ALEIXO, João Romero Chagas, «Mãe Soberana. Estudos. Ensaios. Crónicas», 1.ª edição, Loulé, Câmara Municipal de Loulé, 2016. I.S.B.N.: 978-972-9064-64-7

May 25, 2017 | Autor: J. Romero Chagas ... | Categoría: History of Religion, Historia Local, Religiosidad Popular, História Do Algarve
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Descripción

Mãe Soberana

Estudos. Ensaios. Crónicas joão Romero Chagas Aleixo

João Romero Chagas Aleixo é «um louletano, natural de Lisboa», cidade onde nasceu em 1980. Aos dezoito dias de idade veio morar para Loulé, cidade onde completou a sua educação primária e secundária. Tem o quatro ano (incompleto) da licenciatura em Economia na Faculdade de Ciências Económicas e Empresarias da Universidade Católica Portuguesa (F.C.E.E./U.C.P.). Licenciado e Mestre em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (F.C.S.H./U.N.L.). Investigador Integrado do Instituto de História Contemporânea da F.C.S.H/ U.N.L. (desde 2014). Presentemente, encontrase a realizar o seu Doutoramento em História Contemporânea na F.C.S.H./U.N.L. Conferencista convidado em vários eventos. Tem publicado vários artigos de investigação relacionados com a História Local e Regional do Algarve em várias publicações científicas, assim como na imprensa local e regional. No que somente diz respeito à investigação e à divulgação deste culto, o autor apresenta o seguinte currículo: Membro da Comissão Organizadora e da Comissão Executiva das comemorações dos 450 anos de edificação da ermida de Nossa Senhora da Piedade em Loulé (2002-2004); Co-autor de catálogos de exposições («A Mãe Soberana - o culto, as gentes e o património», Loulé, Câmara Municipal de Loulé, 2004; «A Força do Andor», Loulé, Câmara Municipal de Loulé, 2015);

Co-comissário da exposição intitulada «Mãe Soberana na imprensa local e regional» (Loulé, 2004); Colaborador permanente e regular do periódico A Voz de Loulé, onde já publicou mais de uma centena de artigos relacionados com a História do culto a Nossa Senhora da Piedade de Loulé (2007-2016); Apresentação de comunicações científicas sobre o culto (Lisboa, 2008; Loulé, 2011); Produção e apresentação de uma tese de Mestrado em História Contemporânea (Lisboa, F.C.S.H./U.N.L., 2012-2014); Co-orientador científico de uma tese de Mestrado em Design de Comunicação para o Turismo e Cultura (Faro, E.S.E.C./Universidade do Algarve, 2015-2016); Consultor científico e co-autor do Processo de Inventariação da manifestação religiosa da Mãe Soberana no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial (P.C.I.) da DirecçãoGeral do Património Cultural (2015); Co-apresentação de comunicações científicas sobre o culto (Tavira, 2015; Faro, 2016; Loulé, 2016); Curador da exposição intitulada «Mãe Soberana de um Povo» (Loulé, 2016). O autor tem-se igualmente interessado pelo estudo da vida e da obra do poeta António Aleixo, tendo, a esse respeito, publicado uma obra (Ensaios Aleixianos, Loulé, Arquivo Municipal de Loulé, 2011) e sido co-autor de uma outra obra (António Aleixo, uma homenagem, Loulé, Câmara Municipal de Loulé, 2013).

Mãe Soberana

Estudos. Ensaios. Crónicas

Ficha Técnica Título Mãe Soberana: Estudos, Ensaios e Crónicas Autor João Romero Chagas Aleixo Design e Paginação Andreia Pintassilgo

Impressão e Acabamento Gráfica Comercial

Edição Câmara Municipal de Loulé

Créditos Fotográficos Fototeca da Câmara Municipal de Loulé (imagem da capa, pp. 38-39, p.75, p.141, p.163, pp.182-183 e p.240) Colecção Particular de António dos Santos Simões (pp. 198-199 e p. 233) Colecção Particular de João Chagas Aleixo (p. 52 e p. 124) Colecção Particular de Luís Guerreiro (p. 175) Depósito Legal 409665/16

ISBN 978-972-9064-64-7

Nota: O autor não escreve de acordo com a grafia utilizada pelo novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Índice geral Mensagem do Presidente ___________________________________________ 1 1 Dedicatória __________________________________________________________ 1 5 Agradecimentos _____________________________________________________ 1 7 Lista de Abreviaturas _______________________________________________ 1 9 Lista de Siglas _______________________________________________________ 2 1 Preliminar a uma Leitura Interpretativa da Festa ________________ 2 3 Introdução ___________________________________________________________ 3 1

Estudos 1. O Culto a Nossa Senhora da Piedade de Loulé: Sua Origem e Breve

Historial _____________________________________________________________ 4 3 2. Os Homens do Andor ____________________________________________ 5 9

2.1. Apresentação ______________________________________________ 5 9



2.4. 1760: o começo de uma nova era ________________________ 6 4







2.2. A história dos Homens do Andor até 1760 ______________ 6 1

2.3. O terramoto de 1755 e a destruição do andor __________ 6 3

2.4.1. A importância da ruralidade na selecção dos Homens

do Andor _____________________________________________________________ 6 5 2.4.2. A influência andaluza na segunda metade do século

XIX, princípio do século XX _________________________________________ 6 7

2.4.3. Quando as duas «equipas» passaram a ser uma só _ 7 6



2.5. Alterações na estrutura sócio-profissional do grupo ___ 8 0 2.6. A fala dos Homens do Andor _____________________________ 8 1

2.6.1. A influência do léxico tauromáquico no léxico falado

pelos Homens do Andor______________________________________________87 3. Dicionário Mãesoberaneiro (O léxico utilizado pelos Homens do

Andor) ________________________________________________________________91 4. A Mãe Soberana e o Casamento de S.A.R. a Rainha D. Maria II ____111

5. O Rapto da Imagem da Piedade (1893) _________________________117 6. O Culto durante a Primeira República (1910-1926) ___________137

6.1. A Lei de Separação do Estado das Igrejas_________________138



6.3. As restrições às procissões e às manifestações religiosas ao



6.2. A nacionalização dos bens da Igreja______________________140

6.2.1. Os bens da Mordomia de Nossa Senhora da Piedade __141

ar livre _______________________________________________________________145

6.3.1. A Festa Grande da Piedade de 1912 _______________149

6.3.2. A Festa Pequena da Piedade de 1913 _____________155 6.3.3. A Festa Grande da Piedade de 1913 _______________159

6.3.4. A Festa Grande da Piedade de 1914 ________________160

6.3.5. A Festa Grande da Piedade de 1915 _______________164

6.4. Conclusão __________________________________________________166

7. A Mãe Soberana na Literatura Popular __________________________171

Ensaios

1. Pôncio Pilatos e a Mãe Soberana _________________________________187 2. O Paradoxo Mãesoberaneiro _____________________________________193

2.1. O que é o «Paradoxo Mãesoberaneiro»? __________________194 2.2. O que representa a Imagem de Nossa Senhora da Piedade? ___195

2.3. Algumas hipóteses interpretativas _______________________196

Crónicas 1. As Missas da Mãe Soberana na Igreja de São Francisco ________203

2. Uma Festa Invulgar… _____________________________________________209

3. Os Devotos Bêbados da Mãe Soberana __________________________215 4. «In Vino Veritas» __________________________________________________221

5. «Ladainha Louletana» _____________________________________________227

6. «Os Marrecos» da Mãe Soberana ________________________________233 7. O «Eterno Menino Grande» de Loulé e a «Experimentação» do

Andor ________________________________________________________________239

8. A Felliniana Maria das Bananas e a Mãe Soberana _____________247

Fontes e Bibliografia

Fontes manuscritas _________________________________________________255

Fontes publicadas __________________________________________________257

Fontes impressas ___________________________________________________258 Fontes periódicas ___________________________________________________261 Bibliografia utilizada _______________________________________________262

A Alma de um povo O Município de Loulé, através do seu Museu Municipal, e a Paróquia

de São Sebastião submeteram com sucesso, em 2015, a inscrição da manifestação religiosa Mãe Soberana ao Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial.

Firmou-se, assim, um compromisso de desenvolver um

plano de salvaguarda da manifestação religiosa Mãe Soberana, a

mais importante manifestação mariana a Sul do Tejo. Inscrever no quotidiano dos louletanos, durante todo o ano, e dar a conhecer a

quem nos visita a Mãe Soberana é um dos desígnios do presente.

Neste caminho, desde Abril de 2016, por decreto canónico, o complexo religioso do Monte da Piedade foi elevado a Santuário

de Nossa Senhora da Piedade, afirmando a riqueza, a força e a importância deste património e do culto à Mãe Soberana a nível regional e nacional, bem como a sua expressão nos dias de hoje.

A edição do livro Mãe Soberana – Estudos. Ensaios. Crónicas,

de João Romero Chagas Aleixo, insere-se nesta linha de trabalho.

António Aleixo disse sobre a Mãe Soberana que «a alma desse povo/

Vai dentro daquele andor» e nós, parafraseando o poeta, podemos

afirmar que a alma do nosso povo, também, está dentro deste

magnífico livro que reúne sete estudos, dois ensaios e oito crónicas.

O autor é um jovem e brilhante historiador louletano que alia o seu fortíssimo amor pela terra, pela sua história e pela Mãe Soberana ao rigor da investigação histórica.

Este é, acima de tudo, um livro sobre nós, aqui nos revemos,

aqui sentimos a emoção intensa de ser louletano e de ter a proteção da Mãe Soberana, estendida do alto da sua colina, abraçando todos os dias a nossa cidade. Boa leitura.

Viva a Mãe Soberana. Viva Loulé. O Presidente, Vítor Aleixo

Dedicatória

À minha Avó Maria Hezette (Loulé, 2.11.1919-Loulé, 30.04.1954), por, nos anos Quarenta e Cinquenta do século passado, ajudar a «armar» o andor de Nossa Senhora da Piedade, Mãe Soberana dos Louletanos.

À minha Avó Maria Margarida, por, praticamente desde o berço, me ter transmitido a sua acrisolada devoção a Nossa Senhora da Piedade.

Agradecimentos A realização deste trabalho de investigação teria sido impossível sem a ajuda e a colaboração do Sr. padre António Elísio Barreto de Freitas, pároco responsável «in solidum» pelas paróquias de São Clemente

e de São Sebastião, em Loulé, entre 2009 e 2015; do Sr. padre José António Nobre Duarte, pároco responsável pela paróquia de São

Sebastião, em Loulé, entre Outubro de 1967 e Outubro de 2006; do Sr. Professor Doutor António Manuel Alves Martins, professor auxiliar da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa; do

Sr. António dos Santos Simões, actual cabo do grupo dos Homens do Andor; do Sr. Engenheiro Horácio Filipe Guilherme Ferreira, actual

Homem do Andor com mais anos em actividade; da Dr.ª Dália Paulo,

Diretora do Departamento de Desenvolvimento Humano e Coesão da Câmara Municipal de Loulé; da Andreia Pintassilgo, designer de comunicação que, pacientemente, paginou este livro; da Helga Serôdio; e, finalmente, do Sr. Engenheiro Joaquim Brito da Mana.

Lista de Abreviaturas AA. VV.: autores vários art.: artigo

c.: cerca de

cf.: conferir cit.: citado

coord.: coordenação cx.: caixa

doc.: documento fl.: folha

fls.: folhas lv.: livro

mç.: maço

n.º: número

op. cit.: obra citada p.: página

p. ex.: por exemplo pp.: páginas

s/d.: sem data s/l.: sem local ss.: seguintes v.º: verso

vol.: volume

Lista de Siglas A.D.F.: Arquivo Distrital de Faro.

A.H.D.A.: Arquivo Histórico da Diocese do Algarve. A.M.L.: Arquivo Municipal de Loulé.

A.N.T.T.: Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

A.P.S.C.: Arquivo da Paróquia de São Clemente, de Loulé. A.P.S.S.: Arquivo da Paróquia de São Sebastião, de Loulé.

joão Romero Chagas Aleixo

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Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Preliminar a uma Leitura Interpretativa da Festa Nas grandes festas religiosas está sempre presente uma relação próxima com a Natureza, com os seus tempos e estações. Em especial é evidente que a Páscoa da Ressurreição não é apenas

a glorificação da natureza divina de Jesus Cristo – que por isso ressuscita na sua entidade divina/humana –, mas nela se celebra a Primavera. E a Primavera é também uma ressurreição da Natureza adormecida durante a pausa invernal. Rebentam as árvores que se

enchem de novas folhas. E assim as flores e os frutos que se vão

seguir. É o grande ciclo da vida. Do qual a morte é parte integrante e central. Que dá sentido à vida vivida.

Contrastes e confrontos que se aliam na realidade do percurso

humano – que por isso também não pode faltar nas religiões que do humano decorrem e cuja insatisfação procuram resolver. Morte e

vida. A Senhora da Piedade, Mãe viva, traz no colo o Filho morto. Tristeza máxima, alguém cuja vida decorre da maternidade e que desaparece quando significava a vitalidade em si mesma.

No andor da Mãe Soberana a imagem de uma tragédia que a

Mãe acompanhou, Ela e as Santas Mulheres. Mais e mais doloroso:

por isso a Senhora das Dores tem espadas no peito. Sete, simbólicas. Aqui é a própria imagem do Filho que deixou de viver. Mas ainda e

sempre, por ser o Cristianismo criador de esperanças, a expectativa

de um ciclo anualmente repetido de criação. Com a ressurreição.

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joão Romero Chagas Aleixo

Como que a junção, sem resolução das contradições que a própria vida afinal é. Dissonância violenta.

Este o fascínio de uma religião vivida, em que os oficiantes

que mais importam no acto celebratório não vêm sagrados nem actuam em nome da Divindade. São os homens que fazem o transporte do ícone doloroso e assim se tornam no centro activo e dinâmico agente da Festa. É a manifestação colectiva de um querer

que incita e ajuda, é a massa que age sem oficiante (celebrante) e sem guia.

Festa de exuberante paganismo sob a evidente película do

Cristianismo a da Senhora da Piedade em Loulé. Sem dúvida. Mas isso não chega para tentar uma explicação para a ruidosa e agitada celebração.

A Senhora da Piedade, como tantas outras Senhoras

da Piedade, aparece relacionada (não sempre nem só) aos franciscanos. E aos franciscanos que tinham ali, bem perto, o seu convento de Santo António. A eles está a ermida próxima da vila a indicar o caminho de um culto às populações dos arredores. Gente dos campos, de uma região com alguma fartura produtiva

pelos arvoredos algarvios (figueiras, alfarrobeiras e amendoeiras).

Também ao longo dos tempos das mais disponíveis em possantes em forças físicas, pelo que as cerimónias de um culto exigente em

capacidade de transporte de pesos se radica e desenvolve. Também aí. 24

Mas piedade é capacidade de perdão e de misericórdia

perante pecados e pecadores. A Senhora da Piedade, desde cedo

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

– talvez logo no século XVI – passou a ser especialmente venerada pelos vizinhos das terras de lavoura. Pediam-lhe piedade, esperavam

misericórdia. E o que mais solicitavam era a água em tempos de seca. Sem água a vegetação morre, o fruto estiola, vem a fome e a morte...

Água de Misericórdia: era o pedido que Loulé (e em nome de

todos o colectivo dos mais abastados que compunham a vereação

da vila) dirigia a Deus e aos Santos. Mas da corte celestial, a quem mais ligados estavam os populares dos arredores, era a Senhora da Piedade – que mais atendia aos angustiosos pedidos que lhe eram endereçados.

As preces ad petendam pluviam dirigiam-se à Mãe para

que demovesse o Filho, talvez esquecido ou ocupado a castigar pecados colectivos. Para reforçar o pedido, trazia-se a imagem para

a freguesia da vila – S. Clemente – onde mais facilmente as rogativas por todos eram feitas. Mais tarde, em fins do século XIX a igrejinha

de S. Sebastião – da ordem Terceira de S. Francisco transformada em freguesia de S. Sebastião – passou a acolher o sagrado ícone. Mas manteve-se, com poucas alterações, toda a exuberante recepção

que se lhe devia – e de quem se esperava as mercês requeridas, o

resultado das promessas enviadas, das rogativas e aclamações que se lhe dirigiam.

Assim aconteceu durante séculos. A intervenção eclesiástica

oficial pouco ou nada tinha inicialmente com isto. Era popular e

espontâneo o requerimento, encabeçado pela Câmara, autoridade civil e laica. Se havia rezas orientadas pelo clero, sermões, procissões

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joão Romero Chagas Aleixo

e actos que mereciam a qualificação de cultuais, não eram esses os importantes nem os determinantes da festa e das exuberantes manifestações festivas.

Água indispensável aos campos, em especial nos fins

de Março e princípios de Abril. Ora esse é também o tempo da Semana Santa e da Páscoa. Aí, e para evitar confusões, a disciplina

eclesiástica terá agido. Preces por água misturadas com a paixão de

Cristo não fariam sentido. Festa possível só depois da Páscoa – que não pode ir além de 25 de Abril. Por que não conciliar uma fé e uma

necessidade popular com o calendário religioso? Por que não fazer coincidir as rogativas com os tempos litúrgicos das endoenças?

Sem confusão de momentos. Há duas festas. A festa «oficial»,

católica, organizada, domesticada. A Senhora no seu andor barroco passeia processionalmente e calmamente pela vila, sob a vigilância e com o acompanhamento do clero. A outra, a festa «popular», vai

do largo de S. Francisco até à capelinha, percurso árduo e difícil.

O ordinário, de ritmo bem marcado, congrega as forças que os vivas da multidão convidam a ajudar os ânimos dos valentes que carregam o andor. O entusiasmo é inebriante e com ele se faz a

descida e, sobretudo, a subida. Exuberância do acompanhamento e

então verdadeira festa de todos. Com expressões que naturalmente

chocam os bem-arrumadinhos do ritualismo oficial. Mas essa parte não lhes pertence, ou sequer requer a sua inútil presença. Por meados do século XX a Igreja ampliou ainda o seu domínio sobre

os festejos: deixou de se organizar o arraial popular, estabeleceu-se 26

uma missa campal junto ao Monumento a Duarte Pacheco – não foi

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

eliminada a subida e a descida entre vivas e entusiasmos sem jeito nem arrumação.

Páscoa, alegria pela Ressurreição – a ressurreição anual da

Natureza – Mãe que tudo pode e manda – a Soberana. Mãe Soberana

e Mãe de Fecundidade – a Terra. Reminiscência e continuidade de cultos das profundidades, indispensáveis à cultura mediterrânica

que dá sentido a uma civilização e a um estar em sociedade. Sem isso não se dá o tempo ao tempo. Nem se dá sentido à Vida, nem há Vida.

Vida, alegria, esperança, explosão da Natureza a renascer. No

andor, porém, a imagem da Dor, contraditoriamente, nesta mistura

de religiosidade, solta, mas em parte, relativamente domesticada e canalizada.

O fascinante acontecimento, anualmente renovado –

ressurgido da Mãe-Terra que precisa da água de Abril para ser a

Mãe fecunda e criadora. Por isso os populares elevam Vivas à Mãe Soberana.

Uma interpretação? Sem dúvida, porque disso e apenas,

sem pretensões, se trata. Escrito agora retomado de há anos atrás, procurando uma explicação para o visível de um entusiasmo

popular que não é muito comum em terras do Sul. Mas agora, com

outra solidez e outros conhecimentos, que João Romero Chagas Aleixo soube carrear e organizar.

Ao longo de vários anos o autor soube investigar o que

sobre o assunto era documentável – pois muito material de arquivo desapareceu ou se fechou ao público – e mesmo soube aproveitar

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joão Romero Chagas Aleixo

bastante dele para a sua dissertação de mestrado apresentada à

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de

Lisboa, que lhe valeu ser convidado para investigador do Instituto de História Contemporânea. Embora agora e aqui, sem descurar a

boa e velha erudição, tenha entendido apresentar de forma menos académica um pouco do muito que sabe sobre a matéria – em que ninguém ainda tanto investigou.

Estudos, ensaios e crónicas explicando (ou procurando

explicar) a festa, suas raízes e expressões ao longo dos tempos e

trazendo episódios e figuras que divertem os de boa-memória. Regeneradores e progressistas nos finais da monarquia,

republicanos anti-clericais depois de 1910, reaccionários depois

com a ditadura militar, todos são convocados neste trabalho sobre uma manifestação religiosa de índole popular / clerical de um cariz especial e único. Que o autor tem vindo a esparsamente apresentar

sobretudo em artigos publicados em A Voz de Loulé e agora reunidos em livro para cómodo desfrute de curiosos e entendidos. Que bem

pode aproveitar a todos e assim melhor se apreciar o que Loulé

pode oferecer de diferente, próprio e admirável de criação popular. Coimbra, Maio de 2016.

Joaquim Romero Magalhães Historiador e Louletano

Professor Catedrático Jubilado

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da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

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joão Romero Chagas Aleixo

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Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Introdução Como Tudo Começou Corria o ano de 1996 quando comecei a compilar e a arquivar tudo aquilo que estivesse relacionado com o culto a Nossa Senhora

da Piedade, Mãe Soberana dos Louletanos. Comecei por alguns

objectos. A que se seguiram programas de Festas. E, passado pouco

tempo, avancei para a pesquisa de alguma documentação existente. A minha curiosidade era infindável. Não possuía limites.

No Verão de 1998 comecei a frequentar os primeiros

centros de documentação, bibliotecas e arquivos à procura de mais informação. Queria conhecer melhor o culto. Encontrar algumas respostas para outras tantas perguntas que sempre me inquietaram.

Satisfazer a minha infinita curiosidade. Para algum dia, quem sabe,

contar esta mágica história de Amor que os Louletanos tem com a sua padroeira há quase cinco séculos. História de Amor que, de tão bela, exigia e urgia ser contada. Assim pensava eu.

A Importância da Colaboração com A Voz de Loulé Se, em 1998, comecei, de forma amadora e sempre voluntária, a investigação em alguns arquivos, só passados nove anos, isto é, no dia 1 de Agosto de 2007, é que publiquei o meu primeiro artigo n’A

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joão Romero Chagas Aleixo

Voz de Loulé1 . As criticas foram todas elas bastante positivas. O que

me fez pensar: se até essa altura tinha reunido um conjunto vasto

e ecléctivo de fontes, bibliografia e artigos de jornal, era preciso trabalhá-los. Não mereceria tanto conhecimento, entretanto pacientemente amealhado e produzido, ser partilhado? E, foi assim

pensando, que após esse primeiro artigo logo outros se seguiram. Todos os anos. De forma ininterrupta. Desde 2007 até ao presente. No mesmo jornal de sempre: A Voz de Loulé, periódico louletano

fundado em 1952. Não tenho contabilizados ao certo quantos

foram, mas, pelas minhas contas, andarão muito perto dos cento

e dez artigos dedicados a este extraordinário culto publicados por mim nesse periódico louletano.

O Processo de Selecção dos Artigos No sentido de dar corpo à presente publicação decidi escolher o melhor da minha muito dispersa produção científica (para as

partes respeitantes aos estudos e aos ensaios) e literária (para as crónicas). Ao todo foram escolhidos dezassete artigos, do seguinte

modo discriminados: sete estudos, dois ensaios e oito crónicas. Coisa pouca, muito pouca, se levarmos em conta o muito que já

levo publicado nas mais diversas publicações: periódicos, revistas

de divulgação, catálogos de exposições, trabalhos académicos, comunicações científicas, e, finalmente, a própria tese de Mestrado. 1

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Cf. ALEIXO, João Romero Chagas, «O Desacato (Relato do rapto da Imagem da Nossa Senhora da Piedade acontecido em 1893), in A Voz de Loulé, ano 54.º, n.º 1.625, de 1 de Agosto de 2007, p. 17.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Por tal facto, a presente publicação apresenta-se como uma

obra desigual e heterógena, como são todas as obras compostas

por um conjunto muito variado de artigos. Trata-se, como teria que se tratar, de uma obra um pouco heterógena, por força de se

constituir como uma reorganização do muito material disperso. De um reagrupar do material dedicado ao culto a Nossa Senhora

da Piedade que eu tenho produzido e publicado desde 2007 até ao presente.

A maior parte do material que compõe este livro já foi

anteriormente publicado. Há, porém, também estudos inéditos.

Deste modo, na parte referente aos estudos pode-se ler o

estudo intitulado O Culto a Nossa Senhora da Piedade de Loulé: Sua

Origem e Breve Historial que não é mais do que o campo «Origem/ Historial» que eu escrevi, em Maio de 2015, para a candidatura da

manifestação religiosa da Mãe Soberana à inscrição no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial (P.C.I.) de Portugal 2.

O estudo dedicado aos Homens do Andor trata-se de um

artigo inédito.

O Culto durante a Primeira República (1910-1926), conforme

se encontra escrito, também nunca foi publicado. Refira-se, no

entanto, que aquando das comemorações do primeiro centenário da implantação da República, comemorado em 2010, publiquei 2

Este estudo fez parte do processo de candidatura da manifestação religiosa da Mãe Soberana à sua inscrição no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial (P.C.I.), que se encontra sob a alçada administrativa da Direcção Geral do Património Cultural (D.G.P.C.). Esta candidatura foi produzida, em 2015, por um equipa multidisciplinar de investigadores sob a coordenação científica da antropóloga Vanessa Cantinho de Jesus.

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joão Romero Chagas Aleixo

três artigos sobre esta temática (Festas da Piedade de 19123, 19134 e 19145) na imprensa regional; artigos, esses, que, anos mais tarde,

estiveram na origem da escrita do presente estudo necessariamente mais abrangente e dilatado no tempo como o seu próprio título indica.

Os estudos intitulados A Mãe Soberana e o Casamento de

S.A.R. a Rainha D. Maria II6, A Mãe Soberana na Literatura Popular7

e o Diccionário Mãesoberaneiro (O Léxico Falado pelos Homens do Andor)8 já foram anteriormente publicados na minha habitual

coluna de História n’A Voz de Loulé. 3

Cf. os seguintes artigos: ALEIXO, João Romero Chagas, «As Festas da Piedade de 1912: Programa, Relatos e Desacatos (1.ª parte)», in A Voz de Loulé, n.º 1.701, de 1 de Novembro de 2010, p. 15; IDEM, «As Festas da Piedade de 1912: Programa, Relatos e Desacatos (2.ª parte)», in A Voz de Loulé, n.º 1.702, de 15 de Novembro de 2010, p. 15. 4

Cf. IDEM, «Dois Políticos, Quatrocentos Sapateiros e Cinquenta Polícias ou as Festas da Piedade de 1913», in A Voz de Loulé, n.º 1.703, de 1 de Dezembro de 2010, p. 23.

5 Cf. IDEM, «A Intriga Política nas Festas da Piedade de 1914. A História de um Republicano Feroz, de um Bispo Falador e de uma Comissão Honrada», in A Voz de Loulé, n.º 1.704, de 15 de Dezembro de 2010, p. 19. 6 Cf. IDEM, «A Mãe Soberana e um casamento Real», in A Voz de Loulé, n.º 1.633, de 1 de Dezembro de 2007, p. 19.

7 Cf. IDEM, «A Mãe Soberana na Literatura Popular (1.ª parte)», in A Voz de Loulé, n.º 1.806, de 30 de Janeiro de 2015, p. 6; «A Mãe Soberana na Literatura Popular (2.ª parte)», in A Voz de Loulé n.º 1.807, de 13 de Fevereiro de 2015, p. 6; «A Mãe Soberana na Literatura Popular (3.ª parte)», in A Voz de Loulé n.º 1.808, de 27 de Fevereiro de 2015, p. 6.

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8 Cf. IDEM, «Dicionário Mãesoberaneiro. O Léxico Utilizado Pelos Homens do Andor (1.ª parte)», in A Voz de Loulé, n.º 1.710, de 15 de Março de 2011; «Dicionário Mãesoberaneiro. O Léxico Utilizado Pelos Homens do Andor (2.ª parte)», in A Voz de Loulé n.º 1.711, de 1 de Abril de 2011; «Dicionário Mãesoberaneiro. O Léxico Utilizado Pelos Homens do Andor (3.ª parte)», in A Voz de Loulé n.º 1.712, de 15 de Abril de 2011; «Dicionário Mãesoberaneiro. O Léxico Utilizado Pelos Homens do Andor (4.ª parte)», in A Voz de Loulé n.º 1.713, de 1 de Maio de 2011; «Dicionário Mãesoberaneiro. O Léxico Utilizado Pelos Homens do Andor (5.ª parte)», in A Voz de Loulé n.º 1.714, de 13 de Maio de 2011 (5.ª parte).

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Na parte referente às crónicas, à excepcção do artigo

intitulado Uma Festa Invulgar… que me foi encomendado, em 2012, por um dos editores da revista Itinerante9 para ser publicado no

número que essa revista dedicou a sete santuários portugueses de peregrinação10, todos os restantes artigos foram publicados n’A Voz de Loulé.

Na parte respeitante às crónicas troco um registo mais

historiográfico por um registo mais literário. Como o próprio conceito de crónica requer. No qual, diga-se de passagem, não me

sinto menos confortável. Porque também gosto dessa roupagem. Dessa forma de escrita. Curta, incisiva e memorialista. Ou como

gosta de nos ensinar o Professor Joaquim Romero Magalhães: «para se ser um bom Historiador tem que se gostar de escrever,

de ter o prazer da escrita». Prazer que eu tal como Joaquim

Romero Magalhães também partilho e cultivo. Com as necessárias diferenças, como é óbvio.

Assim sendo, nessa terceira parte da obra dou especial

atenção às personagens normalmente esquecidas por parte dos

historiadores, e, por esse facto, nunca fixadas para memória futura. Deste modo, como investigador entusiasta e seguidor da

9

Cf. IDEM, «Uma Festa Invulgar…», in revista Itinerante, n.º 7, de Junho de 2012, Lisboa, Itinerante, Divulgação Histórica e Cultural, crl., 2012, p. 38. 10

Cf. revista Itinerante (Por Trilhos de Santuários de Portugal), n.º 7, de Junho de 2012, Lisboa, Itinerante, Divulgação Histórica e Cultural, crl., 2012.

35

joão Romero Chagas Aleixo

denominada corrente historiográfica History from Below11, em tradução para português História dos Subalternos, presto a minha

homenagem a personagens bem populares da nossa vila, agora

cidade, de Loulé. Pondo em prática os pressupostos defendidos por

essa determinada corrente historiográfica, repesco para a História, dando corpo de letra, personagens tão populares como a Maria das Bananas (Ana Maria), o Manel da Baracinha (Manuel Tereza), para

não falar nesse mágico actor colectivo que era – digo era porque já não os vislumbro –, os saudosos bêbados Mãesoberaneiros, de tão grata

memória. Pelo menos para mim. Que sempre os confessadamente admirei e que, não raras vezes, provocaram em mim uma incontida emoção. Por onde andarão vocês? E ainda arranjei espaço para falar da minha avó Maria Margarida e da minha primeira catequista.

A Escolha do Título

Terminada a selecção dos vários artigos que iriam compor a obra o passo seguinte seria baptizá-la. Encontrar um título. Rapidamente vieram-me vários títulos à cabeça, uns melhores outros piores. Mas,

no final, optei pelo mais óbvio e por aquele que me pareceu ser mais eficaz: Mãe Soberana. Estudos. Ensaios. Crónicas. Escorreito. 11

36

Corrente historiográfica ligada ao Marxismo surgida na Índia e em Inglaterra ao longo da década de 1960. A History from Below defendia que todas as pessoas deveriam ter lugar na História, que todas as pessoas, independentemente da sua origem ou classe social, seriam passiveis de conferirem objectos de investigação aos historiadores. Que a História não deveria somente estudar (biografar) os grandes actores da História, aqueles que pelos seus feitos ficaram gravados na História, mas, também, que se deveria dar voz aos «sem voz da História» ou, como escreveu o historiador inglês E. P. Thompson (19241993), trazer para a História as enormes «massas de esquecidos».

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Discriminado. Genuíno. Simples. Não enganaria ninguém. Quem se interessasse pela obra saberia o que nela poderia encontrar.

Um Pouco de História...

Não se sabe ao certo quando é que terá surgido a denominação

popular de Mãe Soberana, denominação a que eu acrescento

sempre «dos Louletanos», com maiúsculas e tudo. Assim mesmo:

Mãe Soberana dos Louletanos, como eu gosto de escrever e de dizer. Sabe-se pouco sobre esta denominação. O que ela representa? Quem a inventou? Quando é que surgiu? Ao certo não se sabe. O que existe, por ora, são meras hipóteses interpretativas. Cada um

de nós terá a sua. Eu tenho a minha. Passo, então, a propor-vos a minha hipótese.

Esta bela expressão ou, se preferirem, denominação popular,

surgiu para acrescentar ou contrapor à denominação canónica de Nossa Senhora da Piedade de que as fontes já falavam na segunda metade do século XVI (1565). E que sempre falaram. Nossa Senhora

da Piedade: e nunca Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora das Lágrimas ou Nossa Senhora do Pranto. Que também as há. Porque, como se sabe, há Senhoras para tudo.

Até ao presente, o registo documental mais antigo, por mim

encontrado, referente a esta denominação – Mãe Soberana – data

de 19 Maio de 1912 e encontra-se publicado numa edição do jornal

37

joão Romero Chagas Aleixo

O Algarvio12, editado na vizinha vila (ainda não concelho) de São

Brás de Alportel. Vejam o ano: 1912! Logo no início da Primeira

República (1910-1926). Tempos conturbados. Difíceis para a Igreja

e para os monárquicos. A Lei de Separação do Estado das Igrejas

tinha sido promulgada há pouco mais de um ano, em Abril de 1911, e, por essa altura, já se encontrava em plena fase de implementação por todo o país.

Mas quem o terá criado? Provavelmente algum monárquico,

querendo, com tal denominação, afectar a popular Imagem à

Monarquia. Trata-se apenas de uma (boa) hipótese. Porque Nossa Senhora – qualquer que seja a sua invocação canónica – sempre foi Mãe, Mãe do seu Filho Jesus Cristo e de todos os homens e mulheres.

Mãe de todas as Mães. Acresce a este facto um outro: desde 1646, e por força de um decreto régio, Nossa Senhora (da Conceição) foi

proclamada rainha e protectora do reino de Portugal13. Em resumo:

12

Cf. «Por Loulé», in O Algarvio, n.º 9, de 19 de Maio de 1912, p. 3.

O Algarvio foi um «Semanário Democrático Católico» de curta duração. Fundado no dia 17 de Março de 1912 apenas se publicaram dezoito números, tendo o periódico sido extinto após a publicação da sua edição de 28 de Julho de 1912. Foi sempre um semanário «democrático e católico» com forte influência monárquica e conservadora. Encontravase sedeado na vila de São Brás de Alportel. E saía aos Domingos. Ao longo da sua curta existência teve sempre como principal inimigo o também semanário são-brasense Ecos do Sul, este último confessadamente republicano (cf. MESQUITA, José Carlos Vilhena, História da Imprensa do Algarve, volume II, Faro, Comissão de Coordenação da Região do Algarve, 1988, pp. 341-343). 13

38

No dia 25 de Março de 1646 o rei D. João IV (1604-1656; r.: 1640-1656) de Portugal proclamou a Imagem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa rainha e protectora do reino de Portugal. Na ocasião, o soberano D. João IV aproveitou para oferecer a sua coroa à dita Imagem, pelo que desde essa altura mais nenhum monarca utilizou a coroa real.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

desde sempre Mãe, e, a partir de D. João IV, também rainha. Mãe e rainha. Rainha e Mãe. Duplamente e em simultâneo. Então porque não apodá-la de Mãe Soberana?

Um Verdadeiro Estandarte de Louletania O que representa, então, a secular Imagem da Mãe Soberana dos Louletanos para os filhos de Loulé? O que representa este culto

para a maioria dos seus fiéis? Este secular culto deve ser olhado

como sendo mais do que a soma de todas as devoções individuais dos seus fiéis. Deverá ser visto como uma recordação colectiva. Como um culto da comunidade. Como a consciência de um grupo.

Como uma esperança comum. Como o maior denominador comum entre todos os louletanos. Como a maior, mais bela e sentimental

marca identitária entre os filhos de Loulé. Um verdadeiro símbolo, pela sua persistência e perenidade, do que é ser-se louletano. Um

estandarte de Louletania. Uma espécie de autobiografia de um povo. De todo um povo. De todo o povo louletano. Que, de geração

em geração, por força do sangue, aprendeu, por definição, a ser também ele Mãesoberaneiro. Ou como nos resumiu, lapidarmente, António Aleixo (1899-1949): «Porque a alma desse povo / Vai dentro daquele andor»14. Alguém têm dúvidas?

14

João Romero Chagas Aleixo Historiador e Louletano

Cf. ALEIXO, António Fernando [sic.], Uma Linda Quadra Glosada à Nossa Senhora da Piedade de Loulé, impresso sobre papel, 1925.

39

joão Romero Chagas Aleixo

40

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Estudos

41

joão Romero Chagas Aleixo

pp. 38-39 Procissão de Nossa Senhora da Piedade Festa Grande – c. 1900

42

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

1

O Culto a Nossa Senhora da Piedade de Loulé: Sua Origem e Breve Historial1 Pouco se sabe sobre a origem deste culto Mariano em Loulé. A sua

referência mais antiga, que nos chegou até aos nossos dias, faz

parte das Visitações da Ordem de Sant’Iago às Igrejas dos Concelhos de Faro, Loulé e Aljezur que data de Maio de 1565. Ora, acontece

que a Visitação imediatamente anterior – a Visitação da Ordem de Sant’Iago às Igrejas do Concelho de Loulé no ano 1534 – nada refere em relação à existência da ermida. De onde se deve pressupor, com enorme certeza, que, pelo menos, em 1534 ainda não existia a ermida.

Assim sendo, na Visitação de 1565 pode-se ler a seguinte

passagem: «Achamos que averaa doze anos que foy esta irmyda edificada de novo por Bartolomeu Fernandez, çeralheyro, a sua custa, e jaz nella enterrado, e nas costas da dita irmyda estaa huma

1

Este estudo fez parte do processo de candidatura da manifestação religiosa da Mãe Soberana à sua inscrição no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial (P.C.I.), que se encontra sob a alçada administrativa da Direcção Geral do Património Cultural (D.G.P.C.). Esta candidatura foi produzida, em 2015, por uma equipa multidisciplinar de investigadores sob a coordenação científica da antropóloga Vanessa Cantinho de Jesus.

43

joão Romero Chagas Aleixo

casa madeyrada de castanho, de telha vãa, em que vive ho irmytão

per nome Francisco da Payxão»2. De onde é possível concluir que a ermida terá sido edificada em 1553.

Mas quem a terá mandado edificar? Ao certo não se sabe

quem foi. As dúvidas preexistem.

A Visitação refere Bartolomeu Fernandez, um serralheiro,

que a terá edificado às suas custas.

José Hermano Saraiva defende outra interpretação.

Baseando-se na Chronica da Provincia da Piedade, primeira Capucha de toda a Ordem, & Regular Observancia de nosso Seraphico Padre S.

Francisco, dedicada ao Serenissimo Senhor Dom Joam, Principe de Portugal, e Duque da Real Casa de Bragança3, Hermano Saraiva afirma que a Imagem de Nossa Senhora da Piedade veio da Alemanha, por

intermédio da louletana - natural de Quarteira - D. Francisca de Aragão (1536 ou 1537-1615)4 que lá se encontrava no tempo da

Reforma. Nesse período, em que várias igrejas, abadias, mosteiros

2 Cf. Luísa Fernanda Guerreiro MARTINS e Padre João Coelho CABANITA, «Visitação das Igrejas dos Concelhos de Faro, Loulé e Aljezur pertencentes à Ordem de Sant’Iago, 1565», in al’-ulyã, Revista do Arquivo Histórico Municipal de Loulé, n.º 8, Loulé, edição do Arquivo Municipal de Loulé, 2001/2002, p. 247.

3 Cf. MONFORTE, Frei Manuel, Chronica da Provincia da Piedade, primeira Capucha de toda a Ordem, & Regular Observancia de nosso Seraphico Padre S. Francisco, dedicada ao Serenissimo Senhor Dom Joam, Principe de Portugal, e Duque da Real Casa de Bragança, composta por Frey Manoel de Monforte, Prègador, filho da mesma Provincia, segunda impressão, Lisboa, na Officina de Miguel Manescal da Costa, Impressor do Santo Officio, Livro III, capítulo XXIII, 1751 [1696], pp. 348-352. 4

44

Sobre D. Francisca de Aragão e D. Leonor de Milá, veja-se, por exemplo, a seguinte obra biográfica: VELLOSO, J. M. de Queiroz, Uma alta figura feminina de Portugal e de Espanha nos séculos XVI e XVII D. Francisca de Aragão, Barcelos, Portucalense Editora, 1931.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

e imagens foram queimadas, D. Francisca de Aragão enviou várias relíquias para a sua terra natal, Loulé, e, segundo Saraiva, esta

imagem terá sido uma dessas peças enviadas. As relíquias e outras

peças de arte sacra eram enviadas para o Convento de Santo António

da Piedade, pertença dos frades franciscanos Capuchos Descalços,

convento que tinha sido fundado pelos pais de D. Francisca de Aragão, Nuno Rodrigues Barreto e Dona Leonor de Milá, em 15465.

Por outro lado, eu defendo a tese de que foram os frades

franciscanos de Loulé a encomendar a Imagem e a edificar a

ermida. Para tal, baseio-me num conjunto de argumentos, dos quais destacarei os seguintes:

a) Ao longo do século XVI «alguns lugares de peregrinação

dedicados à Virgem tiveram um novo impulso sob a iniciativa de

membros das ordens religiosas, os quais propagaram a devoção a

determinadas evocações marianas», com foi o caso «da Senhora do Carmo da Penha (Guimarães) obra de carmelitas calçados»6 ;

b) Ora, no caso do culto a Nossa Senhora da Piedade sabe-

se que foram os franciscanos os seus grandes introdutores e disseminadores em Portugal. Em 1500 foi fundada, em Portugal, a

Província da Piedade, num convento a meia légua de Vila Viçosa, em sítio onde existia uma antiga ermida dedicada a Nossa Senhora

5

Cf. programa A Alma e a Gente, R.T.P., de 28 de Maio de 2004.

6 Cf. Pedro PENTEADO, «Peregrinações e Santuários», in História Religiosa de Portugal, dirigida por Carlos Moreira Azevedo, volume II, Humanismos e Reformas, coor. João Francisco Marques e António Camões Gouveia, Lisboa, Circulo de Leitores, 2000, p. 355.

45

joão Romero Chagas Aleixo

da Piedade. Os frades franciscanos Capuchos ou Observantes concederam a invocação de Piedade à sua nova casa, assim como

ao título da nova província – que englobava todos os conventos situados no Alentejo e no Algarve – por eles formada7;

c) A proximidade temporal na edificação destes dois templos

católicos a isso também ajuda a induzir. Se o convento de Santo

António começou a ser construído em 1546, a ermida de Nossa Senhora da Piedade terá sido edificada, apenas sete anos depois, isto é, em 1553;

d) A proximidade geográfica entre os dois templos católicos,

tendo a ermida sido edificada numa «conexão visual», assim como numa «conexão viária» do primitivo convento de Santo António8;

e) A Visitação de 1565 informa-nos, ainda, que na ermida

havia «huma vestimenta muito velha que lhe derão os padres do mosteiro» e que Dona Leonor de Milá, fundadora do Convento de Santo António, tinha deixado «hum caliz de prata» à ermida9.

7 Cf. ALMEIDA, Fortunato de, História da Igreja em Portugal, volume II, Porto-Lisboa, Livraria Civilização Editora, 1968, p. 168, e cf., igualmente, MONFORTE, Frei Manuel, op. cit., 1751 [1696], p. 27 e seguintes.

8 Sobre este assunto, consulte-se o seguinte artigo: MARADO, Catarina Almeida, «A propósito da ‘envolvente’ do património construído: o caso do antigo convento capucho de Loulé», in al-‘ulyà, Revista do Arquivo Municipal de Loulé, n.º 12, Loulé, edição do Arquivo Municipal de Loulé, 2008, pp. 131-141.

46

9 Cf. MARTINS, Luísa Fernanda Guerreiro e CABANITA, Padre João Coelho MARTINS, art. cit., p. 247 e cf., igualmente, ALEIXO, João Miguel Romero Chagas Viegas, O culto a Nossa Senhora da Piedade, Mãe Soberana dos Louletanos, em Loulé (1806-2013), tese de Mestrado em História Contemporânea, realizada sob a orientação científica do Professor Doutor Fernando José Mendes Rosas (F.C.S.H./U.N.L.) e do Professor Doutor Vítor Manuel Parreira Neto (F.L./U.C.), apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa em Outubro de 2013, Lisboa, 2013, pp. 7-8 e p. 213.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

No que diz respeito, mais concretamente, à proveniência da

sagrada Imagem as teses também se dividem. Francisco Lameira

defende que a Imagem de Nossa Senhora da Piedade tenha sido,

provavelmente, executada por um imaginário farense nos finais do século XVI ou nos princípios do século XVII. Imagem que se insere

no formulário maneirista dessa época10. Constituída primitivamente de forma maciça, ter-lhe-á sido, posteriormente, feita uma cavidade

nas costas de forma a aligeirar o seu peso. Por outro lado, José Hermano Saraiva defende que a Imagem foi executada na Flandres ou na Alemanha e que, posteriormente, foi enviada da Alemanha para Loulé11.

Sobre a origem da celebração das festividades cíclicas

anuais em honra de Nossa Senhora da Piedade, Joaquim Romero Magalhães apresenta a sua tese. Para o historiador a Festa – a face

mais visível deste culto Mariano – terá surgido de forma espontânea

e por intermédio das populações rurais. Romero Magalhães defende que terão sido as populações rurais, que necessitavam de água para

as suas colheitas, os primeiros devotos da Virgem. O historiador esclarece: «A intervenção religiosa oficial eclesiástica, pouco ou nada tinha inicialmente com o caso. Era popular e espontâneo o

requerimento, quanto muito encabeçado pela Câmara, autoridade civil e laica». Para, de seguida, concluir: «Água indispensável aos

campos, em especial nos fins de Março e princípios de Abril. Ora esse

10 Cf. LAMEIRA, Francisco, A Ermida de Nossa Senhora da Piedade, Loulé, Câmara Municipal de Loulé – Divisão de Cultura e Património Histórico, 2000.

11

Cf. programa A Alma e a Gente, R.T.P., de 28 de Maio de 2004.

47

joão Romero Chagas Aleixo

é o tempo da Páscoa. Aí a disciplina eclesiástica terá agido. Preces

por água misturadas com a paixão não fariam sentido. Festa possível

só depois da Páscoa – que não pode ultrapassar 25 de Abril. Por que não conciliar uma fé e uma necessidade popular com o calendário

religioso? Por que não fazer as rogativas em concordância com os tempos litúrgicos?»12.

Do ponto de vista documental, a documentação mais antiga

referente à administração e à gestão do culto que nos chegou até aos nossos dias trata-se do Livro de Registo de Contas da Confraria

de Nossa Senhora da Piedade, 1652-1683. Confraria que existiu, pelo menos, até 178613.

Sem que se saiba ao certo o motivo, no início do século

XIX (1803) a entidade que gere o culto passa a designar-se por «Mordomia de Nossa Senhora da Piedade», designação que conservaria até 1931, data em que todos os bens da Mordomia,

depois de nacionalizados durante a Primeira República, são devolvidos, através de escritura pública, à recém constituída «Corporação Fabriqueira Paroquial de São Sebastião de Loulé»14.

No século XVIII a Imagem de Nossa Senhora da Piedade era

já bastante popular na vila, assim como em toda a província. Prova

dessa popularidade são as inúmeras procissões extraordinárias decretadas pelas várias vereações municipais, uma vez que era

12 Cf. Joaquim Romero MAGALHÃES, «A Mãe Soberana (Uma interpretação)», in A Voz de Loulé, n.º 1.034, de 25 de Abril de 1985, p. 4.

48



13

Cf. ALEIXO, João Miguel Romero Chagas Viegas, op. cit., p. 16 e p. 138.

14

Cf. ibidem, pp. 53-55.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

a Câmara Municipal a entidade responsável pela organização desta parte mais visível do culto15. Deste modo, sempre que assim

entendesse, a Câmara Municipal de Loulé mandava conduzir a

Imagem da sua ermida para a vila. Foi isso que aconteceu, pelo

menos, em 160516, em 175017, em 177318 e, ainda, em 189619 por

motivos de seca; em 1835, por forma a se comemorar o casamento de Sua Alteza Real a rainha D. Maria II (1819-1853)20; e, em 1856,

por causa de um tremor de terra que assolou toda a região21.

Durante todo o século XIX competia à Mordomia administrar

e gerir o culto. As suas principais fontes de receitas eram as seguintes:

receita obtida através dos foros, receita obtida no peditório pelos

campos antes do período das Festas, receita obtida através do peditório com a coroa, e receita obtida pela Mesa no dia da Festa

Grande. Do lado das despesas, as principais rubricas encontrava-

se relacionadas com a aquisição de novas alfaias religiosas para a

ermida, a realização de obras na ermida, a compra de novos andores

15

Cf. SANTA MARIA, Frei Agostinho de, Santuário Mariano, tomo VI, 1716, p. 412.

16 Cf. A.M.L., Livros de Actas de Vereações, 1604-1606, sessão de 30 de Março de 1605, fl. 97. 17 Cf. «Curiosidades», in O Algarvio, n.º 3, de 14 de Abri de 1889, p. 3 e cf., igualmente, ALEIXO, João Miguel Romero Chagas Viegas, op. cit., pp. 36-37.

18

Cf. ALEIXO, João Miguel Romero Chagas Viegas, op. cit., pp. 36-37.

19

Cf. O Louletano, de 19 de Abril de 1896, p. 1.

20 Cf. A.M.L., Livro das Actas de Vereação de 1834-1837, fl. 46 v.º. e fl. 47 e cf., igualmente, ALEIXO, João Miguel Romero Chagas Viegas, op. cit., pp. 37-39 e p. 217.

21 Cf. OLIVEIRA, Ataíde de, Monografia do Concelho de Loulé, 3.ª edição, edição similada, Faro, Algarve em Foco Editora, 1989 [1905], pp. 62-63.

fac-

49

joão Romero Chagas Aleixo

processionais, o melhoramento de caminhos no Monte da Piedade, entre outras situações22.

O grande crescimento populacional da vila no decorrer da

segunda metade do século XIX provocou um aumento das pessoas que assistem às Festas como nos comprovam os inúmeros relatos

jornalísticos constantes em periódicos locais, regionais e até nacionais, que, para vários anos, avançam com projeções quanto

ao número de fiéis que terão assistido à mesma23, como são disso exemplo as seguintes estimativas: Festa Grande de 1895: «mais

de 20.000 pessoas!»24; Festa Pequena de 1901: «não inferior a 10 mil»25; Festa Grande de 1914: «certamente excedente a quinze mil pessoas»26. As receitas obtidas no dia da Festa Grande

aumentam, praticamente, de ano para ano, desde 1835 até 190027.

Em contraponto, as receitas anuais obtidas no peditório pelos campos registam uma tendência decrescente entre 1886 e 191128. As «esmolas para a Virgem» sofriam uma alteração económica: as

esmolas em géneros, como, por exemplo, azeite, trigo, milho, grão, figo, chícharos, alfarroba e amêndoa (economia de subsistência)

Cf. ALEIXO, João Miguel Romero Chagas Viegas, op. cit., pp. 16-35.



23



25





50

22



Cf. ibidem, pp. 68-72.

24

Cf. «Festejos em Loulé», in O Século, n.º 4.767, de 30 de Abril de 1895, p. 2.

Cf. O Pregoeiro, de 11 de Abril de 1901.

26

Cf. «Senhora da Piedade», in O Algarve, n.º 319, de 3 de Maio de 1914, p. 2.

27

Cf. ALEIXO, João Miguel Romero Chagas Viegas, op. cit., pp. 27-30.

28

Cf. ibidem, pp. 24-26.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

eram, aos poucos, substituídas por esmolas em dinheiro (economia monetária). O processo de urbanização do concelho avançava lentamente29.

No dia 2 de Abril de 1893 ocorre um facto que mudará para

sempre o desenrolar das festividades anuais. Os progressistas locais,

querendo criar dificuldades ao executivo camarário recentemente eleito (regeneradores) deslocam-se à ermida e raptam a Imagem,

trazendo-a para a vila. A polémica foi muita. Houve acusações de ambos os lados. E somente o bispo do Algarve poria fim ao desacato, ordenando que a Imagem regressasse à sua ermida.

Porém, este inusitado acontecimento estaria na origem de

duas importantes alterações no decorrer das festas. A primeira relaciona-se com o local de permanência da Imagem na vila: se, até

essa altura, a Imagem permanecia na igreja Matriz de São Clemente

(sede paroquial da freguesia de São Clemente), a partir desse ano começará a permanecer, regularmente, na igreja da Ordem

Terceira de São Francisco (sede paroquial da nova freguesia de

São Sebastião, criada em Agosto de 1890). A segunda alteração diz respeito à data em que se realiza a Festa Grande: se, até essa altura, a Festa Grande celebrava-se, tradicionalmente, no dia de Nossa Senhora dos Prazeres, isto é, na segunda-feira a seguir às oitavas da Páscoa, a partir desse ano a mesma passa a realizar-se no terceiro Domingo de Páscoa30.



29

Cf. ibidem, pp. 19-21 e pp. 34-35.

30

Cf. ibidem, p. 16 e pp. 41-50.

51

joão Romero Chagas Aleixo

Nos finais da década de 1880 aparecem os primeiros relatos

escritos do extravasamento do culto além província. Relatos que

nos descrevem a vinda até Loulé de inúmeros devotos provenientes do Baixo Alentejo (por exemplo: Almodôvar e Castro Verde) que se

deslocavam até à vila para oferecer «esmolas de trigo» e «esmolas de cera» à Virgem por alturas da feira anual de Loulé31.

Tendência que terá aumentado com a chegada do caminho-

de-ferro até Faro (em Fevereiro de 1889). Este progresso tecnológico

vem encurtar as distâncias e possibilitar a deslocação de cada vez mais pessoas a Loulé no dia da Festa Grande; facto que nos ajuda

a explicar o aparecimento, na segunda década do século XX (por exemplo: 1912, 1913 e 1914), de vários anúncios na imprensa local

e regional de excursões organizadas de comboio a saírem das várias

«estações de Beja», assim como «de todas as estações e apeadeiros do Algarve»32, anunciando bilhetes especiais de ida-e-volta para

quem se quisesse deslocar até Loulé para assistir à Festa Grande.

Com a implantação da República, em Outubro de 1910, o

mundo religioso em Portugal sofre uma forte ofensiva. Entre Outubro

de 1910 e Abril de 1911, o novo regime republicano publica um conjunto de leis que visa laicizar as consciências individuais e, por

conseguinte, a própria sociedade. Com a entrada em vigor da Lei de

Separação do Estado das Igrejas, promulgada pelo ministro Afonso Costa em 20 de Abril de 1911, a «Mordomia de Nossa Senhora da

52



31

Cf. «Festividade», in O Algarvio, n.º 6, de 5 de Maio de 1989, p. 2.

32

Cf. «Festas em Loulé», in O Heraldo, n.º 210, de 25 de Abril de 1914, p. 2.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Piedade» vê todos os seus bens serem nacionalizados33. Situação, aliás, comum a todas as restantes mordomias religiosas do país.

O clima de confronto político-religioso imprimido pelos

principais responsáveis políticos republicanos vai originar inúmeros conflitos em várias manifestações religiosas, um pouco

por todo o país. E, em Loulé, a situação não seria diferente. Nos primeiros anos após a implantação da República regista-se um conjunto de escaramuças, altercações e confrontos entre devotos e

não devotos, tendo mesmo, num caso (Festa Pequena de 1913), sido aberto um processo judicial34. Todavia, o desacato mais grave terá

ocorrido na Festa Grande de 1912, onde o delegado do Procurador da República e um conhecido republicano local foram agredidos no

decorrer da Festa por assistirem «cobertos», isto é, sem retirarem os seus chapéus em sinal de deferência, ao sermão35. Este facto levou

a que os lideres republicanos locais (administrador do Concelho e

presidente da Câmara Municipal de Loulé) tentassem, por todos os meios ao seu alcance, impedir a realização das Festas de 191336 e de



33

Cf. ALEIXO, João Miguel Romero Chagas Viegas, op. cit., pp. 53-55.

34

Cf. ibidem, pp. 55-67 e pp. 133-134.

35 Cf. ALEIXO, João Romero Chagas, «As Festas da Piedade de 1912: Programa, Relatos e Desacatos (1.ª parte)», in A Voz de Loulé, n.º 1.701, de 1 de Novembro de 2010, p. 15; ALEIXO, João Romero Chagas, «As Festas da Piedade de 1912: Programa, Relatos e Desacatos (2.ª parte)», in A Voz de Loulé, n.º 1.702, de 15 de Novembro de 2010, p. 15; e cf., igualmente, ALEIXO, João Miguel Romero Chagas Viegas, op. cit., pp. 58-61.

36 Cf. ALEIXO, João Romero Chagas, «Dois Políticos, Quatrocentos Sapateiros e Cinquenta Polícias ou as Festas da Piedade de 1913», in A Voz de Loulé, n.º 1.703, de 1 de Dezembro de 2010, p. 23.

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joão Romero Chagas Aleixo

Foto-Postal de Nossa Senhora da Piedade, J. Nogueira Foto, Loulé, 1948.

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Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

191437, à imagem do sucedido com a maior parte das manifestações religiosas ao ar livre realizadas no Algarve e no restante território nacional. No entanto, a fé e o bairrismo local assim não o permitiu.

Na segunda metade do século XX o culto Mariano Louletano

ultrapassa os limites da esfera regional, alcançando uma maior

projeção à escala nacional. Para isso concorrem um conjunto alargado de factores. Vejamos, apenas, alguns.

Em 1954 o estandarte processional de Nossa Senhora

da Piedade é, juntamente com os estandartes processionais

representativos dos santuários de Nossa Senhora da Conceição,

de Vila Viçosa, de Nossa Senhora do Sameiro, de Braga, e de Nossa Senhora de Fátima, um dos quatro estandartes de santuários Marianos portugueses que se deslocam a Roma para participarem

na «Festa da Realeza de Maria» em representação do culto Mariano

em Portugal, onde se fizeram representar quatrocentos estandartes

dos mais importantes santuários marianos de todo o mundo católico38.

Em Abril de 1959 a Rádio Televisão Portuguesa (R.T.P.),

apenas dois anos após ter iniciado as suas emissões regulares, desloca uma equipa de profissionais até Loulé para realizar uma reportagem da Festa Grande desse ano.

No dia 31 de Julho de 1961, e por sua iniciativa pessoal, o

37 Cf. ALEIXO, João Romero Chagas, «A Intriga Política nas Festas da Piedade de 1914. A História de um Republicano Feroz, de um Bispo Falador e de uma Comissão Honrada», in A Voz de Loulé, n.º 1.704, de 15 de Dezembro de 2010, p. 19.

38

Cf. ALEIXO, João Miguel Romero Chagas Viegas, op. cit., pp. 77-80.

55

joão Romero Chagas Aleixo

cardeal D. Manuel Gonçalves Cerejeira desloca-se propositadamente até Loulé para conhecer a Imagem e o santuário de Nossa Senhora da Piedade39.

Por outro lado, a expansão do culto também é passível de

ser comprovada através dos locais de onde são oriundas as pessoas que registam as suas promessas à Virgem. Se a maior parte dos fiéis que registam as suas promessas continuam a se deslocar de todas as latitudes do Algarve, outros há que se deslocam do Alentejo, da grande Lisboa, da região Norte e até do estrangeiro. O culto

rompia, cada vez mais, as suas fronteiras regionais. Alastrava-se ao

restante território nacional. Para este fenómeno terá concorrido a

conjugação de dois factores: por um lado, a melhoria dos meios e das vias de comunicação a nível nacional; e, por outro, a emigração louletana para outras localidades do país e até do estrangeiro40.

No que diz respeito ao desenrolar da Festa Grande esta sofreu

algumas alterações ao longo do século XX. Desde do itinerário do percurso processional até às corporações que eram convidadas a incorporarem a procissão. Se durante o período do Estado

Novo (1933-1974) a Legião e a Mocidade Portuguesa marcavam presença no seio da procissão, a partir de 1970 o Agrupamento

de Escuteiros de Loulé (Agrupamento n.º 290 do C.N.E., fundado a 25 de Maio de 1969 e tendo como patrona e padroeira a Nossa Senhora da Piedade) também passa a incorporar a procissão. Por

56



39

Cf. ibidem, pp. 80-82.

40

Cf. ibidem, pp. 94-97.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

outro lado, nos primeiros anos da década de 1970, por decisão do

pároco responsável pela paróquia de São Sebastião, deixam de ser

cobrados bilhetes de acesso à ladeira, prática que terá tido o seu início nos anos trinta do século XX. Durante esse período o acesso à segunda ladeira (caminho de pedra paralelo à ladeira por onde sobe o andor) era cobrado a todos aqueles que quisessem visualizar mais de perto a condução da Imagem à sua ermida; revertendo a

receita obtida, através da venda desses lugares, para a Comissão Promotora das Festas da Piedade41. O acesso à última parte da Festa

Grande, aquela que suscita maior espectativa entre todos os fiéis, democratizava-se. Finalmente, no final da missa campal da Festa Grande de 1980, surge a tradição, mantida até aos nossos dias, da

cerimónia de Consagração do concelho de Loulé a Nossa Senhora da Piedade, Mãe Soberana dos Louletanos 42.





41

Cf. ibidem, p. 106.

42

Cf. ibidem, p. 176.

57

joão Romero Chagas Aleixo

58

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

2 Os Homens do Andor 1. Apresentação Existirá alguma localidade (aldeia, vila ou cidade) em Portugal

em que, antes de se dar início às suas Festas locais, os Homens do Andor sejam abençoados e benzidos, em cerimónia pública, por um

pároco? Em que durante o percurso da procissão sejam gritados, pelos populares que a incorporam ou a assistem, «Vivas aos Homens

do Andor»? Em que os homens que transportam o andor da Virgem local, depois de terminada a procissão, percorrem as principais artérias da localidade para que a população os saúde pelo seu

esforço? Existirá, porventura, alguma localidade em Portugal em

que os homens que transportam o andor da Virgem local sejam

patronos de uma rua1 e de uma rotunda? Que foram homenageados

1 Na sessão ordinária de vereação da Câmara Municipal de Loulé do dia 28 de Março de 2007 foi decidido atribuir uma rua aos Homens do Andor. A placa toponímica da «rua Homens do Andor Mãe Soberana», foi descerrada no decorrer da Festa Pequena de 2007, que nesse ano se realizou a 8 de Abril (cf. PALMA, Jorge Filipe Maria da, Dicionário Toponímico – Cidade de Loulé, Loulé, edição da Câmara Municipal de Loulé, 2009, pp. 176177).

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joão Romero Chagas Aleixo

através de uma escultura pública feita em ferro forjado2? Ou, então,

que viram a autarquia local outorgar-lhes uma Medalha de Mérito Municipal3?

Mas porquê tantas homenagens? Tanto reconhecimento?

Tanto prestígio social ao nível local? Porque esses oito escolhidos Homens do Andor têm a missão anual de transportar o andor da Virgem louletana. Transporte, esse, carregado de mitologia, mística e simbolismo.

A missão desses oito Homens do Andor não é fácil. Logo, não

está ao alcance de qualquer homem da terra. Depois de «passearem» a Virgem pelas principais artérias de Loulé ainda a têm de «levar

até à sua casa», subindo a íngreme ladeira que conduz à sua ermida. Quantos Homens é que conseguiriam subir uma ladeira com cerca de 300 metros de comprimento, com uma inclinação média de

2 A escultura em ferro forjado dedicada aos Homens do Andor é da autoria do escultor louletano Miguel Ângelo Cheta, tendo para isso utilizado um desenho feito pelo artista olhanense José Timótio, em 1986. O elemento escultório foi inaugurado no decorrer da Festa Pequena de 2009, que nesse ano se realizou a 12 de Abril.

60

3 A Medalha de Mérito Municipal – Grau Prata foi entregue aos Homens do Andor pelo vereador da cultura da C.M.L., Dr. Sebastião Francisco Seruca Emídio, no dia do município de Loulé de 1996, que nesse ano se celebrou no dia 16 de Maio.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

15,43%4 e com um andor aos ombros pesando mais de 270 kg 5?

São eles os actores principais da Festa Pequena e da Festa

Grande. São uma espécie de «oficiantes da Festa», uma vez que

assim que a Imagem de Nossa Senhora da Piedade transpõe a porta

da igreja paroquial a autoridade da Festa passa para os Homens

do Andor. Passam a ser eles uma espécie de «oficiantes da Festa».

Porque são eles que marcam o passo do cortejo, estipulam o ritmo do andamento e decidem as paragens para descanso. Dentro da

igreja a autoridade formal pertence ao clero; fora dela, nas ruas, a autoridade passa para os Homens do Andor. Mas nem sempre terá sido assim. É essa a história que eu, de seguida, vos vou contar.

2. A história dos Homens do Andor até 1760

Até 1760 os Homens do Andor não detinham a importância, o relevo e o protagonismo que usufruem hoje em dia. O esforço por eles despendido era inferior. E a sua presença, sendo necessária para

trazer a Imagem para a vila, estava ao alcance de quem quer que

4 O início da ladeira apresenta a cota de 135,52 metros a cima do nível médio do mar, sendo que o adro da ermida apresenta a cota de 178,88 metros a cima do nível médio do mar. Esta diferença de 43,36 metros, dividida pelos c. de 281 metros de comprimento da ladeira, dá-nos uma inclinação média de c. de 15,43%.

5 A tradição oral, transmitida de geração para geração de Homens do Andor, fixou o peso do andor em 18 arrobas, isto é, cerca de 270 kg. É este o peso que a História oral fixou. Trata-se do valor mais ortodoxo. Porém, este valor pode-se encontrar desactualizado. Ao longo do tempo, o andor foi sofrendo alguns arranjos, restauros, entre outras pequenas modificações, sendo natural que o seu peso tenha aumentado. Em 2013, numa conversa mantida com o Eng. Horácio Ferreira, este afirmou que o andor pesará, actualmente, cerca de 350 kg. Temos, assim, que o peso médio que cada Homem do Andor transporta sobre os seus ombros variará, em média, entre os c. 33,75 kg e os c. 43,75 kg.

61

joão Romero Chagas Aleixo

fosse nomeado. Essa nomeação não obedecia a qualquer requisito

de ordem física. Recaía, normalmente, mais sobre o cargo que essa determinada pessoa ocupava na vila. Nomeava-se de acordo com a função, com o cargo público então exercido. Era essa a prática corrente. Tanto em Loulé, como em outras vilas e cidades do país.

Era isso que acontecia até 1755. No Livro das Actas de

Vereação da Câmara Municipal de Loulé, de 1750, existem relatos que descrevem a condução, em procissão, da Imagem de Nossa

Senhora da Piedade para o convento de Santo António, de forma a que as populações pudessem efectuar as tradicionais preces «ad petendam pluviam». Atravessava-se, nessa altura, um período de

seca. E as populações precisavam de água para a rega dos campos e das colheitas. Não chovendo, o procedimento habitual era sempre o mesmo: trazer a Imagem para a vila, para que se rogasse por água

tão necessária para os campos6. Assim aconteceu, uma vez mais,

em 17 de Março de 1750. Desse facto nos dá conta, muitos anos

depois, o n.º 3 d’O Algarvio, de 14 de Abril de 1889, onde se pode ler a seguinte notícia: «No ano de 1750 foi o Algarve vítima de uma

grande estiagem. Não choveu durante três meses e por isso em todas as terras se fizeram preces e procissões de penitência. Em

16 de Março do dito ano deliberou o Senado de Loulé que viesse

a imagem da N. Senhora da Piedade no dia seguinte em procissão

para o Convento de Santo António a fim de se lhe fazerem terços e

62

6 Sobre este assunto consulte-se, por exemplo, o A.M.L., Livro de Actas de Vereações, de 1604-1606, fl. 97 (sessão de vereação de 30 de Março de 1605). A.M.L: PT/AMLLE/ CMLLE/B/A/01/Lv 056.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

rogativas para que chovesse». Mais à frente, o articulista informava:

«[…] sendo para notar que o andor da Senhora (então mui pequeno)

era levado pelas quatro pessoas mais distintas e mais nobres da terra: o sargento mor Nuno Mascarenhas Pessanha, o capitão

Joaquim José da Silveira, Belchior Caetano Aragão, Manuel de Sousa Palermo; todos nomeados pela Câmara»7. Ora, até essa data era prática corrente a Câmara, entidade que, na altura, organizava

as Festas da Piedade, nomear para transportar o andor de Nossa Senhora da Piedade, assim como para segurar as «varas do paleo», as figuras «mais distintas e mais nobres da terra». Que tanto

podiam ser capitães, mordomos, regedores e oficiais, nomeados, normalmente, em sessões ordinárias de vereação da Câmara Municipal de Loulé. Assim nos dizem as actas.

3. O terramoto de 1755 e a destruição do andor Na Relaçam do terramoto do primeiro de Novembro do anno de 1755 com os effeitos, que particularmente cauzou neste reino do Algarve, obra datada de 1756, fica-se a saber que em Loulé «Cairam parte das abobadas da sua Parrrochial; as Igrejas do Convento da Graça, e de Santo António dos Capuchos; Hospital dos pobres; o Hospicio dos Agostinhos Descalços; o Convento das Religiosas; a Igreja da Mizericordia, a Capela dos Terceiros de Sam Francisco, e as Hermi-



7

Cf. «Curiosidades», in O Algarvio, n.º 3, de 14 de Abril de 1889, p. 3.

63

joão Romero Chagas Aleixo

das de Santa Luiza, e N. Senhora da Piedade»8. A devastação foi total. Caíram a abóboda, o frontispício e as paredes da ermida9, assim como a casa do ermitão e as suas arrecadações, onde se guardava, então, o andor; ficando, este, igualmente, destruído.

4. 1760: o começo de uma nova era Deste modo, com a destruição da ermida, da casa do ermitão e da casa do andor, era preciso reconstruir o interior da ermida, bem como encomendar a feitura de um novo andor. E foi isso que a Confraria de Nossa Senhora da Piedade empreendeu, encomendado, ao entalhador louletano João da Costa Amado (1710 – 1772), a concepção e a feitura de um novo retábulo para a ermida. Esse retábulo (que é o retábulo actual) é construído em 176010. A Confraria aproveita, igualmente, para encomendar ao renomado entalhador a construção de um novo andor. Que se queria mais forte e mais resistente; logo, mais robusto e pesado. A intenção era dotar a Imagem de uma maior segurança e protecção, aproveitando-se para, ao mesmo tempo, lhe conferir uma maior solenidade. João da Costa

8 Cf. Relaçam do terramoto do primeiro de Novembro do anno de 1755 com os effeitos, que particularmente cauzou neste reino do Algarve, Faro, Biblioteca da Universidade de Coimbra, Manuscrito do Códice 537, 1756, fl. 161 v.º. Esta citação encontra-se, igualmente, transcrita na seguinte obra: COSTA, Alexandre, ANDRADE, César, SEABRA, Clara, MATIAS, Luís, BAPTISTA, Maria Ana, NUNES, Sara, 1755 - Terramoto no Algarve, [s.l.], Centro Ciência Viva do Algarve, 2005, p. 93.

9 Cf. COSTA, Alexandre, ANDRADE, César, SEABRA, Clara, MATIAS, Luís, BAPTISTA, Maria Ana, NUNES, Sara, op. cit., p. 113.

64

10 Cf. A.M.L., Livro da Receita e Despesa da Confraria de Nossa Senhora da Piedade (1751-1786), fl. 27 vº. A.M.L.: PT/AMLLE/CIMIS/CSPLLE/A/01/Lv002 (1751-1786).

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Amado constrói, assim, um novo andor, em 1760 11. Esse novo baldaquino era, agora, «suportado por quatro colunatas compósitas e um dossel»12, executado em madeira e, posteriormente, dourado. Foi seu dourador o mestre Diogo de Sousa e Sarre, que, em 1764, procederia também ao douramento do actual retábulo da ermida13. Esse andor, muito mais robusto que o anterior, apresentava agora o peso de 24 arrobas, isto é, cerca de 360 Kg. Dado o seu elevado peso, as posições disponíveis para o transportar duplicam, isto é, passam das anteriores quatro para as actuais oito.

4.1. A importância da ruralidade na selecção dos Homens do Andor Precisava-se, agora, de arranjar o dobro dos homens. Uma vez que

o novo andor, encomendado para substituir o velho, tinha o dobro

das posições: as anteriores quatro deram lugar às actuais oito.

Precisava-se, igualmente, de homens com uma maior robustez

física. E aonde é que se poderiam arranjar esses homens? Aonde

é que se encontrariam homens dispostos a carregar, em média, cerca de 45 kg cada um14? Não era uma tarefa ao alcance de muitos.

11

Cf. ibidem.

12 Cf. Francisco Ildefonso LAMEIRA, A Talha no Algarve durante o Antigo Regime, Faro, Câmara Municipal de Faro, 2000, p. 281.

13 Cf. A.M.L., Livro da Receita e Despesa da Confraria de Nossa Senhora da Piedade (1751-1786), fl. 44.

14 A tradição oral fixou o peso do andor encomendado e produzido em 1760 em 24 arrobas, o que significa, sensivelmente, cerca de 360 kg. Esse peso total a dividir por cada um dos oito Homens do Andor dá um peso médio individual de 45 kg.

65

joão Romero Chagas Aleixo

Precisava-se de muita força física.

Mas, então, aonde se encontrariam esses homens? Só

havia uma alternativa. Tinha-se que ir recrutá-los ao único sítio

onde seria possível encontrá-los. E que sítio era esse? O campo,

evidentemente. Era lá que se encontravam os mais fortes homens do concelho. Aqueles que, através da sua força braçal, trabalhavam a

terra de sol a sol, com as suas calejadas mãos, sete dias por semana. Os fortes homens do concelho encontravam-se no meio rural;

uma vez que os residentes na vila ocupavam-se, normalmente, do

funcionalismo régio, do pequeno comércio, dos serviços ou, então, eram trabalhadores artesãos (como p. ex.: oleiros e sapateiros), actividades profissionais para as quais a força física não era condição necessária.

E terá sido fácil convencer o campesinato a despender um tão

grande esforço físico? É de crer que sim, uma vez que as populações

campesinas sempre nutriram uma especial devoção pela Nossa Senhora da Piedade, uma vez que precisavam d’«Ela» no seu dia-adia. Precisavam que «Ela» protegesse as suas colheitas. E, por isso,

pediam-lhe misericórdia. E a misericórdia que mais solicitavam era

a de água em tempo de seca. Porque sem água a vegetação morre, o

fruto estiola, vem a fome e vem a morte. Por outro lado, o transporte da Padroeira conferia uma projecção social e uma popularidade

(no campo e na vila) que de outra maneira seriam impossíveis de

alcançar. Foi, assim, que os homens do campo, por força das suas capacidades físicas, começaram a transportar o andor de Nossa 66

Senhora da Piedade.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Produz-se, assim, uma extraordinária alteração. Os homens escolhidos para transportarem o andor deixam de ser nomeados pelos cargos que exercem, passando, agora, a serem escolhidos pela sua força física. Os homens do campo passam a fazer «equipas de oito» com os mais fortes homens da vila. O transporte do andor democratiza-se. E, por consequência, populariza-se. Estava, desta forma, criada uma nova tradição: a tradição dos Homens do Andor.

4.2. A influência andaluza na segunda metade do século XIX, princípio do século XX A procissão em honra de Nossa Senhora da Piedade tem

algumas peculiaridades e especificidades únicas no nosso país. Características específicas e modos de operar que não encontram

paralelo na celebração de outras manifestações religiosas no nosso país. Veja-se algumas dessas tipicidades louletanas.

Em Loulé a Virgem é elegantemente «passeada» pelas

principais artérias da cidade, isto é, o andor de Nossa Senhora da Piedade «dança», em cima dos ombros dos Homens do Andor, ao ritmo das marchas processionais executadas no momento.

Outras das características muito próprias da Festa constitui

o facto de serem gritados pelos populares vários tipos de «vivas»

à passagem da procissão. Gritam-se «Vivas» à Nossa Senhora da Piedade, à Mãe Soberana, aos Homens do Andor e até mesmo à

banda filarmónica. «Vivas» que já se gritavam no princípio do

67

joão Romero Chagas Aleixo

século XX15.

Por outro lado, e no que diz respeito mais especificamente aos

Homens do Andor estes possuem, igualmente, três características muito raras (algumas deles até inexistentes) de se encontrarem nos restantes homens que transportam andores de Norte a Sul

do nosso país. Possuem uma farda de trabalho própria, somente

vestida nos dias da Festa Pequena e da Festa Grande16; conservam

15 Sobre este assunto veja-se, por exemplo, a reportagem da Festa Grande de 1915 publicada no periódico católico Folha do Domingo: «Apenas apareceu a muito querida imagem de Nossa Senhora da Piedade à porta da igreja toda aquela gente se descobriu e principiou a dar vivas à Mãe Soberana».

«Percorrida a vila volta-se ao largo de São Francisco. O pálio e o Santo Lenho recolhem à igreja paroquial e, depois de alguns momentos de descanso, rompe a filarmónica com o ordinário da Senhora da Piedade, levantam-se vivas à Mãe Soberana, à Mãe dos pobres, à Nossa Mãe e assim se galga em poucos minutos e no meio de um entusiasmo indescritível a distância que vai da vila à ermida de Nossa Senhora».

«As saudações à Virgem repetem-se constantemente e são correspondidas com verdadeiro delírio» (cf. «Loulé», in Folha do Domingo, número XLI, de 25 de Abril de 1915, p. 3).

16 Hoje em dia a farda de trabalho dos Homens do Andor é normalmente designada por «roupa». Dela fazem parte as seguintes peças: calça branca, camisa branca, casaco preto, meias brancas, laço preto (na Festa Pequena) ou laço branco (na Festa Grande), luvas brancas de algodão e uma opa branca, com cabeção azul. O calçado são sapatos pretos. Porém, nem sempre foi assim. No início do século XX a farda dos Homens do Andor era ainda composta por um colete preto vestido por baixo do casaco preto, sendo o seu calçado botas de elástico, em vez dos sapatos pretos que se usam hoje em dia.

68

Por outro lado, refira-se que sensivelmente até às primeiras duas décadas do século XX os «Tochas» vestiam uma farda de trabalho diferente, provavelmente com o intuito de os distinguir dos restantes elementos que faziam parte do grupo dos Homens do Andor. Essa determinada farda apresentava as seguintes diferenças: fato escuro e gravata preta em vez das tradicionais calças brancas, casaco preto e laço (preto na Festa Pequena e branco na Festa Grande) vestidos pelos seus colegas de andor. Actualmente os «Tochas» envergam uma farda de trabalho igual ao dos restantes Homens do Andor.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

um léxico específico de palavras compostas por um conjunto de

termos técnicos e de expressões só por eles falado no decurso das Festas anuais17; e existe a figura oficial do denominado «Tocha»18, formando um conjunto de dois, que normalmente seguem ao lado do andor por forma a ajudar os seus colegas na realização das tarefas (manobras) mais complicadas.

Mas quem as terá trazido? Quem as terá imposto? Quando?

E com que objectivos?

Ora, não fazendo parte as cinco características atrás

enumeradas das procissões que se celebram um pouco de Norte a

Sul do nosso país, mas sendo, ao invés, bastante comuns de serem 17 Sobre este assunto veja-se a seguinte compilação intitulada Dicionário Mãesoberaneiro (O léxico falado pelos Homens do Andor).

18 Os «Tochas» da Mãe Soberana são uma espécie de «olhos do andor», uma vez que a sua principal função é orientar a marcha do andor. É um cargo de grande responsabilidade, porque é deles que depende o correcto andamento do andor. Estes homens são igualmente responsáveis pela execução das manobras mais difíceis do andor, nomeadamente «fazer as voltas», as paragens e as entradas e saídas das igrejas. Na procissão pela cidade, bem como na subida da íngreme ladeira, devem saber abrir espaço à frente do andor, para que este efectue a sua marcha em tempo certo. Durante a procissão devem dispensar umas palavras e/ou gritos de incentivo para com os seus oito colegas. Antigamente, isto é, sensivelmente até à segunda década do século XX, a sua farda de trabalho era diferente da dos seus colegas, uma vez que vestiam calças escuras, caso preto e gravata preta, um pouco à semelhança do que vestem os «capataces» das procissões andaluzas, com a particularidade de transportarem uma tocha branca, normalmente, na sua mão direita; advindo desse objecto o nome pelo qual são conhecidos. No entanto, em data que não se sabe, o seu fardamento é uniformizado em relação aos restantes colegas, partindo, desde essa altura, a vestirem todos da mesma maneira. Os «Tochas» da Mãe Soberana, no percurso pela cidade, devem ocupar o lugar ao lado das duas «cantoneiras» da frente do andor; sendo que na subida da ladeira devem ir uns passos mais à frente com o objectivo de abrir caminho/arranjar espaço para que os seus colegas possam progredir da melhor maneira possível.

69

joão Romero Chagas Aleixo

observadas nas procissões que se realizam na vizinha Andaluzia19,

conclui-se que todas estas especificidades terão sido importadas e incorporadas na Festa da Piedade pela enorme comunidade andaluza que ao longo de todo o século XIX emigrou para a vila de

Loulé. Com o objectivo final de dotar a parte mais visível da Festa da Piedade de um maior profissionalismo processional, como, aliás, já se fazia nas mais importantes romarias celebradas na Andaluzia.

Ao longo de todo o século XIX a vila de Loulé foi recebendo

várias vagas de andaluzes, a maior parte deles naturais e oriundos de dois pueblos vizinhos (Villanueva de los Castillejos e El Almendro)

19 Veja-se, a título de exemplo, as procissões celebradas em honra da Virgen de las Piedras Albas, que se realiza em Villanueva de los Castillejos; a procissão em honra de la Virgen del Rocío, na aldea del Rocío (Almonte); ou as procissões em honra de la Virgen Esperanza Macarena e de la Virgen Esperanza de Triana, que saem para as ruas na madrugada de quinta para sexta-feira santa em Sevilha.

70

Piedras Albas é a invocação canónica da Virgen padroeira dos pueblos andaluzes de El Almendro e de Villanueva de los Castillejos. A ermida situa-se no chamado «prado de Osma», mesmo em frente ao serro denominado por Cabeça del Buey, anterior povoação de Osma. Encontra-se rodeada por montes. A festa em honra da Virgen de las Piedras Albas inicia-se, anualmente, no Domingo de Páscoa. O ponto alto da romaria decorre, porém, na terça-feira seguinte ao Domingo de Páscoa, com a celebração da solene procissão em honra da Virgen de las Piedras Albas. A actual imagem da Virgen data dos anos Cinquenta do século XX, uma vez que a anterior imagem foi destruída durante a Guerra Civil de Espanha (cf. CORREIA, António Horta, Sebastian Ramírez (1828-1900). Subsídio documental para uma biografia, Vila Real de Santo António, edição da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, 2008, p. 12).

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

situados na região do Andévalo andaluz20 (província de Huelva). Hoje em dia ainda não se sabe ao certo quantos andaluzes é que se

radicaram em Loulé. Os dados que existem são, por ora, poucos e

20 O Andévalo andaluz ou El Campo de Andévalo trata-se de uma comarca histórica situada na província de Huelva, na Andaluzia. Geograficamente situa-se entre a Serra de Aracena e a fronteira com Portugal. Do Andévalo andaluz fazem parte os actuais quinze municípios: Alosno, Tharsis, Cabezas Rubias, Calañas, El Almendro, El Cerro de Andévalo, El Granado, Paymogo, Puebla de Guzmán, San Bartolomé de la Torre, Sanlúcar de Guadiana, Santa Bárbara de Casa, Valverde del Camino, Villanueva de las Cruces e Villanueva de los Castillejos.

71

joão Romero Chagas Aleixo

dispersos21.

Pensa-se que a primeira vaga de emigrantes andaluzes veio

na sequência das invasões francesas (ou Guerra da Independência como é denominada do lado de lá da fronteira) uma vez que quer Villanueva de los Castillejos quer El Almendro foram duas

das povoações mais fustigadas pelas tropas francesas entre 21 Entre 1851 e 1905 dos 28.400 baptizados realizados na paróquia de São Clemente (Loulé), 292 tinham ascendência andaluza de, pelo menos, duas gerações (168 dessas crianças tinham pais naturais da Andaluzia e 124 tinham avós naturais da Andaluzia), o que perfaz um rácio de 1,03% do total de baptismos realizados nessa paróquia durante esse período de tempo (cf. A. D. F. Fundo da Paróquia de São Clemente, Loulé, Livros de Registo de Baptismos, 1851-1905). Por outro lado, entre 1891 e 1905 dos 5.041 baptizados realizados na paróquia de São Sebastião (Loulé), 60 tinham ascendência andaluza de, pelo menos, duas gerações (49 dessas crianças tinham pais naturais da Andaluzia e 11 tinham avós naturais da Andaluzia), o que perfaz um rácio de 1,19% do total de baptismos realizados nessa paróquia durante esse período de tempo (cf. A. D. F. Fundo da Paróquia de São Sebastião, Loulé, Livros de Registo de Baptismos, 1891-1905).

72

Refira-se, por outro lado, que Isilda Martins enumera, para o período compreendido entre 1898 e 1910, um conjunto significativo de anúncios a casas comerciais propriedade de andaluzes (naturais ou descendentes) a residirem em Loulé. Alguns exemplos: oito industriais (indústrias de sabões, fiação, cera, indústria de confecção, vestuário e restauração); dezoito comerciantes (dois proprietários de botequins, três comerciantes de palma e esparto, dois proprietários de drogarias, um comerciante de madeiras para construção, dois ourives e relojoeiros, um comerciante de pelo de cabra, um armazenista de farinhas, cereais, esparto e palma, um lojista de fazendas, um comerciante de vinhos, aguardentes, azeites, petróleo, sabão e fósforos, um exportador de frutos e de obras confeccionadas em palma, um agente da Companhia de Tabacos de Portugal, um comerciante de fazendas nacionais e estrangeiras e um comerciante de sorvetes, entre outros negócios); e, ainda, quatro prestadores de serviços (um agente bancário, um agente de seguros e dois alugadores de carruagens), todos eles de apelido andaluz (Álvares [Alvaréz], Arés [Arez], Barbosa, Centeno, Corrêa, Cumbrera, Curiel, Delgado, Díaz, Domingues [Domínguez], Féria, Formosinho [Formosiño], Garcia, Gomes [Goméz], Macias, Peres, Romero, Rodrigues [Rodriguez], Vasques [Vasquéz]) com os seus negócios sedeados na vila de Loulé (cf. MARTINS, Isilda Maria Renda, Loulé no século Vinte. 1.º volume - Da decadência da Monarquia à implantação da República, Loulé, edições Colibri e Câmara Municipal de Loulé, 2001, pp. 99-114).

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

1810 e 181222. Tal facto esteve na origem de uma primeira vaga

22 Durante trinta e dois longos meses Villanueva de los Castillejos e El Almendro foram convertidas em teatro de operações, uma vez que albergavam no seu seio o quartelgeneral das tropas castelhanas que defendiam a região de Huelva das investidas francesas. Em apenas vinte e cinco meses, isto é, entre Julho de 1810 e Agosto de 1812, cada uma destas duas povoações sofreu dezassete invasões, com «repetidas tiranas imbaciones, robos, y saqueos», por parte das tropas francesas.

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joão Romero Chagas Aleixo

de emigração23, a que se seguiram outras24, provocando, nos

dois pueblos da província de Huelva, um acentuado decréscimo

23 «La elección de Portugal como destino por parte de estos emigrados respondía a la mayor seguridad que podían ofrecer aquellas tierras, protegidas por la barrera natural del río Guadiana. A pesar de que el país vecino también se encontraba en guerra contra Francia, los focos bélicos más importantes se hallaban más al norte (frontera de Olivenza o de Badajoz, plazas fuertes de Campo Mayor o Elvas) y no hay constancia por estas fechas de incursiones galas en territorio portugués inmediato a Villanueva de los Castillejos, lo que aliviaba al menos de suministrar al enemigo y de sufrir sus saqueos. Además, las estrechas relaciones desarrolladas tradicionalmente entre los habitantes de ambos territorios, tal vez con el recuerdo de una importante emigración portuguesa al Andévalo en el siglo XVIII, ofrecían el marco adecuado para que los emigrados de Villanueva y El Almendro encontraran, a pesar de las estrecheces de la situación, el acomodo preciso». Na maioria dos casos, essa emigração não «se viera como una circunstancia temporal, sino como una solución definitiva». Para, de seguida, acrescentarem: «Estos emigrados solían ser los vecinos de mayores recursos, de modo que, instalados ya de manera estable en Portugal e incorporados a su sistema productivo, detraían de sus villas de origen no sólo capital humano, sino también económico» (cf. Antonio MIRA TOSCANO, Juan VILLEGAS MARTÍN e Antonio SUARDÍAZ FIGUEREO, op. cit., pp. 213-214).

74

24 Ao longo do século XIX Loulé recebeu sucessivas vagas de emigração, proveniente da Andaluzia. A primeira ter-se-á verificado entre 1810 e 1812, quando as povoações vizinhas de El Almendro e de Villanueva de los Castellejos se converteram em sede do quartel-general e importante teatro de operações das tropas que actuavam na fronteira com Portugal. Uma segunda vaga de emigração ter-se-á desenrolado entre 1814 e 1833. Esta vaga parece que se ficou a dever à instável situação política e social vivida em Espanha, no reinado de Fernando VII (r. 1808 – 1833); que, anos mais tarde, levaria, à imagem do que também se verificou em Portugal, ao desencadear de uma Guerra Civil, travada entre liberais e absolutistas. Em Espanha, durante essa primeira Guerra Civil, que passou à História com a designação de Primeira Guerra Carlista (1833-1840), registaramse períodos alternados de dominância. A esta Primeira Guerra Carlista seguir-se-iam, ao longo do século XIX, mais duas outras guerras civis: a Segunda Guerra Carlista (18461849) e a Terceira Guerra Carlista (1872-1876). Os andaluzes que emigraram para Loulé fizeram-no por um conjunto alargado de razões, das quais se poderão destacar as seguintes: fuga às suas obrigações militares (alistamento militar); alistamento militar forçado no seio das tropas francesas; obrigatoriedade de terem de suportar, através dos seus próprios bens, a subsistência (abastecimento) dos exércitos; fuga à acção da justiça e/ou de determinados compromissos políticos; a possibilidade de puderem operar num novo, e cada vez mais abrangente, mercado económico, isto é, num novo espaço de comercialização e de transacção económica.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

demográfico25.

Deve-se referir que a numerosa comunidade andaluza a

residir em Loulé (composta por naturais ou por descendentes)

também fez parte de inúmeras comissões promotoras das Festas da Piedade. Esse facto é bem visível na década de 1910, quando várias

comissões promotoras das Festas são constituídas, em grande parte, por emigrantes andaluzes (naturais ou descendentes)26.

Mas o intercâmbio Loulé (Algarve)–Andaluzia não se verificou somente ao nível dos emigrantes andaluzes que se radicaram em Loulé. Refira-se, a este respeito, que no final do século XIX a Sociedade Filarmónica União Marçal Pacheco, vulgo «Música Velha», começa a deslocar-se, com alguma frequência e regularidade, à Andaluzia, por forma a abrilhantar as festividades religiosas de vários pueblos andaluzes. A que se seguiu também a Sociedade Filarmóni-

25 Entre 1810 e 1812, El Almendro perde cerca de 90% da sua população (p. 215). E em 1813, a população de El Almendro era sensivelmente cerca de um terço da população da vila antes das invasões francesas, uma vez que em 1810 El Almendro teria cerca de «400 vecinos», para, em 1813, ter apenas «130 vecinos» (cf. MIRA TOSCANO, Antonio, VILLEGAS MARTÍN, Juan, SUARDÍAZ FIGUEREO, Antonio, La batalla de Castillejos y la Guerra de la Independencia en el Andévalo Occidental, Huelva, Diputación de Huelva, 2010, pp. 214-215).

26 Tomemos como exemplo a comissão promotora das Festas da Piedade de 1912. Nessa comissão composta por cinco membros quatro deles eram descendentes de andaluzes: Bartholomeu Rodriguez y Rodrigues, Pablo Garcia Delgado, Pedro Gomes Marques e Ignácio Garcia Alvarez, sendo o restante membro o português António Martins Sancho (cf. «Festas em Loulé», in O Algarve, n.º 213, de 21 de Abril de 1912, p. 2 ou cf., igualmente, O Algarvio, n.º 6, de 28 de Abril de 1912, p. 3).

75

joão Romero Chagas Aleixo

ca Artistas de Minerva, vulgo «Música Nova»27. Refira-se, igualmente, a existência na imprensa local e regional da época – décadas de 1900 e de 1910 –, de vários anúncios a excursões saídas de Loulé rumo a Sevilha por forma a acompanharem os tradicionais festejos da Semana Santa. Assim sendo, nos finais do século XIX, princípio do século XX, o intercâmbio Loulé (Algarve) – Andaluzia era efectuado em várias frentes.

4.3. Quando as duas «equipas» passaram a ser uma só Até 1934 existiam dois diferentes «grupos» de Homens do Andor. O esforço físico despendido era muito. O período que mediava entre as duas Festas (Pequena e Grande) era de apenas duas semanas. E,

27 A este respeito refira-se que dos 533 serviços registados nos dois livros de contas da Sociedade Filarmónica Artistas de Minerva, para o período compreendido entre o dia 7 de Setembro de 1933 e o dia 12 de Março de 1961 (442 serviços prestados) e depois entre o dia 21 de Julho de 1966 e o dia 10 de Junho de 1971 (91 serviços prestados), cinquenta e nove desses serviços foram realizados no acompanhamento de procissões andaluzas celebradas em sete diferentes povoações, assim discriminadas: seis deslocações a Ayamonte (duas Fiestas de la Nuestra Señora de las Angustias assim como quatro Semanas Santas de Ayamonte); quatro deslocações a Puebla de Guzmán (Virgen de la Caridad); cinco deslocações a Villablanca (Fiestas en Honor a Nuestra Senõra de La Blanca); dezasseis deslocações a Lepe (Nuestra Senõra «La Bella» e San Roque); duas deslocações a Villanueva de Castillejos (Virgen de las Piedras Albas); quatro deslocações a Cartaya (Nuestra Senõra la Virgen del Rosario); e, por último, vinte e duas deslocações à Isla Cristina (Nuestra Señora la Virgen del Rosario, por quinze ocasiões, e por sete vezes foram acompanhar a Virgem local, designada e invocada por «El Carmen»). Deste modo, pode-se concluir que 11,07% (59 em 533) do total de serviços prestados pela Sociedade Filarmónica Artistas de Minerva durante esse período de tempo foi o acompanhamento musical de procissões na região da Andaluzia, nomeadamente na província fronteiriça de Huelva (cf. A.M.L., Fundo da Sociedade Filarmónica Artistas de Minerva, Livro de Contas dos Filarmónicos da Sociedade Filarmónica Artistas de Minerva, 1933-1961 e cf., igualmente, A.M.L., Fundo da Sociedade Filarmónica Artistas de Minerva, Livro das Festas e Nômes dos Musicos, que tomaram parte, com respectivas importâncias, 1966- 1971).

76

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Equipa dos Homens do Andor de 1926 Festa Pequena – 4 de Abril de 1926 De pé, da esquerda para a direita: Francisco Bicho; Manuel Costa e José da Piedade Caracol Júnior. Sentados, da esquerda para a direita: José João Correia Baptista (José Velhote); Luís Baptista (Luís Velhote); José da Piedade Caracol (José Sebaia) e António Rodrigues Fernandes.

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joão Romero Chagas Aleixo

nesse tempo, nenhum Homem do Andor se preparava fisicamente para a sua missão. Por essa altura não se faziam treinos. Não se

caminhava. E não se corria. O treino dos homens era o seu trabalho diário. Quase sempre um trabalho braçal e manual. Por essa altura

os homens selecionados trabalhavam de manhã e «pegavam» no andor da parte da tarde. Foi assim durante muitos anos.

Sabe-se que o escalonamento dos dois «grupos» obedecia à

seguinte regra: num ano cada «grupo» fazia uma determinada Festa (p. ex: o «grupo» A fazia a Festa Pequena e o «grupo» B fazia a Festa

Grande), sendo que no ano imediatamente a seguir cabia-lhes fazer a Festa que não tinham feito no ano anterior. A regra era simples. E assim se terá feito durante muitas décadas.

Porém, as quezílias entre os dois «grupos» aumentavam de

ano para ano. Todos queriam «fazer a Festa Grande»; onde o esforço despendido era maior, mas a glória e o prestígio social alcançados

também. Era a Festa Grande a festa mais disputada pelos dois «grupos» de Homens do Andor. Desse crescendo de conflitos ou

de quezílias entre os dois «grupos» nos deixou registo o padre Joaquim da Palma Viegas, pároco responsável pela paróquia de São

Sebastião entre 1930 e 196528, no relatório e contas da Festa de

Nossa Senhora da Piedade, de 1947. O padre Palma Viegas relatou:

«Decerto que é ainda da memória de muita gente os miudinhos

problemas que se debatiam pela festa da Nossa Senhora, – e sempre

com grandes aborrecimentos para o respectivo pároco – […] nos 78



28

Informação prestada pelo padre José António Nobre Duarte.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

dois grupos dos homens que havia para pegarem no andor e que nem sempre aceitavam de bom grado a alternativa do seu turno anual»29.

Deste modo, em 1935, o então presidente da oitava Comissão

Administrativa Municipal de Loulé, o tenente Manuel de Sousa

Rosal Júnior30, solicita ao «Cabo do Grupo dos Homens do Andor» da altura, o Sr. Filipe da Guilherme31, que daí em diante, e por forma

a acabar com as quezílias entre os dois «grupos», passasse a existir somente um «grupo» de Homens do Andor, que ficaria encarregue

de fazer as duas Festas Anuais. E assim aconteceu. Seleccionaramse os oito homens mais fortes, e passaram eles a fazer, anualmente, a Festa Pequena e a Festa Grande. Regra que se mantêm até à actualidade.

29 Cf. Padre Joaquim Palma VIEGAS, Relatório e contas da Festa de Nossa Senhora da Piedade, Loulé, Tipografia Louletana, Dezembro de 1947.

30 O tenente Manuel de Sousa Rosal Júnior foi presidente da oitava Comissão Administrativa Municipal de Loulé, entre 26 de Novembro de 1934 e 23 de Outubro de 1935. Serviu, ainda, como administrador do concelho de Loulé, entre 26 de Novembro de 1934 e 7 de Janeiro de 1935 (cf. MARTINS, Isilda Maria Renda, Loulé no Século XX, A Segunda República – A Ditadura – Da Génese ao Declínio de 1926 a 1968, 3.º volume, Lisboa, edição da Câmara Municipal de Loulé, 2005, p. 112). 31 O popular louletano Filipe da Guilherme começou a «pegar no andor» de Nossa Senhora da Piedade corria o ano de 1927. Tinha, na altura, 18 anos. Realizou, ao todo, «vinte e três Festas e meia», tendo «pegado do andor», pela última vez, em 1950. Esta informação foi prestada pelo seu neto materno, Eng. Horácio Filipe Guilherme Ferreira, também ele Homem do Andor.

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joão Romero Chagas Aleixo

5. Alterações na estrutura sócio-profissional do grupo Ao longo dos tempos, o sector primário – e Loulé sempre foi,

conjuntamente com Silves, um dos dois maiores concelhos rurais de todo o Algarve – foi continuamente perdendo protagonismo no

conjunto da economia nacional e regional. Nas últimas décadas assistiu-se a uma nova redistribuição da população activa pelos vários

sectores de actividade, tendo, a este título, o sector primário vindo continuamente a perder força de trabalho activa para os sectores secundários e terciários. Se em 1950 mais de metade da população

activa em Portugal se dedicava à agricultura, representado este sector mais de 30% do Produto Interno Bruto (P.I.B.) nacional; em 2004, a percentagem da população activa portuguesa a trabalhar

na agricultura era inferior a 10%, representando o sector menos de 4% do P.I.B. nacional32.

Deste modo, também ao nível dos elementos chamados para

«pegar» no andor de Nossa Senhora da Piedade, Mãe Soberana

dos Louletanos, tem-se assistido a algumas transformações na sua estrutura sócio-profissional.

Até praticamente ao 25 de Abril era comum um Homem do

Andor ser oriundo (natural ou residente) das populações rurais limítrofes à vila de Loulé (como p. ex: Alfontes, Estação de Loulé, Parragil, Querença, Tenoca, Vale Judeu, etc…) ter poucos estudos, e

trabalhar no sector agrícola (como p. ex: agricultores, lavradores,

80

32 Cf. BAPTISTA, F. Oliveira, «Espanha e Portugal, um século de questão agrária», in Mundo Rural. Transformações e Resistências na Península Ibérica (Século XX), coordenação de Dulce Freire, Inês Fonseca e Paula Godinho, Lisboa, Edições Colibri, 2004, p. 11.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

pastores, rendeiros agrícolas,) ou, então, trabalhar nas chamadas

actividades/ocupações manuais (como p. ex: carpinteiros,

ladrilheiros, proprietários de casas de móveis, sapateiros,

taberneiros, trabalhadores dos caminhos de ferro portugueses, entre outras profissões). Todavia, com a instituição do regime democrático em Portugal, essa situação vai, também ela, se alterar.

A partir do 25 de Abril começam a entrar para o grupo dos Homens

do Andor indivíduos cada vez com mais anos de escolaridade (inclusive licenciados), tendo ocupações profissionais para as quais

a força física já não era uma condição essencialmente requerida. Começaram a aparecer novas profissões debaixo do andor (p.

ex: um engenheiro agrónomo, um advogado, um arquitecto, um professor, dois fisioterapeutas, dois empresários, etc…). O trabalho

eminentemente físico, dava, agora, lugar a um tipo de trabalho cada

vez mais intelectual. Também a este nível o grupo acompanhava as transformações desenvolvidas no seio da sociedade portuguesa.

6. A fala dos Homens do Andor33

Outras das características muito específicas dos Homens do Andor

é o facto de os mesmos possuírem um léxico próprio, somente por eles conhecido e falado. Esse léxico é composto por um conjunto

alargado de palavras, modismos, expressões e termos técnicos,

utilizados, unicamente, neste particular culto mariano. A arte de 33

Sobre esta temática consulte-se o estudo n.º 3 da presente obra.

81

joão Romero Chagas Aleixo

«pegar no andor» obedece a um conjunto de tecnicismos que todos

os Homens do Andor devem dominar. Esse léxico, desconhecido da maior parte dos fiéis devotos de Nossa Senhora da Piedade,

é utilizado, praticamente em exclusivo, pela grande família dos Homens do Andor. É como se de uma linguagem própria se tratasse. Falada entre si por um conjunto restrito de pessoas.

Não se sabe ao certo quando surgiram estas palavras ou

expressões. Muito menos se sabe quem foram os seus autores. Presume-se que foram sendo moldadas ao longo dos anos. Perduraram na memória colectiva dos Homens do Andor. Passando

de geração em geração, por intermédio das bocas daqueles que emprestaram as suas forças ao transporte do emblemático andor.

Até aos nossos dias chegaram-nos mais de meia centena de termos técnicos ou expressões.

A existência deste léxico específico terá sido, também ele,

mais uma importação andaluza. Uma vez não se tratar de uma

prática corrente nos homens que transportam outros andores nas procissões que se realizam no nosso país; ao invés, de na Andaluzia

esta prática ser bastante utilizada, destacando-se, neste particular, a existência de algumas obras de referência sobre esta temática34.

82

34 Sobre este assunto, veja-se, por exemplo, as seguintes obras de referência: BURGOS, Antonio, Folklore de las Cofradías de Sevilla, 8.ª edición, Colección de Bolsillo, número 6, Sevilla, Universidad de Sevilla, 2014 [1.ª edição de 1972]; CARRERO RODRÍGUEZ, Juan, Diccionario Cofradiero. Más de 3.580 expresiones de la Semana Santa de Sevilla, y outras de España, 3.ª edición aumentada, corrigida y actualizada, Sevilla, editoral Castillejo, 2002 [1.ª edição de 1981]; e, ainda, VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, Léxico de Capataces y Costaleros: voces, modismos y giros propios, 3.ª edición, colecção Biblioteca Guadalquivir, Sevilla, Guadalquivir, 2003 [1.ª edição de 1994].

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

A confirmar a tese de que a existência deste léxico específico

dos Homens do Andor foi, também ele, uma importação andaluza

para a Festa da Piedade refira-se que para a esmagadora maioria dos cinquenta e cinco termos compilados no Dicionário Mãesoberaneiro (O léxico falado pelos Homens do Andor), é possível encontrar um

termo correspondente falado pelos capataces e pelos costaleros andaluzes.

Veja-se o seguinte quadro onde se compara alguns termos

utilizados pelos Homens do Andor com o respectivo termo utilizado

nas procissões que se realizam um pouco por toda a Andaluzia, em geral, e em Sevilha, em particular.

83

joão Romero Chagas Aleixo

Quadro 1: Comparação dos termos e das expressões utilizadas pelos

Homens do Andor de Nossa Senhora da Piedade, em Loulé, com os correspondentes termos e expressões utilizadas pelos capataces e

costaleros na Andaluzia (como, por exemplo, na Semana Santa de Sevilha). 35363738

Termo utilizado pelos Homens do Andor «Armar o Andor» Biborla Cabo do Grupo dos Homens do Andor Cantoneira(s)

Termo utilizado nas procissões que se realizam na Andaluzia Paso montado35 Pata ou zanco36 Capataz Titular37 Patero(s)38

35 Cf. CARRERO RODRÍGUEZ, Juan, Diccionario Cofradiero. Más de 3.580 expresiones de la Semana Santa de Sevilla, y outras de España, 3.ª edición aumentada, corrigida y actualizada, Sevilla, editoral Castillejo, 2002 [1981], p. 226.

36 Veja-se, por exemplo: BURGOS, Antonio, Folklore de las Cofradías de Sevilla, 8.ª edición, Colección de Bolsillo, número 6, Sevilla, Universidad de Sevilla, 2014 [1972], pp. 48-49; CARRERO RODRÍGUEZ, Juan, op. cit., p. 227 e p. 313; VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, Léxico de Capataces y Costaleros: voces, modismos y giros propios, 3.ª edición, colecção Biblioteca Guadalquivir, Sevilla, Guadalquivir, 2003 [1994], pp. 50-52. 37

Veja-se, por exemplo: BURGOS, Antonio, op. cit., pp. 31-33.

38

84

Veja-se, por exemplo: BURGOS, Antonio, op. cit., p. 55; VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, op. cit.., pp. 64-65.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

o394041424344454647

«De Palheta a Palheta»

Eixo(s) Equipa «Experimentação do Andor» «Fazer a Volta» Linha Marcha «Meio-à-Frente»



«De costero a costero»39 ou Butaca40. Costero(s)41 Cuadrilha42 Ensayo de costaleros43 «Revirar», «Dar una vuelta», «Girar»44 Trabajadera45 Marcha46 Corriente Delantero47

39

Cf. VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, op. cit., pp. 103-104.

40

Cf. CARRERO RODRÍGUEZ, Juan, op. cit., p. 58.

41 Veja-se, por exemplo: BURGOS, Antonio, op. cit.., p. 54; CARRERO RODRÍGUEZ, Juan, op. cit.., p. 91; VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, op. cit., pp. 65-66. 42 Veja-se, por exemplo: BURGOS, Antonio, op. cit., pp. 31-33; CARRERO RODRÍGUEZ, Juan, op. cit., p. 94; VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, op. cit., pp. 256-258.

43 Veja-se, por exemplo: CARRERO RODRÍGUEZ, Juan, op. cit., p. 113; VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, op. cit., pp. 286-287. 44 Veja-se, por exemplo: CARRERO RODRÍGUEZ, Juan, op. cit., p. 250; VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, op. cit., pp. 183-186.

45 Veja-se, por exemplo: BURGOS, Antonio, op. cit., pp. 50-51; CARRERO RODRÍGUEZ, Juan, op. cit., p. 294; VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, op. cit., pp. 52-54.



46

Cf. VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, op. cit. pp. 192-194.

47 Veja-se, por exemplo: BURGOS, Antonio, op. cit., pp. 53-54 e p. 57. Veja-se, igualmente: CARRERO RODRÍGUEZ, Juan, op. cit., p. 91; VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, op. cit., pp. 67-68.

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joão Romero Chagas Aleixo

nt4849505152535455565758

«Meio-Atrás» Pataludo Palheta(s) «Perder o Andor» «Perder o Varal» «Pegar no Andor»

«Porta-do-Quintal» Tochas





Corriente Trasero48 Culear, culebrear49 Costero(s)50 «Perder el paso»51 «Perder el paso»52 «Llevar»53 «Meterse»54, «Ponerse»55, «Trabajar»56 Corriente Trasero57 Capataces58

48

Cf. ibidem.

49

Cf. VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, op. cit., pp. 272-273.

50 Veja-se, por exemplo: BURGOS, Antonio, op. cit., p. 54; CARRERO RODRÍGUEZ, Juan, op. cit., p. 91; VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, op. cit., pp. 65-66.

51



53







Cf. VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, op. cit., p. 277.

52

Cf. ibidem.

Cf. VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, op. cit., pp. 265-266.

54

Cf. ibidem, pp. 266-267.

55

Cf. BURGOS, Antonio, op. cit., pp. 57-60.

56

Veja-se, por exemplo: VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, op. cit., pp. 263-265.

57 Veja-se, por exemplo: BURGOS, Antonio, op. cit., pp. 53-54 e p. 57. Veja-se, igualmente: CARRERO RODRÍGUEZ, Juan, op. cit., p. 91; VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, op. cit., pp. 6768.

86

58 Veja-se, por exemplo: CARRERO RODRÍGUEZ, Juan, op. cit., p. 66. Veja-se, igualmente: BURGOS, Antonio, op. cit., pp. 31-33; VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, op. cit., pp. 127-158.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

n59606162

«Vai ao Ar a Mãe Soberana!» Varal Varejar Voltear Volteio

«Al Cielo con Ella!»59 Trabajadera60 Bambolear Revirá61 Reviro62

6.1. A influência do léxico tauromáquico no léxico falado pelos Homens do Andor Inventado ao longo dos anos, esse léxico específico foi, também ele, beber alguma inspiração ao léxico utilizado na arte da tauromaquia. São vários os termos e as expressões utilizadas pelos

Homens do Andor recolhidas do universo tauromáquico. Aqui

ficam alguns exemplos: «Cabo do grupo dos Homens do Andor» / «Cabo do grupo de forcados»; «Boleia» / «Boleia»; «Forcado» / «Forcado»; «Forquilha» / «Forquilha». Mas essa aculturação não se

sente somente ao nível dos termos, faz-se também notar ao nível de certas expressões por eles cunhadas. Alguns exemplos: «Pegar no andor» / «Pegar o toiro»; «Perder o andor» ou «Perder o varal»

/ «Perder a cara ao toiro»; «De palheta a palheta» / «De praça a

59 Veja-se, por exemplo: BURGOS, Antonio, op. cit., pp. 62-65; VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, op. cit., pp. 117-121. 60 Veja-se, por exemplo: BURGOS, Antonio, op. cit., pp. 50-51; CARRERO RODRÍGUEZ, Juan, op. cit.., p. 294; VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, op. cit.., pp. 52-54.

61 Veja-se, por exemplo: CARRERO RODRÍGUEZ, Juan, op. cit., p. 250; VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, op. cit., pp. 183-186.

62

Cf. VELÁZQUEZ MIJARRA, Emilio, op. cit., pp. 186-187.

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praça»; «Dar a volta à vila» / «Dar a volta à praça», entre outras.

Curioso também notar que cada posição específica debaixo do

andor apresenta uma designação própria63, assim como as várias posições que compõem uma formação de forcados. Por fim, refirase que tal para se ser forcado é necessário ter força física, destreza,

valentia e técnica, para se ser Homem do Andor possuir-se essas características também será necessário.

63

88

As oito posições que compõem o andor de Nossa Senhora da Piedade são as seguintes: na «linha da frente»: duas «cantoneiras da frente» ou «cantoneiras frontais» e um «meio-à-frente»; na «linha detrás»: duas «cantoneiras de trás» ou «cantoneiras traseiras» e um «meio-atrás» que também é designado por «porta do quintal»; e, por fim, as duas posições laterais que são denominadas de «palhetas» ou «eixos».

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

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joão Romero Chagas Aleixo

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Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

3 Dicionário Mãesoberaneiro (O léxico utilizado pelos Homens do Andor)1

O presente estudo pretende proceder à compilação de todo o léxico

utilizado e falado pelos Homens do Andor no decorrer das Festas em honra de Nossa Senhora da Piedade, em Loulé.

Esse léxico é composto por um conjunto alargado de termos

– palavras, termos técnicos, expressões, ditos, tipismos e modismos – só pelos Homens do Andor falado.

Não se sabe, ao certo, em que altura surgiu cada um dos

seguintes termos. Alguns terão mesmo surgido no século XIX. Sabe-se, tão somente, que a esmagadora maioria deles são muito antigos, tendo

sido transmitidos pela oralidade por sucessivas gerações daqueles que emprestaram as suas forças ao transporte do emblemático andor.

Trata-se de um léxico só por eles falado, originando, por esse facto, que a esmagadora maioria da população não o conheça. 1

A realização deste Dicionário Mãesoberaneiro (O léxico utilizado pelos Homens do Andor) teria sido impossível sem a preciosa ajuda, os conhecimentos técnicos e a revisão científica de dois Homens do Andor: o Sr. António dos Santos Simões, actual «Cabo do Grupo dos Homens do Andor» e do Eng. Horácio Filipe Guilherme Ferreira, actual Homem do Andor com mais anos em actividade.

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joão Romero Chagas Aleixo

Trata-se, assim, de um primeiro estudo lexicográfico e

etnográfico a esse léxico verdadeiramente específico. Conhecido, falado e transmitido por um conjunto muito restrito de indivíduos.

Assim sendo, este estudo tem como principal objectivo

recolher, de forma sistematizada e científica, o conjunto mais alargado possível do léxico falado pelos Homens do Andor. Não esquecendo que este determinado léxico será sempre um espelho,

limitando no espaço e no tempo, da língua portuguesa falada na região algarvia, em geral, e no concelho de Loulé, em particular.

A [1] Abaladiça: momento da saída, da condução da Imagem de

Nossa Senhora da Piedade, do largo da igreja de São Francisco rumo à ermida de Nossa Senhora da Piedade. Este termo deriva do verbo

«abalar», que, por sua vez, significa «ir», «partir rumo a algum sítio ou lugar». [2]

«Armar o Andor»: acto realizado, normalmente, na quarta,

na quinta e na sexta-feira santas, e que consiste na colocação da

Imagem de Nossa Senhora da Piedade no andor, aparafusando-a. Da armação do andor fazem igualmente parte a sua limpeza, o seu

embelezamento, assim como a colocação de flores na sua base e no 92

seu tecto.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

B [3]

«Baixar a Imagem»: expressão utilizada para descrever o

acto que consiste em tirar a Imagem do nicho do retábulo da ermida de Nossa Senhora da Piedade para a aparafusar à base do andor. O

«baixar da Imagem» é, normalmente, realizado por um Homem do Andor experiente e realiza-se, geralmente, na tarde de quinta-feira Santa.

[4] Biborla: nome dado a uma espécie de bola, achatada na

sua base, feita em madeira e, posteriormente, dourada, colocada por baixo de cada um dos quatro vértices do andor. Antigamente, quando ainda não existiam cavaletes, o andor, quando parado à

porta da igreja de São Francisco ou da ermida de Nossa Senhora da Piedade, assentava no chão ou na calçada sobre estas quatro bolas feitas em madeira denominadas de biborlas.

[5] Boleia: termo utilizado quando uma determinada posição do andor leva menos peso do que o peso habitual, num determinado

segmento do percurso da procissão. Esta situação acontece, normalmente, com as duas posições do meio [«meio-à-frente» e «meio-atrás»], e fica-se a dever ao facto de algumas artérias apresentarem um certo desnível ao centro, por forma a um melhor escoamento da água corrente das chuvas. O contrário da «boleia» é a expressão «estar carregado».

93

joão Romero Chagas Aleixo

C [6] Cabo do Grupo dos Homens do Andor: elemento

responsável pela organização e pelo bom funcionamento do grupo.

O «Cabo do Grupo dos Homens do Andor» pode ser um antigo

Homem do Andor ou um Homem do Andor ainda em actividade. Deve ter carisma e capacidade de liderança, devendo o seu papel

e o seu exemplo serem reconhecidos pelos restantes elementos

do grupo. A sua escolha/nomeação é realizada pelo conjunto

dos Homens do Andor em actividade, devendo, igualmente, ter o conhecimento e a aprovação do padre responsável pela paróquia

de São Sebastião. Entre as suas várias competências constam:

seleccionar e convidar novos Homens do Andor; transmitir aos novos Homens do Andor toda a mística inerente e associada às suas funções; fomentar a união e o espírito do grupo; representar

o grupo em cerimónias públicas, eventos e homenagens; e, por

vezes, discursar em alguns convívios que o grupo dos Homens do Andor organizam ao longo do ano. Esta designação teve origem

no universo tauromáquico, devido às enormes semelhanças que existem, ao nível das competências, quando comparadas com as

funções que normalmente são desempenhadas por um Cabo de um

grupo de Forcados. Presentemente, o «Cabo do Grupo dos Homens do Andor» é o Sr. António dos Santos Simões, também conhecido

por António «Zorro», que, entre 1962 e 1999, emprestou as suas forças ao transporte do emblemático andor. 94

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

[7] Cantoneira: nome dado a cada uma das quatro posições situadas nas esquinas ou nos vértices do andor. A sua denominação advém de estas posições serem as posições de canto do andor.

As «cantoneiras» são vistas como as posições mais importantes debaixo do andor. Estas quatro posições são, tradicionalmente, confiadas aos Homens do Andor mais altos do grupo.

[8] Cavalete: estrutura de madeira que serve para assentar o

andor quando este se encontra parado. São utilizados, normalmente,

dois cavaletes. Um, na parte da frente do andor; e o outro na parte traseira do andor. Existem dois diferentes tipos de cavaletes. Os

chamados cavaletes altos ou grandes que servem para suportar

o andor quando este permanece na igreja de São Francisco ou quando chega ao adro da ermida de Nossa Senhora da Piedade, e os chamados cavaletes baixos ou pequenos que são utilizados aquando

da armação do andor. O cavalete adquiriu esta denominação porque a sua estrutura assemelha-se muito à forma de um cavalo. [9]

Cunhas: pequenas tiras/ripas de madeira utilizadas

para ajustar os «varais» e as «palhetas» à base do andor. Servem

igualmente para fixar os «varais», de forma a que os mesmos não balancem quando o andor estiver em movimento.

D [10] «Dar um Viva»: utiliza-se esta expressão quando um determinado devoto da Nossa Senhora da Piedade dá um «Viva»

95

joão Romero Chagas Aleixo

durante a procissão. Os «Vivas» podem ser dados por devotos que incorporam a procissão, ou por aqueles que estão simplesmente

a assistir à sua passagem. Normalmente são logo secundados por outros «Vivas», numa espécie de confirmação. Os «Vivas» mais

populares são os seguintes: «Viva à Mãe Soberana!», «Viva aos Homens do Andor!», «Viva à Nossa Senhora da Piedade!», «Viva à nossa Padroeira!», «Viva à Música Nova!», entre outros.

[11] «De Palheta a Palheta»: expressão utilizada quando os oito Homens do Andor estão completamente sincronizados a «dançarem» ou a «bailarem» com o andor, isto é, marchando com o andor em forma de pêndulo.

[12] Descida: nome pela qual também é conhecida a procissão que se realiza no Domingo de Páscoa e que conduz a Imagem

de Nossa Senhora da Piedade da sua ermida até à igreja de São Francisco na cidade de Loulé. (Ver «Festa Pequena»)

[13] Dia(s) dos Homens do Andor: ao longo do ano os Homens

do Andor consagram para si dois diferentes dias, que podem ser

divididos entre um «dia oficial» e um «dia oficioso». O «dia oficioso» dos Homens do Andor tem lugar na segunda-feira imediatamente a seguir à Festa Grande da Mãe Soberana. Esse dia é ocupado, logo pela

manhã, com a tradicional missa de acção de graças dos Homens do

Andor. De seguida, tem lugar um almoço-convívio onde participam os actuais Homens do Andor e os seus convidados. Por outro lado, o

dia oficial anualmente consagrado aos Homens do Andor ocorre no 96

dia da cidade de Loulé (quinta-feira da Espiga), onde tem lugar um

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

tradicional almoço, servido por um popular restaurante da cidade,

onde são convocados para o convívio todos os Homens do Andor ainda vivos. Trata-se de uma ocasião que serve para reforçar o espírito do grupo, reverem-se colegas de antigamente, recordarem-

se histórias passadas, num salutar convívio que em muito contribui para reforçar a união da grande e heterogénea família dos Homens do Andor.

E [14] Eixos: posições laterais do andor. São, normalmente, as

posições mais baixas do andor e aquelas que permitem maiores ajustamentos de alturas. Existem dois «eixos» ou duas «palhetas», uma de cada lado do andor. A cada eixo ou palheta encontra-

se pregada uma ombreira azul. Os «eixos» ou as «palhetas» são, normalmente, confiadas aos Homens do Andor mais baixos do grupo. O mesmo que «palhetas». (Ver «palhetas»)

[15] «Encaixaram»: expressão utilizada quando dois ou mais Homens do Andor falam amigavelmente entre si, nos vários convívios que o grupo promove ao longo do ano. Normalmente utiliza-se essa

expressão quando esses determinados Homens do Andor estão tão concentrados e absorvidos pela conversa que não prestam atenção ao que se passa em seu redor. Esta expressão, oriunda do rugby, foi

trazida para o léxico específico dos Homens do Andor por um antigo atleta dessa modalidade e que actualmente é Homem do Andor.

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joão Romero Chagas Aleixo

[16] «Entregar a Roupa»: expressão utilizada quando um

determinado Homem do Andor decide deixar de transportar

o andor ou de transportar a tocha. Utiliza-se, igualmente, esta expressão quando um Homem do Andor deixa de transportar

o andor e «indica» um seu sucessor. Trata-se de uma expressão meramente figurativa, visto que não existe nenhuma entrega literal

de roupa. A origem desta antiquíssima expressão deve-se ao facto

de antigamente a roupa utilizada para o transporte do andor ser propriedade da Igreja. Assim sendo, quando um determinado Homem do Andor deixava de desempenhar a sua função voltava a entregar a roupa, por si utilizada, de novo à Igreja. Porém, a partir de 1977 a Igreja deixou de ser a proprietária da roupa utilizada

pelos Homens do Andor, passando a mesma, a partir dessa data, a ser propriedade individual de cada Homem do Andor.

[17] Equipa: uma equipa completa de Homens do Andor é constituída por dez Homens, discriminados da seguinte maneira:

quatro «cantoneiras», dois «meios», duas «palhetas» e dois «tochas».

[18] «Estar Carregado»: expressão utilizada quando um

determinado Homem do Andor se encontra a transportar mais

peso do que aquele que foi por si experimentado na cerimónia da

«experimentação» do andor. Este facto é facilmente explicado se tivermos em conta que a «experimentação» é realizada no adro da

ermida de Nossa Senhora da Piedade, isto é, em piso, mais ou menos, 98

plano. Assim sendo, quando os Homens do Andor experimentam o

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

andor, não se consegue ter em conta os vários declives que fazem parte dos percursos das duas procissões. O «estar carregado» deve-

se, na maior parte das vezes, à irregularidade do piso por onde passa

a procissão, tendo, este, acentuados desníveis e declives. Todavia, pode-se igualmente ficar a dever a um dos seguintes motivos: a um

passe desacertado ou a uma ordem dos Tochas mal cumprida. A cerimónia da «experimentação» serve, principalmente, para que

esta situação, de todo indesejável, não se verifique no decorrer da procissão. O contrário do «estar carregado» é a «boleia».

[19] Espigão: perno de ferro, assente na base do andor, que serve para fixar a Imagem de Nossa Senhora da Piedade ao andor.

[20] Experimentação: a «experimentação» do andor ou, simplesmente,

a

«experimentação»,

como

é

vulgarmente

denominada, trata-se de uma cerimónia privada em que os

Homens do Andor experimentam as suas posições no andor. A «experimentação» do andor de Nossa Senhora da Piedade é a

cerimónia que inaugura, anualmente, as Festas da Mãe Soberana. Perdeu-se na memória o primeiro ano em que se realizou este

ritual semi-privado. Talvez, ainda, remonte ao século XIX. Realiza-

se todos os anos, no Domingo de Ramos, no adro da ermida de Nossa Senhora da Piedade. Além de se tratar do ritual iniciático

Mãe Soberaneiro, adquire uma importância fundamental para que as Festas decorram da melhor maneira. É lá que todos os novos Homens do Andor têm o seu primeiro contacto com o emblemático

andor. Que experimentam, pela primeira vez, o seu peso. Que sentem

99

joão Romero Chagas Aleixo

a futura responsabilidade que lhes será imputada. Por outro lado,

a «experimentação» serve para realizar as seguintes operações: ajustar as posições; fixar os lugares de cada homem no andor; tentar dividir equitativamente o peso total do andor [o andor actual

pesa 270 Kg o que dá sensivelmente cerca de 33,75 kg para cada Homem do Andor] pelos oito Homens; descer, manter ou subir as

«cantoneiras», os «meios» e as «palhetas»; pregar as almofadas/ ombreiras nos «varais» e nas «palhetas»; verificar a estabilidade do

andor em andamento; e, por último, treinar um pouco o passo do andor.

F [21] «Fazer a Volta»: expressão utilizada pelos Homens do Andor para descrever o acto da realização de cada uma das curvas que fazem parte do percurso das duas procissões anuais em honra de Nossa Senhora da Piedade.

[22] Festa Grande: designação utilizada na gíria para denominar a procissão que percorre as principais artérias da cidade de Loulé e que posteriormente conduz a Imagem de Nossa Senhora da Piedade, de novo, à sua ermida.

[23] Festa Pequena: designação utilizada na gíria para

denominar a procissão que conduz a Imagem de Nossa Senhora da

Piedade da sua ermida até à igreja de São Francisco, em Loulé, na

100

tarde do Domingo de Páscoa.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

[24] Forcado: estrutura feita de madeira maciça, em forma de I,

encimado por uma forquilha em ferro, transportado em procissão por cada um dos Homens do Andor. Assemelha-se a um pau feito em madeira. Este objecto, além de auxiliar a marcha dos Homens do Andor, serve, igualmente, para assentar o andor nas suas paragens mais curtas. Na ladeira, quer na descida quer na subida, é normal virar-se o forcado ao contrário, isto é, com a forquilha para a parte

de baixo. O objectivo é que a forquilha assente nos intervalos das pedras que compõem a ladeira, estancando (na descida) e ajudando

a subir (na subida) o andor. Normalmente é utilizado em todas

as posições do andor, à excepção do «meio-à-frente» e do «meioatrás», também conhecido por «porta-do-quintal», uma vez que não é prático transportar o forcado em posições que fiquem no

meio de outras duas. Um conjunto de forcados é composto por oito forcados, isto é, um para cada posição no andor.

[25] Forquilha: parte superior do forcado, normalmente feita

em ferro e tendo a forma de um U, isto é, em forma de bi-dente. A forquilha serve para assentar o forcado ao varal do andor, de forma a prendê-lo da melhor maneira possível.

L

[26] Laço Branco: laço utilizado pelos Homens do Andor na chamada Festa Grande. (Ver «Festa Grande».)

[27] Laço Preto: laço utilizado pelos Homens do Andor na chamada Festa Pequena. (Ver «Festa Pequena».)

101

joão Romero Chagas Aleixo

[28] Linha: o andor de Nossa Senhora da Piedade é composto por duas diferentes linhas, coadjuvadas por duas palhetas. Existe a

linha da frente ou frontal, composta pelo conjunto das três posições

dianteiras (as duas «cantoneiras» da frente e o «meio-à-frente»); e a linha de trás ou traseira, composta pelas três posições de trás (as duas «cantoneiras» traseiras e o «meio-atrás» ou a «porta-doquintal» como também é conhecido).

M [29] Marcha: designação atribuída ao andamento acertado do conjunto dos oito Homens do Andor.

[30] Marcha Triunfal: designação pela qual também é conhecida

a secular Marcha-Hino de Nossa Senhora da Piedade composta pelo mestre Manuel Martins Campina. Este oficial das finanças,

extraordinariamente dotado para a música, desempenhou o cargo de regente da Sociedade Filarmónica União Marchal Pacheco, também

conhecida por Música Velha, entre 1866 e 1896. Pensa-se que a

Marcha da Nossa Senhora da Piedade foi por si composta nos finais

da década de Sessenta, princípio da década de Setenta do século XIX. Anos mais tarde, o também músico Pedro de Freitas descrevia-a da seguinte maneira: «um hino de melodia agradável que tanto tem de fácil e simples como de sugestionável e adaptado ao fim»2. 2

102

Cf. Pedro de FREITAS, Quadros de Loulé Antigo – A Alma de Loulé em Livro, 2.ª edição corrigida e aumentada, Lisboa, edição da Câmara Municipal de Loulé, 1980 [1964], p. 172.

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[31] Meio-à-Frente: posição do meio na parte da frente do andor, isto é, posição situada entre as duas «cantoneiras» frontais do andor.

[32] Meio-Atrás: posição do meio na parte de trás do andor, isto é, posição situada entre as duas «cantoneiras» traseiras. Esta

posição é também conhecida por «porta-do-quintal». (Ver «Portado-Quintal».)

O [33] Ombreira: nome dado a cada uma das oito almofadas azuis

presas a cada um dos seis «varais» e das duas «palhetas». Estas

ombreiras servem, como o próprio nome indica, para protegerem os ombros dos oito Homens do Andor, atenuando o contacto dos seus ombros com os «varais» e as «palhetas» feitas de madeira.

[34] «Ombro do erro»: nome dado pelos «antigos» Homens do

Andor ao ombro de cada homem que consegue aguentar mais peso sobre ele. Normalmente, é esse determinado ombro o escolhido para assentar o respectivo «varal» ou «palheta» durante a procissão de Nossa Senhora da Piedade.

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joão Romero Chagas Aleixo

P [35] Pataludo: expressão depreciativa que serve para caracterizar um determinado Homem do Andor que apresente dificuldades em

marchar correctamente. Este termo deverá ter nascido por força de um processo de assimilação fonética, isto é, do antigo pé ou pata

no lodo, que, com o uso ao longo dos tempos, terá dado origem ao

termo «pataludo».

[36] «Pica»: termo utilizado, normalmente, pelos «Tochas» para ordenarem aos seus colegas de andor o «passo picado», também conhecido por «picadinho».

[37] Palhetas: posições laterais do andor. São, normalmente, as posições mais baixas do andor e aquelas que permitem maiores ajustamentos nas suas alturas. Existem duas «palhetas», uma de cada lado do andor. A cada «palheta» encontra-se pregada uma

ombreira azul. As «palhetas» são, normalmente, atribuídas aos Homens do Andor mais baixos do grupo.

[38] Parafusos de Orelhas: conjunto de parafusos colocados por baixo das duas «palhetas», assim como das quatro colunatas. Estes parafusos servem para regular a altura das «palhetas»,

possibilitando a sua subida ou a sua descida. Servem, igualmente, para apertar as quatro colunatas do andor. A sua designação advém

da sua forma física, uma vez que estes parafusos se assemelham a uma cabeça com duas orelhas. 104

[39] «Passo Picado»: utiliza-se esta designação quando os

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Homens do Andor utilizam um passo certo, curto e cadenciado no transporte do andor.

[40] «Pegar no Andor»: expressão utilizada pelos Homens

do Andor para descrever o acto de transportar o andor de Nossa Senhora da Piedade em procissão.

[41] «Perder o Andor»: expressão utilizada quando o «varal»

deixa de assentar no ombro de um determinado Homem do Andor. Esta situação pode ocorrer com qualquer posição do andor, sendo a sua causa o acentuado desnível do solo. Neste particular, a situação

mais flagrante é a que se verifica à passagem da Cruz Grande (ou Cruzeiro), quando a ladeira chega a deter quase 18% de inclinação

média, e, onde, por breves momentos, o «meio-atrás» ou a «porta-

do-quintal», perde, por força da acentuada inclinação da ladeira, o «varal» do andor.

[42] «Perder o Varal»: o mesmo que «perder o andor». (Ver «Perder o Andor».)

[43] Picadinho: o mesmo que «passo picado». (Ver «Passo Picado».) [44] Porta-do-Quintal: expressão utilizada, na gíria, para

designar a posição do «meio-atrás». (Ver «Meio-Atrás».) Trata-se

da posição mais ingrata entre as oito posições do andor, uma vez que é aquela que detém menor ângulo de visão. A parte do quintal

advém de esta ser uma posição que fica na parte traseira do andor.

Antigamente, era tradição, dentro do grupo dos Homens do Andor, que a entrada de um novo elemento fosse ocupar essa posição.

105

joão Romero Chagas Aleixo

S [45] Subida: nome pela qual também é conhecida a condução, em Marcha Triunfal, da sagrada Imagem de Nossa Senhora da Piedade

da igreja de São Francisco até à sua ermida, que se localiza no cimo do Monte da Piedade. Esta designação advém da dolorosa subida que ocorre na parte final da procissão. Trata-se de uma subida de

cerca de 310 metros de comprimento com um inclinação média de 14,2%, chegando em algumas partes do percurso a atingir uma inclinação parcial média de cerca de 18%.

T [46] Tríduo de Preparação Para a Festa: dá-se o nome de Tríduo de preparação para a Festa ao conjunto das três últimas novenas

em honra de Nossa Senhora da Piedade. Ultimamente decidiu-se celebrar a novena dos doentes no primeiro dia do Tríduo (quinta-

feira), a novena das famílias no segundo dia do Tríduo (sexta-feira) e a novena dos jovens no último dia do Tríduo (sábado). A celebração

do Tríduo é presidida, sempre, pelo orador sacro convidado para a Festa desse ano.

[47] Tochas: os «Tochas» da Mãe Soberana são uma espécie de «olhos do andor», uma vez que a sua principal função é orientar a

marcha do andor. É um cargo de grande responsabilidade, porque 106

é deles que depende o correcto andamento do andor. Estes homens

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

são igualmente responsáveis pela execução das manobras mais

difíceis do andor, nomeadamente «fazer as voltas», as paragens e as entradas e saídas das igrejas. Na procissão pela cidade, bem

como na subida da íngreme ladeira, devem saber abrir espaço à frente do andor, para que este efectue a sua marcha em tempo

certo. Durante a procissão devem dispensar umas palavras e/ou

gritos de incentivo para com os seus oito colegas. Antigamente, isto é, sensivelmente até à segunda década do século XX, a sua farda de

trabalho era diferente da dos seus colegas, uma vez que vestiam calças escuras, caso preto e gravata preta, um pouco à semelhança

do que vestem os «capataces» das procissões andaluzas, com a

particularidade de transportarem uma tocha branca, normalmente,

na sua mão direita; advindo desse objecto o nome pelo qual são

conhecidos. No entanto, em data que não se sabe, o seu fardamento é uniformizado em relação aos restantes colegas, partindo, desde essa altura, a vestirem todos da mesma maneira. Os «Tochas» da Mãe Soberana, no percurso pela cidade, devem ocupar o lugar ao lado das duas «cantoneiras» da frente do andor; sendo que na

subida da ladeira devem ir uns passos mais à frente com o objectivo de abrir caminho/arranjar espaço para que os seus colegas possam progredir da melhor maneira possível.

[48] Tocheiros: designação que antigamente se dava aos «Tochas». (Ver «Tochas».)

107

joão Romero Chagas Aleixo

U [49] «Um Por Oito E Oito Por Um»: espécie de «lema» ou de divisa invocada pelos Homens do Andor, na sacristia da igreja de São Francisco, antes da «abaladiça» da condução da Imagem

de Nossa Senhora da Piedade, em Marcha Triunfal, à sua santa ermida. Esta espécie de divisa visa transmitir o sentido de grupo e de união que deverá existir nos momentos mais adversos, por

forma a alcançarem o objectivo a que se propõem. Este espécie de lema serve para motivar os colegas de andor para a missão que se aproxima, isto é, a subida da íngreme ladeira do monte da Piedade. A

invocação deste «lema» é, sempre, secundado por um sonoro «Viva à Mãe Soberana!!!», sinal de que a equipa se encontra preparada para a difícil missão que se avizinha.

V [50] «Vai à Mão»: expressão utilizada pelos «Tochas» para

ordenarem aos seus colegas de andor que o andor seja transportado à mão, normalmente ao nível da cintura ou do joelho, em vez de ser

transportado aos ombros. Esta situação verifica-se sempre que o

andor tem que entrar ou sair da ermida, entrar ou sair da igreja de São Francisco ou subir ou descer as escadas da estrutura construída para a missa campal. 108

[51] «Vai ao Ar a Mãe Soberana!»: expressão emblemática

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

utilizada pelos antigos «Tochas» para ordenarem o levantamento do andor.

[52] Varal: nome dado a cada uma das três traves de madeira que se encontram incrustadas na base do andor. As três tábuas

fornecem assim as posições frontais e traseiras do andor, isto é, as

quatro «cantoneiras», o «meio-à-frente» e o «meio-atrás». A cada «varal» encontram-se pregadas duas ombreiras azuis, uma da parte da frente e outra da parte detrás do andor.

[53] Varejar: verbo utilizado quando as quatro colunatas do

andor varejam, isto é, oscilam de um lado para o outro. Esta situação

acontece, geralmente, em duas ocasiões. A primeira, dentro da cidade, quando o andor é transportado de «palheta a palheta» ou

quando os Homens do Andor «bamboleiam» o andor. A segunda,

quando o andor faz a subida da íngreme ladeira do monte da Piedade.

[54] Voltear: a arte e a técnica com que os Homens do Andor, sabiamente orientados pela voz dos dois «Tochas», realizam uma determinada volta.

[55] Volteio: o acto de realizar uma determinada volta.

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joão Romero Chagas Aleixo

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Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

4 A Mãe Soberana e o Casamento de S.A.R. a Rainha D. Maria II No dia 26 de Janeiro de 1835, o príncipe D. Augusto Carlos Eugénio Napoleão (1810 – 1835), duque e príncipe de Leuchtenberg e de Santa Cruz e Sua Alteza Real (S.A.R.) a rainha D. Maria II (1819 –

1853), rainha reinante de Portugal entre 1834 e 1853, ratificam o seu «feliz consórcio», numa cerimónia realizada na sé patriarcal

de Lisboa1. Ratificam, uma vez que a 1 de Dezembro de 1834 já se tinha realizado, igualmente na sé patriarcal de Lisboa, o casamento real por procuração do príncipe2. O Nacional, à época famoso

periódico conservador, destacou o «asseio da tropa», o «numeroso concurso de gente», as ruas e as janelas «apinhadas», «as salvas»,

«os foguetes», «os vivas» e confessou-se impotente para descrever o «júbilo e o entusiasmo público»3.

1 Cf. BONIFÁCIO, Maria de Fátima, D. Maria II, Lisboa, Círculo de Leitores e Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, 2007, p. 80.



2

Cf. ibidem, p. 347.

3

Cf. Maria de Fátima BONIFÁCIO, op. cit., p. 80.

111

joão Romero Chagas Aleixo

Na sequência deste aclamado matrimónio, o Ministério do

Reino, sedeado em Lisboa, emite uma portaria régia que faz enviar

para todos os concelhos do país. A Câmara de Loulé recebe essa portaria, na qual S. A. R. a rainha D. Maria II determinava que após

o seu casamento se praticassem as «demonstrações de jubilo» por tão singular acontecimento. Assim se determinava, assim se faria.

Deste modo, depois de recebida a portaria, a Câmara

reúne-se, em sessão de vereação, no dia 31 de Janeiro de 1835. A acta dessa sessão de vereação começa por informar: «Na mesma

em virtude da Portaria do Menisterio do Reino em data de vinte e sinco de Janeiro do Corrente anno, em que partecipava a esta

Camara, que tendo felis mente chegado aquella Capital Sua Alteza Real o Principe Dom Augusto, Duque de Leuchetenberg, e Santa

Cruz, Esposo de Sua Magestade Fidellissima a Rainha, e devendo celebrar-se o Consorcio da mesma Augusta Senhora, determina Sua

Magestade Fidellissima que por taó Sîngular motivo se pratiquem

as demonstracções de jubilo proprias desta Solemnidade». Lida a portaria régia, a vereação camarária determina: «conduzir em Porcissão Nossa Senhora da Piedade para esta Villa, e colocolla na Igreja Matriz para ahi Solemnemente a sua chegada se cantar Te

Deum Laudamus isto no dia Primeiro do mes de Fevereiro, tendo se primeiro feito publico por pergoes nos lugares Publicos desta Villa

para que se eluminassem as janellas por tres noites sucessivas, e

que concervandose Nossa Senhora na Igreja Matriz fazendo-se lhe novena athé ao seguinte Domingo, que com mais pompa se 112

determinou Cellebrar huma festa Solemne em acçáo de graças por

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

táo felis acontecimento, ordenando que eu Secretario Noteficasse todos os Clerigos existentes nesta Villa para concorrerem a dita Festividade, e Jose Pedro do sitio dos Canos, para nesse dia e no da

Festa levar o Estandarte deste Senado, mandando resistar no livro desta Camara a dita Portaria para que conste em todo o tempo»4. A

vereação

municipal

podia

determinar

variadas

«demonstracções de jubilo» por «tão singular motivo», como por exemplo: determinar um feriado municipal, decretar a isenção

de impostos municipais, conceder indultos prisionais, organizar ou promover um «bodo aos pobres», entre outras formas de comemoração. Mas a sua escolha não recaiu em nenhuma dessas

opções. Escolheu, sim, fazer conduzir a Imagem de Nossa Senhora da Piedade, em procissão extraordinária, para a vila de Loulé.

A Imagem veio para a vila no dia 1 de Fevereiro de 1835, um

Domingo; tendo permanecido exposta aos fiéis, na igreja Matriz

de São Clemente, até ao Domingo seguinte (8 de Fevereiro). Facto inequívoco da importância e do significado deste culto para a vila de Loulé e para os louletanos.

4 Cf. A.M.L., Livro de Actas das sessões de Vereação de 1834-1837, fl. 46 v.º. e fl. 47. A.M.L.: PT/AMLLE/AL/CMLLE/B/A/01/Lv 125.

113

joão Romero Chagas Aleixo

Assim sendo, em caso de grandes secas (16055, 17506, 17737

e 18968), «demonstracções de jubilo» (18359) ou tremores de terra

(185610), o procedimento adoptado pela Câmara Municipal de Loulé era sempre o mesmo: ordenava que a Imagem de Nossa Senhora da Piedade, viesse, em procissão extraordinária, para a vila. Prova

inequívoca da importância, do significado, e, sobretudo, da imensa popularidade que esta sagrada Imagem representava para a vila de

Loulé e para os louletanos. No século XVIII, assim como no século XIX. Importância, esta, que com o passar dos anos se vê consolidada

e alargada, alcançando este culto o lugar cimeiro entre todas as devoções algarvias.

Aqui chegados, afigura-se importante notar a peculiaridade

desta forma de religiosidade popular, pouco tutelada pelo clero. A

sua tutela pertencia à administração municipal. Foi assim durante

5 Cf. A.M.L., Livros de Actas de Vereações, 1604-1606, sessão de 30 de Março de 1605, fl. 97.

6



8

Cf. «Curiosidades», in O Algarvio, n.º 3, de 14 de Abri de 1889, p. 3.

7 Cf. ALEIXO, João Miguel Romero Chagas Viegas, O culto a Nossa Senhora da Piedade, Mãe Soberana dos Louletanos, em Loulé (1806-2013), tese de Mestrado em História Contemporânea, realizada sob a orientação científica do Professor Doutor Fernando José Mendes Rosas (F.C.S.H./U.N.L.) e do Professor Doutor Vítor Manuel Parreira Neto (F.L./ U.C.), apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa em Outubro de 2013, Lisboa, 2013, pp. 36-37. Cf. O Louletano, de 19 de Abril de 1896, p. 1.

9 Cf. Arquivo Municipal de Loulé, Livro das Actas de Vereação de 1834-1837, fl. 46 v.º. e fl. 47.

114

10 Cf. OLIVEIRA, Ataíde de, Monografia do Concelho de Loulé, 3.ª edição, edição facsimilada, Faro, Algarve em Foco Editora, 1989 [1905], pp. 62-63.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

muitos anos. O clero pouco interferia com a administração deste

culto mariano. Indo, isso sim, ao reboque da extraordinária devoção popular. Que, com o passar dos anos, foi crescendo; extravasando,

sucessivamente, as fronteiras da vila, do concelho e da província. Para assim chegar, na segunda metade do século XX, ao estatuto de uma devoção de carácter nacional.

115

joão Romero Chagas Aleixo

116

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

5 O Rapto da Imagem da Piedade (1893) As Festas da Piedade de 1893 foram tudo menos pacíficas. Os

Regeneradores louletanos acusaram os Progressistas locais de terem ido roubar a Imagem. Estes, por sua vez, acusaram os Regeneradores de quererem instrumentalizar a Festa. A polémica foi farta. E ocupou as atenções da vila por vários meses.

A melhor forma de repescar esta polémica é recuperando o

seu palco privilegiado: a imprensa local da época. Verdadeiro teatro

de guerra; onde se travavam constantes batalhas, de periodicidade semanal.

Nessa altura, a pena do jornalista representava uma arma

sempre pronta a disparar contra o inimigo, que, geralmente, representava a facção política oposta. Quase tudo era permitido, desde excessos de linguagem a acusações sem provas. Porque a imprensa local daquela época servia para publicar notícias, mas,

também, para emitir testemunhos, depoimentos, cartas de leitores e comunicados. Vivia-se, quase, uma espécie de «guerra civil» permanente, facto a que a situação política do país não era alheia. Entre Regeneradores e Progressistas a guerrilha era constante.

117

joão Romero Chagas Aleixo

As Festas da Piedade de 1893 foram tudo menos pacíficas. Os

Regeneradores louletanos acusaram os Progressistas locais de terem ido roubar a Imagem. Estes, por sua vez, acusaram os Regeneradores de quererem instrumentalizar a Festa. A polémica foi farta. E ocupou as atenções da vila por vários meses.

A melhor forma de repescar esta polémica é recuperando o

seu palco privilegiado: a imprensa local da época. Verdadeiro teatro

de guerra; onde se travavam constantes batalhas, de periodicidade semanal.

Nessa altura, a pena do jornalista representava uma arma

sempre pronta a disparar contra o inimigo, que, geralmente, representava a facção política oposta. Quase tudo era permitido, desde excessos de linguagem a acusações sem provas. Porque a imprensa local daquela época servia para publicar notícias, mas,

também, para emitir testemunhos, depoimentos, cartas de leitores e comunicados. Vivia-se, quase, uma espécie de «guerra civil» permanente, facto a que a situação política do país não era alheia.

Entre Regeneradores e Progressistas a guerrilha era constante. Tanto em Lisboa; como na província. Só mudava a escala.

Em Loulé, e tal como sucedia, por essa altura, em outras

vilas e cidades do país, cada um dos dois partidos políticos possuía

um periódico afecto. Uma espécie de «folha semanal» oficiosa.

118

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

O Algarvio1, era o periódico afecto ao Partido Regenerador. E O

Louletano2, era o periódico afecto ao Partido Progressista. Dois

periódicos locais. Duas folhas semanais. Duas linhas editoriais opostas. Duas formas diferentes de ver a realidade local e, também,

a nacional. E, por vezes, duas «armas de papel», sempre prontas a defender o seu partido político.

Em Dezembro de 1892 realizaram-se eleições municipais3.

Em Loulé, a Câmara Municipal foi ganha por membros afectos ao

Partido Regenerador. E, como em muitas outras câmaras do país, o escrutínio eleitoral foi contestado pelo Partido Progressista, que

invocou ter-se verificado a tradicional «chapelada». Protestaram. Em vão. Porque de nada serviu o protesto, uma vez que o «presidente do

1 O Algarvio foi o primeiro periódico publicado na, então, vila de Loulé. Fundado em 31 de Março de 1889, pensa-se que pela mão do monografista algarvio Francisco Xavier de Ataíde Oliveira (1843 – 1915). Tratava-se de um periódico semanal, publicado ao domingo, e politicamente afecto ao Partido Regenerador. Fortemente noticioso, informativo e regionalista. Teve como seus colaboradores, além do já citado Francisco Xavier de Ataíde Oliveira, o artista Almada Negreiros e o poeta Cândido Guerreiro. Publicaram-se, ao todo, 233 edições, sendo a sua publicação periódica extinta a 19 de Setembro de 1893 (cf. MESQUITA, José Carlos Vilhena, História da Imprensa do Algarve, volume II, Faro, Comissão de Coordenação da Região do Algarve, 1988, pp. 16-19).

2 O Louletano foi fundado em 9 de Janeiro de 1893. Apresentava-se aos seus leitores como sendo um «Jornal Progressista», informação, aliás, que constava no seu cabeçalho. Periódico semanal, publicado aos domingos, era afecto ao Partido Progressista, como foi explicado logo no seu primeiro número: «O Louletano será um jornal político, literário e noticioso. Ocupando-se especialmente de tudo o que possa interessar ao concelho de Loulé, seguirá na política geral do país, com a máxima lealdade e independência, a política do partido progressista». O seu director e editor era o Dr. Jacintho Parreira Lança, médico do Partido Municipal, em Loulé. Publicaram-se, ao todo, 173 edições, sendo a sua publicação suspensa no dia 5 de Maio de 1896 (cf. MESQUITA, José Carlos Vilhena, op. cit., pp. 71-72).

3

Cf. «Ao ‘Progresso do Sul’, in O Algarvio, n.º 194, de 18 de Dezembro de 1892, p. 1.

119

joão Romero Chagas Aleixo

tribunal judicial d’esta comarca julgou válida a eleição camarária»4.

Deste modo, o novo executivo municipal toma posse no dia 2

de Janeiro de 1893, para mais uma legislatura (triénio 1893-1895)5.

Que, como é natural, se pretendia pacífica. «Foi escolhido para presidente o sr. Francisco de Paula Galvão e para vice-presidente o sr. José da Costa Mealha6».

«Durante o acto tocou em frente dos Paços do Concelho a

4 Cf. «O célebre protesto», in O Algarvio, n.º 197, de 8 de Janeiro de 1893, p. 1. Sobre este assunto veja-se, ainda: «O ‘Distrito de Faro’», in O Algarvio, n.º 199, de 22 de Janeiro de 1893, p. 1. 5 Cf. A.M.L., Livro das Actas das Sessões da Câmara Municipal de Loulé, de 11/09/1889 a 12/07/1893, fl. 168-168 v.º. A.M.L.: PT/AMLLE/AL/CMLLE/B/A/01/Lv 139.

6 José da Costa Mealha nasceu em Loulé no dia 1 de Dezembro de 1851. Ao longo da sua vida destacou-se como comerciante, exportador de frutos secos, político local e grande benemérito. Além de comerciante de frutos secos, obras de palma, esparto e cortiça, foi, ainda, agente bancário e de seguros. Iniciou a sua carreira partidária no Partido Regenerador, liderado localmente pelo Dr. Marçal Pacheco. Em 1893 desempenhou o cargo de vice-presidente da Câmara Municipal de Loulé. Em 1895 e 1896 exerceu o cargo de tesoureiro da Mordomia de Nossa Senhora da Piedade. Porém, em 1903, abandona o Partido Regenerador e adere ao Partido Progressista Dissidente, assumindo, de imediato, a sua chefia local. Foi eleito presidente da Câmara Municipal de Loulé no triénio de 19051907, de 15/01/1908 a 30/11/1908 e, ainda, de 7/12/1908 a 25/01/1909. Exerceu, igualmente, as funções de administrador do concelho entre 1906 e 1908. Faleceu em Loulé, vítima da pneumónica, no dia 4 de Novembro de 1918. Tinha 67 anos. (cf. FREITAS, Pedro de, História da Música Popular em Portugal (Versão Tradicional da Música Popular em Loulé), Lisboa, Tipografia da Liga dos Combatentes da Grande Guerra, 1946, p. 89, e, igualmente, PALMA, Jorge Filipe Maria da, Dicionário Toponímico – Cidade de Loulé, Loulé, Câmara Municipal de Loulé, 2009, pp. 223-224).

120

A restante vereação era composta pelos seguintes vereadores: Francisco d’Assis Rebelo, José Faísca, Joaquim Bernardo de Souza Barros, Sebastião José Teixeira e José Dias Teixeira (cf. A.M.L., Livro das Actas das Sessões da Câmara Municipal de Loulé, de 11/09/1889 a 12/07/1893, fl. 168-168 v.º).

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

filarmónica Velha7 e foram atirados muitíssimos foguetes»8.

Precisamente decorridos quatro meses após a tomada de

posse do novo executivo camarário, isto é, no dia 2 de Abril de 1893, Domingo de Páscoa, era tradição a população louletana trazer a Imagem de Nossa Senhora da Piedade para a vila, naquilo a que

os louletanos designam, ancestralmente, por «Festa Pequena». Todavia, nesse ano, o novo executivo achou prudente adiar a data

da Festa. Situação já verificada nos anos de 1866, 1868, 1871, 1875 e 18769 pelo motivo de muitos filhos de Loulé se encontrarem fora do concelho, trabalhando sazonalmente na apanha de colheitas

no Alentejo, nas Beiras e em Espanha (nomeadamente na vizinha Anadaluzia)10. Nesse sentido, a Câmara Municipal solicita ao arcebispo-bispo da diocese, D. António Mendes Bello11, o adiamento da procissão, invocando, para o efeito, os seguintes motivos:

a) Dado os ânimos dos louletanos ainda se encontrarem

bastantes alterados, em virtude das eleições municipais realizadas no passado dia 7 de Dezembro, eleições, essas, que provocaram

7 A «Música Velha» era o nome pela qual era conhecida a Sociedade Filarmónica União Marçal Pacheco. Fundada no dia 1 de Maio de 1856, esta sociedade filarmónica era afecta, politicamente, ao Partido Regenerador (cf. FREITAS, Pedro de, História da Música Popular em Portugal (Versão Tradicional da Música Popular em Loulé), Lisboa, Tipografia da Liga dos Combatentes da Grande Guerra, 1946, p. 77 e pp. 87-89).

8



10

Cf. «Posse», in O Algarvio, n.º 199, de 22 de Janeiro de 1893, p. 3.

9 Cf. A.M.L., Fundo da Mordomia de Nossa Senhora da Piedade, Livro de Contas da Mordomia de Nossa Senhora da Piedade, 1866-1909. Cf. «A Câmara e o médico Lança», in O Algarvio, n.º 218, de 4 de Junho de 1893.

11 D. António Mendes Bello foi bispo do Algarve durante vinte e quatro anos, isto é, entre 1884 e 1908. Em 19 de Dezembro de 1907 seria elevado a Patriarca de Lisboa.

121

joão Romero Chagas Aleixo

uma acentuada divisão na população louletana12;

b) O facto de se encontrarem «fora do concelho milhares

de pessoas, que no Alentejo, Beiras e Espanha foram, como de costume, procurar trabalho», facto, esse, que retiraria o desejado

brilho que a Câmara Municipal queria empreender à festa principal do concelho13.

Por outro lado, no dia 13 de Agosto de 1890 tinha sido

criada uma nova freguesia na vila de Loulé, que fora baptizada com o nome de São Sebastião. Esta nova freguesia resultou de um novo

arranjo administrativo que veio dividir a então única freguesia

da vila (freguesia de São Clemente) em duas freguesias distintas: São Clemente e São Sebastião. Este novo arranjo administrativo

resultou, igualmente, na divisão eclesiástica da única paróquia existente na vila (paróquia de São Clemente) em duas novas

paróquias: a paróquia de São Clemente, que conservou a sua sede paroquial na Igreja Matriz de São Clemente; e a paróquia de São

Sebastião, que passou a ter como sua sede paroquial a Igreja de São Francisco, que, desde o séc. XVIII, era propriedade da Ordem Terceira de São Francisco.

Desde 1830 que a lei determinava que fossem nomeados, para

cada freguesia, «um corpo administrativo, que se denominasse de

junta de paróquia»14 e que em cada paróquia houvesse um regedor,

12



14



122

Cf. «Ao ‘Progresso do Sul’, in O Algarvio, n.º 194, de 18 de Dezembro de 1892, p. 1.

13

Cf. «A Câmara e o médico Lança», in O Algarvio, n.º 218, de 4 de Junho de 1893. Cf. SANCHIS, Pierre, op. cit., p. 188.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

delegado imediato do administrador do concelho15. Em Dezembro

de 1891, O Algarvio informava que a nova freguesia ainda não tinha

constituído a sua «junta de paróquia», pelo que a junta de paróquia de São Clemente funcionava para as duas freguesias16.

Até 1891, inclusive, a Festa da Piedade realizava-se na igreja

Matriz de São Clemente, então, sede paroquial da única freguesia da vila. Todavia, em 1892, e pela primeira vez na história, a Festa

realizou-se na igreja de São Sebastião, então, interinamente, sede paroquial da nova freguesia de São Sebastião17.

Porém, a autarquia queria que a Festa de 1893 voltasse a ser

realizada na igreja Matriz de São Clemente, por esta ser «mais vasta

e mais antiga, e por ser a mesma festa a principal deste concelho»18. Todavia, o articulista d’O Algarvio conta que no Sábado

de Aleluia «espalhou-se na freguesia de São Clemente que uns indivíduos quaisquer, com o consentimento do revd. pároco de

15 Cf. «Freguesia de S. Sebastião de Loulé», in O Algarvio, n.º 141, de 6 de Dezembro de 1891, p. 1.

16



18

Cf. ibidem.

17 Cf. «A festa de Nossa Senhora da Piedade», in O Louletano, n.º 14, de 9 de Abril de 1893, p. 2. Cf. «O Desacato», in O Algarvio, n.º 210, de 9 de Abril de 1893, p. 1.

A comprovar os argumentos invocados pela autarquia, veja-se, a título de exemplo, a reportagem realizada sobre a Festa da Piedade de 1892, em que se podia ler a seguinte passagem: «Esteve esplendorosa a festa de N. S. da Piedade, realizada no domingo passado [dia 8 de Maio], na parte respeitante ao arraial, porque portas a dentro da igreja [de São Francisco, pertencente à Ordem Terceira de São Francisco] poucos foram os que puderam assistir, visto a estreiteza do templo e o hábito da gente do campo, em assenhorar-se logo de todos os lugares» (cf. «Festa» in O Algarvio, n.º 164, de 15 de Maio de 1892, p. 1).

123

joão Romero Chagas Aleixo

S. Sebastião, pretendiam à força conduzir a imagem de Nossa Senhora da Piedade da sua capela para a igreja de S. Francisco»19.

O objectivo era, pelo articulista, desvendado: «criar dificuldades à autoridade municipal para fins meramente políticos, aos quais era completamente estranho o sentimento religioso»20. Os actores,

esses, também pareciam identificados. O jornalista referia-se aos Progressistas locais. Parece que o boato, posto a circular, era verdadeiro. Uma vez que «No Domingo da Páscoa, [2 de Abril] á

tarde, informaram-nos também que o srº. Joaquim Pereira21, á

frente d’alguns arruaceiros, se dirigira á capela de Nossa Senhora da Piedade, e lá obrigara o eremitão a apresentar-lhe a chave da casa do andor, para transportar a imagem da Virgem para esta

freguesia, e como o ermitão lhe respondesse não ter em seu poder tal chave, fora arrancada do seu nicho a Imagem e transportada ás

costas de dois carreiros, um dos quais aqui conhecido nos tribunais criminais por desordeiro».

O relato continuava: «no meio das vozerias avinhadas de viva

o Parragil , viva o sr. Pereira e viva a Nossa Senhora e das lágrimas

de muitos fiéis, que assistiram a tal desacato, desceu a Imagem de

Nossa Senhora, transportada por João Degredado, carreiro, e por outro carreiro, Anastácio Passarinho, mal composta, caminhando





124

19

Cf. ibidem.

20

Cf. ibidem.

21 O Sr. Joaquim Pereira fora o anterior presidente de Câmara, que tinha perdido as últimas eleições municipais realizadas a 7 de Dezembro de 1892. Era afecto ao Partido Progressista.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

na frente um sujeito chamado Borracheiro, que levava a coroa da Virgem e precedidos d’uma filarmónica, cuja música era abafada pelas vozes destemperadas dos arruaceiros».

Chegados com a Imagem à vila, o jornalista informava:

«Quase toda esta guerrilhada entrou no templo, cujas

portas tinham sido abertas pelo sacristão da mesma, um sobrinho do pároco, que não apareceu, aparecendo muito embora o sr. Lança22, médico do partido [municipal], animando as hostes,

ameaçando com a bengala um tal Lagarto, e recebendo deste o corretivo. Talvez, por esquecimento, o sr. Lança nem tirou o chapéu, quando entrou na igreja – dizem-nos».

«Todos estes factos públicos e praticados, muito embora

nas trevas da noite, escandalizaram os sentimentos religiosos de ambas as freguesias, e jamais quando todos presenciaram, que,

em seguida, o mesmo grupo de indivíduos andou com a música á frente pelas ruas da vila a fazer manifestação ruidosa desta façanha».

22 O Dr. Jacintho Parreira Lança nasceu na vila de Castro Verde, em 13 de Julho de 1857. No ano de 1885 terminou a sua licenciatura em Medicina. Logo em Outubro de 1885 ocupou o cargo de médico no partido médico municipal em São Tiago do Cacém. Cargo que ocuparia até 1890. Em 1890 vem para Loulé para exercer o cargo de médico no partido municipal. Em 9 de Janeiro de 1893, funda o semanário local O Louletano, órgão oficioso do Partido Progressista, em Loulé. No jornal, além de fundador, seria, igualmente, director político, editor e jornalista. Viria a falecer, em Loulé, no dia 4 de Abril de 1895. Tinha, na altura, 37 anos (cf. O Louletano, de 13 de Abril de 1895, p. 1, e cf., igualmente, MESQUITA, José Carlos Vilhena, op. cit., pp. 71-72).

125

joão Romero Chagas Aleixo

Foto da Imagem e do andor de Nossa Senhora da Piedade, J. Nogueira Foto, Loulé, 1921.

126

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Ao terminar o artigo, o articulista deixava a seguinte

interrogação ao arcebispo-bispo da diocese: «S. Exª. Rev.ma pode informar se a entrada á força num templo dedicado ao culto, a invasão de meia dúzia de avinhados que não duvidaram saltar

para cima do altar, sem respeito pela pedra d’are, andando por cima, e lançar mãos profanas ao nicho envidraçado, arrancando dele a Imagem, atravessa-La nos braços de dois carreiros e faze-La conduzir entre um magote de gente em grandes vozerias, são factos normais, consentidos pela igreja, ou crimes puníveis»

. Estava,

23

desta forma, inaugurada a polémica. Por parte daqueles a quem O

Algarvio viria a epitetar de «energúmenos», «gaiatos engravatados

do Parragil», «reles e indecorosos» e «agaiatados mostrengos»24. A linguagem utilizada era forte. Mas o acto perpetrado não o fora menos.

No mesmo dia, O Louletano, que se apresentava no cabeçalho

como sendo um «Jornal Progressista»25, expunha a sua versão

dos factos. Que, como seria de esperar, era em tudo diferente. Ora, segundo O Louletano, e como de costume, muitos louletanos

deslocaram-se, na tarde do Domingo de Páscoa, à ermida de Nossa Senhora da Piedade, afim de participarem na condução da Imagem para vila. Todavia, aproximava-se a hora em que era costume

realizar-se a procissão, «e nenhuns sinais haviam que denotassem

23



25



Cf. «O Desacato», in O Algarvio, n.º 210, de 9 de Abril de 1893, p. 1.

24

Cf. «Os energúmenos», in O Algarvio, n.º 211, de 16 de Abril de 1893. Cf. José Carlos Vilhena MESQUITA, op. cit., p. 71.

127

joão Romero Chagas Aleixo

estar para breve o princípio da festa». Faltava o padre, os mordomos, e as autoridades municipais. Sendo assim, «toda aquela enorme multidão, movida por um grandioso impulso de brio ofendido e de boa fé ludibriada, resolveu não esperar mais quem com malignos fins não aparecia, e, entregando a imagem a dois homens que de entre

tantos se destacavam pela sua estatura possante, fê-la conduzir nos braços deles para a igreja da paróquia respectiva, acompanhandose da banda de música Artistas de Minerva»26.

Ora, seis dias mais tarde, o executivo camarário, reunido

em sessão ordinária, «resolveu por maioria reprovar este facto irreverente, e bem assim que se desse conhecimento d’elle ao Prelado, pedindo-lhe ao mesmo tempo para ordenar que a Imagem

seja recondusida á sua ermida para depois, no dia em que fôr designado pela Camara, vir processionalmente para a Villa, afim de



128

26

Cf. «Loulé», in O Louletano, n.º 14, de 9 de Abril de 1893, p. 1, colunas 3 e 4.

A Sociedade Filarmónica Artistas de Minerva foi fundada no dia 21 de Maio de 1876. A sua fundação resultou de um processo de dissidência de alguns músicos que, por motivos políticos, resolveram deixar a Sociedade Filarmónica União Marçal Pacheco. A nova filarmónica era afecta, politicamente, ao Partido Progressista, ao contrário da que já existia, que era afecta ao Partido Regenerador. O seu primeiro regente e mestre foi o político e músico António Galvão (5/10/1835-31/04/1904). António Galvão era licenciado em direito e fez toda a sua carreira política como membro do Partido Progressista. À data do seu falecimento ocupava o cargo de administrador do concelho de Loulé (cf. FREITAS, Pedro de, Quadros de Loulé Antigo – A Alma de Loulé em Livro, 2.ª edição corrigida e aumentada, Lisboa, edição da Câmara Municipal de Loulé, 1980 [1964], pp. 99-100, e cf., igualmente, PALMA, Jorge Filipe Maria da, op. cit., p. 153).

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

se lhe fazer a festa»27.

Na semana seguinte, a «folha progressista» local voltava ao

«desacato». A intenção parecia clara: defender os Progressistas

das acusações de que estes estavam a ser alvo por parte dos Regeneradores locais. Nas páginas d’O Louletano era possível ler-se a sua defesa: «Ora se a Senhora este ano não foi acompanhada de confrarias com opas e sacerdote a meio caminho, foi simplesmente

porque o pároco de S. Sebastião não quis satisfazer aos pedidos

reiterados do povo, escusando-se com a falta de ordem, nesse sentido, do seu prelado», para, de seguida, acrescentar: «A maioria da câmara, como temos demonstrado, podia ter evitado o desacato e não o evitou, devendo por isso considerar-se criminosa»28.

As máscaras há muito que tinham caído. Tratava-se de uma

luta político-partidária. E, sendo a Festa da Piedade a maior festa

do concelho, e uma das maiores de toda a província, era normal que alguns partidos políticos a quisessem instrumentalizar, por forma

a recolher dividendos políticos em futuras eleições. Não era caso virgem. Nem haveria de o ser. Nem em Loulé, nem, tampouco, em outras localidades.

Os Progressistas alegavam terem sido os Regeneradores

locais, então à frente da autarquia, a estarem na origem deste

27 Cf. A.M.L., Livro de Actas das Sessões Ordinárias da Câmara Municipal de Loulé, de 11/09/1889 a 12/7/1893, acta de vereação da sessão ordinária da Câmara Municipal de Loulé, do dia 15 de Abril de 1893, fls. 186 – 186 v.º. A.M.L.: PT/AMLLE/AL/CMLLE/ B/A/01/Lv 139.

28 Cf. «A Festa de Nossa Senhora da Piedade», in O Louletano, n.º 15, de 16 de Abril de 1893, p. 2.

129

joão Romero Chagas Aleixo

«desacato». Os Progressistas fundavam a sua acusação no facto de

os Regeneradores terem solicitado ao arcebispo-bispo da diocese o adiamento da Festa sem qualquer motivo aparente. Por outro lado,

os Regeneradores acusavam os Progressistas de terem ido «raptar» a Imagem à sua ermida, e de a terem trazido «descoberta» para a igreja de São Sebastião. As posições encontravam-se extremadas. Os jornais locais eram o palco privilegiado dessa batalha. Mas não

o único. As sessões de vereação também o foram. Como nos provam algumas actas de vereação dessa altura, em que se pode aferir o clima

de confronto latente, que, por vezes, existiu entre alguns membros

da mesma vereação. Chegou-se, mesmo, à ocorrência de agressões

verbais entre colegas de vereação. O caso tinha tanto de grave, como de inédito.

Passada uma semana, O Algarvio dava conta de que o prelado

do Algarve, D. António Mendes Bello (1884-1908), já se encontrava

a par do referido «desacato», dando razão aos Regeneradores, ordenando que a Imagem «fosse conduzida em procissão solene para a sua capela», assim como «ordenou por telegrama que o

pároco de S. Sebastião29 se apresentasse imediatamente perante

sua ex.ª»30. E foi isso que se sucedeu, conforme atesta o ofício,

29 O padre de São Sebastião era o padre Alexandre João do Nascimento. Natural de Loulé, exerceu os seguintes cargos sacerdotais: padre encomendado de São Clemente, em Loulé, em 1890 e 1891; padre encomendado de São Sebastião, em Loulé, em 1892 e 1893; padre encomendado de Almancil, em 1894; padre de Albufeira, entre 1895 e 9 de Junho de 1896. Renunciou em 9 de Maio de 1905, in A.H.D.A., Chancelaria, Clero, Livro 356, fl. 44.

130



30

Cf. «Nossa Senhora da Piedade», in O Algarvio, n.º 212, de 23 de Abril de 1893, p. 1.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

com a data de 17 de Abril, que o «padre encomendado de S.

Sebastião - Alexandre João do Nascimento», acabara de enviar

para o presidente da Câmara. Nesse ofício, o pároco Nascimento informava o presidente da Câmara que «Foi reconduzida a Imagem para a sua capela hoje às 5 horas e meia da manhã, não com a

solenidade que V. Ex.ª desejava […]»31. A mesma edição d’O Algarvio

informava, ainda, que: «Na segunda-feira de manhã um pastor veio

participar a esta vila que pelas quatro horas desse dia vira de longe um indivíduo vestido de padre e mais quatro indivíduos com um

andor às costas caminhar pela estrada da capela da Senhora da

Piedade. Nada de músicas, tudo tristezas. Fora o sacristão, cinco ou seis pessoas!...»32. Desse acontecimento dava também conta O

Louletano: «Está desagravada a Virgem da Piedade! Na madrugada de segunda-feira passada, 4 para as 5 horas, o rev. prior da freguesia

de S. Sebastião, com alguns dos seus paroquianos, reconduziram a imagem da Senhora da Piedade à sua ermida»33, para, de seguida,

sentenciar: «terminou um incidente que havia tomado proporções extraordinárias, devido, sem dúvida, principalmente à ignorância ou má fé do sr. vice-presidente da câmara e maioria desta e às delongas do sr. arcebispo-bispo»34.



31 32

Cf. ibidem.

Cf. ibidem.

33 Cf. «A Festa de Nossa Senhora da Piedade», in O Louletano, n.º 16, de 23 de Abril de 1893, p. 2.

34

Cf. ibidem.

131

joão Romero Chagas Aleixo

Porém, parece que os Progressistas não ficaram satisfeitos

pela forma como o caso fora resolvido. Recaindo as culpas para o pároco de S. Sebastião e não para o executivo municipal, como era sua intenção. Sendo assim, resolveram, de novo, voltar à acção. Era

disso mesmo que dava conta a edição de 21 de Maio d’O Algarvio, em que, uma vez mais, os seus propósitos eram publicamente denunciados. Dizia assim:

«Animados pela impunidade em que ainda se conserva

a sua primeira façanha e, talvez, pela extrema e imerecida

benevolência com que o sr. Arcebispo bispo os tem ouvido, os

valentes e aguerridos soldados do respeitável Parragil, sob

o prudente e ordeiro comando do simpático médico Lança,

estavam convenientemente preparados para, com o apoio do seu ingénuo pároco, irem no domingo último invadir novamente a

capela de Nossa Senhora da Piedade, quebrar caixilhos e vidros, saltar altares, arrombar portas e trazer de lá, descomposta e

irreverentemente, a venerada imagem». Para, mais à frente, acrescentar: «E foi precisamente para evitar um e outras que a

autoridade administrativa, no fiel cumprimento do seu dever, requisitou a presença de força militar». O jornalista terminava,

de forma eloquente, o seu artigo: «Não pode, nem deve consentirse que a ordem de uma povoação importante e laboriosa, esteja constantemente a ser perturbada por umas dezenas de

confessos arruaceiros, prontos sempre a executar os atrevidos 132

e inconvenientes planos do seu digno comandante – um baixo

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

díscolo, um vivo elemento da discórdia»35.

O executivo reunido, em sessão ordinária, no dia 28 de Junho

de 1893, emitia um parecer em que se oficiasse o prelado da diocese de que «se fixou o dia 3 de setembro proximo para a conducção da Imagem da Sua Capella para a igreja parochial de S. Sebastião,

onde deverão fazer-se as novenas nos dias 3 a 11, a festa pequena n’este ultimo dia e a grande no dia 17 do referido mez, segundo o

costume dos mais anos»36. E desse facto dava notícia a edição de

27 de Agosto d’O Algarvio, que anunciava o seguinte: «É no dia 17 do próximo mês de setembro que se realizará, nesta vila, a festa de Nossa Senhora da Piedade».

«As solenidades religiosas terão lugar na igreja de S.

Francisco, para onde a imagem da Senhora será conduzida no dia 3, á tarde, e o arraial será na Praça, que é a rua que mais se presta para tais divertimentos»37.

Ora, parece que esta caricata situação não era, à época, tão

incomum quanto isso. Pierre Sanchis, na sua obra Arraial: Festa

de um Povo. As romarias portuguesas (1.ª edição de 1983), dá-nos 35 Cf. «Os Arruaceiros. Novo Desacato Projectado», in O Algarvio, n.º 216, de 21 de Maio de 1893, p. 1 .

36 Cf. A.M.L., Livro de Actas das Sessões Ordinárias da Câmara Municipal de Loulé, de 11/09/1889 a 12/7/1893, acta de vereação da sessão ordinária da Câmara Municipal de Loulé, do dia 28 de Junho de 1893, fls. 196 v.º - 197. 37 Cf. «A Festa de Nossa Senhora da Piedade», in O Algarvio, n.º 230, de 27 Agosto de 1893, p. 1.

133

joão Romero Chagas Aleixo

conta que «a partir da criação das juntas de paróquias, em 1830,

os padres tornaram-se de facto simples ‘guardas’ dos edifícios sagrados». Justificando, de seguida: «São as juntas que controlam o culto, a utilização da igreja e dos paramentos, o destino das ofertas dos fiéis». Razão, pela qual, «os políticos locais vão tentar conquistar

estas juntas». Sanchis, especifica: «Finalmente, os santuários de romaria e as festas que neles se organizam serão ocasião de lutas

políticas, querelas em torno das chaves, do programa, do cofre das

oferendas, dos interesses financeiros ou do prestígio». Para, de

seguida, concluir: «Pressionado por facções partidárias e famílias rivais ou mesmo parte integrante destes conflitos, o pároco terá

frequentemente – e por vezes em vão – de recorrer a uma jurisdição civil superior para que lhe seja reconhecido o direito efectivo de decisão em matéria de festas e de romarias»38.

134

38 Cf. Pierre SANCHIS, Arraial: Festa de um Povo. As romarias portuguesas, 2.ª edição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1992 [1983], p. 188

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

135

joão Romero Chagas Aleixo

136

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

6 O Culto durante a Primeira República (1910-1926) 1. A Lei de Separação do Estado das Igrejas A Lei de Separação do Estado das Igrejas, promulgada pelo ministro

da Justiça e dos Cultos, Dr. Afonso Costa, em 20 de Abril de 1911, constituiu, efectivamente, uma das pedras angulares do novo

regime republicano. Tratava-se de uma das leis fundamentais do novo regime. Talvez, mesmo, a mais importante. Decerto a mais simbólica e a que provocou maior contestação no seio da sociedade.

Rapidamente ficou conhecida como «A Intangível»1. O jornalista

republicano António França Borges, à altura director do periódico O Mundo 2, escreveu mesmo, num editorial, que tratava-se da Lei

fundamental do novo regime, uma vez que a sua modificação era impossível de ser realizada sem traição à República, à democracia

1 Cf. Vasco Pulido VALENTE, O Poder e o Povo, 6.ª edição, Lisboa, Alêtheia Editores, 2010, p. 241.

2 O periódico O Mundo era um jornal diário, fundado em 1900, com sede em Lisboa. À data da implantação da República tinha já alcançado o título do mais importante órgão da imprensa republicana. O seu director era o jornalista António França Borges. França Borges que, desde muito cedo, se destacara pela combatividade da sua pena, vai imprimir uma linha editorial marcadamente republicana e ferozmente anticlerical, muito por força da sua combatividade ao regime monárquico na primeira década do século XX.

137

joão Romero Chagas Aleixo

e ao povo3. Constituiu um dos maiores focos de conflito do novo regime político com a Igreja Católica. E, constituiria, como mais tarde se comprovaria, um conflito de difícil digestão. Seria, também, o radicalismo dessa Lei de Separação do Estado das Igrejas que viria a precipitar o fim da Primeira República.

«A Intangível» nunca foi consensual. Mesmo entre os

republicanos4. Alguns pensavam que a Lei de Separação era muito

radical e controversa. Outros, porém, defendiam-na com todas as

suas forças. Com o todo poderoso ministro da Justiça e dos Cultos à cabeça.

Qual era o retrato sociológico da maior parte da população

portuguesa quando «A Intangível» entrou em vigor? Em Abril de 1911, a população nacional era, maioritariamente, rural, analfabeta,

católica, monárquica, atávica, avessa à mudança, conservadora,

desconfiada, etc… Portugal era um país maioritariamente rural. O

clero era, ainda, olhado na maior parte das vezes como uma espécie de entidade superior. De acordo com o Censo de 1900, 99,8% da

3 Cf. «Editorial», in O Mundo, de 29 de Abril de 1911, p. 1. Ver, igualmente, O Mundo, edição de 23 de Abril de 1911.

138

4 O insuspeito Guerra Junqueiro, em Julho de 1911, logo depois da entrada em vigor da Lei de Separação do Estado das Igrejas, escreveu o seguinte: «Ora a lei é estúpida, dignifica o padre, e vai ferir o sentimento religioso do povo português. Resultado: a guerra civil. Se a não modificarem, temo-la dentro de pouco tempo. O povo odiava o jesuíta, o povo não se importava com o padre. Era cortar em carne morta. Mas, com esta lei, o caso muda de figura, e só o mau padre, só o bandalho a pode aceitar» in Raul BRANDÃO, Memórias, volume II, Lisboa, Perspectivas e Realidades, s/d., p. 98.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

população do país declarara ser católica5.

A Lei de Separação portuguesa foi redigida tendo por base

a Lei da Separação do Estado das Igrejas promulgada em França,

que tinha entrado em vigor a 9 de Dezembro de 19056. Nessa Lei encontravam-se consagradas, entre outras medidas, a proibição

do ensino do cristianismo nas escolas, a nacionalização da propriedade dos bens da Igreja e a introdução de uma apertada

fiscalização às manifestações religiosas, fossem elas missas, festas ou procissões, entre outras disposições legais. Tratava-se de uma Lei extensa – composta por cento e noventa e seis artigos –, uma vez que regulamentava praticamente sobre todos os aspectos da

vida religiosa, desde a proibição do toque dos sinos até à proibição do uso de vestes talares na praça pública.

Porém, a Lei tinha contra si diversos argumentos; sendo,

o primeiro, o facto do diploma ter sido composto, e promulgado, por um governo provisório, isto é, sem a legitimidade democrática

decorrente de uma ida às urnas. Facto que só aconteceria a 1 de

Novembro de 1914, depois de se realizar um recenseamento eleitoral7. Já antes houvera uma eleição, a 28 de Maio de 1911, para

a escolha de uma Assembleia Nacional Constituinte, que, como a

5 Cf. NETO, Vítor, «A questão religiosa: Estado, Igreja e conflitualidade sócio-religiosa» in História da Primeira República Portuguesa, coordenação de Fernando Rosas e de Maria Fernanda Rollo, Lisboa, Tinta da China, 2009, p. 130.

6

Cf. ibidem, p. 134.

7 Cf. SERRA, João B., «A evolução política (1910-1917)» in História da Primeira República Portuguesa, coordenação de Fernando Rosas e de Maria Fernanda Rollo, Lisboa, Tinta da China, 2009, pp. 111-113.

139

joão Romero Chagas Aleixo

própria designação indica, teria como finalidade a composição do futuro texto constitucional8. Por outro lado, o artigo 195.º da Lei de Separação estipulava que: «Este decreto será sujeito à

apreciação da próxima Assembleia Nacional Constituinte»9. Ora, a

Assembleia Nacional Constituinte posterior à entrada em vigor da

Lei de Separação seria a decorrente das eleições de 28 de Maio de 1911, que não teve a oportunidade de cumprir com o estipulado

no citado artigo. Assim sendo, só a 10 de Março de 1914 é que principiaria a discussão da Lei na generalidade, concluída a 29 de Junho10. Todavia, a discussão na especialidade, única forma legal

que possibilitaria a introdução de reajustamentos na dita Lei, viria

a ser adiada, convenientemente, «por falta de tempo»11, leia-se, por falta de vontade política.

2. A nacionalização dos bens da Igreja Uma das medidas mais contestadas da Lei de Separação foi o arrolamento dos bens da Igreja. O art. 62.º da Lei dispunha o

seguinte: «Todas as catedrais, igrejas e capelas, bens imobiliários e mobiliários que tem sido ou se destinavam a ser aplicados ao

culto público da religião católica e à sustentação dos ministros dessa religião […], são declarados, salvo o caso de propriedade

8



10



140



Cf. ibidem, pp. 99-101.

9

Cf. João B. SERRA, art.. cit., p. 112.

Cf. SERRA, João B, art.. cit., pp. 112-113.

11

Cf. João B. SERRA, art. cit., p. 113.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

bem determinada de uma pessoa particular ou de uma corporação

com individualidade jurídica, pertença e propriedade do Estado e dos corpos administrativos, e devem ser, como tais, arrolados e inventariados […]». Em complemento ao artigo anterior, o art.

63.º informava que: «o arrolamento e inventário a que se refere o artigo anterior serão feitos administrativamente, de paróquia em

paróquia, por uma comissão concelhia de inventário, composta do administrador do concelho ou do bairro e do escrivão da fazenda, que poderão fazer-se representar por empregados seus, sob sua

responsabilidade, servindo o primeiro de presidente e o segundo de secretário, e por um homem bom de cada paróquia, membro da respectiva junta, e indicado pela câmara municipal para o serviço dessa paróquia».

2.1. Os bens da Mordomia de Nossa Senhora da Piedade Com a entrada em vigor da Lei de Separação, em Abril de 1911, a

Mordomia de Nossa Senhora da Piedade viu os seus bens serem arrolados e nacionalizados. Mas não seria a única. Todas as

outras mordomias louletanas viram, igualmente, os seus bens nacionalizados. Porém, em 1920, a Nossa Senhora da Piedade, era

já, desde há muito, o maior culto religioso celebrado em Loulé.

Nesse sentido, e após ter recebido inúmeras cartas enviadas pelos

seus munícipes, o presidente da Câmara Municipal de Loulé, Dr. 141

joão Romero Chagas Aleixo

Francisco Xavier Cândido Guerreiro12, vê-se obrigado a oficiar, em

1920, o administrador do concelho, pedindo-lhe que: «proceda a um inquérito administrativo a fim de se provar que a Ermida da

Nossa Senhora da Piedade e anexos foram sempre propriedade da Câmara»13. Porque, se tal facto conseguisse ser provado a ermida

de Nossa Senhora da Piedade deixaria de estar nacionalizada, por

se provar ser já um bem público. Curioso notar que o presidente

da Câmara só envidou os seus esforços por causa dos bens desta mordomia. Sinal da importância que este culto representava para a vila e para os seus munícipes.

Porém, a 28 de Maio de 1926, deflagrou um golpe militar. Com

sucesso imediato. Esse golpe originou a mudança dos principais protagonistas políticos dessa altura. E, provocou, igualmente, um maior desanuviamento das relações entre o Estado e a Igreja. Prova

desse facto é o decreto-lei n.º 11.887, de 6 de Julho de 1926, que legisla a devolução às paroquias dos bens religiosos anteriormente

nacionalizados, situação prevista e regulamentada nos artigos 10.º e 11.º dessa lei.

Todavia, a situação arrastar-se-ia por mais quatro anos.

Uma vez que só a 6 de Dezembro de 1930 e respeitando a anterior

12 O Dr. Francisco Xavier Cândido Guerreiro ocupou o cargo de presidente da Câmara Municipal de Loulé entre 25/07/1919 e 31/12/1922. Anteriormente, tinha sido presidente de duas comissões administrativas da Câmara Municipal de Loulé: a primeira entre 12/02/1912 e 31/12/1913; e a segunda entre 18/01/1918 e 26/03/1918 in MARTINS, Isilda Maria Renda, Loulé no século XX, 2.º volume, A Primeira República, 19101926, Lisboa, edição da Câmara Municipal de Loulé, 2004, p. 260.

142

13 Cf. A.M.L., Acta da Sessão ordinária da Câmara Municipal de Loulé, de 15 de Dezembro de 1920. A.M.L.: PT/AMLLE/AL/CMLLE/B/A/01/Lv 144.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Comissão Organizadora das Festas da Piedade de 1926 Dr. José Joaquim Soares; José Gonçalves Rocheta; Joaquim de Brito da Mana; António de Brito da Mana Júnior; José de Sousa Oliveira Júnior; José de Brito da Mana; José Coelho; Joaquim Lourenço Laginha; José de Brito da Mana Marum; Manuel Guerreiro Mealha; José Joaquim Laginha; Francisco de Sousa Pencarinha; Francisco Viegas Correia.

143

joão Romero Chagas Aleixo

portaria do ministro da Justiça e dos Cultos, é que é publicada,

em Diário da República, a declaração a proclamar a devolução dos bens pertencentes a Nossa Senhora da Piedade à «Corporação Fabriqueira Paroquial de São Sebastião de Loulé»14.

A escritura pública do auto da entrega dos bens, anteriormente

pertencentes à Mordomia de Nossa Senhora da Piedade, assim como dos restantes bens religiosos paroquiais, geridos pela «Corporação

Fabriqueira Paroquial de São Sebastião de Loulé», teve lugar no dia 7 de Janeiro de 193115. Nessa mesma escritura pública foram

entregues à mesma «Corporação Fabriqueira» os bens referentes

às confrarias de Nossa Senhora da Conceição, de Quarteira, e de Nossa Senhora do Bom Sucesso, de Vale Judeu16.

Deste modo, além da Imagem, da ermida, da casa da ermitoa,

bem como das casas que serviam para a arrecadação do andor e do esquife, foram entregues, à «Corporação Fabriqueira Paroquial

14 Ver a escritura do Auto de Entrega dos bens afectos à paróquia de São Sebastião à Corporação Fabriqueira Paroquial de São Sebastião de Loulé. A.M.L.: PT/AMLLE/AL/ ACLLE/C/G/001/cd 004 (1910).

15 Assistiram ao referido auto da entrega as seguintes personalidades, assinando posteriormente a citada escritura: capitão José da Encarnação Alves de Sousa, administrador do concelho; Santiago Formosinho Romero, chefe da secção administrativa do administrador do concelho; João de Valadares de Aragão e Moura, presidente da comissão administrativa dos bens cultuais do concelho de Loulé; Manoel de Sousa Martins, continuo da Câmara Municipal de Loulé, que desempenhou o papel de oficial de diligências ad-hoc; e, finalmente, os seguintes membros pertencentes à Corporação Fabriqueira Paroquial de São Sebastião de Loulé: padre Joaquim da Palma Viegas, José Joaquim Laginha, Honorato de Sousa Leal, António do Brito da Mana Junior, José Lourenço da Piedade, José Gonçalves Rocheta Junior e José Gonçalves Centeio Rocheta (cf. ibidem).

144



16

Cf. ibidem.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

de São Sebastião de Loulé», um sem número de alfaias religiosas pertencentes a Nossa Senhora da Piedade. De entre elas, destaque-

se as seguintes: «dois serafins, dois colares de ouro, um cordão de ouro, duas coroas de prata, dois cálices patenas e colheres pequenas,

também de prata», «seis castiçais de estanho com crucifixo que servem para a banqueta», «um caixão de madeira para as esmolas

a trigo», «quatro caixões de madeira para guardar flores», «duas casulas de damasco branco com seus pertences», «uma casula

de damasco roxa com seus pertences», «uma casula de damasco

encarnado com seus pertences», «quinze mantos de seda de Nossa Senhora da Piedade», «um frontal de damasco», «quinze quadros diversos» (provavelmente ex-votos), entre outros bens17.

3. As restrições às procissões e às manifestações religiosas ao ar livre A Lei de Separação, através dos seus artigos 4.º, 43.º e 55.º, proibia as manifestações religiosas que se realizassem fora das igrejas,

geralmente procissões, salvo, como previsto no art. 57.º, quando

«constituírem um costume inveterado da generalidade dos cidadãos

da respectiva circunscrição, e deverão ser imediata e definitivamente proibidas nas localidades onde os fiéis, ou outros indivíduos sem

seu protesto, provocarem, por ocasião delas, tumultos ou alteração



17

Cf. ibidem.

145

joão Romero Chagas Aleixo

da ordem pública»18. Estava, desta forma, dado o mote. Assim sendo, competia às autoridades locais provar, perante o administrador do concelho de jurisdição dessa localidade, que:

«1.º) O culto da Senhora da Piedade e a procissão constituem

costume inveterado da maior parte ou quase generalidade dos povos deste concelho»;

«2.º) Se o exercício do culto e manifestações a ele relativas,

fora das horas que expressamente determina o artigo 43.º – entre o nascer e o pôr-do-sol – pode acarretar ou favorecer grave alteração da ordem; e ainda»

«3.º) Se da sua proibição podem resultar prejuízos ao

comércio local»19.

As procissões representavam a expressão da religiosidade

popular por excelência. Contudo, muitas procissões, desde há muito fortemente enraizadas na cultura e na crendice popular, foram alvo

de proibição. Proibição, essa, que constituía uma grave afronta contra as populações. A maioria delas realizavam-se, como ainda hoje se realizam, no meio rural, precisamente onde as populações

são mais católicas. Essas manifestações religiosas, na maior parte das vezes, celebravam o Santo patrono e protector da localidade.

Por outro lado, muitas delas encontravam-se associadas aos vários

18 Cf. Maria Lúcia de Brito MOURA, A «Guerra Religiosa» na Primeira República, 2.ª edição, Lisboa, Centro de Estudos de História Religiosa, Universidade Católica Portuguesa, 2010, p. 370.

146

19 Cf. A.M.L., Correspondência Recebida na Câmara Municipal de Loulé, ofício enviado pelo administrador do concelho com a data de 6 de Março de 1913. A.M.L.: PT/AMLLE/ AL/CMLLE/C/A/03/Mç 092.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

ciclos agrícolas; desde o semeio e cultivo das terras até à apanha

das culturas. Era um ciclo de vida que se celebrava. Ciclo de vida

agrícola, mas, também, ciclo de vida profissional. E as procissões serviam, muitas vezes, para agradecer o bom tempo concedido, que teria possibilitado as boas colheitas. Por outro lado, muitas

dessas festas e romarias constituíam um factor de forte atracção de

forasteiros, que, através da sua presença, ajudavam a animar a vida económica dessas localidades.

Porém, os legisladores republicanos não tiveram isso em

conta. Para eles as procissões não passavam de um importante instrumento de propaganda ao serviço do clero. Denunciavam, eles, que o clero aproveitava-as, muitas vezes, para fazer a apologia

dos ideais monárquicos e para rebater e combater os ideais republicanos. E não estavam enganados.

Essa proibição resultou em vários tumultos por parte das

populações locais, maioritariamente católicas e analfabetas. Neste

particular, as regiões do Centro e do Norte do país foram aquelas

em que se registaram os mais graves confrontos20, precisamente por nessas regiões o catolicismo se encontrar mais arreigado.

Todavia, para a época, tais desacatos eram, mais ou menos,

20 Em Condeixa, antes da procissão dos Passos, em Abril de 1911, alguns fiéis atiraram um homem ao rio, porque entenderam que o dito homem se encontrava a «parodiar» à passagem da procissão (cf. MOURA, Maria Lúcia de Brito, op. cit., p. 374).

Em Coimbra, no Domingo de Páscoa de 1914, aquando da saída da procissão da igreja de Santa Justa alguém fez rebentar uma bomba perto de uma das portas do templo, com o intuito de dissuadir os fiéis a incorporarem-se na procissão. O alvoroço foi grande. Mas a procissão realizou-se na mesma (cf. MOURA, Maria Lúcia de Brito, op. cit., p. 386).

147

joão Romero Chagas Aleixo

frequentes. Ocorriam de Norte a Sul do país. As provocações eram

generalizadas e provenientes de ambas as partes. Havia quase como que uma espécie de manual de instruções. As grandes massas que ocorriam às festividades religiosas eram na sua esmagadora

maioria pessoas oriundas do meio rural, logo, maioritariamente católicas e monárquicas. Desconfiadas, analfabetas e ainda não

republicanizadas, algumas olhavam para o novo regime com enorme desconfiança. Outras, porém, eram frontalmente contra por força da

forte ofensiva que este protagonizava contra o clero secular e regular. Vasco Pulido Valente explica-nos o método utilizado para provocar os fiéis que assistiam às procissões: «De acordo com a mise-en-scène

mais comum, grupos de carbonários seguiam-nas [as procissões], de chapéu conspicuamente enterrado na cabeça, aos ‘vivas’ à República, ao ‘livre-pensamento’ e a Afonso Costa e aos ‘morras’ ao

Papa, à Igreja e aos jesuítas. A cristã paciência dos fiéis era posta à

prova até que um deles interpelasse os militantes ou, de preferência, recorresse a métodos mais eloquentes de protesto. Começava então

uma batalha campal e, depois de conscienciosamente sovadas, as

ovelhas do Senhor dispersavam a caminho do redil ou eram presas porque, evidentemente, provocavam ‘desordens na via pública’»21.

A comprovar o relato de Pulido Valente, vejamos o que escreveu Maria Lúcia de Brito Moura: «Como as procissões eram autorizadas desde que não houvesse conflitos, os radicais procuravam

desencadeá-los. Não raras vezes estranhos à comunidade, cujos 148



21

Cf. Vasco Pulido VALENTE, op. cit., pp. 230-231.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

costumes se propunham transformar, tentavam deliberadamente perturbar os actos religiosos, na esperança de que, com base nisso,

as autoridades, no futuro, não autorizassem a sua realização»22. Mais à frente, a historiadora acrescenta: «Assistir à passagem de

uma procissão com o chapéu na cabeça foi o meio mais vulgarmente

utilizado para introduzir uma nota discordante. Os fiéis sentiam-se provocados e ripostavam»23. E foi graças a este novo modus operandi

que várias procissões seriam proibidas um pouco por todo o país. Vejamos, então, o que aconteceu na Festa da Piedade.

3.1. A Festa Grande da Piedade de 191224

Em 1912, uma semana antes das Festas, que, nesse ano, se

realizaram de 27 a 29 de Abril, O Sul25, «Semanário Republicano –



22

Cf. Maria Lúcia de Brito MOURA, op. cit., p. 375.

23

Cf. ibidem.

24 Sobre este assunto ver: ALEIXO, João Romero Chagas, «As Festas da Piedade de 1912: Programa, Relatos e Desacatos (1.ª parte)», in A Voz de Loulé, n.º 1701, de 1 de Novembro de 2010, p. 15 e, igualmente, ALEIXO, João Romero Chagas, «As Festas da Piedade de 1912: Programa, Relatos e Desacatos (2.ª parte)», in A Voz de Loulé, n.º 1702, de 15 de Novembro de 2010, p. 15. 25 O periódico O Sul foi fundado a 24 de Março de 1912. No seu cabeçalho apresentava a inscrição «Semanário Republicano – Defensor dos Interesses da Região», para, a partir de 2 de Junho de 1912, passar a designar-se por «Semanário Republicano Evolucionista – Defensor dos Interesses do Algarve». «Foi, no seu tempo, um dos jornais mais bem colaborados da imprensa algarvia. Era intrinsecamente um periódico republicano, que, pouco depois da sua fundação, abraçaria a política do Partido Evolucionista, contrabalançando com ‘O Heraldo’, afecto ao Partido Democrático de Afonso Costa, de quem era directo adversário. Na verdade, ‘O Sul’ foi um dos mais polémicos e controversos semanários farenses dos princípios do novo regime republicano» in José Carlos Vilhena MESQUITA, História da Imprensa do Algarve, volume I., op. cit., pp. 487-489.

149

joão Romero Chagas Aleixo

Defensor dos Interesses da Região», lamentava: «Diziam-nos que

em qualquer, dos três dias de festa haveria um bodo aos pobres, e a nossa alma radiosa de intenso júbilo por tão louvável iniciativa; todavia, o programa não faz menção de tal, o que nos leva a crer

que a comissão atendeu mais a missas e matinas, para regabofe do clero, que a matar a fome aos desprotegidos da sorte; a mais santa e a mais pura das religiões!»26.

Após as Festas O Sul dedicava uma larga reportagem às

mesmas. Começava por dizer: «Concorrida por muitas mil almas a

procissão de domingo [28 de Abril], reduzido, porém, à expressão mais simples o elemento oficial e de preponderância da vila,

que brilhou pela ausência»27. O regime político tinha mudado. A Monarquia tinha dado lugar à República. E, agora, não era comum

ver políticos locais republicanos incorporarem a solene procissão. A Lei de Separação tinha trazido a laicidade à administração pública

local. Religião e política andavam, agora, separadas. E não raras vezes de costas voltadas.

Mais à frente, o colaborador d’O Sul reportava o sermão

efectuado no adro da ermida, à chegada da procissão, da seguinte

forma: «Entusiástica, como nos anos anteriores, a condução da imagem para a ermida, em cujo adro o padre Luiz Manuel Vieira

(pároco de São Clemente, em Loulé) pregou, não perdendo, a ocasião profícua de alfinetar a liberdade e o regime, embora velando

150



26

Cf. «Senhora da Piedade», in O Sul, n.º5, ano 1, de 21 de Abril de 1912, p. 2.

27

Cf. «Senhora da Piedade», in O Sul, n.º7, ano 1, de 5 de Maio de 1912, p. 2.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

a frase, por temor de graves consequências»28. Mas nem tudo tinha

decorrido de forma tão tranquila. O mesmo jornal denunciava dois

episódios ocorridos no decorrer da Festa. O primeiro: «a agressão feita ao digno Delegado do Procurador da República, Sr. Dr. Joaquim Crisóstomo da Silveira Júnior, e ao Sr. Dr. João de Brito Farrajota,

quando, na tarde de domingo, à hora do sermão, passeavam tranquilamente, de chapéu na cabeça a muitos metros de distância da multidão que cercava o púlpito, e quase fora do Largo da

Liberdade, onde muita outra gente se encontrava igualmente de chapéu na cabeça, o que tudo demonstra à evidencia o propósito de vexar aqueles cavalheiros, espíritos liberais profundamente odiados pelos ultramontanos»29. O segundo: «a falta de respeito ao

hino nacional e o selvático assalto feito à filarmónica União Marçal

Pacheco, que o executava, quando, na noite de domingo, ao terminar o arraial, se dispunha a recolher à casa do ensaio»30.

Por sua vez, O Heraldo31 dava, também ele, conta de alguns



28



30



Cf. ibidem.

29

Cf. ibidem.

Cf. ibidem, pp. 2-3.

31 O Heraldo apresentava-se, no cabeçalho, como sendo um «Bissemanário Republicano Democrático». Fundado a 10 de Abril de 1912, publicava-se às quartas e aos sábados. Tinha uma conotação noticiosa e regionalista e, politicamente, era afecto ao Partido Democrático do Dr. Afonso Costa. Foram seus proprietários Carlos Augusto Lyster Franco e João Pedro de Sousa; ocupando o primeiro, igualmente, as funções de director e de editor do periódico. Publicaram-se, ao todo, 396 números, tendo a última edição sido publicada a 26 de Agosto de 1917 (cf. MESQUITA, José Carlos Vilhena, História da Imprensa do Algarve, volume I, op. cit., pp. 311-322).

151

joão Romero Chagas Aleixo

incidentes acorridos na Festa Grande. Segundo o correspondente

do periódico em Loulé, a Festa Grande desse ano tinha servido «de pretexto para a política talássica dar mais uma vez uma triste

nota dos seus mesquinhos processos». E continuava: «Para que se

veja quanto é grande o desejo de afrontar os velhos republicanos desta vila, basta dizer que nas ornamentações da referida festa

predominaram as cores azul e branca […]». Denunciado, de seguida, que se não tivesse sido a «enérgica intervenção do nosso prezado amigo e correligionário sr. Manuel Contreiras Júnior, a bandeira nacional teria sido propositadamente içada ao contrário, para

servir de escárnio e irrisão aos inimigos da República». De seguida,

relatava o incidente protagonizado por um popular, que O Heraldo apelidava de «fanático», que tirou «violentamente o chapéu» da

cabeça do sr. procurador geral da República que assistia, «coberto», ao sermão no largo da Liberdade. Mais à frente, o articulista d’O

Heraldo interrogava-se duplamente: «Que diz a isto o sr. ministro da Justiça?»; «Não seria bom acabar de uma vez para sempre com

estas manifestações de culto externo, tão férteis em provocar desordens?»32.

Ora, como seria de esperar, a agressão perpetrada contra o

Delegado do Procurador da República, Dr. Joaquim Crisóstomo da Silveira Júnior, desencadeou uma onda de artigos publicados em

quase todos os jornais da região. As opiniões dividiam-se. Se uns reprovavam a agressão; outros defendiam-na. Tudo dependia da 152



32

Cf. «Loulé», in O Heraldo, ano 1, n.º 10, de 11 de Maio de 1912, p. 3.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

linha editorial do periódico. No Ecos do Sul33 escrevia-se: «Em Loulé, até o próprio delegado do Procurador da República, foi violentado a tirar o seu chapéu, na ocasião em que passava em sua frente a Sr.ª da

Piedade… É duro violentar-se um cidadão a cumprimentar alguém

que não conhece… e o gesto selvagem das catolicíssimas bestas,

está a pedir a justíssima sentença de trabalhos forçados, puxando

perpetuamente aos varais de uma carroça…»34. Na Alma Algarvia35

podia-se ler: «- Procissão pela rua, sermões ao ar livre, e como o delegado do Procurador da República não quis tirar o chapéu, foi insultado e desrespeitado».

«- Mas como é que um ministro democrático, depois do caso

da Chamusca36, ainda consente procissões pela rua?!»

33 O periódico Ecos do Sul apresentava-se ao seus leitores como sendo um «Semanário Democrata Independente». Foi fundado a 6 de Janeiro de 1912 e tinha a sua sede em São Brás de Alportel. Tratava-se de um semanário «republicano democrático, que se dizia independente, dedicado à propaganda e valorização das potencialidades da região» in José Carlos Vilhena MESQUITA, História da Imprensa do Algarve, volume II, op. cit., pp. 348-351.

34

Cf. «Intolerância religiosa», in Ecos do Sul, n.º 18, de 4 de Maio de 1912, p. 1.

35 A Alma Algarvia foi um «Semanário Republicano» fundado a 12 de Março de 1911. Sedeado em Silves, mas com forte implantação regional, apresentava uma conotação fortemente noticiosa, regionalista e de marcada inspiração republicana. Mais tarde aderiria mesmo ao Partido Republicano Democrático (cf. MESQUITA, José Carlos Vilhena, História da Imprensa do Algarve, volume II, op. cit., pp. 365-368). 36 O chamado «caso da Chamusca» foi o nome pelo qual ficaram conhecidos os graves confrontos que decorreram na tradicional procissão dos Fogaréus, realizada na quinta-feira santa, dia 4 de Abril de 1912, nessa vila ribatejana. Os confrontos opuseram republicanos a católicos e saldaram-se num morto e em vários feridos que participavam na procissão (cf. MOURA, Maria Lúcia de Brito, op. cit., pp. 380-381).

153

joão Romero Chagas Aleixo

«Vergonhoso, tudo isto»37.

Por outro lado, O Algarvio38 contrapunha: «Aqueles senhores

cidadãos, o primeiro ultra-católico, antes do 5 de outubro, como em

tempo se mostrará, e o segundo republicano, por despeito, de 1907 a esta parte, por consequência um petiz histórico, um bebé de 6

anos de calção e peúgas, e encarregado de desmamar o primeiro que apesar de já ter dezoito meses, ainda… mama nos já flácidos peitos da República, entenderam que podiam afrontar impunemente

sentimento religiosos desta vila tão extraordinariamente atestado

no louco entusiasmo com que celebra a festa e na devoção que conserva à sua Mãe Soberana»39. Para, mais à frente, concluir: «E foi

o caso que tendo os referidos e antipáticos cidadãos os chapéus na cabeça! com o ostensivo desrespeito pelas crenças de milhares de pessoas que assistiam ao referido acto religioso, o rapazio os correu e alguém obrigou o delegado a descobrir-se em nome do bom

senso que ele e o seu companheiro não conhecem»40. A agressão

37



39

Cf. «Uma vergonha», in Alma Algarvia, n.º 61, de 5 de Maio de 1912, p. 2.

38 O Algarvio foi um «Semanário Democrático Católico» de curta duração. Fundado no dia 17 de Março de 1912 apenas se publicaram dezoito números, tendo o periódico sido extinto após a publicação da sua edição de 28 de Julho de 1912. Foi sempre um semanário «democrático e católico» com forte influência monárquica e conservadora. Encontravase sedeado na vila de São Brás de Alportel. E saía aos Domingos. Ao longo da sua curta existência teve sempre como principal inimigo o também semanário são-brasense Ecos do Sul, este último confessadamente republicano (cf. MESQUITA, José Carlos Vilhena, História da Imprensa do Algarve, volume II, Faro, Comissão de Coordenação da Região do Algarve, 1988, pp. 341-343).

154



Cf. «Por Loulé», in O Algarvio, n.º 9, de 19 de Maio de 1912, p. 3.

40

Cf. ibidem.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

tinha acontecido. Porém, cada periódico relatava-a e descrevia-a de

acordo com a sua linha editorial. A imprensa servia, também ela,

de palco privilegiado para a troca de argumentos e, por vezes, de insultos, entre Republicanos e Monárquicos.

3.2. A Festa Pequena da Piedade de 1913 A Festa Pequena de 1913 realizou-se no dia 23 de Março. E, mais uma

vez, com incidentes à mistura. Desta vez os confrontos chegaram até ao tribunal. E o processo, aberto logo no dia 24 de Março pelo juiz

da comarca de Loulé, chegou até aos nossos dias. Nele pode-se ler que: «José Martins Seruca, casado, industrial, residente em Loulé,

vem participar a V. Exc.a que hontem, 23, quando pelas 18 horas a

imagem da Piedade era conduzida em procissão da sua capela para a egreja parochial de S. Sebastião, e ao passar pelo campo destinado á feira que n’esta vila se realisa em Agosto41, notou que um

agrupamento de individuos tentava agredir alguem; e, dirigindo-se para o local onde se se passava este facto, ahi foi agredido com uma

pancada na mão esquerda, ferindo-lha, por José Augusto, tambem

conhecido por Alexandre Augusto, casado, sapateiro, de Loulé, que destacando-se dos demais tentava sublevar o povo».

«Destes factos são testemunhas: Dr. Alexandre da Piedade

41 A Feira de Loulé realizava-se, anualmente, nos três últimos dias de Agosto; sendo que, nesse ano, efectuou-se no terreno popularmente conhecido por Olivais – sítio da Marroquia, junto ao Convento de Santo António, cf. MARTINS, Isilda Maria Renda, Loulé no Século XX, volume I, Da decadência da Monarquia à Implantação da República, Loulé, edições Colibri e Câmara Municipal de Loulé, 2001, pp. 114-115.

155

joão Romero Chagas Aleixo

Guerreiro, casado, oficial da administração d’este concelho e Francisco Rodrigues, solteiro, caixeiro, de Loulé»42.

Realce-se o facto de este processo judicial ter sido aberto pelo

Ministério Público, e não pelo indivíduo agredido. A situação tinha mudado. E muito. E a República, implantada há menos de três anos,

fez com que as novas autoridades estivessem mais vigilantes. Se até à implantação da República as autoridades cuidavam para que não se verificassem comportamentos contra os católicos; agora, muitas autoridades nada faziam para evitar a ocorrência de perturbações

nas manifestações de culto religioso ao ar livre. Relembre-se que a ocorrência de qualquer tipo de desacatos numa determinada

procissão, levaria a que a realização da mesma não fosse autorizada, pelas autoridades competentes, nos anos posteriores. Muitas vezes era isso que se procurava. E com sucesso.

Convocados dois médicos locais43 para procederem ao «Auto

de exame e corpo de delicto directo» ao queixoso, apurou-se que «Que [o] supra nominado apresenta vestigios de uma contusão no

dorso da mão esquerda, e esta lesão encontra-se completamente curada, devia ter sido produzida por instrumento contundente

e devia ter determinado dois dias de doença e não determinou 42 Cf. A.D.F., TJCLLE, caixa n.º 903, maço n.º 38, processo n.º 25, ano: 1913, autor do processo: Ministério Publico, reu: José Augusto, fls. 3 e 3 v.º.

156

43 Os médicos que realizaram o «Auto de exame e corpo de delicto directo» foram os médicos Dr. José Bernardo Lopes [médico do Partido Municipal, entre 25 de Agosto de 1910 e 5 de Março de 1952], assim como o Dr. Abel de Abreu Campos, cf. ibidem, fl. 5.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

deformidade, aleijão ou perda de orgão»44.

No dia 3 de Abril foi a vez do Dr. Juiz Bettencourt Ataíde

interrogar as duas testemunhas de acusação arroladas pelo queixoso.

A primeira testemunha, Alexandre da Piedade Guerreiro, casado, de trinta e cinco anos, oficial de diligencias da administração do concelho

de Loulé, testemunhou: «[…] que na tarde do domingo em que teve logar a procissão da Senhora da Piedade, no campo da feira, presenciou

que um grupo de individuos dava vivas á Republica e que outros davam vivas á Senhora da Piedade e por essa ocasião viu que o arguido com um cajado que tinha na mão dar com ele na mão do ofendido»45.

A segunda testemunha, Francisco Rodrigues, solteiro, de

vinte e dois anos de idade, empregado comercial, declarou: «[…] que na tarde do domingo em que teve logar a procissão da Senhora

da Piedade e no campo da feira desta vila presenciou que o arguido na ocasião em que o queixoso dava um viva á Republica deu uma bengalada na mão do queixoso»46.

Por sua vez, no dia 22 de Junho chegou a vez do Dr. Juiz proceder

ao interrogatório do arguido. José Alexandre Augusto, sapateiro, casado, de quarenta e um anos, natural e residente em Loulé, disse a

sua versão do ocorrido. O arguido «Respondeu que no local aque os autos se referem um individuo que não conhece disse para elle reo e segurando o pela jaqueta ‘Viva a Republica’ como quem o convidava a

44



46



Cf. ibidem, fls. 6 e 6 v.º.

45

Cf. ibidem, fls. 9 e 9 v.º.

Cf. ibidem, fls. 9 v.º e 10.

157

joão Romero Chagas Aleixo

elle reo a dizer tambem ‘Viva a Republica’ e elle reo condescendente

disse e gritou ‘Viva a Republica’ porem o mencionado individuo continuava a ter elle reo seguro pela gola da jaqueta, resistiu por que

elle reo veio ter com o tal individuo para que lhe largase a jaqueta e por que este a não largava elle reo com a mão deu uma pancada

na mão do individuo que lhe segura a jaqueta para que o largase»47.

Estavam, desta forma, ouvidas as duas testemunhas apresentadas pelo queixoso, assim como o testemunho de defesa do arguido.

Finalmente, no dia 26 de Junho, pouco mais de três meses

decorridos após a abertura do processo, o Juiz declara a sua

sentença. Nela, fica-se a saber que «O reo José Alexandre Augusto, […] é acusado pelo Menisterio Publico pelo crime presente no art. 360 n.º 1º do Cod. Penal».

«O reo confessa o crime alegando que deo uma pancada com

a sua mão, na mão do queixoso porque este lhe tenta segurar a gola da jaqueta; e alegou mais que é bem comportado e que é pobre».

«Pela discussão da causa provou se o crime de que o reo é

acusado, bem como se provou o seu bom comportamento anterior; e que é pobre vivendo exclusivamente do seu trabalho com o qual sustenta mulher e sete filhos menores».

Deste modo, o reu é condenado «na pena de dez dias de

multa a cem reis por dia sem sellos nem custos por se ter provado que o reo e pobre e vive exclusivamente do seu trabalho»48.



158



47

Cf. ibidem, fls. 19 v.º, 20 e 20 v.º.

48

Cf. ibidem, fls. 17 e 17 v.º.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

3.3. A Festa Grande da Piedade de 191349

Depois dos confrontos ocorridos na Festa da Piedade de 1912, todo

o cuidado seria pouco na preparação da Festa de 1913. Deste modo, na sequência de as autoridades locais, na pessoa do presidente da

Câmara Municipal de Loulé, Dr. Francisco Xavier Cândido Guerreiro, não terem conseguido provar ao administrador do concelho, Dr. João

Cunha Dias, que estavam reunidas todas as condições necessárias para que se realizasse a procissão, o administrador toma a decisão de proibi-la. Prevendo forte contestação, por parte dos fiéis, à sua

decisão, o administrador solicita, junto do governador civil de Faro, o « reforço da cavalaria para um número não inferior a cinquenta

homens, para a Vila, sede do Concelho na noite de 5 por recear graves alterações da ordem no próximo Domingo, dia 6 de Abril»50. Perante

a proibição das festividades, a comissão promotora das Festas da Piedade, composta por cinco industriais do calçado51, residentes na vila, decide organizar uma greve de sapateiros. A greve é marcada

para o dia 7 de Abril, precisamente a segunda-feira posterior à data da Festa. Essa greve iria, decerto, fazer alterar, gravemente, a ordem

pública, uma vez que a Associação de Sapateiros de Loulé tinha, na altura, e somente nas duas freguesias da vila, cerca de quatrocentos

49 Sobre este assunto, veja-se: ALEIXO, João Romero Chagas, «Dois Políticos, Quatrocentos Sapateiros e Cinquenta Polícias ou as Festas da Piedade de 1913», in A Voz de Loulé, n.º 1.703, de 1 de Dezembro de 2010, p. 23. 50 Cf. A.M.L., Livros de Registo da Correspondência Recebida na Câmara Municipal de Loulé, ofício de 6 de Março de 1913. A.M.L.: PT/AMLLE/AL/ACLLE/B/A/04/Lv 004.

51

Cf. ibidem.

159

joão Romero Chagas Aleixo

associados. Dessa mesma decisão dão conta ao administrador do

concelho, através do envio de uma missiva. Perante esta grave

ameaça, e depois de reformulados alguns membros da comissão promotora das Festas da Piedade, o administrador do concelho altera a sua decisão inicial, e decide autorizar a realização das Festas.

O administrador, por ofício datado de 3 de Abril de 1913, informa oficialmente a nova comissão da sua decisão. O Dr. João Cunha

Dias adverte, todavia, a nova comissão do seguinte: «Não é porém concedida autorização para qualquer festa religiosa ou exercício de culto fora das horas que a Lei expressamente determina, entre o

nascer e o pôr do Sol. Serão ainda proibidos sermões, queima de morteiros e ‘vivas’ adentro da Vila»52.

Noutra carta, o administrador mostrava-se preocupado ao

informar: «Liberais e católicos disputam se devem ou não tirar o chapéu à passagem da procissão»53.

3.4. A Festa Grande da Piedade de 191454

Nesse ano, e à imagem do que a Lei obrigava desde de 1911, a comissão promotora das Festas da Piedade teve que requerer,

antecipadamente, ao novo administrador do concelho, Sr. Eurico de

52 Cf. A.M.L., Copiadores da Correspondência Expedida pela Administração do Concelho, ofício de 3 de Abril de 1913. A.M.L.: PT/AMLLE/AL/ACLLE/B/A/02/Lv 045.

160

53

Cf. ibidem, ofício expedido no dia 2 de Abril de 1913.

54 Sobre este assunto, veja-se: ALEIXO, João Romero Chagas, «A Intriga Política nas Festas da Piedade de 1914. A História de um Republicano Feroz, de um Bispo Falador e de uma Comissão Honrada», in A Voz de Loulé, n.º 1704, de 15 de Dezembro de 2010, p. 19.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Campos, a necessária autorização para que as populares festividades

Marianas se pudessem realizar. Deste modo, e depois da comissão promotora das Festas ter assegurado o respeito pela ordem pública,

o administrador do concelho concede a tão necessária autorização. Porém, já depois de concedida a autorização oficial, o

bispo do Algarve, D. António Barbosa Leão, bispo do Algarve entre

1908 e 1919, informa que gostaria de incorporar a procissão. D. António Barbosa Leão tinha acabado de regressar à sua diocese

nos primeiros dias de Janeiro de 1914. Depois de ter cumprido um forçado exílio, de dois anos, em Lisboa, imposto pelo governo da altura, na sequência da sua oposição à implantação da Lei de

Separação na diocese do Algarve55. Após dois anos de exílio, o

bispo regressava, finalmente, para junto do seu rebanho. E logo

manifestou a intenção de participar publicamente na maior

manifestação religiosa da diocese. O bispo comunicou à comissão promotora das Festas que não queria somente incorporar a solene

procissão, como, ainda, pretendia proferir um sermão ao ar livre no antigo largo da Liberdade, actual largo de São Francisco56.

Todavia, o Sr. José da Costa Ascensão, republicano, primeiro

presidente da comissão administrativa da Câmara Municipal de

Loulé na Primeira República, precisamente entre 11/10/1910 55 Cf. DUARTE, Afonso da Cunha, A República e a Igreja no Algarve, Faro, Casa da Cultura António Bentes (São Brás de Alportel), 2010, pp. 46-47.

56 Cf. ALEIXO, João Romero Chagas, «A Intriga Política nas Festas da Piedade de 1914. A História de um Republicano Feroz, de um Bispo Falador e de uma Comissão Honrada», art. cit.

161

joão Romero Chagas Aleixo

e 8/05/191157, presta declarações, perante o administrador do

concelho, com o intuito de que este proibisse, nesse ano, o sermão ao ar livre e a consequente procissão. No auto dessas declarações, podem-se ler os motivos invocados pelo Sr. Ascensão para que a

procissão fosse proibida: «Que o culto externo n’esta vila tem sido

e continua a ser uma demonstração das forças dos reacionários e monárquicos que infelizmente ainda aqui existem, dando origem a conflitos principalmente na festa da Piedade; - Há dois anos foram agredidos por esse motivo o delegado do Procurador da Republica,

Dr. Joaquim Crisóstomo da Silveira Júnior e [o] Dr. João de Brito Farrajota, pelo simples motivo de não se descobrirem quando se

pregava ao ar livre; - O ano passado foi pelo mesmo agredido o

Dr. Cândido Guerreiro, então presidente da Comissão Municipal Administrativa, servindo de administrador do concelho […]»58.

As declarações do Sr. Ascensão não surtiram os efeitos

desejados por este, uma vez que o administrador do concelho manteve a sua decisão. No entanto, o administrador, em ofício enviado à comissão, ordena que o sermão ao ar livre, a ser

proferido pelo bispo do Algarve, se realize no adro da ermida de Nossa Senhora da Piedade e não, como era tradição, no largo da

Liberdade; justificando a sua decisão por este último espaço se

57 Cf. MARTINS, Isilda Maria Renda, Loulé no século XX, 2.º volume, A Primeira República, 1910-1926, Lisboa, edição da Câmara Municipal de Loulé, 2004, p. 260.

162

58 Cf. Manifesto intitulado PELA VERDADE AO POVO DE LOULÉ, da autoria da Comissão Promotora das Festas da Piedade, de 1914, que faz parte do espólio particular de Pedro de Freitas, que se encontra depositado no Centro de Documentação de História Local da Câmara Municipal de Loulé.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

encontrar dentro dos limites geográficos da vila.

Todavia, passados alguns dias, a comissão promotora das

Festas resolve editar um manifesto, em forma de panfleto, a que deu o nome de: «PELA VERDADE AO POVO DE LOULÉ». O manifesto tinha

como objectivo rebater as declarações prestadas pelo Sr. Ascensão.

Argumentava, assim, a comissão: «Nós, os promotores da festa, não somos monárquicos nem reacionários; amamos muito e muito a

Republica, sem contudo deixarmos de ser crentes, porque se pode ser crente e amar as instituições republicanas. Se na festa tomaram

parte monárquicos e reacionários, nós ignoramos quem sejam, e o que podemos afirmar sem receio de sermos desmentidos, é que a maioria dos que tomaram parte na festa, dos que acompanharam o

bispo, eram republicanos democráticos, correligionários e amigos do Sr. Ascensão, como por exemplo os Srs. Barros e Dr. Soares»59.

Parece que as Festas da Piedade decorreram sem nenhum

sobressalto. Desse facto nos dá conta O Algarve: «No domingo a afluência foi extraordinária, certamente excedente a quinze mil

pessoas. Pois nem só uma nota discordante, observando-se sempre agrado e cordialidade entre os visitantes e visitados». Para, mais à frente, concluir: «O Sr. Bispo do Algarve teve o melhor acolhimento

entre o seu rebanho e foi ouvido com a máxima atenção e reverência retirando s. Ex.ª visivelmente penhorado»60.



59

Cf. ibidem.

60

Cf. «Senhora da Piedade», in O Algarve, n.º 319, de 3 de Maio de 1914, p. 2.

163

joão Romero Chagas Aleixo

3.5. A Festa Grande da Piedade de 1915 O Sul, «Semanário Republicano Evolucionista – Defensor dos Interesses do Algarve», na sua edição de 25 de Abril de 1915, publicava a seguinte reportagem: «No último domingo realizou-se em Loulé, a tradicional procissão da Senhora da Piedade».

«Foi muito imponente, não se tendo dado a mínima

alteração da ordem pública, pelo que felicitamos o administrador daquele concelho sr. Manuel dos Santos Pinheiro Júnior, que tem

desempenhado o seu cargo a contendo de todos, aliando a firmeza à generosidade, à energia, à tolerância, à ponderação, à justiça».

«A concorrência de forasteiros foi enorme, sendo unânime

a satisfação de todos pela tolerância usada pelo actual governo que demostra muito eloquentemente que todos cabem dentro da

República – católicos e não católicos –, logo que as autoridades saibam assegurar a liberdade de pensamento que a todos assiste».

«Isto temos nós, os evolucionistas, pregado constantemente

pelo que rejubilamos que a prática confirme que nós é que estávamos dentro da razão e da lógica»61.

Os ânimos tinham acalmado. Em Loulé, e à imagem do que

se sucedia em outros concelhos algarvios, o radicalismo jacobino dos republicanos via, ano após ano, esmorecer a sua chama. O clima inicial de guerrilha dava, agora, lugar a uma mais sã convivência.

164



61

Cf. «Senhora da Piedade», in O Sul, n.º 158, ano 3, de 25 de Abril de 1915, p. 2.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Cartão-Postal de uma Recordação da Procissão de Nossa Senhora da Piedade [subindo a actual Praça da República, em Loulé], Lisboa, Indústria Fotográfica LuzoItaliana, 1933. Festa Grande - 30 de Abril de 1933

165

joão Romero Chagas Aleixo

4. Conclusão Na «República Velha» (1911 – 1917) a situação foi mais grave.

Houve de tudo um pouco nas Festas da Piedade. E para todos os gostos e feitios. Apenas uma pequena amostra. Agressões físicas ao Delegado do Procurador da República, por assistir «coberto» ao sermão no largo da Liberdade (em 1912) e ao presidente da

Comissão Municipal Administrativa, pelo mesmo motivo (em 1913). Bengaladas (em 1912). «Vivas à República!» (em 1913). Cajadadas (em 1913). Uma mão partida (em 1913). Um processo e uma

condenação em tribunal (em 1913). Ameaça de greve por parte da

Associação de Sapateiros de Loulé caso a procissão fosse proibida pelo administrador do concelho (em 1913). Pregação pública do

bispo do Algarve após dois anos de forçado exílio da sua diocese (em 1914). Entre muitas outras situações. Em Abril de 1915, O Sul,

semanário regional afecto ao Partido Republicano Evolucionista,

de António José de Almeida, escrevia que: «A concorrência de

forasteiros foi enorme, sendo unânime a satisfação de todos pela tolerância usada pelo actual governo que demostra muito

eloquentemente que todos cabem dentro da República – católicos e não católicos –, logo que as autoridades saibam assegurar a liberdade de pensamento que a todos assiste»62.

Acontecimentos verdadeiramente incomuns, numa diocese

composta por paróquias que poucos problemas terão levantado às

restrições que a Lei de Separação do Estado das Igrejas veio a impor 166



62

Cf. «Senhora da Piedade», in O Sul, n.º 158, ano 3, de 25 de Abril de 1915, p. 2.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

às procissões e às manifestações de culto religioso ao ar livre. Veja-se, por exemplo, as proibições impostas a várias procissões realizadas

em Faro, em que a tradicional procissão do enterro do Senhor, realizada ancestralmente na noite de sexta-feira Santa, esteve proibida entre 1911 e 1914, só se voltando a realizar na Semana

Santa de 191563. Em Tavira, por exemplo, as procissões das Cinzas e

dos Ramos não saíram para as ruas na Semana Santa de 191164. Na

vila de São Brás de Alportel, a tradicional procissão da Ressureição,

ou das Tochas Floridas, como é mais comummente conhecida, que saía para as ruas na manhã do Domingo de Páscoa, não se realizou entre 1914 e 1919, só se voltando a organizar em 192065. Em Lagos, a procissão da Ressureição não se realizou entre 1911 e 194066. Em

Silves, por exemplo, a imprensa local e regional relata que o número

de fiéis que as incorporava era tão residual, ficando muito abaixo das assistências verificadas em anos recentes67.

Em resumo: durante dois anos consecutivos (1913 e 1914)

o jacobinismo republicano local, tentou, por todos os meios ao seu

63 Cf. «A procissão do enterro do Senhor», in O Algarve, n.º 367, de 4 de Abril de 1915, p. 1.

64 Cf. O Heraldo, n.º 1.486, de 29 de Janeiro de 1911, p. 3, e cf., igualmente, MOURA, Maria Lúcia de Brito, op. cit., p. 373. 65 Cf. DUARTE, José da Cunha, DUARTE, Afonso da Cunha, Páscoa no Algarve. Procissão das Tochas Floridas, São Brás de Alportel, Casa da Cultura António Bentes (São Brás de Alportel), 2010, p. 146.



66

Cf. ibidem, p. 126.

67

Cf. «Tolerância», in Alma Algarvia, n.º 121, de 29 de Junho de 1913, p. 1.

167

joão Romero Chagas Aleixo

alcance, impedir a realização da Festa. Porém, o bairrismo louletano

assim não o permitiu. E os apaniguados do Dr. Afonso Costa não conseguiram atingir os seus objectivos. Será que desconheceriam a

forma de como este culto se encontrava tão fortemente enraizado na alma do povo louletano, subestimando a sua devoção? O

Mãesoberanismo dos devotos locais falaria mais alto. A tradição da Festa era secular. E o povo Mãesoberaneiro jamais poderia aceitar tal proibição.

168

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

169

joão Romero Chagas Aleixo

170

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

7 A Mãe Soberana na Literatura Popular O culto a Nossa Senhora da Piedade é o maior culto religioso da

região algarvia. Nesse sentido, é natural que Nossa Senhora da Piedade se revelasse uma boa fonte de inspiração poética, sendo o Algarve uma região de poetas populares.

Esclareço que ao longo deste estudo utilizarei a expressão

«poesia popular» quer no sentido de poesia de tradição oral (cujos

textos, ditos ou cantados de boca em boca, vivem na oralidade em

diferentes versões), quer no sentido de poesia escrita produzida pelos chamados «poetas populares», a que, segundo certos teóricos, seria preferível chamar «poetas tradicionalistas» (e à sua

produção, consequentemente, «poesia tradicionalista»), para evitar ambiguidades.

O que distingue, então, a poesia tradicionalista da poesia culta?

Por um lado, a classe social dos seus autores (que, em geral, pertencem

às camadas menos instruídas e economicamente menos favorecidas da sociedade), e, por outro, o facto de as suas produções seguirem geralmente as formas da «poesia tradicional», oral, sobretudo a quadra, embora possuam algumas caraterísticas muito próprias.

171

joão Romero Chagas Aleixo

Encontra-se ainda por fazer um Cancioneiro Popular

Mãesoberaneiro. Existem composições poéticas esparsas, mas

nunca ninguém se dignou a fazer a recolha dessas composições. Composições que podem ser lidas em jornais locais e regionais,

mas, também, em edições de autor, conjuntos literários e antologias

poéticas. Mas não só. Em recolhas de tradições orais também, como, por exemplo, no Romanceiro do Algarve (1870), recolhido por Estácio da Veiga (1828-1891); e no Cancioneiro Popular Português (1983), recolhido por José Leite de Vasconcelos (1858-1941).

No Romanceiro do Algarve, compilado por Estácio da Veiga,

o arqueólogo recolheu um romance, no sentido de um poema narrativo, dedicado à Senhora da Piedade1. Segundo o compilador,

o poema terá sido composto no final do século XVI, princípio do século XVII2. E faz a narração de uma antiga «lenda cristã» onde

se conta a história de um «fidalgo de linhagem» que pretende desvirginar uma «casta donzela / de seus quinze anos de idade».

Facto não consumado, por intercessão de Nossa Senhora da Piedade3. «Baseia-se numa versão oral, proveniente de Tavira [cujo

manuscrito se conservou até hoje] bastante diferente do que foi

publicado» por Estácio da Veiga, que retocou muito o texto que lhe 1 Cf. VEIGA, Sebastião Philipes Martins Estácio da, Romanceiro do Algarve, [edição fac-similada da 1.ª edição, Lisboa, Imprensa de Joaquim Germano de Sousa Neves, 1870], Faro, Universidade do Algarve, 2005, pp. 159-162.

172



2

Cf. ibidem, p. 159.

3

Cf. ibidem, pp. 160-162.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

chegara da oralidade4.

A composição começa da seguinte maneira: «Em nome de Deus bendito Saiba toda a cristandade,

Que está o mundo assombrado De ver um santo milagre, Que a uma casta donzela

De seus quinze anos de idade, Que n’uma serra morava,

Chamada serra do Algarve, Por sua graça infinita

Fez a Virgem da Piedade»5.

Mais à frente, o «fidalgo de linhagem» «Estas palavras lhe

disse:

«Com amorosa humildade:

- Guarde Deus a ermitanita. Nunca vi tanta beldade!

Entre as rosas que Deus cria Não há uma que te iguale! Se o meu amor te merece, Ái, vamos para a cidade;

4 Cf. J. J. Dias MARQUES, «Estudo Introdutório», in VEIGA, Sebastião Philipes Martins Estácio da, op. cit., p. 39.

5

Cf. Sebastião Philipes Martins Estácio da VEIGA, op. cit., p. 160.

173

joão Romero Chagas Aleixo

Vestir-te-ei de prata fina, Terás quanto desejares,

Andarás entre senhoras

Que hão de vir a visitar-te; Quando a passear tu fores, Levarás contigo pagem.

Rosa linda, vem comigo, Isto que te peço, faz»6.

Obtendo da «casta donzela» a seguinte resposta: «- Não gaste, senhor fidalgo, Não gaste o tempo debalde,

Que o meu pensamento é outro Mais próprio da minha idade. A minh’alma só a entrego

Á Virgem Mãe da Piedade»7.

E pronto. Diz a lenda que a «casta donzela» foi salva pela

intercessão de Nossa Senhora da Piedade. E parece que o «fidalgo

de linhagem» não conseguiu levar adiante os seus carnais intentos. Provavelmente ainda no século XIX, o etnógrafo José Leite de

Vasconcelos recolheu a seguinte quadra:

174



6

Cf. ibidem, p. 161.

7

Cf. ibidem.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

«Já Loulé não é Loulé

É i uma nobre cidade, Só le basta ter ò pé

Vigem Mãe da Piedade! [sic.]»8.

Que, anos mais tarde, seria publicada no seu Cancioneiro

Popular Português, editado, postumamente, pela Universidade de Coimbra.

«Porque a alma desse povo / Vai dentro daquele andor» Foi com estes dois versos que o poeta António Aleixo cantou

a Mãe Soberana. Num poema simples e emblemático, que, ainda hoje em dia, é recitado de cor por alguns louletanos.

Estava-se em 1925 quando o poeta António Fernandes

Aleixo (1899-1949), um dos maiores poetas populares, de língua

portuguesa, de todos os tempos, manda editar, numas folhinhas volantes, uma composição poética dedicada a Nossa Senhora da Piedade a que deu o título de Uma Linda Quadra Glosada à Nossa

Senhora da Piedade de Loulé 9. A sua intenção era simples. Fazer

8 Cf. Cancioneiro Popular Português, coligido por José Leite de VASCONCELOS, coordenação e introdução de Maria Arminda Zaluar Nunes, volume III, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1983, p. 63.

9 Cf. ALEIXO, António Fernando [sic.], Uma Linda Quadra Glosada à Nossa Senhora da Piedade de Loulé, impresso sobre papel, 1925.

175

joão Romero Chagas Aleixo

algum dinheiro com a venda dessas folhas volantes, por ele próprio

vendidas em mercados, feiras, arraiais e na Festa da Mãe Soberana. Era uma forma simples de ganhar algum sustento. O poeta tinha

génio e arte para poetar. E o povo gostava do seu versejar. Naqueles difíceis anos, folha aleixiana saída do prelo era sinónimo de venda assegurada.

Composta por um mote (escrito em quadra) e por quatro

glosas (escritas em décimas), trata-se, provavelmente, da composição que melhor retrata o significado que a Imagem de Nossa Senhora da Piedade representa para Loulé e para o povo Louletano, escrevendo o poeta:

«Porque a alma desse povo Vai dentro daquele andor».

O mote é o seguinte:

«Vai dentro aquele andor

Aos ombros da mocidade A mãe de Nosso Senhor A virgem da Piedade».

Através do segundo verso da quadra que serve de mote à composição, o poeta evoca, por intermédio de uma imagem poética,

o mar de pessoas que acompanham os Homens do Andor na subida 176

da íngreme ladeira. Nestes simples quatro versos, Aleixo consegue

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Cf. ALEIXO, António Fernando [sic.], Uma Linda Quadra Glosada à Nossa Senhora da Piedade de Loulé, impresso sobre papel, 1925.

177

joão Romero Chagas Aleixo

transmitir a força e o calor humano que representam a subida do

monte da Piedade. O poeta quer-nos transmitir a imagem que a

Nossa Senhora da Piedade, Mãe Soberana dos Louletanos, não é só transportada pelos oito Homens do Andor, mas, sim, pela imensa multidão de devotos que acompanham a procissão, principalmente

a subida da ladeira; incentivando, apoiando e contagiando, com o seu entusiasmo e empolgamento, os Homens do Andor, de forma a que estes consigam cumprir a «missão» que lhes foi confiada.

Depois, seguem-se quarenta versos, divididos por quatro

glosas, que, numa linguagem simples, acessível a todos, retrata a

Festa da Mãe Soberana. O poeta consegue identificar o elo mais forte entre todos os filhos de Loulé, o maior denominador comum entre os louletanos, a verdadeira identidade de um povo, ao resumir,

de forma lapidar - como é seu timbre -, o que a Mãe Soberana

representa para o povo Louletano: «Porque a alma desse povo / Vai dentro daquele andor». Utilizando a sagacidade, genialidade

e economia de palavras que lhe eram, afinal, tão características, Aleixo consegue, através destes simples dois versos, transmitir a

dimensão que a Imagem de Nossa Senhora da Piedade representa para todos os seus filhos.

Num panfleto «A pedido duma Comissão», o poeta Victor

Castela também versejou sobre Nossa Senhora da Piedade. Através de uma «poesia lírica» com que concorreu, na Páscoa de 1944, a uns «jogos florais em Loulé», Castela escreveu: 178

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

«Senhora da Piedade!

Lindo pendão Louletano… Leva a tua claridade

Ao coração mais profano!»10.

Mas não seriam somente António Aleixo e Victor Castela a

cantar a Mãe Soberana. O poeta algarvio Leonel Neves (1921-1996) também a cantaria, em 1968. Chamou ao texto Ladainha Louletana e dedicou-o «À memória de António Aleixo»11. Através de oitenta

curtos versos, Neves retrata a magia da Festa. Escreve Neves: «Mil foguetes no ar gente até mais não Ela há-de gostar desta procissão.

Mesmo quem não presta hoje até se dana

que é a Tua festa

Nossa Mãe Soberana alta é a capela

chumbo esse andor Teu

10 Cf. Victor CASTELA, Festas da Nossa Senhora da Piedade. Poesia dedicada à Senhora da Piedade, folheto impresso sobre papel, Abril de 1944. 11

Cf. Leonel NEVES, «Ladainha Louletana», in Natural do Algarve, colecção Poesia e Verdade, [s.l.], Guimarães Editores, 1968, p. 65.

179

joão Romero Chagas Aleixo

mas correr p’ra ela é correr p’ra o céu

rampa que é um perigo grande que só vendo-a dá-nos muito figo

traz-nos muita amêndoa sol que nos abrasa

nosso amor Te aqueça vais p’ra Tua casa

vamos lá depressa

levam-Te os mais fortes moços de Loulé

às vezes há mortes salva-nos a fé

fé no ano novo

que hás-de abençoar Mãe olha o Teu povo grita ‘vai ao ar’.

Vai no ar a Santa p’ra Sua capela

tanta gente tanta

vai ao céu com Ela »12.

180



12

Cf. ibidem, pp. 66-68.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Em 1986, seria a vez de o poeta José Galvão Balsa versejar

sobre a Festa da Mãe Soberana. Num poema muito impressivo, Galvão Balsa poetou:

«Pelas ruas de Loulé

Passa um cortejo de fé.

Vai um povo comovido,

Atrás de um andor florido, Toca a música a preceito, Há foguetes pelo ar

E todos levam no peito O coração a rezar…

É a Virgem, a Mãe Soberana,

Aos ombros de homens valentes, Que são fortes e são crentes, E é um povo que se ufana Da sua fé verdadeira E da sua Padroeira.

E quando volta a Senhora À capela onde mora,

Agita-se a procissão,

Em marcha viva, apressada, Uma força estranha anima,

Toda a gente, encosta acima, E a Mãe Soberana, aclamada P’los vivas da multidão,

Num hino de ardente fé,

181

joão Romero Chagas Aleixo

É astro no alto a brilhar Do trono do seu altar

- A Rainha de Loulé!»13.

182

13 Cf. José Galvão BALSA, Rotas do Sol e do Mar, Silves, edição da Câmara Municipal de Silves, 1986. Este poema foi também publicado in A Voz de Loulé, de 9 de Outubro de 1986.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

183

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184

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Ensaios

185

joão Romero Chagas Aleixo

pp. 182-183 Condução, em Marcha Triunfal, da sagrada Imagem de Nossa Senhora da Piedade à sua ermida.

186

Festa Grande – 1 de Maio de 1938

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

1

Pôncio Pilatos e a Mãe Soberana (Carta aberta a Pôncio Pilatos)

__________________

Meu caro Pôncio Pilatos:

Não tive o prazer de o ter conhecido. O prezado viveu numa

época histórica (ca. 5 a.C. – ca. 37 d.C.) em que eu ainda não tinha nascido. Sei que ocupou cargos importantes. Sei, por exemplo, que

foi nomeado Perfeito da província romana da Judeia (26-36). E que, ocupando esse cargo, tomou uma importante decisão. Decisão que o colocaria, para sempre, na História Universal. E, veja bem, até na

profissão de Fé do «credo». Ele há com cada coisa! Quem é que,

hoje em dia, o não conhece? Porque se não tivesse sido o Pôncio – permita-me que o trate assim –, por um pouco, Jesus Cristo não teria sido condenado à morte.

Sei, Pôncio, que não achava Jesus Cristo culpado. Disse-o,

a todos, por várias vezes (cf. Lc. 23, 14-25; Jo. 18, 38; Jo. 19, 4-6).

187

joão Romero Chagas Aleixo

Sei, também, que O procurou libertar, depois de castigá-Lo (cf. Lc. 23, 16-24; Jo. 19, 1; Jo. 19, 12). Mas o povo judeu, gritando, não lhe deixou (cf. Lc. 23, 21-23). Mais: que, numa derradeira tentativa,

ainda perguntou ao povo: «Hei-de crucificar o vosso Rei?», ao que

os «príncipes dos sacerdotes» responderam que «Não temos outro Rei senão a César!» (Jo. 19, 15). Porém, o destino estava traçado. E

você, Pôncio, ficaria com o encargo histórico de O condenar. Mesmo

contra a sua vontade. Lavou as suas mãos (cf. Mt. 27, 24). Mandou açoitá-Lo, e, depois, entregá-Lo aos soldados romanos para que

estes O crucificassem (cf. Mt. 27, 26). E foi à sua vida. Que outros assuntos haveria de ter para despachar.

Ora, Pôncio, passados quase dois mil anos daquele intenso

dia de Abril, estou eu, aqui de Loulé (fica no Algarve, em Portugal,

para o caso de o Pôncio não saber), a escrever-lhe esta pequena carta. Sabe, Pôncio, qual o motivo? Eu digo-lhe. É muito simples.

Então não é que o Pôncio esteve muito perto de nos deixar sem Semana Santa e sem Nossa Senhora da Piedade? Porque, como o

Pôncio dever-se-á recordar, esteve quase a indultar Jesus em vez de Barrabás, e se tal facto tivesse ocorrido não haveria Paixão, logo, não haveria Semana Santa (de Sevilha), nem, tampouco, a Sagrada Imagem de Nossa Senhora da Piedade. E a vida já não seria a mesma coisa. Pelo menos para mim.

Sem outro assunto, despeço-me, cordialmente, enviando-lhe

os meus mais respeitosos cumprimentos. 188

***

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Para quê tantos pruídos em relação à Festa da Mãe Soberana?

Eu não o consigo entender. Explico.

A Imagem é triste. O quadro é chocante. Todos o sabemos.

A tarde está cinzenta. O céu encontra-se carregado. Jesus

Cristo é humilhado e crucificado no Monte Gólgota (cf. Mt. 27, 33). Assistem poucas pessoas à crucificação (cf. Mt. 27, 1-66). Ao pé da Cruz encontram-se três mulheres: a sua Mãe, a irmã de sua Mãe

e Maria de Magdala (cf. Jo. 19, 25). Assistem, sem nada puderem

fazer, ao martírio. Jesus, já morto, é descido da cruz (cf. Lc. 23, 53). A Mãe segura o Filho nos braços. Que, na cruz, morreu para nos salvar

(cf. Carta aos Hebreus, 7, 26-27). E, depois, todos nós sabemos o resto da História...

A História é antiga. De todos bem conhecida. E tem um final

feliz. Repetimo-la, representamo-la e comemoramo-la todos os

anos. Há quase dois mil anos. Ano após ano. Por alturas da Páscoa. Com as nossas famílias e com os nossos amigos. É o Evangelho aberto representado em plena rua. A catequese popular, posta em

prática pelo povo, para serviço de todos. É a religiosidade popular,

cujo veículo privilegiado e principal são as tão amadas procissões. Que tantas tradições têm.

Então, se já conhecemos toda a História de «olhos fechados»,

sabemos que: o Filho da Senhora Mãe Soberana depois de muito penar, triunfa, morrendo na cruz para nos salvar; e que, passados

três dias, ressuscita subindo «aos céus onde está sentado à direita do Pai». Logo, desde há séculos, todos nós sabemos que a História

tem um final feliz, com a Redenção do Homem e a Ressurreição

189

joão Romero Chagas Aleixo

do Filho da Senhora Mãe Soberana; outro final, aliás, não seria de esperar, ou a História não tivesse sido escrita por Deus. Então,

para quê vivê-la de forma triste? Celebremo-la, pois, alegremente. Sempre alegremente!

Viva a Mãe Soberana!!!

190

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

191

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192

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

2

O Paradoxo Mãesoberaneiro (O Carácter Festivo da Mãe Soberana: Achegas Para Uma Interpretação)

__________________

À memória da minha tia, Célia Vasques Formosinho Romero Magalhães (Loulé, 17.07.1913- Faro, 12.07.2002), que me criou, sempre, com infinito amor e carinho, e que, todos os anos, se deslocava propositadamente de Faro para assistir à Festa Grande.

193

joão Romero Chagas Aleixo

«Paradoxo: s.m. (1563 cf. JBarD) 1 proposição ou opinião contrária à comum 2 aparente falta de nexo ou de lógica; contradição 3 FIL pensamento, proposição ou argumento que contraria os princípios básicos e gerais que costumam orientar o pensamento humano, ou desafia a opinião consabida, a crença ordinária e compartilhada pela maioria […]»1.

1. O que é o «Paradoxo Mãesoberaneiro»? A principal Festa de Loulé encerra, em sim mesma, uma enorme

contradição. Explico. Então a nossa Mãe Soberana acaba de receber

o seu Filho morto nos braços, depois de ter sido humilhado e crucificado pelos romanos (cf. Mt. 27, 28-44) e, depois, descido

da cruz por José de Arimateia (cf. Lc. 23, 53), e nós, orgulhosos filhos de Loulé, celebramo-la anualmente desta maneira? Com esta exuberância? Com este contagiante fervor e entusiasmo?

A cena é conhecida. O quadro é dantesco. A Mãe recebe e

ampara o corpo do Filho, já cadáver, no seu regaço. Maria chora por dentro e por fora. As lágrimas caem-lhe, aos poucos, pelo rosto.

194

1 Cf. AA. VV., Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Tomo V (Mer-Red), Lisboa, Círculo de Leitores, 2003, p. 2.755.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

A emoção e o sentimento são muitos. O Amor maternal tem aqui

um dos seus maiores estandartes; anos mais tarde (em 1499), fixado magistralmente para a imortalidade pelo escultor italiano Michelangelo (1475-1564). Faltam as palavras. Sobra a emoção.

Por todo o Mundo chora-se a tétrica cena. E nós, Louletanos,

o que fazemos? Celebramos, entusiasticamente, o triste quadro. Passeamo-Los, à Mãe e ao seu Filho morto, com muito amor, arte e

sentimento pelas ruas da nossa vila, agora cidade. Conduzimo-Los, louca, frenética e triunfalmente, à sua morada. Gritamos «Vivas»

e mais «Vivas» à sua passagem. Lançamos foguetes e morteiros. Choramos e rimos. Convivemos e alegramo-nos. É verdadeiramente impressionante! Quem nos vier visitar por esses intensos dias ficará, decerto, chocado e aliciado. Mas porque é que nós, Louletanos,

perante a maior dor, a dor de uma Mãe que acaba de perder o seu

Filho, nos comportamos desta maneira? É esta aparente contradição aquilo que eu denomino por «paradoxo Mãesoberaneiro».

2. O que representa a Imagem de Nossa Senhora da Piedade? Nos finais da Baixa Idade Média a figura de Nossa Senhora da Piedade (ou, na sua declinação, de Nossa Senhora das Dores) já

constituía um elemento central de devoção. A Imagem representa o sofrimento da Mãe de Cristo após a descida do seu Filho da Cruz. A dor maternal, a angústia e o desgosto encontram-se, aqui, bem presentes. A Virgem aparece normalmente representada com um

195

joão Romero Chagas Aleixo

manto, oferecendo uma face serena e de resignação. A sua função era circunscrever a atenção do crente de modo a que através da sua

contemplação pudesse meditar nas dores da Virgem. Deste modo, dada a sua eficácia comunicativa e o fácil reconhecimento da cena, a Imagem da Piedade isolou-se das restantes representações do Calvário2.

No século XIII surgem as primeiras marcas da Imagem na

actual Alemanha; começando, a partir dessa altura, a expansão

desta cena para o resto da Europa. Ao longo do século XIV começa-

se a estabelecer a voga das Piedades (ou Pietá). E por volta de 1400 já existem Piedades em Portugal3.

3. Algumas hipóteses interpretativas Em tempos, nas páginas deste periódico, avancei uma possível

explicação. Na altura escrevi o seguinte: «A História é antiga. De todos bem conhecida. E tem um final feliz. Repetimo-La, representamoLa e comemoramo-La todos os anos. Há quase dois mil anos. Ano

após ano. Por alturas da Páscoa. Com as nossas famílias e com os nossos amigos. É o Evangelho aberto representado em plena rua. A catequese popular, posta em prática pelo povo, para serviço de todos. É a religiosidade popular, cujo veículo privilegiado e principal

são as tão amadas procissões. Que tantas tradições têm». Para, de

2 Cf. PEREIRA, Paulo, «Nossa Senhora da Piedade», in Decifrar a Arte em Portugal. Volume II, Idade Média, Lisboa, Círculo de Leitores, 2014, p. 178.

196



3

Cf. ibidem, pp. 178-179.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

seguida, vos perguntar: «Então, se já conhecemos toda a História de ‘olhos fechados’, sabemos que: o Filho da Senhora Mãe Soberana

depois de muito penar, triunfa, morrendo na cruz para nos salvar;

e que, passados três dias, ressuscita subindo ‘aos céus onde está

sentado à direita do Pai’. Logo, desde há séculos, todos nós sabemos que a História tem um final feliz, com a Redenção do Homem e a Ressurreição do Filho da Senhora Mãe Soberana; outro final, aliás,

não seria de esperar, ou a História não tivesse sido escrita por Deus. Então, para quê vivê-La de forma triste?»4. Esta é apenas uma explicação. Haverá decerto outras.

Tamanha idiossincrasia, isto é, celebrar alegremente uma

Mãe que acaba de assistir ao martírio e à crucificação do seu Filho,

não nos pode deixar indiferentes. Por isso devemos ir ao encontro de algumas possíveis explicações.

Deste modo, penso que a contagiante exuberância com que

nós, Louletanos, celebramos a nossa Mãe e Rainha poderá, também

ela, estar relacionado com um outro conjunto de factores históricosociólogos. Deixo-vos, apenas, alguns:

4 Cf. João Romero Chagas ALEIXO, «Pôncio Pilatos e a Mãe Soberana», in A Voz de Loulé, n.º 1.809, de 13 de Março de 2015, p. 6.

197

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a) o carácter entusiástico e festivo do Louletano5;

b) o seu reconhecido e ancestral bairrismo6;

c) a tão necessária galvanização, empolgamento e

transmissão de calor humano no sentido de ajudar os Homens do Andor a cumprir a difícil missão que lhes foi confiada (foi com este

objectivo que nos finais da década de 1860 princípios da década de 1870, o Mestre Manuel Martins Campina, na altura regente da

Sociedade Filarmónica União Marçal Pacheco, compôs o popular

«passo dobrado» intitulado Marcha-Hino de Nossa Senhora da Piedade);

d) o constante intercâmbio de louletanos com a região

andaluza7;

e) os vários fluxos de emigrantes andaluzes que se radicaram

em Loulé, ao longo do século XIX e do primeiro terço do século XX, 5 Sobre o carácter entusiástico, festivo e bem disposto do Louletano leia-se, por exemplo, os seguintes estudos e artigos: BRITES, Geraldino da Silva Baltasar, «Alguns Caracteres do Povo Louletano», in Febres Infecciosas. Notas sobre o Concelho de Loulé, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1914, pp. 180-207; FREITAS, Pedro de, «O bairrismo e a psicologia do louletano», in Quadros de Loulé Antigo – A Alma de Loulé em Livro, 2.ª edição corrigida e aumentada, Lisboa, edição da Câmara Municipal de Loulé, 1980 [1964], pp. 73-78; MAGALHÃES, Joaquim, «Os de Loulé São Assim», in Gazeta dos Caminhos de Ferro, n.º 1.240, de 16 de Agosto de 1939; MONTEIRO, Maurício, «O Bairrismo Louletano», in A Voz de Loulé, n.º 510, de 20 de Março de 1973, p. 6; e, ainda, OLIVEIRA, Ataíde, «Caracter louletano», in Monografia do Concelho de Loulé, 3.ª edição, Faro, Algarve em Foco Editora, 1989 [1905], pp. 183-187.

198

6

Cf. ibidem.

7 Nas duas primeiras décadas do século XX é possível encontrar na imprensa local e regional da época inúmeros anúncios referentes à organização de excursões anuais, a saírem de vários pontos do Algarve, com o objectivo de se assistir à Semana Santa de Sevilha.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

e que nos ensinaram a «passear» e a «desfrutar» da nossa Virgem

local da mesma forma com que eles «passeiam» e «desfrutam» das suas Virgens na Andaluzia8;

f) entre tantos outros factores.

Aqui chegados, e para terminar esta crónica, gostaria de

vos perguntar o seguinte: com todo o Amor que nós, Louletanos,

sentimos pela nossa Mãe Soberana se o seu Filho Jesus tivesse nascido em Loulé teríamos deixado que ele fosse crucificado? Ontem, hoje e sempre: viva a Mãe Soberana! Viva!!!

8 Entre 1851 e 1905 dos 28.400 baptizados realizados na paróquia de São Clemente (Loulé), 292 tinham ascendência andaluza de, pelo menos, duas gerações (168 dessas crianças tinham pais naturais da Andaluzia e 124 tinham avós naturais da Andaluzia), o que perfaz um rácio de 1,03% do total de baptismos realizados nessa paróquia durante esse período de tempo (cf. A.D.F., Fundo da Paróquia de São Clemente, Loulé, Livros de Registo de Baptismos, 1851-1905). Por outro lado, entre 1891 e 1905 dos 5.041 baptizados realizados na paróquia de São Sebastião (Loulé), 60 tinham ascendência andaluza de, pelo menos, duas gerações (49 dessas crianças tinham pais naturais da Andaluzia e 11 tinham avós naturais da Andaluzia), o que perfaz um rácio de 1,19% do total de baptismos realizados nessa paróquia durante esse período de tempo (cf. A.D.F., Fundo da Paróquia de São Sebastião, Loulé, Livros de Registo de Baptismos, 1891-1905).

Refira-se, igualmente, que durante as duas primeiras décadas do século XX é natural e comum encontrar «Comissões Promotoras das Festas da Piedade» compostas por dois, três ou quatro elementos naturais ou descendentes de andaluzes. A título de exemplo, refira-se que a comissão promotora das Festas da Piedade de 1912 que, na altura, era composta por cinco membros, quatro deles eram descendentes de andaluzes: Bartholomeu Rodriguez y Rodrigues, Pablo Garcia Delgado, Pedro Gomes Marques e Ignácio Garcia Alvarez, sendo o restante membro o português António Martins Sancho (cf. «Festas em Loulé», in O Algarve, n.º 213, de 21 de Abril de 1912, p. 2, ou O Algarvio, n.º 6, de 28 de Abril de 1912, p. 3).

199

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200

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Crónicas

201

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pp. 198-199 «Experimentação do Andor» no adro da ermida. Domingo de Ramos – 7 de Abril de 1974

202

Em cima, da esquerda para a direita: José Felizardo; Manuel Isidoro; António dos Santos Simões (António Zorro); José Gomes; Lionildo Gonçalves Lourenço; José Rosa Faísca Guerreiro (Mestre José Rosa); José Luís da Silva; Fernando de Jesus Semião; José de Brito; Manuel Correia Gonçalves (Manuel Galucho) e José Vairinhos. Fila intermédia, da esquerda para a direita: Francisco do Vale; Barrote; Manuel Pereira (Manel Sacristão); Fátima Pereira. Fila de baixo, da esquerda para a direita: Manuel Tereza (Manel da Baracinha); Lúcia Pereira e Luís Catarino (Luís Roupinha).

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

1

As Missas da Mãe Soberana na Igreja de São Francisco 13 de Agosto de 1890: data oficial da criação de uma nova freguesia na vila de Loulé, que foi baptizada com o nome de São Sebastião.

Esta nova freguesia resultou de um novo «arranjo administrativo» que veio dividir a então única freguesia da vila (freguesia de São

Clemente) em duas freguesias distintas: São Clemente e São

Sebastião. Este novo «arranjo administrativo» resultou, igualmente,

na divisão eclesiástica da única paróquia existente na vila (paróquia de São Clemente) em duas novas paróquias: a paróquia de São Clemente, que conservou a sua sede paroquial na igreja Matriz de

São Clemente; e a paróquia de São Sebastião, que passou a ter como

sua sede paroquial a igreja da Ordem Terceira de São Francisco, que, desde o séc. XVIII, era propriedade da dita Ordem.

Por outro lado, desde 1830 que a lei determinava que

fossem nomeados, para cada freguesia, «um corpo administrativo, que se denominasse de junta de paróquia»1 e que em cada paróquia

1 Cf. Pierre SANCHIS, Arraial: Festa de um Povo. As romarias portuguesas, 2.ª edição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1992, p. 188.

203

joão Romero Chagas Aleixo

houvesse um regedor, delegado imediato do administrador do concelho2. Em Dezembro de 1891 O Algarvio informava que a nova freguesia de São Sebastião ainda não tinha constituído a sua

«junta de paróquia», pelo que a junta de paróquia de São Clemente funcionava para as duas freguesias3.

No que diz respeito à Festa da Piedade a situação era

diferente da que ocorre hoje em dia. Até 1891 inclusive, a Festa tinha lugar na igreja Matriz de São Clemente, então, sede paroquial da única freguesia da vila. Todavia, em 1892, e pela primeira vez na sua história, a Festa realiza-se na igreja da Ordem Terceira de São

Francisco, então, interinamente, sede paroquial da nova freguesia de São Sebastião4.

Na reportagem que O Algarvio dedicou à Festa da Piedade

de 1892, pode ler-se que «Esteve esplendorosa a festa de N. S. da Piedade, realizada no domingo passado, na parte respeitante

ao arraial, porque portas a dentro da igreja poucos foram os que

puderam assistir, visto a estreiteza do templo e o hábito da gente do campo, em assenhorar-se logo de todos os lugares»5. «Gente do campo» sempre tão devota. Porque as populações rurais sempre

2 Cf. «Freguesia de S. Sebastião de Loulé», in O Algarvio, n.º 141, de 6 de Dezembro de 1891, p. 1.

3



5

Cf. ibidem.

4 Cf. «A festa de Nossa Senhora da Piedade», in O Louletano, n.º 14, de 9 de Abril de 1893, p. 2.

204

Cf. «Festa» in O Algarvio, n.º 164, de 15 de Maio de 1892.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

nutriram uma especial devoção pela Nossa Senhora da Piedade, uma vez que precisavam d’ela no seu dia-a-dia. Precisavam da

sua intercessão junto do seu Filho Jesus, para que Ele não se esquecesse de enviar água para os campos. Precisavam que ela

protegesse as suas colheitas. E, por isso, pediam-lhe misericórdia.

E a misericórdia que mais solicitavam era a de água em tempo de seca. Água de misericórdia. Tão necessária ao florescimento das colheitas. Porque sem água a vegetação morre, o fruto estiola, vem a fome e vem a morte.

Todavia, hoje em dia, a assistência às eucarísticas é bem

menor. Já não se verificam as assistências de outros tempos. Existem

menos crentes. Os católicos praticantes decresceram. A sociedade encontra-se cada vez mais laicizada. E com a instituição do regime democrático a secularização incrementou-se.

Porém, as missas diárias celebradas aos dias da semana são

ambas diferentes.

Na primeira, logo pela manhã (9h e 30m), é comum ver

várias devotas acompanhas pelos seus carrinhos de mão. Que tanto podem estar já cheios, como ainda vazios. São pessoas que já vieram ou que ainda irão ao mercado. Caminham, com azáfama, pela coxia

central da igreja acompanhas pelos seus carrinhos de mão; os que já se encontram cheios transportam, normalmente, produtos hortícolas e/ou frutícolas. É um gosto, para mim, assistir àquele

corrupio. Antes de realizarem as suas tarefas diárias de donas de casa vão prestar culto à Virgem Mãe. Até alfaces já vi caírem pela coxia central do templo...

205

joão Romero Chagas Aleixo

Por outro lado, a eucaristia do final da tarde (19h e 15m)

é frequentada, maioritariamente, pelos comerciantes do comércio local, acabado, há pouco, de fechar as suas portas. Trata-se de uma

missa mais calma; já sem carrinhos de mão. E, necessariamente, sem alfaces ou outros produtos transacionáveis. Viva a Mãe Soberana!!!

206

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

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Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

2

Uma Festa Invulgar…1 Dizem-nos os Visitadores da Ordem Militar de Santiago que, em

1553, se edificou nas proximidades da, então, vila de Loulé uma

ermida a Nossa Senhora da Piedade. Ermida pressupõe a existência de uma Imagem. Que, por sua vez, pressupõe a existência de um

culto. Nascia, assim, uma história singular. Um história de amor. Amor esse que já dura há quase cinco séculos.

Em Loulé são poucos os que se referem à Imagem pela

sua denominação canónica: Nossa Senhora da Piedade. Preferem utilizar o secular epíteto que, em boa hora, alguém inventou – Mãe

Soberana. Mãe Soberana dos Louletanos, acrescento eu. Porque aquela Imagem representa a alma do povo Louletano. Trata-se

do maior denominador comum entre todos os filhos de Loulé.

Porque o Mãe-soberanismo faz parte do código genético de todos os

Louletanos, quer eles residam, ou não, em Loulé. Mas o que significa o epíteto Mãe Soberana? Significa que aquela Nossa Senhora é a Mãe, a Rainha, a Padroeira e a Protectora de todos os Louletanos. Quer eles sejam, ou não sejam, católicos. Confusos? A escritora louletana

1 Este artigo foi publicado, pela primeira vez, na revista Itinerante, n.º 7, de Junho de 2012, Lisboa, Itinerante, Divulgação Histórica e Cultural, crl., 2012, p. 38.

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joão Romero Chagas Aleixo

Lídia Jorge escreveu, em 2002, o seguinte: «Aqui a Virgem chama-

se mais do que Senhora da Piedade. A dona da melancolia dolorida chama-se Mãe Soberana. Soberaníssima, o sexto olhar sabe que no seu colo de seda, ao mesmo tempo, cada Primavera, o filho morre e ressuscita. Não conheço outra festa em que os dois actos estejam

tão unidos, o amor profano seja ao mesmo tempo tão sagrado, e por isso, tão intenso e tão brilhante. Mãe Soberana, mesmo que não exista Deus, existes tu»2.

Em 1925 já o poeta António Aleixo tinha versejado: «Porque

a alma desse povo / Vai dentro daquele andor». E se não acreditam, desloquem-se até Loulé, no terceiro Domingo Pascal, para comprovar, in loco, a veracidade dos versos aleixianos.

Por outro lado, é curioso notar que, embora sendo Loulé uma

vila rica do ponto de vista de oragos marianos – N. S.ª da Conceição, N. S.ª do Pilar, N. S.ª dos Pobres e N. S.ª das Portas do Céu – a Nossa Senhora a que os Louletanos mais recorriam, como ainda hoje em

dia recorrem, sempre foi a Nossa Senhora da Piedade. Em caso de

secas, de tremores de terra ou de outros acontecimentos singulares, o procedimento era sempre o mesmo: os Louletanos iam buscar a

Nossa Senhora da Piedade à sua ermida e traziam-na para a, então,

vila. Nas maiores aflições, queriam-na mais perto dos seus corações. Mas porquê é que a Mãe Soberana é uma Festa? Porque esta

procissão diferencia-se das restantes procissões que se celebram no território nacional. Em Loulé, à passagem da procissão, gritam-

210

2 JORGE, Lídia, «Sexto Olhar», in Loulé, 5 Olhares, direcção de Miguel Madeira, Loulé, edição da Câmara Municipal de Loulé, 2002, p. 10.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

se Vivas à Mãe Soberana! e Vivas aos Homens do Andor! Em Loulé

o andor é transportado com sentimento, mas, ao mesmo tempo, com arte. Os Homens do Andor dançam com a Mãe Soberana

sobre os ombros, ao som das marchas processionais executadas no momento. Têm uma farda de trabalho específica. Conservam um léxico, somente, por eles falado; composto por mais de meia

centena de palavras e expressões. Têm dois Tochas que os ajudam a orientar a marcha do andor. Em Loulé os Homens do Andor são

figuras públicas. Foram homenageados com a Medalha de Mérito Municipal pela autarquia local. São patronos de uma rua e de uma escultura em ferro. O povo sabe os seus nomes. E tributa-

lhes admiração e respeito. Estas características, eminentemente andaluzas, foram trazidas pela numerosa comunidade de andaluzes

que, durante grande parte do século XIX, emigrou de Villanueva de los Castillejos [província de Huelva] para Loulé. São estes tipismos

que diferenciam esta Festa das restantes procissões nacionais, aproximando-a mais das procissões que se celebram na vizinha Andaluzia. Neste aspecto, Louletanos e andaluzes têm um ponto

em comum: celebram as suas Virgens com salero, mas, ao mesmo tempo, com enorme sentimento. É isto que torna a Festa da Mãe Soberana tão apelativa. Tão singular. Tão única. Tão mágica.

Mas, como se tudo isto fosse pouco, finda a procissão, tem

lugar o ponto alto da Festa: a condução da Imagem, em Marcha Triunfal, à sua ermida. Que dista a 2 kms da cidade e se localiza

em cima de um monte. Ermida que se alcança após se transpor

um ingreme caminho de pedra. Já não se trata de uma procissão.

211

joão Romero Chagas Aleixo

Trata-se de um calvário. Em forma de ladeira. São quase trezentos

metros de comprimento sempre a subir, com uma inclinação média de 15,45%. É preciso vencê-la. É de uma correria que, agora, se

trata. De desafiar as leis da física. Ao mesmo tempo em que se desafia a força humana. Mas, os Homens do Andor, com a ajuda

de outros milhares de filhos de Loulé, que entrelaçados entre si formam uma enorme corrente humana, cumprem, ano após ano, o milagre de subir aquela ladeira com o andor – que pesa cerca

de 300 kgs – sobre os ombros. Na ladeira o quadro é único. Existe

de tudo. Fé. Sentimento. Emoção. Vivas. Gritos. Lágrimas. Lenços brancos esvoaçando ao vento. Força. Dor. Suor. Empurrões. Vivem-

se momentos únicos. Repetidos ano após ano. Ou não fosse esse o Dia Maior dos Louletanos.

Viva a Mãe Soberana!!!

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3

Os Devotos Bêbados da Mãe Soberana (Ou Serão Eles Mais Do Que Eu?)

__________________

À avó Maria Margarida À Senhora Dona Isilda Maria Pinto Serra Guerreiro (minha primeira catequista). À memória de todos os bêbados Mãesoberaneiros.

215

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Para a minha avó Maria Margarida a ida do seu neto para a catequese significava que ele estaria apto para aprender a chamada

«doutrina», por forma a que quando fosse mais crescido se tornasse num rapaz cheio de «preceito» e carregado de «tino»; termos que a avó Margarida empregava sempre com gravidade, orgulho e

regozijo. Também, digam-me lá: qual é a avó que não gosta de ter um neto cheio de «preceito», carregado de «tino» e sabedor de toda a «doutrina» na ponta da língua? Haverá porventura alguma?

Deste modo, durante vários anos, lá me deslocava eu, nas

tardes de todas as quartas-feiras, até à igreja de São Francisco para

ir aprender a «doutrina». Para me doutrinar. O objectivo, esse, era

claro: não me transviar do rebanho do Senhor. E eu confesso-vos: até gostava da função.

Corria o ano de 1987 quando a minha primeira catequista, a

Senhora Dona Isilda Maria Pinto Serra Guerreiro, me ensinou a falar com a Mãe Soberana. Local: coro alto da igreja de São Francisco.

Data: Abril de 1987, uma quarta-feira à tarde; tarde de catequese. Foi Amor à primeira vista. Fiquei enamorado. Até hoje.

Ora, acontece que a minha catequista ensinava-nos que

Maria tinha sido uma mulher sobre a qual tinha recaído um chamamento divino. Não obstante de no seu tempo ter sido uma

pessoa de raízes humildes. Uma mulher do povo. Casada com um carpinteiro. No entanto, tinha gerado e dado à luz o nosso Salvador:

o seu filho Jesus Cristo. Por tal, mereceria de nós, humilíssimos fiéis, o máximo respeito e reverência. E nós assim o fazíamos; caso 216

contrário, o temível fogo do Inferno esperaria, pacientemente, por

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

nós. E qual é a criança que quererá passar a eternidade rodando, em lume brando, como uma espécie de frango num qualquer espeto churrasqueiral?

Deste modo, eu, nas minhas preces, utilizava muito

respeitosamente os seguintes termos verbais: «Fazei-me» ou «Concedei-me»; porém, logo se aproximava um bêbado do andor e se dirigia a ela dizendo-lhe: «Faz-me» ou «Concede-me», num

assomo de intimidade celestial nunca antes experimentado pelos meus inocentes ouvidos. Eu achava tudo aquilo intimidade a mais

com a Virgem. E dava comigo próprio a pensar: seria esta forma de tratamento somente privilégio dos bêbados? Seria caso que só eles é

que detinham o supremo privilégio de tratarem «tu-cá-tu-lá» a nossa mais amada Virgem? De onde vinha tamanha intimidade? Ninguém lhes tinha ensinado a «doutrina»? Não teriam eles frequentado a

catequese? Não teriam eles os tão almejados «preceito» e «tino» tão caros à avó Maria Margarida? Não se importariam eles de ir para o Inferno?

Como se isso não bastasse, eles, os bêbados, não davam

mostras de querer falar com Ele. O assunto era sempre, mas

sempre, com ela. Só com ela. Só ela lhes interessava. Só ela lhes valia

nos momentos de maior aflição. Para mim parecia-me estranho

que eles não pedissem a ela que intercedesse junto do seu Filho Jesus. Todavia, a explicação até parecia simples e lógica. Se, nas

suas ébrias cabeças, ela é que «despachava» então qual seria a

necessidade de invocarem o seu Filho para «despachar»? Não valia a pena. Simplificava-se o pedido. Encurtava-se o caminho do voto.

217

joão Romero Chagas Aleixo

E já estava! Ou, como anos mais tarde nos resumiu, lapidarmente,

Lídia Jorge: «Mãe Soberana, mesmo que não exista Deus, existe tu»1. Era, porventura, assim que muitos deles pensavam. E que, ainda hoje, tantos continuam pensando...

Porém, só passados alguns anos, quando me propus a

estudar cientificamente estas temáticas, é que me apercebi que toda

aquela celestial intimidade não passava da chamada «humanização

do divino» com o objectivo de «o sentir mais próximo e para ele melhor captar a potência da graça». Porque, tal como nos explica

José da Silva Lima, «este conjunto religioso popular, mais imanente,

coloca em evidência o valor do corpo, o valor da sensibilidade, o

valor da materialidade, como lugares de comunicação. Daí que

esta religiosidade apareça, para muitos, como uma forma mais humanizada e corporeizada da religião»2.

Os bêbados estavam, enfim, desculpados; porque, ao trata-

la «por tu», estavam, tão somente, a colocar em prática a chamada

«humanização do divino», para a sentir mais perto e para dela melhor captarem a potência da sua graça. Está explicado?

1 Cf. Lídia JORGE, «Sexto Olhar», in Loulé, 5 Olhares, direcção de Miguel Madeira, Loulé, edição da Câmara Municipal de Loulé, 2002, p. 10.

218

2 Cf. José da Silva LIMA, «Religiosidade Popular», in Dicionário de História Religiosa, 4.º volume, P-V e Apêndices, direcção de Carlos Moreira Azevedo e coord. de Ana Maria Jorge [et alia], Lisboa, Círculo de Leitores, 2001, p. 109.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

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Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

4

«In Vino Veritas» (Ou Por Onde Andam os Bêbados das Novenas da Mãe Soberana?)

__________________

À memória de todos os bêbados Mãesoberaneiros.

221

joão Romero Chagas Aleixo

Em matéria de tradições confesso-me um conservador. É assim que eu me vejo. E os meus amigos confirmam. Sou um tradicionalista.

Gosto das nossas tradições. Do peso da nossa História. Dos nossos rituais. Cumpridos ano após ano. Passados de geração em geração.

Transmitidos, pela força do sangue, de pais para filhos. Conservados pela História. Sou um incurável tradicionalista e ritualista. Por

outro

lado,

sou,

igualmente,

um

incorrigível

Mãesoberaneiro. Devoto, compilador e investigador, desde há muito,

deste secular culto mariano. Acompanho-o, participo, investigo-o e estudo-o há já vários anos. É uma das minhas maiores paixões.

Frequento as Novenas da Mãe Soberana há anos. Desde os

inícios da década de 1990. Gosto de frequentá-las. De sentir o seu ambiente. De prestar culto à nossa Virgem Mãe. De contemplar

a devoção de um povo. Do povo Mãesoberaneiro. De que eu, orgulhosamente, também faço parte.

Anoitece. Vem a noite. As famílias jantam. Os telejornais

terminam. E a Novena tem o seu início. Antecedida cerca de trinta

minutos pela recitação diária do terço. A igreja está composta. Já

não existem lugares vazios. Os bancos lotados estão. Ensaiam-se os últimos acordes. Treinam-se as últimas notas. Voltam-se a acender

os círios. Os devotos esperam. Aproveitam para rezar à Virgem. Fixam-na com o olhar. Deixam-se inebriar pela sua magia e beleza.

Alguns choram. Outros rezam. Outros esperam, tão somente, o começo da função. Isto repete-se. Dia após dia. Nove vezes por ano. Entre a Festa Pequena e a Festa Grande da Mãe Soberana, 222

período no qual a sagrada Imagem deixa a sua bucólica ermida para

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

permanecer mais perto dos seus Filhos, no bulício da vila, agora cidade.

Porém, sendo eu um espectador assíduo das Novenas em

honra de Nossa Senhora da Piedade, tenho comentado, com vários amigos, o desaparecimento de uma tradição Mãesoberaneira. De

todos nós bem conhecida. E que eu, desde há muito, me habituei a observar. Falo-vos dos bêbados das Novenas. Dos bêbados que irrompiam pelas Novenas adentro para irem falar com a Virgem.

Ano após ano. Testemunhei-o vezes sem conta. Para enorme

desassossego e irrequietude dos celebrantes, dos seus auxiliares e da esmagadora maioria dos presentes.

Eu, pelo contrário, gostava. Achava o espectáculo belo e

sugestivo. Um verdadeiro quadro poético. Um poema sublime. Um

homem, um homem como nós, um nosso semelhante, um nosso Irmão, debilitado, subtraído, alquebrado pelo álcool, tolhido pelos sentidos, enchia-se de coragem e ia vê-la. Ou, então, falar com ela. Publicamente. Sem rodeios. À frente de todos. No decorrer

da Assembleia. Por vezes desabafava em voz alta. Contava-lhe os seus problemas. Pedia-lhe ajuda. Questionava-a. E emocionava-se

sempre. Que também é outra forma de oração, de rezar em silêncio.

E eu lá ia atrás: emocionava-me com o sentimento do bêbado. Não tinha outro remédio. Ou não fosse eu, também, de choro fácil. «In Vino Veritas». No vinho está a verdade.

Era um momento, por mim, sempre esperado. Sem dia

nem hora marcados. Podia acontecer. Podia não acontecer. Em comentários tidos com familiares e amigos, cunhei, até, uma frase

223

joão Romero Chagas Aleixo

que ficaria célebre: «Novenas da Mãe Soberana sem bêbados não são a mesma coisa».

A esmagadora maioria desses bêbados não os conhecia.

Decerto não seriam católicos praticantes. Quantas vezes entrariam eles, por ano, numa igreja? Quantas vezes irromperiam eles por uma

eucaristia adentro? A sorte ter-lhe-ias sido madrasta. Levariam,

certamente, uma vida errante. Uma existência triste. Aliviada, ou até mesmo suportada, pela bebida.

Todavia, naquele momento, naquele preciso momento,

abandonavam os cafés e as tabernas e deslocavam-se até à igreja. Nunca percebi muito bem como. O que lhes chamava a atenção? O

afluxo inusitado de fiéis? A transmissão das Novenas para o exterior do templo, por intermédio dos altifalantes colocados na fachada principal da igreja? O insondável poder da Virgem Louletana? O magnetismo da sagrada Imagem? O poder maternal? O amor filial? A solidão? Ou a conjugação de um pouco de cada um destes factores?

Nunca percebi. E, ainda hoje, continuo sem o perceber. É, para mim, um mistério. Um agradável e insondável mistério!

Porém, há mais de dois anos que não vejo nenhum. O

último bêbado que vi numa Novena da Mãe Soberana foi, para meu

desgosto, em 2012. Por onde andarão eles? Terão perdido a Fé? Não a percam. Porque uma Mãe nunca abandona os seus filhos. «In Vino Veritas».

Viva a Mãe Soberana!!!

224

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

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joão Romero Chagas Aleixo

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Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

5

«Ladainha Louletana»

(Ou a Mãe Soberana Cantada Pelo Poeta Leonel Neves)

__________________

O meu Cancioneiro Mãesoberaneiro é composto por largas dezenas de composições literárias escritas em honra de Nossa Senhora da Piedade, Mãe Soberana dos Louletanos. Tenho para todos os gostos:

publicadas, inéditas, repentistas, ou recolhidas através da Tradição Oral. Editadas em vários formatos: livros de autor, antologias

poéticas ou publicadas em compilações de diversos autores. Em diversas formas: computorizadas, dactilografas, manuscritas, etc… Algumas foram-me ofertadas, simpaticamente, por alguns leitores (de Lisboa, de Loulé e de Vilamoura) desta minha coluna, que,

através de correio ou por intermédio de mãos amigas, me fizeram

chegar, até mim, as suas composições poéticas. A todos eles o meu mais profundo agradecimento.

Entre poemas, sonetos, glosas a motes ou quadras soltas,

possuo composições poéticas da autoria de cerca de cinquenta poetas populares. Uns mais conhecidos, outros menos. Porém, tudo a mim me interessa. Tudo leio. Tudo compilo. Tudo arquivo.

Tendo já publicado, nesta minha coluna, a minha composição

227

joão Romero Chagas Aleixo

preferida dedicada a nossa Senhora da Piedade1, hoje, gostaria de convosco partilhar outra de que também gosto muito. E que penso

ter ficado muito bem conseguida. Trata-se da, injustamente não

tão conhecida, Ladainha Louletana, escrita pelo poeta algarvio Carlos Duarte Leonel Neves (Faro, 20/06/1921 – Odiáxere (Lagos), 06/09/1996). O poema foi publicado, em 1968, na obra poética Natural do Algarve 2. E foi dedicado «À memória de António Aleixo», de que Neves era um confesso admirador.

Em oitenta simples e curtos versos, o poeta consegue retratar,

através de uma escrita clara, viva e intensa, a forma pela qual os Louletanos celebram, anualmente, a sua Padroeira. Boa leitura. «Ladainha Louletana»

«À memória de António Aleixo»

«Gente de Loulé alma louletana

hoje mesmo é que é

viva a Mãe Soberana vamos lá embora

gente velha e moça eis Nossa Senhora

esta é que é a Nossa somos bons amigos

1 Cf. ALEIXO, António Fernando [sic.], Uma Linda Quadra Glosada à Nossa Senhora da Piedade de Loulé, impresso sobre papel, 1925.

228

2 Cf. NEVES, Leonel, «Ladainha Louletana», in Natural do Algarve, colecção Poesia e Verdade, [s.l.], Guimarães Editores, 1968, pp. 65-68.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

nossas dores entende-as vê inchar os figos

vê florir amêndoas

mora numa rampa

em nossos restolhos

quando a chuva escampa traz-nos chuva aos olhos veio-nos ver à vila

como que nos fala vamos lá ouvi-La

vamos lá levá-La.

Virgem que pareces mesmo louletana

ouve as nossas preces rica Mãe Soberana

enche as nossas tulhas Virgem por quem és dá linha às agulhas fumo às chaminés

teu altar se enfeite

com flor’s às arrobas dá-nos muito azeite muitas alfarrobas

ouve os padre-nossos pelas almas mortas

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joão Romero Chagas Aleixo

traz-nos águas aos poços dá-nos milho às hortas. Mil foguetes no ar

gente até mais não Ela há-de gostar desta procissão.

Mesmo quem não presta hoje até se dana

que é a Tua festa

Nossa Mãe Soberana alta é a capela

chumbo esse andor Teu mas correr p’ra ela é correr p’ra o céu

rampa que é um perigo grande que só vendo-a dá-nos muito figo

traz-nos muita amêndoa sol que nos abrasa

nosso amor Te aqueça vais p’ra Tua casa

vamos lá depressa

levam-Te os mais fortes 230

moços de Loulé

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

às vezes há mortes salva-nos a fé

fé no ano novo

que hás-de abençoar Mãe olha o Teu povo grita ‘vai ao ar’.

Vai no ar a Santa p’rá Sua capela

tanta gente tanta

vai ao céu com Ela.

Bem contente fiques com o nosso ardor

Mãe não entisiques quem leva o andor dá-lhe força ainda

dá-nos sempre a fé abençoa a linda vila de Loulé

Deusa montanheira Virgem louletana Nossa Padroeira

rica Mãe Soberana».

E para terminar: Viva a Mãe Soberana!!!

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joão Romero Chagas Aleixo

232

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

6

«Os Marrecos» da Mãe Soberana (Ou o Dia Em Que a Mãe Soberana Chegou Um Pouco Atordoada à Sua Ermida)

__________________

À memória de todos os intrépidos Homens do Andor.

Nas vésperas da Festa Pequena em honra de Nossa Senhora

da Piedade, de 1973 – nesse ano a Festa Pequena realizou-se no dia 22 de Abril e a Festa Grande teve lugar no dia 6 de Maio

–, o insólito aconteceu. Conta-se em poucas linhas. Sete dos oito

Homens do Andor, então, em actividade, decidem, nas vésperas das festividades, «entregar a roupa» (expressão utilizada, no léxico

dos Homens do Andor, quando um determinado Homem do Andor decide deixar de transportar o andor. Trata-se de uma expressão

meramente figurativa, visto que não há nenhuma entrega literal

de roupa. A origem desta antiquíssima expressão deve-se ao

facto de antigamente a roupa utilizada pelos Homens do Andor ser propriedade da Igreja. Deste modo, quando um determinado Homem do Andor deixava de desempenhar a sua função, voltava a

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joão Romero Chagas Aleixo

«entregar a roupa», por si utilizada, de novo à Igreja. Porém, a partir de 1977, a Igreja deixou de ser a proprietária da roupa utilizada

pelos Homens do Andor, passando a mesma, a partir dessa data, a

ser propriedade individual de cada um dos homens) ao, então, Cabo do Grupo, o Sr. António dos Santos Simões.

Porque motivo tal aconteceu? Ninguém sabe ao certo.

Alegaram-se cunhas. Teimosias várias. Lutas de poder pelo controlo do andor. Invocaram-se, até, boatos e intrigas. Não foi uma situação

bonita de se ver. Resultado: o Cabo do Grupo ficou sozinho. Sem colegas para «pegar no andor».

Porém, como este sempre foi mais «antes quebrar do que

torcer», rapidamente poria mãos à obra. Não fugindo, enquanto

Cabo do Grupo, às suas responsabilidades. E mostrando, a todos, a têmpera de que era feito. Era neto e sobrinho de antigos Homens

do Andor. Herdara o amor à Nossa Senhora da Piedade por força dos seus antepassados. O Mãesoberanismo corria-lhe no sangue. O

que fez ele então? Convidou um conjunto de novos homens para

substituir aqueles que tinham entregue a roupa. Dos homens convidados todos disseram presente! Afinal, tratava-se de uma honra. De um orgulho. De um privilégio, que, jamais, qualquer bom Louletano poderia recusar.

Acontece, porém, que o Cabo do Grupo não dispôs de muito

tempo para arranjar seis homens da mesma estatura, preparados e

experimentados, para o cumprimento da nobre missão. Seis? Sim, porque,

entretanto, um dos homens que anteriormente decidira «entregar a 234

roupa» reponderou a sua atitude e voltou com a palavra dada atrás.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

«Experimentação do Andor» por parte de uma célebre equipa de Homens do Andor que passaria à História com a denominação dos «Marrecos». Domingo de Ramos – 15 de Abril de 1973 Em cima, da esquerda para a direita: Fernando de Jesus Semião; José Gomes; António dos Santos Simões (António Zorro); Lionildo Gonçalves Lourenço; Feliciano Pires; José Luís da Silva; José Rosa Faísca Guerreiro (Mestre José Rosa) e José de Brito. Em baixo, da esquerda para a direita: Francisco do Vale; Manuel Pereira (Manel Sacristão) e Lúcia Pereira.

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joão Romero Chagas Aleixo

Todavia, após muito custo, lá se conseguiu arranjar os

tão necessários homens. Porém, em virtude de ter sido uma convocatória feita à pressa, por força do pouco tempo então

disponível, os seis homens arranjados além de não possuírem as

estaturas idênticas – alguns deles sendo, manifestamente, mais

baixos do que o necessário –, evidenciavam alguns problemas de coordenação entre si. O que seria expectável.

Quando se tem que fazer alguma mudança, de ano para

ano, na equipa dos Homens do Andor, tenta-se sempre conservar

um determinado núcleo duro. O que, diga-se de passagem, faz todo o sentido. Mudar um homem é normal. Entrarem dois novos

elementos, num mesmo ano, também já têm acontecido. Três,

porém, sendo mais raro, também já se tem verificado. Agora, seis (!!!) novos homens, num só ano, era demais! Não havia memória de uma situação idêntica. Conta quem viu, que, nesse ano, a Mãe Soberana chegou à sua sagrada ermida um pouco atordoada e confusa… Não era caso para menos. Mas o certo é que chegou. E que a missão se cumpriu mais uma vez.

E podia lá algum Louletano deixar passar em branco este

desusado acontecimento? Evidentemente que não. Assim, um

grande Louletano e um dedicado Mãesoberaneiro, o meu amável e queridíssimo amigo Manuel Maria «Carteiro», sempre muito

dado à galhofa, baptizaria os Homens do Andor da Festa Grande

de 1973 com a alcunha de os «Marrecos»; pelo que a Festa Grande de 1973, passaria, para a posterioridade, como sendo a do ano 236

dos «Marrecos». A alcunha rapidamente pegou. E, que se saiba,

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

ninguém terá levado a mal tão certeiro baptismo. Tratava-se de um

brincadeira entre amigos. Eram todos filhos da mesma Mãe: a nossa Mãe Soberana!

Para a História aqui ficam, por ordem alfabética, os nomes

dos oito famosos «Marrecos da Mãe Soberana»: António dos Santos Simões, mais conhecido por António «Zorro» (já «pegava no andor»

desde a Festa do dia 22 de Abril de 1962), Feliciano Pires, Fernando

de Jesus Semião, José de Brito, José Gomes, José Luís da Silva, José Rosa Faísca Guerreiro e, por último, Lionildo Gonçalves Lourenço (já «pegava no andor» desde a Festa do dia 6 de Abril de 1969). Viva aos Homens do Andor! Viva a Mãe Soberana!

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joão Romero Chagas Aleixo

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Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

7

O «Eterno Menino Grande de Loulé» e a «Experimentação» do Andor Há alguns meses atrás, um estimado amigo e meu leitor desde a primeira hora encontrou-me na rua, saudou-me e disparou: «João:

tu és o cronista oficial de Loulé». Então, para comigo, pensei: já me chamaram muitas coisas, mas isso nunca ninguém me tinha

chamado. Confesso-vos que o repentino epíteto me deixou orgulhoso e levemente vaidoso. Porém, de pronto, respondi-lhe: troquei o

«oficial» por «oficioso» e, imodestamente, ainda lhe acrescentei dois adjectivos: «nostálgico e sentimental». Isso mesmo. Nem mais,

nem menos: «cronista oficioso, nostálgico e sentimental da nossa sempre querida e amada Loulé», retorqui-lhe eu pomposamente. E ele, sem hesitações, concordou. Disse-me que assim ficava melhor.

Que, segundo a sua opinião, correspondia mais adequadamente à realidade. Voltei a ficar contente. Agradeci-lhe. Despedi-me do meu amigo. E cada um de nós foi às suas vidas.

Sendo assim, e investido dessa qualidade, vou proceder a

um (re)baptismo. Publicamente. Desta forma, enquanto «cronista

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joão Romero Chagas Aleixo

oficioso, nostálgico e sentimental da nossa sempre querida e amada Loulé», rebaptizo o nosso querido Manuel Tereza, ou «Manel da

Baracinha» ou «Manel Parvo» de «eterno Menino Grande de Loulé»! E nem foi preciso água benta...

A «Experimentação do andor» de Nossa Senhora da Piedade,

ou, simplesmente, a «Experimentação» como é comummente denominada, é a cerimónia que inaugura, anualmente, as Festas da

Mãe Soberana. Perdeu-se na memória o primeiro ano em que se realizou este ritual semi-privado. Talvez, ainda, remonte ao século

XIX. Realiza-se todos os anos, na manhã do Domingo de Ramos, no adro da ermida de Nossa Senhora da Piedade, no cimo do Monte da Piedade.

Além de se tratar do ritual iniciático Mãesoberaneiro, adquire

uma importância fundamental para que as Festas decorram da

melhor maneira. É lá que todos os novos Homens do Andor têm o seu primeiro contacto com o emblemático andor. Que experimentam,

pela primeira vez, o seu peso. Que sentem a futura responsabilidade que lhes será imputada. Por outro lado, a «Experimentação» serve, igualmente, para realizar as seguintes operações técnicas: a) ajustar as posições do andor;

b) fixar os lugares de cada homem debaixo do andor;

c) descer, manter ou subir as «cantoneiras», os «meios» e as

«palhetas»;

d) pregar as almofadas nos «varais» e nas «palhetas»; e) verificar a estabilidade do andor em andamento;

240

f) e, por último, treinar um pouco o passo do andor.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Porém, serve, igualmente, para realizar mais um alegre

convívio. Para cimentar o espírito do grupo. Para relembrar histórias passadas.

Antigamente, esse salutar convívio, realizava-se lá em cima.

Ou na casa da ermitoa, a popular D. Maria, ou no adro da ermida. Os

tempos e a sociedade ocidental, entretanto, mudaram. E o local do

convívio também. Actualmente, realiza-se num restaurante na zona de Loulé.

Manuel Tereza (1918-1998), popular e carinhosamente

alcunhado de Manel da Baracinha, era um homem bom. Infantil.

Ingénuo. Bondoso. E generoso. Amigo do seu amigo. Dono de um inesquecível olhar de criança e de um, não menos famoso,

sorriso de gaiato. Excelente sineiro. E, sempre, disposto a ajudar. «Experimentação» do andor sem o Manel não era a mesma coisa. E ele, raramente, faltava à função. O Manel era o encarregado do

transporte do vinho e da comida para o repasto. Fazia-o por gosto. Por amizade. E para se sentir útil. E os Homens do Andor por isso lhe agradeciam. E lhe tributavam uma amizade recíproca.

Acrescente-se que o vinho e a comida eram, e assim foram

durante muitos anos, uma generosa oferta de um enormíssimo

e dedicado Mãesoberaneiro. Falo-vos do popular Francisco José Viegas Prado (1925-1975), proprietário do popular restaurante Flor da Praça.

Passemos, então, à primeira estória.

Num certo ano o nosso «eterno Menino Grande de Loulé»

abalou da vila carregado com dois garrafões de bom vinho tinto.

241

joão Romero Chagas Aleixo

Manel da Baracinha à porta da Igreja de São Francisco Loulé, década de 1980

242

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Vinho novo; vinho bom. Objectivo: regar, da melhor maneira possível, o convívio.

Os Homens do Andor depois de concluída a «Experimentação»

dirigem-se para a casa da ermitoa. O Sol estava alto, radioso e

quente. A fome apertava. As gargantas secas estavam. Chegados à casa da ermitoa dão-se conta que o Manel ainda não tinha

chegado. Estranharam. O nosso Manel era homem de palavra e de

compromissos. Entre si interrogaram-se: por onde andaria o Manel? Pensaram: teria ele parado em qualquer sombra pelo caminho para descansar?; ter-se-ia quedado para fazer a sua baracinha,

esquecendo-se das horas?; ter-se-ia deixado dormir? Tudo não passavam de meras hipóteses; inquietaram-se.

O tempo, entretanto, passava. E da ermida ninguém conseguia

vislumbrar a silhueta do Manel. Resolveram investigar. Preparam-

se para descer a ladeira, para saber notícias do Manel. Passados

poucos instantes, por alturas da Cruz Grande, dão-se de caras com um cenário nunca antes visto. Nem queriam acreditar. Então não é

que o bom do Manel estava à torreira do Sol, descomposto, relaxado e dormindo de perna aberta? A seu lado os dois garrafões de vinho.

Alegraram-se: tinham descoberto o Manel e o vinho! Porém, assim que o vão acordar, reparam que o Manel estava completamente alcoolizado. Bebera que se fartara. Pegaram nos dois garrafões de vinho para os trazerem para cima. Só que da vila tinham saído cheios e, agora, um deles já se encontrava quase vazio. Concluíram: o dia

estava quente e o Manel tinha parado para se refrescar um pouco. E

como tinha vinho à mão, foi bebendo, bebendo e bebendo… até que

243

joão Romero Chagas Aleixo

quase vazou, sozinho, um garrafão de vinho! Resultado final: um

garrafão cheio, um outro meio vazio e uma monumental bebedeira do Manel. Era assim o nosso «eterno Menino Grande de Loulé»!

Num outro ano, numa outra «Experimentação» do andor,

o Manel ficou encarregado de levar para a casa da ermitoa a

comida. Ao todo: vinte e quatro sandes. Que se transportavam no interior de um saco de plástico. O Manel lá saiu, mais uma vez, da vila, transportando o saco que continha as sandes no seu interior.

Chegado à casa da ermitoa, cansado, só pensa em descansar.

Pousa o saco no poial, junto à pia, que se encontrava de fronte para a porta principal da casa da ermitoa. E descansa. Inicia-se a

«Experimentação» e o Manel interrompe o seu descanso. É altura de ajudar os seus amigos. Porque numa «Experimentação» há sempre

coisas a fazer. Terminada a função, é hora de enganar a fome. Os Homens do Andor encaminham-se, todos, para a casa da ermitoa. Lá

chegados, não querem mais uma vez acreditar no que os seus olhos vislumbram. O Manel tinha deixado junto à pia o saco contendo as sandes. Pormenor: o saco não ficara fechado. Resultado: as galinhas da D. Maria tinham-se encarregado de almoçar algumas sandes. E as

que não tiveram tempo para comer fizeram o favor de as esburacar

por completo. Mais uma vez ninguém queria acreditar no sucedido. Tinham acabado de ficar sem o almoço. Então, os seus olhares viraram-se todos para o Manel. Em sinal de dura recriminação pelo

seu enorme desleixo e falta de competência «profissional». Sabem,

pois, qual foi a resposta do «eterno Menino Grande de Loulé»? Então 244

não é que o bom do nosso Manel lhes retribuiu os seus olhares

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

censórios da maneira que só ele sabia: rindo-se da caricata situação

que acabara de protagonizar. Com o seu eterno sorriso de criança, que lhe enchia a cara, ao mesmo tempo que nos amolecia o coração

e que nos desarmava por completo. Mas quem é que tinha coragem para se zangar com o «eterno Menino Grande de Loulé»?

Conclusão: os Homens do Andor tinham acabado de ficar

sem o seu almoço. Porém, a companhia, a amizade, a bondade e

a generosidade do Manel, essas, nunca se perderam. Era assim o nosso «eterno Menino Grande de Loulé»!!! Viva a Mãe Soberana!!!

245

joão Romero Chagas Aleixo

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Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

8

A Felliniana Maria das Bananas e a Mãe Soberana Para uns: grotesca. Para outros: excêntrica. Para outros: ridícula. Para muitos: engraçada e divertida. Para outros tantos: rude e provocatória. Mas, para todos: louca, peculiarmente louca. A ela

quase tudo lhe era permitido. Era assim a nossa Maria das Bananas. Para mim ela era, simplesmente, uma personagem felliniana. E,

através deste adjectivo – que, por enquanto, ainda não se encontra consagrado nos Dicionários Oficiais de Língua Portuguesa –, eu

penso resumir tudo. Porventura perguntar-me-ão Vossas pias Excelências: «Óh João, mas o que vem a ser isso de uma personagem

felliniana?» Eu respondo. Quando oiço as suas inúmeras estórias, ou quando olho para as suas fotografias, a primeira imagem que me vêm à cabeça é o meu imaginário felliniano. Porque, tal como o Mestre Federico Fellini (1920 - 1993) sentia, eu também sinto

um fatal fascínio pelo ridículo, pelo grotesco, pelo excêntrico e pelo

provocatório. E por tudo o que é piroso também. Enfim, por um certo tipo de loucura, digamos que, salutar. São gostos, como quaisquer

outros. Não me levarão, decerto, a mal. A este propósito oiçamos, na primeira pessoa, as justificações do Mestre Federico Fellini: «Os

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joão Romero Chagas Aleixo

loucos sentem-se atraídos de forma irresistível por mim. É assim. Encontro-os em todos os lugares. Sentem logo grande simpatia por mim. E devo dizer que comigo se passa o mesmo»1.

«Quando introduzo personagens um pouco estranhas nos

meus filmes, as pessoas dizem que exagero, que faço fellinadas. Mas é precisamente o contrário: em comparação com o que me está a

acontecer, tenho a sensação de estar a atenuar as coisas, de estar a moderar singularmente a realidade».

«O que me atrai nos loucos é o seu desapego de qualquer

vínculo, essa distância que estabelecem deles para as coisas»2. Faço

minhas as palavras do Mestre.

Deste modo, para mim, quase tudo na Maria era felliniano:

o lendário bigode, as patilhas, a barba – uma mulher com pêlo na

venta, literalmente – , os pelos nas axilas, a grossa voz, as saias

rodadas, a forte tonalidade das suas vestes, a forma desengonçada do seu caminhar, a pose, constantemente, desafiadora, a língua

sempre afiada, o espírito satírico, enfim, a sua peculiaríssima loucura. Por tudo isso. E por tudo isso a Maria das Bananas exercia em mim um mágico fascínio! E que fascínio!!!

Assim, não tenho dúvidas ao afirmar que se o Mestre Federico

Fellini tivesse, um dia, oportunidade de ter passado, numa das suas viagens, por Loulé, e tivesse visto a nossa Maria das Bananas tinha-a

1 Cf. Federico FELLINI, Fellini conta Fellini, Amadora, Livraria Bertrand, 1982 [1974], p. 64.

248



2

Cf. ibidem.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

convidado para fazer parte de uma das suas vinte e quatro obras

primas. A Maria das Bananaspodia ter, perfeitamente, figurado n‘

A Estrada (1954), ao lado da Gelsomina (Giulietta Masina) ou do Zampanò (Anthony Quinn). Ou no Amarcord (1973), ao lado da

sensual e provocante Gradisca (Magali Noël). Mas também podia

ter figurado no elenco d’ A Cidade das Mulheres (1980), ao lado do Marcello Mastroianni. E em mais outros filmes do Mestre de Rimini.

Não foi o caso. Assim sendo, as estórias protagonizadas pela nossa Maria das Bananas ficaram, somente, pertença do património imaterial dos Louletanos.

As suas estórias, quando contadas, tiveram o condão de fazer

corar até o Louletano mais circunspecto. Suas estórias e episódios fizeram, e ainda fazem, rir o mais sisudo dos Louletanos. Foi actriz ou protagonista de inúmeras horas de conversa entre Louletanos,

que comentaram, riram, caricaturaram os seus comportamentos e atitudes mais excêntricas.

Meã de estatura, era detentora de uma face redonda,

composta por duas belas e rosadas bochechas, nariz pequeno e

abatatado, braços carnudos, decote de soprano, grossas mãos, roliças coxas, pernas musculadas e, tudo isto, encimado por um

moreno cabelo; toda a sua fisionomia fazia pressupor uma vida

cheia de um intenso trabalho manual. Dizem os especialistas, nestas coisas da morfologia humana, que os seus elevados níveis capilares, chegando, nos últimos anos de vida, a evidenciar bigode,

patilhas, barba e pêra, aliado à capacidade única de produzir, na

perfeição, uma voz masculina, faziam indiciar elevadíssimos níveis

249

joão Romero Chagas Aleixo

de testerona para uma mulher. E, desse facto, não restam dúvidas.

A Maria das Bananas conseguia produzir, fielmente, um tom de voz masculino, quanto um tom de voz feminino. Era uma das suas várias

características. Era, enfim, uma coleccionadora de peculiaridades físicas, mas, também, de incontáveis excentricidades.

Caso eu tivesse vindo ao mundo nos anos Setenta, em vez de

ter vindo nos anos Oitenta, teríamos, decerto, sido uns bons amigos. Tinha tudo para que eu gostasse dela. Porém, infortunadamente,

nunca com ela falei. Infelizmente. O destino assim o quis. Na sua

época eu era novo de mais. Fiquei, decerto, mais pobre. E a Maria perdeu um amigo para toda a vida. Como escreveu Vinicius de

Moraes (1913 – 1980): «A vida é a arte do encontro / Embora

haja tanto desencontro pela vida»3. E foi esse desencontro que aconteceu entre mim e a Maria. Confesso-vos que tenho alguma pena. Paciência.

Diz quem a conheceu que a Maria das Bananas nascera

normal. Era uma pessoa igual às outras. Vendia bananas na Praça

de Loulé; e, por esse facto, Maria das Bananas ficou. Baptismo esse, por todos, rapidamente, assimilado. Parece, porém, que apanhou uma doença, provavelmente sífilis, que lhe terá afectado algumas das suas capacidades cognitivas, neurológicas e intelectuais. E a

Maria ficou um pouco afectada. Começou, então, a «não vestir a

roupinha toda», para utilizar uma expressão cara a um bom Amigo meu. E, a partir desse momento, começaria a sua lendária história, 250



3

Cf. Samba da Bênção, de Vinicius de Moraes.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

composta por míticos e infindáveis episódios.

Militante confessa do Partido Comunista Português, era

frequente sair à rua com uma saia vermelha forrada com várias

foices e martelos, o símbolo do seu partido político de sempre. E era, igualmente, frequente andar acompanhada de um retrato,

emoldurado, do Dr. Álvaro Cunhal, histórico secretário-geral do seu P.C.P.

A Maria estava sempre chateada com o Mundo e com as

pessoas que nele habitavam. Assim sendo, a rabugice era outra das

suas reconhecidas características. Por isso era frequente proferir algumas ofensas, em alta voz, aos transeuntes que com ela se cruzavam. As mais frequentes eram: «fascista», «chulo», «vai à

merda», entre outros carinhosos miminhos. Era uma descontente nata. A insatisfação e o aborrecimento eram duas características nela, sempre, presentes. Todos os dias, a todas as horas.

Mas porque é que todos nós gostávamos dela? Porque ela

era única, excêntrica e ousada. Porque ela, ao contrário da maioria

de nós, não tinha medo do ridículo. Por isso nós invejávamo-la.

Porque não havia nenhum formalismo ou grilhão que a prendesse. Por isso nós invejávamo-la. E, principalmente, porque ela era um

ser imensamente livre, como nós um dia gostaríamos de o ser. E por isso nós invejávamo-la.

Um episódio que deu muito que falar aconteceu no decorrer

de uma Festa Grande em honra da Nossa Senhora da Piedade, Mãe

Soberana dos Louletanos. Nesse dia de Festa para todos os filhos de Loulé, a nossa personagem tinha acordado mal disposta. E,

251

joão Romero Chagas Aleixo

assim sendo, nesse Dia Maior para os Louletanos, nem a nossa Mãe

Soberana escapou aos seus vitupérios. Jamais se tinha assistido a um espectáculo semelhante. Era comum a Maria insultar os Presidentes da Câmara que a tentavam internar para tratamento. Era habitual a Maria insultar os psiquiatras que a tratavam. Os

enfermeiros que a acalmavam. As pessoas que com ela se cruzavam. Mas vituperar a Mãe Soberana era demais! Era inadmissível! Era a alma do povo Louletano que ia dentro daquele andor, como bem

versejou o Poeta Aleixo em 1925. Os Louletanos não podiam tolerar

tamanha falta de respeito. A Maria tinha ultrapassado todos os limites aceitáveis. Tinha ido longe demais. Tratava-se de uma grave

heresia, que, jamais, os filhos de Loulé poderiam deixar passar em

vão. A ousadia chegara a uma tal proporção que a Guarda Nacional Republicana se viu forçada a intervir. Então, a Maria das Bananas foi «convidada» a se deslocar à esquadra da G.N.R., por forma a que aquele degradante espectáculo chegasse ao fim.

Reza a história que durante as duas ou três Festas Grandes

seguintes, e por uma questão de precaução, a nossa Maria das Bananas era, simpaticamente, recolhida; e convidada a permanecer durante a tarde da procissão na esquadra da G.N.R. Diz o ditado que é melhor prevenir que remediar...

Porém, mais tarde ou mais cedo, chegaria o ano em que a

Maria das Bananas poderia voltar a assistir à solene procissão. Alguns espíritos mais inquietos temeram o pior. Outros aguardavam

com grande expectativa e curiosidade pela sua presença, de novo, na 252

procissão. Chegara, finalmente, o grande dia. A Maria das Bananas

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

voltaria a poder ver a procissão em honra da Mãe Soberana. E sabem

como é que ela (re)apareceu na Festa? Apareceu magnificamente vestida e com uma fita adesiva tapando-lhe, por completo, a boca.

Gesto esse que repetiria nas Festas seguintes. Tinha apreendido a

lição. E, assim, num gesto de grande inteligência e revelando um

saudável e muito bem-disposto sentido de humor e de auto-crítica, a nossa Maria das Bananas resolveu glosar com o incidente que

em tempos tinha, insolitamente, protagonizado. Estava, enfim, desculpada? Penso que sim! Digo eu.

253

joão Romero Chagas Aleixo

254

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Fontes e Bibliografia Fontes manuscritas Arquivo Histórico da Diocese do Algarve Chancelaria, Clero, Livro 356, fl. 44.

Arquivo Distrital de Faro TJCLLE, caixa n.º 903, maço n.º 38, processo n.º 25, ano: 1913, autor do processo: Ministério Publico, reu: José Augusto, fls. 3 e 3 v.º. Arquivo Municipal de Loulé

Fundo do Administrador do Concelho de Loulé Auto de Entrega dos bens afectos à paróquia de São Sebastião à Corporação Fabriqueira Paroquial de São Sebastião de Loulé, PT/AMLLE/AL/ACLLE/C/G/001/cd 004 (1910).

Copiadores da Correspondência Expedida pela Administração do Concelho, ofício expedido no dia 2 de Abril de 1913, PT/ AMLLE/AL/ACLLE/B/A/02/Lv. 044. Copiadores da Correspondência Expedida pela Administração do Concelho, ofício expedido no dia 3 de Abril de 1913, PT/ AMLLE/AL/ACLLE/B/A/02/Lv. 044. Fundo da Câmara Municipal de Loulé

Correspondência Recebida na Câmara Municipal de Loulé, ofício enviado pelo administrador do concelho com a data de 6 de Março de 1913, PT/AMLLE/AL/CMLLE/C/A/03 Mç. 092.

255

joão Romero Chagas Aleixo

Livros de Actas de Vereações, 1604-1606, fl. 97 (acta de vereação da sessão ordinária da Câmara Municipal de Loulé, do dia 30 de Março de 1605), PT/AMLLE/E/AL/CMLLE/B/A/01/Lv. 056. Livro de Actas das Sessões de Vereação de 1834-1837, fl. 46 v.º. e fl. 47 (acta de vereação da sessão ordinária da Câmara Municipal de Loulé, do dia 31 de Janeiro de 1835), PT/AMLLE/AL/ CMLLE/B/A/01/Lv. 125.

Livro das Actas das Sessões da Câmara Municipal de Loulé, de 18891893, fl. 168-168 v.º (acta de vereação da sessão ordinária da Câmara Municipal de Loulé, do dia 15 de Abril de 1893), PT/AMLLE/AL/CMLLE/B/A/01/Lv. 139.

Livro de Actas das Sessões Ordinárias da Câmara Municipal de Loulé, de 1889 a 1893, fls. 196 v.º-197 (acta de vereação da sessão ordinária da Câmara Municipal de Loulé, do dia 28 de Junho de 1893), PT/AMLLE/AL/CMLLE/B/A/01/Lv. 139.

Livro de Actas das Sessões Ordinárias da Câmara Municipal de Loulé, de 1920, (acta de vereação da sessão ordinária da Câmara Municipal de Loulé, de 15 de Dezembro de 1920), PT/AMLLE/AL/CMLLE/B/A/01/Lv. 144. Fundo da Confraria de Nossa Senhora da Piedade

Livro da Receita e Despesa da Confraria de Nossa Senhora da Piedade (1751-1786), fl. 27 vº e fl.44, PT/AMLLE/CIMIS/CSPLLE/A/01/Lv. 001.

Fundo da Mordomia de Nossa Senhora da Piedade

256

Livro de Contas da Mordomia de Nossa Senhora da Piedade, 18661909, PT/AMLLE/CIMIS/MSPLLE/A/02/Lv. 003.

Mãe Soberana Estudos. Ensaios. Crónicas.

Fundo da Sociedade Filarmónica Artistas de Minerva Livro de Contas dos Filarmónicos da Sociedade Filarmónica Artistas de Minerva, 1933-1961, PT/AMLLE/ASS/SFAM/E/04/Lv. 001.

Livro das Festas e Nômes dos Musicos, que tomaram parte, com respectivas importâncias, 1966- 1971), PT/AMLLE/ASS/SFAM/E/04/Lv. 002. Arquivo Distrital de Faro Fundo da Paróquia de São Clemante (Loulé)

Livros de Registo de Baptismos da Paróquia de São Clemente (Loulé), 1851-1905. Fundo da Paróquia de São Sebastião (Loulé) Livros de Registo de Baptismos da Paróquia de São Sebastião (Loulé), 1891-1905.

Fontes publicadas MARTINS Luísa Fernanda Guerreiro e CABANITA, Padre João Coelho, «Visitação das Igrejas dos Concelhos de Faro, Loulé e Aljezur pertencentes à Ordem de Sant’Iago, 1565», in al’ulyã, Revista do Arquivo Histórico Municipal de Loulé, n.º 8, Loulé, edição do Arquivo Municipal de Loulé, 2001/2002, pp. 183-282.

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MONFORTE, Frei Manuel, Chronica da Provincia da Piedade, primeira Capucha de toda a Ordem, & Regular Observancia de nosso Seraphico Padre S. Francisco, dedicada ao Serenissimo Senhor Dom Joam, Principe de Portugal, e Duque da Real Casa de Bragança, composta por Frey Manoel de Monforte, Prègador, filho da mesma Provincia, segunda impressão, Lisboa, na Officina de Miguel Manescal da Costa, Impressor do Santo Officio, Livro III, capítulo XXIII, 1751 [1696], pp. 348-352.

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ALEIXO, João Romero Chagas, «Dicionário Mãesoberaneiro. O Léxico Utilizado Pelos Homens do Andor (1.ª parte)», in A Voz de Loulé, n.º 1.710, de 17 de Março de 2011.

ALEIXO, João Romero Chagas, «Dicionário Mãesoberaneiro. O Léxico Utilizado Pelos Homens do Andor (2.ª parte)», in A Voz de Loulé, n.º 1.711, de 1 de Abril de 2011.

ALEIXO, João Romero Chagas, «Dicionário Mãesoberaneiro. O Léxico Utilizado Pelos Homens do Andor (3.ª parte)», in A Voz de Loulé, n.º 1.712, de 15 de Abril de 2011. ALEIXO, João Romero Chagas, «Dicionário Mãesoberaneiro. O Léxico Utilizado Pelos Homens do Andor (4.ª parte)», in A Voz de Loulé, n.º 1.713, de 1 de Maio de 2011.

ALEIXO, João Romero Chagas, «Dicionário Mãesoberaneiro. O Léxico Utilizado Pelos Homens do Andor (5.ª parte)», in A Voz de Loulé, n.º 1.714, de 13 de Maio de 2011 (5.ª parte).

ALEIXO, João Romero Chagas, «Uma Festa Invulgar…», in revista Itinerante (Por Trilhos de Santuários de Portugal), n.º 7, de Junho de 2012, Lisboa, Itinerante, Divulgação Histórica e Cultural, crl., 2012, p. 38.

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ALEIXO, João Romero Chagas, «A Mãe Soberana na Literatura Popular (1.ª parte)», in A Voz de Loulé, n.º 1.806, de 30 de Janeiro de 2015, p. 6. ALEIXO, João Romero Chagas, «A Mãe Soberana na Literatura Popular (2.ª parte)» in A Voz de Loulé, n.º 1.807, de 13 de Fevereiro de 2015.

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ALEIXO, João Romero Chagas, 2015c, «’In Vino Veritas’ (Ou Por Onde Andam os Bêbados das Novenas da Mãe Soberana?)», in A Voz de Loulé, edição n.º 1.811, de 10 de Abril de 2015, p. 7.

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Como é que surgiu este culto? Como é que o mesmo se cimentou ao longo dos séculos? Como é que cresceu? Como é que a enorme popularidade da Imagem foi aproveitada para fins políticos, como aconteceu, por exemplo, na «Monarquia Constitucional» (1893) ou ao longo da chamada «República Velha» (1911-1917)? Como e quando é que surgiram os Homens do Andor? Aonde é que eles eram selecionados? Quais os termos técnicos ou expressões que, ainda hoje, compõem o seu léxico próprio? De que forma a Mãe Soberana dos Louletanos se encontra fixada na chamada Literatura Popular?

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