caturra, que "
"que cheiram a bálsamo de Segabai. "traz uma flor na mão, e saúda com "
"Como vão e vêm, tão nobres e "reverência os gatos. Como vão e "
"lentas, sobre o rio sagrado, as "vêm nobremente, sobre o rio "
"vistosas barcas, de vela listrada,"sagrado, as vistosas barcas de "
"de escarlate e negro, com a sua "vela escarlate, com a sua alta "
"alta popa que é a flor do lótus "popa que é o loto desabrochado! "
"desabrochada... Graciosas, "Olá! bem gráceis e moreninhas e "
"tenras, bem feitas, são aquelas "tenras são as duas harpistas, que "
"duas harpistas, que cantam, "cantam agachadas, acolá, à porta "
"agachadas à porta daquela taberna,"da taberna, rente ao caramanchão "
"rente ao caramanchão de grades "de grades douradas, onde dois "
"douradas, onde os dois homens, um "homens, um escriba e o outro, de "
"escriba, e o outro, o de simarra "simarra bordada, certamente "
"bordada, certamente mercador de "mercador de Susa, bebem um vinho "
"Suza, bebem um vinho tão cor de "cor-de-rosa desmaiado, e tão leve,"
"rosa, e leve, e frio, que deve ser"e tão fresco, que me está "
"divino! Como são quentes estes "doidamente tentando! Oh! o curioso"
"jardins, com as suas ruas areadas "pátio, e o tanque imenso de "
"de azul! E como invejo, oh meu "granito verde, e os dois "
"bom Almanaque, esses velhos "sacerdotes lançando bolos de mel, "
"patriarcais, sentados nos altos e "devotamente, a um velho crocodilo "
"frescos terraços, e contemplando "sagrado que tem as patas medonhas "
"em redor os seus campos, os seus "carregadas de manilhas de ouro! "
"lagos, os seus palmeirais, os "Decerto, além, na margem arábica, "
"seus rebanhos, e os bandos dos "passa um chefe, um príncipe, "
"seus escravos, que de longe o "porque pontas de lanças faíscam "
"saúdam beijando a palma da mão! "entre leques de plumas, e um carro"
"Oh, o curioso pátio, com o largo "lento que rebrilha, esmaltado, "
"tanque de granito verde, onde dois"toldado de sedas finas, rola com "
"Sacerdotes, estão lançando bolos "majestade na estrada que airosas "
"de mel, devotamente, a um velho "núbias, de véus amarelos, vão "
"crocodilo sagrado que tem as patas"regando, perfumando e juncando de "
"medonhas, carregadas de anéis de "anémonas. Esta cidade, que se "
"ouro. Decerto, além, na outra "estende até ao deserto líbico, "
"margem, passa um Chefe, um "cheia de obeliscos, de pilones, de"
"Príncipe, porque pontas de lanças "esfinges, de palácios, de jardins,"
"faíscam entre altos leques de "de piscinas, com avenidas areadas "
"plumas, e um carro lento, que "de azul, é decerto Tebas. Já o Sol"
"rebrilha esmaltado, toldado de "vem rompendo dos lados do mar. E "
"sedas finas, rola com majestade na"eis justamente o Grande Pontífice,"
"estrada da beira de água, que os "esguio e pálido como um círio, que"
"escravos núbios de tanga amarela, "surge, entre as cortinas "
"com odres, vão regando e "desfranzidas do pórtico de Ámon, e"
"perfumando. Esta cidade, que se "ergue as mãos espalmadas para o "
"estende até ao deserto, cheia de "astro, e murmura num êxtase: «Oh "
"obeliscos, de pilones, de avenidas"verídico, oh benéfico, oh bem "
"de esfinges, de ídolos, de "desejado dos homens, oh senhor "
"palácios, de templos, de jardins, "radiante dos dois horizontes!...» "
"de piscinas, é decerto Tebas!... "Linda prece, e deliciosa foi esta "
"Já o sol vem rompendo dos lados do"jornada, meu bom «Almanaque»! "
"mar, é tempo de voltar ao meu " "
"Portugal. Eis justamente o Grande" "
"Pontífice, que surge, entre as " "
"cortinas desfranzidas do pórtico " "
"de Amon, e ergue as mãos espalmas " "
"para o Astro e murmura, «Oh " "
"verídico, oh benéfico, oh " "
"perfeito, oh senhor radiante dos " "
"dois horizontes!...» Ah meu bom " "
"Almanaque, deliciosa foi esta " "
"jornada. " "









-----------------------
[1] Ver e crer — cada assunto vale um livro, n.º 19, Novembro de 1946,
Lisboa, Editora Gráfica Portuguesa, pp. 8 e 9. Um ano antes, em Novembro
de 1945, a Ver e Crer publicava diversos ensaios dedicados ao centenário do
nascimento de Eça de Queirós
[2] Almanach Encyclopedico para 1896, Lisboa, Livraria de António Maria
Pereira, 1895
[3] Parte da página 121 e até ao final da página 125 do manuscrito
[4] No mesmo número da Ver e Crer anuncia-se a comemoração do
tricentenário do filósofo alemão pela Academia das Ciências de Lisboa.
[5] O texto publicado por Luís de Magalhães não apresenta variantes
significativas relativamente à fonte da recolha.
[6] Encontram-se no espólio de Eça de Queirós diversos manuscritos que,
segundo Guerra Da Cal, terão sido escritos para a composição dos Almanachs
Encyclopedicos.
[7] Referimo-nos ao texto de Notas Contemporâneas.
Lihat lebih banyak...

Comentarios

Copyright © 2017 DATOSPDF Inc.