A presidente em seu labirinto (2014)

September 24, 2017 | Autor: R. Cavalcanti-Schiel | Categoría: Brazilian Politics, Political Analysis
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Publicado em: http://ggnnoticias.com.br/blog/ricardo-cavalcanti-schiel/a-presidente-em-seu-labirinto-porricardo-cavalcanti-schiel

A presidente em seu labirinto

Ricardo Cavalcanti-Schiel, 12-12-2014

A nomeação da nova gerência da área econômica do governo federal e a promessa de entrega da pasta da agricultura para a arquirruralista Kátia Abreu são sinais bastante evidentes de que a presidente Dilma Roussef não entendeu muita coisa dos movimentos simbólicos que ocorreram na última campanha eleitoral. Ela já não tinha entendido nada do que se passara em junho de 2013, e parece que as suas restrições intelectuais continuam notavelmente robustas. E, pior que isso, ela parece solitária, autônoma e onipotente na sua soberana obtusidade. A não ser, é claro, que o restrito clube dos próximos, o arco dos conselheiros (se eles existirem), seja apenas uma nau que, a pretexto de alguma escassa pragmática, encontra-se na verdade à deriva, no nevoeiro de uma política definitivamente sem carta nem bússola. No caso da economia, a nomeação de Joaquim Levy não se trata apenas de uma concessão ao mercado financeiro, uma tentativa de apagar o pequeno fogo de alguns desajustes com uma sobredose de ortodoxia neoliberal. E no caso da agricultura, não se trata apenas de entregar um setor à agenda do agronegócio, social e ambientalmente predatório. Em ambos os casos, o que se evidencia é a renitência das pautas mais equivocadas que orientaram o primeiro mandato de Dilma Roussef; exatamente as pautas que as forças orgânicas do progressismo esperavam ver reformadas ao abraçarem generosamente a alternativa eleitoral de uma segunda chance para a atual presidente. E o que é pior é que talvez o principal sinal emitido por Dilma nas suas primeiras decisões-chave de novo governo é que ela não tem absolutamente nenhuma disposição para retribuir essa generosidade que dá lastro, substância e sentido à representação. Desse modo, as primeiras decisões de Dilma são uma faca nas costas da parcela mais ativa e intelectualmente inquieta da sua própria militância eleitoral. Sua representatividade pode, a partir de agora, correr o risco de se reduzir, de forma sustentada, a um clientelismo passivo, que estará sempre, irremediavelmente, na iminência do imponderável.

As primeiras escolhas de Dilma poderiam ser comparadas à imagem de um governo democrata e pretensamente reformista nos Estados Unidos entregando algumas secretarias ao Tea Party. Barack Obama fez exatamente isso com alguns falcões estrategicamente posicionados, e estamos vendo aonde seu governo foi parar, como os americanos estão vendo o pato manco em que o presidente se tornou. Mas aqui no Brasil se trata de mais do que isso. As pautas que o progressismo queria ver reformadas, se minha intuição política não se equivoca, eram: a da conciliação de tal forma exacerbada que não é outra coisa que rendição, quase que negação (senão prostituição) da própria identidade política; a transformação da governança em um clube de cricket, e sua estanqueização em nome da tecnocracia e do pragmatismo de uma sobrevivência palaciana; e, finalmente, a da covardia e mediocridade políticas, pelas quais o mundo das eminências pardas senhoriais (o mundo da mídia, o mundo das finanças, o mundo judicial...) se transforma num grande buraco onde enfiar conformadamente a cabeça e tapar os ouvidos a todo o resto. A sensação, no entanto, mais deprimente ao receber os primeiros sinais do que pode ser o próximo governo Dilma é a de que esse governo continuará não tendo interlocução social... nem pretende ter. Esse mundo é invisível para ele; no máximo uma idealização duvidosa, alimentada por índices técnicos (como por exemplo os da famosa “nova classe média”). Até mesmo o Partido dos Trabalhadores passa a ser mera abstração, que não conta nem precisa contar. Dilma está se transformando, para o PT, no que Marina Silva já se tornou para a sua natimorta Rede. E o governo não tem interlocução social porque os interlocutores aos quais outorga o monopólio da legitimidade são outros: as finanças, os quistos empresariais que garantem superávites imediatos, as hordas dúbias e obscuras do peemedebismo, os assessores bezerris especializados em balançar cabeças (afirmativamente) e, em larga medida ainda, uma mídia que sempre lhe foi hostil. O que as eleições presidenciais de 2014 deixaram razoavelmente claro para as forças progressistas é que já não é mais tempo de reeditar alguma “carta aos brasileiros”, nem de reeditar algum desenvolvimentismo, tão delirantemente milagroso quanto míope, desculpado por eventuais superpibs e pleníssimo emprego. Nenhum dos dois assegurará legitimidade a um projeto político progressista, pela razão bastante simples que um projeto político progressista não se bastaria jamais em nenhum deles. Podemos ter pleno emprego, bolsonaros e malafaias todos juntos. E os dois últimos podem gozar de mais voto e legitimidade que o primeiro. Não é o milagre duvidoso de uma “nova classe média” que tornará o Brasil uma sociedade institucionalmente mais justa, solidária e tolerante. Esse

Roque Santeiro do novo milênio já deu mostras de que a tornará apenas uma sociedade mais consumista e igualmente mais predatória. Já não é mais tempo de reeditar agendas caducas porque o que ficou bastante claro é que as forças conservadoras continuam apenas advogando pela ordem plena e absoluta da sua estreiteza senhorial, qualquer que seja o custo e qualquer que seja o método: o golpe, se necessário, ou mesmo se apenas oportuno. Como é característico da lógica senhorial, o que ela deseja e espera de quem lhe for diferente é a pura e simples capitulação; uma capitulação que começa pela renúncia à construção de uma legitimidade alternativa e uma outra hegemonia cultural. É essa capitulação que começa a ser anunciada pelo acovardamento político que se quer justificado pelo imponderável da “governabilidade”. Se é certo que algumas vezes a história ocorre como tragédia para depois se repetir como farsa, então as similaridades de cenário, já percebidas por alguns analistas, entre o novo governo Dilma e o último mandato de Getúlio Vargas ― este último tão caracteristicamente embalado pelo mito da suficiência das concessões políticas ― podem não explicar ainda como Dilma deixará o Palácio do Planalto, mas pode, desde já, insinuar o tamanho da farsa que seu governo tem potencial para se tornar, frente às esperanças do campo progressista no Brasil.

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