A Racionalidade Científica e a Filosofia Segunda de Penelope Maddy

June 24, 2017 | Autor: C. dos Santos | Categoría: Epistemologia, Filosofia da Ciência
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Logic, Language

CDD: 149.7

A RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FILOSOFIA SEGUNDA DE PENÉLOPE MADDY CÉSAR FREDERICO DOS SANTOS Programa de Pós-Graduação em Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC Florianópolis, SC, Brasil [email protected]

Resumo: A filosofia segunda de Penelope Maddy parece ir de encontro aos avanços em

filosofia da ciência que sucederam a obra de Thomas Kuhn ao defender que não cabe à filosofia criticar a atividade científica a partir de um ponto de vista filosófico. Neste artigo pretendemos mostrar que tal oposição aparente não se sustenta, e que há uma forte semelhança entre esses dois programas filosóficos notadamente no que se refere à concepção de racionalidade científica. Palavras-chave: filosofia segunda, Penelope Maddy, racionalidade científica. Abstract: Penelope Maddy’s second philosophy seems to be contrary to the

developments carried out by the new philosophy of science after Thomas Kuhn’s works. She defends that philosophy can’t criticize science from a first philosophical point of view. In this paper we aim to show that there isn’t such disagreement, quite the contrary, there is a striking similarity between the two philosophical programs, mainly concerning the conception of scientific rationality. Keywords: second philosophy, Penelope Maddy, scientific rationality.

1. INTRODUÇÃO A concepção tradicional de racionalidade científica está intimamente relacionada à ideia de método científico. A boa prática científica, de acordo com essa concepção, é aquela que segue estritamente o método científico, e segui-lo garante racionalidade, Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 2, pp. 327-351, jul.-dez. 2011.

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objetividade e imparcialidade, características reconhecidas por todos como essenciais da prática científica. Essa concepção foi dominante até a primeira metade do século XX, cabendo destacar entre seus principais representantes os positivistas lógicos e Karl Popper. Foi a partir da publicação de A Estrutura das Revoluções Científicas por Thomas Kuhn, em 1962, que a concepção tradicional de ciência em geral, e da racionalidade científica em particular, começou a ser abalada. Como é sabido, a filosofia da ciência desenvolvida desde então tem mostrado que a ciência está longe de ser aquela atividade idealizada pela filosofia da ciência tradicional. Os filósofos dessa nova filosofia da ciência voltaram sua atenção mais para a ciência tal como ela é praticada de fato pelos cientistas, concedendo maior importância à história da ciência, e menor para uma tentativa de normatizar a atividade científica a partir de concepções filosóficas pré-estabelecidas. Nesse exame mais detido da prática científica real, descobriu-se que é problemática a defesa da prevalência de um método científico único – os métodos empregados por uma ciência baseada principalmente em experimentos conduzidos em laboratório, como a química, são bastante diversos daqueles empregados por uma ciência que não pode conduzir experimentos e dispõe apenas da observação, como a astronomia1 – e que, além dos métodos, há muitos outros fatores que interferem na prática científica, sendo até essenciais para seu sucesso, tais como valores sociais2, experiência pessoal do cientista3 e juízos não metódicos4. A ciência, sustenta a filosofia da ciência pós-Kuhn, sob Para uma discussão sobre a diversidade de métodos científicos veja BAUER 1994. 2 Para uma discussão sobre o papel dos valores na ciência, veja LONGINO 1991. 3 Para uma discussão sobre a influência das habilidades pessoais do cientista na atividade científica, veja POLANYI (1985). 4 Para uma discussão do juízo pessoal e não guiado por regras veja SANKEY 1994. 1

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muitos aspectos não difere das demais atividades humanas, estando sujeita às mesmas influências que elas e até mesmo empregando expedientes como a retórica, característico de uma atividade não científica por excelência, a política5. Tudo isso, à primeira vista e de acordo com a concepção tradicional de ciência, ameaçaria a racionalidade, a objetividade e a imparcialidade da ciência. Se for assim, concluem alguns, corremos o risco de não conceder à atividade científica nenhum privilégio epistemológico especial, situando-a em pé de igualdade com outras atividades humanas que também se propõem a fornecer explicações sobre o mundo, tais como religiões, astrologia e criacionismo. Para quem toma esse perfil da ciência traçado pela nova filosofia da ciência como ameaçador da racionalidade científica, pode parecer impróprio defender a proeminência da ciência em questões de explicação dos fenômenos do mundo e, mais impróprio ainda, propor a subordinação da filosofia à ciência. “Ora, sendo a ciência como é, uma atividade humana como qualquer outra” – podem pensar – “não há porque conceder-lhe a palavra final na explicação de como o mundo é, e muito menos conceder-lhe a palavra final em questões filosóficas, ainda mais levando em conta que foram investigações filosóficas que revelaram as fragilidades da ciência”. Nos tempos do Positivismo Lógico, em que não havia dúvida sobre o papel proeminente da ciência em matéria de conhecimento, subordinar a filosofia à ciência poderia parecer algo proveitoso. Porém, nem os positivistas lógicos, nem Popper, chegaram tão longe. Pelo contrário, era justamente por a ciência estar subordinada a cânones racionais estabelecidos filosoficamente que, a seu ver, estava assegurada a capacidade cognitiva superior da ciência.

Para uma discussão sobre o papel da retórica na atividade científica veja PERA 1988. 5

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Defender a proeminência da ciência em questões de explicação dos fenômenos do mundo e subordinar a filosofia à ciência é justamente o que intenta Penelope Maddy com seu naturalismo, autodenominado filosofia segunda. Embora a filosofia da ciência pósKuhn e a filosofia segunda de Maddy pareçam apontar em direções divergentes – ao passo que a primeira nos adverte sobre as fragilidades da ciência, a segunda nos recomenda forte adesão à ciência – nosso objetivo neste artigo é desfazer essa aparência, mostrando que há pelo menos um ponto de ligação importante entre esses dois programas filosóficos: ambos rejeitam a concepção tradicional de racionalidade científica e ambos concordam nos termos em que se deve formular uma nova concepção de racionalidade. Para tal, começamos por apresentar uma caracterização sucinta do pensamento naturalista de Maddy, para em seguida examinar como a filosofia segunda se posiciona com relação à concepção tradicional de racionalidade científica e à nova concepção que emergiu da filosofia da ciência da linha de Kuhn6. 2. O MÉTODO NATURALISTA DA FILOSOFIA SEGUNDA O naturalismo de Penelope Maddy é grandemente inspirado no naturalismo de Quine, mas com diferenças importantes. Daí que, para evitar confusão com outros posicionamentos naturalistas (MADDY 2007, Introdução, p. 1), e também para se opor à ‘filosofia primeira’, o Estamos empregando o termo “nova filosofia da ciência” e também “filosofia da ciência pós-Kuhn” no sentido empregado por BROWN, 1977. Não queremos insinuar que existe uma unidade de pensamento entre os autores que pretendemos abarcar por essa denominação, dentre os quais se incluem os já citados Bauer, Longino, Sankey, Pera e Polanyi. Queremos apenas ressaltar características comuns do pensamento desses autores, características essas difundidas na filosofia da ciência pelo trabalho de Kuhn, tais como a importância que dedicam ao exame da história da ciência e a concepção mais alargada de racionalidade científica. 6

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tipo de filosofia que ela não julga interessante desenvolver (MADDY 2011, p. 40), Maddy chama seu naturalismo de filosofia segunda. Filosofia primeira, no entender de Maddy, é aquela concebida antes de qualquer evidência científica ou depois de toda evidência científica, de forma independente da ciência (MADDY 2011, p. 40). Um exemplo, citado por Maddy, de filosofia primeira desenvolvida antes de qualquer evidência científica é a filosofia de Descartes nas Meditações Metafísicas. O ceticismo metodológico empregado por Descartes busca remover as falsas crenças, de acordo com Descartes, da escolástica e da física aristotélica, e lançar bases sólidas sobre as quais edificaria uma nova ciência, a física cartesiana (MADDY 2007, p. 17). Outro exemplo de filosofia primeira anterior a qualquer evidência científica que podemos citar é a filosofia da ciência de Popper em A lógica da pesquisa científica. Popper estabelece a falseabilidade como critério de demarcação entre ciência e não-ciência de modo a priori com relação à ciência, usando apenas razões lógicas e filosóficas. Como exemplo de filosofia primeira posterior a toda evidência científica, Maddy cita o empirismo de Bas van Fraassen. Segundo Maddy, van Fraassen admite que a ciência está no bom caminho e não precisa ser modificada. Tanto que van Fraassen considera que as evidências apresentadas pelas teorias científicas são suficientes para estabelecer a existência, para propósitos científicos, de entidades não-observáveis. Contudo, van Fraassen defende haver propósitos epistemológicos, extra-científicos, para os quais a evidência científica é insuficiente. O tipo de evidência exigido por van Fraassen para assegurar a existência de não-observáveis sob o ponto de vista filosófico, totalmente isolado da ciência, denota o caráter de filosofia primeira do empirismo construtivo de van Fraassen (MADDY 2007, seção IV.1). A filosofia segunda, por sua vez, é aquela que nasce dentro da ciência (MADDY 2007, p. 14). Um jeito fácil e direto de caracterizar a filosofia segunda seria dizer que ela emprega apenas os métodos da ciência, que aceita apenas o conhecimento estabelecido cientificamente, Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 2, pp. 327-351, jul.-dez. 2011.

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e que, portanto, não subordina a ciência à filosofia, antes o contrário, subordina a filosofia à ciência. Porém, dadas as inúmeras dificuldades em demarcar a fronteira entre ciência e não-ciência, como revela a larga literatura de filosofia da ciência sobre esse tema, afirmar que a filosofia segunda é “científica” é apenas um modo fácil, mas pouco esclarecedor, de caracterizar a posição de Maddy. Na verdade, Maddy talhou a filosofia segunda de tal modo a não ser importante haver um critério de demarcação entre filosofia e ciência. Elas são tomadas como atividades entrelaçadas, que se complementam mutuamente. A aceitação ou rejeição de uma tese não está calcada em ser ela científica ou filosófica, mas sim em ser plausível ou não de acordo com o ponto de vista da filosofia segunda. Podemos começar a entender como a filosofia segunda encara a relação entre filosofia e ciência a partir do mote central do naturalismo de Maddy, que diz que um empreendimento bem sucedido deve ser julgado em seus próprios termos (MADDY 1997, p. 184). A apreciação do sucesso de um empreendimento é feita, primeiro, identificando seus objetivos e, segundo, avaliando se os meios empregados para alcançar aquele objetivo são efetivos, isto é, se os meios realmente atingem a meta (MADDY 1997, p. 194). No caso da ciência, seu objetivo é explicar como o mundo é7, que coisas existem, quais suas relações e propriedades8. Os métodos que a ciência emprega, em cada área de estudos particular e em cada época, são os melhores disponíveis naquele contexto para alcançar essas explicações, o que é uma opinião compartilhada por grande parte de filósofos e cientistas. Isso qualifica a Mesmo havendo vasta discussão sobre a natureza das explicações – se elas são verdadeiras, ou apenas empiricamente adequadas ou não passam de instrumento para solução de problemas – o fato é que fornecer explicações é um objetivo amplamente reconhecido da ciência. 8 Esse também é o objetivo da filosofia segunda (MADDY 2011, p. 38). Para Maddy, filosofia e ciência são muito próximas, por isso não é de estranhar que compartilhem os mesmos objetivos. 7

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ciência como um empreendimento bem sucedido, daí que o conselho do naturalismo é que a ciência seja julgada em seus próprios termos, e não em termos filosóficos. Que um empreendimento reconhecidamente bem sucedido deva ser julgado em seus próprios termos é algo cuja defesa pode começar por afirmar sua quase obviedade: se admiti-se que uma dada atividade ou procedimento é o melhor meio de que se dispõe para completar uma dada tarefa, não é sensato julgá-lo ou propor modificálo com base em argumentos alheios a ele ou à tarefa que ele deve desempenhar. Tal insensatez pode ser vista mesmo em atividades cotidianas. Por exemplo, quem queira pregar um prego na parede, tem na maioria das vezes como melhor meio disponível o uso de um martelo, o manejo do qual envolve empunhá-lo corretamente e aplicar força na medida certa. Quando quem prega não é um perito carpinteiro, o procedimento de pregar sem dúvida pode ser criticado, e as críticas vão girar em torno da força aplicada, do desvio do prego, etc. Não seria sensato criticar o carpinteiro por não ter higienizado a madeira com um antisséptico antes de pregar, ou por não ter se questionado sobre a real existência do prego, por que tais coisas absolutamente não dizem respeito à atividade de pregar. É claro que se pode negar por razões diversas que o manejo do martelo seja o melhor meio de pregar, mas aí já não se está reconhecendo essa atividade como bem sucedida. Igualmente se pode defender que pendurar objetos em pregos não é desejável, mas nesse caso não é o procedimento que está em julgamento, mas a sua finalidade. Postura semelhante é o que pede o naturalismo de Maddy com relação à ciência. Se a ciência é reconhecida como um empreendimento bem sucedido no seu objetivo de fornecer explicações sobre o mundo – o que é muito difícil de se ir contra – então ela deve ser julgada nos seus próprios termos. O argumento de Maddy a favor do mote central do seu naturalismo é mais robusto que a defesa de sua quase obviedade feita no parágrafo anterior. De acordo com Maddy, o exame atento da Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 2, pp. 327-351, jul.-dez. 2011.

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história da ciência mostra que os argumentos que os cientistas realmente levam em conta para decidir questões científicas são os argumentos de caráter científico, e não os filosóficos. Um exemplo muito estimado por Maddy é o estabelecimento da existência de átomos, questão que preocupava físicos e químicos no início do século XX. Embora a teoria atômica já se encontrasse bastante desenvolvida e fosse capaz de resolver vários problemas com sucesso, ainda restavam dúvidas sobre se átomos seriam apenas uma ficção útil ou se realmente existiam. Essa questão preocupou Einstein, que idealizou um experimento que, se realizado, poderia confirmar ou refutar a existência de átomos. O experimento foi levado a cabo por Perrin, e teve como resultado a confirmação da existência de átomos, o que sossegou até muitos que levantavam sérias suspeitas sobre sua existência, como Poincaré (MADDY 1997, p. 135-143). Desse episódio podem-se tirar algumas lições. Primeiro que, ao contrário do que pregam algumas correntes filosóficas, os cientistas não se contentam apenas com adequação empírica das teorias ou com resoluções de problemas que apenas salvam as aparências, mas há sim uma preocupação em estabelecer a existência das entidades teóricas de uma forma segura cientificamente que vai além da constatação de que a entidade proposta “funciona” instrumentalmente. Segundo que, apesar de toda a discussão filosófica que rodeia a existência ou não de entidades inobserváveis ou mesmo observáveis, o que realmente importa para pacificar uma questão científica são razões científicas – no caso dos átomos, a prova esperada era o sucesso de um experimento. Uma versão atualizada da discussão em torno da existência de átomos pode ser vista na discussão sobre a existência da partícula subatômica bóson de Higgs. Espera-se que a prova da sua existência saia dos experimentos conduzidos no Grande Colisor de Hádrons, o acelerador de partículas do CERN9. Embora muita discussão filosófica continue 9

Como é sabido, CERN é o acrônimo de Conseil Européen pour la Recherche

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sendo produzida em ontologia, os físicos não se sentem compelidos por ela, e mesmo filósofos reconhecem que o melhor que cientistas têm a fazer é continuar a fazer ciência sem levar em conta as discussões filosóficas10. Se os físicos estivessem convencidos que questões de existência fossem tão problemáticas por razões como as que Descartes elenca na primeira meditação (cf. DESCARTES, 2005), dificilmente se empenhariam tanto para provar a existência de uma partícula, o que seria prejudicial para o avanço da ciência. Entretanto, alguns filósofos defendem que mesmo que o Grande Colisor de Hádrons confirme cientificamente a existência do bóson de Higgs, ainda restam dúvidas filosóficas sobre sua existência. Dado que os debates científicos podem chegar a termo mesmo que os debates filosóficos continuem em aberto, o que se pode concluir é que os debates científicos não foram resolvidos com base em considerações filosóficas11. Isso valida o mote naturalista em relação à ciência. A ciência deve ser julgada em termos científicos e não em termos filosóficos, dado que considerações filosóficas são irrelevantes para a ciência e, mais ainda, se levadas a sério podem cercear o desenvolvimento da ciência. Nucléaire. Para informação rápida e acessível sobre o bóson de Higgs, visite o sítio do CERN: http://cms.web.cern.ch/cms/Physics/HuntingHiggs/index.html. 10 Maddy cita Kant, Carnap, Putnam e van Fraassen como exemplos de filósofos que admitem estar tudo em ordem com a ciência e seus métodos, mas que apesar disso sustentam haver um âmbito extra-empírico no qual questões puramente filosóficas, de filosofia primeira, têm lugar (MADDY 2007, p. 308). 11 Maddy desenvolve um raciocínio semelhante a esse em MADDY 1997, p. 191, mas com respeito a debates metodológicos em matemática, e não debates científicos. Segundo Maddy, a história da matemática mostra que debates metodológicos foram resolvidos, embora questões filosóficas a respeito da natureza dos objetos matemáticos continuem em aberto, o que mostra que os debates metodológicos não foram resolvidos com base em considerações filosóficas. Adaptamos o argumento para tratar da relação entre filosofia e ciência. Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 2, pp. 327-351, jul.-dez. 2011.

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De acordo com a filosofia segunda, para tratar questões científicas, sejam elas metodológicas ou teóricas, argumentos adequados são os científicos. Essa afirmação pode ser chocante para filósofos não naturalistas, pois parece contrariar a concepção geral de que cientistas sempre se movem dentro de um framework filosófico, sem esquecer dos episódios da história da ciência que mostram que posicionamentos filosóficos foram essenciais para descobertas científicas. Além do mais, vedar a influência da filosofia sobre a ciência poderia ser nocivo para a ciência, já que esta se tornaria uma atividade sem crítica. Mas é bom lembrar que a filosofia segunda não demarca a fronteira entre ciência e filosofia, de sorte que é enganador entender “argumentos científicos” como se houvesse uma divisão clara entre as duas coisas. Há uma filosofia que se desenvolve dentro da própria ciência, continuamente com a ciência (MADDY 1997, p. 188). A filosofia segunda pretende ser uma filosofia desse tipo, e portanto com legitimidade para agir dentro da ciência, usando argumentos científicos para avaliar os métodos da ciência, propor correções, constatar limitações. Quando atuando dentro da ciência, a filosofia segunda é ciência, isto é, o praticante de filosofia segunda procede tal qual um cientista procederia (se empenhar em filosofia segunda exige, pois, conhecimento do debate científico). É claro que experiência em filosofia, mesmo em filosofia primeira, pode ajudar no trabalho de julgar e criticar a ciência a partir de dentro, mas o resultado final do trabalho da filosofia segunda não difere do trabalho que um cientista poderia fazer. Aliás, a história da ciência mostra que os cientistas de fato adotam uma postura crítica com relação a seus métodos e framework filosófico, fazendo correções de rumo quando as necessidades científicas exigem, independentemente do debate filosófico. O mecanicismo, um padrão de explicação científica muito influente durante três séculos, é um exemplo citado por Maddy de como os cientistas adotam e depois rejeitam uma máxima Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 2, pp. 327-351, jul.-dez. 2011.

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metodológica, com base unicamente em razões científicas. O mecanicismo começou com Galileu e se consolidou como uma tradição de pesquisa que se empenhava em explicar todos os fenômenos físicos em termos de partículas e forças agindo ao longo de linhas entre as partículas, dependendo somente da distância. O método mecanicista se mostrou muito frutífero – vários problemas científicos foram explicados em termos mecanicistas – e prevaleceu na ciência até meados do século XIX. No entanto, fenômenos elétricos e magnéticos e relacionados com a luz nunca foram tratados adequadamente por meios mecanicistas. Esses fenômenos só receberam tratamento adequado com Maxwell, que abandonou a tentativa de explicação mecanicista em favor da concepção de campos eletromagnéticos. O sucesso da teoria de Maxwell e sua fertilidade para explicar fenômenos que não eram bem explicados pelo mecanicismo levaram os cientistas a abandonar o mecanicismo em favor da nova concepção de campos (MADDY 1997, p. 111-115). O mecanicismo e a concepção de campos, assim como posturas mais fundamentais, como o realismo, podem ser considerados como fazendo parte do framework filosófico da ciência – mecanicismo e a concepção de campos encerram cada um uma visão particular sobre o mundo, um vê o mundo como interação entre partículas e forças, o outro como interações entre campos. O caso do mecanicismo mostra que os cientistas aceitam uma concepção filosófica – no caso, uma que surgiu dentro da própria ciência – se ela é eficaz e se sustenta com base em argumentos científicos. Quando não é mais possível sustentá-la cientificamente, a concepção filosófica é abandonada, novamente por razões científicas. Isso nos leva a imaginar que, se um dia o realismo vier a ser rejeitado na ciência, será por razões científicas, as quais ainda não estão presentes, e não por razões filosóficas. Toda essa “filosofia” interna à ciência está de acordo com a filosofia segunda e com o mote naturalista que afirma que um empreendimento bem sucedido deve ser tratado em seus próprios Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 2, pp. 327-351, jul.-dez. 2011.

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termos. Isso porque essa filosofia também pode ser chamada de ciência, e esse é exatamente o espírito da filosofia segunda, a dualidade entre filosofia e ciência, atividades colaborativas e sem fronteiras definidas, ambas empenhadas em descrever como o mundo é, que coisas existem, quais suas características e relações. Assim, questões tipicamente filosóficas emergem da própria prática científica: os métodos empregados pela ciência são adequados para conhecer a realidade? As entidades propostas pelas teorias científicas existem? Como teoria e realidade se relacionam? Como se explica o sucesso da matemática nas teorias científicas? e assim por diante. Essas questões também são sobre a constituição do mundo, e os melhores métodos disponíveis para respondê-las, defende a filosofia segunda, também são aqueles que tendemos a chamar de científicos. Mas há ainda outro tipo de filosofia, a filosofia primeira, que parece não estar envolvida nesse esquema colaborativo entre filosofia segunda e ciência. Sem critério demarcatório entre ciência e filosofia, a filosofia primeira não pode simplesmente ser posta de lado. A sugestão de Maddy é que cada tese de filosofia primeira seja avaliada caso a caso, se é pertinente, se pode melhorar os métodos da ciência, se pode alcançar algum conhecimento confiável, enfim, se tem contribuições a oferecer. É mais ou menos isso que Maddy faz na primeira parte de Second Philosophy. Ao mesmo tempo em que vai caracterizando a filosofia segunda, avalia se vale a pena embarcar nas teses de filosofia primeira de Descartes, Kant e outros. Avaliando a filosofia de Descartes, Maddy acaba por rejeitar seu ceticismo metodológico, mas não deixa de pontuar que, se o ceticismo metodológico pudesse produzir algum conhecimento útil e confiável, “ela não teria escrúpulos em usá-lo”. Mais ainda, nesse caso ela estaria inclinada a classificar o ceticismo metodológico de Descartes como “científico” (MADDY 2007, p. 18, nota 14). O segundo mote do naturalismo diz que, havendo discordância entre filosofia e uma prática bem sucedida, é a filosofia que deve ceder (MADDY Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 2, pp. 327-351, jul.-dez. 2011.

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1997, p. 171). Coma a ciência é uma prática bem sucedida, havendo discordância entre filosofia e ciência, é a filosofia que deve ajustar sua posição. Em se tratando de debate sobre questões científicas, o segundo mote é uma consequência do primeiro, já que questões científicas devem ser julgadas em seus próprios termos, e não em termos filosóficos. Porém, o segundo mote diz mais que isso. Mesmo naquelas que pensamos como questões filosóficas, a ciência tem prioridade. É claro que essa prioridade não deriva de uma autoridade especial concedida à ciência ou de uma crença dogmática no poder da ciência, ideias de que a filosofia segunda não compartilha. É por haver semelhança de objetivos entre a filosofia e a ciência – ambas estão empenhadas em fornecer explicações sobre o mundo – e por se reconhecer que aqueles métodos que tendemos a associar com a ciência são os mais bem sucedidos em fornecer tais explicações, que devemos concluir que teses filosóficas fundadas em métodos filosóficos (no sentido de filosofia primeira) que divirjam de resultados científicos devem ser recusadas. Tais teses de filosofia primeira incorrem em erro metodológico. A filosofia segunda também não alimenta uma crença dogmática nos métodos científicos, pelo contrário, ela está sempre aberta a criticar, rever e ajustar seus métodos. Uma tese de filosofia primeira não deve ser descartada apenas porque não empregou métodos científicos. Como mencionado acima, a ausência de critério demarcatório entre filosofia e ciência exige uma abordagem caso a caso, em que cada tese filosófica e seus métodos sejam avaliados e julgados em termos dos métodos e resultados já obtidos, como procede a ciência em geral com novas teorias. Se a tese e seus métodos se mostrarem frutíferos e conseguirem angariar a necessária comprovação empírica, devem ser aceitos e incorporados ao rol dos métodos disponíveis à filosofia segunda. Várias tentativas filosóficas de revelar o método científico por excelência e de justificá-lo filosoficamente foram apresentadas ao longo da história da filosofia, mas a filosofia segunda não toma para si tarefa Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 2, pp. 327-351, jul.-dez. 2011.

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semelhante. Parafraseando o que Maddy diz a respeito da matemática, assim como uma perspectiva fundamentalmente naturalista opõe-se a criticar a ciência com base em considerações extra-científicas, opõe-se também a justificar a ciência com base em considerações extra-científicas (MADDY 2011, p. ix). Se existe algum procedimento comum, compartilhado por todos os métodos empregados pelas mais diversas ciências, que poderia ser chamado de o método científico, é uma questão relevante, que pode fazer parte das preocupações que a filosofia segunda guarda com relação a seus procedimentos, mas não é, em absoluto, uma questão essencial. A filosofia segunda não dispõe de nenhum teste de cientificidade que pudesse aplicar aos métodos para avaliar se são admissíveis ou não. Cada método deve ser encarado como um caso particular, avaliado em vista dos objetivos a que se propõe, se é bem sucedido em produzi-los ou não. Os próprios métodos naturalizados que a filosofia segunda propõe são tratados nesses termos, e encontram parte da sua justificativa na sua fertilidade para resolver problemas filosóficos tradicionais. Em linhas gerais, o modo de proceder da filosofia segunda se caracteriza pelos dois motes naturalistas expostos acima, pela convergência de objetivos entre filosofia e ciência e pela ausência de separação entre elas. Maddy usa um artifício literário interessante para ilustrar a maneira de proceder da filosofia segunda. Ela cria a figura de uma pesquisadora imaginária, a filósofa segunda, que começa o seu empreendimento de conhecer como o mundo é a partir das suas percepções sensoriais ordinárias e gradativamente vai desenvolvendo métodos de observação e experimentação mais apurados, bem como métodos mais sofisticados de construção e teste de teorias. A filósofa segunda se sente completamente à vontade com seus companheiros de jornada das mais diversas ciências empíricas, desde antropologia e psicologia até química e física. Ao longo do seu percurso, a filósofa segunda percebe que seus métodos são falíveis, que as teorias que ela elabora estão sujeitas à revisão, e então também passa a se dedicar a Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 2, pp. 327-351, jul.-dez. 2011.

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estudar seus próprios métodos para aperfeiçoá-los. Ela tem consciência de que esse é um empreendimento sempre em aberto, para o qual não há receita de sucesso garantido, um método totalmente eficaz nem uma teoria definitiva (MADDY 2011, p. 38). As perguntas filosóficas tradicionais emergem naturalmente nesse ambiente, e para respondê-las a filósofa segunda emprega os métodos e conhecimentos acumulados ao longo de sua jornada. Ela tem consciência de que suas repostas, assim como todo o resto do conhecimento acumulado, não são definitivas, mas ela acredita que “gradualmente sabemos mais sobre o mundo, que nossas opiniões se aperfeiçoam, e que examinar como atingimos o ponto que ocupamos agora pode ajudar-nos a evitar repetir antigas filosofias que não são mais viáveis” (MADDY 2011, p. 2). Daí que, se abordada por um filósofo cartesiano saído das páginas iniciais das Meditações Metafísicas com a traiçoeira pergunta “você sabe se você tem mãos?”, a filósofa segunda responderá explicando-lhe o funcionamento da percepção humana e sua relação com a estrutura dos objetos físicos ordinários, como as retinas são estimuladas pela luz, a reação dos neurônios, as condições sob as quais pode haver ilusões, como as provocadas por drogas, alterações na iluminação, etc., e depois do exame cuidadoso das condições em que ela e a mão diante dela se encontram, concluirá que é razoável para ela crer que ela tem mãos, e por isso a filósofa segunda sabe sim que tem mãos (MADDY 2007, p. 16). 3. A CONCEPÇÃO TRADICIONAL DE RACIONALIDADE CIENTÍFICA E A FILOSOFIA SEGUNDA

Opondo-se à ideia de que teorias científicas de diferentes épocas sejam incomensuráveis, Larry Laudan declara: “... esses autores (tais como Hanson, Quine, Kuhn e Feyerabend) têm traçado algumas conclusões muito pessimistas sobre a possibilidade de racionalidade na ciência” (LAUDAN, 1977). Mesmo que a reação inicial à obra de Kuhn Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 2, pp. 327-351, jul.-dez. 2011.

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tenha percebido nela uma séria ameaça à racionalidade científica, tal como expressa a frase de Laudan, como é sabido o desenvolvimento subseqüente da filosofia de Kuhn e de seus seguidores mostrou que não se trata de acusar a ciência de irracional, mas sim de modificar o conceito de racionalidade, aproximando-o da ciência tal qual ela é praticada. Ou seja, o objetivo da filosofia ao modo de Kuhn não é denunciar a irracionalidade da ciência, mas sim denunciar a inadequação do conceito filosófico tradicional de racionalidade (cf. CUPANI, 2000, p. 38). Assim entendido, o objetivo da nova filosofia da ciência está de acordo com a filosofia segunda. Dado que a concepção tradicional de racionalidade é extra-científica – são considerações filosóficas que levam à formulação dessa concepção, a qual a ciência deve aderir se quiser ser racional – a filosofia segunda a classificaria como filosofia primeira. Essa concepção já está inicialmente sob suspeição, do ponto de vista da filosofia segunda, por pretender ser uma imposição filosófica à ciência, o que contraria o mote naturalista. Por outro lado, a nova concepção de racionalidade científica parte do pressuposto de que a ciência é racional, e a partir do exame da prática científica procura formular um conceito de racionalidade adequado. Isso está mais de acordo com a postura naturalista da filosofia segunda: a divergência entre a concepção filosófica de racionalidade científica e a prática científica deve ser resolvida a favor da ciência, pela modificação do conceito filosófico e não pela alteração da prática científica, uma vez que a ciência é reconhecida como uma atividade racional e bem sucedida. Contudo, dada a ausência de demarcação entre ciência e filosofia e a postura aberta da filosofia segunda, antes de descartar a concepção tradicional por preconceito filosófico, convém avaliar se

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aderir a ela seria proveitoso de alguma forma aos propósitos da ciência12. De acordo com a concepção tradicional, o principal elemento da racionalidade científica é o método científico, entendido, seja indutivamente, ou na forma nomológico-dedutiva. Em linhas gerais, a atividade racional em ciência consiste, de acordo com essa concepção, na explicação dos eventos mediante hipóteses e teorias, cuja sistematização e teste envolve apenas indução, dedução e aplicação de recursos matemáticos. A partir da divisão entre contexto de descoberta e contexto de validação, a concepção tradicional reconhece que muitas vezes a descoberta não acontece exatamente de acordo com o método, mas o que importa para a aceitação e consolidação de uma teoria, conforme essa concepção, é, além da comprovação empírica, a sua validação lógica por um processo dedutivo ligando os dados à teoria. Esse método garantiria que fatores vistos como extra-científicos, tais como inclinações pessoais do cientista, valores sociais, interesses políticos, etc., não tomassem parte nas teorias científicas, que se constituiriam desse modo em produtos racionais autônomos. Ocorre que essa concepção filosófica tradicional de racionalidade científica não se sustenta quando confrontada com a história da ciência. A “virada histórica” operada na filosofia da ciência em meados do século XX mostrou, por meio do estudo da história da ciência, que fatores considerados extra-científicos foram fundamentais para o sucesso de teorias científicas amplamente aceitas. Um exemplo bastante ilustrativo é o trabalho de Pera sobre o papel da retórica na ciência. Primeiro, Pera advoga que qualquer metodologia, por mais detalhada que seja, é limitada, isto é, deixa lacunas que o sujeito que a Embora, aqui e no que vem a seguir, estejamos seguindo um modo de proceder inspirado na avaliação que Maddy faz de algumas teses de filosofia primeira, como em Maddy 2007 parte I.1, Maddy não aborda diretamente a questão da racionalidade científica nem o conflito entre a concepção tradicional e a concepção da filosofia da ciência ao modo de Kuhn. 12

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aplica deve suprir usando recursos extra-metodológicos. Assim, diz Pera, para aplicar os métodos usuais da sua área de pesquisa, o cientista deve escolher que método vai empregar, interpretar as regras do método enquadrando-as na situação em tela, avaliar se os resultados observados são confiáveis ou não, etc., ações sobre as quais o método cala, mas que nem por isso são totalmente discricionárias – é esperado que o cientista justifique suas decisões racionalmente. Ainda que se tentasse criar um método de justificativa das decisões não regidas pelos métodos científicos usuais, a situação não ficaria melhor, pois as dificuldades recairiam sobre esse novo método, já que as justificativas para empregálo não seriam metodológicas novamente. De acordo com a concepção tradicional de racionalidade científica, se Pera estiver certo, está aberta uma porta para a irracionalidade na ciência. Mas Pera não encara a situação tão tragicamente, e se pergunta “o que podemos adicionar à, ou pôr no lugar da, metodologia para manter a racionalidade das decisões científicas?” (PERA, 1988, p. 260). A retórica é a resposta: os argumentos que sustentam as decisões não regidas pelo método são retóricos. A característica marcante dos argumentos retóricos é que eles são persuasivos mesmo quando a conclusão não é consequência lógica das premissas. Assim, quando o cientista argumenta que uma dada teoria T “deve ser aceita porque, digamos, ela é mais unificadora, ou vale a pena trabalhar com T porque ela é promissora”, ou que uma dada observação é “relevante, grave, nova, etc., porque ela possui tais e tais propriedades”, ele está se apoiando em argumentos retóricos, “que não são nem dedutivos nem indutivos, pois não são formalmente conclusivos nem empiricamente contundentes (...); eles visam persuadir e convencer oferecendo boas razões em situações em que não há prova melhor” (PERA, 1988, p. 267). A história da ciência está repleta de exemplos em que o uso da retórica foi essencial para a aceitação de teorias, e Pera cita ninguém menos que Darwin, apontando as situações em que Darwin recorreu a diversos argumentos retóricos para sustentar sua teoria da evolução. Inicialmente frágil mas muito promissora, Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 2, pp. 327-351, jul.-dez. 2011.

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podemos assentir que foram tais argumentos que promoveram a aceitação da teoria de Darwin, o que mostra que a retórica, longe de ser um fator de irracionalidade que compromete a ciência, é um modo de argumentação largamente aceito, que normalmente não é encarado como irracional e que desempenha papel crucial no desenvolvimento científico. Acrescentamos a isso que a distinção tradicional entre contexto de descoberta e contexto de validação não funciona, no caso de Darwin, para deixar a retórica restrita ao contexto de descoberta; pelo contrário, a retórica foi importante justamente na validação da teoria, já que a evidência empírica de que Darwin dispunha e a argumentação lógica eram insuficientes para validar a teoria e sustentála contra seus opositores. A filosofia segunda não dispõe de um teste último para cientificidade, ou para aceitação ou rejeição de teses de filosofia primeira, mas um aspecto valorizado pela filosofia segunda é a fecundidade das teses, apreciada de um ponto de vista, por assim dizer, científico. Assim, assumindo a avaliação de Pera, fica evidente que a concepção tradicional de racionalidade científica é restritiva e limita o campo de ação do cientista, deixando sem socorro os que precisam defender teorias inovadoras para as quais ainda se dispõe de pouca evidência no sentido usual. Constranger a prática científica por um conceito de racionalidade tão restrito mutilaria a ciência. Disso podemos concluir que a filosofia segunda não endossaria a concepção tradicional de racionalidade, dentre outros motivos por não encontrar vantagem na sua adoção. Embora Maddy não se ocupe diretamente da noção de racionalidade científica, podemos encontrar um indício de que ela rejeitaria a concepção tradicional na discussão que ela desenvolve em MADDY 2007, p. 293-294, sobre a pertinência de lógicas paraconsistentes na compreensão de teorias científicas inconsistentes. Teoria inconsistente é aquela que possui entre seus teoremas uma contradição. De acordo com a lógica clássica, se isso acontece, a teoria Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 2, pp. 327-351, jul.-dez. 2011.

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é trivial, isto é, prova qualquer coisa exprimível na linguagem da teoria. Tanto na história das ciências naturais quanto na história da matemática encontram-se teorias inconsistentes, tais como a teoria do átomo de Bohr ou a versão original do Cálculo Diferencial e Integral de Newton. Apesar da inconsistência, nem Newton nem Bohr tiraram conclusões quaisquer de suas teorias, como aconteceria se estivessem aplicando à risca a lógica clássica. Eles concluíram apenas o que era apropriado concluir. Suas teorias eram inconsistentes, mas não triviais. O desafio que esses casos históricos colocam é explicar o que bloqueia a trivialização dessas teorias. Conforme aderimos à concepção tradicional de racionalidade científica, ou a uma concepção mais flexível, a resposta a esse desafio será diferente. Mantendo-nos com a concepção tradicional, em que conclusões são obtidas apenas por dedução lógica (ou a partir de evidência empírica, por indução), os casos de teorias inconsistentes parecem apontar contra a lógica clássica, pois de acordo com essa lógica tais teorias deveriam ser necessariamente triviais, o que elas não são. Isso posto, a lógica subjacente a essas teorias deve ser uma lógica paraconsistente, isto é, uma lógica que admite inconsistências sem que o resultado seja a trivialização da teoria. Essa é a posição de Priest, que conclui: “Claramente, uma vez que admitimos a existência de tais teorias, sua lógica subjacente tem que ser paraconsistente” (PRIEST et al, 2004). Por outro lado, preferir uma noção mais flexível de racionalidade científica, que consente que meios não-lógicos são também racionais, permite preservar a lógica clássica e atribuir a não trivialização das teorias inconsistentes a esses fatores não-lógicos. Opondo-se a Priest, é isso o que faz Maddy: “O que esses casos mostram, me parece, é que grandes cientistas estão sempre aptos a navegar ao largo de severas imperfeições em suas teorias, usando seus melhores instintos para decidir como proceder e como não proceder”. Mais a frente, Maddy continua: “Seja o que for que Newton (…) e Bohr estivessem fazendo, isso estava intimamente ligado a complexidades do assunto de cada qual, e ao seu profundo, ainda que Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 2, pp. 327-351, jul.-dez. 2011.

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incipiente entendimento de seus meandros” (MADDY 2007 p. 294, 295, grifos nossos). Essas passagens deixam claro que Maddy não vê problema em admitir que fatores tradicionalmente vistos como subjetivos e deixados de fora da concepção tradicional de racionalidade científica, tais como os instintos do cientista ou o seu entendimento particular do assunto, sejam decisivos ao desenvolvimento de teorias científicas. Os casos de teorias inconsistentes não nos obrigam a abandonar a lógica clássica simplesmente porque a dedução lógica não é o único recurso que o cientista tem para tirar conclusões, há outros recursos racionais à disposição, dentre os quais Maddy menciona diretamente os instintos e as habilidades do cientista. Maddy não recorre à distinção entre contexto de descoberta e contexto de validação para deixar instintos e habilidades do cientista confinados à descoberta, e nem seria interessante que recorresse, pois se assim fizesse teria que conceder que no contexto de validação precisa-se de uma lógica paraconsistente, o que ela não aceita. Mesmo na validação de teorias fatores não-lógicos, mas ainda assim racionais, continuam atuando. Outra aproximação que cabe destacar entre a filosofia segunda de Maddy e a filosofia da ciência pós-Kuhn é o exame recorrente da história da ciência, de que ambos lançam mão para subsidiar suas posições. É largamente sabido o quanto Kuhn se apóia na história da ciência para formular seus principais conceitos, como os de revolução científica e paradigma. Maddy, de modo similar, se apóia na história da matemática para defender, por exemplo, aquela que talvez seja sua tese central em filosofia da matemática, qual seja, que o que decide questões de existência de entidades matemáticas não é alguma metafísica subjacente, mas os benefícios matemáticos que se obtêm pela introdução dessas entidades. Para justificar sua posição, ela se debruça sobre a história da teoria dos conjuntos para mostrar que, apesar da farta discussão filosófica, a consecução de metas matemáticas foi o

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fator decisivo na introdução de conjuntos na matemática (cf MADDY 2011, cap. II). Uma distinção tradicional em filosofia da ciência é aquela entre história interna e história externa da ciência. A primeira se concentra na história da evolução das ideias e debates científicos, ao passo que a segunda diz respeito à interação entre a ciência de uma época e a sociedade em que ela estava inserida. Maddy valoriza muito a história interna da ciência, mas vê com certa desconfiança a explicação do desenvolvimento científico com base na história externa. Referindo-se a como, no século XIX, certos ramos da matemática pura se originaram da matemática aplicada, Maddy comenta: “Em alguns círculos atualmente, afirma-se que desenvolvimentos históricos desse tipo representam simplesmente mudanças nos costumes, ou em arranjos sociais, em governos, em estruturas de poder ou que tais, mas eu rejeito a força total desse modo de pensar, apegando-me à noção da velha escola de que gradualmente sabemos mais sobre o mundo, que nossas opiniões se aperfeiçoam, e que examinar como atingimos o ponto que ocupamos agora pode ajudar-nos a evitar repetir antigas filosofias que não são mais viáveis (MADDY 2011, p. 2).”

Isso parece indicar que Maddy não estaria satisfeita com uma análise da atividade científica que concedesse papel preponderante à influência de valores sociais, como a desenvolvida em LONGINO, 1990. Segundo Longino, o sucesso do pensamento mecanicista pode ser explicado, em parte, por corresponder aos anseios da burguesia emergente, que vislumbrava benefícios econômicos na aplicação tecnológica do conhecimento obtido por moldes mecanicistas com o fim de controlar e manipular processos naturais. Outros modos de conhecimento científico que não privilegiavam o controle da natureza não trariam benefícios econômicos similares e por isso não floresceram nesse ambiente. Maddy desaprova esse tipo de raciocínio e prefere vincular a adoção do mecanicismo diretamente ao seu sucesso científico. Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 2, pp. 327-351, jul.-dez. 2011.

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Certamente há muitos pontos de discordância, como o mencionado acima, entre a filosofia segunda e as variadas filosofias da ciência que sugiram a partir da segunda metade do século XX no rastro de A Estrutura de Kuhn. Porém, há também muito em comum. A visão superficial dos dois programas traça um cenário em que, por um lado, a filosofia segunda parece tão profundamente imersa na ciência a ponto de sujeitar a filosofia às rédeas da ciência, e por outro a nova filosofia da ciência parece problematizar tanto a concepção tradicional de ciência a ponto de alimentar dúvidas sobre a sua racionalidade. O que apuramos ao final deste artigo é que tais aparências não se sustentam. Na verdade a imersão da filosofia segunda na ciência está longe de ser acrítica, e a filosofia, embora agora entendida de outro modo, como filosofia segunda, continua desempenhando um papel importante para a ciência. Ao mesmo tempo, constatamos que a problematização da atividade científica levada a cabo pela nova filosofia da ciência não é realmente ameaçadora da racionalidade científica, de modo que podemos continuar a apostar nossas fichas na ciência como meio por excelência de alcançar conhecimento confiável sobre o mundo. Tudo isso nos leva a concluir que, no que tange ao debate filosófico em torno da concepção de racionalidade científica, o espírito da filosofia segunda está de acordo com o espírito da nova filosofia da ciência. Ambas rejeitam a concepção tradicional e concordam que, se há discordância entre o conceito filosófico de racionalidade e a prática científica, é a filosofia que deve ceder.

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