A historicidade do contrato social no Segundo Tratado de John Locke

September 1, 2017 | Autor: André Quirino | Categoría: Social Contract Theory, Political Anthropology, Liberalism, John Locke
Share Embed


Descripción

A HISTORICIDADE DO CONTRATO SOCIAL NO SEGUNDO TRATADO DE JOHN LOCKE

André Gomes Quirino Graduando em Filosofia FFLCH – USP

Resumo: O objetivo deste breve artigo é apresentar a problemática liberal da historicidade do contrato social a partir do Segundo Tratado sobre o Governo de John Locke, reportando especialmente à solução proposta por Jeremy Waldron. Palavras-chave: Antropologia política. Contrato social. Liberalismo. Locke.

Abstract: The aim of this short paper is to present the liberal problem of historicity of the social contract from John Locke’s Second Treatise of Government, referring especially to the solution proposed by Jeremy Waldron. Keywords: Liberalism. Locke. Political anthropology. Social contract.

1. Introdução Entre os detratores do liberalismo político, poucas críticas são tão populares quanto a que se dirige contra a teoria do contrato social. Em John Locke, filósofo inglês do século XVII, ela aparece no Segundo Tratado sobre o Governo, onde é apresentado um sistema lógico próprio para se explicar a origem, extensão e objetivo do governo civil. Nesse sistema, todos os homens são natural e igualmente livres, o que implica possuírem igual direito a punir quem eventualmente lhes inflija dano. Como tal se dá com frequência, e nenhum indivíduo é imparcial ao julgar causa que lhe respeite, ao estado de natureza se segue inevitavelmente o estado de guerra. Para pôr-lhe fim, os indivíduos reúnem-

se em comunidade e espontaneamente submetem-se a uma pessoa ou grupo que lhes sirva de juiz e persevere em preservar-lhes a vida, a liberdade e os bens. Essa é, para Locke, a origem do governo civil. É intuitivo reagir a tal teoria acusandolhe de idealizar o comportamento humano, transportando para a História um encadeamento de eventos que parece se realizar apenas no plano lógico. É evidente que a história humana é mais complexa do que proporia uma historicização da teoria do contrato social e, assim, esta parece-nos ser por demais simplista. A esta conclusão, porém, não se pode chegar sem que antes se conclua uma pretensão de Locke à historicidade do contrato social – o que está longe de ser ponto pacífico.

2. O contrato social além da pretensão de historicidade: Locke antropólogo político Era, de fato, uma reclamação de Robert Filmer, defensor da monarquia absolutista, autor de Patriarcha, contra o qual se dirige o Primeiro Tratado de Locke, que, se os homens são naturalmente livres, então algo como um contrato social deve ter ocorrido verdadeiramente. Locke (1983, p. 72, § 100) chega mesmo a mencionar e se ocupar da objeção à sua teoria que lhe imputa inverossimilhança histórica: “não se encontra exemplo na História de um grupo de homens independentes e iguais que se reunissem e dessa maneira começassem e estabelecessem um governo”. E a resposta dada por Locke (1983, p. 72, § 101) parece indicar que a ele é caro o status de histórico do contrato social e do estado de natureza que o origina: “se pudermos supor que os homens nunca estiveram no estado de natureza, porque pouco sabemos dos homens em semelhante estado, poderemos igualmente supor que os soldados de Salmanasser ou de Xerxes nunca foram crianças porque pouco ouvimos dizer deles até que se tornaram homens e formaram exércitos”, ironiza. Locke (1983, p. 72, §§ 102–3) se esmera em apresentar exemplos que suportam sua tese: as comunidades primitivas do Brasil, Flórida e Peru, a fundação de Roma e de Veneza; antes ainda, mencionara relatos bíblicos em que se poderia vislumbrar algo como o estado de natureza (e.g., LOCKE, 1983, pp. 49–50, § 38). Porém, há uma diversidade nesses mesmos exemplos que apontam para uma sofisticação na noção lockeana de historicidade, se devemos falar de uma. Ao passo que as menções ao Brasil, Flórida e Peru parecem sugerir que em toda agregação humana, a princípio, vige um estado de natureza, falto de instituições políticas,

Roma e Veneza são mencionadas como casos específicos de cidades fundadas, através de acordo, por pessoas provenientes de cidades pré-existentes. Assim, o estado de natureza é evocado como sendo não a situação psicológica dos membros de comunidades indígenas e pré-urbanas, mas a situação social de indivíduos que se relacionam em esferas para as quais não há uma instituição judiciária formal. Trata-se, com efeito, do estado em que “todos os homens se acham naturalmente” (LOCKE, 1983, p. 35, § 4), e se é assim, ele está sempre presente, ao menos como possibilidade. O contrato social não necessita haver sido um evento único e definitivo na história de um indivíduo, um povo ou, menos ainda, da humanidade. Nos termos de Locke (1983, p. 67, § 89): “Sempre que [...] qualquer número de homens se reúne em uma sociedade de tal sorte que cada um abandone o próprio poder executivo da lei de natureza, passando-o ao público, nesse caso e somente nele haverá uma sociedade civil ou política” (grifo nosso). Concomitantemente à teoria do estado de natureza e do contrato social, Locke desenvolve o que Jeremy Waldron chama “especulações em antropologia política”, cuja narrativa segue passos mais orgânicos e condizentes com a complexidade da ação humana, permitindo que se diga, por exemplo, que a ascensão de pais de família a monarcas políticos se deu de maneira “fácil e quase natural para os filhos, por consentimento tácito e dificilmente evitável”, “por mudança insensível” (LOCKE, 1983, p. 63, §§ 75–6). Se Filmer precisa arrogar para a sua história do surgimento das sociedades políticas estatuto de universalidade e suficiência, Locke pode, após ter narrado o estabelecimento do contrato social, narrar também o surgimento de sociedades a partir de famílias, e utilizar como exemplo uma sociedade que mencionara na primeira das narrativas: o Peru (LOCKE, 1983, p. 74, § 105). Uma tentativa de harmonização das duas narrativas, talvez a vejamos no § 110, em que Locke (1983, p. 76) enxerga como possibilidades de surgimento do governo civil a partir das famílias tanto uma reunião acarretada pelo acaso, vizinhança ou negócios (da qual surgisse a necessidade de um governante) quanto um desenvolvimento gradativo, com submissão tácita1 dos filhos ao pai.

1

É claro que uma dificuldade a essa harmonização está em que tal submissão tácita não a pode ser no mesmo sentido que Locke confere ao termo no capítulo 8 do Segundo Tratado, onde o consentimento expresso é alçado ao cargo de único meio de se tornar membro pleno de uma sociedade. Para superar esta dificuldade, Waldron (1994, pp. 67–9, traduções nossas) propõe três, e não dois, grupos de potenciais sujeitos a uma comunidade: (a) aqueles que estão sujeitos a uma sociedade em virtude meramente de seu usufruto de propriedade – um “tipo ideal” de “consentimento tácito”, no sentido do capítulo 8, que se opõe a (b) aqueles que estão sujeitos a uma comunidade porque lhe deram consentimento expresso; mas também (c)

Para Dunn (1969, pp. 106–7), Locke não crê que um evento antigo seja normativo para a atualidade apenas porque antigo. De fato, vemo-lo descrer dessa visão da História no Segundo Tratado (LOCKE, 1983, pp. 73–4, § 106). Ashcraft (1968, p. 899, tradução nossa) menciona um escrito em que Locke restringe a utilidade do estudo da História “a quem tem bem estabelecidos em sua mente os princípios da moralidade e sabe como fazer um julgamento sobre as ações dos homens”. Nisso talvez tenhamos uma pista mais sólida de como Locke harmoniza a teoria do contrato social com suas “especulações em antropologia política”: aquela servindo de paradigma interpretativo, de sumário dos princípios éticos e morais que devem nortear a interpretação destas; a primeira, cujos termos são morais, se traduzida em expressão histórica, consistiria precisamente nas últimas. A história do contrato não se pretende uma descrição histórica; se pretende, antes, uma ferramenta moral para o entendimento histórico. É a função da antropologia política oferecer-nos uma consideração do que realmente aconteceu; enquanto a história do contrato oferece-nos as categorias morais nos termos das quais o que realmente aconteceu deve ser entendido (WALDRON, 1994, p. 63, tradução nossa).

Se a narrativa do contrato social serve de paradigma interpretativo à antropologia política, ela não pode, pelas exigências da lógica, ser haurida da observação histórica, ao menos não no mesmo sentido em que as especulações em antropologia política o podem (e devem). As bases do contrato social são puramente racionais, residem nos “argumentos ahistóricos da teologia natural”, conforme a expressão de Dunn (1969, p. 97 apud WALDRON, 1994, p. 63, tradução nossa). Superficialmente, a monarquia patriarcal parece como o resultado de processos naturais: o que era a sugestão da teoria de Filmer. Só o escrutínio mais próximo dos fatos, junto a uma consciência moral sofisticada, incluindo um entendimento moral das respectivas funções e limites da autoridade política e parental, pode revelar que ela deve realmente ter sido baseada, tanto quanto a fundação de Veneza e Roma, na convenção e decisão humanas (WALDRON, 1994, p. 66, tradução nossa).

Nisto estaria a razão de Locke defender o direito à resistência com base na exclusividade do contrato social como meio de legitimação de um governo: não porque tome tal contrato como histórico strictu sensu, mas porque o toma como modo de interpretação dos eventos históricos. E precisamente na defesa do direito à resistência, como queremos fazer

“aqueles cujo consentimento a um arranjo político é e foi ‘quase natural’, no sentido em que eles têm crescido com ela e aquiescido em seu desenvolvimento e em sua autoridade sobre eles em cada estágio” – o que pode se adequar mais, nos sentidos anteriores, tanto ao ideal de consentimento tácito quanto ao de consentimento expresso.

notar, em adição aos argumentos de Waldron, Locke dá mostras da aplicação de uma noção peculiar de historicidade ao contrato social: tornando-se tirano – e perdendo, portanto, toda a autoridade – o governante que transgride a lei para dano de outrem (LOCKE, 1983, p. 114, § 202), isto só pode se dar pela anulação do contrato originário, uma vez que somente este dera autoridade ao magistrado2. Ora, se a anulação do contrato não é, ela mesma, historicamente observável, mas um princípio moral pelo qual se interpreta um evento, este sim, historicamente observável – a saber, a transgressão da lei por parte de um governante –, não poderia (e até deveria) ser idêntico o caso do estabelecimento do contrato social?

3. Considerações finais Assim, a tendência dos contratualistas modernos a desprezar a historicidade do contrato social parece não estar de todo distante do tratamento dispensado pelo próprio Locke a esse tema. Ele, que se assemelha a Filmer no apelo a passagens bíblicas veterotestamentárias, mas se distingue do mesmo na interpretação nitidamente menos literal de tais textos, também oferece uma possibilidade de fundamentação mais sofisticada da sociedade política. Tem-se, de um lado, como propõe Waldron, especulações em antropologia política, que devem se basear na investigação histórica, e de outro, um paradigma interpretativo para tais especulações, que possui indícios históricos, mas prescinde de uma rigorosa confirmação investigativa – qual seja, o contrato social.

2

De fato, esse era o argumento dos calvinistas Theodore Beza e John Knox, cuja influência sobre Locke é notável, para a defesa do direito à resistência.

Referências bibliográficas ASHCRAFT, Richard. Locke’s state of nature: historical fact or moral fiction?. American Political Science Review, Cambridge, v. 62, issue 3, pp. 898–915, 1968. DUNN, John. The political thought of John Locke: an historical account of the argument of the ‘Two Treatises of Government’. Cambridge: Cambridge University Press, 1969. LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. In: Coleção Os Pensadores. Locke. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. WALDRON, Jeremy. John Locke: social contract versus political anthropology. In: BOUCHER, David; KELLY, Paul (eds.). The social contract from Hobbes to Rawls. 1 ed. London; New York: Routledge, 1994.

Lihat lebih banyak...

Comentarios

Copyright © 2017 DATOSPDF Inc.