A História encontra a Meta-História (palestra)

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A HISTÓRIA ENCONTRA A META-HISTÓRIA: UM PANORAMA DOS PRINCIPAIS DESAFIOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS PARA O CAMPO HISTÓRICO NA CONTEMPORANEIDADE ALEXANDRO NEUNDORF

TEXTO PARA APRESENTAÇÃO ORAL I.

Introdução: a. O que eu quero dizer com “A História encontra a Meta-História”; b. Como eu penso o campo histórico: teoria, metodologia e escrita.

II.

Panorama: a. Principais debates teóricos, metodológicos e conceituais, abertos ou subjacentes, gerais às humanidades e específicos à História; b. Guinadas e marcos acontecimentais; c. Desafios atuais (desde 1990).

III.

O desafio do “encontrar-se”: aqui, ali, entre, dentro, fora? a. O campo de conhecimento: características; b. Petições de princípio: realidade, cognoscibilidade, representação; c. O quadro das disciplinas e o lugar da História; d. Indecisões, negociações, federalismo, imperialismo, diplomacia. e. Implicações práticas.

IV.

O desafio ético: a. A História pode tudo? b. O que é ‘digno’ de ser historiado? c. Dissociações entre a história acontecimental e a sua representação “moralizada” pela escrita. d. Pós-moderno e moderno: diálogos e intersecções? e. Implicações práticas.

V.

Considerações finais.

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I.

Introdução:

Antes de mais nada, começo aqui com um breve resumo do que pretendo apresentar nessa fala: como esse extenso título indica, irei me ater a aspectos mais teóricos e metodológicos caracterizados com a pecha de “desafiadores”. Não são desafios para o grande público consumidor de História, ou para uma sociedade mais ampla que demanda conhecimento histórico (embora existam vários desafios aí também). Mas desafios para um público mais restrito, já iniciado no ofício e no campo da história profissional. “Desafio”, portanto, aparece como uma categoria de análise e, porque não, de meta-análise (já que estamos falando de metahistória). Vale dizer também que se trata de uma reflexão bastante provisória (e eu penso que pensar em desafios é e sempre será registrado como provisório) e que tenta intercalar uma esfera de reflexão mais teórica, por um lado, e por outro, tenta dar uma conotação prática, pragmática, empírica, para essa discussão. Quando falamos de desafios, obviamente estamos falando sobre coisas mundanas, da nossa prática cotidiana, ou da nossa prática futura. Mas quando nos debruçamos sobre esses desafios e tentamos entendê-los de forma mais reflexiva, passamos para o registro teórico, analítico, meta-analítico, metahistórico (meta = reflexão sobre si). Nessa perspectiva, eu encaminho aqui o que tenho a dizer em alguns momentos: primeiramente, vou fazer um amplo panorama dos principais debates teóricos e metodológicos pertinentes ao campo da História (e que poderíamos caracterizar como “desafios”). Falo também sobre alguns marcos acontecimentais,

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guinadas e crises pelas quais passou a História enquanto disciplina (e que, igualmente, correspondem a desafios ou momentos desafiadores). E na sequência, enumero alguns dos desafios mais atuais que se apresentam para nós. Em um segundo momento eu abordo dois dos desafios mais importantes, ao meu ver, que surgem no horizonte de todo pesquisador e de todo professor de história. Por fim, nas minhas considerações finais tento apresentar algumas coordenadas para nos posicionarmos ante a esse cenário desafiador. Antes de começar a tecer esse panorama, gostaria de apresentar uma explicação para esse título, assim como esclarecer a maneira como penso o campo de conhecimento da História e sua relação com os demais campos. a. O que eu quero dizer com “A História encontra a Meta-História”:

Como vocês já devem saber, entre os anos 1960 e 70, as humanidades em geral e a História em específico assistiram a um grande abalo sísmico com a chamada Guinada Linguística, que colocou em xeque certas certezas, principalmente certezas teóricas e metodológicas desses campos. Certezas que fundamentavam, entre outras coisas, a própria maneira como esses campos pensavam a natureza e a construção dos seus conhecimentos. No caso específico em que a guinada linguística toca o campo da História enquanto disciplina, temos nas publicações de Hayden White o ponto nevrálgico, notavelmente com o seu “Metahistória. A imaginação histórica na Europa do século XIX” publicado em 1973. (Embora ele tenha publicado artigos com teor similar no final da década de 60 já).

Por metahistória, Hayden White entende um olhar dos historiadores oitocentistas sobre o próprio ato de escrever História. Então, a rigor, a História como

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disciplina encontra-se com as preocupações metahistóricas já no século XIX. Porém, eu gostaria de ir além e extrapolar os termos que encaminhavam as reflexões de Hayden White e propor que o século XX, principalmente após a guinada linguística, colocou como centro das preocupações no campo histórico a sua faceta teórica e metodológica com maior ênfase. E não apenas uma relação entre filosofia e linguagem.

A História como disciplina encontra-se com as preocupações metahistóricas, porque um cenário de crise (e tem “crise” para tudo: crise da História, crise das humanidades, crise da ciência, crise da razão, etc.) demanda a resolução dos problemas que se apresentam. E nesse cenário, nós como historiadores e professores de história, temos algumas alternativas: ou aceitamos estoicamente que o que fazemos é irrelevante (e tem muita gente que quer que pensemos assim); ou nos chicoteamos rotineiramente com as leituras que se referenciam na “crise”; ou buscamos justificar o nosso ofício através do entendimento dos desafios que se apresentam e da busca por sua resolução (e podemos mesmo pensar numa “apologia” da história, porque não?).

Para mim, o momento atual, principalmente após os anos 90 (quando por sinal se propunha um “fim da história”), é onde viceja o cenário de maiores produções e potencialidades para a reflexão histórica, endereçada à teoria e a metodologia.

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b. Como eu penso o campo histórico: teoria, metodologia e escrita:

Uma vez explicado esse título, acho que é importante também fazer um breve esclarecimento de como entendo o campo histórico. De maneira introdutória (pois depois irei aprofundar um pouco essa questão): em primeiro lugar, penso que a História produz um tipo de conhecimento próprio e dotado de identidade, portanto, opera e constrói esse conhecimento a partir de um campo próprio. E esse campo faz fronteira (e invade e é invadido) por outros campos, tais como o campo da arte, da filosofia, das ciências físicas, etc.

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II.

Panorama:

Partindo então para um segundo momento do que eu tenho a dizer, vou fazer um longo panorama dos principais problemas/desafios que se apresentam para nós, profissionais da História. a. Principais debates teóricos, metodológicos e conceituais, abertos ou subjacentes, gerais às humanidades e específicos à História:

Uma vez tendo esses aspectos mais introdutórios esclarecidos, parto para fazer um panorama bem geral e o mais abrangente possível para os principais desafios que se mostram ou mostraram ao profissional da História nas últimas décadas. Mas antes disso, algumas considerações pontuais: a) Desafios são problemas que surgem em algum momento para aqueles que atuam no campo da História e se traduzem, empiricamente falando, em problemas para resolver de ordem teórica, metodológica, historiográfica, conceitual, ideológica, estética, ética, etc. b) Alguns desses desafios/problemas foram a chave para grandes discussões, outros se desenvolveram ou se apresentaram de forma mais subjacente a outras discussões. c) Essas discussões se organizam em grandes blocos, que por conseguinte se fundamentam em concepções, pressupostos, bases fundamentais teóricas e conceituais, visões de mundo gerais e visões sobre o campo histórico específicas. Cada bloco desses a gente poderia resumir, apenas para fins metodológicos, com algumas palavras-chave e com algumas das indagações que ilustram seus interesses, suas demandas e suas tentativas de resposta. d) Esses blocos não são estanques e rigorosamente delimitados, mas limítrofes, entrecruzados e mutuamente compartilhados. e) Cada grande bloco desses se desdobra em facetas mais específicas.

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Assim sendo, penso que esses desafios/problemas se desenrolam a partir de cinco grandes blocos de sentido:

a) Epistemológico: que abrange as teorias da história, os conceitos operacionais e as metodologias, assim como 1. Reflexões sobre o tempo, ou mais especificamente, sobre a relação dos homens com o tempo: e isso se desdobra em uma série de facetas: representações sobre o tempo, o tempo subjetivo ou apreensões da temporalidade, o tempo e a organização da vida, o tempo e o trabalho, o tempo e o lazer, relações entre diferentes temporalidades (vida cotidiana, na pesquisa, na escrita) etc.

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2. Reflexões sobre o espaço: na mesma linha adotada para a discussão anterior, tomando o objeto como algo complexo. 3. Objetividade, subjetividade, ciência, verdade: 4. Uma necessidade atual que ganha força gradativamente de explorar e descortinar uma História da própria História: 5. Debates sobre a crise: da história, da História, do conhecimento histórico, da disciplina e da organização curricular na educação básica, etc. 6. Sobre os empréstimos para com outros campos de conhecimento: teóricos, conceituais, metodológicos. 7. Interpretação, compreensão. 8. Sobre escalas analíticas: tempo, espaço, tema, sujeitos. 9. Problemas de análise: pulsões a-históricas, reducionismos, vieses. 10. Problemas de síntese: a história escrita não tem pontas-soltas, a narrativa sempre tem um sentido, a planura dos acontecimentos na narrativa, etc. 11. Estruturas, determinismo, ação consciente, acaso. 12. O presente como história. 13. Esvaziamento da Teoria no contexto das universidades e do currículo. 14. Sobre o lugar da História como campo de conhecimento: aqui, ali, entre, dentro, fora?

b) Lógica: 15. Causalidade não teleológica: 16. Rupturas, continuidades, acaso:

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c) Estética: 17. Reflexões sobre a forma escrita da História: 18. Horizontes de leitura da história escrita. 19. Sobre tropos, figuras de linguagem, estilo

d) Ética: 20. Questões relacionadas à uma ética do historiador: 21. Memória, comemorações, usos políticos da memória, história oficial, narrativas oficiais, comissões da verdade. 22. Temáticos: o que é digno de ser historiado. 23. Pedagógico: inculcação, ideologia, ética. 24. Sobre utilidades da História: 25. Biografia: a construção e a desconstrução do ídolo, do sujeito anônimo.

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e) Metafísica: 26. Finalidades, sentido, teleologia, escatologia: 27. Sobre História, moral e valores, repositório de exempla: 28. Sobre fé e crenças não-justificadas em História:

b. Guinadas e marcos acontecimentais:

Uma vez terminado esse panorama de desafios e problemas, agora vou também relembrar alguns dos principais marcos acontecimentais que marcaram a História como disciplina: 1. Guinada científica: história como ciência no século XIX. 2. Advento dos Annales: interdisciplinaridade no século XX, Tournant critique: Annales, anos 1980. 3. Guinada interpretativa: Dosse. 4. Guinada linguística: anos 1960/70. 5. Marco do fim da história: Francis Fukuyama (1992). 6. Guinada ética? a partir dos anos 2000.

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c. Desafios atuais (desde 1990):

Dentro desse quadro, escolho dois desafios, um mais específico e outro mais abrangente, que, ao meu ver, são bem contemporâneos e merecem atenção: O desafio epistemológico de compreender, construir e consolidar um lugar para a História como campo de conhecimento autônomo, dotado de identidade e que produz um conhecimento útil. E um conjunto de desafios que eu organizei em um grande grupo chancelados como “éticos”.

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III.

O desafio do “encontrar-se”: aqui, ali, entre, dentro, fora?

Com “lugar” quero me referir a dois aspectos interligados: primeiro, essa questão do lugar da História diz respeito a um espaço próprio de produção de conhecimento; como um segundo aspecto, diz respeito a um espaço próprio de organização de um ofício, um lugar de profissionalização.

Com esse desafio de “encontrar-se”, quero me referir a essa necessidade, tornada corriqueira em um certo nicho de publicações, de posicionar a História como disciplina em um lugar definido, marcar esse lugar em relação às outras disciplinas (ou campos de conhecimento). Também diz respeito, como uma ideia subjacente, a uma certa indefinição, ou posição problemática, ausência de unanimidade, de que a História como campo de conhecimento tem sua razão de existir, tem sua posição como campo produtor de conhecimento justificada de alguma forma.

O que eu tenho a dizer aqui é um pouco de história da constituição do campo, de suas principais características e dos desafios relacionados a esse problema nos dias atuais. a. O campo de conhecimento: características:

Como dito acima, o campo de conhecimento da História é um espaço particular onde o conhecimento histórico é produzido e possuí certas características

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que o tornam um campo próprio, independente de outros campos de conhecimento (embora eles se conectem em vários sentidos e facetas).

a) Como todos os outros, o campo da história é fruto de um processo histórico de construção, consolidação e justificação/legitimação, que se dá num duplo movimento: em primeiro lugar há certamente uma ação não planejada, e em segundo lugar há um pensamento deliberado em se construir a História como disciplina (característico da História do século XIX e XX, por ex.); b) Nesse processo de construção, consolidação e defesa do campo, houveram diversos conflitos, idas e vindas, negociações, com outros campos; o campo da História faz fronteira (e invade e é invadido) por outros campos, tais como o campo da arte, da filosofia, das ciências físicas, etc. c) Há um verdadeiro jogo de empurra e aproximação entre esses campos, então, de acordo com o contexto histórico, alguns campos podem estar mais próximos ou mais afastados;

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d) Cada campo precisa justificar a sua existência e independência em relação aos outros campos, de tempos em tempos confirmar e consolidar sua razão de existir; e) Uma das principais justificativas é em relação ao tipo de conhecimento produzido, seu impacto e necessidade social; a História produz um tipo de conhecimento próprio e dotado de identidade, portanto, opera e constrói esse conhecimento a partir de um campo próprio. A partir disso, cada campo tem suas características e desenvolvimentos internos específicos. No caso do campo da História, os pontos que julgo mais importantes, nesse quadro de características, são a forma como construímos o conhecimento histórico e a forma como justificamos sua identidade e necessidade/utilidade. O campo da História divide-se internamente em algumas facetas.

Em primeiro lugar, ao mesmo tempo que podemos pensar a historiografia como um “modo de comunicar” e a teoria como um “modo de ver”, também podemos sintetizar a metodologia como um “modo de fazer”. Não existe campo disciplinar sem essa tríade: teoria, método e discurso (BARROS, 2014, p.28). A História não escapa à essa regra. De um modo geral, as interconexões entre teoria e método são mais evidentemente verificáveis na maneira como uma dimensão impõe condições e restrições à outra: “uma certa maneira de ver as coisas (uma teoria) repercute de

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alguma maneira numa determinada maneira de fazer as coisas em termos de operações historiográficas (uma metodologia)” (BARROS, 2014, p.73). b. Postulados: realidade, cognoscibilidade, representação:

Na medida em que nossos interesses convergem para a compreensão de certa faceta da realidade, um fenômeno do mundo, um objeto de estudo, lançamos mão de um modo teórico de ver, de um modo metódico de fazer e de um modo historiográfico de dizer.

Mas antes mesmo de empreendermos a nossa busca por compreender algo dessa realidade, partimos de certas bases que fundamentam tudo isso e que poderiam ser chamadas de postulados/axiomas da disciplina História. E nessa discussão entra também todo um já longo debate entre modernos e pós-modernos. Dentre esses postulados, temos: em primeiro lugar, a crença de que a realidade existe independente da nossa vontade (realismo ontológico); em segundo lugar, que essa realidade é plural e ocorre em vários níveis, setores ou estratos (físico, biológico, psíquico, cultural, social, etc.); em terceiro, que essa realidade pode ser conhecida e descortinada (realismo epistemológico); e por fim, que a realidade histórica pode ser conhecida através da História disciplina. Para os pós-modernos, (e existe toda uma gama de adesões e formulações) esses pressupostos são colocados em cheque e duramente desconstruídos, sobrando para a disciplina histórica a possibilidade de construir um conhecimento que é outra coisa que não aquilo que desejavam as propostas modernas: em primeiro lugar, a ideia de realidade é duramente desconstruída; em segundo lugar, o conhecimento dessa realidade é criticado como impossível; em terceiro lugar, restaria à história a formulação de uma representação que não se reduz necessariamente à realidade estudada.

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Partindo da perspectiva de um historiador moderno, a fim de compreender a realidade, nos utilizamos de uma série de mediadores, que correspondem a um processo contínuo e circular. Estes mediadores envolvem, em um primeiro lugar, uma certa linguagem de observação do objeto ou fenômeno estudado, passando a seguir para construção de conceitos e hipóteses, procedimentos argumentativos, comprovações empíricas e demonstrações, fechando o ciclo com a verbalização dos resultados (o que acaba por retroalimentar um novo ciclo de conhecer) (BARROS, 2014, p.51-5).

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O método, nesse sentido, surge como um importante mediador da nossa relação com o objeto estudado. “A metodologia remete sempre a uma determinada maneira de trabalhar algo, de eleger ou constituir materiais, de extrai algo específico desses materiais, de se movimentar sistematicamente em torno do tema e dos materiais concretamente definidos pelo pesquisador. A metodologia vincula-se a ações concretas, dirigidas à resolução de um problema: mais do que ao pensamento, remete à ação e a prática” (BARROS, 2014, p.67). É metodológico tudo aquilo que é pertinente ao “fazer’ da história, cobrindo situações práticas e concretas com as quais os historiadores se defrontam, desde o processo de pesquisa, passando pela análise das fontes e se encaminhando para a própria forma como se apresentam os resultados. (BARROS, 2014, p.71-2). c. O quadro das disciplinas e o lugar da História:

Poderíamos dizer acerca disso que todos os campos de conhecimento têm uma história e que a organização desses campos também tem uma história, não sem conflitos. A metáfora da guerra pode ser inclusive utilizada aqui: temos tomada de terreno, recuperação de terreno, trincheira, ataques, alianças, traições, sacrifícios, inovações, etc. Pode-se dar exemplos para cada uma dessas metáforas. Bem rapidamente, pode-se dizer que a História ocupa um lugar fronteiriço com vários outros campos de conhecimento. De acordo com cada momento, esses campos podem se desconectar, se afastar, se aproximar, se interpenetrar. Tudo depende da relação que os campos mantêm, dialógica, de trocas, de conflitos, etc.

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d. Indecisões, negociações, federalismo, imperialismo, diplomacia:

Nessa longa história, milenar, de constituição, consolidação e constantes negociações, do campo histórico, poderíamos também tecer algumas considerações sobre os movimentos mais marcantes, os conflitos, as indecisões, os posicionamentos.

Cada período histórico e cada contexto específico é marcado por certas relações que prevalecem, adesões, conflitos, negociações, atitudes. Assim, por exemplo: Ao longo do século XIX e em boa parte do século XX a relação que prevaleceu foi com o campo das ciências nomotéticas. Poderíamos dizer que o século XIX foi um século compartilhado: século da História e século da Ciência. As relações entre esses dois campos de produção quase de identificam totalmente em alguns autores, como Ranke por exemplo. Por outro lado, em autores como Michellet, a conexão mais evidente se dá com o campo das artes e mais especificamente com a própria literatura. Em outros, como nas formulações sobre a história em Voltaire, Marx ou Kant, notoriamente formulações chanceladas como ‘filosofias da história’, a conexão mais forte se dá com a filosofia. Ou então, nas abordagens cliométricas, nas abordagens quantitativistas que se apoiam no uso de tecnologias de medição e cálculos, temos um contato bem distinto com as ciências tecnológicas. Além desses exemplos, o século XX e principalmente a corrente dos Annales, construiu uma longa história de negociação com outros subcampos das

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Humanidades: com Febvre, temos uma relação com a psicologia; com Bloch, sociologia; com Braudel, economia, geografia; com a Terceira Geração, antropologia. e. Implicações práticas:

O principal desafio prático, ao meu ver, no que tange essa busca por um lugar, ou melhor, pela consolidação, negociação e preservação do lugar da História, se encontra em dois pontos principais: a) Na relação historicamente conflituosa com as ciências naturais; b) Na argumentação, que precisa ser recorrente, sobre as bases epistemológicas, metafísicas, lógicas, éticas e estéticas da História. c) Na renovação do contrato social da História com as suas respectivas sociedades e culturas

Complementar e resumidamente, este desafio se dá com a necessidade constante de defesa do campo de produção do conhecimento da História e do seu campo de organização profissional: d) Na justificação do conhecimento produzido (e em seus desdobramentos); e) Na justificação do papel desse conhecimento em um âmbito mais geral.

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VI.

O desafio ético:

Já no que tange aquilo que poderíamos chamar como um grande conjunto de desafios éticos, vários pontos merecem destaque e atenção, sempre relacionados com um verniz de costume, tradição, moral, por um lado; e por outro, com uma espécie de dever.

a. A História pode tudo?

Há uma ideia, mais ou menos difundida no imaginário da formação do historiador e professor de história, de que a História pode, atualmente, pesquisar e construir conhecimento histórico sobre aquilo que bem entender. Uma ideia de que qualquer objeto pode ser historiado. Essa ideia baseia-se numa experiência e numa generalização: várias publicações recentes, das últimas décadas, atestam que muitas temáticas e objetos novos surgiram, tipos de fontes até então não utilizados, metodologias originais.

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Mas isso esconde um problema: esse otimismo não pode ser sustentado. Nem tudo pode ser objeto da História, devido algumas limitações: a) A primeira dessas limitações (e a mais evidente): fontes, base empírica; b) A segunda (mas não tão evidente): enredo, cola que concatena os fragmentos do passado; c) A terceira (conjunto de várias): tabus, moral, ética.

O principal limite para a construção do conhecimento histórico está ligado mais propriamente a sua dimensão metodológica e mais especificamente a existências de fontes ou base empírica. Uma vez tendo em mente o foco da dimensão metodológica do campo de conhecimento da História, podemos compreender quais elementos dele fazem parte. Nesse sentido, são absolutamente essenciais, o centro próprio da dimensão metodológica, as chamadas fontes históricas. “A Historiografia desenvolve inúmeros procedimentos e metodologias para constituir as fontes históricas, para analisá-las,

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para serializá-las, para utilizá-las como fontes de indícios e informações historiográficas, ou para abordá-las como discursos que devem ser decifrados, analisados, incorporados criticamente pelo historiador” (BARROS, 2014, p.72). Em linhas gerais, no processo de construção do conhecimento histórico se interpenetram e interinfluenciam as várias dimensões que compõe o campo disciplinar da História (teoria, metodologia e historiografia), aliadas à um conjunto bastante complexo de mediadores da relação entre sujeito e objeto. A relação entre teoria, método e base empírica também é de fundamental importância para a correta compreensão do ofício historiador. Ao mesmo tempo que a teoria e o método se interinfluenciam, restringindo-se mutuamente em relação ao seu campo de ação e visão da realidade, teoria e método também repercutem sobre a base empírica analisada. Um certo conjunto de fontes exige uma forma específica de fazer metodológica (por ex. uma análise do discurso, a serialização, uma abordagem qualitativa), da mesma forma que uma determinada teoria, à priori, pressupõe restrições à maneira como observamos a realidade e, portanto, a base empírica que fornecerá fundamentos às nossas alegações, comprovação às nossas hipóteses e retroalimentarão novas teorias. Uma das questões essenciais, e propostas já no alvorecer da História como Ciência, diz respeito à necessidade e o extremo cuidado do fazer histórico em apresentar suas fontes, sua base empírica. Essa é uma das questões metodológicas da maior relevância para a História. “A fonte está na base da dimensão de verificabilidade possível à História” (BARROS, 2014, p.82). Em certa medida, de forma escalonar, uma vez que as teorias são compreendidas por um universo mais amplo que é o campo disciplinar, tanto a disciplina como as teorias são também restrições ao olhar do pesquisador sobre a realidade. Nas palavras de Hayden White: “Toda disciplina é constituída, como viu Nietzsche de modo muito claro, por aquilo que ela coloca como proibido aos que a praticam. Toda disciplina é constituída por um conjunto de restrições ao pensamento e à imaginação, e nenhuma é mais tolhida por tabus do que a historiografia profissional” (WHITE, 1978). “As fontes impedem a liberdade total do historiador e, ao mesmo tempo, não fixam as coisas de tal modo que se ponha mesmo fim a infinitas interpretações” (JENKINS, 2005, p.33). b. O que é ‘digno’ de ser historiado?

Por conseguinte, se nem tudo pode ser objeto de história, o que pode ser historiado?

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É outra ideia, misto de pré-conceito com viés, que povoa nosso imaginário: alguns temas são mais importantes, legítimos, que outros.

Além disso, em uma outra perspectiva, há também uma compreensão, subjacente à atividade historiadora e que povoa o nosso próprio imaginário disciplinar, que é a ideia de que existem certos temas que são mais “dignos” de História do que outros. Uma espécie de hierarquia dos temas e objetos possíveis de serem historiados. E de tempos em tempos, essa hierarquia se renova e se reestrutura, conforme as gerações de historiadores se impõe umas às outras. Obviamente, trata-se, por um lado, de um preconceito, por outro, de um enviezamento. Aí, o que entra em jogo são os critérios para estabelecer o que detém mais "dignidade" para ser pesquisado As respostas para justificar esses critérios são sempre de caráter ético (ou moral, ou referendando-se me algum tabu, etc.). "Eu pesquiso isso porque é mais relevante"; "Porque produz mais impacto social"; "Porque diz respeito a um tema que merece destaque em nosso atual contexto".

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c. Dissociações entre a história acontecimental e a sua representação “moralizada” pela escrita.

Outro problema, inerente a outros conjuntos de problemas, quais sejam, os problemas relacionados com o bloco estético e epistemológico, diz respeito à um aspecto intrínseco à forma como a narrativa é construída no âmbito da história. Outro problema/desafio (que se conecta com a dimensão escrita): Dissociações entre a história acontecimental e a sua representação “moralizada” pela escrita. Uma vez que a escrita da história tem um certo poder de controlar, contornar e construir o fato narrado.

Simplificação da nervura dos acontecimentos, narrativa plana, organização genética das relações causais, viés retrospectivo, ausência de pontas soltas, narrativa que organiza os acontecimentos narrados através de um enredo, como se a história no seu âmbito narrativo ao menos encerrasse um sentido. A escrita do acontecimento pesquisado cristaliza certas escolhas produzidas pelo pesquisador. E dentre essas várias escolhas (algumas ocorrem de forma inconsciente até) temos: a opção por certas fontes, por certas referências, por certos encaminhamentos, por certo estilo, etc. (deixando de lado todo um conjunto de coisas que não entraram na escolha). Essas escolhas chegam até a escrita e é a escrita que planifica (no sentido de deixar plana) essas escolhas (nem todas essas escolhas aparecem na narração)

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Percebam: a narração história dos acontecimentos raramente deixa margem para o que poderia ter ocorrido, para a situação de indecisão dos atores do passado, para o horizonte de possibilidades disponíveis para esses atores, etc. A escrita da história opera quase sempre com um fio condutor, com um sentido. Para quem lê, a história inevitavelmente parece ser dotada de um sentido.

d. Pós-moderno e moderno: diálogos e intersecções?

[...] e. Implicações práticas. Algumas implicações mais evidentes, relacionadas com tais desafios éticos, ao meu ver: a) Pensar no impacto que o conhecimento histórico produzido terá em um âmbito mais amplo, sociocultural; b) Pensar na própria natureza da escrita histórica relacionada com sua dimensão ética; c) Justificar o conhecimento produzido;

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VII.

Considerações finais.

Para finalizar, o principal desafio geral, que envolve a discussão teórica da História, que envolve a reflexão sobre si mesma (metahistórica), para mim, diz respeito: Ao esvaziamento da faceta teórica pertinente aos currículos universitários (em relação com as facetas metodológica/empírica e pedagógicas).

E para concluir, gostaria de dizer que isso que acabei de expor se trata de uma tentativa de esquadrinhar isso que poderíamos dizer ser um quadro de desafios passados, desafios atuais e desafio futuros para o profissional da história. Como se trata de algo ainda muito tateante e também relativo, afinal o que é desafiador para um pode não ser para o outro, acredito que o debate pode contribuir não só para pensarmos tudo isso de uma maneira mais precisa, como também pode colaborar em pensarmos orientações para vencermos tais desafios. Eu penso que uma ótima metáfora diz respeito a essa ideia: a “Pedra que o rio cavou”. Nós cavamos a quantos milhares de anos a nossa pedra? Quantos desafios surgiram para cada uma das gerações de gente interessada pela história? Quantos desafios teóricos, conceituais, metodológicos, etc.? Penso que são os desafios que tornam um campo de conhecimento produtivo, atual e relevante. E, portanto, só a existência de tantos desafios (e, por conseguinte, a existência de fervilhar de debates) já seria suficiente para justificar a existência desse lugar que a História ocupa, assim como para justificar a sua dimensão ética.

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